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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Tania Maria Lopes Torres
O Rito da Unção: Sucessos e Fracassos de uma Modalidade
de Cura Religiosa na Igreja Adventista do Sétimo Dia
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Tania Maria Lopes Torres
O Rito da Unção: Sucessos e Fracassos de uma Modalidade
de Cura Religiosa na Igreja Adventista do Sétimo Dia
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação
da Professora Doutora Maria Helena Villas Bôas Concone.
São Paulo
2017
BANCA EXAMINADORA
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para Milton, Kérix, Krícis, Ana, Leonor, Sônia, Vânia e Getúlio (in memoriam)
Aluna bolsista CAPES-Taxa
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela saúde e disposição para estudar e compreender os mistérios do ser humano.
À Profa. Dra. Maria Helena Villas Bôas Concone, pelas sábias orientações durante o processo
de construção deste trabalho.
Aos professores da PUC-SP, pelo maravilhoso exemplo de dedicação ao ensino e tolerância às
diferenças, que me proporcionaram durante meus anos de estudo nesta Universidade.
À administração do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), pela concessão de
tempo e apoio financeiro para a realização desta pesquisa.
Aos colegas e alunos dos cursos de Arquitetura, Engenharia Civil, Letras e Tradutor &
Intérprete do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), pelo companheirismo e
incentivo.
Aos filhos, nora, irmãs, cunhadas, cunhados, sobrinhos, sobrinhas e demais familiares, pelo
apoio constante e incondicional.
Quando honestamente nos indagamos que pessoa tem
mais significado em nossa vida, descobrimos que é
quem, em vez de dar conselhos, soluções ou curas,
preferiu partilhar nossa dor e tocar nossas feridas com
mãos carinhosas e ternas. O amigo que consegue ficar
em silêncio conosco durante um momento de
desespero ou confusão, que consegue ficar ao nosso
lado na hora do luto e da perda, que consegue
aguentar não saber, não curar, não resolver, senão
encarar conosco a realidade da nossa impotência, esse
é um amigo de verdade.
Henri J. M. Nouwen, Out of solitude
RESUMO
Esta investigação se propôs a pesquisar qualitativamente o sucesso ou o fracasso da unção de enfermos como meio de alterar estatisticamente a história natural previsível de uma enfermidade. Sua metodologia consistiu de um estudo de resultados (outcome study), conforme proposto por Finkler (1985), voltado para uma comunidade rural, no bairro Lagoa Bonita, município de Engenheiro Coelho, onde os residentes são, em sua maioria, fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas com vinte e dois participantes. Constituiu-se a amostra ou com respondentes (90% dos quais eram adventistas) que se submeteram ao ritual da unção (denominados “sujeitos”) ou, no caso de sua impossibilidade, com respondentes que satisfizessem os dois critérios ad hoc de inclusão (denominados “informantes”): (1) parentesco próximo; e (2) presença durante a ministração do rito. Pelo menos 14 (isto é, 63%) dos sujeitos podiam ser descritos como em estado grave ou terminal. Para a análise dos dados, empregou-se o método da análise de conteúdo de Bardin (1977). Confirmou-se, no final da investigação, a tese que o rito da unção é sociologicamente eficaz e antropologicamente justificável, pois pertence à dimensão da regulação simbólica, razão pela qual os cuidadores espirituais conseguem ministrar aos pacientes com dor crônica em aspectos geralmente negligenciados pela biomedicina, daí a necessidade de sua institucionalização como possibilidade de tratamento.
Palavras-chave: Religião e saúde; Estudo de resultados; Regulação simbólica.
ABSTRACT
This research set out to qualitatively investigate the success or failure of the anointing of the sick as a means of statistically altering the predictable natural history of a disease. Its methodology consisted of an outcome study, as proposed by Finkler (1985), aimed at a rural community, in the Lagoa Bonita district, in Engenheiro Coelho, Brazil, where most of the residents profess Seventh-Day Adventistism. The data were collected by means of semi-structured interviews with twenty-two participants. The sample was formed either with respondents (90% of whom were Adventists) who underwent the ritual of anointing (referred to as “subjects”) or, in case they were not available, with respondents who met the two ad hoc criteria for inclusion (referred to as “informants”): (1) close kinship; and (2) being present during the ministration of the rite. At least 14 (i.e., 63%) of the subjects could be described as being in severe or terminal condition. For the analysis of the data, Bardin’s content analysis method was used. At the end of the investigation, it was confirmed that the anointing of the sick is sociologically effective and anthropologically justifiable, since it belongs to the dimension of symbolic regulation, which is why spiritual caregivers can minister to patients with chronic pain in aspects often neglected by biomedicine, hence the need for its institutionalization as a possibility of treatment.
Palavras-chave: Religion and health; Outcome study; Symbolic regulation.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Comparação do rito da unção em três denominações cristãs....................................56
Figura 2 – Estrutura interna do sistema local de cuidado da saúde............................................59
Figura 3 – Avisos gerais (Abadiânia)............................................................................................61
Figura 4 – Nota de intervenção (Abadiânia)................................................................................62
Figura 5 – Belvedere (Abadiânia)................................................................................................62
Figura 6 – Farmácia (Abadiânia).................................................................................................63
Figura 7 – Cristais (Abadiânia).....................................................................................................64
Figura 8 – Fiéis (UNASP)..............................................................................................................65
Figura 9 – Culto (UNASP).............................................................................................................66
Figura 10 – Coral angolano (UNASP)...........................................................................................66
Figura 11 – Oração de cura (UNASP)...........................................................................................67
Figura 12 – Complexo do CEVISA.................................................................................................68
Figura 13 – Ambulatório do CEVISA.............................................................................................68
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Motivação para a unção............................................................................................78
Tabela 2 – Sintomas/diagnósticos antes da unção......................................................................79
Tabela 3 – Melhora após a unção...............................................................................................81
Tabela 4 – Importância da unção................................................................................................82
Tabela 5 – Papel do diabo............................................................................................................85
Tabela 6 – Papel de Deus/Jesus...................................................................................................87
Tabela 7 – Percepção de cura......................................................................................................90
Tabela 8 – Percepção de sucesso.................................................................................................91
Tabela 9 – Papel do cuidador espiritual.......................................................................................93
Tabela 10 – Papel da igreja.........................................................................................................96
Tabela 11 – Papel do médico.......................................................................................................97
Tabela 12 – Papel do hospital....................................................................................................101
Tabela 13 – Papel da família.....................................................................................................103
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Dispersão idade/ano.................................................................................................75
Gráfico 2 – Dispersão duração/ano.............................................................................................76
Gráfico 3 – Dispersão duração/idade..........................................................................................77
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................12
O Problema............................................................................................................................13
Os Objetivos...........................................................................................................................23
A Metodologia.......................................................................................................................24
Estudo de Resultados.............................................................................................................26
Etapas da Pesquisa................................................................................................................27
Critérios Subjetivos de Percepção.........................................................................................29
Análise de Conteúdo..............................................................................................................30
CAPÍTULO I - BREVE HISTÓRICO DA UNÇÃO CRISTÃ DOS ENFERMOS......................................34
1.1 Breve História da Unção..................................................................................................35
1.2 Uma Definição Operacional de Unção dos Enfermos.....................................................39
CAPÍTULO II. ASPECTOS CULTURAIS DA VISITA PARA UNÇÃO..................................................42
2.1 A Visita do Cuidador Espiritual como Parte do Rito da Unção.......................................42
2.2 O Significado Social e Cultural da Visita do Cuidador Espiritual.........……......................47
2.3 Conclusão..................................................................................................……..................50
CAPÍTULO III. O RITO DA UNÇÃO...............................................................................................51
3.1 A Unção na IASD..............................................................................................................51
3.2 Comparação com a Unção em Outras Denominações....................................................56
3.3 Conclusão...............................................................................................…….....................58
CAPÍTULO IV – COMPARANDA E CONSTITUIÇÃO DA AMOSTRA...............................................60
4.1 Casa Dom Inácio de Loyola..............................................................................................60
4.2 Igreja do UNASP e CEVISA...............................................................................................64
4.3 Constituição da Amostra.................................................................................................69
4.4 Conclusão...............................................................................................…….....................69
CAPÍTULO V – ANÁLISE DO CONTEÚDO DAS ENTREVISTAS......................................................71
5.1 Pré-Análise.......................................................................................................................71
5.2 Análise..............................................................................................................................73
5.2.1 Os Participantes.............................................................................................................73
5.2.2 Os Informantes..............................................................................................................75
5.2.3 A Duração da Unção......................................................................................................76
5.2.4 A Análise das Dimensões...............................................................................................77
5.2.4.1 A Dimensão Motivos................................................................................................77
5.2.4.2 A Dimensão Sintomas.................................................................................................79
5.2.4.3 A Dimensão Melhora..................................................................................................80
5.2.4.4 A Dimensão Importância............................................................................................82
5.2.4.5 A Dimensão Diabo......................................................................................................84
5.2.4.6 A Dimensão Deus........................................................................................................86
5.2.4.7 A Dimensão Cura........................................................................................................89
5.2.4.8 A Dimensão Sucesso...................................................................................................91
5.2.4.9 A Dimensão Pastor.....................................................................................................93
5.2.4.10 A Dimensão Igreja.....................................................................................................95
5.2.4.11 A Dimensão Médico..................................................................................................96
5.2.4.12 A Dimensão Hospital..............................................................................................100
5.2.4.13 A Dimensão Família................................................................................................102
5.3 Conclusão.......................................................................................................................104
CAPÍTULO VI – SUCESSOS E FRACASSOS..................................................................................105
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................................109
REFERÊNCIAS............................................................................................................................117
Anexos.......................................................................................................................................123
Percentual de ADIAs perdidos............................................................................................. 123
Termo de consentimento livre e esclarecido...................................................................... 124
Entrevista sobre a realização da unção............................................................................... 125
Fases da pré-análise............................................................................................................ 126
12
INTRODUÇÃO
A unção dos enfermos com propósitos de cura tem sido praticada pelos cristãos desde
a era medieval, caindo, mais tarde, em desfavor por ter se tornado cada vez mais associada à
“extrema unção” e aos rituais que antecediam a morte (SENN, 1997, p. 353). Contudo, tal
prática tem recuperado o vigor desde o início do século XX, principalmente por causa do
interesse por ela despertado nas igrejas episcopais (SENN, 1997, p. 671).1 A unção dos
enfermos passou a ser considerada como prática oficial dos episcopais a partir da edição
revisada de seu Livro de orações comuns, em 1928, nos Estados Unidos, e 1929, na Escócia.
Desde 1962, quando a Igreja Anglicana adotou o rito, muitas outras denominações
protestantes o fizeram (RAHNER, 1970; GUSMER, 1984).
A unção é definida pela igreja adventista do sétimo-dia (IASD) como uma “cerimônia
solene” (ASSOCIAÇÃO, 1987, p. 104). Embora também creia nas formas convencionais de
tratamento e saliente a importância dos conhecimentos médicos, a IASD adotou a prática da
unção por razões de cunho espiritual, como uma forma de demonstrar que aceita que Deus é,
em última instância, o verdadeiro mantenedor da vida, tendo, portanto, o poder de curar e
restaurar a saúde. Os adventistas reconheçam que “nem todos os que são ungidos sejam
curados posteriormente”, mas os que praticam esse ritual têm essa intenção. Seu Manual para
ministros assim descreve o ritual:
Geralmente deve haver dois ou mais que participem da oração. Antes de entrarem no quarto do doente, deve haver um entendimento quanto à ordem em que vão orar os participantes. O que ora por último é comumente o que unge o doente. Antes das orações deve ter-se um vidrinho de azeite de oliva para o ungimento. Perto do fim da última oração, o azeite é aplicado à fronte daquele por quem se ora. Isto pode ser feito umedecendo o ministro as pontas dos dedos com o azeite derramado previamente num pires, ou vertendo suavemente algumas gotas de um vidrinho... Se o doente não está em estado crítico, pode-se dedicar breve espaço de
1 Há quatro formas principais de governança eclesiástica: a episcopal (a exemplo da igreja anglicana), na
qual os bispos administram paróquias; a presbiteriana (a exemplo da igreja presbiteriana), na qual o governo da igreja fica sob a tutela de um grupo de administradores (presbitério); a congregacional (a exemplo da igreja batista), na qual cada igreja local é independente das demais e toma as próprias decisões sem a interferência de instâncias superiores; e a representativa (a exemplo da igreja adventista do sétimo-dia), na qual as diferentes igrejas elegem representantes que votam em assembleias mais amplas do que a igreja local. Tendo adotado desde sua fundação um modelo representativo de governança, a igreja adventista do sétimo-dia não se filia às igrejas episcopais nem em termos históricos, nem de governança, nem de doutrina, mas partilha com aquelas a prática da unção.
13
tempo, antes da oração, à leitura das Escrituras para animar a fé,2 e
também a recordar os aspectos principais da experiência cristã pessoal e a apresentar exemplos do poder e da graça de Deus em curar... No fim da oração de ungimento, ou pouco antes da despedida dos pastores, deve haver uma breve oração de agradecimento a Deus por ter ouvido a prece de intercessão (ASSOCIAÇÃO, 1987, p. 105-106).
O locus classicus para os princípios que norteiam a aplicação da unção aos enfermos
por parte dos adventistas do sétimo-dia é o capítulo “Oração pelos doentes” do livro A ciência
do bom viver, uma tradução da obra original, em inglês, The ministry of healing, escrita por
Ellen G. White, uma co-fundadora da Igreja nos Estados Unidos (WHITE, 1990 [1905], p. 225-
233). De acordo com ela, “ao termos orado pela restauração de um enfermo, seja qual for o
desenlace do caso, não percamos a fé em Deus... sendo a saúde restituída, não se deveria
esquecer que o objeto da misericordiosa cura se acha sob renovada obrigação para com o
Criador” (WHITE, 1990 [1905], p. 233). Outras denominações evangélicas têm, contudo, ritual
muito mais complexo, podendo, por exemplo, chegar a exigir que se aplique o azeite à parte
do corpo onde exista a doença. Ocorre também, esporadicamente, a indução ao transe (se não
daquele que se encontra enfermo, pelo menos do oficiante ou seus atendentes).
O Problema
O rito da unção é administrado a pessoas enfermas, geralmente em estado terminal,
com a finalidade de preparar essas pessoas para a morte ou operar um tipo miraculoso de
cura. Embora se trate de uma prática tradicional da Igreja Católica (RAHNER, 1970), algumas
denominações evangélicas adotaram o costume, especialmente a partir da década de 1920,
com base em sua leitura de São Marcos 6:13 e São Tiago 5:14-15 (SENN, 1995, p. 671).
Pretendeu-se, com este estudo, a partir de relatos de fiéis da IASD, avaliar qualitativamente o
sucesso ou o fracasso deste agente em alterar a história natural previsível de uma
enfermidade. A própria compreensão da cura é passível de interpretações e reinterpretações
múltiplas e sucessivas uma vez que a transição da enfermidade para o bem-estar físico e
emocional depende, muitas vezes, da articulação existente em diferentes processos de
convencimento (CSORDAS, 1983; SCHIEFFELIN, 1985; GEERTZ, 1978). Pergunta-se, entre outras
coisas: que fatores contribuem para a percepção de cura após a unção? Qual é o impacto
psicossomático e social da unção? Que fatores levam um indivíduo a abrir mão do papel de
2 As passagens recomendadas para tal leitura são: Nm 21:8-9; Sl 103:1-5; Is 53:4-5; Mt 8:14-17; Mr 6:12-
13; 16:15-20; At 3:1-16; Ti 5:14-16 (Associação Geral 1987:106).
14
“doente”? Que relações existem entre crença religiosa, comportamento e saúde? Quais seriam
os critérios determinantes para a obtenção de um resultado considerado satisfatório por
aqueles envolvidos no ritual?
O estudo da cura pelo ritual da unção, conforme praticado pelos adventistas do sétimo
dia, é de interesse antropológico. Há, de fato, certas semelhanças entre a prática dos
adventistas e o fenômeno de cura no xamanismo, o que aponta para o pedigree antropológico
deste tipo de estudo. Guardadas as devidas proporções, os dois fenômenos são comensuráveis
no âmbito teórico, embora apresentem diferenças bastante evidentes quando considerados
em seu meio social mais imediato. Entretanto, não é às diferenças que reportamos as
considerações a seguir, mas a três aspectos fundamentalmente análogos: a sustentação por
uma cosmovisão pautada numa concepção do conflito entre o bem e o mal no universo, o foco
psicossomático e a natureza performativa dos dois sistemas. O xamanismo é, por si só, um
fenômeno bastante complexo, e é entendido, aqui, como um sistema que emprega, entre
outros, um tipo principal de especialista religioso, caracterizado por empreender cura religiosa
por meio de ritos que não obedecem a um calendário litúrgico ou sazonal (NIDA, 1954, p. 160;
TURNER, 1985, p. 81-88).3 Em muitas partes da África, há geralmente uma nítida distinção
entre o xamã invocado para curar os efeitos mortais da magia negra e o feiticeiro, culpado de
usá-la. “Um xamã é um membro altamente respeitado da sociedade, mas o feiticeiro é temido
com medo mortal” (NIDA, 1954, p. 160). Assim, segundo Martins e Martini (2012, p. 60),
No correr do processo histórico, interpretações sobre a doença e a morte surgiram associadas a algum tipo de culpa, à ira de algum deus tribal ou nacional que teria sido desobedecido ou insultado individualmente, pelo grupo ou pelos ancestrais, donde deriva a noção de punição ou castigo pessoal ou comunitário, a ideia de possessão por algum tipo de espírito maligno ou demônio, ou à predestinação. Nestes casos, faz-se necessário reverter este estado de coisas através de oferendas para agradar a divindade, de ritos de exorcismo para afastar os maus espíritos, algum tipo de autopunição, abstinência, submissão aos tabus locais etc. Quando se trata de dor ou doença individual, o sujeito afetado busca a cura recorrendo aos poderes do mago ou do feiticeiro local. Em casos onde pestes atingem a comunidade, surge a figura do sacerdote encarregado do culto e sacrifícios rituais, com a finalidade de intermediar os favores e aplacar a ira das entidades ofendidas. Uns e outros aconselham comportamentos para acabar com a doença, ligados em primeiro momento a práticas ritualistas e
3 Segundo Nida (1954, p. 160), “os especialistas religiosos pertencem a cinco tipos principais: (1) os que
praticam magia negra (bruxos ou feiticeiros); (2) os que predizem o futuro (videntes, adivinhadores, vates); (3) os que usam a magia para curar ou proteger, detectar bruxos e feiticeiros, ou reconciliar os espíritos ou deuses ofendidos (encantadores, pajés, xamãs); (4) os que representam o povo na condução dos rituais religiosos (sacerdotes); e (5) os que falam ao povo em favor do poder sobrenatural (profetas). Naturalmente, a mesma pessoa pode praticar várias dessas especialidades religiosas [...]. Alguns desses especialistas religiosos podem ser profissionais no sentido de que ganham seu sustento com seu trabalho religioso, outros são amadores, mas, mesmo assim, especialistas”.
15
posteriormente combinadas à normatização dos comportamentos pautados por valores éticos.
Desta forma, o conceito de cura no âmbito da religião guarda relações íntimas com a
ideia de rito sagrado. Morin (2012, p. 43) afirma que “os ritos sagrados constituem sequências
rígidas de operações verbais ou gestuais que colocam o praticante em transe”. Aplicada ao
campo da cura religiosa, a definição de Morin aponta para o fato de que as “condutas
miméticas”, os “gestos simbólicos” e os sacramentos inserem o enfermo numa “ordem
transcendental” (MORIN, 2012, p. 43). O autor está, de fato, transitando no mesmo arcabouço
conceitual que levou Neher (1969, p. 68) a se referir a uma vocação ritualista e cósmica do
homem. Para Morin (2012, p. 43), não há como menosprezar a descoberta de Neher, uma vez
que os ritos operam “uma ressonância, uma harmonia entre o indivíduo que os realiza e as
esferas nas quais efetua a sua integração ritual”. Apesar de extremamente valiosa, descarto,
aqui, a definição de Morin por causa da dificuldade que teria de objetivamente confirmar o
estado de transe e/ou integração ritual de um ou mais participantes. Opto, por isso, por uma
definição mais comensurável com a natureza limitada desta pesquisa e alinhada com estudos
voltados para os aspectos dinâmicos da ritualização (TURNER, 1974; BELL, 1992; 1997),4 em
que esta é vista como a prática de uma ação realizada para se destacar de outras ações por
causa dos gestos ou pronunciamentos que a acompanham, quer pela forma como é
demarcada no tempo e no espaço, quer por sua repetição, quer, ainda, pela alegação de que
se conecta a outras ações do passado, desta forma transcendendo o próprio tempo e espaço.
Esse tratamento do ritual se aproxima, pois, da definição que lhe é dada por Tambiah
(1985, p. 128), segundo a qual “o ritual é um sistema culturalmente construído de
comunicação simbólica”, que é “constituído de sequências padronizadas e ordenadas de
palavras e atos, com frequência expressa em mais de um meio, cujo conteúdo e arranjo são
caracterizados, de várias maneiras, pela formalidade (convenção), esteriotipação (rigidez),
condensação (fusão) e redundância (repetição)”, e cuja ação é essencialmente performativa.
Por essa razão, considera-se, nesta tese, rito e ritual como sinônimos, como o faz o próprio
Turner (1985, p. 146), que considera os ritos como loci privilegiados para se detectarem as
dimensões sociais de ruptura, crise, separação e reintegração social, com a ideia de que os
4 Segundo Penn-Strah (2002, p. 77), uma das vantagens da abordagem do rito como perfomance
dinâmica (quase teatral) é que se podem empregar, na discussão do comportamento ritual humano, expressões como “papel” e “script”. Segundo ela, “quando tomo parte de um drama social, compreendo que meu comportamento se encaixa em expectativas pertinentes a determinados papéis. A analogia do drama dá conta de meu comportamento contínuo como, de certa forma, codificado e, de algum modo, influenciado por um conjunto de pressuposições anteriores, isto é, socializado”. Elaborando a imagem do ritual como performance teatral, autores como Bateson (1972), Goffman (1974) e Smith (1987) chegam a fazer referência ao rito como “tomada cinematográfica” (frame).
16
ritos seriam dramas sociais fixos e rotinizados, no sentido próximo ao de peças teatrais, razão
pela qual haveria, no céu, abóbadas perfeitas, mas, na terra, apenas arcos despedaçados,
assim reconhecendo que, “em nenhuma sociedade concreta os sistemas simbólicos se
realizam em sua perfeição” (PEIRANO, 2000, p. 7).
É tampouco necessário alongar demasiadamente, aqui, uma discussão sobre a
natureza holística dos processos que produzem, no ser humano, a sensação de bem-estar e de
saúde. De acordo com Martins e Martini (2012, p. 61),
Em âmbito religioso a relação entre saúde e salvação é encontrada em várias expressões linguísticas. Em sânscrito, o termo svastha encontra equivalente tanto em “bem-estar” como em “plenitude”, o mesmo acontecendo em formas nórdicas e anglo-saxônicas. Em grego, sotér refere-se tanto àquele que cura como àquele que salva. Na língua latina, o significado de salus é indicativo tanto de saúde física como de salvação do ser humano em sua plenitude. Também no hebraico termo shalom designa “paz”, “bem”, “prosperidade”, “integridade física e espiritual”. Axé, expressão comum nas tradições afro-brasileiras, exprime “paz”, “harmonia interior e cósmica”, “equilíbrio”, “força vital”, “saúde”. O mesmo vale para shalam na tradição islâmica. Muitas outras referências poderiam ser aqui apresentadas demonstrando articulação e dinamismo entre dimensões físicas, psicológicas, espirituais, sociais que caracterizam a cosmovisão holística do homem religioso...
Fato amplamente estabelecido na literatura pertinente, o desfrute de saúde passa
obrigatoriamente por várias dimensões. O próprio Morin (2012, p. 53-54) enfatiza
suficientemente esse ponto:
As doenças corporais não são apenas corporais. As doenças psíquicas não são apenas psíquicas. Têm todas três entradas: a somática, tratada por médicos com medicamentos e intervenções cirúrgicas; a psíquica, tratada por feiticeiros e xamãs, depois por confessores e gurus, hoje por psicoterapeutas e psicanalistas; a ecológica e/ou social, penetrada pelas perturbações do meio, urbano, por exemplo, que deveriam ser tratadas por uma política de civilização. É possível curar através de uma dessas entradas, atingir o psíquico pelo químico, atingir o bioquímico pelo psíquico, às vezes, atingir um e outro mudando as condições de vida. A conversão histérica, tão frequente, indica que podemos inconscientemente fixar e exibir um mal da alma num órgão do corpo. O enfraquecimento imunológico pode vir de uma perda ou de uma mágoa. Uma vontade selvagem ou uma intervenção aparentemente mágica podem levar à cura de um câncer.
Além disso, a antropologia reconhece, de modo geral, que os ritos sagrados têm impacto, de
fato, não apenas na percepção humana da saúde, mas também em suas manifestações mais
físicas e mensuráveis.
O desafio, aqui, é, portanto, não sucumbir a distanciamentos insuplantáveis ou à
subjetividade excessiva. É necessário, por isso, conjurar, em sentido amplo e conjugado, a
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complementaridade da sociologia, antropologia, etnologia e etnografia. Para Laplantine
(1988), a apreensão da sociedade como seus atores sociais a percebem é que torna a “prática
etnológica” uma “prática de campo”, diferente da do historiador ou do sociólogo. O
historiador nem entra em contato direto com os homens e mulheres das sociedades que
estuda. Prefere testemunhos a testemunhas. A sociologia também difere da prática etnológica
pelo distanciamento em relação a seu objeto, por sua tendência solucionista e explanatória e
por sua utilização de protocolos rígidos. A etnografia, em contraste, “tem algo de errante”,
sabendo apreciar igualmente os sucessos e os fracassos. Sendo assim, a antropologia opta pela
descoberta etnográfica que Laplantine (1988, p. 149-199) compara a uma “aventura pessoal”.
Para Laplantine (1988, p. 169), “o estudo da totalidade de um fenômeno social supõe a
integração do observador no próprio campo de observação”:
Se é possível, e até necessário, distinguir aquele que observa daquele que é observado, parece-me, em compensação, impensável dissociá-los. Nunca somos testemunhas objetivas observando, e sim sujeitos observando sujeitos. Ou seja, nunca observamos os comportamentos de um grupo tais como se dariam se não estivéssemos ali ou se os sujeitos da observação fossem outros. Além disso, se o etnógrafo perturba determinada situação, e até cria uma situação nova, devida a sua presença, é por sua vez eminentemente perturbado por essa situação (LAPLANTINE, 1988, p. 169).
Por isso, para ele, “a antropologia é também a ciência dos observadores capazes de
observarem a si próprios”. Esses observadores buscam se tornar, numa situação de interação
particular, absolutamente conscientes. É necessário, por assim dizer, que o etnólogo controle
“as armadilhas frequentemente inconscientes da projeção e do etnocentrismo”.
Embora não seja o xamanismo que constitua o objeto da análise aqui proposta, sua
menção como comparandum se justifica por duas razões. Em primeiro lugar, serve de analogia
imparcial, capaz de conferir o grau desejado de distanciamento dos aspectos sob estudo. A
mente científica pode até conceber que um pajé conheça ervas misteriosas na profundeza da
selva amazônica; no entanto, continuará provavelmente cética se for informada de que um
pastor adventista do sétimo dia esfregou óleo na testa de um enfermo que, então, se
restabeleceu.5 Em segundo lugar, confirma que, como se procura mostrar aqui, a cura religiosa
merece atenção antropológica.
5 Apesar disso, a tradição judaico-cristã abunda em relatos de cura espiritual: Miriã foi supostamente
curada de lepra, através da oração do seu irmão Moisés (Números 12:13). O rei Ezequias foi curado de uma úlcera fatal pela intercessão e cuidados do profeta Isaías (Isaías 38). Naamã, general sírio, foi tratado pelo profeta Eliseu com banhos de rio, talvez o primeiro relato antigo sobre os benefícios da hidroterapia (2 Reis 5:14).
18
Ao abordar as questões de cura pertinentes ao xamanismo, não se trata de
condescender com crenças primitivas e superstições. A atuação de um xamã depende de uma
cosmovisão ampla que provê explicações tomadas como satisfatórias para vários dos aspectos
relativos aos fenômenos sociais da saúde e da doença. Segundo Lévi-Strauss (2003, p. 206-
207),
A psicologia do feiticeiro não é simples. Para tentar analisá-la, inclinar-nos-emos inicialmente sobre o caso do velho xamã que suplica ao seu jovem rival de dizer-lhe a verdade, se a doença colocada no côncavo de sua mão como um verme rubro e viscoso é real ou fabricada, e que soçobrará na loucura por não ter obtido resposta. Antes do drama, estava na posse de dois dados: de uma parte, a convicção de que os estados patológicos têm uma causa e que esta pode ser atingida; de outra parte, um sistema de interpretação onde a invenção pessoal desempenha um grande papel e ordena as diferentes fases do mal, desde o diagnóstico até a cura. Esta fabulação de uma realidade em si desconhecida, feita de procedimentos e de representações, é afiançada numa tripla experiência: a do próprio xamã que, se sua vocação é real (e, mesmo se não o é, somente pelo fato do exercício), experimenta estados específicos, de natureza psicossomática; a do doente, que experimenta ou não uma melhora; enfim, a do público, que também participa da cura, e cujo arrebatamento sofrido, e a satisfação intelectual e afetiva que retira, determinam uma adesão coletiva que inaugura, ela própria, um novo ciclo.
6
Em muitos sentidos, o universo desenhado pelo xamanismo é real bem como são as
evidências objetivas do poder explanatório de sua cosmovisão. De acordo com Nida (1954, p.
161-162),
Se um homem fica doente e atribui sua enfermidade à magia negra lançada sobre ele por um inimigo, o ritual realizado pelo xamã para convencer o homem de que o perigo passou serve para curar o paciente na maioria dos casos. O xamã não sabe que não há valor terapêutico real em fingir sugar uma erva ou em perfurar o doente com longas agulhas de osso a fim de expulsar os espíritos, mas ele aprendeu pela experiência que isso já curou outras pessoas. Os resultados confirmam sua própria crença nos métodos e aumentam seu prestígio entre as pessoas. Embora essas práticas estejam cedendo rapidamente às drogas e cirurgias ocidentais, não se deve imaginar que os aborígenes mudaram suas atitudes com respeito à doença e aos remédios. É que, para eles, o homem branco tem espíritos mais fortes que podem prover remédios espiritualmente mais poderosos.
Os adventistas também contam com uma cosmovisão ampla que fundamenta sua
crença no caráter divino da cura. Schaefer (1977, p. 21) recapitula como essa crença se
encontra ligada aos escritos de Ellen G. White, pioneira e fundadora da denominação:
6 De acordo com Lévi-Strauss (2003, p. 207), “estes três elementos daquilo que poderia denominar de
complexo xamanístico são indissociáveis. Mas vê-se que eles se organizam em torno de dois polos, formados, um pela experiência íntima do xamã, o outro pelo consensus coletivo”.
19
Os adventistas creem que Deus revelou, de forma especial, o seu cuidado amoroso pelo conforto, felicidade e longevidade da raça humana por intermédio de uma série de visões que deu a Ellen White com respeito ao assunto da saúde. Segundo ela (manuscrito 1, de 1863), “temos o dever de falar, de nos pronunciar contra qualquer forma de intemperança, seja no trabalho, na dieta, no consumo de bebidas ou no uso de drogas [...]. Eu vi que não deveríamos ficar calados quanto ao tema da saúde; em vez disso, deveríamos acordar nosso intelecto para o assunto”.
O próprio Schaefer (1977, p. 261-262) apresenta o que considera cinco razões fundamentais
por que, apesar disso, tão poucos adventistas norte-americanos acreditem em curas
espirituais.7 Segundo ele, em primeiro lugar, as ações de Deus são complexas e é difícil analisá-
las de forma inteiramente objetiva. Em segundo lugar, o cérebro humano não é
essencialmente um órgão de razão, mas de sobrevivência. Por isso, sua atuação se limita, em
certa medida, a descobrir o que é imediatamente vantajoso. Em terceiro lugar, o tema da
saúde humana é complexo, podendo incluir dimensões tão variadas quanto, entre outras
coisas, profilaxia, tratamento, impacto social e milagres. Em quarto lugar, o impacto negativo
da presunção de certos adventistas que se recusaram a consultar os médicos, preferindo
depender exclusivamente da cura religiosa. Schaefer (1977, p. 263-264) lamenta que a
tendência atual, entre os adventistas, seja crer exclusivamente em médicos. De fato, faz pouco
tempo, um teólogo adventista indagou: “precisamos mesmo de milagres, diante do fato de
que eles podem nos encorajar a evitar a responsabilidade pessoal e produzir expectativas
pouco realistas?” (LARSON, 1988, p. 13). Finalmente, em quinto lugar, Schaefer aponta para o
papel importante desempenhado pela experiência: só se dispõem a crer em milagres aqueles
que já os vivenciaram.
De qualquer forma, o desempenho, em saúde, dos adventistas, em comparação com
outros segmentos da sociedade norte-americana,8 é bastante positivo, destacando-se,
principalmente, por sua baixa incidência de câncer (COOK, 1984, p. 4). Segundo um artigo
7 Schaefer (1977, p. 271) reclama ainda do que ele chama de medicalização dos adventistas do sétimo
dia. Ele cita o exemplo da comunidade de Loma Linda, uma das mais longevas e saudáveis do mundo, que tem dependido cada vez mais do complexo hospitalar ao redor do qual se instalou para manter seus elevados índices de longevidade. Segundo Schaefer, essa medicalização resultou principalmente de (1) a ética cristã ter sido identificada, de maneira crescente, com a ética médica; (2) a liderança financeira das instituições de saúde, que transformaram os profissionais da saúde na elite da igreja; (3) a influência da legislação secular sobre a saúde; e (4) a crescente influência dos hospitais adventistas sobre o sistema educacional patrocinado pela IASD. 8 Infelizmente, não há dados confiáveis para o Brasil. Atualmente, Everton Padilha Gomes, cardiologista
do Incor do Hospital das Clínicas da USP e chefe da UTI do Hospital Adventista de São Paulo, coordena o Estudo ADVENTO (Análise de Dieta e Hábitos de Vida na Prevenção de Eventos Cardiovasculares em Adventistas do Sétimo Dia), financiado pela Universidade de São Paulo, Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e Incor (Instituto do Coração), e apoiada institucionalmente pela organização adventista. Os resultados ainda são preliminares. Apesar disso, o estudo já mostrou menores níveis de colesterol, glicose, creatinina e marcadores inflamatórios nos adventistas.
20
publicado pelo The Saturday Evening Post, jornal que há cerca de trezentos anos comenta os
aspectos mais interessantes da vida nos Estados Unidos,
não apenas os adventistas são menos propensos às doenças do coração, pulmões, cólon, reto, entre outras, mas também desfrutam de maior longevidade do que as outras pessoas. A expectativa de vida do homem adventista típico é de 6,2 anos a mais do que o homem típico da população em geral; a estimativa é de 3,1 anos a mais para as mulheres adventistas (COOK, 1984, p. 4).
A cosmovisão adventista depende de cinco princípios fundamentais que incidem sobre
a questão da saúde, conforme sua literatura amplamente divulga: Deus como a fonte de saúde
e cura; a conexão íntima entre saúde física e mental; o amor próprio como base da saúde
física; os relacionamentos sociais como importantes para a saúde física; e o dogma de que o
corpo é o “templo do Espírito Santo”, conforme 1 Coríntios 10:31 (SCHAEFER, 1977, p. 270).
Essa cosmovisão, contudo, não somente afirma que Deus é fonte de saúde e cura, mas
também apresenta sua disposição favorável e seu desejo de conceder saúde e cura ao ser
humano:
Cristo é agora o mesmo compassivo médico que era durante Seu ministério terrestre. Nele há bálsamo curativo para toda moléstia, poder restaurador para toda enfermidade. Seus discípulos de nossos dias devem orar pelos doentes tão verdadeiramente como os de outrora. E seguir-se-ão as curas; pois “a oração da fé salvará o doente” […]. Os servos de Cristo são os instrumentos de Sua operação, e por meio deles deseja exercer Seu poder de curar. É nossa obra apresentar o enfermo e sofredor a Deus, nos braços da fé. Devemos ensinar-lhes a crer no grande Médico (WHITE, 1990, p. 226).
Por isso, a cura ocupa lugar de destaque na vida religiosa e nos esforços sociais dos
adventistas:
Os ensinamentos sobre saúde dos adventistas do sétimo dia, lançados por Ellen G. White, em 1863, com seu conselho para uma vida saudável, se tornaram o esforço mais complexo da igreja, além do trabalho pastoral e do evangelismo. Dentro da denominação, havia um pensamento corrente de que o movimento em prol da saúde fosse o braço direito da mensagem adventista (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009, p. 478).
No entanto, a cosmovisão adventista é ainda mais abrangente quando contempla a
existência do ser humano no mundo. Da forma semelhante ao modo como o xamanismo
encara a origem da doença, proveniente da magia negra praticada por um inimigo, os
adventistas entendem que a doença não é necessariamente oriunda dos azares da
21
constituição genética ou da contaminação por meios diversos, mas das consequências de um
estilo de vida prejudicial ou da ação de entidades demoníacas que se opõem à vontade de
Deus e de seus anjos. Essas explicações, embora não isomórficas, são comensuráveis,
respectivamente, com os postulados de Laplantine (2004, p. 227-230) quanto aos dois
modelos interpretativos da doença: a doença como punição e a doença como maldição. A
literatura adventista identifica a oposição entre esses poderes divinos e demoníacos como
permeando a história da humanidade e afetando todas as dimensões da vida humana. Trata-
se, de fato, de uma metanarrativa, identificada pela expressão grande conflito, que explica os
eventos da história bem como os vários aspectos do comportamento humano (WHITE, 2008).
O grande conflito é, nessa perspectiva, uma disputa entre Deus e o diabo, que se trava, na vida
e no coração do ser humano, por sua adesão. A doença assume, nele, a função de artimanha
demoníaca para afastar o ser humano de Deus ou a consequência das escolhas pecaminosas
do indivíduo. Em alguns casos, o doente pode ser ainda confortado com a explicação de que, a
exemplo da narrativa encontrada no livro de Jó, na Bíblia Hebraica, a doença pode ser uma
forma de Deus concretizar sua vontade ao estabelecer um plano mais amplo para a vida da
pessoa enferma ou para o destino da raça humana.
Apesar das avaliações negativas que chegam a considerar a religião como fator
patogênico, em que “a neurose é elevada à condição de santidade” (ALVES, 1978, p. 27-45), as
evidências apontam para o fato de que “maior nível de religiosidade organizacional e
intrínseca são preditores de uma melhor qualidade de vida física e mental nos idosos”
(ABDALA, 2013, p. 111). Obviamente, a pesquisa mencionada se refere especificamente ao
caso dos idosos. Entretanto, é possível extrapolar as conclusões para outras faixas etárias, se
considerarmos o tratamento dado ao tema na literatura antropológica. “Levando em
consideração que em toda sociedade uma alta percentagem de pessoas sofre de enfermidades
psicossomáticas, o curandeiro que se especializa nesse tipo de mal tem um grande percentual
de sucesso” (NIDA, 1954, p. 161).
Conforme discutido brevemente, o interesse antropológico no ritual da unção, do
modo como este é praticado pelos adventistas do sétimo dia, se justifica por razões
comensuráveis àquelas que atraíram os antropólogos para o estudo dos rituais de cura no
xamanismo. Os dois tipos de prática ritual dependem do suporte de uma cosmovisão
amplamente explanatória; trafegam principalmente na dimensão psicossomática e têm caráter
essencialmente performativo. Considerando essas afinidades, estudar um fenômeno e
22
negligenciar o outro faria o antropólogo incorrer em um tipo imperdoável de “etnocentrismo
inverso”.9
Além disso, a importância de se fazer uma análise do papel da cura religiosa como
elemento que transcende a moldura medicocêntrica (isto é, o jargão e os modelos conceituais
baseados em termos clínicos modernos) advém do fato de que médicos e antropólogos da
saúde têm sentido cada vez mais a necessidade de compreender a manutenção da saúde e a
prevenção de doenças como uma função dos “sistemas médicos” (ALLAND, 1970; DUNN, 1976;
KLEINMAN, 1980, p. 83-84). Tais sistemas têm geralmente esbarrado no obstáculo de imporem
categorias clínicas estranhas às culturas que investigam, ou de deixarem de compreender as
semelhanças interculturais existentes nos diferentes interesses e práxeis clínicas. De fato, a
moderna pesquisa sociológica tem verificado que o sofrimento humano pode ser apropriado
tanto pelo discurso político quanto pelo doutrinamento religioso. De acordo com Das (1994, p.
162-163), mecanismos como paradoxo, auto-ocultação, conotações múltiplas e distensões
metafóricas agem como instrumentos através dos quais o sofrimento é alienado da vítima e
apropriado pelo autor do discurso. A passagem da aflição ao bem-estar depende, muitas
vezes, da tensão existente em diferentes esquemas interpretativos e de certa dinâmica de
persuasão, o que sugere que a própria compreensão da cura é passível de interpretações e
reinterpretações múltiplas e sucessivas (CSORDAS, 1983; SCHIEFFELIN, 1985; GEERTZ, 1978).
Quanto mais se fala de sofrimento, mais se extingue o sofredor. O protetor pode se
transformar em perpetrador, o que leva a uma segunda vitimização daqueles que padecem
das patologias sociais e comportamentais.10 Isso é especialmente verdadeiro em uma época
quando, em muitos casos, aqueles que assumem oficialmente a responsabilidade de zelar pela
saúde da população tomam decisões, que a afetam, com base em argumenta ad crumenan,
isto é, movidos por interesses pecuniários. Daí, a sabedoria de não se confiar exclusivamente
no modelo oficial de saúde e a necessidade de se investigar qualquer alternativa viável.
Em sentido mais amplo, esta tese se justifica sob o ponto-de-vista do potencial e da
utilidade da pesquisa sociológica para informar e influenciar o atendimento à saúde das
9 Na comunidade cientítica, infelizmente, o “etnocentrismo inverso” é mais comum do que se pensa.
Bourdieu (2011, p. 41) alertava que, por exemplo, “a recusa ética do evolucionismo e das ideologias racistas dele socialmente solidárias [...] conduz certos etnólogos ao etnocentrismo inverso”. Para ele, o fenômeno consiste em atribuir a todas as sociedades, mesmo as mais “primitivas”, “formas de capital cultural que só podem constituir-se a um nível determinado do desenvolvimento da divisão do trabalho”. 10
Para um tratamento das questões epistemológicas associadas ao cuidado do corpo material em íntima relação com uma certa preocupação pelas dimensões morais do sofrimento e da enfermidade, veja-se Good, 1990 (especialmente o Capítulo 1, que aborda o problema da crença e sua relação com a antropologia médica).
23
populações carentes, especialmente aquela dos países em desenvolvimento.11 As ciências
sociais ora se encontram na encruzilhada que determinará se elas desempenharão papel de
destaque na melhoria da saúde humana ou se ficarão contentes apenas com uma atuação
marginal e periférica. A importância de estudos sobre a cura religiosa se torna, então,
indiscutível na medida em que situam análises em diversos discursos acadêmicos, ilustram a
utilidade de teorias interdisciplinares e podem promover a complementaridade de abordagens
alternativas e tratamentos biomédicos (KLEINMAN, apud FINKLER, 1985, p. vii-viii).
Finalmente, esta tese se justifica porque, como afirma Bourdieu (2011, p. 48), a
sociologia se interessa pela religião por causa da importância que um grupo ou classe atribui a
“um tipo determinado de prática ou crença religiosa e, sobretudo, na produção, difusão e
consumo de um tipo determinado de bens de salvação”.
Os Objetivos
O objetivo deste estudo é, portanto, analisar a prática da unção de enfermos pela IASD
como desencadeadora de cura religiosa, prestando atenção especial aos casos em que a
medicina convencional considerou como terminais. O que se objetiva, portanto, é o estudo da
unção de enfermos como desencadeadora de cura porque, em certo sentido, a unção também
se presta a outros fins. Ela se tornou, por exemplo, uma parte integral do rito do batismo como
este é praticado por muitos cristãos (MITCHELL, 1966, p. 25; SENN, 1997, p. 92-93). Há, ainda,
casos de unção pós-batismal como, por exemplo, a que ocorre no ritual católico da crisma,
praticado desde os dias de Tertuliano. Há, de fato, inúmeros registros, no cristianismo
primitivo, de ocasiões em que a unção acompanhava o ritual do batismo: há evidência de
unção antes, depois e, às vezes, antes e depois do batismo. A unção pré-batismal teria
conotação de exorcismo, enquanto aquela realizada após o batismo teria efeito semelhante ao
uso de perfume após o banho (SENN, 1997, p. 150).
Este estudo se limitou à abordagem da unção como desencadeadora de cura religiosa
entre os adventistas do sétimo dia. Embora se reconheça que a possessão e os rituais com ela
associados sejam elementos importantes no processo de cura religiosa (como desenvolvido,
por exemplo, pelas igrejas pentecostais, pelos adeptos do espiritismo e do candomblé),12 a
11
Para uma discussão do impacto da pesquisa sociológica na prestação de serviços na área de saúde nos países em desenvolvimento, veja-se Mosley, 1992. Veja-se, também, Eisenberg; Kleinman 1981. 12
O papel da possessão no processo de cura religiosa vem sendo estudado recentemente, na Universidade Federal da Bahia, pelo ECSAS – Núcleo de Estudos em Ciências Sociais, Ambiente e Saúde. Para exemplos recentes da produção científica desse grupo com relação à interação entre religião e cura, vejam-se Rabelo (1994) e Cravalho (1998).
24
preocupação desta pesquisa não esteve voltada tanto para o processo em si, quanto para o
impacto da unção sobre os que a ela se submetem. Tratou-se, portanto, de uma investigação
do impacto psicossomático e social da unção, com certa propensão para a análise dos aspectos
ritualísticos, etno-psiquiátricos e psicodinâmicos do processo da cura religiosa, seguindo os
moldes do trabalho desenvolvido por Finkler (1985), mas sem incorporar o modelo conceitual
de possessão, uma vez que muitos evangélicos não o associam à cura oriunda da unção. Isso
não significa, contudo, que tais igrejas vejam a cura pela unção como sendo outra coisa senão
uma forma de exorcismo. Com efeito, de acordo com Laplantine (2004, p. 188),
É cientificamente difícil, para não dizer impossível, falar de adorcismo em uma cultura moldada por uma religião que, a partir de suas funções institucionais, chega a desconfiar de seus próprios místicos, uma medicina que, a partir de Galeno, nos ensina que a doença é um mal absoluto que deve ser combatido por seu contrário, e uma lógica que, a partir do século de Descartes, nos ensina desde nossa infância a operar uma discriminação sem equívocos entre o real e o imaginário, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o normal e o patológico.
Por isto, esta pesquisa pretendeu obter resultados, principalmente, na modalidade de
cura conhecida como “informal” ou “tradicional” (ou folk healing),13 isto é, aquela realizada
por determinados indivíduos que se tornam especialistas em métodos de cura, que podem ser
sagrados, seculares ou uma combinação de ambos. Em nosso caso, é a cura sagrada que
interessa. Esses curandeiros não fariam, portanto, parte do sistema médico, dito “oficial”, e
ocupariam uma posição intermediária entre a cura informal e a profissional (KLEINMAN, 1980,
p. 49-70; HELMAN, 1994, p. 74). A esfera popular envolve, por sua vez, uma matriz com vários
níveis: o indivíduo, a família e a rede social. A atenção ao setor popular é plenamente
justificável uma vez que esse setor, apesar de ser o mais abrangente em qualquer sistema de
cuidado da saúde, é o que tem recebido menos atenção dos investigadores da antropologia
médica e o que menos tem sido compreendido até agora (KLEINMAN, 1980, p. 50). Além disso,
é na esfera popular que as atividades de saúde são, geralmente, definidas e iniciadas. O setor
informal ou tradicional também carece de atenção, uma vez que acaba preterido, nos estudos
científicos, em favor do setor profissional.
13
Kleinman (1980, p. 49-70) contrasta o que ela chama de professional sector, folk sector e popular
sector. Em português, é difícil estabelecer uma diferença significativa entre os adjetivos folk e popular. Por isso, preferi traduzir folk como “tradicional”, numa referência simples ao fato de que pertence à esfera da tradição popular, em contraste com a profissionalização do cuidado à saúde. No entanto, quando falo de folk medicine, opto por traduzir a expressão como “medicina popular”, mesmo ciente de que isso possa causar certa confusão, pois a alternativa de traduzir essa expressão como “medicina tradicional” daria um sentido oposto ao que se pretende.
25
A Metodologia
Esta investigação se concentrou na avaliação qualitativa da apreciação que a
população sob estudo tem de sua saúde e das implicações sociais dela resultantes, bem como
da apreciação que esta tem da contribuição de seus cuidadores espirituais no alívio ou
agravamento de sua condição. Embora a abordagem qualitativa de conceitos como
“tratamento religioso” e “cura” envolva certa subjetividade, o uso de uma dose adequada de
subjetividade pode ser conveniente na busca do tipo relevante de objetividade nos diferentes
contextos e graus em que esta ocorre. O conceito de “posicionalidade”, conforme
desenvolvido por Sen (1994), é um bom exemplo de como a percepção de certa subjetividade
é construtiva para o processo de aproximação objetiva. Não se pode dizer que uma pessoa seja
subjetiva quando esta afirma que um objeto localizado a certa distância lhe pareça pequeno.
Contudo, sua objetividade estaria seriamente comprometida caso afirmasse categoricamente
que tal objeto fosse, de fato, pequeno. A depender de posicionamentos intermediários, uma
pessoa pode ser mais objetiva ou menos objetiva. Essa postura está em consonância com o
trocadilho de Bourdieu (apud MICELI, 2011, p. xxiv), segundo o qual “uma antropologia total
não pode restringir-se a uma descrição das relações objetivas porque a experiência das
significações faz parte da significação total da experiência”.
Na avaliação do estado de saúde ou morbidez de uma pessoa, as percepções do
próprio paciente são de importância central, e é preciso que se reitere a necessidade de ouvir
queixas, sensações e preocupações, por mais subjetivas que estas pareçam (SEN, 1994, p.
122). Estudos sobre a dor e sua mitigação têm revelado que a dor, o medo e a ansiedade são
abertos à influência da cultura, em seu sentido antropológico (ZBOROWSKI, 1952; BEECHER,
1959; LEWIS, 1981, p. 157ss). Não se pode negar ou contradizer a realidade subjetiva do
sofrimento com referências dogmáticas ao fato objetivo. Ao contrário disso, qualquer tentativa
de lidar com o comportamento humano exige que nos ocupemos de seus aspectos subjetivos.
Com efeito, a concepção que um indivíduo tem de seu sofrimento depende, em grande parte,
das pressuposições de seu meio cultural quanto ao modo em que lhe é permitido atentar para
si mesmo. Assim, Montaigne (1980, livro III, § 556) afirmou, em um de seus ensaios, que “no
ramo da medicina aquilo por que uma pessoa passa é, por assim dizer, um galo em seu
terreiro, pois a razão se submete inteiramente a tal experiência.” Porque há restrições sociais à
expressão do estado de enfermidade ou morbidez, e há, ao mesmo tempo, uma interação de
respostas voluntárias e involuntárias em tal processo, é necessário que a observação do
26
impacto da cura religiosa não se limite apenas ao “paciente”, mas que se estenda também
àqueles com quem convive. De acordo com Lewis (1981, p. 160), “o comportamento social na
doença é, por definição, uma interação com outrem: esquecer os outros cega-nos às
influências que podem ter moldado e motivado grande parte do comportamento exibido
durante a enfermidade.” Por isto, a avaliação qualitativa do “paciente” e seu contexto social
imediato (família, igreja, trabalho, amigos) foi muito importante para os objetivos desta
pesquisa.
Estudo de Resultados
A metodologia escolhida para a pesquisa se inspirou naquela aplicada por Finkler
(1985) em seu estudo sobre as curas espíritas no ambiente rural mexicano. Tal metodologia é,
às vezes, empregada pelos antropólogos preferencialmente nos estudos de casos (EPSTEIN,
1969; NOGUEIRA, 1984, p. 4). Em última instância, trata-se de um “estudo de resultados”
(outcome study) da prática da unção. “Resultado” (outcome) é entendido, aqui, como o
sucesso ou o fracasso, demonstrável e mensurável, de um agente em alterar estatisticamente
a história natural previsível de uma enfermidade (PELLEGRINO, 1979, p. 256; FINKLER, 1985, p.
117). Segundo Kleinman (apud FINKLER, 1985, p. vii), os estudos de resultados são ainda pouco
comuns entre os antropólogos que se ocupam dos processos de cura religiosa. Uma das razões
por que isso ocorre é a notória dificuldade que se encontra para realizá-los,14 uma vez que
exigem metodologias múltiplas e amplo arcabouço teórico (KLEINMAN, apud FINKLER, 1985, p.
vii). A questão, por exemplo, da computação do tempo decorrido entre a manifestação de uma
enfermidade e seu suposto desfecho curativo pode dar ensejo a inúmeros resultados
(outcomes). Se essa tarefa é um grande desafio para os profissionais da área médica, ela se
torna formidavelmente hostil para os antropólogos, especialmente quando estes lidam com
regimes terapêuticos dissociados da biomedicina e, além disso, procuram fazê-lo de forma
científica.
Esta pesquisa não teve, por isso, o objetivo de comunicar uma verdade sobre a unção
que a pesquisadora já sabia de antemão, mas pretendeu que, na própria escrita, fosse
afirmando certa relação com o fenômeno. Trata-se do que Foucault chamou de “escrita-
experiência” (KOHAN, 2011, p. 143-144; MACEDO; DIMENSTEIN, 2009, p. 153-166). Apesar
disso, buscou-se uma metodologia rigorosa a fim de conferir aos resultados algum nível de 14
Cf. entrevista particular com Cravalho, em 2008, na Universidade Federal da Bahia. Semelhantemente, de acordo com Finkler (1985, p. 118), “any measure of medical treatment outcomes has its pitfalls”. Segundo ela, mesmo os pesquisadores que tentam estabelecer a eficácia dos tratamentos terapêuticos da biomedicina encontram-se em um impasse acerca do critério a ser usado em tal avaliação.
27
certeza. Na medida do possível, como já se afirmou, a tentativa se inspirou nos procedimentos
empregados por Finkler (1985) em seu estudo seminal sobre os curandeiros mexicanos.
Infelizmente, porém, a diversidade dos objetos sob estudo impediu que seus procedimentos
fossem exatamente repetidos nesta pesquisa. No caso de Finkler, foi possível entrevistar os
sujeitos antes e depois da terapêutica por eles recebida da parte dos curandeiros mexicanos,
pois as queixas dos pacientes, em sua maioria, não contemplavam condições de risco extremo
à vida. Em nosso estudo, porém, os sujeitos foram pacientes que, em geral, estavam ou
estiveram em estado final, cujo recurso à unção pudesse refletir o impacto da unção diante da
proximidade da morte ou da aceitação de sua inevitabilidade. Na situação estudada por
Finkler, foi possível reencontrar tais pacientes certo tempo depois de sua consulta inicial e
verificar o grau de sucesso do tratamento. No caso da unção, há um gradiente bastante
reduzido, pois mormente se constata apenas a sobrevivência ou não do sujeito.
No caso da pesquisa de Finkler, a primeira etapa contemplava a seleção aleatória,
entre os frequentadores dos templos espíritas estudados, de pacientes aos quais era
imediatamente aplicado um questionário socioeconômico. Logo em seguida, ainda nessa
mesma fase, um assistente de pesquisa aplicava a cada paciente selecionado o questionário
Cornell Medical Index (C.M.I.), um instrumento de minucioso levantamento de dados sobre a
saúde do indivíduo, com 195 perguntas a serem respondidas de forma afirmativa ou negativa.
Esse questionário é aplicado por pesquisadores (com ou sem treinamento médico formal) e
usado, desde 1949, em inúmeras pesquisas sobre saúde na área das ciências sociais
(BRODMAN; ERDMANN; WOLFF, 1949). Depois disso, em uma segunda etapa realizada no
mesmo dia, a pesquisadora acompanhava, no templo, a consulta dos pacientes selecionados.
Em um terceiro momento, a pesquisadora visitava os pacientes selecionados e repetia, em
seus lares, as questões respondidas afirmativamente na primeira aplicação do questionário
C.M.I. Na quarta fase, a pesquisadora retornava aos lares dos pacientes e lhes aplicava um
questionário de perguntas abertas sobre seu estado de saúde. Finalmente, na última etapa, a
pesquisadora acompanhava cada paciente em sua visita a um hospital ou clínica para uma
consulta médica convencional.
Etapas da Pesquisa
Em nossa pesquisa, a metodologia contou com apenas três etapas: a seleção da
amostra, nos meses de março e abril de 2016; a aplicação do questionário semiestruturado,
nos meses de maio a outubro de 2016, com sua transcrição nos meses de novembro de 2016 a
fevereiro de 2017; e a análise dos dados, nos meses de março a abril de 2017. Durante a
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escolha da amostra, alguns assistentes de pesquisa, alunos das disciplinas de sociologia e/ou
antropologia, principalmente dos cursos de Letras e Tradutor & Intérprete, no Centro
Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), ficaram encarregados de, em alguns dias de
culto, abordar os frequentadores do templo adventista do campus do UNASP, em Engenheiro
Coelho, antes do início e após o encerramento dos cultos, a fim de identificar, naquela
comunidade, as pessoas que já tinham se submetido ao rito da unção ou as pessoas que já o
presenciaram e, assim, convidá-las a participar do presente estudo. No caso dos participantes
que se submeteram ao ritual, não houve critério de corte. Todos os que se voluntariaram
foram, na medida do possível, incluídos na pesquisa. No caso daqueles que simplesmente
presenciaram a aplicação do ritual, estes foram selecionados para participar da pesquisa se
satisfizessem às seguintes exigências: o ritual ter sido realizado com parente próximo, isto é,
pai, mãe, padrasto, madrastra, avô, avó, cônjuge, irmão, irmã, filho ou filha (primeiro critério)
e esse parente não ter sobrevivido a seu estado terminal ou ter ficado incapacitado de
conceder a entrevista (segundo critério). O primeiro critério se justifica porque, como o
participante não se submeteu ele próprio ao ritual, é necessário que ele estivesse tão
envolvido emocionalmente e tivesse tanta proximidade com a pessoa que recebeu a unção
que fosse capaz de relatar os eventos pertinentes com vividez. O segundo critério se justifica
porque, se a pessoa ungida tivesse sobrevivido à enfermidade, obviamente seria melhor
entrevistar a própria pessoa e não um parente. Nessa fase, o parente só foi admitido como
participante da pesquisa se a pessoa que participou do ritual estava fisicamente impedida de
participar da pesquisa.
A comunidade de Lagoa Bonita, em Engenheiro Coelho, São Paulo, foi escolhida não
apenas pelo critério da conveniência, já que a pesquisadora reside na mesma localidade, mas
pelo fato de ser composta por um grande número de aposentados, cuja idade avançada os
coloca na população geralmente acometida por doenças terminais. A referida igreja, sita à
Estrada Municipal Pr. Walter Boger, s/no., no município de Engenheiro Coelho, estado de São
Paulo, é pastoreada pelo Pr. Edemilson Alves Cardoso, possui mais de três mil membros
assíduos e se reúne para dois cultos matutinos aos sábados, com início previsto para as
8h30min e 10h30min. O primeiro desses cultos atende as famílias adventistas daquela
comunidade, enquanto que o segundo culto se volta para os jovens, especialmente os
estudantes do UNASP. Por essa razão, o trabalho de seleção de participantes aconteceu nas
datas previamente acertadas com o pastor, no horário dos dois cultos.
Uma vez identificados os participantes e recebida sua anuência, a pesquisadora fez
contato mediante email ou telefone para marcar uma visita a seu lar ou outro lugar de sua
conveniência. No caso dos participantes que já se submeteram ao ritual da unção, a
29
pesquisadora lhes aplicou, na visita, um questionário semiestruturado (Anexo 3) dividido em
três partes principais. Do cabeçalho, a primeira parte, constaram dezenove perguntas
objetivas, não numeradas, de natureza predominantemente socioeconômica e identitária. Da
segunda parte, constaram três perguntas numeradas com o no. 2, 3 e 5, de caráter objetivo,
especificamente destinadas ao tema da unção e versando sobre motivo, horário, maneira e
duração do ritual. Da terceira parte constaram dez perguntas numeradas com o no. 1, 4 e de 6
a 13, de caráter subjetivo, sobre as impressões dos participantes acerca do ritual. Os
participantes que apenas testemunharam a aplicação da unção sem a ela se submeter,
responderam as mesmas perguntas que foram respondidas por aqueles que se submeteram
ao ritual. Obviamente, as entrevistas com parentes de pessoas falecidas não tiveram o mesmo
grau de exatidão que aquelas realizadas com as próprias pessoas que participaram do ritual,
mas, na falta daquelas, contribuíram, mesmo assim, para que se estabelecessem hipóteses
relativas aos sucessos e fracassos da unção.
Os participantes no estudo de Finkler (1985), ainda acometidos por um estado de
saúde desfavorável, vinham ao templo espírita na intenção precípua de se consultar com um
cuidador espiritual e, então, participar do ritual. No caso deste estudo, os participantes vinham
ao templo adventista, após já terem participado do ritual sob estudo. Além disso, aquela
pesquisadora acompanhou a realização de todos os rituais de cura que estudou e fez contato
com os médicos encarregados do tratamento convencional, quando este foi também
realizado. No caso desta pesquisa, a pesquisadora não acompanhou a realização do ritual, nem
fez contato posterior com profissionais de saúde que pudessem, após exame dos
participantes, validar suas observações.
Critérios Subjetivos de Percepção
Apesar de as pessoas, com frequência, fazerem uso simultâneo de mais de um tipo de
tratamento, um dos aspectos principais desta investigação é o fato de ela se voltar para a
percepção que o indivíduo desenvolve acerca de seu estado de saúde e como esta molda suas
atitudes para com o mesmo. Ou seja, colheram-se dados concernentes aos critérios subjetivos
que levam um indivíduo a abrir mão do papel de “doente”. Finkler (1985, p. 119-120) lista os
principais critérios subjetivos geralmente empregados pelos antropólogos para medir eficácia
terapêutica: a satisfação final do paciente; a remissão dos principais sintomas; e o nível de
funcionalidade recuperado pelo paciente. Ela nos lembra (p. 120), contudo, que
30
a renovação das capacidades comportamentais e a restauração do estado de saúde subjetivamente percebido pelo paciente, inclusive o seu bem-estar [...], podem se realizar sem haver necessariamente a remoção total dos sintomas, mas pela reestruturação da percepção do paciente quanto a sua disfunção e condição.
Assim sendo, critérios “subjetivos” como a autoavaliação do paciente não chegaram a
representar um impedimento insuperável à condução deste estudo. Além disso, critérios
externos (como os da biomedicina) puderam ser evocados, quando necessários, para um
controle mais objetivo dos aspectos sob investigação. Destarte, a atenção desta pesquisa
voltou-se principalmente para a relação entre crença religiosa, comportamento e saúde,
focalizando questões como, por exemplo, a relação entre o grau de elaboração do ritual e seu
sucesso ou fracasso, a tensão entre imagens adorcistas e exorcistas na conceituação da doença
como fenômeno espiritual, a verificação de quais seriam os fatores determinantes para a
obtenção de um resultado considerado satisfatório por aqueles envolvidos no ritual, etc.
Análise de Conteúdo
A técnica de análise de dados escolhida foi a da análise de conteúdo, amplamente
empregada nas pesquisas de saúde, especialmente as de caráter psicológico, na área da
comunicação e nas ciências sociais. Como primeira definição, propõe-se aquela fornecida por
Bardin (1977, p. 9) que, embora um tanto subjetiva e bastante antiga, representa
adequadamente a natureza polimorfa e polifuncional da técnica, inclusive seus perigos
latentes:
conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a “discursos” (conteúdos e continentes) extremamente diversificados. O fator comum destas técnicas múltiplas e multiplicadas - desde o cálculo de frequências que fornece dados cifrados, até à extração de estruturas traduzíveis em modelos - é uma hermenêutica controlada, baseada na dedução: a inferência. Enquanto esforço de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois polos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não-aparente, o potencial de inédito (do não-dito), retido por qualquer mensagem. Tarefa paciente de “desocultação”, responde a esta atitude de voyeur de que o analista não ousa confessar-se e justifica a sua preocupação, honesta, de rigor científico. Analisar mensagens por esta dupla leitura onde uma segunda leitura se substitui à leitura “normal” do leigo, é ser agente duplo, detetive, espião... Daí a investir-se o instrumento técnico enquanto tal e a adorá-lo como um ídolo capaz de todas as magias, fazer-se dele o pretexto ou o alibi que caucione vãos procedimentos, a transformá-lo em gadget inexpugnável do seu pedestal, vai um passo... que é preferível não transpor.
31
De acordo com Caregnato e Mutti (2006, p. 683), a análise do conteúdo se ocupa muito bem
de “textos produzidos em pesquisa, através das transcrições de entrevista e dos protocolos de
observação, e os textos já existentes, produzidos para outros fins, como textos de jornais”. De
fato, a análise de conteúdo é uma técnica ideal para a análise dos dados coletados em
entrevistas, tendo a vantagem de caber tanto nas pesquisas de caráter quantitativo, quando se
preocupa mais com a frequência da ocorrência de certas palavras, quanto nas de caráter
qualitativo, quando se volta para a análise de ideias e significados revelados por padrões
existentes no texto.15
Para Krippendorff (2004, p. xiii), a análise de conteúdo tornou-se, em seus 70 anos de
existência formal, numa das mais importantes técnicas de pesquisa nas ciências sociais, pois
não apenas “leva os significados a sério, mas também é um método poderoso e discreto”. Uma
definição mais precisa da técnica é oferecida pelo próprio Krippendorff (2004, p. xiv) com base
em seu uso já dicionarizado: trata-se da “análise do conteúdo manifesto e latente de um corpo
de material comunicado... por meio de classificação, tabulação e avaliação de seus símbolos e
temas-chave para explicitar seu significado e efeito provável”. O mesmo autor (p. 17) atribui a
origem da abordagem qualitativa da análise de conteúdo à teoria literária, às ciências sociais,
às abordagens críticas (especialmente as teorias marxistas e feministas) e aos estudos
culturais, e articula as seguintes características como definidoras da ênfase qualitativa: leitura
minuciosa de uma quantidade reduzida de material textual, rearticulação (reinterpretação) e
hermenêutica interativa (uma descrição que aborda o próprio processo da interpretação). Para
não limitar a análise de conteúdo ao tipo escrito de material, Krippendorff (2004, p. 18) a
redefine como “uma técnica de pesquisa que busca inferências válidas e replicáveis de textos e
outros materiais que portam significado, em relação aos seus contextos de uso”. A
epistemologia que justifica e ampara essa definição advém principalmente de seis
considerações: um texto não possui qualidades independentes do leitor, um texto tampouco
tem um significado único que pode ser “descoberto”, os significados não precisam ser
necessariamente compartilhados, o conteúdo fala a algo além do próprio texto, o significado
de um texto varia conforme seu contexto ou propósito e as inferências devem se conectar a
seus contextos (as correlações estáveis e as condições que afetam essas correlações de
maneira previsível).
Berelson (1952) lista 17 objetivos da análise de conteúdo: (1) descrever tendências na
comunicação, (2) traçar o desenvolvimento de uma ciência, (3) revelar diferenças em
15
Isso não significa que a análise de conteúdo esteja imune às críticas contra ela dirigidas, especialmente por aqueles que preferem a análise do discurso. A esse respeito, veja-se Rocha e Deusdará (2005, p. 305-322).
32
comunicação, (4) comparar mídias ou níveis de comunicação, (5) verificar o conteúdo da
comunicação em relação a seus objetivos, (6) definir e aplicar padrões de comunicação, (7)
auxiliar operações de pesquisa técnica, (8) expor técnicas de propaganda, (9) medir a eficácia
de materiais de comunicação, (10) descobrir aspectos estilísticos, (11) detectar as intenções ou
outras características dos comunicadores, (12) determinar o estado psicológico de pessoas ou
grupos, (13) detectar a presença de propaganda, (14) obter informações políticas ou militares
(inteligência), (15) refletir as atitudes, interesses e valores (padrões culturais) de grupos de
população, (16) revelar o foco de atenção e (17) descrever atitudes e comportamentos como
respostas à comunicação. Vários desses objetivos acompanharam, nesta pesquisa, a aplicação
da análise de conteúdo aos dados obtidos nas entrevistas com os sujeitos que participaram do
rito da unção, ou o testemunharam, conforme praticado pelos pastores adventistas nos
membros da comunidade estabelecida, em Engenheiro Coelho, nas imediações do Centro
Universitário Adventista de São Paulo, ou seus parentes e amigos.
As etapas da análise de conteúdo não são rigidamente segmentadas, uma vez que, de
acordo com Silva, Gobbi e Simão (2005, p. 75), a reconstrução é simultânea às percepções do
pesquisador. De fato,
um longínquo trabalho de análise já foi iniciado com a coleta dos materiais e a primeira organização, pois essa coleta, orientada pela questão da hipótese, não é acumulação cega ou mecânica: à medida que colhe informações, o pesquisador elabora sua percepção do fenômeno e se deixa guiar pelas especificidades do material selecionado (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 215).
Em nosso caso específico, optamos por não explicitar a hipótese antes da realização da análise
de conteúdo, preferindo o tipo de análise que Bardin (1977, p. 98) denomina de “às cegas”, em
que, segundo ela, “não é obrigatório ter-se como guia um corpus de hipóteses, para se
proceder à análise”.
A análise de conteúdo constitui, assim, uma boa técnica para a análise de dados nos
estudos de resultado, uma vez que depende, para atingir certo grau de certeza no
desenvolvimento de construtos analíticos, justamente de, entre outras coisas, sucessos e
fracassos. Opções para fontes alternativas de certeza, segundo Krippendorff (2004, p. 173),
seriam a experiência de peritos, as teorias estabelecidas e as práticas consagradas, que são,
obviamente, mais subjetivamente complexas. No presente trabalho, optou-se pelo assim-
chamado modelo aberto de análise de conteúdo, no qual as categorias analíticas não são
decidias a priori, mas no curso da análise (SILVA; GOBBI; SIMÃO, 2005, p. 76).
A metodologia adotada neste estudo foi, portanto, a da pesquisa qualitativa e, para a
análise das entrevistas, utilizou-se a técnica da análise de conteúdo, optando-se por uma
33
amostra não probabilística, intencionalmente selecionada de acordo com a conveniência da
pesquisa. Seguindo a estratégia da “entrevista focada” (focused interview), cujo roteiro não
fazia nenhuma restrição ao aprofundamento dos temas que emergissem durante a conversa
(conforme Anexo 3), as entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas.
Espera-se que a combinação da metodologia do estudo de resultado com a análise de
conteúdo aplicada a entrevistas focadas contribua para uma melhor compreensão da
percepção de cura após a unção e do impacto psicossomático e social desse rito, explicando
por que um indivíduo abre mão de seu papel de “doente” quando, através dele, obtém um
resultado por ele considerado como satisfatório.
34
CAPÍTULO I. BREVE HISTÓRICO DA UNÇÃO CRISTÃ DOS ENFERMOS
Como o processo de globalização tem contribuído de forma considerável para o
aumento das patologias sócio-comportamentais, nossa sociedade tem se tornado mais
susceptível ao influxo de tratamentos alternativos. De acordo com um estudo recente do
Banco Mundial, as patologias sócio-comportamentais se tornaram, comparativamente, as
principais causas de diminuição na qualidade de vida das pessoas (veja-se Apêndice, Fig. 1). Os
problemas mentais são responsáveis pela perda de 8,1% de ADIAs, enquanto que os
problemas sócio-comportamentais, tais como violência, doenças sexualmente transmissíveis e
acidentes de trânsito, são responsáveis pela perda de 34% de ADIAs.16 Segundo Sugar et al.
(1994, p. 51), as patologias sócio-comportamentais são os comportamentos com implicações
para a saúde (tais como tabagismo, alcoolismo, dependência de drogas), as doenças mentais
(tais como a esquizofrenia, a depressão e outras desordens afins), as manifestações
comportamentais de outras enfermidades (tais como epilepsia e AIDS) e os problemas do ciclo
vital (tais como retardamento mental, deficit de atenção e demência). Combinações de classe
social, gênero, idade, etnia e afiliação política contribuem para que alguns grupos sejam mais
afetados do que outros mesmo dentro de uma mesma comunidade. Embora o fardo
ocasionado pelas patologias sócio-comportamentais seja enorme, elas são grosseiramente
menosprezadas nas estatísticas convencionais dos órgãos de saúde, pois estas se ocupam da
mortalidade e não da morbidez e da disfunção (DESJARLAIS et al., 1995, p. 4-5). A mortalidade
é associada à sua causa imediata e não à causa última que subjaz aos estados que levam à
morte.17 Assim sendo, uma morte é, por exemplo, geralmente atribuída a uma falha hepática,
em vez de ao alcoolismo. Como agravante, em muitos países subdesenvolvidos, a opção mais
viável é buscar a redução da mortalidade sem se preocupar com a redução equivalente dos
estados de morbidez que prejudicam a qualidade de vida. Finalmente, o aumento da
expectativa de vida tem gerado um número maior de patologias sócio-comportamentais
devido à maior incidência destas sobre a faixa etária acima dos 65 anos. Ao mesmo tempo,
problemas como a depressão estão sendo identificados em uma faixa etária cada vez mais
jovem (CAUDILL; LIN, 1969).
Os cientistas sociais estão convencidos de que a saúde humana encontra-se em um
período de “transição”. Com efeito, o termo “transição” tem se tornado uma forma favorita de
16
Sugiro, aqui, o termo ADIA (ano de deficiência inabilitante) como equivalente à sigla DALY (disability-
adjusted life year), usada pelos sociólogos norte-americanos, para medir a perda de qualidade de vida em um ano de vida de um indivíduo (DESJARLAIS et al., 1995, p. 4). 17
Para um tratamento sucinto da morbidez, sua mensurabilidade e sua relação com a mortalidade, veja-se Murray; Chen, 1994.
35
descrever as diversas teorias que têm procurado explicar a melhoria das condições de saúde
nas diversas sociedades humanas (MURRAY; CHEN, 1994). Primeiramente, a assim-chamada
“Teoria da Transição Demográfica” (TTD) procurou explicar este processo com referência às
mudanças históricas ocorridas na fertilidade, mortalidade e dinâmica populacional, nos séculos
XIX e XX, nos países industrializados (STOLNITZ, 1964; TEITELBAUM, 1975). Tais sociedades
passaram de índices elevados de fertilidade e mortalidade a níveis bastante baixos de ambos.
Depois, a “Teoria da Transição Epidemiológica” (TTE) postulou que as mudanças ocorridas na
saúde humana fossem explicadas por meio da simultaneidade do declínio das doenças
infecciosas e a emergência das enfermidades crônicas (OMRAN, 1971). Assim, enquanto as
doenças infecciosas, reprodutivas e nutricionais predominam em populações com elevado
índice de mortalidade, as doenças crônicas e degenerativas predominam em populações com
reduzidos índices de mortalidade. Ambas as teorias têm sido criticadas recentemente pelos
adeptos da “Teoria da Transição de Saúde” (TTS) por causa de sua excessiva simplificação dos
fatos (MURRAY; CHEN, 1994, p. 6-7). Tais teorias postulam que a mortalidade esteja
diminuindo em um ritmo monotônico e linear, sem levar em consideração possíveis processos
de desaceleração, reversão e outros desvios. A TTS defende uma abordagem mais completa
dos problemas de saúde que considere, por exemplo, os problemas das patologias sócio-
comportamentais e os níveis de morbidez e incapacitação. É precisamente dentro deste
arcabouço teórico que esta tese se insere e sua preocupação principal é aplicar um conceito de
saúde afim com a definição da Organização Mundial de Saúde, segundo a qual, a saúde é
muito mais do que a ausência de doença, mas “um completo estado de bem-estar social e
mental” (WORLD, 1984).
1.1 Breve História da Unção
Nos primeiros oitocentos anos da história cristã, a unção era feita em aposento
privado, geralmente o local onde o enfermo convalescia. Essa pode ser a razão por que, nessa
época, tão pouca coisa foi escrita acerca do ritual, que podia ser realizado por qualquer
devoto, conforme prescreve, no início do século V, a carta do papa Inocêncio ao bispo
Decêncio (GUSMER, 1984, p. 15). Martos (1991) e Cormier (1999) estudaram as orações
proferidas durante a unção e que foram preservadas nos antigos documentos do cristianismo
primitivo, principalmente a Didaquê, a Tradição apostólica (de Hipólito de Roma, que a
escreveu por volta do ano 215 A.D.), o Livro das orações (de Serapião, bispo no Egito durante
o século IV), chegando à conclusão de que seu teor envolvia ação de graças e a santificação do
óleo. Por essa razão, consideram a oração pela unção como sendo anamnética e epiclética.
36
Isto é, a oração recordava algum motivo de gratidão e, além disso, invocava a presença do
Espírito Santo.
No período carolíngio (800-1100), a igreja faz um esforço para diferenciar, por meio da
regulação e do foco nos efeitos espirituais, a unção e outros sacramentos da feitiçaria e da
magia (CAVANAUGH, 2009, p. 35). Assim, o Concílio de Chalon, na França, em 813, altera
drasticamente a compreensão cristã da unção. A partir daí, o ritual passa à jurisdição exclusiva
dos clérigos, uma vez que os leigos estariam supostamente usando o óleo em conexão com os
rituais de magia, e se torna uma forma de penitência para obter o perdão dos pecados em vez
de para obter cura física (POSCHMANN, 1964, p. 242-243). No séc. VIII, o bispo Teodolfo de
Orleans descreve, como testemunha ocular, um ritual de unção em Constantinopla, no qual
três presbíteros realizam o ritual, sendo que cada um deles derrama alternadamente o óleo
sobre o enfermo, da cabeça aos pés e da mão direita até a mão esquerda, em forma de cruz
(MEYENDORFF, 1991, p. 242).
Nessa perspectiva, enfermidade e pecado estariam intrinsecamente relacionados
(CORMIER, 1999, p. 48). O Sínodo de Pávia, em 850, estipula, além disso, que o ritual sirva
também o propósito de preparar os moribundos para a morte (POSCHMANN, 1964, p. 245).
Como resultado, os fiéis ficam proibidos de levar óleo bento para casa.18 Dessa forma, no
século X, a ordem muda de penitência, unção e viaticum para penitência, viaticum e unção
(CORMIER, 1999, p. 49).19 A unção deixa, então, de refletir uma preocupação com a cura física
e fica limitada ao preparo para a morte, sendo adiada até o último minuto a fim de garantir a
eficácia do rito.
É do período carolíngio que nos chegou a mais antiga exposição de um ritual completo
de unção dos enfermos (CAVANAUGH, 2009, p. 35-36):
A pessoa doente ficava em pé na igreja enquanto se-lhes impunham as mãos e se proclamavam antífonas e orações. A celebração começa com um exorcismo à influência de qualquer poder demoníaco que esteja causando a enfermidade da pessoa. Seguem seis preces curtas e uma oração mais longa. A oração cita Tiago e, então faz uma invocação a Jesus, no poder do Espírito, para curar a enfermidade, sarar feridas, perdoar pecados e restaurar a saúde interior e exterior a fim de que o indivíduo pelo qual se ora possa retornar às suas boas obras. O doente se ajoelha, então se levanta, enquanto o sacerdote lhe impõe as mãos. Orações são proferidas e cânticos são entoados. A pessoa doente recebe, então, a unção na parte posterior do pescoço, na garganta,
18
O estudo de Cuschieri (1993, p. 23-24) fornece evidência documental de que, se um sacerdote ou diácono fornecesse óleo bento a um leigo, nesse período, podia sofrer mutilação, flagelação ou encarceramento. 19
O viaticum é definido pelos católicos como o último sacramento e tem por finalidade oferecer “alimento para a jornada” da morte, em contraste com a unção, vista como sacramento final (CORMIER, 1999, p. 57).
37
entre os ombros, no peito e nas partes onde a dor é mais intensa. A oração de unção (com o óleo temperado e aquecido pelo Espírito) invoca a Trindade para exorcizar o espírito imundo e habitar o enfermo: “Eu te unjo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo para que nenhum espírito imundo possa permanecer em teus membros, medula ou juntas e para que, em vez disso, pela operação deste mistério, o poder de Cristo, do Altíssimo e do Espírito Santo possa habitar em ti, e que, pela unção com o óleo bento e nossa oração, curado ou consolado pelo poder da Santíssima Trindade, tu mereças a restauração e a melhora da tua saúde”. O rito era concluído com mais oração e a comunhão, podenso ser repetido sete dias depois, se necessário.
No período escolástico (1100-1500), a crescente confiança na investigação intelectual
da fé provocou outras transformações no ritual da unção, cujo objetivo exclusivo, embora não
unanimemente,20 passa a ser a remissão dos pecados e não a cura física (CAVANAUGH, 2009,
p. 41). Poschmann (1964, p. 244) apresenta várias razões para o desuso da unção como ritual
de cura, incluindo a preguiça e a indiferença do clero, que teria parado de visitar os fiéis. Além
disso, a exigência comumente estabelecida, para os moribundos que se recuperavam, de que
se abstivessem, pelo resto da vida, das relações sexuais e do consumo de alimento cárneo,
parece ter sido um desincentivo a que aceitassem a unção. Outras limitações (como, por
exemplo, a exclusão das crianças, dos insanos e das pessoas inconscientes ou excessivamente
débeis) vieram a diminuir seu alcance. Finalmente, a cobrança de uma taxa pelos serviços do
sacerdote acabou acrescentando ao rito um fardo econômico. Tudo isso levou ao seu
abandono gradativo. Cuschieri (1993, p. 23-24) entende que a unção foi uma espada que a
igreja desembainhou para combater a feitiçaria e pôs de volta na bainha quando esta passou a
corromper a pureza da fé, ao se contaminar com o paganismo. De acordo com Martos (1991,
p. 380-382) e Cormier (1999, p. 52-53), por volta do século XIII, a unção se tornou um ritual
bastante simplificado do qual apenas um sacerdote participava e cuja única finalidade era o
preparo do enfermo, pelo perdão de seus pecados, para a morte.21 Mesmo assim, essa
“extrema unção”,22 oferecida em substituição ao viaticum, podia ter o efeito de apressar a
convalescência e restaurar a saúde, caso a doença tivesse sido causada por algum pecado e
caso a pessoa assim ungida colaborasse com o ritual por meio da introspecção e
arrependimento.
20
Houve vários escritores desse período que protestaram contra a ideia de que a unção tivesse sequer a capacidade de conceder perdão para os pecados (GUSMER, 1984, p. 29; MARTOS, 1991, p. 383; CAVANAUGH, 2009, p. 42). 21
No processo de simplificação do ritual, os frades franciscanos do século XIII separaram a unção de outros rituais como a visitação ao enfermo, o viaticum e o rito de encomendar os mortos. A unção continua a ser aplicada depois do viaticum. No entanto, ela deixa de vir em último lugar por causa do acréscimo do ritual com o qual se encomendam os mortos, e passa fazer uma separação ainda mais pronunciada entre o viaticum e a hora da morte (GUSMER, 1984, p. 27; CAVANAUGH, 2009, p. 44). 22
A expressão “extrema unção” foi criada por Pedro Lombardo, autor do período escolástico, que morreu em 1160 (GUSMER, 1984, p. 30; CAVANAUGH, 2009, p. 42).
38
Suspende-se, no século XVI, a cobrança da taxa associada à unção e questiona-se se o
ritual era uma invenção humana ou divina (MARTOS, 1991, p. 102; CORMIER, 1999, p. 54).
Especialmente Calvino argumenta que o dom miraculoso de curar os enfermos através da
unção, durante a pregação inicial do evangelho, não havia sido transmitido às gerações
posteriores. O reformador critica os católicos por sucumbirem à superstição de benzer o óleo
para ungir corpos semimortos, o que ele considera um abuso da unção de Tiago (GUSMER,
1984, p. 140; CAVANAUGH, 2009, p. 49). Além disso, os demais reformadores protestantes
objetam principalmente contra a ideia de que a unção devesse ser uma prerrogativa do clero
(CAVANAUGH, 2009, p. 49). Como reação a essas objeções, os católicos organizam, então, o
concílio de Trento (1545-1563). Bausch (1983, p. 210) e Empereur (1986, p. 64-70) estudaram
os documentos do concílio e observam que, embora suas decisões desencorajem a unção de
pessoas no momento da morte, sua administração continuou restrita a pessoas em estado
terminal.
Os processos cada vez mais intensos de urbanização acabaram contribuindo para a
“racionalização” e “moralização” da religião. Segundo Weber (apud BOURDIEU, 2011, p. 35),
isso só foi possível porque “a religião favorece o desenvolvimento de um corpo de
especialistas incumbidos da gestão dos bens de salvação”. Para Bourdieu (2011, p. 35),
Os processos de “interiorização” e de “racionalização” dos fenômenos religiosos e, em particular, a introdução de critérios e imperativos éticos, a transfiguração dos deuses em poderes éticos que desejam e recompensam o “bem” e “punem” o mal, de modo a salvaguardar também as aspirações éticas, e mais o desenvolvimento do sentimento do “pecado” e o desejo de “redenção”, eis aí alguns dos traços que desenvolveram, via de regra, paralelamente ao desenvolvimento do trabalho industrial, quase sempre em relação direta com o desenvolvimento urbano.
Ou seja, os processos que se mostravam incipientes no início da história do cristianismo,
ganharam efeitos cada vez mais acentuados durante o desenvolvimento industrial devido a
suas caracteríticas precominantemente urbanas. A “monopolização da gestão dos bens de
salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os
detentores exclusivos da competência específica necessária” impediu que o ritual da unção
jamais fosse liberado para que os leigos o ministrassem, ficando estes “destituídos do capital
religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado)” (BOURDIEU, 2011, p. 39).23
23
Para Bourdieu (2011, p. 43), além disso, “a oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição entre o sagrado e o profano e, paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou feitiçaria) do sagrado”.
39
Quanto à restrição da aplicação da unção aos casos terminais, o embargo prevaleceu,
segundo Cormier (1999, p. 56) e Cavanaugh (2009, p. 52), até o Concílio Vaticano II, que
alterou o nome oficial do rito de “extrema unção” para “unção dos enfermos” e, além disso,
decidiu voltar a inserir o viaticum após sua administração bem como permitir que os que
padecem de velhice mórbida também se tornem seus beneficiários, com a prescrição restritiva
de que, em nenhuma hipótese, fosse administrado aos mortos. A mudança de nome pretendia
dirimir o medo, a morbidez e o fatalismo associados com a prática (EMPEREUR, 1986, p. 81).
Segundo Rahner (1965, p. 294), a unção seria, na perspectiva do Concílio Vaticano II, um ato de
fé da igreja, uma atitude escatológica, para trazer, ao moribundo, a esperança de superar a
escuridão da morte.
Um dos objetivos do Concílio Vaticano II foi o de estabelecer um diálogo entre a
experiência religiosa e as ciências humanas, sem reduzir aquela aos relatórios descritivos
destas (CAVANAUGH, 2009, p. 92). Para isso, o Concílio aceitou a definição de saúde proposta
pela comunidade científica: vida abundante experimentada em integridade física, bem-estar e
alegria de viver, uma construção cultural que é socialmente aprendida e sancionada,
pertinente às dimensões física, mental e espiritual (MALOOF, 1991, p. 21; PHILIBERT, 1998, p.
1). Por essa razão, a ênfase do ritual sofreu nova e drástica reformulação. Segundo Cavanaugh
(2009, p. 92-93), ocorreu
uma mudança de cosmovisão da destruição de heresias pela explicação da forma, tipo e conteúdo dos sacramentos por meio da qual se pratica a verdadeira justiça para uma cosmovisão que abraça os gozos e a esperança, as dores e as ansiedades dos enfermos que são fiéis e de toda a raça humana. Essa mudança concede poder à pessoa enferma como aquela que invoca, um participante ativo e testemunha de Cristo no ministério dos enfermos e não apenas um recipiente passivo do ministério aos enfermos. Os enfermos são vistos como crentes ativos, participantes do ministério e missão da igreja bem como em sua adoração litúrgica. [...] A imposição de mãos e a unção com o óleo sobre a cabeça e as mãos se tornam uma espécie de consagração na qual Deus abraça o enfermo.
1.2 Uma Definição Operacional de Unção dos Enfermos
Para os propósitos desta pesquisa, é necessário, em primeiro lugar, que se proponha
uma definição operacional de unção dos enfermos. Essa definição operacional precisa partir,
porém, de uma definição fenomenológica tanto da doença quanto da unção que sejam
predicadas no modo como seus praticantes compreendem hoje o ritual. Heidegger (1962, p.
58) descreve a fenomenologia como um processo pelo qual “se deixa que aquilo que se mostra
seja visto a partir de si mesmo exatamente do mesmo modo em que se mostra a partir de si
40
mesmo”. Sendo assim, duas dimensões precisam ser exploradas: o aspecto manifesto daquilo
que se mostra e seu aspecto não manifesto.
A fenomenologia da doença apresentada por Glen (1987) lança luz sobre o papel da
expectativa na construção humana do significado, sendo que um futuro esperado se torna, em
sua forma de ver, o horizonte a partir do qual avaliamos e interagimos com o presente. Por
isso, ela entende que a esperança é um “lançar da imaginação” (cast of imagination) em
direção a um futuro possível e desejável. Entretanto, a doença interfere na expectativa
esperançosa. Dessa forma, é como se a doença enevoasse a expectativa, revelando, em seu
lugar, a espreita da morte. Segundo ela, um diagnóstico de câncer borra os projetos e planos
que fazem parte de uma vida saudável, paralisando a imaginação. Segundo Cavanaugh (2009,
p. 140),
Os sociólogos falam do abandono do papel social costumeiro de pessoa autônoma e responsável e da adoção do “papel de doente”, o papel de paciente no sentido etimológico de uma pessoa que passivamente se submete à ação dos outros. O “papel de doente” é caracterizado por uma regressão, em que o paciente entrega, pouco a pouco, todo o poder para os cuidadores. É um papel em que passa a requerer cuidados paternais dos cuidadores e solicita a presença dos pastores da igreja ao seu lado. O mundo do enfermo é interrompido e transformado à luz de uma ampliação de significado que abraça a realidade da morte.
Diante dessa vulnerabilidade, a pessoa enferma anela por um retorno da esperança. Por isso,
se esforça “para contar a história de sua vida, para refletir sobre o que deu significado a sua
vida e para tecer uma autobiografia que contém meadas de integridade e desespero”
(CAVANAUGH, 2009, p. 143).
A enfermidade afeta várias dimensões, não sendo apenas biológica, mas pessoal, social
e espiritual. De acordo com Davis (2004, p. 38-39), ela é pessoal porque afeta a autoestima da
pessoa; é social porque interfere no papel que a pessoa desempenha na família e em sua
comunidade; é espiritual porque pode impactar a forma como a pessoa compreende e se
relaciona com Deus. Por isso, o ritual da unção, quando eficazmente celebrado, leva em
consideração as várias dimensões afetadas pela doença, envolvendo as pessoas (familiares,
membros da igreja, amigos, colegas de trabalho, médicos, enfermeiras e até os membros da
comunidade que tenham a reputação de praticar a cura naturalista), remédios (farmacêuticos
e caseiros),24 símbolos e terapias. Sendo assim, a doença é vista, aqui, como uma crise de
24
É comum que se enfatize a natureza complementar da unção e dos medicamentos receitados pelos profissionais da saúde, uma vez que os cristãos geralmente entendem que Deus é a fonte de toda cura. Nessa concepção, é Deus quem cura, quer seja através de medicamentos, quer seja de forma sobrenatural (WENGER, 2000, p. 188-189).
41
implicações várias, na qual o paciente pode se sentir abandonado pela família, comunidade e
Deus, tendo a sensação de estar isolado. Além disso, como afirma Davis (2004, p. 39), se a
doença é terminal, isso pode levar o paciente a uma verdadeira luta pela integridade pessoal,
enquanto reflete sobre a vida e a morte. Sucesso nesse processo pode depender, inclusive, de
uma conversão pessoal, por meio da qual o paciente recupera e reinterpreta seus valores
religiosos e entende que a morte faz parte de um processo natural também capaz de revelar
um Deus bom e amoroso, interessado tanto no fluxo da vida quanto na cessação da dor.
Da mesma forma, a unção é vista, aqui, como um importante ritual entre outros (como
a consulta médica, o preenchimento de prontuários, o exame dos sinais vitais) que ajudam a
reorganizar e reinterpretar a ruptura que a doença produz, de modo que a pessoa enferma
sinta que sua integridade está sendo restaurada; suas relações pessoais, reforçadas; e seus
valores religiosos, respeitados, tornando-se novamente relevantes (DAVIS, 2004, p. 39).
42
CAPÍTULO II. ASPECTOS CULTURAIS DA VISITA PARA UNÇÃO
Os seres humanos, desde o início de sua história, deram várias provas de que não
conseguem aceitar a factualidade da morte. Seu sentimento de abandono indefeso diante da
pavorosa constatação de que são finitos, os levou a desenvolver rituais e a idear mitos capazes
de auxiliá-los a colocar ordem no caos causado pela doença e pela morte.25 Como forma de
abstrair significado da dura realidade do sofrimento, doença e morte, as sociedades antigas,
mesmo as pré-cristãs, praticaram o rito da unção com óleo. O óleo, que já tinha um uso secular
e mundano, principalmente na cozinha (Lv 2:7; 9:4; Nm 11:8; 1 Re 17:12; Ez 16:13) e como
combustível (Êx 35:8, 14 e 28) e bronzeador, passou, então, à dimensão do uso religioso,
servindo para preparar o corpo morto para o sepultamento, coroar reis (1 Sm 10:1; 15:17; 2
Sm 2:4, 7; 12:7; 1 Re 1:39; 2 Re 23:30; Sl 89:20), consagrar sacerdotes (Êx 40:15; Lv 7:35) e
profetas (Is 61:1), dedicar locais para a adoração (Gn 28:18; Lv 8:10; Dn 9:24), oficiar
matrimônios (Ez 16:9), ungir os enfermos antes da morte e os cativos prestes a serem libertos
(2 Cr 28:15), e preparar o corpo para o sepultamento (2 Cr 16:14). Para os primeiros cristãos,
Jesus, a quem o Novo Testamento apresenta como capaz de curar os enfermos pelo toque e
pela palavra, era o Messias ou o Cristo, palavras que significam “ungido” em hebraico e grego,
respectivamente. Por isso, os próprios discípulos de Jesus praticavam a unção em busca da
cura física e exorcismo para as pessoas com quem entravam em contato (Mt 4:23-24; Mr
6:13). Gusmer (1984, p. 7), entre outros, acredita que, na prática dos discípulos, encontra-se a
origem da unção como costume cristão (Ti 5:14-15). Mesmo não havendo indícios, no Novo
Testamento ou na história da igreja cristã, de que a unção tenha sido usada para a
evangelização, para os cristãos, a realidade física se torna, com frequência, uma alegoria da
realidade espiritual.
2.1 A Visita do Cuidador Espiritual como Parte do Rito da Unção
Numa tentativa de situar a unção dos enfermos a partir de uma cosmovisão pós-
moderna, Cavanaugh (2009, p. 3) propôs recentemente que o ritual deve compreender três
elementos fundamentais: a visitação, a cura e a reconciliação. Ao fazer isso, a estudiosa
reconhece o papel fundante de Tiago 5:14-15, passagem da Bíblia que faz essa estipulação:
25
Contrasta com essa explicação essencialmente antropológica, a visão teológica, conforme epitomizada por Rahner (1965), segundo a qual, como não conseguem escapar de sua mortalidade, os cristãos se voltam para a introspecção quanto ao significado de sua existência e para a expectativa escatológica da esperança e da coragem de transcender este mundo e os limites de seu sentido até uma dimensão espiritual.
43
E quando alguém estiver doente, mande chamar os responsáveis da igreja, para orarem por ele, derramando óleo sobre ele, em nome do Senhor. Esta oração, feita com fé, dará a saúde ao doente e o Senhor há de restabelecê-lo. E, se cometeu algum pecado, será perdoado.
Na Bíblia Hebraica, Deus visita os velhos, os enfermos e os inférteis; no Novo Testamento,
Jesus “visita” os enfermos (Mt 8:14-15; 9:27-31; 20:29-34; Mr 1:29-31; 5:25-34; 7:31-37; 8:22-
26 e Jo 9:1-7), em sua missão itinerante, chamando a si mesmo de médico (Mt 9:12; Mr
2:17;Lc 4:23 e 5:31). Na perspectiva de unção que tem por base a fórmula estabelecida na
passagem fundante de Tiago 5:14-15, o oficiante e seus auxiliares visitam o enfermo com o
propósito de orar por ele e o ungir de modo a que receba o benefício duplo de ser curado e se
reconciliar com Deus. É muito comum que um doente terminal questione por que Deus
permite que ele se encontre nessa situação angustiante, o que produz baixa autoestima e dor
espiritual, tornando a reconciliação com Deus um tema antropológico tanto quanto dogmático
e teológico (YAMADA, 2001, p. 28 e 36). Nesse sentido, a reconciliação é bastante diferente da
aceitação da morte, emanando, em vez disso, de um sentimento de paz produzido pela
convicção de que somos compreendidos e aceitos pelo outro e de que o compreendemos e
aceitamos (YAMADA, 2001, p. 38).26
Em realidade, quem visita o enfermo também exerce um papel simbólico. Sua
influência sobre a pessoa visitada é significativa. Para Young (1954, p. 61-62),
A influência do pastor não se limita a seu apelo pessoal, mas sofre o acréscimo de um poder figurativo que é tão antigo quanto a própria religião. Os pacientes atribuem ao pastor todos os tipos de papéis emocionais. Uma ampla gama de sentimentos e interpretações é invocada desde o contato inicial com o indivíduo. Essa reação resulta necessariamente da natureza simbólica do papel do pastor porque ela ocorre geralmente antes que uma boa relação interpessoal tenha sido estabelecida.
É nesse contexto que Holst (1985, p. 46) afirma que “todo cuidado pastoral tem um papel
básico, primário, definível e fundamental”. Papel, nessa declaração, tem o sentido de tarefa ou
objetivo básico que se determina pelo cargo, profissão ou posição, sendo, além disso, uma
combinação de expectativas internas e externas. A isso Yamada (2001, p. 10) acrescenta que o
papel pastoral tem uma dimensão desejada e outra que é dada como tal. De qualquer forma,
durante a visita ao doente, em muitos casos, o cuidador espiritual se torna, para ele, um
representante de Deus e da igreja. “Quando o pastor visita o doente, o pastor não recebe
26
Nesse contexto, o “outro” deve ser entendido como Deus, o cônjuge, os familiares, os amigos, os desafetos e, segundo Yamada (2001, p. 38), até “a doença, o destino e o tempo”.
44
nenhuma outra credencial senão o endosso dessa autoridade” (YAMADA, 2001, p. 13). Nesse
sentido, como documentou Foulcault (1979, p. 99-128) a respeito da origem do hospital, o
papel do médico, o principal responsável pelo cuidado físico prestado ao doente, se reveste de
uma aura de respeitabilidade semelhante à que se percebe em relação ao cuidador espiritual:
“a tomada de poder pelo médico se manifesta no ritual da visita, desfile quase religioso em
que o médico, na frente, vai ao leito de cada doente seguido de toda a hierarquia do hospital:
assistentes, alunos, enfermeiras, etc.” (FOUCAULT, 1979, p. 110).
O rito da unção lança, portanto, o cuidador espiritual em meio a um torvelinho de
emoções fortemente afetadas pela condição do doente terminal,27 sendo que, em muitos
casos, considerável responsabilidade recai sobre a atuação do cuidador espiritual, em quem o
doente deposita suas últimas esperanças de salvação ou de um pouco de alívio e paz. A teoria
clássica de Kübler-Ross (1997) situa o paciente terminal numa progressão de estágios em
relação à morte que avança desde a negação e o isolamento.28 Ele passa, então, pela raiva,
negociação e depressão, até a aceitação.29 “Não se deve confundir, porém, a aceitação com
uma etapa feliz. Ela é quase destituída de sentimentos. É como se a dor acabasse, a luta
terminasse e tivesse chegado o momento de um pequeno descanso antes da longa jornada”
(KÜBLER-ROSS, 1997, p. 124).
Segundo Cavanaugh (2009, p. 3),
A visitação aponta para a natureza dialógica da unção, um ponto de partida que permite observar a dinâmica e a interação social entre poder e vulnerabilidade. Colocar esse componente em primeiro lugar é olhar o milieu concreto das realidades humanas que definem a enfermidade.
Assim, segundo os que a praticam (YAMADA, 2001, p. 5), a visitação pastoral àqueles que
estão gravemente enfermos tem por motivação o precedente das Escrituras, o anseio de
27
Emprega-se, aqui, a expressão “cuidador espiritual” em referência a qualquer cuidador profissional que, dentro da tradição cristã, tenha como preocupação principal os aspectos espirituais do doente, incluindo, sem distinção de gênero, pastores, sacerdotes, padres, freiras, conselheiros espirituais, diáconos, diaconisas, presbíteros e presbíteras, bispos e bispas, entre outros. 28
Nem sempre se passa por todas essas etapas, pois a pessoa pode vir a falecer antes ou pode ficar estagnada em uma delas. Nem sempre esses estágios se apresentam de forma inteiramente sequencial. O paciente terminal pode pular etapas durante o processo ou, então, voltar a estágios anteriores (KÜBLER-ROSS, 1975, p. 116). 29
Segundo Kübler-Ross (2005) e Stüewer e Baade (2016), essas fases geralmente progridem de uma maneira consistente. A fase de negação e isolamento funciona como um “pára-choques”, no momento da recepção da notícia, para proteger o paciente da realidade que o aguarda. A fase da raiva faz dos médicos, enfermeiras e familiares o alvo direto da impaciência do paciente terminal. A fase da negociação ou barganha é o momento em que o doente começa a fazer promessas para Deus. Na depressão, as circunstâncias não permitem mais que se negue a gravidade da situação e, portanto, aparece um sentimento de perda. A fase de aceitação é a fase do consentimento. Nesse estágio, segundo Leloup (2001, p. 56), “tudo se passa como se a pessoa já tivesse ressuscitado antes de morrer”.
45
seguir o exemplo estabelecido por Cristo, o desejo de conformidade com a tradição cristã, a
vontade de ajudar o próximo, o interesse em dar testemunho da própria fé, a aspiração ao
crescimento espiritual e o objetivo clínico de prover algum tipo de consolo e certeza em meio
ao cansaço, dor, isolamento e sofrimento provocados pela doença. Por essa razão, o cuidador
espiritual vai até o leito da pessoa e se esforça para demonstrar empatia por meio do toque
físico e para reafirmar a fé do enfermo por meio da leitura da Bíblia e da oração. Segundo
Yamada (2001, p. 6), esses objetivos não são alcançados se o cuidador espiritual se atém à
própria agenda e não leva em consideração as expectativas daquele que está enfermo,
embora estas sejam verbalizadas apenas raramente. Johnson e Spilka (1991) relatam, por
exemplo, que, em seu estudo com pacientes de câncer de mama, uma mulher mencionou sua
indignação diante da recusa de um cuidador espiritual em orar por um milagre em seu caso.
O texto de Tiago e, por extensão, o próprio ritual da unção contribuem para a
concessão de poder ao enfermo, já que é por sua decisão que o rito lhe deve ser ministrado. É
o enfermo quem, de fato, manda chamar os oficiantes. Além disso, por sua solicitação, os
oficiantes vêm a sua presença e não o contrário.30 Segundo Cavanaugh (2009, p. 11), a prática
de visitar e cuidar dos enfermos, viúvas e órfãos é vista pelos primeiros cristãos como uma
continuação do ministério de Cristo (Ti 1:27; At 6:1-2). De acordo com o Novo Testamento,
Jesus tinha encontros com os enfermos nas estradas (Mt 8:13; Lc 17:12-14) e permitia que eles
lhe fossem trazidos onde quer que estivesse (Mt 9:6-7). Além disso, ensinava que a visitação
aos enfermos era um dever de seus seguidores (Mt 25:36; Lc 16:19-31). De fato, Borobio
(1991, p. 45ss) coletou referências a inúmeras fontes antigas que fazem menção ao costume
cristão de visitar os enfermos e que o sancionam, dentre as quais se pode mencionar, a título
de exemplificação, a hipérbole de Atanásio, em meados do século IV, de que os enfermos
lamentavam mais a falta de visitas do que a própria presença da enfermidade.31
Nem sempre, porém, se respeitou a regra de visitar o doente em seu lar. Com a
emergência dos hospitais, no período carolíngio (800-1100), o local de visitação acaba
transferido para as dependências de hospitais e mosteiros (CAVANAUGH, 2009, p. 35). Há
30
Cuenin (1987, p. 75) levanta, por isso, algumas questões culturais e sociais associadas com a visitação para a administração da unção no antigo contexto em que Tiago escreveu sua epístola: que nível de isolamento mantinha os enfermos separados dos sãos? como se enxergava o toque físico a um corpo que podia ser fonte de contágio e que podia proporcionar uma experiência de contato com o mal corporificado pela doença? Cavanaugh (2009, p. 4) também indaga: que diferença faziam gênero e idade? como a ocorrência de epidemias afetava a prática? Apesar de legítimas, essas perguntas só podem receber respostas parciais, uma vez que a evidência documental a elas pertinente é bastante exígua. 31
Apesar da hipérbole, o apreço à visita pastoral por parte da pessoa enferma é real. Johnson e Spilka (1991, p. 30) relatam que, em seu estudo com pacientes cancerosos, uma mulher revelou que se sentiu “abandonada” quando seu pastor não a visitou durante seu período de tratamento.
46
evidência de que, nesse período, surgiu, além disso, a prática nada cristã de deixar o enfermo
perto de um altar a fim de constranger Deus a que o curasse. Caso a cura não ocorresse, o
enfermo era deixado ali para morrer (POSCHMANN, 1964, p. 248; CAVANAUGH, 2009, p. 36).
Cuenin (1987, p. 74) interpreta, por outro lado, que o advento dos hospitais e o enorme
contingente de homens e mulheres dedicados ao cuidado pastoral dos enfermos acabam
alterando a forma como as doenças são entendidas depois desse período e contribuem para a
concessão de um contexto de fé à realidade da doença.
Entre os católicos, o Concílio Vaticano II recomenda o retorno à prática da visitação
aos enfermos em seu próprio lar (CAVANAUGH, 2009, p. 52). Seu conselho, além disso, é que o
clérigo elabore uma lista de pessoas enfermas a fim de que possa visitá-las periodicamente.
Como parte da visita, o padre deve admoestar o enfermo a confiar em Deus, arrepender-se de
seus pecados, implorar a misericórdia divina, ter paciência com o sofrimento causado pela
doença e considerar a visita como uma visitação divina capaz de lhe confirmar a salvação e
como uma oportunidade para que reforme sua vida. A visitação aos enfermos, na perspectiva
do Concílio Vaticano II,
não apenas muda o foco para a concessão de poder à pessoa enferma que o invoca, mas também para a família, a comunidade e os cuidadores que lhe dão apoio. A pesquisa psicológica e sociológica sobre a doença enfatiza o poder da doença de “infectar” não apenas o indivíduo, mas também a família e a rede social à qual a pessoa pertence (CAVANAUGH, 2009, p. 93).
Por isso, Collins (1991, p. 4) afirma que a visita pastoral, conforme recomendada pelo Concílio
Vaticano II, concede uma extraordinária oportunidade para que os cuidadores espirituais
coloquem a fé da igreja em diálogo com as esperanças, aspirações e temores humanos tão
comuns aos enfermos e suas famílias. Nesse sentido, Fink (2005, p. 29) analisa o impacto da
visita pastoral em termos de seu valor como liame social. Segundo ele, a simples visita do
cuidador espiritual simbolicamente conecta toda a comunidade eclesiástica ao processo de
cura. Trata-se, de fato, de um convite ao envolvimento da comunidade, um apelo a que a
comunidade se veja como parte importante na cura de seus membros. Um procedimento
comum na visita do cuidador espiritual é a garantia ao enfermo de que outras pessoas estão
orando por ele (VANDECREEK, 1998, p. 198). Com isso, apesar do confinamento que a doença
grave lhe impõe, o doente recorda, por sua vez, dos vínculos que ainda mantém com os
amigos e conhecidos. Isso é especialmente evidente quando o doente costuma frequentar a
congregação do cuidador espiritual.
47
2.2 O Significado Social e Cultural da Visita do Cuidador Espiritual
A perspectiva predominante da pós-modernidade aponta para a experiência humana
como sendo localizada socialmente. Isto é, apesar de suas vozes geralmente múltiplas e de seu
reconhecimento do potencial hermenêutico da linguagem,32 a pós-modernidade inclui alguns
posicionamentos quase que consensuais, dentre os quais está o ponto de vista de que gênero,
raça, classe e etnia informam a compreensão que as pessoas têm de sua realidade
(CAVANAUGH, 2009, p. 104). De acordo com Cavanaugh (2009, p. 145-146), a unção, por
exemplo, tem pouco significado cultural nos Estados Unidos; ainda assim, é praticada porque,
naquele país, os enfermos dão grande valor ao toque pelo cuidador espiritual, que consegue,
de certa forma, atravessar as barreiras impostas pela vergonha, medo e constrangimento às
pessoas que residem no casulo inamistoso que a doença fatal constrói ao seu redor.
Segundo Cavanaugh (2009, p. 143), durante uma visita, a pessoa enferma se esforça
“para contar a história de sua vida”, para refletir sobre o que lhe deu significado à vida. Por
isso, acaba tecendo “uma autobiografia que contém meadas de integridade e desespero”.
Quem a visita se esforça, por sua vez, para puxar a linha dos fiapos de esperança, abstendo-se
de desenrolar a linha tingida com as cores berrantes do desespero. O doente é, nesse sentido,
uma espécie de “vivo documento humano” (living human document), na expressão cunhada
por Boisen (1936). O cuidador espiritual eficiente presta atenção nesse relato de vida e
procura participar da experiência nele contida a fim de encontrar o significado que dele
emerge (YAMADA, 2001, p. 8).33 Em momentos de dor física e espiritual, “qualquer pergunta
tem significado”, e o cuidador espiritual reúne nas perguntas as condições adequadas para
compreender a dor espiritual do doente e se unir a ele na exploração de seu significado
(YAMADA, 2001, p. 28). De acordo com Gerkin (1984, p. 38), “cada vivo documento humano
tem integridade própria que requer compreensão e interpretação, em vez de categorização e
estereotipização”. Segundo Yamada (2001, p. 8), sem essa busca de significado, qualquer
propósito de uma visita pelo cuidador espiritual perde seu valor. Uma confirmação desse fato
32
Segundo Scanlon (1999, p. 231), isso “não leva ao relativismo. Através do cultivo da sensibilidade hermenêutica e da imaginação, diferentes linguagens e tradições podem ser comparadas e avaliadas racionalmente. Linguagens e tradições incomensuráveis não são mônadas sem janelas que não têm nada em comum. Há sempre pontos que debordam e se entrecruzam. Nossos horizontes linguísticos estão sempre abertos. Podemos até falhar em compreender as tradições que nos são alheias, mas nossa resposta a essa falha deveria ser ética: ouvir com mais atenção e ampliar nossa imaginação. É muito difícil, mas precisamos aprender a viver com a mente aberta, de forma crítica, ao pluralismo cultural de nossa época. Precisamos aprender que somente mediante encontros nos quais nos engajamos com o ‘outro’, seremos capazes de entender, de forma mais profunda, nossas próprias tradições”. 33
Becker (1985, p. 32) sugere que “presença e compreensão” são os dois aspectos mais importantes do cuidado pastoral aos enfermos.
48
vem de uma pesquisa voltada para pacientes com câncer de mama (JOHNSON; SPILKA, 1991,
p. 24).34 As pacientes expressaram sua satisfação por ter recebido a visita de um cuidador
espiritual no ambiente hospitalar principalmente porque se disseram compreendidas pelo
cuidador espiritual.
Outra preocupação dos enfermos, geralmente expressa por ocasião da visita de um
cuidador espiritual, tem que ver com a forma como a vida das pessoas a quem amam e com
quem se importam vai prosseguir sem sua presença ativa (CAVANAUGH, 2009, p. 143). No
estudo de Johnson e Spilka (1991), 43,1% das pacientes de câncer de mama visitadas por um
pastor ou capelão revelaram que um dos temas da conversa durante a visita foi sua
preocupação com membros da família. De acordo com Yamada (2001, p. 19), até a oração
proferida pelo cuidador espiritual reproduz os temas sobre os quais conversou com a pessoa
enferma a quem está visitando e agrega a impressão de que lhe compreendeu o estado e as
preocupações que derivam dele.35
Percebe-se, portanto, que a visitação é uma parte intrínseca e indissociável do rito da
unção, sem a qual não somente a aplicação do rito seria impossível, mas muito de sua eficácia
social, cultural e espiritual se perderia. A visita continua, inclusive, a ter valor cultural mesmo
nas condições em que o doente terminal não partilhe da cosmovisão do cuidador espiritual,
desde que este não ignore suas expectativas. A visita provê a oportunidade para a reflexão
sobre temas ponderais e é essencial para a compreensão da factualidade da mortalidade
humana, para a aceitação da morte e para a reconciliação com o outro.
2.3 Conclusão
A visita de um cuidador espiritual faz parte de uma antiga tradição cristã praticada
ininterruptamente ao longo dos séculos, sendo, além disso, uma importante etapa
preparatória para que o rito da unção seja ministrado a um doente em estado terminal. Por
ser uma prática socialmente localizada, a visita provê a oportunidade para a negociação de
papéis sociais. Durante ela, ao recorrer a uma fonte de autoridade que precede e transcende
sua condição final, o doente recupera momentaneamente o poder sobre sua própria vida, um
34
O estudo de Johnson e Spilka (1991) incluiu 103 voluntárias da Sociedade Americana de Câncer, sendo que mais de 90% das pacientes se disseram satisfeitas por terem recebido a visita de um pastor ou capelão no hospital ou em casa. O estudo demonstrou, portanto, que, em geral, as mulheres americanas apreciam visitas pastorais quando enfrentam problemas de saúde. Além disso, 53,4% dessas pacientes expressaram a opinião de que, durante a visita, o cuidador espiritual compreendeu sua dor e sentimentos. 35
De acordo com Johnson e Spilka (1991, p. 29), “o ‘poder da oração’ não deve ser subestimado. Ela [a oração] representa uma forma de controle que identifica o indivíduo com fontes últimas de poder”.
49
poder do qual, na maioria dos casos, já havia abdicado. Além dessa dinâmica de negociação de
papéis, a visita também abre espaço para o questionamento das expectativas sociais em
pauta. Como “vivo documento humano”, o doente proporciona à comunidade representada
pelo cuidador espiritual e seus acompanhantes bem como aos familiares e amigos presentes
durante a visita uma abertura para novas interpretações de sua história de vida e do
significado último de sua condição. Dessa forma, a razão por que os envolvidos no processo se
dizem beneficiados pode muito bem emanar da percepção que passam a ter de que, de
alguma forma, a visita do cuidador espiritual contribui para a criação de uma nova
sensibilidade hermenêutica na comunidade.
50
CAPÍTULO III. O RITO DA UNÇÃO
As diferentes denominações religiosas praticam o ritual da unção de formas
obviamente diversas e por razões distintas: desconforto mental ou emocional, condição
terminal ou enfermidade que ameaça a vida da pessoa e cuja possibilidade de cura é remota,
remorso e necessidade de consolo espiritual, temor de possessão demoníaca, doença ou dor
crônica e incapacitante, relacionamento fraturado e doloroso, necessidade de confiança diante
da iminência de uma cirurgia importante, preparação para a morte iminente, consternação
diante de aparente infertilidade, perda de um ente querido, apreensão diante de uma nova
responsabilidade que se afigura extremamente desafiadora, uma crise na vida, entre outras
(WENGER, 2000, p. 173-174). Nas variadas formas em que o ritual é ministrado, o sucesso da
prática depende, porém, em grande medida, da perspicácia do cuidador espiritual, que precisa
estar ciente quanto aos aspectos culturais pertinentes ao ritual na concepção do próprio
paciente. Davis (2004, p. 35-36) faz um trocadilho para dar conta desse fato:
Aqueles que ministram aos enfermos, embora bem intencionados, podem, de fato, afligir [annoy], em vez de ungir [annoint], se não conseguirem apreciar de forma plena a cultura da pessoa enferma. Isso ocorre porque, através da externalização simbólica da ansiedade, o ritual bem feito conforta a pessoa enferma com a ideia de que ela tem algum controle do destino. Entretanto, esse “psicodrama”, na linguagem da psicologia moderna, essa “cura ritual”, só é eficaz se compartilha o idioma cultural da pessoa doente. Do contrário, ela só é mais um evento confuso, na verdade, incômodo, na vida da pessoa já afligida pela doença.
Para ter sucesso, portanto, a unção tem que levar em consideração mais do que a disfunção
biológica. Ela precisa principalmente tratar do desequilíbrio social e espiritual causado pela
doença. Por isso, o mesmo autor sugere que a melhor forma de praticar a unção em
comunidades onde predomina a cultura latino-americana é dentro do escopo do naturalismo.
Muitos adventistas do sétimo dia se encaixam bem nesse perfil, uma vez que compreendem a
saúde como um equilíbrio holístico dos aspectos físicos, sociais, mentais e espirituais da
pessoa. O termo naturalismo é facilmente reconhecido por muitos membros da IASD, que
geralmente se dizem adeptos dessa prática.
Como o interesse, neste capítulo, é “ver” a unção a partir da ótica dos ungidos e
praticantes, deu-se espaço, aqui, a escritores afinados com a questão, entre os quais
historiadores da religião, teólogos e clérigos. Essa opção é, portanto, uma escolha
epistemológica.
51
3.1 A Unção na IASD
Os adventistas veem seus sentimentos negativos como causadores potenciais de
enfermidade. Nesse sentido, aquilo que consideram como práticas pecaminosas afeta
diretamente as diferentes dimensões de sua saúde. Por isso, a cura não pode prescindir de
oração, comunhão com Deus, perdão dos pecados e reconciliação com Deus e com o próximo.
No entanto, a unção está longe de ser o primeiro expediente a que recorrem. De certa forma,
o processo até a unção é longo e comporta algumas fases bem demarcadas. Em primeiro lugar,
a pessoa doente deve ser avaliada por um membro da família, geralmente a mãe, que decide
se o problema é de sua competência e se pode ser curado com chás e outros remédios
caseiros. Esgotadas as possibilidades de uma cura caseira, procura-se um membro da
comunidade conhecido como naturalista. Em outras culturas, o naturalista seria o equivalente
do curandeiro. Como membro da IASD, o naturalista prescreve tarefas espirituais, dietas, mais
chás, práticas higiênicas, entre outras coisas. Do ponto de vista do paciente, o tratamento
naturalista tem várias vantagens: não é rígido, não inclui consultas cuja marcação envolva filas
ou interferência abrupta no dia-a-dia da pessoa, não há necessidade de preencher os
formulários do seguro de saúde, não é caro e não ocorre em ambiente profissional e frio. De
certa forma, o procedimento seguido pelo naturalista adventista se assemelha àquele seguido
pelo curandeiro típico, conforme descrito por Kiev (1968, p. 138):
O paciente recebe, assim, uma atividade ritualística significativa e complexa que deve praticar. Pede-se que se concentre em um tipo especial de oração e isso faz com que se concentre menos em seus problemas. [Os pacientes] recebem alívio de suas ansiedades pelo apoio que lhes é dado pelo curandeiro e, ao mesmo tempo, recuperam a confiança por assumirem responsabilidade pelos próprios problemas.
Depois disso, se a doença persiste, busca-se auxílio médico. Se o diagnóstico médico é
desfavorável ou se o paciente não está satisfeito com o resultado ou com a forma do
tratamento, ele envia um familiar em busca do cuidador espiritual para que este o unja.
O membro típico da IASD não deve estranhar a inclusão da unção nos ensinamentos da
igreja como opção a seu dispor para lidar com uma enfermidade penosa ou até mortal, uma
vez que Ellen G. White, a própria fundadora da IASD, era uma mulher de saúde frágil que
recebeu o rito da unção, que lhe foi ministrado pelos pastores A. G. Daniels e G. C. Tenney,
acompanhados das respectivas esposas, em 21 de maio de 1892, conforme relata em uma
carta, conhecida como manuscrito 19, conservada no volume 2 de sua obra Mensagens
52
escolhidas. Ela não descreve o rito propriamente dito, mas fala de sua angústia quando
percebeu que não havia sido curada:
Fiquei aliviada, mas não curada. Fiz agora tudo o que podia, para seguir as instruções da Bíblia, e esperarei pela operação do Senhor, crendo que a Seu tempo oportuno Ele me curará. Minha fé apega-se à promessa: “Pedi, e recebereis” (João 16:24). Creio que o Senhor ouviu nossas orações. Eu esperava que meu cativeiro fosse volvido imediatamente, e a meu juízo finito pareceu que assim Deus seria glorificado. Fui muito abençoada durante nosso período de oração, e apegar-me-ei à certeza que então me foi dada: “Eu sou teu Redentor; Eu te curarei.” (p. 235)
Mesmo sem relatar nenhuma evidência de melhora física, Ellen G. White, que ainda terá mais
17 anos de vida, reflete sobre o modo como se sentiu aliviada pelas orações e, por
conseguinte, pela ministração do ritual, o que contribuiu para o fortalecimento de sua fé e,
deduz-se, sua vontade de viver.
Em seus muitos livros, Ellen G. White usa a palavra “unção” (anointing) 334 vezes,
geralmente de forma metafórica para se referir à escolha de um sacerdote, rei ou líder por
Deus ou para se referir ao batismo de Jesus ou ao episódio em que uma mulher lhe derramou
óleo sobre a cabeça e os pés, enxugando-os com os cabelos (um dos poucos eventos da vida
de Cristo relatados nos quatro evangelhos: Mt 26:6-13; Mr 14:3-9; Lc 7:36-50 e Jo 12:1-8). No
entanto, em alguns casos, ela recomenda o ritual da unção aos membros da igreja. Ao pedir,
portanto, para ser ungida, a fundadora da IASD não estava fazendo nada além de optar por um
curso de ação que ela mesma recomendara à igreja: “quando a ajuda humana falha, Deus será
o ajudador de Seu povo”. Ela cita, então, a passagem de Ti 5:14-15 e conclui: “se os professos
seguidores de Cristo exercitassem, com pureza de coração, tanta fé nas promessas de Deus
quanto a que eles depositam nos agentes satânicos, eles perceberiam, na alma e no corpo, o
poder vivificante do Espírito Santo” (Conselhos sobre saúde, p. 457).
Em uma carta de 1890, Ellen G. White elabora acerca do ritual:
Eu entendo que a orientação de Tiago deve ser seguida quando uma pessoa está enferma sobre o leito, se ela manda chamar os anciãos da igreja, e eles cumprem as instruções de Tiago, ungindo o doente com óleo em nome do Senhor, orando pela pessoa a oração da fé... Não pode ser nossa obrigação chamar os anciãos da igreja por cada pequeno incômodo que temos, pois isso imporia um fardo nos anciãos. Se todos fizessem isso, seu tempo se consumiria nisso e eles não fariam nada mais... (Medical ministry, p. 16).
Outro aspecto surpreendente da relação de Ellen G. White com a unção é que ela
mesma ministrava o rito, mesmo numa época de inegável preconceito em relação à
53
participação das mulheres na liderança da igreja. As pessoas chegavam a considerá-la uma
espécie de curandeira, atribuindo-lhe poderes que ela mesma negava:
Alguns indagam: - A irmã White cura os enfermos? Eu respondo: - Não, não. A irmã White é geralmente chamada para orar pelos enfermos e para ungi-los com óleo em nome do Senhor Jesus. Nesses momentos, ela cobra a promessa: “a oração do justo salvará o doente”. Nenhum poder humano pode salvar os enfermos, mas, pela oração da fé, o Poderoso Médico tem cumprido Sua promessa àqueles que invocam Seu nome (Mensagens escolhidas, v. 3, p. 295).
De fato, Ellen G. White relata, em sua obra Pastoral ministry (p. 234) que, certa vez, num só
dia, realizou dois rituais de unção em que duas pessoas enfermas da mesma família
melhoraram: a esposa e um sobrinho de certo irmão Meade, cujos primeiros nomes não são
mencionados.
A unção é essencialmente um ritual tátil. De acordo com Wenger (2000, p. 199), o
toque na unção é íntimo, mas não privado; é simbólico, mas não artificial; é suplicante, mas
não manipulativo. Não se pode, portanto, enfatizar excessivamente a importância do toque
para uma pessoa que está enferma. Em um longo parágrafo, Davis (2004, p. 46) faz um
excelente levantamento das implicações do toque na prática da unção:
A medicina científica depende da tecnologia [hi-tech], mas a medicina popular [folk] depende do toque [hi-touch]. E, talvez, tocar seja uma das coisas essenciais em um ritual naturalista justamente porque o toque é um sentido humano que é necessariamente mútuo. Alguém pode ver sem ser visto e pode ouvir sem ser ouvido, mas ninguém pode tocar sem ser tocado. Embora os profissionais da saúde sejam melhores para curar o contágio biológico e o trauma físico, o toque de um curandeiro reconhecido pode ser mais eficaz para curar a fragmentação psíquica e a alienação social dos quais uma pessoa enferma geralmente padece. O toque demonstra aceitação da pessoa cuja vergonha devido à fraqueza pessoal pode lhe prejudicar a integridade. Já que se trata de uma interação necessariamente mútua entre dois seres humanos, o toque supera o isolamento social. E, quando acompanhado de um símbolo bíblico como o óleo, o toque santifica o sofrimento e o conecta a Cristo, que permitiu ser tocado e ungido porque experimentou a mesma luta em busca de intergridade pessoal que nós, suportando a vergonha do isolamento social e lidando com a questão derradeira que os saudáveis conseguem evitar, mas que os enfermos têm que enfrentar: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”
Por isso, Wenger (2000, p. 199) conclui que uma pessoa procura a unção para ser tocada
“interna e externamente”.
54
Meyendorff (1991, p. 250-251) observa que uma das razões por que o ritual da unção
está caindo em desuso em nossa época é que, quando uma pessoa se envolve com uma
religião, ainda o faz do ponto de vista de indivíduos. Dessa forma, vai à igreja para satisfazer a
uma necessidade individual e, muitas vezes, nem se dá conta de que a pessoa que se senta no
mesmo banco pode estar afligida por uma enfermidade. Por isso, recomenda que, sem causar
mal-estar para o enfermo, o rito envolva tantas pessoas quantas forem possíveis. Segundo ele,
o poder da unção reside no fato de ser um rito eclesiástico. Isto é, envolver os membros da
igreja como um todo. Além disso, é um rito de incorporação, uma vez que a enfermidade causa
alienação e isolamento. De acordo com Glen (1980, p. 397-411), “a energia física e emocional
bruta necessária para a sobrevivência e adaptação à doença pode deixar [o paciente] com
poucos recursos com os quais se relacionar com [outras pessoas]”. A unção, quando
ministrada da forma adequada, consegue patentear para o doente que ele é aceito e acolhido
por sua comunidade e que esta deseja sua presença e companhia. Além disso, a unção tem
elevado valor para a própria comunidade, uma vez que se transforma em testemunho do
poder curador de Deus ou da paz que uma pessoa pode desfrutar mesmo diante de uma
enfermidade debilitante.
Por outro lado, é preciso frisar que a IASD não deve ser entendida como “movimento
de cura” (healing movement). Ou seja, a cura de enfermidades não ocupa uma posição central
entre as doutrinas da igreja, nem tampouco a prática da unção se coloca entre suas principais
atividades. É importante esclarecer isto porque, se pertencesse a um movimento de cura, as
implicações para esta pesquisa seriam inteiramente outras, uma vez que os participantes
desses movimentos acabam sendo, por assim dizer, treinados para mascarar os efeitos da
doença em sua rotina diária. De acordo com Curtis (2004, p. iv-v), para eles,
superar a doença e seus efeitos no corpo requeria certa habilidade de traduzir crença em comportamento. Ser curado, eles diziam, era crer que Deus tinha eliminado a doença do corpo, a despeito de qualquer evidência sensória em contrário, e agir de acordo com essa crença. A prática da cura envolvia, portanto, o treinamento dos sentidos para que ignorassem a presença da dor ou dos sintomas da enfermidade e a disciplina do corpo para “agir com fé”, saindo da cama e servindo a Deus pela interação ativa com outras pessoas. Para as mulheres e homens enfermos que abraçavam essa perspectiva, participar em práticas como meditação, oração, imposição de mãos e unção ajudava a produzir os necessários hábitos mentais, comportamentos corporais e disposições espirituais que a fé na cura divina exigia.
Ao contrário disso, a IASD não privilegia a cura pela unção, preferindo os métodos científicos
convencionais. Os adventistas veem os profissionais da saúde e os cuidadores espirituais como
55
aliados no processo de cura. Por causa desse posicionamento equilibrado, seus clérigos não se
eximem da responsabilidade de prover cuidado espiritual para aqueles que foram
diagnosticados com enfermidades incapacitantes ou doenças terminais. Além do cuidado
espiritual rotineiramente exigido pelos enfermos, estes podem ainda solicitar, esgotadas as
possibilidades de cura pelos métodos convencionais, a prática da unção. Nenhum esforço
especial é feito, porém, para que o resultado do ritual, se bem sucedido, seja publicado.
Além disso, mesmo no caso de o paciente não sobreviver aos tratamentos
convencionais, a própria presença do cuidador espiritual para realizar a unção tem
repercussões que incluem o conforto e a consolação do moribundo. De acordo com Doyle
(2014, p. 28),
É preciso que alguém esteja lá no momento final. Alguns têm até alguém que gostariam que fosse a última pessoa a tocá-los e a lhes dizer que estão perdoados, purificados, em paz, para que possam ir com o Senhor. Infelizmente, a maioria não tem. As pessoas geralmente ficam sozinhas. Nunca admitimos isso. Eu acho que é por isso que temos religião no final das contas, porque nos sentimos sozinhos e as religiões nos aproximam em momentos que todos reconhecemos como sagrados; mas raramente admitimos isso.
Aliás, a necessidade da presença também se estende à pessoa enferma. A despeito de certa
tradição de fazer a unção in absentia, especialmente por parte dos anglicanos e episcopais
norte-americanos (LARSON-MILLER, 2006, p. 361-374), a maioria das denominações exige a
presença literal do paciente. Por isso, Coffman (1916, p. 258) chama a unção de “privilégio
pessoal do enfermo”. Do ponto de vista mais tradicional, o ritual da unção, como qualquer
outra prática litúrgica,
é, por natureza, dialógica, às vezes entre grupos, às vezes entre o indivíduo e o grupo, às vezes entre indivíduos e, mais frequentemente, entre Deus e a comunidade humana. Esse diálogo permite que falemos e ouçamos, gesticulemos e presenciemos, iniciemos e respondamos. Nos rituais de cura, nem todos serão ungidos, nem todos ungirão; alguns podem orar pelo enfermo; outros podem rodeá-lo a fim de deter a alienação que a enfermidade provoca de formas diferentes (LARSON-MILLER, 2006, p. 368-369).
Nesse sentido, tanto o enfermo quanto os demais participantes no rito dele se beneficiam.
Assim, pode-se dizer que se exerce um ministério em benefício de todos os envolvidos. O ritual
acaba sendo uma lembrança do batismo e há uma renovação dos laços que unem a pessoa à
igreja e a sua comunidade. Por essa razão, Larson-Miller (2006, p. 369) chega à conclusão de
que a realização do ritual de unção in absentia “parece um oxímoro, particularmente quando
56
encontros como a unção dos enfermos têm por foco o toque humano como veículo para o
encontro com o Divino”.
3.2 Comparação com a Unção em Outras Denominações
Quem se submete ao ritual da unção o faz na convicção de que Deus pode intervir e,
de fato, o faz, para restaurar a saúde das pessoas por meios que excedem o conhecimento e a
capacidade dos seres humanos. Para Wenger (2000, p. 124), “por definição, o ato da unção
declara que circunstâncias que parecem além da influência ou remediação humanas, não o
são, de fato, quando Deus é incluído na equação”. Durante quatro meses em 1999, Wenger
(2000) enviou questionários com questões abertas sobre a prática da unção para cerca de 10%
das congregações menonitas nos Estados Unidos (88 de 890 congregações), 42 dos quais
foram respondidos. Após a análise dos questionários, o pesquisador chegou à conclusão de
que os menonitas norte-americanos praticam a unção no ambiente do lar ou na liturgia da
igreja. Os elementos comuns aos dois contextos incluem: cânticos, leitura das Escrituras,
testemunhos, aplicação do óleo na fronte da pessoa enferma, imposição de mãos e orações,
incluindo uma bênção especial sobre o doente.
Figura 1 – Comparação do Rito da Unção em Três Denominações Cristãs
Igreja Católica Igreja Menonita IASD
RITO INTRODUTÓRIO LITURGIA INTRODUTÓRIA LITURGIA INTRODUTÓRIA
Saudação Boas-vindas Preliminares
Aspersão de água benta Cântico(s)
Instrução Instrução
Penitência Testemunho do enfermo
LITURGIA DA PALAVRA LITURGIA DA PALAVRA LITURGIA DA PALAVRA
Leitura da Bíblia Leitura da Bíblia Leitura da Bíblia
Resposta dos participantes Homilia
LITURGIA DA UNÇÃO LITURGIA DA UNÇÃO LITURGIA DA UNÇÃO
Ladainha Pedido do recipiente
Imposição de mãos Confissão
Oração pelo óleo Oração
Unção Unção Unção
Oração Imposição de mãos
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Pai Nosso Oração voluntária
LITURGIA DA COMUNHÃO
Comunhão
Oração silenciosa
Oração audível
RITO DE CONCLUSÃO RITO DE CONCLUSÃO
Bênção Hino
(FONTE: Rito católico e menonina: Wenger, 2000, p. 202; Rito adventista: Associação, 1987)
Obviamente, o quadro dá conta das recomendações oficiais das três igrejas acerca de um ritual
de unção ideal e pode não corresponder à prática exata daqueles que o realizam. Ainda assim,
percebe-se que as estipulações da IASD são relativamente mais simples do que as das duas
outras denominações.
A liturgia introdutória recomendada pela IASD para a unção contém apenas três partes
e, talvez, por ser geralmente praticada apenas para membros em plena comunhão com a
igreja, dispensa saudações, apresentações e boas-vindas, embora tais coisas possam estar
contempladas sob o título genérico de “preliminares”. Faltam-lhe também os cânticos
comumente entoados, nesse momento, por membros de outras denominações. Depois das
“preliminares”, a liturgia introdutória recomenda a instrução do enfermo e demais
participantes quanto aos propósitos da unção. O enfermo é, então, “encorajado a fazer um
autoexame... sendo-lhe garantidos o amor, a graça e o perdão de Deus” (ASSOCIAÇÃO, 1987,
p. 190). Depois da instrução, abre-se a oportunidade de que o enfermo dê um testemunho de
sua fé, não sendo exigido que, durante o mesmo, revele detalhes de sua enfermidade nem que
faça a confissão pública de seus pecados.
Na IASD, durante a liturgia da Palavra, não se recomenda a pregação de uma homilia
propriamente dita, nem se estimula a participação dos que são testemunhas do ritual. Em vez
disso, o oficiante solenemente faz a leitura de passagens bíblicas que mostram que Deus pode
curar, que os pecados devem ser confessados e abandonados, “que Deus pode escolher curar
através daqueles a quem Ele concedeu dons de cura” (ASSOCIAÇÃO, 1987, p. 190), e que a
oração da unção sempre tem resposta positiva, quer imediatamente, quer com o tempo, quer
na segunda vinda de Cristo. Os textos recomendados incluem Tiago 5:14-16; Salmo 103:1-5;
107:19-20; e Marcos 16:15-20.
Na liturgia da unção propriamente dita, só cabem duas coisas: a oração e, logo após o
seu término, o toque com óleo na fronte da pessoa enferma. Mais de uma pessoa pode orar,
inclusive o enfermo, mas o oficiante deve ser o último a fazê-lo. Imediatamente depois de sua
58
oração, o óleo, geralmente de oliva, deve ser aplicado à fronte e não à parte do corpo onde
possa residir a enfermidade. Aconselha-se que a oração seja feita, se possível, com todos os
participantes ajoelhados, à exceção do enfermo. Não obstante, quando as circunstâncias o
impedirem, a oração pode ser proferida enquanto todos os participantes, exceto o enfermo, se
põem em pé.
Diferentemente do que acontece em outras denominações, a IASD não recomenda
nenhuma liturgia específica para a conclusão do ritual. Embora não recomende, a igreja
permite que, se o enfermo assim o desejar, lhe seja ministrado concomitantemente o ritual da
comunhão.
3.3 Conclusão
A literatura parece sugerir que o rito da unção é mais complexo na Igreja Católica e
menonita do que na IASD. Tendo observado, porém, algumas vezes a aplicação do rito de
unção por pastores adventistas, inclusive a ministração do mesmo ao meu irmão mais velho,
enquanto este lutava bravamente contra um câncer de pulmão com metástase para a coluna,
o que percebi é que, embora o rito seja, em geral, relativamente simples, podem acontecer
elaborações a depender do estado do enfermo, do número de participantes e do local onde o
rito é realizado. A tendência é que, quanto mais gente envolvida e quanto mais participante o
enfermo se demonstre, mais elaborado se torna o ritual. Então, o que pode ocorrer, de fato,
não é que o rito seja menos complexo na IASD em comparação com o de outras denominações
religiosas, mas que a literatura adventista seja menos específica quanto aos procedimentos,
dando, assim, mais liberdade para o oficiante definir que aspectos incorporar ou não ao ritual.
Do ponto de vista antropológico, pode-se falar da cura como um “produto” da relação
do enfermo com o grupo (profissional, tradicional ou popular) que lhe presta auxílio de saúde
(RABELO; ALVES; MINAYO, 1994; RABELO; ALVES; SOUZA, 1999; GOMBERG, 2011; PUTTINI,
2011). É possível, portanto, que, por meio da pertinência ou inclusão em um grupo, se
estabeleça uma crença comum na capacidade mútua de cura. O gráfico a seguir procura
explicitar, proporcionalmente, as relações do enfermo com esses grupos:
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Figura 2 – Estrutura Interna do Sistema Local de Cuidado da Saúde
(Adaptado de KLEINMAN, 1980, p. 50)
Como se percebe no gráfico, o setor ou sistema popular prevê que o indivíduo se relacione
com a família e a comunidade, tendo como liame o nexo social. O sistema profissional é
burocrático e tem por base a consulta com especialistas. O sistema informal ou tradicional
(folk) também inclui consultas com especialistas, mas tem a vantagem de não ser burocrático.
Existe a possibilidade de interação entre todos os setores, mas ela é mais abrangente quando
ocorre entre o sistema popular e um dos outros dois sistemas. A própria participação do
sistema popular garante, além disso, uma maior interação entre os sistemas profissional e
tradicional (ou informal), que é mínima em sua ausência.
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CAPÍTULO IV. COMPARANDA E CONSTITUIÇÃO DA AMOSTRA
A palavra comparanda, plural de comparandum, é um termo do latim que significa
“coisas que devem ou podem ser comparadas”. Este capítulo tem o propósito de relatar minha
visita a dois ambientes religiosos distintos nos quais se anuncia a possibilidade da cura
espiritual para pessoas que padecem de enfermidades crônicas ou terminais. O segundo
desses ambientes está ligado ao objeto principal desta investigação, enquanto que o primeiro
deles é aqui analisado com o propósito precípuo de oferecer uma base de comparação.
4.1 Casa Dom Inácio de Loyola
A Casa Dom Inácio de Loyola é um centro mediúnico em que as pessoas são atendidas,
em Abadiânia, no estado de Goiás, por João Teixeira de Faria, o médium conhecido como João
de Deus. De acordo com uma reportagem publicada pela revista Veja, em 29 de agosto de
2014, cinco mil pessoas visitam semanalmente a cidade de 14 mil habitantes para se consultar
com o curandeiro, 20% das quais vêm do estado de São Paulo.
A aparência geral do santuário é a de um hospital, de acomodações simples e dieta
frugal, da qual se excluem ovos, condimentos e bebidas alcoólicas. Hospedar-se nos hotéis
associados à Casa Dom Inácio, como na época da “incubação” nos santuários da antiga Grécia,
faz parte do tratamento, cuja duração varia de uns poucos meses a alguns anos. Durante esse
tempo, o médium insiste em que os pacientes não abandonem os tratamentos convencionais,
inclusive a medicação alopática. Ao serem atendidos, os pacientes devem vestir roupas
brancas e manter os olhos fechados. Todas as cirurgias sem corte obedecem ao mesmo
protocolo e modus operandi, sendo irrelevante, por exemplo, se o paciente sofre de câncer ou
AIDS. As cirurgias com corte são realizadas com recurso a facas, tesouras e bisturis, mas sem
anestesia. Na reportagem de Batista Jr (2014), o jornalista descreve, com detalhes, essas
operações:
As mais impressionantes são aquelas em que uma tesoura é inserida dentro dos orifícios do nariz até chegar perto da testa. Também há as feitas com bisturi na região das costas e abaixo do peito. O sangue escorre do corpo dos pacientes até o chão. De todas as cirurgias que presenciei nos quatro dias em Abadiânia, a que mais me chocou foi a de raspagem da córnea com uma faca simples. Nenhum paciente se submete à anestesia, e todos disseram não sentir dor durante os procedimentos. Nessas ocasiões, João de Deus me chamava para acompanhar de perto a sua performance e perguntava: “Isso vai te ajudar na reportagem?”
61
Na minha própria visita, na tarde chuvosa de um domingo, dia 17 de janeiro, em 2016,
João de Deus não estava atendendo. Observei, ainda assim, a presença de inúmeras pessoas,
principalmente estrangeiras, no complexo, o que exigia que os avisos fossem postados
também em alemão, francês e, principalmente, inglês. Estranhamente, isso não acontecia,
porém, com as orientações de triagem:
Figura 3 – Avisos Gerais (Abadiânia)
(Foto da Autora)
Por outro lado, a orientação para o preenchimento do formulário de encaminhamento para a
consulta tinha sido postada em inglês. Outros anúncios convidavam os presentes para orações
e banhos de cristais, prontamente atendidos por alguns:
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Figura 4 – Nota de Intervenção (Abadiânia)
(Fotos da Autora)
Também eram oferecidos passeios até a cachoeira nas imediações do complexo e se convidava
para a contemplação da natureza a partir de um belvedere para isso construído:
Figura 5 – Belvedere (Abadiânia)
(Foto da Autora)
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A vista que se tem daquele ponto de vista privilegiado contribui para a atmosfera de paz e
sossego que prevalece em todo o complexo.
Além disso, havia invocações à Divindade como Deus Pai/Mãe e senhora da medicina.
De modo geral, as pessoas mantinham uma atitude reverente. O som das conversas abafadas
por sussurros dava a impressão de um misto de hospital e igreja barroca. Naquele dia, a sala
de esperava encontrava-se praticamente vazia. É fácil, entretanto, imaginá-la cheia em um dia
de muito movimento. A farmácia também estava fechada; contudo, possuía guichês por onde
até três pessoas poderiam ser atendidas ao mesmo tempo:
Figura 6 – Farmácia (Abadiânia)
(Fotos da Autora)
Segundo Batista Jr. (2014),
O ponto mais concorrido do centro, no entanto, é a farmácia, na qual são fabricados e comercializados os “remédios” de passiflora, feitos da planta do maracujá. Cada recipiente com 180 cápsulas custa 50 reais — para algumas pessoas, a receita dada pela entidade vem acompanhada de um “gratuito”.
No dia da visita, a livraria, onde eram comercializados livros e cristais, era um ponto bastante
concorrido. Avisos explicavam que todos os cristais vendidos já tinham sido abençoados pelas
entidades:
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Figura 7 – Cristais (Abadiânia)
(Foto da Autora)
O que se percebe da Casa Dom Inácio é que ela foi construída e aparelhada especialmente
para essa função de santuário e hospital, cuja atividade é fonte de renda e geradora de
empregos na região.
4.2 Igreja do UNASP e CEVISA
Minha primeira visita, como pesquisadora, à Igreja Adventista do Sétimo Dia do Centro
Universitário Adventista de São Paulo aconteceu no sábado, 26 de março de 2016. Nesse dia, o
Pr. Edemilson Alves Cardoso fez a preleção espiritual nos dois cultos que se realizaram pela
manhã. O primeiro deles, que teve início às 8h30min da manhã, foi de maior interesse para os
objetivos desta pesquisa porque é especialmente destinado à comunidade idosa, muitos
membros da qual enfrentam problemas de saúde.
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Figura 8 – Fiéis (UNASP)
(Fotos da Autora)
De fato, há vários condomínios habitacionais nas imediações do templo, cujos residentes são
primordialmente pessoas idosas e aposentadas. Dentre tais condomínios, destacam-se o Lagoa
Bonita, o Portal do Lago, o Recanto dos Pássaros e o Jacarandá. A presença, no bairro, do
Centro de Vida Saudável (CEVISA), uma clínica mantida de acordo com os princípios de saúde
da IASD, atrai essa grande população de aposentados e idosos. Um estudo realizado por
Machado e Cabral (1997) apontou para um aumento na taxa de mudança de religião durante
uma doença, especialmente entre os idosos, o que é concomitante com a percepção de um
aumento na religiosidade das pessoas à medida que envelhecem (SANTOS; SOUSA, 2012).
A programação de ambos os cultos versou, nessa manhã, especialmente sobre o tema
da cura espiritual. O Pr. Edemilson Alves Cardoso intitulou sua preleção de “Jesus cura e Jesus
salva”, na qual fez o relato da cura de sua esposa, que, até recentemente, travara uma
ferrenha batalha contra o câncer de mama. O auditório o ouviu com atenção.
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Figura 9 – Culto (UNASP)
(Fotos da Autora)
Em preparação para a mensagem do pastor, os presentes participaram de um serviço de
cânticos com duração aproximada de vinte minutos, cuja seleção musical também incluiu
hinos que anunciavam o poder curador dos agentes espirituais. Imediatamente antes da
mensagem espiritual, um coral angolano fez uma tocante apresentação musical sobre o
mesmo tema:
Figura 10 – Coral Angolano (UNASP)
(Foto da Autora)
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Toda a programação foi gravada e transmitida ao vivo pela internet. No final, o Pr. Edemilson
Alves Cardoso ofereceu a possibilidade de cura àqueles que estivessem enfrentando
problemas de saúde. Várias pessoas se levantaram e algumas delas foram até a frente do
santuário para que o pastor orasse por elas:
Figura 11 – Oração de Cura (UNASP)
(Foto da Autora)
O Centro Médico de Vida Saudável (CEVISA) fica a aproximadamente 2 km de distância
da entrada do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC), onde se situa a Igreja
Adventista, no município de Engenheiro Coelho. Trata-se de uma clínica especializada em
tratamentos naturais, que incluem programas de saúde emocional, desintoxicação,
reabilitação de problemas ósteo-musculares, redução de estresse (relaxamento), exercícios
físicos e dieta.
68
Figura 12 – Complexo do CEVISA
(Foto do Site do CEVISA)
O ambulatório contempla as seguintes especialidades: cardiologia, clínica geral, dermatologia,
fisioterapia, fonoaudiologia, gastroenteologia, ginecologia, neurocirurgia, nutrição,
odontologia, pediatria, psicologia e psiquiatria, com vários planos e convênios.
Figura 13 – Ambulatório do CEVISA
(Foto do Site do CEVISA)
Diferentemente do que ocorre em Abadiândia, o CEVISA não deve sua existência ao propósito
de acomodar pacientes que estão em busca de cura religiosa. Os métodos ali empregados
incluem principalmente os tratamentos convencionais. Apesar disso, o elemento religioso faz
parte integral dos esforços médicos ali envidados. O CEVISA se incumbe de transportar seus
pacientes para a igreja, onde são convidados a participar dos cultos religiosos e são
encorajados a orar pelo próprio restabelecimento. Durante os momentos de adoração, os
69
pacientes do CEVISA recebem atenção especial da parte dos pastores e demais líderes da
igreja, sendo comum que estes lhes dirijam uma saudação especial antes do início da
pregação.
4.3 Constituição da Amostra
No sábado, dia 11 de abril, retornei à Igreja Adventista do UNASP-EC a fim de começar
o processo de seleção da amostra incluída na pesquisa. Comigo veio uma equipe de nove
alunos das disciplinas de sociologia e ética dos cursos de Letras e Tradutor & Intérprete. Os
alunos ficaram com a responsabilidade de, nos dois cultos daquela manhã de sábado, abordar
os adoradores e convidá-los a participarem da pesquisa. Na primeira abordagem, somente
cerca de sete pessoas se dispuseram a participar, mas duas delas eram visitantes de Águas de
Lindoia e uma cidade no interior de Minas Gerais, e sua participação foi, por isso, descartada.
Foi necessária outra visita para constituição da amostra, que ocorreu no dia 18 abril, com a
participação dos alunos e com sua abordagem aos adoradores.
O Pr. Edemilson Alves Cardoso continuou escolhendo temáticas pertinentes à cura
espiritual para suas preleções, mesmo depois de a equipe de alunos ter abordado os
adoradores. Além disso, o pastor incentivou algumas pessoas que ele conhecia e sabia terem
sido ungidas a procurarem a equipe de seleção de amostra a fim de voluntariarem sua
participação. Finalmente, no dia 23 de abril, o Pr. Edemilson Alves Cardoso contou, durante o
culto, experiências de unção das quais havia participado e insistiu que os membros da igreja
dessem a devida importância ao ritual. Com a ajuda do pastor, conseguimos agendar cerca de
trinta entrevistas, das quais vinte e duas foram efetivamente gravadas e incluídas no corpus
para análise. Cerca de oito entrevistas tiveram que ser descartadas porque os participantes
não atentaram para os critérios de seleção: serem residentes na comunidade do entorno da
igreja, terem sido objeto de um ritual de unção por conta de uma enfermidade grave, ou
terem testemunhado um rito de unção ministrado a um parente próximo (pai, mãe, filho, filha,
irmão, irmã ou cônjuge) nos últimos cinco anos, ou terem atuado, na condição de oficiante, no
ritual.
4.4 Conclusão
A união do elemento religioso aos processos convencionais de tratamento médico fez
com que o complexo formado pela universidade, a igreja e o centro médico se tornasse um
ambiente ideal para o estudo do papel da crença religiosa nos processos de cura. Essa
70
constatação foi ainda reforçada pelo alto índice de população idosa que reside nos
condomínios nas proximidades do complexo e que tem maiores propensões às graves
enfermidades que geralmente acometem as pessoas de mais idade. Por isso, a formação de
um corpus de vinte e duas entrevistas com pessoas que se submeteram ao ritual de unção ou
que o testemunharam acabou não sendo uma tarefa tão difícil quanto teria sido se a pesquisa
tivesse focado sujeitos dispersos por outras regiões. Na formação do corpus, buscou-se seguir
as recomendações de Bardin (1977, p. 96-98) para a constituição de um corpus ideal para a
análise de conteúdo: exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência. Os
respondentes tenderam a ser pessoas mais velhas, residentes numa mesma comunidade e
quase todos (90%) pertencentes a uma mesma filiação religiosa. Entende-se que essa
homogeneidade do corpus requereu uma amostra menor do que teria exigido um universo
mais heterogêneo (BARDIN, 1977, p. 97).
71
CAPÍTULO V. ANÁLISE DO CONTEÚDO DAS ENTREVISTAS
O questionário foi montado de modo que sua organização das perguntas contemplasse
a presença de oito palavras ditas “indutoras” para estimular o respondente a considerar certos
aspectos de interesse da pesquisa. As oito palavras indutoras escolhidas foram: por quê
[motivos da unção], sintomas [associados às queixas do sujeito anteriormente à unção],
melhora [percebida ou não após a unção], importância [da unção], diabo, Deus, cura e
sucesso [da unção]. Trata-se de palavras que pretenderam desencadear afirmações quanto à
percepção do sujeito em relação ao sucesso ou fracasso do rito da unção e sobre sua
compreensão do papel do elemento sobrenatural nesse processo. As respostas obtidas em
função das palavras indutoras (estímulos) são denominadas, por Bardin (1977, p. 52), de
respostas induzidas.
Apesar do valor considerável dessas respostas induzidas, estabelecidas por ocasião da
montagem do questionário, a análise não pretendeu contemplar apenas esse tipo de resposta,
mas abriu espaço também para uma pré-análise de certos índices.
5.1 Pré-Análise
De acordo com Bardin (1977, p. 65), “o recurso à análise de conteúdo com o objetivo
de tirar partido de um material dito ‘qualitativo’ (por oposição ao inquérito quantitativo
extensivo), é frequentemente necessário na prática habitual do psicólogo ou do sociólogo”.
Antes de se empreender a análise propriamente dita do conteúdo, foi necessária a realização
de uma pré-análise (cf. Anexo 4), cuja primeira fase correspondeu ao que se convenciona
chamar de “leitura flutuante” e que consistiu em “estabelecer contato com os documentos a
analisar e em conhecer o texto deixando-se invadir por impressões e orientações” (BARDIN,
1977, p. 96). Nessa fase, a leitura inicial contribuiu para que emergissem hipóteses e as teorias
fossem adaptadas e projetadas sobre o material, conforme a recomendação de Bardin (1977,
p. 96).
Na segunda fase da pré-análise, empreendeu-se a referenciação dos índices. Como o
método da análise de conteúdo considera os textos como uma manifestação de índices, um
trabalho preparatório precisou ser feito para escolhê-los. Bardin (1977, p. 100) sugere que o
índice pode ser, por exemplo, “a menção explícita de um tema numa mensagem”, sendo que o
tema “possui tanto mais importância para o locutor, quanto mais frequentemente é repetido”.
No caso desta pesquisa, cinco índices foram escolhidos à revelia das palavras indutoras. Trata-
se dos temas mencionados, com grande frequência, pelos respondentes, além daqueles
72
selecionados pela pesquisadora por meio das oito palavras indutoras estabelecidas durante a
elaboração do questionário. Foram, portanto, selecionados os índices: pastor, igreja, médico,
hospital e família.
Na terceira fase, estabeleceram-se os indicadores, isto é, a frequência de cada tema de
maneira relativa ou absoluta em relação uns aos outros. Para isso, montaram-se tabelas em
que constaram as palavras indutoras ou índices (unidades de registro); as respostas induzidas;
a frequência de sua ocorrência; e exemplos de falas (unidades de contexto).
Na quarta fase, foi feita a codificação para o registro de dados. Segundo Bardin (1977,
p. 103),
A codificação corresponde a uma transformação, efetuada segundo regras precisas, dos dados brutos do texto, transformação esta que, por recorte, agregação e enumeração, permite atingir uma representação do conteúdo, ou da sua expressão, susceptível de esclarecer o analista acerca das características do texto, que podem servir de índices.
Para a codificação, foi necessário fazer o recorte, isto é, a escolha das unidades de registro e
de contexto. A unidade de registro é definida, primeiramente, como o “segmento de conteúdo
a considerar como unidade de base, visando à categorização e à contagem frequencial”. Entre
as unidades mais comuns, geralmente é possível encontrar a palavra, o tema, o personagem, o
acontecimento, etc. De fato, segundo Bardin (1977, p. 107), “a unidade de registro existe no
ponto de interseção de unidades perceptíveis (palavra, frase, documento material,
personagem físico) e de unidades semânticas (temas, acontecimentos, indivíduos). Já as
unidades de contexto correspondem aos segmentos da mensagem, cujas dimensões são
superiores às das unidades de registro, como, por exemplo, a frase o é em relação à palavra ou
o parágrafo, em relação ao tema. Nesta pesquisa, optou-se pela palavra como unidade de
registro e a frase como unidade de contexto. Depois disso, fez-se a enumeração, isto é, a
escolha das regras de contagem. No caso desta pesquisa, privilegiou-se, para a enumeração, o
conjunto de regras com a seguinte distribuição: presença (ou ausência) e frequência.
Finalmente, procedeu-se à classificação e à agregação, isto é, à escolha das categorias
para cada dimensão. Essa categorização teve o objetivo de “fornecer, por condensação, uma
representação simplificada dos dados brutos” (BARDIN, 1977, p. 119). Uma vez que o
questionário havia sido montado com essa preocupação em mente, optou-se pela
categorização em função da própria organização das perguntas, que já contemplava a
presença de palavras indutoras para estimular o respondente a considerar certos aspectos de
interesse da pesquisa. Dessa forma, foi possível selecionar as dimensões com base nas oito
palavras indutoras usadas nas questões 1, 4 e 6 a 13 do questionário. A essas oito dimensões
73
acrescentaram-se mais cinco, selecionadas a partir dos índices, totalizando treze dimensões.
Para cada dimensão, foram, então, escolhidas as categorias.
5.2 Análise
5.2.1 Os Participantes
Antes de passar à análise de conteúdo propriamente dita, faz-se necessário considerar
as informações socioeconômicas prestadas pelos participantes em suas respostas às perguntas
não numeradas do questionário e a respeito das características objetivas por eles observadas
no ritual da unção. Trata-se, portanto, das respostas a algumas das perguntas não numeradas
e das respostas às perguntas 1, 2, 3 e 5 do questionário.
Com base nessas informações, é possível apresentar dois conjuntos de dados, o
primeiro pertinente às informações socioeconômicas e o segundo pertinente às características
objetivas da unção. São, obviamente, dados objetivos concernentes aos aspectos que
antecedem as informações de natureza qualitativa que constituem o cerne das entrevistas.
Observados os cuidados relativos à ética em pesquisa, essas informações objetivas de
ordem socioeconômica e aquelas pertinentes à identidade dos participantes podem ser
expressas, em relação a cada sujeito, da seguinte maneira:
Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3 Sujeito 4* Sujeito 5* Sujeito 6
*
Idade 57 Idade 1 Idade 33 Idade 0,5 Idade 61 Idade 75 Gênero F Gênero M Gênero M Gênero M Gênero M Gênero F EC casada EC casado EC solteiro EC solteiro EC casado EC viúva N
o. Filhos 4 N
o. Filhos 4 N
o. Filhos 0 N
o. Filhos 0 N
o. Filhos 4 N
o. Filhos 5
Ocup. aposent. Ocup. pastor Ocup. estudante Ocup. criança Ocup. engen. Ocup. doméstica Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig católica Sujeito 7 Sujeito 8* Sujeito 9* Sujeito 10* Sujeito 11* Sujeito 12* Idade 14 Idade 51 Idade 48 Idade 79 Idade 88 Idade 67 Gênero F Gênero M Gênero F Gênero F Gênero F Gênero M EC solteira EC casado EC solteira EC casada EC casada EC casado N
o. Filhos 0 N
o. Filhos 2 N
o. Filhos 1 N
o. Filhos 3 N
o. Filhos 3 N
o. Filhos 2
Ocup. estudante Ocup. pastor Ocup. correio Ocup. profess. Ocup. secretária Ocup. motorista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Sujeito 13 Sujeito 14* Sujeito 15 Sujeito 16* Sujeito 17* Sujeito 18 Idade 59 Idade 76 Idade 34 Idade 92 Idade 72 Idade 39 Gênero M Gênero F Gênero M Gênero F Gênero M Gênero M EC casado EC casada EC casado EC casada EC casado EC casado N
o. Filhos 2 N
o. Filhos 2 N
o. Filhos 2 N
o. Filhos 3 N
o. Filhos 7 N
o. Filhos 4
Ocup. pastor Ocup. do lar Ocup. aux. adm. Ocup. do lar Oc. empresária Ocup. dentista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista
74
Sujeito 19* Sujeito 20* Sujeito 21* Sujeito 22* Idade 87 Idade 94 Idade 76 Idade 27 Gênero F Gênero F Gênero M Gênero M EC casada EC viúva EC casado EC casado N
o. Filhos 1 N
o. Filhos 1 N
o. Filhos 4 N
o. Filhos 4
Ocup. do lar Oc. enfermeira Oc. aposentado Ocup. professor/pastor Relig adventista Relig adventista Religião católico Religião adventista
(o asterisco indica quando o informante apenas testemunhou a unção; os dados, porém, são do sujeito) (o item idade se refere à idade do ungido por ocasião da unção)
Por sua vez, as informações quanto às características objetivas do rito da unção podem
ser expressas, em relação a cada sujeito, da seguinte maneira:
Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3 Sujeito 4* Sujeito 5
* Sujeito 6
*
Ano 2016 Ano 1966 Ano 2016 Ano 2005 Ano 2015 Ano 2012 Hora noite Hora noite Hora noite Hora noite Hora tarde Hora manhã Local PG Local hospital Local em casa Local hospital Local hospital Local hospital Doe. taquicardia Doença infecção Doença odontol. Do. traumatismo Doença coração Doença coração Duração 2 min Duração ? Duração 30 min Duração ? Duração 15 min Duração 10 min Sujeito 7 Sujeito 8* Sujeito 9* Sujeito 10* Sujeito 11* Sujeito 12* Ano 2005 Ano 2015 Ano 2010 Ano 2011 Ano 2016 Ano 2001 Hora tarde Hora tarde Hora tarde Hora noite Hora tarde Hora tarde Local hospital Local clínica Local ? Local hospital Local em casa Local hospital Doença dengue Doença câncer Doença leucemia Doença infecção Doe. Alzheimer Doe. Alzheimer Duração 30 min Duração 30 min Duração ? Duração 20 min Duração 25 min Duração 15 min Sujeito 13 Sujeito 14* Sujeito 15 Sujeito 16* Sujeito 17* Sujeito 18 Ano 2013 Ano 2015 Ano 2016 Ano 2012 Ano 2006 Ano 2014 Hora manhã Hora noite Hora tarde Hora tarde Hora noite Hora manhã Local hospital Local hospital Local igreja Local hospital Local hospital Local em casa Doença câncer Doença câncer Doença cálculo Doença várias Doença câncer Doença câncer Duração ? Duração 40 min Duração 25 min Duração 10 min Duração 20 min Duração 20 min Sujeito 19* Sujeito 20* Sujeito 21* Sujeito 22* Ano 2011 Ano 2015 Ano 2008 Ano 1951 Hora tarde Hora manhã Hora noite Hora ? Local em casa Local em casa Local hospital Local hospital Doença coração e pulmão Doença várias Doença câncer Doença câncer Duração 30 min Duração 15 min Duração 30 min Duração ?
(o asterisco indica quando o sujeito apenas testemunhou a unção)
Sendo assim, a dispersão da idade do sujeito por ocasião da unção em relação ao ano da
realização do rito pode ser representada no Gráfico 1:
75
Gráfico 1 - Dispersão Idade/Ano
Como se percebe pelo gráfico 1, apenas três vezes a unção ocorreu antes de 2005, o restante
tendo ocorrido entre 2005 e 2016, quando a maioria dos sujeitos tinha entre 45 e 90 anos de
idade, só seis dos quais tinham menos de 40 anos e só quatro, mais de 80 anos.
5.2.2 Os Informantes
É necessário apresentar os dados pertinentes aos informantes que testemunharam o
rito, mas não se submeteram a ele:
Informante 4 Informante 5 Informante 6 Informante 8 Informante 9 Informante 10
Idade 38 Idade 18 Idade 18 Idade 54 Idade 23 Idade 60 Gênero F Gênero F Gênero F Gênero F Gênero F Gênero F Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Parent filha Parent filha Parent neta Parent esposa Parent filha Parent filha
Informante 11 Informante 12 Informante 14 Informante 16 Informante 17 Informante 19
Idade 88 Idade 78 Idade 52 Idade 73 Idade 59 Idade 90 Gênero M Gênero F Gênero F Gênero F Gênero F Gênero M Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Relig adventista Parent esposo Parent esposo Parent filha Parent filha Parent filha Parent esposa
Informante 20 Informante 21 Informante 22
Idade 83 Idade 52 Idade 63 Gênero F Gênero M Gênero M Relig adventista Relig adventista Relig adventista Parent enferm Parent filho Parent filho
Obviamente, esses dados só se referem às testemunhas, o que explica a numeração irregular.
Trata-se de 15 informantes, de idades que variam de 18 a 90 anos, quatro (26%) dos quais
pertencem ao sexo masculino, enquanto onze são mulheres (74%). Seis informantes do sexo
feminino (40%) relataram a experiência de sujeitos também do sexo feminino. Outros cinco
1940
1950
1960
1970
1980
1990
2000
2010
2020
0 20 40 60 80 100
Série1
76
informantes do sexo feminino (34%) relataram a experiência de sujeitos do sexo masculino.
Dois informantes do sexo masculino (13%) relataram a experiência de sujeitos do sexo
feminino. Finalmente, dois informantes do sexo masculino (13%) relataram a experiência de
sujeitos também do sexo masculino. Quanto ao grau de parentesco, nove informantes (60%)
eram filhos dos sujeitos; quatro (26%), cônjuges; um (6%), neto; e, em um caso (6%), o
informante era uma enfermeira, de 83 anos de idade, que tem dedicado uma boa parte de sua
vida a cuidar do sujeito, uma viúva agora com 96 anos de idade, cujo filho falecera há vários
anos em um acidente de automóvel, e que agora sofre, entre outras coisas, de um incipiente
mal de Alzheimer. Todos os informantes são membros da IASD, embora dois dos sujeitos (6 e
21) não o fossem.
5.2.3 A Duração da Unção
Nem todos os sujeitos e informantes puderam, por causa de lapsos de memória,
informar a duração exata do rito de unção. Vários deles ofereceram estimativas aproximadas,
embora quatro não fossem capazes de oferecer nem mesmo tal estimativa. O gráfico 2, a
seguir, apresenta a dispersão da duração do rito em função do ano de sua realização:
Gráfico 2 - Dispersão Duração/Ano
O gráfico 2 mostra que uma duração inferior a 10 minutos ou superior a 30 é excepcional. Em
geral a unção dura entre 20 e 30 minutos. Não se percebeu, inclusive, nenhuma variação dessa
tendência ao longo dos anos. A dispersão no Gráfico 3, a seguir, também nos mostra que a
duração do rito não é influenciada pela idade do participante:
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
1940 1960 1980 2000 2020
Série1
77
Gráfico 3 - Dispersão Duração/Idade
5.2.4 A Análise das Dimensões
Com base nas categorias nomeadas em função da ocorrência e da frequência de certos
grupos de falas, será analisado agora o conteúdo das treze dimensões selecionadas, na pré-
análise, a partir das reações às palavras indutoras e a partir dos índices. Os parâmetros de
inserção das falas incluem os depoimentos do próprio sujeito ou do respondente, conforme os
critérios de inclusão explicitados na metodologia.
5.2.4.1 A Dimensão MOTIVOS
A primeira dimensão contempla a motivação que levou o participante a se submeter
ao rito da unção. A dimensão foi previamente selecionada com base nas reações à palavra
indutora “por quê”. A partir dessas reações, foram nomeadas as categorias: “desespero”;
“incentivo ou decisão de outra pessoa”; “experiência anterior”; “esperança ou fé em um
milagre”; “costume bíblico ou convicção religiosa”; e “reconciliação”. Vários respondentes
mencionaram mais de uma motivação. Por isso, a tabulação dos dados se refere à
porcentagem de respondentes que fazem menção à determinada motivação e não à
quantificação de uma menção em relação às outras.
0
20
40
60
80
100
0 10 20 30 40 50
Série1
78
Tabela 1 – Motivação para a Unção
Dimensão 1: MOTIVOS
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Desespero 2 3 “um momento de
bastante desespero” (4). “um dia assim, de
desespero, ela gritou a
Deus” (9); “ela estava
perdida” (20); “eu fiquei
desesperada” (20).
Incentivo ou decisão de outra pessoa
7 5 “a esposa do pastor”(2 e
15); “uma amiga da
minha mãe” (5); “minha
irmã... porque ele estava
se apagando” (12); “o
pastor” (15); “ninguém
pediu; na realidade, o
pastor chegou lá e, além
de conversar, ele ungiu”
(21); “a esposa” (22).
“minha mãe decidiu
chamar o pastor” (6);
“achei que ela tava
morrendo” (10); “o meu
marido sempre dizia que,
quando uma pessoa está
passando mal, que a
gente vê que não tem
mais condições, a gente
tem que chamar o
pastor e mandar ungir; e
eu achei que ela devia
ser” (20).
Experiência anterior 3 0 “aconselhamento da
esposa do pastor que
tinha passado por uma
experiência de unção”
(2); “tinha passado pela
experiência da minha
avó” (5).
Esperança ou fé em um milagre
7 5 “foi para dar esperança”
(8); “Deus pode fazer
esse milagre” (13); “fé
que Deus vai operar, de
alguma maneira, algum
milagre” (15).
“acordei com esperança”
(1); “não que fosse me
salvar, mas que daria
esperança” (7); “porque
nós cremos no milagre
ou no descanso” (14). Costume bíblico ou convicção religiosa
1 2 “é praxe, né?” (8).
“a gente crê na Bíblia”
(11).
Reconciliação 0 3 “ela teve um concerto
com Deus; foi o tempo
certinho que foi a
oportunidade que Deus
deu pra ela de consertar
a vida dela” (9); “pra me
[se] colocar nas mãos de
Deus” (18 e 19).
Diante da palavra indutora “por quê”, doze menções (54%) atribuíram a decisão de
participar do rito ao incentivo de outras pessoas, principalmente do cônjuge ou pais, mas
também de amigos, do pastor e até da esposa do pastor. Outras 12 menções (54%) se
referiram à esperança ou fé em um milagre. Cinco menções (22%) se referiram ao desespero
como motivação para a unção. Trata-se, neste caso, de pessoas em estado grave, como
79
traumatismo craniano (4) e leucemia (9), ou pessoas acometidas simultaneamente de várias
enfermidades (20). Três menções (13%) aludiram à experiência anterior de outra pessoa. O
respondente 5, por exemplo, havia testemunhado, anos antes, a unção da própria avó. Outras
três menções (13%) apontaram para o costume ou tradição religiosa como motivação. É
interessante que, nesses casos, a avaliação da cura ou do sucesso da unção ocorreu de forma
bastante vaga, pois a unção era vista principalmente como uma obrigação que precisava ser
cumprida. Finalmente, três outras menções (13%) se fizeram ao desejo de se alcançar uma
reconciliação com Deus, o que implica que o elemento espiritual era entendido, pelo menos
por alguns respondentes, como aspecto importante na preparação para a morte.
5.2.4.2 A Dimensão SINTOMAS
A segunda dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram quanto
aos sintomas anteriores à unção. A dimensão foi previamente selecionada com base nas
reações à palavra indutora “sintomas”. A partir dessas reações, foram nomeadas três
categorias: “sintomas emocionais ou espirituais”; “sintomas físicos”; e “nenhum sintoma”. Em
geral, os respondentes fizeram menção aos sintomas relativos às dificuldades de saúde com as
quais foram diagnosticados. Por isso, a dimensão sintomas equivale, em termos práticos, ao
diagnóstico que os sujeitos receberam de seus respectivos médicos ou, em um caso (3),
dentista.
Tabela 2 – Sintomas/Diagnóstico antes da Unção
Dimensão 2: SINTOMAS
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Sintomas emocionais ou espirituais
3 1 “aquela preocupação”
(3); “uma grande
mágoa” (8).
“Deus talvez me limitou”
(1).
Sintomas físicos 11 12 “desidratação” (2);
“problema
odontológico” (3);
“parada cardíaca” (5);
“câncer” (8, 13, 20 e
22); “Alzheimer” (12);
“cálculo renal” (15);
“pernas inchadas” (21);
“enfraqueceu e
emagreceu muito” (22).
“essa taquicardia não tá
me deixando ser livre”
(1); “insuficiência
cardíaca” (6); “dengue”
(7); “leucemia” (9);
“Alzheimer” (10 e 11);
“câncer” (14, 17 e 18);
“AVC” (16); “coração e
pulmão” (19); “coluna”
(20).
Nenhum 1 0 “sintoma nenhum... foi a
queda” (4).
(0).
80
Apenas quatro respondentes (18%) fizeram menção simultânea a “sintomas
emocionais ou espirituais” e “sintomas físicos”. Segundo o respondente 1, por exemplo, sua
taquicardia era espiritualmente limitante, quase que como produzida pelo próprio Deus. No
caso do respondente 3, acometido de um grave problema dentário, o que o incomodava era a
preocupação que isso produzia. O respondente 8 se referiu a “uma grande mágoa” que o
sujeito teve antes de contrair o câncer. Essa declaração nos remete de volta à citação de Morin
(2012, p. 54), que aparece no início desta tese: “o enfraquecimento imunológico pode vir de
uma perda ou de uma mágoa. Uma vontade selvagem ou uma intervenção aparentemente
mágica podem levar à cura de um câncer”. Infelizmente, no caso do sujeito 8, a segunda parte
da citação não se cumpriu e ele acabou mesmo sucumbindo ao câncer, precocemente, aos 51
anos de idade.
Apenas o respondente 4 alegou que o sujeito não teve “nenhum sintoma”, pois, como
se tratava de uma queda que produziu traumatismo craniano, entendeu que a pergunta não se
aplicava. Os sintomas físicos compuseram a maioria esmagadora das queixas. Foram 19
menções (86%), dentre as quais predominou o câncer (inclusive a leucemia), com oito
ocorrências (42%), o que atesta quanto à gravidade dos casos que requereram unção. Em
segundo lugar, ficaram as doenças do coração, com quatro ocorrências (21%), inclusive uma
em que o sujeito sofreu uma parada cardíaca; em terceiro lugar, a síndrome de Alzheimer, com
três ocorrências (15%). Pode-se explicar essa incidência da síndrome de Alzheimer pelo fato de
a população da pesquisa ser constituída, principalmente, de idosos.
5.2.4.3 A Dimensão MELHORA
A terceira dimensão diz respeito à percepção que os respondentes relataram quanto à
melhora experimentada pelos sujeitos após a unção. A dimensão foi previamente selecionada
com base nas reações à palavra indutora “melhoras”. A partir dessas reações, foram nomeadas
as categorias: “melhora física”; “melhora emocional ou espiritual”; “nenhuma melhora”; e
“piora”.
81
Tabela 3 – Melhora após a Unção
Dimensão 3: MELHORA
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Melhora física 7 4 “os sintomas
desapareceram” (2);
“um coração novo” (5);
“as dores diminuíram”
(9); “uma melhora
gradativa” (13); “tive um
grande alívio da dor”
(15); “alguma coisa
melhorou por causa da
oração poderosa do
pastor” (15); “as febres
começaram a baixar”
(22).
“ela não ficou mais
entubada, diminuiu a
quantidade de remédios
e as feridas também
foram aliviadas” (6); “a
infecção” (10); “uma
melhora incrível: ela
recebeu o alta e veio pra
casa... Ela trabalhava,
fazia tudo, não sentia
nada, nada, nada... ela
subia, descia,
trabalhava, lavava,
passava, cozinhava,
fazia tudo normal, não
tinha dor, não tinha
nada, nada, nada” (14).
Melhora espiritual ou emocional
1 7 “melhora espiritual” (3);
“a preocupação passou”
(3); “tranquilidade de
que Deus ‘tá’ dirigindo”
(18); “ficou animada,
mais confiante” (19).
“está mais disposta”
(11).
Sem melhora 1 5 “no outro dia, a gente
percebeu que ele não
melhorou e que a
doença continuava” (8).
“eu não vou dizer que eu
melhorei depois da
unção” (1); “não houve
alteração no quadro”
(17); “ela continuou do
mesmo jeito” (20). Piora 2 0 “até a data da unção os
exames dele estavam
todos bons... agora está
tudo alterado e ele está
morrendo” (12); “na
manhã seguinte, ele já
faleceu” (21).
Onze respondentes, isto é, a metade (50%), relataram melhora física, que incluiu,
entre outras coisas, alívio da dor, diminuição da febre, desaparecimento de alguns sintomas e
alta hospitalar. Oito menções (36%) relataram melhora emocional ou espiritual, percebida por
um aumento de confiança e disposição e uma maior tranquilidade diante das dificuldades de
saúde. Em seis menções (27%), os respondentes admitiram que os sujeitos não
experimentaram nenhuma melhora. O respondente 17, por exemplo, relatou que “não houve
alteração no quadro” de uma empresária septuagenária que lutava contra o câncer. Em duas
menções (9%), os respondentes constataram uma piora no quadro de saúde após a unção,
82
inclusive com o óbito do sujeito 21 no dia seguinte à realização do rito. Tratava-se de um
aposentado septuagenário que se encontrava acometido por um câncer. A outra menção se
referia a um motorista sexagenário que sofria da síndrome de Alzheimer. Segundo o
respondente 12, “até a data da unção os exames dele estavam todos bons”. Depois da unção,
no entanto, ficou “tudo alterado” e o sujeito deu evidências de que estava morrendo.
5.2.4.4 A Dimensão IMPORTÂNCIA
A quarta dimensão se voltou para a percepção que os respondentes relataram quanto
à importância atribuída pelos sujeitos à unção. A dimensão foi previamente selecionada com
base nas reações à palavra indutora “importância”. A partir dessas reações, foram nomeadas
as categorias: “expectativa de um milagre”; “esperança de cura”; “auxílio emocional ou
espiritual”; “separação para uma função espiritual”; “entrega ou resignação diante da morte”;
e “apoio para a família e amigos”.
Tabela 4 – Importância da Unção
Dimensão 4: IMPORTÂNCIA
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Expectativa de um milagre
1 3 “naquele momento, eu
acho que você fala
assim: ‘Senhor, eu
conduzi o carro até
agora, então agora é
sua vez’, e acho que
você permite que ele
faça os milagres” (4).
“a unção seria o ponto
[em] que Deus ia abrir o
meu caminho” (1); “sem
a unção eu não sei se
estaria aqui, porque foi
um milagre” (7); “a
gente ungiu porque ela
estava muito mal e o
médico deu dias de vida
pra ela” (14).
Esperança de cura 1 2 “a unção foi o momento
da virada na vida do
meu pai: ele não tinha
esperança, porque
ninguém mais dava
esperança p/ele porque
ele ia de mal a pior e,
quando foi ungido, sem
fazer nenhum novo
procedimento médico,
ele começou a melhor e
nunca mais teve isso”
(22).
“eu confio, eu não fui à
toa para essa unção, eu
fui na certeza, eu fui
confiando” (1); “é um
pedido nosso pra Deus”
(12).
Auxílio emocional ou espiritual
2 6 “uma forma de nós
reconhecermos nossa
dependência de Deus”
(2); “para ele, foi o
“Deixar Deus ser Deus”
(1); “um recurso a mais
que a gente tem por ser
filhos de Deus” (3);
83
sentimento de estar com
Deus em espírito e em
verdade” (5).
“confiança em
Deus”(11); “a gente
acabou ficando mais
tranquilo” (17); “a parte
emocional, espiritual da
gente é que recebe a
cura aí nesse momento”
(18).
Separação para uma função especial
1 0 “a gente é separado
para uma função
especial” (15).
Entrega/resignação 5 8 “você entrega o seu
problema pra Deus
então você fica aliviado
ciente de que você fez
tudo o que podia” (3); “a
unção eu acho que é o
ato físico, ou material,
ou visível, da entrega. E
você fala assim: ‘não
não tem mais o que
fazer, não tem mais pra
onde recorrer’; então, é
só Deus” (4); “eu acho
que a unção faz a gente
aceitar, entender e se
aproximar um pouco
mais da morte não como
uma coisa tão pesada”
(8); “está dizendo a Deus
o seguinte: ‘faça-se a
Tua vontade’” (13).
“porque assim, nós
estaríamos preparados
para as duas possíveis
situações, se ela
melhorasse ou se ela
falecesse” (6 e 20); “a
certeza de que Deus te
perdoou, que você pode
ir em paz, que os seus
pecados estão
perdoados” (9); “dá a
tranquilidade pra sentir
que, se eu for agora, ‘tô’
indo nas mãos de Deus”
(16); “procurei colocá-la
nas mãos de Deus
porque ela não podia
mais continuar como
estava, ela tinha que
descansar, precisava do
descanso divino” (19).
Apoio para a família e amigos
1 2 “meus pais
desenvolveram uma
profunda amizade com
Deus” (2).
“ajudar o enfermo e
aqueles que se
relacionam com ele”
(11).
Não sabe 0 1 “não entendi direito
ainda” (1).
Quatro respondentes (18%) disseram que a unção foi importante porque lhes
proporcionou a “expectativa de um milagre”. Trata-se de respondentes que lidavam com
situações críticas como doença cardíaca (1), traumatismo craniano (4), dengue (7) e câncer
(14). Três respondentes (13%) relataram que a unção trouxe um aumento no nível de
esperança ou confiança. Segundo o respondente 22, “a unção foi o momento da virada na vida
do meu pai: ele não tinha esperança, porque ninguém mais dava esperança para ele porque
ele ia de mal a pior e, quando foi ungido, sem fazer nenhum novo procedimento médico, ele
começou a melhor e nunca mais teve isso”. Diante de um quadro de câncer terminal, essa
declaração constitui um reconhecimento patente de que a esperança de cura constitui
importante fator contribuinte para a recuperação de um indivíduo que luta contra a morte.
Oito respondentes (36%) relataram que a unção proporciona cura emocional e espiritual. De
84
acordo com o respondente 18, “a parte emocional, espiritual da gente é que recebe a cura aí
nesse momento”. Um respondente (4%) sentiu que a unção foi uma separação para uma
função espiritual. Trata-se de um auxiliar administrativo de 34 anos de idade que estava às
voltas com um cálculo renal (15). Treze respondentes (59%) afirmaram que a unção contribuiu
para que os sujeitos se resignassem diante da morte ou do sofrimento. O sujeito 3, estudante
de 33 anos de idade, que não corria risco de vida, afirmou que a unção lhe deu a sensação de
“que fez tudo o que podia”. O sujeito 4 corrobora essa declaração com a afirmação de que “a
unção é o ato físico, ou material, ou visível, da entrega. E você fala assim: ‘não não tem mais o
que fazer, não tem mais pra onde recorrer’; então, é só Deus”. Essas são as palavras de um
pastor adventista, que foi ungido na infância, por causa de uma infecção generalizada. Elas
equivalem à lembrança do sujeito, agora com aproximadamente 50 anos de idade, de como a
família tratou sua experiência com a unção ao longo de sua vida. Não é de admirar que tenha,
eventualmente, escolhido uma carreira eclesiástica. O respondente 19 se refere à situação
crítica de uma senhora octogenária com uma grave deficiência cardíaca: “procurei colocá-la
nas mãos de Deus porque ela não podia mais continuar como estava, ela tinha que descansar,
precisava do descanso divino”. Pelo menos cinco outros respondentes (6, 8, 9, 16 e 20)
enfatizaram que a unção ajuda na aceitação da morte. O respondente 8, falando de um pastor
adventista de 51 anos de idade que sofria de câncer, afirmou: “eu acho que a unção faz a
gente aceitar, entender e se aproximar um pouco mais da morte não como uma coisa tão
pesada”. Além disso, três respondentes (13%) viram a unção como uma forma de apoio para a
família e amigos. O respondente 11, por exemplo, afirmou que ela ajuda “o enfermo e aqueles
que se relacionam com ele”. Apenas um respondente (4%), uma senhora aposentada de 57
anos de idade (sujeito 1), afirmou não entender a importância da unção.
5.2.4.5 A Dimensão DIABO
A quinta dimensão se voltou para a percepção que os respondentes relataram quanto
ao papel do diabo no processo de enfermidade. A dimensão foi previamente selecionada com
base nas reações à palavra indutora “diabo”. A partir dessas reações, foram nomeadas as
categorias: “a enfermidade como presença maligna”; “o diabo como causa da enfermidade”;
“a enfermidade como um ataque pessoal do diabo”; “a enfermidade como uma oportunidade
de tentação para o diabo”; “o diabo como participante indireto por causa do conflito entre o
bem e o mal”; e “a enfermidade como um processo natural sem o envolvimento do diabo”. A
inclusão da dimensão se justifica pela hipótese inicial de que a cosmovisão adventista do
sétimo dia guarde semelhanças com a crença animista de que a vida e os processos de
85
saúde/enfermidade consistam numa constante luta entre as forças do bem e os poderes do
mal.
Tabela 5 – Papel do Diabo
Dimensão 5: DIABO
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Presença maligna 0 1 “o diabo sempre está
presente” (1).
Causa da enfermidade 3 4 “ele é o causador do
pecado no planeta terra
e o pecado degenera a
vida; a enfermidade é
parte desse processo,
pois a doença é
resultado do pecado”
(2); “a enfermidade é
obra dele” (21).
“ele traz enfermidade”
(10); “o diabo colocou
esta doença nela” (14);
“toda doença que vem é
interferência do pecado,
o diabo querendo fazer
com que a gente sofra”
(18); “o diabo é
causador do sofrimento,
é o culpado da morte, é
o causador da maldade;
então, está sempre
próximo para atacar,
para trazer a doença, a
maldade e a morte, pois
o diabo é causador de
todo mal neste mundo”
(19).
Ataque pessoal 3 2 “o inimigo não queria
que ele trabalhasse” (5);
“satanás estava
atuando ali com ele,
tentando derrotar a
pessoa no último
momento” (8); “o
inimigo tenta realmente
destruir aquilo que
alguém faz de bom”
(13).
“é como se ela fosse
jogada numa moita de
espinhos por Satanás”
(10); “ele quer derrubar
a gente” (16).
Tentação 2 1 “tá acusando,
apontando: ‘você não
vale nada, fez tudo
errado, vai pro inferno’”
(12); “o inimigo fica
tentando... zombando:
‘não vale a pena’” (13).
“o diabo traz obstáculos
pra gente nos afastar de
Deus ou deixar de
acreditar nos planos de
Deus, deixar de acreditar
que Deus é um Deus de
amor, pra fazer com que
a gente se afaste de
Deus” (18).
Participação vaga 1 3 “em 2013 quebrou um
cristal dentro dele” (8).
“faz parte do conflito
entre o bem e o mal”
(17).
Sem envolvimento 3 4 “a atuação do ‘inimigo’
assim direta, não creio
“eu não posso falar do
diabo em si, mas da
86
que tenha... muitas das
nossas enfermidades
vêm pelos nossos
próprios pecados
(negligência)” (3).
minha negligência em
vários pontos” (1); “não
sei se chegamos a
perceber alguma coisa
assim” (11). Sem menção 1 0 (22).
Apenas uma menção (4%) foi feita à enfermidade como resultado de uma presença
maligna e sobrenatural na vida da pessoa. Trata-se da declaração do sujeito 1, uma senhora de
57 anos, com problemas cardíacos. Sete respondentes (31%) foram mais enfáticos, apontando
o diabo como causa da enfermidade. Trata-se de declarações gerais que consideram o diabo
como causador de pecado, sofrimento, doença e morte no mundo. Outras cinco menções
(22%) foram ainda mais enfáticas considerando que a enfermidade era um ataque pessoal do
diabo à pessoa que foi ungida. Três menções (13%) consideraram a enfermidade como uma
oportunidade de tentação para o diabo. Ou seja, não tanto que ele se preocupe em infligir
problemas físicos à pessoa, mas que usa isso para conseguir o seu verdadeiro intento que é a
perdição da pessoa por seu afastamento de Deus. Quatro menções (18%) re referiram a uma
participação mais vaga do diabo, apenas como resultado indireto do conflito entre o bem e o
mal. O respondente 17 chegou a usar literalmente essa expressão: “faz parte do conflito entre
o bem e o mal”. Por outro lado, sete respondentes (31%) fizeram menção à enfermidade como
um processo natural sem o envolvimento do diabo. O mesmo sujeito 1, que reconheceu uma
associação entre o mal e os processos de enfermidade, logo em seguida declarou que a doença
era o resultado natural de suas próprias escolhas e decisões. Essa senhora de 57 anos de idade
afirmou: “eu não posso falar do diabo em si, mas da minha negligência em vários pontos”.
Finalmente, um respondente (22) não fez nenhuma menção ao diabo. Infelizmente, essa foi a
entrevista mais curta do corpus, com duração pouco superior a cinco minutos, realizada no
saguão de um hotel em Águas de Lindoia, interior de São Paulo e a entrevistadora, na pressa,
não usou a palavra indutora “diabo”. Por essa razão, é impossível afirmar que o respondente
não considerasse importante a participação do diabo nos processos de enfermidade.
5.2.4.6 A Dimensão DEUS
A sexta dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca do
papel de Deus nos processos de enfermidade e cura. A dimensão foi previamente selecionada
com base nas reações à palavra indutora “Deus”. A partir dessas reações, foram nomeadas as
categorias: “a cura como resultado da presença de Deus”; “Deus como causa da enfermidade”;
“a cura como resultado de um relacionamento pessoal com Deus ou de um propósito de vida
por Ele conferido”; “a cura como resultado da paz, consolo e/ou proteção concedidos por
87
Deus”; “a crença em Deus como auxílio para a família do enfermo”; “Deus como propiciador
de cura”; “Deus como operador de milagres”; “Deus como fonte de instrução para a unção e
para a cura”; e “Deus como outorgador do descanso da morte”.
Tabela 6 – Papel de Deus/Jesus
Dimensão 6: DEUS
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Presença 2 4 “eu vi a mão de Deus
nos pequenos detalhes”
(4); “na unção, Jesus
desceu naquela noite,
em algum momento, e
visitou meu filho”.
“Deus esteve e está
presente” (1 e 14);
“Deus esteve o tempo
todo com ela” (9).
Causa da doença 1 1 “Deus permitiu essa
doença na minha
família” (2).
“a doença foi um meio
de Deus tirar ela da vida
que ela tinha, da vida
que ela tava, de
sofrimento, de angústia,
de problema, de querer
chegar até Deus” (9).
Relacionamento pessoal e propósito de vida
4 2 “a participação de Deus
é muito mais profunda
do que só curar a
doença, Deus acabou
dando um ministério na
minha vida” (2); “Ele
usou essa situação pra
ter uma nova história
conosco” (2); “tinha um
quadro de Jesus no
quarto, e ele se
encurvou todo, meio de
ponta cabeça pro
quadro e começou a
conversar com Jesus”
(4); “Deus tinha um
plano para ele” (22).
“O Deus que eu adoro é
um Deus de propósito na
nossa vida, Ele quer o
céu pra nós” (1); “ter
intimidade com Deus é o
que eu tenho pedido pra
Ele” (1).
Paz, consolo e proteção 5 3 “Deus traz um alívio,
uma paz” (3); “Jesus
desceu e pôs a mão no
meu filho” (4); “o curou
da mágoa” (8); “me fez
forte, se não eu ia cair
no choro” (12);
“transformou a
maldição em bênção”
(21).
“é como se ela fosse
jogada numa moita de
espinhos por Satanás e
Deus pusesse uma
coberta para os espinhos
não machucarem muito” (10); “nós ficamos tão
conformados, eu só
chorei no dia do funeral”
(16). Ajuda para a família 1 2 “Deus pegou na mão da
gente e orientou a
gente” (21).
“Ele cuidou muito bem
da nossa família” (6);
“sabe o que que nós
fizemos, eu com a minha
88
filha e minha neta e meu
neto e o meu genro?
cantamos os hinos de
que ela gostava” (16). Cura 0 3 “Deus não precisa que
eu tome oito copos de
água, que eu caminhe,
Ele pode me curar
imediatamente” (1);
“Deus deu primeiro uma
cura pra ela sentir que
realmente estava com
ela, na primeira crise da
doença, quando ela
achou que não tinha 15
dias de vida, mas viveu
mais de três meses” (14).
Milagre 0 3
“Deus ouve e pode
operar um milagre” (1);
“não tem como ter sido
outra coisa a não ser
Deus” (7); “o maior
milagre é que tinha
muito medo de sofrer,
ela pedia muito a Deus
que não sofresse, e
minha mãe não sentiu
dor em momento
nenhum” (14).
Instrução 0 1 “Deus disse que,
havendo alguém doente,
procure os presbíteros
da igreja para que
venham e orem (11)”.
Morte (descanso) 1 1 “ele sabe quando a
pessoa deve descansar”
(21).
“Deus deu descanso pra
ela” (19).
Não sabe 1 0 “eu ainda não
compreendi” (15).
Seis respondentes (27%) entenderam a cura como resultado da presença genérica de
Deus. Eles não especificaram exatamente como Deus atua para conceder cura, mas disseram
ver “a mão de Deus nos pequenos detalhes” (respondente 4). Dois respondentes (9%) não
concebem necessariamente os processos de enfermidade e cura como fazendo parte de um
conflito cósmico entre as forças do bem e do mal. Para eles, Deus permite a enfermidade a fim
de que um bem maior seja alcançado. É como se Deus usasse a doença para conseguir a
atenção do enfermo: “a doença foi um meio de Deus tirar ela da vida que ela tinha, da vida
que ela tava, de sofrimento, de angústia, de problema, de querer chegar até Deus”. O
informante 9 fez essa declaração em relação a uma funcionária dos correios, de 48 anos de
89
idade, solteira, que sofria de leucemia. Por outro lado, outras seis menções (27%) fizeram
referência não ao fato de que Deus causa ou permite a enfermidade para alcançar seus
objetivos, mas que se aproveita da enfermidade para, por intermédio da cura, se aproximar
das pessoas em seu momento de vulnerabilidade e desenvolver um relacionamento mais
íntimo com elas, dando-lhes um propósito de vida. Oito respondentes (36%), o maior
percentual, entendem que o papel de Deus não é tanto promover a cura por meio de meios
sobrenaturais, mas conceder paz e consolo aos enfermos, mitigando um pouco do seu
sofrimento. O informante 10, por exemplo, usou um símile bastante descritivo para explicar
sua perspectiva. Ao se referir à situação de uma professora de 79 anos de idade, que lutava
contra uma infecção, afirmou: “é como se ela fosse jogada numa moita de espinhos por
Satanás e Deus pusesse uma coberta para os espinhos não machucarem muito”. Mesmo nessa
perspectiva mais humanista, que atribui a Deus um papel secundário no processo de cura, é
possível, porém, perceber a presença de uma cosmovisão de conflito cósmico. Três
respondentes (13%) assinalaram a importância da crença em Deus como fator de auxílio para a
família do enfermo. Outros três respondentes (13%) compreendem que Deus é quem opera a
cura, mas não se referiram especificamente à necessidade de milagres para que isso aconteça.
Entretanto, três respondentes (13%) foram enfáticos em atribuir a Deus a capacidade de
operar milagres, entendendo que a cura, quer definitiva, quer temporária, que os sujeitos
haviam experimentado era o resultado direto de uma intervenção miraculosa do poder divino.
Apenas um respondente (4%), o informante 11, entende que a participação de Deus inclui
conceder instrução para que o sujeito recorra à unção como forma de obter a cura. Dois
respondentes (9%) entendem que o papel de Deus é conceder o descanso da morte, a unção
sendo instrumental para isso. Nos dois casos, os informantes 19 e 21 se referem a sujeitos que
não sobreviveram à enfermidade que os debilitava. O sujeito 19 lutava contra uma grave
enfermidade cardíaca e o sujeito 21 sofria de câncer. Finalmente, apenas um respondente
(4%), o sujeito 15, um homem de 34 anos de idade que padecia de um cálculo renal, não soube
explicar que papel atribuía a Deus no processo.
5.2.4.7 A Dimensão CURA
A sétima dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca da
cura que os sujeitos experimentaram ou desejaram experimentar. A dimensão foi previamente
selecionada com base nas reações à palavra indutora “cura”. A partir dessas reações, foram
nomeadas as categorias: “a cura como processo físico, emocional e espiritual”; “a cura como
vontade de Deus”; “a cura como independente da melhora”; “a cura como perdão”; “a cura
como mudança no estilo de vida”; e “a cura como milagre”.
90
Tabela 7 – Percepção de Cura
Dimensão 7: CURA
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Processo físico, emocional e espiritual
1 2 “oramos p/o perdão dos
pecados e a cura do
enfermo” (11).
“se você não está bem
emocionalmente, o seu
físico reage o contrário
e, espiritualmente, aí
pronto, você precisa de
Deus, eu creio nisso em
todo o processo de cura
físico e espiritual” (1); “a
parte emocional,
espiritual da gente é que
recebe a cura” (18).
A vontade de Deus 1 1 “a cura física é resultado
da vontade de Deus” (3).
“a cura vem de Deus; eu
temo que as pessoas
falem que [a morte] foi
vontade de Deus, eu não
acredito nisso: pra mim,
Deus queria que a gente
vivesse eternamente”
(17).
Independente da melhora
1 1 “eu não vejo a cura pela
melhora; eu vejo assim:
meu filho tem uma
responsabilidade, que é
responder o chamado de
Deus pro que for,
quando for e pra onde
for” (4).
“o objetivo da unção
não é só a cura” (6).
Perdão 1 0 “foi curado da mágoa”
(8).
Mudança de estilo de vida
1 0 “envolve uma mudança
no estilo de vida: depois
que eu sarei, minha mãe
nunca mais me deu
alimento cárneo” (2).
Milagre 3 1 “o milagre da cura” (13);
“um milagre, mas não
exatamente do jeito que
a gente queira” (15);
“até hoje não há cura
p/essa doença, mas
Deus operou um
milagre” (22).
“Deus deu a cura p/ela
na primeira crise da
doença quando ela
achou que não tinha 15
dias de vida, mas ainda
viveu mais de 3 meses”
(14).
Sem menção 1 5 (12). (5, 7, 9, 10 e 20).
Três respondentes (13%) conectaram a cura a um processo espiritual e emocional com
impacto físico. Nessa perspectiva, a cura espiritual e emocional antecede a cura física e é
imprescindível para ela. Outros dois respondentes (9%) conectaram a cura à vontade expressa
91
de Deus. Nessa perspectiva, Deus quer que o doente fique curado, dependendo deste a
apropriação da vontade com a decisão de permitir que o poder divino atue em seu caso. Dois
respondentes (9%) desvincularam a cura da melhora física. Em sua opinião, a cura espiritual é
que se torna importante, pois ela permite que o doente cumpra o propósito de Deus para sua
vida. Sendo assim, o objetivo da unção deixa de ser exclusivamente a melhora física. Em outro
caso (4%), o respondente 8 mencionou que a cura foi o perdão, que o sujeito conseguiu
estender àqueles que o magoaram. Um respondente (4%) enfatizou que a cura envolve
mudanças no estilo de vida. Quatro respondentes (18%) entendem a cura como um milagre
realizado por Deus. Desses, o sujeito 13 relatou um caso verdadeiramente extraordinário, em
que várias circunstâncias inusitadas contribuíram para que sua vida fosse preservada diante de
um câncer agressivo com algumas metásteses. Por outro lado, seis respondentes (27%) não
fizeram qualquer menção à cura, mesmo quando a entrevistadora usava a palavra indutora.
No entanto, em um caso, a entrevista com o respondente 5, a entrevistadora se esqueceu de
empregar a palavra indutora “cura” e, possivelmente por essa razão, o respondente tampouco
fez referência a ela.
5.2.4.8 A Dimensão SUCESSO
A oitava dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca do
sucesso do rito da unção. A dimensão foi previamente selecionada com base nas reações à
palavra indutora “sucesso”. A partir dessas reações, foram nomeadas as categorias: “sucesso
emocional”; “sucesso em alterações no estilo de vida”; “sucesso espiritual”; “sucesso na cura
física total ou parcial”; “sucesso para a família”; “sucesso como milagre”; e “fracasso”.
Tabela 8 – Percepção de Sucesso
Dimensão 8: SUCESSO
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Sucesso emocional 2 6 “a partir do momento
que você tem essa paz
que Deus dá, isso pra
mim já funcionou,
entendeu?” (3);
“funcionou: depois da
unção, era como se
tivessem dado um
calmante pra ele” (21).
“agora eu tô me
libertando” (1); “todos
os dias eu acordo com
esperança agora” (1); “a
paz que eu senti depois
da unção já me
capacitou a enfrentar o
resultado” (1); “ela
sentiu essa paz de estar
perdoada, que Deus
pode me levar, se Ele
quiser, agora” (9).
92
Sucesso em alterações no estilo de vida
1 0 “a unção não é somente
para a cura física
imediata, mas ela
também abre
orientação, abre
tratamentos, abre o
despertar pra uma
mudança de estilo de
vida” (2).
Sucesso espiritual 2 1 “Deus deixou a unção
como uma forma
didática de mostrar que
você está entregando
esse caso nas minhas
mãos, eu quero que você
tenha ciência desse dia
pra você lembrar que,
nesse dia, ao você ser
ungido, começou uma
manifestação
sobrenatural na sua
vida” (2); “ele despertou
para estar mais ligado a
Deus e apegado, de
fato” (5).
“porque reforça a fé da
pessoa, a confiança da
pessoa, e a pessoa se
coloca nas mãos de Deus
e, como Deus queira, vai
acontecer” (19).
Sucesso na cura física total ou parcial
3 4 “no meu caso funcionou
para a vida; a unção
sempre funciona, em
alguns casos, para a
vida e, em outros, para o
descanso” (13); “não
posso dizer que estou
100% curado, mas que
não tenho problemas
hoje” (15); “não precisou
nunca mais tomar
remédio nenhum e hoje
está c/92 anos e nunca
mais teve problema de
sangue, nem doença
nenhuma até hoje” (22).
“não estaria viva se não
fosse a unção, talvez”
(10); “saúde física o
médico disse que ela
tem” (11); “porque eu
‘tô’ aqui ainda [risos]”
(18); “porque a unção é
oito ou oitenta [risos]”
(20).
Sucesso para a família 0 2 “funcionou para a
família” (16).
Sucesso como milagre 3 2 “foi um milagre: a
ciência não conseguiu
explicar essa melhora
surpreendente” (5);
“muita gente orou pelo
meu padrasto e, quando
ele melhorou, o milagre
foi visto” (5); “o médico
estava irritado porque a
unção estava atrasando
a cirurgia; depois, ele
reconheceu, diante de
outro médico, que valeu
a pena esperar pela
“se eu não tivesse
recebido a unção, eu
não teria recebido a
transfusão e, sem a
transfusão, eu teria
morrido” (7).
93
unção porque, enquanto
isso, ele descobriu a
verdadeira causa que
estava me levando a
óbito” (13).
Fracasso 1 0 “acho que não
funcionou” (12).
Oito respondentes (36%) afirmaram que a unção proporcionou algum tipo de apoio
emocional aos sujeitos. Um respondente (4%) afirmou que a unção o ajudou a fazer mudanças
em seu estilo de vida. Três respondentes (13%) relataram benefícios espirituais. Sete
respondentes (31%) compreenderam que a unção contribuiu para a cura física, total ou
parcial, dos sujeitos. Dois respondentes (9%) relataram benefícios para a família. Cinco
menções (22%) atribuíram à unção a capacidade de realizar milagres na vida dos sujeitos.
Apenas um respondente (4%) considerou que a unção fracassou, não trazendo nenhum
benefício ao sujeito. Trata-se do caso de um motorista de 67 anos de idade que estava
acometido pelo mal de Alzheimer.
5.2.4.9 A Dimensão PASTOR
A nona dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca do
papel do cuidador espiritual no processo de unção e cura dos sujeitos. A dimensão foi
previamente selecionada com base no índice “pastor”, termo pelo qual os participantes
geralmente se referem à pessoa que tem essa atuação. O questionário da entrevista não
continha nenhuma palavra indutora que levasse os respondentes a mencionar o papel do
cuidador espiritual. Contudo, na pré-análise, ficou evidente que esse tema recebeu destaque
da parte dos respondentes e, por isso, acabou incluído como dimensão de análise. A partir das
menções ao seu papel no rito da unção e cura, foram nomeadas as categorias: “convite”;
“orientações sobre o rito”; “promessa de cura”; “oficiação do rito”; “amizade”; “fornecimento
do óleo”; “confidência”; “acompanhamento no hospital ou no funeral”; “comunicação do
falecimento”; e “papel negativo”.
Tabela 9 – Papel do Cuidador Espiritual
Dimensão 9: CUIDADOR ESPIRITUAL
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Convite à unção 2 1 “o pastor foi lá e disse
que ele tinha que fazer
uma oração se
entregando a Deus” (5);
“o pastor falou na
unção” (1).
94
“o pastor disse que,
quando se está com uma
doença, precisa ser
ungido” (15).
Orientação sobre o rito 1 3 “o pastor me deu uma
apostila” (3).
“o pastor me orientou”
(1); “o pastor falou bem
pertinho do ouvido,
porque o último sentido
que a pessoa perde é a
audição” (16); “foi muito
bem explicado pra nós
pelo pastor” (17).
Promessa de cura 0 1 “o pastor foi tão
enfático em falar que
Deus pode me curar
imediatamente” (1).
Presença ou oficiação da unção
5 16 “o pastor colocou óleo...
mas nem me lembro
qual era o pastor” (12);
“depois da explicação, o
pastor fez uma oração
especial e derramou um
óleo” (15).
“três pastores fizeram a
unção” (7); “tinha cinco
pastores” (8); “o pastor
executou a unção” (11);
“o pastor fez um
sermonete e passou óleo
na testa dela” (14); “o
pastor que ungiu não
era nem pastor nosso,
pois foi em janeiro e o
pastor ‘tava’ de férias”
(16); “foi ungida por dois
pastores, conforme a
igreja recomenda” (19).
Amizade 1 0 “minha mãe tinha
chamado um pastor que
era muito amigo deles”
(5).
Fornecimento do óleo 0 3 “o pastor fulano levou o
óleo” (6, 8 e 17). Confidência 1 2 “os pastores
perguntaram se, mesmo
debilitado, ele queria
conversar sobre essas
mágoas e ele disse que
sim” (8).
“o pastor foi lá e ela
contou tudo da vida
dela” (9).
Acompanhamento durante cirurgia ou funeral
1 1 “o pastor desceu até o
centro cirúrgico” (13).
“o pastor que ungiu ela
me deu a sugestão do
túmulo” (19).
Comunicação do falecimento
0 1 “o pastor teve que dizer,
infelimente” (20).
Menção negativa 1 0 “ele não gostava de
pastor” (21).
Sem menção 1 2 (22). (10 e 18).
Três respondentes (13%) relataram que foi o cuidador espiritual que convidou os
sujeitos a participarem do rito da unção. Isso corresponde, de fato, a um percentual
relativamente baixo, sugerindo que, em geral, a unção não é ministrada em função da
95
iniciativa do clero, mas dos enfermos ou de seus amigos e familiares. Quatro respondentes
(18%) mencionaram que, antes ou durante o rito, o cuidador espiritual deu orientações a
respeito da forma como a cerimônia deveria ser realizada. O sujeito 1 declarou que recebeu do
cuidador espiritual o equivalente a uma promessa de que seria curado; entretanto, a grande
maioria das menções (95%) apontou que o papel do pastor era simplesmente oficiar o rito.
Como três respondentes (13%) nunca fizeram menção ao cuidador espiritual (18, 18 e 22), isso
significa que os demais respondentes o mencionaram mais de uma vez. Um respondente (4%)
fez referência à amizade existente entre o sujeito e o cuidador espiritual. Três respondentes
(13%) atribuíram ao cuidador espiritual a responsabilidade de fornecer o óleo para a unção.
Três outros respondentes (13%) se referiram ao fato de que os sujeitos usaram a oportunidade
para fazer confidências ao cuidador espiritual, desabafando com respeito às mágoas e os
problemas por eles enfrentados. O informante 8 afirmou que, mesmo debilitado por conta do
estado terminal do câncer que o acometia, o sujeito optou por conversar a sós com o cuidador
espiritual e lhe falar acerca de uma grande mágoa que o afligia. O respondente 19 afirmou que
o cuidador espiritual que havia realizado a unção compareceu também ao funeral, inclusive
ajudando a cuidar dos preparativos para o mesmo. O respondente 13 disse que ele esteve
presente no hospital no momento de uma importante cirurgia. O informante 20 relatou que a
família passou ao cuidador espiritual a responsabilidade de comunicar aos amigos a notícia do
falecimento do sujeito. Apenas o respondente 21 fez uma menção negativa ao cuidador
espiritual. Nesse caso, o sujeito, um aposentado de 76 anos de idade que sofria de câncer,
disse que não gostava de pastor. Trata-se, porém, de uma menção ao primeiro contato que o
sujeito teve com o cuidador espiritual, essa atitude tendo sofrido uma drástica alteração após
a unção. Outro atenuante para essa menção negativa é o fato de que o aposentado era um dos
dois únicos sujeitos da pesquisa a não pertencer à religião adventista. Deve-se levar em
consideração que todos os cuidadores espirituais envolvidos no rito de unção investigado
nesta pesquisa (que variam de um a cinco por rito) eram credenciados pela IASD.
Naturalmente, era de se esperar que uma pessoa à beira da morte tivesse restrições ao
contato com um clérigo de uma religião que não era a que professava.
5.2.4.10 A Dimensão IGREJA
A décima dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca do
papel da igreja no processo de unção e cura dos sujeitos. A dimensão foi previamente
selecionada com base no índice “igreja”. O questionário da entrevista não continha nenhuma
palavra indutora que levasse os respondentes a mencionar o papel da igreja. Contudo, na pré-
análise, ficou evidente que esse tema recebeu destaque da parte dos respondentes e, por isso,
96
acabou incluído como dimensão de análise. A partir das menções ao seu papel no rito da
unção e cura, foram nomeadas duas categorias principais: “ensinamentos, hierarquia e
autoridade” e “apoio espiritual”.
Tabela 10 – Papel da Igreja
Dimensão 10: IGREJA
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Ensinamentos, hierarquia e autoridade
3 3 “eu resolvi levar o
problema pra Deus
porque é um projeto que
a igreja tem” (3); “a
doutrina de saúde da
igreja” (3); “ele foi
ungido com óleo,
exatamente como a
igreja recomenda” (22).
“Deus disse que,
havendo alguém doente,
procure os presbíteros
da igreja para que
venham e orem (11)”;
“conforme a igreja
recomenda” (19); “é
uma cerimônia da
igreja” (20).
Apoio espiritual 1 2 “chamei a igreja” (12).
“a igreja estava orando”
(16); “pedi muita oração
na igreja” (16).
Menção incidental 3 4 “parentes que estavam
fora da igreja” (13); “ia
à igreja com a gente”
(21).
“eu me dediquei demais
pra filhos, pra casa, pra
igreja” (1).
Sem menção 4 4 (2, 4, 8 e 15). (9, 10, 14 e 18).
Embora com várias menções à igreja, as categorias dessa dimensão foram muito
menos significativas do que a da dimensão “cuidador espiritual” a ela análoga. Oito
respondentes (36%) sequer mencionaram a igreja durante as entrevistas. Sete respondentes
(31%) fizeram menções apenas incidentais, como, por exemplo, o fato de a família do sujeito
frequentar a igreja. Isso ocorre, por exemplo, com o sujeito 21, que não era adventista, mas ia
ocasionalmente àquela igreja, acompanhando a família que, por sua vez, era adventista. Seis
menções (27%) se referiram à autoridade da igreja, cuja doutrina os sujeitos seguiam. Isto é,
vários sujeitos foram ungidos porque desejaram cumprir a recomendação da igreja de que os
enfermos devem ser ungidos. Três respondentes (13%) observaram que receberam apoio
espiritual da igreja, principalmente por meio das orações dos membros e sua disponibilidade
para conversar com eles.
5.2.4.11 A Dimensão MÉDICO
A décima primeira dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram
acerca do papel do médico no processo de cura dos sujeitos. A dimensão foi previamente
97
selecionada com base no índice “médico”. O questionário da entrevista não continha nenhuma
palavra indutora que levasse os respondentes a mencionar o papel do médico. Contudo, na
pré-análise, ficou evidente que esse tema recebeu destaque da parte dos respondentes e, por
isso, acabou incluído como dimensão de análise. Além disso, com a inclusão do papel do
cuidador espiritual como nona dimensão, fez-se necessário, a título de comparação, incluir
também uma dimensão acerca da participação do médico. A partir das menções a esse papel
no cuidado e cura dos sujeitos, foram nomeadas seis categorias principais: “papel secundário”;
“insegurança”; “instrumento de Deus”; “sensação de impotência”; “insensibilidade” e
“diagnóstico e medicação”.
Tabela 11 – Papel do Médico
Dimensão 11: MÉDICO/DOUTOR
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Papel secundário 2 2 “não foi remédio e nem
cirurgia que o fez
melhorar” (5); “Deus é
que dá sabedoria para
os médicos” (13).
“roguei que Deus
dirigisse a minha vida,
mostrasse um caminho
mais excelente do que o
caminho que eu tô
seguindo de médicos”
(1); “os médicos não
sabem de nada” (14).
Insegurança 1 1 “os médicos estavam
perdidos” (13).
“eu não estou segura
com o médico da minha
cidade” (1).
Instrumento de Deus 3 1 “o médico já estava lá
pronto, com a equipe
pronta, ele ia para a UTI
e não precisou... Então
assim, eu vi a mão de
Deus” (4); “os médicos,
concordaram que foi um
milagre” (5); “todos os
médicos que cuidaram
do meu caso são
unânimes em dizer que
algo sobrenatural
ocorreu... foi Deus quem
agiu” (13).
“foi Deus que colocou o
doutor Fulano no meu
caso” (1);.
Sensação de impotência 7 1 “o médico decretou pra
minha mãe que eu não
tinha mais como viver
por causa do estado de
coma” (2); “o médico
disse que não tinha
muito o que fazer” (2);
“os médicos se reuniam
todos os dias para ver o
“em momento nenhum
ela acreditava que ela
estava com câncer. Ela
falava: - “Que nada! Os
médicos não sabem de
nada” (14).
98
que iam fazer com ele”
(5); “a médica voltou
para conversar com a
minha mãe e disse que
não sabia o que tinha
acontecido” (5); “os
médicos não sabiam o
que fazer” (5); “os
médicos não sabem
explicar como aquilo
aconteceu” (5); “o
médico demorou 12 dias
p/descobrir” (13).
Falha em procedimentos ou diagnósticos
7 1 “os médicos não deram
um bom diagnóstico”
(3); “não tinha médico
disponível” (4 e 19); “a
médica não viu a fratura
de crânio dele” (4); “o
médico sem perceber
cortou o ureter” (13); “o
médico implantou
errado: o cateter foi p/o
fígado em vez de para a
porta do coração” (13);
“o gás mostarda é um
gás usado usado na
primeira guerra mundial
p/matar pessoas; mas
eles achavam que podia
matar o câncer do
sangue, então eles
chegaram a aplicar isso
no meu pai, mas nada
disso deu resultado”
(22).
“os médicos me
passaram na frente da
fila, mas os médicos não
podem fazer isso” (7).
Diagnóstico e medicação 6 5 “o médico disse que ele
ia ter que ir p/a cirurgia”
(4); “o médico disse que
talvez ele teria que
entrar numa fila de
transplante de coração”
(5); “o médico falou: -
Esse câncer tem cara de
meses e o câncer
acontece por três
razões: decepção, susto
ou estresse” (8); “o
médico dava bastante
[medicamento]” (13); “o
médico disse: - O câncer
é mais agressivo do que
a gente imaginava” (13);
“o médico deu uma
expectativa de vida de
um mês” (21).
“disse que não
acreditava que ela sairia
daquela quadro” (10); “o
médico deu dias de vida
p/ela” (14); “o médico
tinha desenganado”
(14); “o médico disse: - O
AVC foi isquêmico” (16);
“o médico viu e falou: -
Vai precisar internar”
(16).
Insensibilidade 5 1 “a médica até usou uma “o médico veio e contou
99
expressão que a minha
mãe ficou bem triste”
(5); “ele está morrendo;
como, doutor, o senhor
me fala uma coisa
dessas?” (12); “o médico
não diz o que ele tem”
(12); “o médico dizia que
já tinha passado o
tempo dele ficar no
hospital, como se fosse
um hóspede” (12).
pra mim, eu não sei o
termo, não é eutanásia,
é um termo parecido
com eutanásia... que se
ela precisasse ser
socorrida, que eles não
socorreriam que ela
teria uma morte digna”
(10);.
Menção incidental 2 3 “eu argumentava muito
c/os médicos algumas
coisas c/as quais eu não
concordava” (13); “hora
marcada c/o médico”
(19).
“fomos ao médico” (11);
“ia pro médico” (16);
“ele era médico” (20).
Sem menção 1 4 (15). (6, 9, 17 e 18).
O que espanta nas menções à participação do médico no processo de cura é a forma
negativa como os respondentes se referem a ela. Isso pode até ser injusto para esse
profissional da saúde, mas, nesses casos de pacientes em geral às portas da morte, o médico é
muito menos favoravelmente apreciado como personagem positivo na promoção do bem-
estar e cura dos sujeitos, em comparação com as menções ao cuidador espiritual. Quatro
respondentes (18%) lhe atribuíram um papel nitidamente secundário. Um desses
respondentes declarou que o sujeito 14, uma senhora de 76 anos de idade que lutava contra
um câncer, chegava a afirmar que “os médicos não sabem de nada”. Não é de admirar que
dois respondentes (9%) em outra categoria tenham dito que não sentiam segurança nos
médicos. Mesmo quando se trata de uma menção positiva em relação à atuação médica, esse
profissional é descrito simplesmente como um “instrumento de Deus”. Para os quatro
respondentes (18%) que sugeriram isso, “foi Deus quem agiu”, conforme afirma o sujeito 13.
De modo geral, parece que os respondentes entendem que o papel do médico se limita ao
diagnóstico e à medicação, a cura dependendo quase que totalmente da atuação de Deus e da
fé do doente. Geralmente isso envolve um diagnóstico ou prognóstico de cura e uma
estimativa do tempo de vida restante, fatos sentidos como desagradáveis pelos respondentes.
De fato, onze menções (50%) se situam exatamente nessa categoria. Além dessas, oito outras
menções (36%) criticam os médicos justamente por falharem em seus diagnósticos,
procedimentos e prognósticos. São queixas graves que incluem a indisponibilidade de médicos
(4 e 19), mas se referem a aspectos ainda mais negativos: “a médica não viu a fratura de crânio
dele” (4); “o médico, sem perceber, cortou o ureter” (13); “o médico implantou errado: o
cateter foi para o fígado em vez de para a porta do coração” (13). Uma dessas queixas se
100
refere a uma prática, antes comum, que agora é condenada. Falando de um tratamento de
câncer na década de 50, o informante 22 afirmou: “o gás mostarda é um gás usado usado na
primeira guerra mundial para matar pessoas; mas eles achavam que podia matar o câncer do
sangue, então eles chegaram a aplicar isso no meu pai, mas nada disso deu resultado”. Por
isso, pode-se dizer que predominam as menções negativas em relação aos médicos. Seis
respondentes (27%) reclamaram da insensibilidade da equipe médica e oito (36%) disseram
que os médicos transmitiam uma sensação de impotência. Cinco menções (22%) foram
meramente incidentais e se referem principalmente a declarações de que os sujeitos
procuraram auxílio médico. Uma delas revela, porém, que, mesmo incidentalmente, algumas
atitudes médicas podem causar antipatia: o sujeito 13, em luta contra um câncer de cólon com
métastese no fígado, afirmou que argumentava muito com os médicos em relação a
procedimentos com os quais não concordava. De fato, por uma falha médica, ele acabou
sofrendo uma colostomia desnecessária. Conforme ele explica, os médicos não notaram que,
após a primeira cirurgia do câncer, a urina estava passando para o abdome, o que causou uma
peritonite, que levou à septicemia, que causou a anasarca que exigiu a colostomia. Desde que
foi ungido, ele já sobrevive ao câncer há quatro anos, mas carrega consigo a desagradável
sensação de que os médicos cometeram falhas que tornaram sua luta ainda mais difícil. Só
cinco respondentes (22%) não fizeram menção ao médico ou a sua equipe em momento
nenhum da entrevista. Ou seja, os respondentes não negam, nem poderiam negar, o papel de
protagonistas aos médicos que cuidaram dos sujeitos. No entanto, sobre o cuidador espiritual
incide uma luz muito mais benigna do que aquela que repousa sobre o médico.
5.2.4.12 A Dimensão HOSPITAL
A penúltima dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca
do papel do hospital no processo de cura dos sujeitos. A dimensão foi previamente
selecionada com base no índice “hospital”. O questionário da entrevista não continha
nenhuma palavra indutora que levasse os respondentes a mencionar o papel do hospital.
Contudo, na pré-análise, ficou evidente que esse tema recebeu destaque da parte dos
respondentes e, por isso, acabou incluído como dimensão de análise. Além disso, com a
inclusão do papel da igreja como décima dimensão, fez-se necessário, a título de comparação,
incluir também uma dimensão acerca da participação do hospital. A partir das menções a esse
papel no cuidado e cura dos sujeitos, foram nomeadas três categorias principais: “menção
negativa”; “espaço de pregação”; e “local de infecção”.
101
Tabela 12 – Papel do Hospital
Dimensão 12: HOSPITAL
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Ambiente negativo 0 6 “acabou fugindo do
hospital” (6); “ela não
queria ir p/o hospital”
(14); “não quero voltar
p/o hospital” (14);
“faleceu no hospital”
(16); “cada vez que eu ia
p/o hospital, as crianças
ficavam naquela
incerteza se eu ia voltar”
(18).
Espaço de pregação 3 0 “ele começou a pregar
no hospital” (5); “e Deus
lhe falou: - Faça desta
cama de hospital o seu
púlpito” (8); “faça
acontecer alguma coisa
no hospital que não
ocorre durante todo este
tempo que eu estou
aqui” (12).
Local de infecção 1 1 “estava c/uma bactéria
hospitalar
multirresistente” (13).
“ela pegou infecção
hospitalar” (6).
Menção incidental 5 5 “fiquei uns três meses no
hospital” (2); “no
hospital, fizeram os
exames” (22); “nunca
mais voltou p/o
hospital” (22).
“eu recebi alta do
hospital” (7).
Sem menção 3 2 (3, 11 e 15). (1 e 9).
Compreensivelmente, quando mencionado, o hospital foi citado pelos respondentes,
em geral, num contexto negativo. Dois respondentes (9%) o mencionaram como um local onde
os sujeitos adquiriram algum tipo de infecção. Outras seis menções (27%) o consideraram um
ambiente negativo, expressando seu desejo de voltar para casa ou de não retornar ao hospital.
O respondente 6 relata, inclusive, que o irmão do sujeito 6 (uma senhora católica de 75 anos
de idade), que estava internado no mesmo hospital que a irmã, chegou a fugir de lá, depois
que esta faleceu por causa de um grave problema cardíaco. Cinco respondentes (22%) nunca
mencionaram a palavra “hospital” curante as entrevistas (1, 3, 9, 11 e 15). Dez menções (45%)
ocorreram de modo meramente incidental, referindo-se ao edifício, duração da internação ou
ocasião da alta hospitalar. As únicas três menções (13%) que podem ser consideradas como
tendo algum conteúdo relativamente positivo se referiram ao hospital como espaço de
102
pregação. Esses três sujeitos sentiaram que fazia parte de sua recuperação o dever de pregar o
evangelho aos outros pacientes. Se compararmos os resultados da categoria hospital com os
da categoria igreja, percebemos que o número de respondentes que nunca mencionaram a
igreja (8, isto é, 36%) é comensurável ao dos que não mencionaram o hospital (5, isto é, 22%).
As sete menções incidentais à igreja (31%) são equiparáveis às dez menções incidentais ao
hospital (45%). Consta também exatamente o mesmo número de respondentes a mencionar
positivamente o papel da igreja e a se referir ao hospital como espaço de pregação (3, isto é,
13%). A grande diferença na forma como os respondentes mencionam um e outro vem da
categoria que resta. As seis menções restantes à igreja (27%) ocorrem em um contexto
relativamente neutro, no qual as pessoas simplesmente expressam seu desejo de se submeter
a sua autoridade, realizando o ritual da unção ou outro comportamento por ela prescrito. Ao
contrário disso, as oito menções restantes ao hospital (36%) não demonstram neutralidade,
mas o veem como um local de infecção, que, se possível, deve ser evitado. Obviamente as
pessoas ficam internadas no hospital e não na igreja. É naquele ambiente que elas travam a
derradeira batalha contra a morte. É ali que elas são espetadas, drogadas, cortadas e
submetidas a regimes pouco dignificantes. Ainda assim, emana das falas dos respondentes a
sensação de que eles entendem que o cuidador espiritual e a igreja estão com eles nessa
batalha, ajudando-os a recuperar um pouco da dignidade que a luta contra a morte lhes rouba.
É como se comportassem como prisioneiros de um exército inimigo, geralmente vestido de
branco; como se o hospital fosse o campo de concentração macabro onde esperam ser
lançados, a qualquer momento, na câmara de gás. A presença do cuidador espiritual e a
presença dos “irmãos”, seus correligionários, evocam a sensação de que o socorro está a
caminho, de que alguém se importa com o que vai ou pode acontecer.
5.2.4.13 A Dimensão FAMÍLIA
A última dimensão contempla a percepção que os respondentes relataram acerca do
papel da família no processo de cura dos sujeitos. A dimensão foi previamente selecionada
com base no índice “família”. O questionário da entrevista não continha nenhuma palavra
indutora que levasse os respondentes a mencionar o papel do hospital. Contudo, na pré-
análise, ficou evidente que esse tema recebeu destaque da parte dos respondentes e, por isso,
acabou incluído como dimensão de análise. Além disso, com a inclusão das dimensões
referentes ao papel da igreja e do hospital, fez-se necessário, a título de comparação, incluir
também uma dimensão acerca da participação da família. A partir das menções a esse papel
no cuidado e cura dos sujeitos, foram nomeadas três categorias principais: “envolvimento na
enfermidade”; “envolvimento na unção”; e “oração”.
103
Tabela 13 – Papel da Família
Dimensão 13: FAMÍLIA
Categorias Frequência Exemplos de Fala Masc. Fem. Masc. Fem. Envolvimento na enfermidade
2 1 “Deus permitiu essa
doença na minha
família” (2); “a família
estava muito
preocupada” (13).
“vieram parabenizar a
família de tão bem que
estava” (10).
Envolvimento na unção 0 5 “foi importante a unção
para a nossa família
porque, assim, nós
estaríamos preparados
para as duas possíveis
situações, se ela
melhorasse ou se ela
falecesse; conseguimos
digerir melhor a
situação dela” (6); “foi a
família que pediu a
unção” (14); “a família
ficou hiper conformada”
(16); “p/família foi bom
pela reação que ela teve
na unção, pois quando
terminou a oração, ela
começou a cantar ‘Deus
é tão bom’, então a
gente ficou aliviado”
(17).
Oração 1 0 “oração que a família
está fazendo” (12).
Menção incidental 3 0 “avise amigos e
familiares que ele está
morrendo” (12).
Sem menção 6 5 (3, 4, 5, 8, 15 e 22). (1, 7, 9, 11 e 20).
Onze respondentes (50%) não fizeram nenhuma menção à família durante as
entrevistas. Três menções (13%) foram meramente incidentais como, por exemplo, o
comunicado aos familiares acerca da morte do sujeito 12. A categoria “envolvimento na
enfermidade” contou com três menções (13%). O sujeito 2 relatou que teve a sensação de que
a doença pertencia a toda a família e não apenas a ele mesmo. O respondente 10 contou que a
melhora do sujeito equivaleu a uma vitória da família. Um respondente (4%) mencionou
positivamente as orações que a família fazia em prol do sujeito, um motorista de 67 anos de
idade acometido pelo mal de Alzheimer. A categoria, porém, que mereceu mais menções foi
aquela que descreveu o envolvimento da família no rito da unção. Foram cinco menções
104
(22%), que enalteceram o valor da unção como forma de conforto para a família e de melhora
na disposição dos sujeitos. Não houve nenhuma menção negativa à família nas 22 entrevistas
analisadas, o que sugere que a família ainda se mobiliza positivamente diante de um quadro
grave de enfermidade.
5.3 Conclusão
A análise de conteúdo aqui realizada aponta para as impressões dos respondendes
acerca do rito da unção. Antes de emitir suas opiniões sobre o tema, os respondentes não
tiveram a oportunidade de depurá-las e organizá-las num todo coeso e coerente. Isso não
invalida, todavia, sua contribuição, pois essa subjetividade integra, de modo geral, as intuições
dos religiosos em relação às crenças que entretêm. Por isso, Durkheim (2003, p. x-xi) faz a
seguinte declaração, endossada por Bourdieu (2011, p. 41):
As superstições populares estão mescladas aos dogmas mais refinados. Nem o pensamento, nem a atividade religiosa encontram-se igualmente distribuídos na massa de fiéis; conforme os homens, os meios, as circunstâncias, tanto as crenças como os ritos são experimentados de formas diferentes.
Não obstante, espera-se que o fato de que os respondentes pertenciam à mesma
denominação religiosa e residiam numa área geográfica limitada tenha contribuído para
atenuar as discrepâncias relativas à heterogeneidade de um corpus tão diverso, em que um
sujeito foi ungido por um problema dentário, outro porque tinha dengue, outro porque estava
com um traumatismo craniano resultante de um acidente e outro porque sofria de câncer
terminal.
105
CAPÍTULO VI. SUCESSOS E FRACASSOS
Por trás de quase toda discussão acadêmica da unção paira a pergunta pragmática se
ela funciona ou não. De acordo com Wenger (2000, p. 204), “o modelo médico, com seus
avanços tecnológicos e sua linguagem de tratamento ‘bem-sucedido’ e ‘mal-sucedido’ pode
também tender a pôr o foco na questão da ‘confiabilidade’, o que funciona e o que não
funciona”. Em um estudo que contou com a participação de clérigos da igreja menonita, o
pesquisador descobriu que a resposta mais comum desses cuidadores espirituais para explicar
por que a unção pode não dar certo era que eles não se interessavam por essa questão.
Segundo eles, o maior fracasso ocorre quando o membro da igreja menonita opta por não
solicitar a unção. Ainda assim, as três outras principais explicações para o fracasso da unção
foram: falta de fé do participante, resistência em se entregar à vontade de Deus e amargura
por se encontrar numa situação terminal.
Do ponto de vista antropológico, Kleinman (1980) declara que a principal dificuldade
nos estudos interculturais da cura, muito em função da liminaridade observada entre
antropologia, medicina e psiquiatria, é justamente como avaliar o sucesso terapêutico. No
caso específico da medicina científica, seu objetivo é “remover totalmente a causa da doença”
(FINKLER, 1985, p. 117). Contudo, a própria Finkler fala de critérios mais subjetivos: a
satisfação do paciente, a remissão de alguns sintomas e uma melhora nos índices de
funcionalidade. Por essa razão, ela mesma avaliou sucesso como sendo uma percepção de
bem-estar e satisfação expressa, mesmo quando o tratamento ou rito não consegue remover
disfunções clínicas perceptíveis, pois, segundo ela, o que é mais importante não é a remoção
dos sintomas, mas a restruturação da percepção do paciente quanto a sua disfunção ou
condição (FINKLER, 1985, p. 120).
No caso de minha pesquisa sobre a unção, onze sujeitos (1, 2, 3, 4, 7, 11, 12, 13, 15, 18
e 22), exatamente a metade do corpus, continuam vivos. No entanto, de um ponto de vista
estritamente científico, dois deles (11 e 12) não podem ser considerados sucessos, uma vez
que se trata de pacientes com o mal de Alzheimer que nem conseguiram participar da
entrevista, as informações sendo obtidas de respondentes com parentesco próximo. Isso
reduziria o índice de sucesso para 40%. Além disso, é preciso considerar também que, em
cinco casos, esses sujeitos são justamente aqueles que não padeciam de enfermidades
necessariamente terminais ou de difícil tratamento: taquicardia (sujeito 1), infecção (sujeito 2),
problema odontológico (sujeito 3), dengue (sujeito 7) e cálculo renal (sujeito 15). Por essa
razão, fica difícil estimar se houve, de fato, uma alteração estatística na história natural
previsível dessas enfermidades, conforme definição de Pellegrino (1979, p. 256) e Finkler
106
(1985, p. 117). Em realidade, em apenas quatro casos (sujeitos 4, 13, 18 e 22), a unção parece
ter contribuído para essa alteração. O sujeito 4, uma criança que sofreu um traumatismo
craniano que lhe ofereceu um grave risco de vida, teve sua história narrada pela própria mãe.
Os outros três sujeitos tinham câncer terminal: câncer no cólon com metástese no fígado
(sujeito 13), câncer no intestino (sujeito 18) e leucemia (sujeito 22). Trata-se de três histórias
que impressionam pela natureza longa da batalha travada contra a doença, com um número
elevado de tratamentos e procedimentos cirúrgicos. No caso do sujeito 22, o tratamento e a
unção ocorreram há 66 anos, quando a medicina tinha ainda dificuldades maiores para lidar
com a leucemia. Mesmo assim, não houve qualquer reincidência da doença e ele continua vivo
em bom estado de saúde. Sem querer insinuar que a sobrevivência desses pacientes se deveu
exclusiva ou principalmente à unção, em termos rigorosos poderíamos dizer que a unção
funcionou em 18% dos casos. Não se trata, portanto, de um dado estatístico muito animador...
Em sua pesquisa, Finkler (1985, p. 121) tinha estipulado que “fracasso” se referia a
indivíduos que buscaram cura no templo, mas relataram que não foram curados; “sucesso” se
referia a pacientes que haviam seguido o tratamento do templo e relatado, no momento da
entrevista, que tinham se recuperado dos sintomas em razão dos quais haviam procurado o
templo; e, finalmente, “inconclusivo” se referia a pacientes que relataram cura, mas que
haviam também seguido algum tipo de tratamento da medicina convencional. Contudo, esses
critérios são excessivamente objetivos e rigorosos, pois ignoram importantes aspectos
sociológicos e antropológicos relacionados com a cura religiosa. Embora os respondentes
desta pesquisa sobre unção sejam, em geral, capazes de relatar os sintomas que os sujeitos
tinham e de avaliar sua melhora, conforme sugerido pelas Tabelas 2 e 3, a limitação da
conclusão a esses dados é insatisfatória, pois o rito da unção engloba muito mais do que a
melhora de uma dificuldade física, incluindo, além disso, a sensação de bem-estar por parte do
sujeito e sua negociação do papel de doente.
De acordo com Penn-Strah (2002, p. 97), “a conexão com o passado pode também
conceder poder aos participantes de modo a que construam novos futuros que se estribam no
senso de tradição. A eficácia da cura ritual, como tal, pode ir, portanto, além da pergunta: -
Este rito cura, de fato?” Desta forma, o fato de um sujeito ter buscado auxílio da medicina
convencional não invalida a importância de sua participação no rito da unção. Pelo contrário,
isso garante que o sujeito sofria de desconforto real e estava disposto a recorrer a todos os
meios necessários para recuperar seu bem-estar integral. A dificildade para avaliar isso não
impede que consideremos que a unção colabora com a medicina convencional para auxiliar, de
diversas formas, a recuperação do paciente ou sua preparação para a morte, aliviando, em
sentidos além da possibilidade dos tratamentos convencionais, seu sofrimento, medo,
107
angústia e sentimento de negação.36 Kübler-Ross (2005, p. 43) fala de um aspecto positivo da
negação, pois ela serve como um “pára-choques” depois da notícia inesperada. Nesse sentido,
a negação é uma espécie de mecanismo temporário de defesa. Entretanto, a fuga temporária
da realidade é positiva, mas a pessoa não deve permanecer em uma fantasia, pois isso lhe será
prejudicial. A unção a ajuda, nesse caso, a transcender, então, a negação de forma construtiva
para levá-la à aceitação da morte, o que Leloup (2001, p. 56) chama de ressurreição antes da
morte. Segundo Martins e Martini (2002, p. 73),
instigados pela realidade da doença, da dor, do sofrimento e da morte, os homens, em contextos culturais vários, elaboram profundas reflexões sobre a condição humana expressas em chave mitológica, filosófica, antropológica, sociológica e teológica. Nesse sentido, são acionados o desejo e a leitura da realidade, a emoção e a razão, a constatação do que é que poderia ou deveria ser nosso existir, [...] são descortinadas possibilidades menos sofridas para a vida humana.
De fato, apenas o respondente 12, 4% da amostra, considerou que a unção fracassou, não
trazendo nenhum benefício ao sujeito, um motorista de 67 anos de idade, acometido pelo mal
de Alzheimer. Todos os outros 21 respondentes (96%) relataram algum tipo de benefício físico,
espiritual, social ou emocional, quer para o participante do rito, quer para a família do mesmo.
Sociologicamente, a pesquisa mostra que outra dimensão de sucesso da unção advém
de sua contribuição para que o sujeito negocie seu papel de doente. A Tabela 3 mostra que
vários respondentes observaram que houve uma diminuição considerável nas queixas de dor e
uma melhora proporcional na disposição dos sujeitos. Isto não significa que, necessariamente,
as dores tenham diminuído, mas que os sujeitos, a partir da unção, se tornaram menos
propensos às queixas e menos desanimados em função de sua condição.
Fenomenologicamente, pode-se dizer que se consideravam em melhor estado e, portanto, se
comportavam de modo compatível com essa nova avaliação.
Em sentido amplo, então, 21 dos 22 participantes (96%) atribuíram algum benefício à
unção, o que sugere, portanto, que, em sua avaliação, a unção funciona. No âmbito da
enfermidade, especialmente na desesperadora situação de uma doença grave ou terminal,
nenhum esforço deve ser poupado a fim de prover alívio e conforto para os pacientes e seus
36
De acordo com Stüewer e Baade (2016, p. 136), “o filósofo Jacques Choron distinguiu três tipos de medo em relação à morte relacionados com os seguintes temas: a) o que vem depois da morte, b) o ‘evento’ do morrer, e c) ‘deixar de ser’. Uma pessoa pode ter todos esses medos e não apenas um deles [...]. Frente ao evento do morrer, os pacientes terminais temem ter uma morte dolorosa e em serem uma carga para outras pessoas. Em relação ao que vem depois da morte, [...] as pessoas que sabem que vão morrer em breve mostram a preocupação pelos seus entes queridos, em como eles viverão após a sua morte. Já em relação ao medo do “deixar de ser”, os pacientes terminais temem a possibilidade de serem separados dos seus familiares.
108
familiares. Esta pesquisa demonstrou que a unção proporciona certo nível de alívio e conforto
a essas pessoas, sendo relativamente fácil de realizar e de baixo custo. Por conseguinte, a
adoção da unção como forma alternativa e complementar de terapia é um procedimento de
natureza humanitária que deve ser permitido e incentivado pelas instituições de saúde quando
solicitado ou cogitado pelas famílias.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perguntou-se, na introdução, entre outras coisas: que fatores contribuem para a
percepção de cura após a unção? Qual é o impacto psicossomático e social da unção? Que
fatores levam um indivíduo a abrir mão do papel de “doente”? Que relações existem entre
crença religiosa, comportamento e saúde? Quais seriam os critérios determinantes para a
obtenção de um resultado considerado satisfatório por aqueles envolvidos no ritual?
De modo geral, os respondentes reconheceram que a compreensão religiosa do
sofrimento desempenhou um papel importante na reflexão da maioria dos sujeitos e em sua
decisão de aceitar sua condição terminal, alterar o estilo de vida ou buscar uma melhora,
senão a cura. Isso confirma que
A experiência da dor, como lei da existência, pode assim ser considerada como fator estimulante para que o ser humano transcenda aos eventos próprios de sua condição. [...] Resulta dessa compreensão que à dor corpórea provocada pela doença soma-se o sofrimento que advém do sentimento de culpa. Em tais avaliações pautadas por uma justiça retributiva, em última instância, o ser humano é o responsável maior pelos males que o afligem. Restam-lhe duas atitudes: aceitar passivamente a doença tida como merecida ou procurar, em caso de cura, pautar a vida pelos critérios dados por Deus (MARTINS; MARTINI, 2012, p. 63 e 66).
Sendo assim, a primeira e a segunda dessas perguntas podem ser respondidas com uma
explicação análoga à de Lévi-Strauss (2003, p. 211) com referência ao xamanismo:
Graças às suas desordens complementares, o par feiticeiro-doente encarna para o grupo, de modo concreto e vigoroso, um antagonismo próprio a todo pensamento, mas cuja expressão normal permanece vaga e imprecisa: o doente é passividade, alienação de si mesmo, como o informulável é a doença do pensamento; o feiticeiro é atividade, extravasamento de si mesmo, como a afetividade é a nutriz dos símbolos. A cura põe em relação esses polos opostos, assegura a passagem de um a outro, e manifesta, numa experiência total, a coerência do universo psíquico, ele próprio projeção do universo social.
37
A recomendação de Bourdieu (2015, p. 161) é que não se deve buscar “o princípio da eficácia
da operação ritual” no próprio ritual, “mas nas condições sociais que produzem a fé no ritual”.
Nesse contexto, a explicação de Lévi-Strauss (2003, p. 228) para o processo de cura é bastante
satisfatória e, grosso modo, pode se aplicar à cura religiosa observada no rito da unção
adventista:
37
É preciso lembrar, aqui, que, para Lévi-Strauss, “o psíquico é ao mesmo tempo elemento de significação para um simbolismo que o ultrapassa e único meio de verificação de uma realidade cujos múltiplos aspectos só podem ser captados sob forma de síntese fora dele” (MICELI, 2011, p. xxiii).
110
A cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância; a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se apóiam mutuamente [...]. Mas a doente, tendo compreendido, não se resigna apenas; ela sara. E nada disto se produz em nossos doentes, quando se lhes explica a causa de suas desordens, invocando secreções, micróbios ou vírus. Acusar-se-nos-á talvez de paradoxo, se responderemos que a razão disto é que os micróbios existem e que os monstros não existem. E não obstante, a relação ente micróbios e doença é exterior ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito; ao passo que a relação entre monstro e doença é interior a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente; é uma relação de símbolo à coisa simbolizada, ou, para empregar o vocabulário dos linguistas, de significante a significado.
Assim, os adventistas que se submeteram ao rito da unção creem no rito e fazem parte de uma
sociedade que também crê nele. Não deveria nos surpreender, então, que, algumas vezes, em
vez de se resignar à morte, eles tenham sarado da enfermidade e retomado a vida. Em muitos
sentidos, sua necessidade era lidar com aspectos psicossomáticos. Encontrando apoio para
fazê-lo, eles conseguiram, em alguns casos, driblar mesmo impedimentos de ordem física. Os
milagres aconteceram.
Que fatores, então, levam um indivíduo a abrir mão do papel de “doente”? A resposta
a essa pergunta diz respeito ao que se convencionou chamar de “fala performativa”, cuja
definição clássica se encontra em Austin (1981): linguagem em que a simples enunciação de
um fato cria aquele fato.38 É o que acontece, por exemplo, no ritual do casamento, quando o
oficiante afirma: - Eu os declaro marido e mulher. Penn-Strah (2002, p. 79) se refere ao
interesse religioso na fala performativa, justamente pelo papel importante que ela
desempenha nos rituais. No batismo, o oficiante declara: - Eu o batizo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. Algo que reforça a crença e ajuda na credibilidade associada ao rito é
a realização de alguma ação que acompanhe a fala performativa. Para Bourdieu (2015, p. 162),
“o poder das palavras não reside nas próprias palavras, mas nas condições que dão poder às
palavras criando a crença coletiva, ou seja, o desconhecimento coletivo do arbitrário da criação
de valor que se consuma através de determinado uso das palavras”.39 No caso do batismo, por
38
O locus classicus para o estudo da aplicação da teoria performativa ao ritual é Tambiah (1979, p. 113-169). 39
Para von Humboldt (apud BOURDIEU, 2011, p. 27), a “linguagem desenha um círculo mágico em torno do povo a que pertence, um círculo de que não se pode sair sem saltar para dentro de outro”.
111
exemplo, Penn-Strah (2002, p. 82) afirma que não é suficiente fazer o pronunciamento
batismal. É também necessário fazer a aspersão da água ou a imersão daquele que se submete
ao rito. Igualmente, na unção, não é suficiente orar para que o doente sare ou mesmo declarar
que o poder de Deus o cura. É preciso, além disso, de uma ação simbólica que acompanhe a
fala performativa: o ato de ungir a fronte com azeite.
De acordo com Penn-Strah (2002, p. 82),
Talvez as ações corporificadas que acompanham essas falas que são atos contribuam para a eficácia da fala performativa ao distrair os participantes do fato de que a agência da ação é derivada.
40 Aqueles que participam da cura
ritual nessas igrejas recebem bênçãos verbais; eles também são ungidos e recebem a imposição de mãos. Agimos na cura ritual como se não apenas o que dizemos produzisse resultados, mas, além disso, como se o que fazemos também os produzisse. Corajosamente avançando com o rito mesmo em face do sofrimento, agimos como se nossa performance fizesse a diferença. Também agimos como se todos os presentes se importassem com a cura. Nossas ações têm sua própria força [...]. Quando uma pastora abençoa uma pessoa, a eficácia da bênção depende parcialmente da aceitação de sua autoridade pelos participantes. Não obstante, a força de agir como se a ação produzisse resultados é bastante poderosa, e há casos em que “o fazer” parece transcender a fragilidade do agente humano [...]. A ritualização comunica de forma expressiva. Do mesmo modo que a fala performativa produz resultados, as ações ritualizadas de ungir e impor as mãos provêm um contexto que coloca sua realização em consonância com a pressuposição de que elas produzem aquilo que realizam.
Os antropólogos também já chegaram a uma compreensão semelhante dos processos
envolvidos nos rituais de cura. Por meio do conceito de “predicação metafórica”, Fernandez
(1977, p. 100-131) fala que a realização de rituais oferece um movimento estratégico em uma
localidade social autopercebida por meio de metáforas aplicadas a si mesmo. Para Penn-Strah 40
Entenda-se, aqui, por corporificação a referência que a autora faz às experiências, sensações, posturas, gestos, movimentos e emoções dos participantes em rituais (PENN-STRAH, 2002, p. 89). A autora dá como exemplo dessa corporificação um fato que ocorreu após oficiar o funeral de Judith, uma de suas melhores amigas. O marido da amiga pediu-lhe que fosse até o quarto do casal e escolhesse lembranças que pudesse guardar como souvenir. A autora escolheu uma joia e uma jaqueta preta. Ao chegar em casa, na privacidade de seu quarto, experimentou a jaqueta. Ao fazer isso, colocou as mãos nos bolsos exatamente como a amiga fazia quando queria dizer que estava pronta para enfrentar o mundo. Segundo ela, isso a ajudou a lidar com o sentimento de perda: “com a jaqueta preta de Judith, eu ritualizei a minha perda dela e quem ela tinha sido para mim. Eu me lembrei dela com o próprio corpo [...]. Por vários meses após sua morte, eu pegava a jaqueta preta, vestia-a e ensaiava ser Judith. Pouco a pouco, eu a corporifiquei mais. A natureza determinada de Judith se tornou parte de meu caráter de modo que eu a podia evocar quando eu precisava. Eu ritualizei a minha perda publicamente durante o funeral; porém, em particular, eu não ritualizei apenas a minha lembrança dela, mas me apropriei de partes dela. Cada vez que eu vestia aquela jaqueta era como se eu vestisse a Judith” (PENN-STRAH, 2002, p. 91). Menciono esse episódio porque eu mesma vivenciei algo semelhante quando, por coincidência, depois de oficiar a cerimônia fúnebre de minha mãe, que faleceu de câncer em 2000, também passei pela experiência de escolher uma peça de vestuário e outras lembranças dela. Posso atestar, por isso, que esse tipo de corporificação tem enorme peso quando associado a algum tipo de ritual.
112
(2002, p. 85), quando os participantes de um ritual de unção que está sendo realizado numa
igreja
andam até a frente do santuário a fim de participar do rito, eles demonstram e comunicam algo para aqueles que estão com eles (e, segundo eles, para Deus também). Eles dizem que revelam sua “vulnerabilidade”, seu “quebrantamento”, sua “humildade” e sua “necessidade”. Referir-se às ações realizadas como comunicação é compreendê-las, então, como espelhamento ou dramatização de algo.
Por isso, Fernandez (1977), que se interessa muito pelas ações da pessoa que se submete ao
ritual, percebe que um ritual de cura se transforma em um veículo capaz de conceder certa
quantidade de poder ao que dele participa. Por isso mesmo, deve-se compreender que
aqueles que participam de rituais não são apenas atores que seguem scripts; eles não meramente dramatizam ideias preconcebidas; eles não são simplesmente os receptáculos passivos da comunicação. Eles são agentes que se engajam plenamente na criação, negociação e apropriação de significado, experimentando e sentindo o que praticam [...]. A prática não apenas retrata uma ideia gerada previamente. Ela cria algo novo. A prática atende ao fato de que os participantes, como agentes, ajudam a gerar o que acontece (PENN-STRAH, 2002, p. 88-89).
41
Por outro lado, é preciso lembrar, com Laplantine (2004, p. 219), que, pelo menos no caso das
medicinas populares (folk),
a ideia de que o paciente aí seria “responsável” está totalmente ausente das práticas em questão, que são, pelo contrário, fundamentadas em uma dependência total do “paciente” em relação à pessoa que cura, a qual com frequência declara ao final de uma consulta: “não se preocupe com nada, tenha confiança em mim”. Vamos mesmo mais longe e afirmamos que esses recursos terapêuticos são tanto mais eficientes quanto o doente aceita receber do exterior um conteúdo cultural ao qual adere sem restrição.
Ou seja, quer estejamos falando do xamanismo, da medicina popular (e, por que não, também
da convencional?) ou do rito religioso da unção, é preciso considerar, de fato, um nível elevado
de integração ritual, instrumental para o sucesso do processo de cura. O participante tem que
“comprar” a ideia de que pode ser curado.42 Ele tem que aderir. E o ritual religioso tem a
41
Penn-Strah (2002) chega a essa conclusão com base em sua pesquisa de doutorado, nos estudos de Bell (1992) e na pesquisa de Csordas (1990, p. 5-47) sobre o movimento carismático católico. 42
Para Bourdieu (2011, p. 55), contudo, “isto não significa apenas que aquele que pede para que acreditem em sua palavra deve fazer a mímica de acreditar em sua palavra, ou então, que aquele que faz questão de impor a fé por seus discursos deve manifestar em seu discurso ou em sua conduta a fé que tem em seu discurso [...]. O princípio da relação entre o interesse, a crença e o poder simbólico, deve ser buscado no que Lévi-Strauss denomina ‘o complexo xamanista’, isto é, na dialética da
113
vantagem de facilitar essa adesão. Na cosmovisão adventista, o rito da unção coloca “à
disposição” do participante os poderes de um Deus onipotente, compassivo e desejoso de
ajudá-lo.
Que relações existem entre crença religiosa, comportamento e saúde? À luz desta
pesquisa sobre a unção, a pergunta faz mais sentido se sofrer uma pequena alteração: que
relações existem entre crença religiosa, comportamento e cura? O sujeito 2 foi o único
respondente que mencionou essa relação de forma explícita. Segundo ele, a unção e o
restabelecimento à saúde foram acompanhados de uma profunda mudança de
comportamento: por orientação e insistência da mãe, ele se tornou vegetariano. Sem as
experiências de adoecimento, unção e cura, talvez lhe faltasse motivação para adotar um
estilo mais saudável de vida; diante do rito, porém, essa motivação lhe surgiu. Com frequência,
um paciente retorna de um exame médico com a recomendação expressa de que, para
sobreviver, precisa fazer profundas mudanças em seu estilo de vida. Alguns conseguem;
outros, não. Esta pesquisa sugere que o rito vira um elemento adicional que concede poder ao
paciente para realizar essa transição. Ou seja, as relações entre crença, comportamento e cura
são estreitas e, em muitos casos, poderosas. Para Bourdieu (2015, p. 165), porém, “a alquimia
social só obtém pleno sucesso porque a verdade do sistema escapa àqueles que participam de
seu funcionamento, portanto, da produção da energia social mobilizada pela enunciação
performativa”.43 Isso sugere, por exemplo, que o rito da unção pode, em certos sentidos,
trazer menos benefícios para um profissional de saúde ou clérigo que esteja em luta contra o
câncer, do que para uma pessoa que não esteja familiarizada, como no caso do primeiro, com
os processos de tratamento convencional ou, como no caso do segundo, com as
funcionalidades da religião. No caso desta pesquisa, três clérigos e um profissional da saúde
receberam a unção. Dois dos três clérigos se recuperaram de um câncer com metástese e
leucemia, continuando vivos até a presente data, enquanto que o outro faleceu de um câncer
bastante agressivo. O único profissional de saúde a integrar a amostra desta pesquisa é uma
enfermeira nonagenária, que sobrevive até a presente data, mas que não conseguiu deter o
avanço do mal de Alzheimer. O que Bourdieu parece sugerir com sua ideia de “verdade do
sistema” talvez possa ser interpretado, no contexto da unção e “da produção da energia social
mobilizada pela enunciação performativa” é que saber detalhadamente como uma
experiência íntima e da imagem social, circulação quase mágica de poderes no curso do qual o grupo produz e projeta o poder simbólico que será exercido sobre ele”. 43
Entre Lévi-Strauss e Bourdieu há, todavia, uma clara distinção entre a forma de apreensão da “verdade objetivada dos sujeitos” e da “relação vivida que os sujeitos mantêm com sua verdade objetivada”: para o primeiro, “tem-se o inconsciente como campo de conciliação entre o eu e o outro”; para o segundo, “tem-se o princípio de não-consciência segundo o qual ‘existem relações exteriores, necessárias, independentes das vontades individuais e conscientes’” (MICELI, 2011, p. xxiv).
114
enfermidade terminal evolui pode produzir desânimo e prostração, o que acaba acelerando a
própria progressão da enfermidade. É muito mais fácil subir, pouco a pouco, a montanha
quando não sabemos exatamente a quantidade de esforço que isso vai requerer.
A ideia de “verdade do sistema” não implica, porém, que a operação da fé seja algo
objetivo e mecânico. No epílogo de seu livro, Robert Baker, professor de ciências que foi
curado após ser ungido, faz a seguinte declaração:
Meu respeito pela ciência, meu envolvimento nela, minha aceitação dos métodos que ela representa, me ajudam a entender a relutância de pessoas altamente treinadas em admitir a possibilidade de uma cura divina. Estou convencido, entretanto, que, na cura divina, temos algo diferente, algo autêntico, que vai além de E = mc
2 (BAKER, 1974,
p. 15-16).
Sem querer especular demasiadamente quanto ao significado da expressão “algo que vai além
de E = mc2”, pode-se lembrar que a pesquisa de Finkler (1985, p. 196) constatou algo que
minha própria pesquisa sobre unção revela: os pacientes geralmente buscam formas
alternativas de cura porque os médicos prescindem, muitas vezes, de elementos valorizados
por eles: compaixão, compreensão e, quando secamente reconhecem a natureza terminal da
doença, foco na cura. Pode-se dizer, conclusivamente, que os enfermos tendem a receber
esses três benefícios, de forma muito mais espontânea, dos cuidadores espirituais. Quando
isso acontece em conjunto com sua capacidade de responder aos símbolos religiosos, os
pacientes se sentem muito mais seguros com relação à forma como lidam com a enfermidade.
Quais seriam os critérios determinantes para a obtenção de um resultado considerado
satisfatório por aqueles envolvidos no ritual? O tratamento médico convencional pertence à
dimensão da regulação técnica, enquanto que a unção pertence à dimensão da regulação
simbólica. Conforme afirma Finkler (1985, p. 196-197), os cuidadores espirituais conseguem
ministrar aos pacientes com dor crônica em formas que a biomedicina não consegue alcançar
porque, ao contrário daqueles, lhe faltam “símbolos emocionalmente carregados que derivam
da experiência coletiva de quem sofre”. Os símbolos conseguem, de fato, atenuar, senão
eliminar, a dor psicológica e bioquímica de quem sofre e fazem com que sua vida se torne mais
tolerável no contexto da cultura, “que só existe efetivamente sob a forma de símbolos, de
onde provém sua eficácia própria” (MICELI, 2011, p. xiii).
Obviamente nem sempre o rito funciona. No caso da cura religiosa, por exemplo, os
resultados podem ser até catastróficos, conforme demonstra Grimes (1990, p. 191-209). Isso
ocorre especialmente quando o participante detecta algum tipo de insinceridade ou
indignidade da parte do oficiante. Segundo Penn-Strah (2002, p. 82), “algumas pessoas que se
115
voluntariam para a unção prestam bastante atenção no agente enquanto este realiza o ritual.
Essas pessoas querem crer que as ações realizadas por aqueles que as ungem se originam de
sentimentos genuinamente positivos em relação a elas”. Nas entrevistas desta pesquisa,
nenhum respondente atribuiu um maior ou menor sucesso do rito ao cuidador especial que o
oficiou. No entanto, pesquisas sobre a regulação simbólica sugerem que aspectos
extraordinários presentes na personalidade do produtor do símbolo operam em níveis
importantes. Segundo Bourdieu (2015, p. 154), por exemplo,
o poder mágico do criador é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura.
Isso é obviamente verdadeiro em relação à atuação de João de Deus nas circunstâncias da
Casa Dom Inácio de Loyola, mas não menos verdadeiro com respeito aos cuidadores espirituais
que o representam e, no caso desta pesquisa sobre unção, em relação aos oficiantes do rito.
No entanto, isso vai muito além da questão do carisma de certas pessoas, os criadores de
poder simbólico.44 Para Bourdieu (2015, p. 155), o criador de poder simbólico
limita-se a mobilizar, em graus e por estratégias diferentes, a energia da transmutação simbólica (isto é, a autoridade ou a legitimidade específica) que é imanente à totalidade do campo porque este a produz e a reproduz por meio de sua própria estrutura e de seu próprio funcionamento.
Nesse sentido, pode-se falar, com Bourdieu (2015, p. 157-156), de uma alquimia simbólica,
que favorece ao que chama de “ilusão carismática”, isto é, no caso da unção, a crença em que
o cuidador espiritual consegue realizar a ação que alega ser capaz de efetivar.
Além disso, como afirmam Martins e Martini (2012, p. 73), a pessoa humana não é
“redutível à matéria estritamente biológica”,
sendo constituinte do humano a dinâmica integrada de dimensões corpóreas, psíquicas, espirituais, sociais, cósmicas, ultrapassando limites da radicalidade empírica, abrindo horizontes onde imanência e transcendência se conjugam. Sem negar a dor e seu mistério, as religiões recusam-se à inércia; pelo contrário, oferecem possibilidades de experiências menos traumáticas e até mesmo curativas.
44
Bourdieu (2011, p. 55) define “carisma” como sendo o “poder simbólico” (“as propriedades simbólicas” ou “a eficácia simbólica”) que confere aos agentes religiosos “o fato de acreditarem no próprio poder simbólico”. Bourdieu (2016, p. 193) define, também, o que é “poder simbólico”: “o poder simbólico é um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe”.
116
Sendo assim, conclui-se, com Finkler (1985, p. 195), que, principalmente no caso de
doenças terminais, a unção pode servir de complemento aos tratamentos convencionais.
Pode-se propor, portanto, que, para benefício dos pacientes e seus familiares, bem como para
auxílio aos profissionais da saúde, a prática seja institucionalizada. Para isso, é necessário que
médicos e enfermeiras sejam devidamente instruídos quanto à natureza cultural da saúde e da
doença. No modelo ideal, médicos e enfermeiros reconheceriam as limitações da medicina
convencional e, em certos casos, recomendariam que o paciente experimentasse a unção
realizada, de preferência, fora das dependências do hospital e, portanto, além do guarda-
chuva da biomedicina. Note-se que, em nenhuma das vinte e duas entrevistas realizadas por
esta pesquisadora durante esta investigação, a recomendação da unção partiu de um
profissional da saúde como tal.
Para Bourdieu (2011, p. 49), “as teodiceias são sempre sociodiceias”. Isso significa,
para ele, que a religião cumpre funções sociais e é passível de análise sociológica porque “os
leigos não esperam da religião apenas justificações de existir capazes de livrá-los da angústia
existencial da contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da
morte” (BOURDIEU, 2011, p. 48). Eles desejam também que ela lhes forneça “justificações de
existir em uma posição social determinada”. A análise sociológica e antropológica da unção
entre os adventistas do sétimo dia constitui, porém, uma instância em que a segunda
preocupação mencionada por Bourdieu parece fortemente enfraquecida pela primeira. Nesse
contexto, cabe a declaração de Peirano (2000, p. 11) de que, “como sistemas culturalmente
construídos de comunicação simbólica, os ritos deixam de ser apenas a ação que corresponde
a (ou deriva de) um sistema de ideias, resultando que eles se tornam bons para pensar e bons
para agir”. Isto é, eles se tornam socialmente eficazes. À guisa de fechamento destas
considerações finais, faço uso da declaração de Miceli (2011, p. xxvi), referindo-se à
compreensão de Bourdieu sobre os sistemas simbólicos: “um determinado sistema simbólico é
sociologicamente necessário porque deriva sua existência das condições sociais de que é o
produto, e sua inteligibilidade da coerência e das funções da estrutura das relações
significantes que o constituem”. Mas, concomitantemente com isso, tal sistema simbólico
pode justamente prover alívio para a “angústia existencial da contingência e da solidão, da
miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da morte”. Correndo a temeridade de apenas
reiterar o óbvio, arrisco-me a dizer, portanto, que o rito da unção é sociologicamente eficaz e
antropologicamente justificável.
117
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123
ANEXO 1
Figura 1 Distribuição Global de Perda de ADIAs
(Adaptada do Relatório do Banco Mundial 1993)
8,1
9,5
9
5,8
4,4
3,2
2,6
34
23,3
Percentual de ADIAs Perdidos
Problemas Mentais
Maternal e Perinatal
Problemas Respiratórios
Câncer
Problemas do coração
Problemas do cérebro
Malária
Problemas comportamentais
Outros problemas
124
ANEXO 2
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado(a) Sr/Srª
Convido o(a) Sr(a) para participar como voluntário(a) na pesquisa que tem o título de “O RITO
DA UNÇÃO: SUCESSOS E FRACASSOS EM UMA MODALIDADE DE CURA RELIGIOSA NA IASD”, que tem
como objetivo geral analisar a prática da unção de enfermos pela Igreja Adventista do Sétimo Dia como
desencadeadora de cura religiosa, prestando atenção especial aos casos em que a medicina
convencional considerou como terminais. No caso de aceitar fazer parte desta pesquisa, sua
participação consistirá em responder as perguntas a serem realizadas sob a forma de um questionário
semiestruturado, com um cabeçalho e treze perguntas abertas.
A sua opinião será importante para que a pesquisadora tenha uma melhor compreensão da
percepção que um indivíduo desenvolve acerca de seu estado de saúde e como esta molda suas
atitudes para com o mesmo. Até onde podemos avaliar, não haverá riscos relacionados a sua
participação, pois esforços serão feitos para garantir o anonimato dos participantes, cujos nomes não
serão, em hipótese alguma, mencionados.
O(a) Sr(a) terá liberdade para pedir esclarecimentos sobre qualquer questão, bem como para
desistir de participar da pesquisa a qualquer momento que desejar, mesmo depois de ter respondido às
questões, e não será, por isso, penalizado de nenhuma forma. Caso desista, basta avisar ao pesquisador
e todas as respostas e informações dadas pelo Sr(a) serão destruídas. Além disso, sua participação na
pesquisa não lhe acarretará nenhum custo financeiro. Pelo contrário, a pesquisadora se dispõe a
indenizá-lo(a) caso este termo de compromisso seja, de alguma forma, descumprido.
Informo que o resultado deste estudo poderá servir para contribuir com futuras pesquisas por
parte de estudantes e pesquisadores da área.
Como responsável por este estudo comprometo-me a manter sigilo de todos os seus dados
pessoais.
Pesquisadora Responsável: Tania Maria Lopes Torres
Telefones para contato: (+5519) 3858 1063 / 98155-5009
Caso deseje, você pode ainda entrar em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP, sito à Rua Ministro
Godói, 969 – Sala 63-C (Andar Térreo do E.R.B.M.) - Perdizes - São Paulo/SP - 05015- 001 Fone (Fax): (11) 3670-8466
– e-mail: cometica@pucsp.br.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Ao aceitar responder a esta pesquisa, declaro estar ciente do inteiro teor deste TERMO DE
CONSENTIMENTO e que estou de acordo em participar do estudo proposto, sabendo que dele poderei
desistir a qualquer momento, sem sofrer qualquer penalidade.
Data: ______/______/___________
ASSINATURA ou RUBRICA
125
ANEXO 3
ENTREVISTA SOBRE A REALIZAÇÃO DO RITUAL DA UNÇÃO
Cabeçalho
Data: ______________ Horário: ___________________ Local: __________________________
Nome da pessoa que foi ungida: __________________________________________________
Idade: __________ Gênero: ___________ Estado Civil: ______________ No. de Filhos: ____
Ocupação: _____________________ Religião: _______________ Doença: ______________
Nome do familiar: _____________________________________________________________
Idade: __________ Gênero: ___________ Estado Civil: ______________ No. de Filhos: ____
Ocupação: _____________________ Religião: _______________ Parentesco: ___________
Perguntas sobre a unção (na perspectiva de quem foi ungido):
1. Por que foi ungido(a)?
2. Quando foi ungido(a)?
3. Como foi ungido(a)?
4. Que sintomas tinha?
5. Quanto tempo durou aproximadamente o ritual?
6. O que aconteceu depois da unção?
7. Caso isso tenha ocorrido, que sintomas foram aliviados?
8. Quando sentiu que tinha melhorado e/ou piorado?
9. Como avalia o resultado da unção?
10. Fale sobre a importância da unção.
11. Como percebe ou percebia a participação do diabo no processo de enfermidade?
12. Como descreve ou descreveria a participação de Deus no processo de cura?
13. Por que acha que a unção funcionou ou não?
ANEXO 4
FASES DA PRÉ-ANÁLISE
126