Post on 07-Nov-2020
CHRISTINA DE TOLEDO ZACCARELLI
OCUPAR, RESISTIR E CONQUISTAR! AS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS DE 2015 E POSSÍVEIS EFEITOS DE SENTIDO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
2018
CHRISTINA DE TOLEDO ZACCARELLI
OCUPAR, RESISTIR E CONQUISTAR! AS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS DE 2015 E POSSÍVEIS EFEITOS DE SENTIDO
Dissertação apresentada ao Centro de Linguagem e Comunicação (CLC) da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como requisito parcial para a obtenção de mestre em Linguagens, Mídia e Arte.
Orientadora: Profa. Dra. Eliane Righi de Andrade
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
2018
Ficha catalográfica elaborada por Marluce Barbosa – CRB 8/7313 Sistemas de Bibliotecas e Informação – SBI – PUC-Campinas
t371.83 Zaccarelli, Christina. Z13o Ocupar, resistir e conquistar! : as ocupações secundaristas de 2015 e
possíveis efeitos de sentido / Christina de Toledo Zaccarelli. - Campinas: PUC-Campinas, 2018. 122 f. Orientadora: Eliane Righi de Andrade. Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Campi-nas, Centro de Linguagem e Comunicação, Pós-Graduação em Lingua-gens, Mídia e Arte. Inclui anexo e bibliografia. 1. Movimentos estudantis. 2. Ocupações. 3. Linguagem. 4. Mídia social. 5. Arte. I. Andrade, Eliane Righi de. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Linguagem e Comunicação. Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte. III. Título.
CDD – 18.ed. t371.83
Para o Alê,
Por toda música, arte, amor e doçura.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Carlos e Maria do Carmo, por toda sabedoria e todos os
ensinamentos que me fazem querer saber mais sobre o mundo.
Ao meu sogro Antônio, meu irmão Pituta, meus cunhados Dani, Andréa e
Germano, por todo apoio e amor, mesmo nas horas mais difíceis (e a todo clã
Toledo Zaccarelli)
Ao meu titio Benedito, que sempre me incentivou no mundo das letras.
A todos os meus amigos pelas risadas, alegrias e sabedoria.
Aos meus alunos, que fazem querer melhorar como ser humano todo dia e me
dão o melhor motivo para sair da cama de manhã.
Aos professores do LIMIAR, em especial à Profa. Dra. Paula Almozara, por todo
apoio e orientações, inclusive nas horas de maior vulnerabilidade.
À minha orientadora, Profa. Dra. Eliane Righi de Andrade, com quem aprendi
MUITO nessa jornada: obrigada pela sensibilidade, amizade, paciência e
sabedoria.
Aos professores Maria de Fátima Amarante, Anna Maria Grammatico
Carmagnani, Maria José Coracini e Tarcísio Torres Silva, por aceitarem fazer
parte da construção deste trabalho com suas valiosas sugestões.
A todos os estudantes latino-americanos que lutam por uma escola melhor.
RESUMO
Este trabalho, inscrito no mestrado interdisciplinar LIMIAR – Linguagens, mídia e
arte – pretende compreender o significado das ocupações estudantis de
novembro de 2015 em São Paulo através de três pilares: a análise discursiva
sobre o episódio, a partir de referências teóricas como Foucault e Derrida, o
estudo do enfoque da mídia, a partir de Chomsky, e a análise de material
produzido pelos estudantes, a partir de Canevacci, para que, através do método
rizomático que tem na cartografia de Deleuze e Guattari seu principal
instrumento, possa-se compreender a questão das ocupações por diferentes
olhares e perspectivas. Espera-se trazer reflexões sobre a memória dos
movimentos estudantis, bem como a maneira pela qual foi construída a memória
discursiva das ocupações – atravessada, legitimada e ressignificada pelo
discurso das mídias. Busca-se, ainda, refletir se é possível pensar nas
ocupações como acontecimento, a partir de Foucault e Derrida, a fim de
entender os efeitos de sentido que estas manifestações produziram para a
construção da memória sobre os movimentos estudantis na história, em suas
diferenças e similaridades.
Palavras-chave: movimentos estudantis; ocupações; linguagem; mídia; arte.
Abstract
This work enrolled in the interdisciplinary master LIMIAR – Languages, media
and arts – aims to understand the meaning of the November 2015 student
occupations in São Paulo, through three pillars: the discursive analysis of the
episode, from theoretical references such as Foucault and Derrida, the study of
media based on Chomsky, and the analysis of materials produced by students,
brought up by Canevacci, so that through the cartography method of Deleuze
and Guattari, we can understand the issue of occupations from different views
and perspectives. We expect to bring reflections on the memory of the student
movement and the way discursive memory of occupations has been built –
crossed, legitimized and re-signified by the discourse of the media. We also hope
to bring reflections if it is possible to think of occupations as an event, from
Foucault’s and Derrida’s viewpoint, in order to understand the effects of meaning
that these events produced on the construction of the memory of the student
movements in History, their differences and similarities.
Keywords: Students movements; occupy; language; media; art.
Sumário
Introdução: tomada de decisão .......................................................................... 10
I. Estudo metodológico-teórico: traçando linhas de corte ....................................17
1.1. A interdisciplinaridade como possibilidade metodológica
1.1.1 Interdisciplinaridade............................................................................17
1.1.2. Rizoma..............................................................................................19
1.1.3. Cartografia ........................................................................................24
1.1.4. A Análise do Discurso como dispositivo analítico............................ 27
1. 2. Dobra primeira - Memória e arquivo: as ocupações e a memória
discursiva dos movimentos estudantis.................................................................. 30
1. 3. Dobra segunda - Mídia e comunicação urbana: a cobertura jornalística
e as relações de poder ........................................................................................ 39
1.4. Dobra terceira – O acontecimento e a escola-outra ................................... 52
1. 4. 1. A noção de acontecimento .......................................................... 52
1. 4. 2.1. A escola disciplinar e a heterotópica...........................................60
1.4.2.1.Heterotopia .................................................................................. 56
1.4.2.2.TAZ............................................................................................... 62
II. Análise: estudando representações que emergem das linhas da costura.......64
2.1. Ocupação x Invasão ............................................................................. 65
2.2. Estudantes (In)fames ........................................................................... 76
2.3. Escola disciplinar e heterotópica ........................................................ 94
Conclusões ........................................................................................................ 107
Referências......................................................................................................... 111
Anexo – Manual: Como tomar um colégio?........................................................ 120
10 Introdução: tomada de decisão
Memorável Luta consciente
E coincidentemente incrível E é difícil e dói saber
E descobrir Que a única coisa
Que cresce mais que a inflação É o genocídio
Só pra deixar bem claro, irmão Não tem arrego
Você fecha a minha escola E eu tiro o seu sossego1.
(Trecho de “Ocupar e resistir” de Mc Kóka e Fabrício Ramos2)
Revendo minha trajetória pessoal, percebo que muitos fatores me
levaram ao encontro da temática das ocupações das escolas e,
consequentemente, dos movimentos estudantis.
Ainda na graduação, como projeto de Iniciação Científica, escolhi
estudar, sob orientação da Professora Astrid Karen Nillson Sgarbieri, os
movimentos de resistência à ditadura militar no Brasil, mais especificamente as
metáforas nas letras das músicas de Chico Buarque, durante o período de
vigência do AI5 - a temática da resistência à repressão advinda do Estado
sempre me tocou profundamente. Já na pós-graduação em História da Arte,
quis investigar, unindo os campos de Educação e Arte, a dimensão do sensível
no ensino de literatura, justamente com o intuito de pensar um ensino que
humanize e comunique e que vá na contramão da mecanização e
mercantilização do saber na escola.
Além disso, minha própria trajetória profissional como professora de
ensino Fundamental 2 e Médio aumentou minha percepção de urgência de um
olhar mais atento para as necessidades dessa geração de adolescentes que,
1 A letra do rap de Mc Koka e Fabricio Ramos foi escolhida para compor esta introdução justamente porque remete a temas que discutiremos em nossa trajetória: “memorável” remete à ideia de acontecimento que trabalharemos a partir das noções de Foucault e Derrida, bem como à ideia de Homens infames, também de Foucault. Os autores também se colocam como a resistência frente às relações de poder da sociedade com a frase “não tem arrego” e chegam a dirigir-se ao governador “Você fecha minha escola e eu tiro o seu sossego”. Importante frisar que os dois autores eram estudantes secundaristas em 2015 e participaram ativamente das ocupações. 2 O videoclipe da música pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=PqiHEh1ly6U
11 em 9 de novembro de 2015, mostrou ao país que não acataria silenciosamente
a chamada Reorganização Escolar - uma medida unilateral do governo do
Estado de São Paulo, anunciada em 26 de outubro de 2015, que teve como
justificativa a tentativa de se ampliar o número de escolas que contém apenas
um só ciclo da educação3 – Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Médio – o
que deslocaria 311 mil alunos e 74 mil professores e fecharia 99 escolas4.
Acompanhei de perto o movimento dos alunos que lutavam, a meu ver, não
apenas contra o fechamento das escolas, mas também contra um sistema
escolar que não consegue abarcar novas formas de subjetividade de um
adolescente do século XXI, em relação, por exemplo, às demandas de uma
escola diferente a partir de atividades eleitas pelos alunos como “ideais” nesta
outra escola: a colaboração, o professor mediador, o aluno ativo, entre outras,
que foram reivindicadas nas ocupações escolares de 2015.
Acompanhei, também, muito atentamente, a cobertura da mídia sobre o
movimento. Saltava-me aos olhos como a mídia corporativa, em um primeiro
momento, teimava em criminalizar as ocupações, chamando-as de “invasões”,
claramente posicionando-se contra os estudantes. Depois, na medida em que o
movimento foi tomando o mundo digital, através das vozes dos próprios
alunos/ativistas e da chamada “mídia alternativa”, também ficou clara a
mudança de atitude da mesma mídia corporativa, que passou a apoiá-los,
talvez numa resposta à pressão da opinião pública.
Assim, ao ingressar no programa de Pós-graduação em Linguagens,
Mídia e Arte, quis inicialmente investigar a maneira pela qual a mídia legitima
(ou não) as relações de poder estabelecidas na sociedade, bem como refletir
sobre a possibilidade destes movimentos contribuírem para a desconstrução de
hegemonias e para a abertura de novos espaços de criação dentro da escola.
O olhar interdisciplinar abriu-me para possibilidades outras e fez com que
passasse a enxergar os movimentos a partir de novos olhares, como a filosofia,
a antropologia e a comunicação urbana, além de apresentar-me novas
maneiras de organizar e dispor o conhecimento científico. 3 De acordo com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo - http://www.educacao.sp.gov.br/reorganizacao-escolar. 4 A medida foi realizada através do Decreto Lei 61.672, de 30 de novembro de 2015. O texto, na íntegra pode ser acessado em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2015/decreto-61672-30.11.2015.html.
12
Pretendo, para este estudo, exercitar teórica e metodologicamente
aquilo que Deleuze e Guattari (2011) chamam de rizoma: para a biologia, uma
estrutura cujos brotos podem ramificar-se em qualquer ponto e transformar-se
em um bulbo ou um tubérculo; para a filosofia, uma estrutura que permite o
exercício da interdisciplinaridade de forma que todos os ramos do
conhecimento interajam, sem que haja hierarquização dos saberes.
Diferentemente da tradicional metáfora da árvore, que centraliza o
conhecimento e o divide em galhos que nascem de um tronco, o rizoma,
portanto, tem a capacidade de conectar qualquer ponto a qualquer outro ponto.
Para Ferreira (2008, p.33), o rizoma “seria uma maneira de expressar as
multiplicidades sem ter que ligá-las à unidade”, ou seja, nomear as diferenças
sem subordinar a pluralidade a uma forma unitária, mudando e formando novas
forças e configurações a cada momento.
Para este trabalho, a estrutura rizomática de análise se dá a partir das
reflexões acerca da linguagem, trazidas basicamente dos estudos do discurso,
pautando-nos principalmente nos estudos de Foucault; da memória discursiva
dos movimentos estudantis, a partir de um estudo genealógico dos movimentos
estudantis (FOUCAULT, 2004); da análise das manifestações estéticas
urbanas dos estudantes secundaristas, principalmente a partir de Massimo
Canevacci (2001); e dos estudos da mídia, a partir de Noam Chomsky (2013) e
ainda de autores que falam da convergência das mídias nas sociedades
contemporâneas digitalizadas, tais como Jenkins (2006), Bruns (2006) e Shirky
(2010).
Como corpus de análise e linhas constituintes na construção do método
rizomático, há elementos das mídias corporativa e alternativa – material sobre
as ocupações nas escolas públicas paulistas entre 9 de novembro de 2015
(data da primeira ocupação, na Escola Estadual Diadema, na Grande São
Paulo) e 7 de dezembro de 2015 (data em que o Comando das Escolas em
Luta recomenda a desocupação das 57 escolas que ainda estavam com
alunos).
13
Escolhemos a Folha de São Paulo como veículo da mídia corporativa a
ser analisado em virtude de, segundo o Instituto Verificador de Comunicação5,
ser o jornal com maior circulação em todo o país e, por isso, um significativo
formador de opinião dentro da sociedade brasileira.
Além disso, optamos por analisar o comportamento da mídia “dissidente”
(CHOMSKY, 2013), especificamente as páginas Mídia Ninja e Jornalistas
Livres, que cumpriram com o papel de acompanhar o dia a dia das ocupações
por outra perspectiva. Pretendemos confrontar a mídia corporativa e a
alternativa, em um estudo transmidiático6 (JENKINS, 2006), no intuito de
buscar pistas para investigar a possibilidade daquilo que Chomsky (2013)
chama de “consenso fabricado”.
Apresentamos este estudo composto a partir de três linhas de
intensidade (DELEUZE e GUATTARI, 1995), as quais remeteram aos tópicos
teóricos desenvolvidos, e que traçaram o que chamamos de “dobras”
(DERRIDA, 2006), constituindo o primeiro capítulo desta dissertação. A relação
entre dobras gerou os intercruzamentos para a análise, que aqui apresentamos
como segundo capítulo. Além desses elementos formais, a dissertação é
composta pela introdução, conclusão, referências bibliográficas e um anexo.
Usamos no sumário a metáfora da costura para pensar nos muitos
modos de se enxergar o objeto, pensando em cada dobra do tecido como uma
disposição diferente das muitas maneiras de dar forma a este tecido. Assim
como a palavra “texto” nos remete à sua raiz latina texĕre, que deu origem à
palavra “tecer”, pensamos que ambas palavras podem representar o mesmo
processo: tecendo fios e entrelaçando cada dobra do tecido, esperamos
costurar a tessitura daquilo que compôs as ocupações estudantis. Para
Derrida, na interpretação de Silviano Santiago (1976), a dobra é “a disposição
dos fios encobrindo outra disposição que, à mostra, suplementa a primeira – é
5 De acordo com o website www.ivc.org.br acessado em 28/01/2016 às 00:09. Todavia, de acordo com a Associação Nacional dos Jornais, a Folha de S. Paulo tem em sua versão impressa a terceira maior tiragem. Informação disponível em: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/. Acesso em 3 fev. de 2017. 6 Entendemos por estudo transmidiático, a partir dos conceitos de Jenkins (2006), aquele que se desenvolve por meio de múltiplas plataformas midiáticas, cada uma contribuindo de forma distinta para a compreensão do todo narrativo. Para este estudo, fazemos uso de jornais, redes descentralizadas de mídias dissidentes, artes visuais (especificamente o grafite), vídeo e cartazes produzidos pelos manifestantes.
14 a ausência que tece” (SANTIAGO, 1976, p.26). Assim pensamos o nosso
objeto: um grande tecido que será moldado no primeiro capítulo - por meio das
várias dobras - e, então, costurado com e pelas linhas da análise, construindo,
assim, nosso objeto – nossa roupa –, em que as linhas demarcam, pela
costura, as dobras. Essas dobras, seriam, portanto, apenas possíveis modos
de se moldar o tecido, constituindo, então, nosso “objeto”7.
Salientamos que, por tratar-se de um estudo rizomático, seria
interessante não hierarquizar ou mesmo ordenar cada tópico estudado, porém
temos a limitação da escrita linear, daí a escolha de apresentar este estudo em
duas partes – as quais chamamos de capítulos: um grande capítulo
metodológico-teórico e o segundo, a análise dos recortes selecionados. No
entanto, como a escrita é necessariamente linear, nos dedicamos a uma breve
descrição de cada “dobra”: a primeira, chamado de “memória”, é dedicada ao
estudo da memória dos movimentos estudantis, desde maio de 1968 na
França, passando pelo protagonismo da UNE no Brasil, na luta contra a
ditadura no país, até, mais recentemente, o movimento dos “caras-pintadas”
durante o processo de impeachment de Fernando Collor, para enfim tecer
relações com as ocupações estudadas, no intuito de descobrir se podemos
dizer que as ocupações entraram para a memória discursiva dos movimentos
estudantis. Na segunda, dedicamo-nos ao estudo do comportamento da mídia
durante as ocupações, bem como ao estudo das manifestações estéticas dos
alunos, apoiando-nos nos estudos de Massimo Canevacci (2003). Na terceira,
nos atemos ao estudo do conceito de acontecimento para Foucault e Derrida
com o objetivo de investigarmos se as ocupações podem ser chamadas de
acontecimento, além de refletirmos sobre alguns aspectos dos novos modos de
subjetivação que emergem dos discursos dos alunos que participaram das
ocupações.
No capitulo II, nos detivemos na análise que o material discursivo
provoca (a partir das dobras), fazendo uso da Análise do Discurso de linha
francesa (especialmente a partir de Pêcheux), como dispositivo analítico.
7 De acordo com o Glossário de Derrida, sob a supervisão de Silvano Santiago (1976): “O texto, como tecido de traços, mascara outro texto, a principio oculto (...) a dobra – disposição de fios encobrindo outra disposição que à mostra suplementa a primeira – é a ausência que tece” (p.26)
15
Tendo em vista todos os aspectos já mencionados e partindo do
pressuposto que as ocupações que aconteceram em novembro de 2015 nas
escolas públicas de São Paulo podem ser (re)lidas como movimentos
estudantis que, de certa forma, rompem e, ao mesmo tempo, reinterpretam os
sentidos instaurados por outros movimentos dessa natureza ao longo da
história, temos como hipótese que tais ocupações estudantis podem ser
entendidas como acontecimento em seu caráter discursivo e performativo,
gerando modos diversos de interpretação do evento pelas mídias e
manifestações estéticas pelas quais emergem pontos/indícios de novas formas
de subjetivação.
Durante nosso trajeto, nos propomos os seguintes objetivos de
pesquisa:
1. Identificar os efeitos de sentido produzidos pelo discurso dos
estudantes como possibilidades (ou não) para a caracterização do
movimento como acontecimento, segundo Foucault (2014a) e
Derrida (2001).
2. Discutir as imagens e dizeres que construíram a estética do
movimento, tais como pichações, cartazes e grafites, de modo a
entender como eles fazem parte da construção da memória do
evento e da representação de aspectos das subjetividades dos
estudantes.
3. Argumentar como as mídias corporativa e alternativa legitimam ou
resistem às relações de poder e como participam da construção dos
processos de memória.
Formulamos, assim, as seguintes perguntas de pesquisa:
1. Como as representações que emergem dos recortes analisados
constroem os arquivos e ressignificam a memória dos movimentos
estudantis e do estudante secundarista?
2. Tais ocupações estudantis podem ser entendidas como acontecimento
em seu caráter discursivo e performativo? De que modo?
3. Como, ao longo da cobertura jornalística, a imprensa legitima as
relações de poder e apresenta pontos de resistência do movimento?
16
4. Como esses novos olhares trazidos pelos alunos refletem alguns
aspectos das novas formas de subjetivação presentes?
Dessa forma, nessa pesquisa, que se insere no programa Interdisciplinar
LIMIAR – Linguagens, Mídia e Arte –, cabe-nos discutir os efeitos de sentido
que emergem dos textos que relatam o evento das ocupações de novembro de
2015, no que diz respeito à memória discursiva dos movimentos estudantis,
através da análise de material produzido pelos manifestantes (cartazes,
pôsteres, desenhos, gravuras, letras de música, etc), das reflexões sobre os
estudos sobre a mídia, empreendendo uma análise da natureza de
acontecimento em sua diferença e/ou mesmidade.
17 Capítulo I - Estudo metodológico-teórico: traçando linhas.
1.1 - A interdisciplinaridade como possibilidade metodológica
1.1.1- Interdisciplinaridade
Em entrevista ao jornal catalão La vanguardia, em 1997, José Saramago
afirmou que “a vida, que parece uma linha recta, não o é. Construímos a nossa
vida apenas nuns cinco por cento, o resto fazem-no os outros, porque vivemos
com os outros e, por vezes, contra os outros”8. Talvez a metáfora usada pelo
escritor português para explicar a vida possa ser também usada para que
compreendamos o caminho (e os olhares) da investigação que ora se
apresenta: parece uma linha reta, mas não o é.
Desde o início da era moderna, o desenvolvimento das ciências que
buscava compreender o mundo por um viés estritamente racional e científico,
incentivou a compartimentalização dos saberes para a compreensão dos
objetos de pesquisa. A separação do conhecimento em disciplinas e o uso
estrito da racionalidade tornou possível o desenvolvimento do saber científico,
separando-o do saber tradicional e/ou místico que prevalecia na sociedade até
então. O conhecimento passou a ser cada vez mais compartimentalizado,
segregado, delimitado, e foi justamente essa atitude que promoveu o
extraordinário avanço das ciências. Todavia, com a chegada da pós-
modernidade9 e o advento das chamadas novas tecnologias e a globalização,
esta maneira hipercompartimentalizada de olhar para o mundo passou a não
8 Disponível no site da Fundação Saramago: http://caderno.josesaramago.org/74831.html, acesso em 05 de março de 2017 às 18:43. 9 Alguns autores entendem a pós modernidade como uma ruptura das grandes narrativas totalizantes do século XIX (LYOTARD, 1998) que influenciaram o século XX. David Harvey (2005: 46) afirma que “a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista e pós estruturalista que abalou Paris em maio de 1968 produziu o que Bernstein chama de raiva do humanismo e do legado do Iluminismo”, por exemplo. Outros autores, como Peters (2000), acreditam que o pós modernismo seria uma radicalização dos ideais modernistas. O pós estruturalismo, o desconstrutivismo, e o relativismo seriam, portanto, todos consequência dessa radicalização que teve seu início na primeira metade do ano de 1968 na França.
18 ser mais suficiente. Novas questões emergiram, novos problemas foram
postos, novas relações econômicas, políticas e culturais surgiram, de modo
que as ciências e o desenvolvimento do conhecimento viram-se impelidos a
utilizar-se da união de recursos de duas ou mais disciplinas com o intuito de
compreendê-los em diferentes aspectos. Teixeira (2008, p. 61) argumenta:
O desenvolvimento da ciência moderna é acompanhado pela permanente multiplicação das disciplinas, de departamentos e currículos acadêmicos. A história da ciência e a epistemologia já não dão conta da complexidade teórica e dos métodos científicos. O conceito de ciência hoje e a unidade da ciência estão em crise. Os processos de investigação científica são múltiplos.
Assim, a interdisciplinaridade tornou-se necessária e urgente para a
compreensão de fenômenos típicos da nossa época. A questão passou a ser,
então, como convergir áreas do conhecimento de origens epistemológicas
diversas e muitas vezes com objetivos contraditórios. A imagem da rede é,
segundo Silva (2011), frequentemente utilizada nos campos de pesquisa para
que se compreenda a natureza múltipla dos objetos estudados na pós-
modernidade: a imagem de fios que se unem entrelaçados por infindáveis nós
compostos de múltiplos atores traduz a natureza complexa de uma
investigação que vai na contramão da tradicional compartimentalização dos
saberes e procura, justamente através dessas relações, olhar o objeto de forma
multifacetada.
A complexidade é efetivamente a rede de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico. A complexidade apresenta-se, assim, sob o aspecto perturbador da perplexidade, da desordem, da ambiguidade, da incerteza, ou seja, de tudo aquilo que é e se encontra do emaranhado, inextricável. (MORIN, CIURANA, MOTTA, 2003 apud SILVA, 2011, p.44)
Teixeira (2007) reafirma a urgência pela implementação de olhares
interdisciplinares na pesquisa acadêmica ao afirmar que:
19
A interdisciplinaridade impõe-se, de um lado, como uma necessidade epistemológica e, de outro lado, como uma necessidade política de organização do conhecimento, de institucionalização da ciência. (TEIXEIRA, 2007, p.60)
Importante ressaltar, ainda, que a interdisciplinaridade não possui uma
fórmula ou uma metodologia preestabelecida. Como afirma Fazenda (2008,
p.21), deve-se, todavia, distinguir a interdisciplinaridade escolar, ou
pedagógica, voltada para as estratégias de ensino em sala de aula de
conteúdo programados, da interdisciplinaridade científica, essa, sim, nosso
foco da nossa investigação, que concentra o trabalho de diferentes
especialidades para a resolução de problemas complexos. Trindade (2008,
p.73) argumenta que mais do que um método, a interdisciplinaridade requer
uma atitude do pesquisador:
Concebemos interdisciplinaridade como uma atitude de humildade diante dos limites do saber próprio e do próprio saber, sem deixar que ela se torne um limite; a atitude de espera diante do já estabelecido para que a dúvida apareça e o novo germine: a atitude de respeito ao olhar o velho como novo, ao olhar o outro e reconhecê-lo, reconhecendo-se; a atitude de cooperação que conduz às parcerias, às trocas, aos encontros, mais das pessoas do que das disciplinas, que propiciam as transformações, razão de ser da interdisciplinaridade.
Assim compreendemos o olhar para o nosso objeto de pesquisa:
investigaremos as ocupações estudantis nas escolas públicas de São Paulo
em 2015, a partir de aspectos (metodológicos e teóricos) em campos de
conhecimento diversos (discursivo, midiático, antropológico e filosófico), no
intuito de formar uma rede de saberes sobre os eventos que se entrelaçam
formando aquilo que Deleuze e Guattari chamam de rizoma (1995).
1.1.2 Rizoma
Esta maneira contemporânea de pensar as relações em rede tem como
inspiração, nesta pesquisa, o conceito de rizoma tal como formulado na obra
20 Mil platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995), em que os autores apresentam
possíveis caminhos para a construção da investigação interdisciplinar. Afinal,
como nos explicam os autores, há de se fazer o múltiplo, ou seja, afirmar-se
interdisciplinar e mergulhar em seus textos teóricos não garante que a
pesquisa o seja. É preciso desenvolver estratégias e atitudes que garantam
uma abertura cada vez maior ao sistema rizomático de pensamento.
É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas ao contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe (...).Um tal sistema com base subterrânea poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos são rizomas. Plantas com raíz ou radícula podem ser rizomórficas (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.22).
Deleuze e Guattari trazem para a filosofia uma analogia da botânica: um
rizoma, para a biologia, é uma estrutura componente em algumas plantas cujos
brotos podem ramificar-se em qualquer ponto e transformar-se em um bulbo ou
um tubérculo. Este rizoma pode funcionar como raiz, talo ou ramo,
independentemente de sua localização na planta (2007)10. Diferentemente de
uma árvore, portanto, o rizoma tem a capacidade de conectar um ponto a
qualquer outro. Para Ferreira (2008, p.33), o rizoma “seria uma maneira de
expressar as multiplicidades sem ter que ligá-las à unidade”, ou seja, nomear
as diferenças sem subordinar a pluralidade a uma forma unitária, escapando da
lógica binária e entrando no esquema de vetores, que se ligam uns aos outros,
mudando e formando novas forças e configurações a cada momento.
Para a filosofia, o rizoma é quase a configuração de um “anti-método”:
se, usando a metáfora utilizada por Deleuze e Guattari (1995), a organização
do conhecimento no pensamento cartesiano se dá tendo em mente a imagem
da árvore – em que, a partir de uma estrutura centralizadora, ramos do
conhecimento vão se formando como galhos, que, por sua vez, não se
comunicam –, a imagem do rizoma remete a uma estrutura não hierarquizante, 10 De acordo com o glossário de termos botânicos de Rosete Batarda Fernandes (2007): Rizoma (Rhizoma) - caule subterrâneo, com aspecto de raiz, distinguindo-se desta pela anatomia e por possuir escamas e gemas. Disponível em: http://www.uc.pt/herbario_digital/glossario. Acesso em: 28/01/2016 às 21:09.
21 cujas ramificações se comunicam de qualquer ponto, para qualquer ponto e
pretendem fugir da lógica binária para criar um sistema aberto, que se baseia
nos princípios a seguir (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 22-26):
1. Princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto do rizoma é
passível de ser conectado a qualquer outro ponto do rizoma. A este tipo de
estrutura cabe a conexão entre relações de poder, elementos do campo das
artes, das ciências sociais, etc.
2. Princípio da multiplicidade: uma multiplicidade não tem objeto nem
sujeito, segundo Deleuze e Guattari. Importante salientar que o rizoma não tem
início nem fim, mas um meio, no qual a ideia da gênese mostra-se como um
devir. A multiplicidade, portanto, refere-se ao fato de que ela própria é
constituinte do rizoma.
3. Princípio da ruptura assignificante: que se dá contra cortes que
separam a estrutura ou atravessam estruturas, destacando-se o fato de que o
rizoma pode ser rompido em qualquer ponto, não há começo e fim e a linha de
fuga11 faz parte do rizoma e o ajuda a reestratificar o conjunto.
4: Princípios da cartografia e de decalcomania: mais uma vez reiterando
a ideia primordial do que é um rizoma, os autores explicitam o fato de que ele
não pode ser explicado por nenhum modelo gerativo, estrutural. O rizoma é
estranho a qualquer eixo. “Fazer o mapa e não o decalque”, nos dizem os
autores. O mapa constrói conexões abertas e é suscetível de receber
modificações constantes.
No mesmo trecho, os autores ainda abrem a possibilidade de onde pode
o “mapa” ser feito:
11 Ainda pensando na metáfora trazida da botânica, o rizoma, por ser uma raiz que cresce horizontalmente e para qualquer direção, cria linhas que escapam ainda mais da centralização e se conectam a outras raízes – o que Deleuze e Guattari chamam de linha de fuga. Dizem-nos os autores: “Todo rizoma compreende linhas de segmentalidade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, atribuído, etc; mas também compreende linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma”. (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 25-26.)
22
Ele pode ser rasgado, revertido, suscetível de receber modificações, adaptado a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um grupo, um indivíduo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 30).
Em uma entrevista de 23 de outubro de 1980 para o jornal Liberatión,
Gilles Deleuze (1980; s.p) define o rizoma da seguinte maneira:
O que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de sistema aberto. Volto à questão: o que é filosofia? Porque a resposta a essa questão deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos não são dados prontos, eles não preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos, e há aí tanta invenção e criação quanto na arte ou na ciência. (DELEUZE, 1980, s.p.)
Ferreira (2008, p.38) ainda salienta que, na utilização do método
rizomático em pesquisas científicas, há de se cuidar para não cair na armadilha
da hierarquização, em que se privilegia uma ligação rizomática em detrimento
da outra. A análise deve ser sempre simétrica, olhando a rede como um todo.
Para a formação do rizoma, todas as ligações são igualmente importantes. Diz-
nos a autora: Ao utilizarmos o rizoma como método para apreender um mundo que se produz como rede, é preciso que estejamos sempre atentos para não cairmos no esquema transcendente da árvore; isto é, o pesquisador não pode ser capturado pelo esquema classificatório e reducionista de hierarquização, já que assim estaremos criando um decalque que será supervalorizado, criando uma estagnação nas formas de agenciamentos e produzindo pré-conceitos e discursos de autoridade. Para tanto, é importante ter sempre em mente os princípios do rizoma que irão sempre orientar a cartografia. Neste processo, não se deve privilegiar nenhuma entrada e nenhuma saída, pois todos os dispositivos são válidos e influem na composição dos territórios. A análise simétrica de todos os efeitos produzidos na rede é necessária para se compor um mapa da mesma. (FERREIRA, 2008, p.38)
Pretende-se, assim, para este trabalho, a construção de um dispositivo
rizomático de análise, a partir das reflexões acerca da linguagem, trazidas
basicamente dos estudos discursivos de Foucault; da memória discursiva dos
23 movimentos estudantis; da análise das manifestações estéticas dos estudantes
secundaristas, a partir da antropologia da comunicação urbana de Massimo
Canevacci e outros; e dos estudos da mídia, a partir de Noam Chomsky, bem
como de autores que falam da convergência das mídias e seus efeitos nas
sociedades contemporâneas, tais como Jenkins (2006), Bruns (2006) e
Shirky.(2010).
Como corpus de análise, a partir de um levantamento extensivo sobre os
movimentos de ocupação, feito entre março e junho de 2016 em redes sociais,
na Folha de São Paulo e nos veículos de mídia alternativa Midia Ninja e
Jornalistas Livres, foram selecionados recortes discursivos sobre as ocupações
nas escolas públicas paulistas entre 9 de novembro de 2015 e 7 de dezembro
de 2015.
Outra questão que se apresenta é a reflexão sobre a narrativa que os
estudantes construíram sobre si mesmos. Como os alunos se viam? Seria
como “homens infames”, conceito trazido por Foucault para designar aqueles
cujas vidas apenas sabemos por acaso, “poemas-vidas” que teriam sido
esquecidas não fosse sua relação com o poder estabelecido de sua época?
Diz-nos Foucault:
Aparentemente infames, por causa das lembranças abomináveis que deixaram, dos delitos que lhes atribuem, do horror respeitoso que inspiraram eles são de fato homens da lenda gloriosa, mesmo se as razões dessa fama são inversas àquelas que fazem ou deveriam fazer a grandeza dos homens. Sua infâmia não é senão uma modalidade da universal fama (2003, p.210).
Assim, para que possamos analisar as narrativas que os estudantes
fazem de si e a estética do movimento, constituiu-se como corpus de análise
textos verbais e não verbais de cartazes, pôsteres, grafites, pichações,
músicas, vídeos e quaisquer outras manifestações visuais produzidas pelos
alunos no período das ocupações, os quais foram selecionados das mídias
mencionadas, notadamente a partir das páginas Não fechem minha escola e O
Mal Educado, ambas páginas dos movimentos no facebook, como também
24 páginas específicas das escolas efetivamente ocupadas como o Não mexa no
Josepha.
Todavia, assim como um explorador, de posse do mapa em suas mãos,
precisa de um meio para locomover-se, precisamos estabelecer o meio pelo
qual exploraremos todas essas relações: a cartografia.
1.1.3. Cartografia
O conceito de cartografia nos é apresentado por Deleuze e Guattari
(1995) na introdução de Mil Platôs como um dos princípios do rizoma: a
cartografia nos dá pistas de uma ruptura ao pensamento cartesiano, por se
apresentar como um sistema aberto composto por linhas que conectam e se
entrecruzam e que, respeitando as inúmeras linhas do rizoma, todos os pontos
podem comunicam-se. Questionam-nos os autores, assim, “como seria
possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização não fossem relativos se não estivessem em perpétua
ramificação, presos uns aos outros?” (1995, p.26).
A cartografia, ainda segundo os autores, é um princípio “inteiramente
voltado para a experimentação ancorada no real” (DELEUZE e GUATTARI
1995,p.21) e toma o mapeamento do conhecimento como algo a ser criado a
partir de experimentações, o que se contrapõe ao decalque, metáfora utilizada
pelos autores para explicar a abordagem que vê o mundo como já dado, a ser
apenas descoberto. O mapa, ao contrário, nos explicam os autores:
[o mapa] contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência (...). Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um individuo, um grupo, uma formação social (1995, p.30).
Importante ressaltar que, de acordo com Passos, Kastrup e Escóssia
(2014) o método da cartografia não apresenta um conjunto de regras, nem
pressupõe um conhecimento pronto a ser transmitido. Cartografar, segundo os
25 autores, se aprende no fazer, na prática, no caminho metodológico que se faz
ao seguir o mapeamento do cartógrafo entre os diferentes caminhos que o
rizoma produz. Dizem-nos os autores:
O método cartográfico se alia à discussão mais geral da crítica aos especialismos e aposta na transdisciplinaridade12 enquanto desestabilização do que se delimita como campo de uma disciplina. Atravessando diferentes domínios, provocando interlocuções, aceitando o desafio de pensar no limite entre os saberes, a transdisciplinaridade coloca em questão os objetos bem definidos e as teorias internamente consistentes, a preexistência de sujeitos do conhecimento e objetos a serem conhecidos, os campos bem demarcados das práticas discursivas, os especialistas defensores de territórios identitários de conhecimento (2014, p.202)
Para Passos e Eirado (2014), algumas pistas sobre o método da
cartografia podem ser extraídas a partir das reflexões de Deleuze e Guattari:
deve-se articular a direção metodológica a partir de três ideias: a
transversalidade, a implicação e a dissolução do ponto de vista do observador13
(2014, p.109).
O conceito de transversalidade foi desenvolvido por Guattari (1985) em
Revolução Molecular e diz respeito à mudança no eixo do padrão
comunicacional das instituições, uma espécie de terceiro eixo que nega o
horizontal e vertical e desestabiliza a hierarquia.
Passos e Eirado (2014, p.116) esclarecem que, na perspectiva da
pesquisa científica, isso significa que a produção não implica um
desvelamento, uma descoberta, já que para Guattari a transversalidade faz
variar os pontos de vista do pesquisador, que é atravessado por múltiplas
experiências. A ideia da implicação, ainda segundo os autores:
12 Piaget (1973:76-79) dizia que a interdisciplinaridade é uma forma de pensar. O epistemólogo suíço sustentava que a interdisciplinaridade seria uma forma de se chegar a transdisciplinaridade, etapa que não ficaria na interação e reciprocidade entre as ciências, mas alcançaria um estágio onde não haveria mais fronteiras entre as disciplinas (nota nossa).
13 Essa dissolução do ponto de vista do observador relaciona-se, também, com a relação de internidade e distância de Canevacci (2004), que será desenvolvida a seguir.
26
[c]ria um constrangimento para quem defenderia a neutralidade indispensável para a objetividade científica, defenderia a distância entre sujeito e objeto, defenderia a separação entre sujeito e prática e ainda, diríamos, entre conhecimento e política (PASSOS e EIRADO, 2014, p.117).
Baseada no conceito desenvolvido por René Laurau (1994) no artigo
“Implicação-Transducção”, a ideia de implicação passa por reconhecer que o
sujeito-pesquisador está “implicado”, está inserido na sociedade em que vive, é
por ela influenciado e isso se refletirá em sua pesquisa. Laurau se distancia do
pressuposto cartesiano de que o pesquisador é uma máquina racional e neutra.
Já a ideia da dissolução do ponto de vista do observador baseia-se na
premissa de que conhecer não é uma mera aquisição, mas uma atitude ativa
do pesquisador. Tendo isso em mente e lembrando-se do pressuposto de que
o mundo, para Deleuze, não é um decalque, ou seja, não é algo pronto e
acabado a ser explorado, esta terceira ideia nos ensina que cartografar é
intervir no espaço, no objeto de pesquisa. O tradicional ponto de vista do
observador é dissolvido diante das experiências e interferências que o território
percorrido lhe proporciona. Passos e Eirado (2014) nos esclarecem:
É preciso que se escape da tentação de, frente a problemas que nos forçam a pensar, apenas buscar soluções e testar hipóteses. O cartógrafo deixa-se penetrar pela emergência de mudanças de ponto de vista que surgem no território como problemas ou crises existenciais e que podem permitir a abertura para o reconhecimento de uma maior liberdade autogestiva dos indivíduos e coletivos – isso que Guattari designou de quantum mais amplo de transversalidade (2014, p.123).
Ainda sobre o aspecto da postura do pesquisador e a dissolução de seu
ponto de vista, lembramos a polifonia de Canevacci (2004), para quem só é
possível fazer a antropologia da comunicação urbana se se adotar,
paradoxalmente, uma aproximação e um distanciamento do objeto estudado.
Canevacci comenta sobre sua própria experiência como estrangeiro em São
Paulo, afirmando que Roma se tornou mais compreensível para ele estando
27 em São Paulo. Sobre o distanciamento/proximidade do pesquisador, afirma o
autor:
A máxima distância e a máxima internidade são dois processos mutualmente contraditórios, separados mas vinculados, e que constituem as bases metodológicas da observação antropológica nos territórios urbanos e das suas possíveis representações. O ponto de vista subjetivo e objetivo, o do observado e do observador devem estar sempre copresentes no próprio “foco” ocular: por isso, o olhar antropológico é oblíquo (2004, p.21)
Importante reforçar: a cartografia não é um conjunto de regras a ser
seguido, mas um caminho a ser traçado pelo cartógrafo e suas experiências
durante o trajeto que o território rizomático de suas investigações o fizer
seguir. Cartografar implica em ampliar o foco de atenção às subjetividades e
não pressupor que a ciência é feita por indivíduos estritamente racionais e
previsíveis. Cartografia é criação, na medida em que há uma nova e bem
vinda liberdade no ponto de vista do pesquisador e na escolha de múltiplos
caminhos (e olhares) no infinito emaranhado de nós que a rede tecida pela
interdisciplinaridade foi capaz de estabelecer. Assim, traçaremos linhas
imaginárias percorrendo o caminho da memória e dos arquivos dos
movimentos estudantis, da repercussão das ocupações nas diferentes mídias
e dos movimentos como acontecimento. Todavia, da mesma forma que o
cartógrafo precisa estabelecer uma linguagem que o orienta enquanto lê o
mapa que tem em mãos, precisamos estabelecer o gesto de leitura que nos
guia pelo acontecimento das ocupações estudantis em 2015: a Análise do
Discurso de linha francesa, que tem em Pêcheux um de seus grandes
expoentes, aproximando-nos ainda dos estudos de Michel Foucault, com
quem dialogamos aqui.
1.1.4. A Análise do Discurso como dispositivo analítico
A Análise do Discurso se preocupa com as relações entre linguagem,
estrutura e história. Como somos todos perpassados por ideologias que se
28 manifestam nos enunciados que produzimos, a AD contribui para fazer
emergir na e pela interpretação as formações ideológicas que perpassam os
discursos, com o objetivo de fazer uma reflexão sobre a materialidade
linguística na relação com a História. Orlandi (2005) esclarece que o discurso
é concebido como um lugar particular em que essa relação ocorre e, pela
análise do funcionamento discursivo, objetiva-se explicar os mecanismos de
determinação histórica dos processos de significação.
Pêcheux (1997) utiliza-se do acontecimento da eleição de Mitterand em
1981 e seu famoso enunciado “On a gagné” (ganhamos) para refletir sobre a
questão do discurso como estrutura e como acontecimento. O momento do
anúncio da eleição inesperada de Mitterand para presidente da França em
1981 foi reportado, segundo Pêcheux (1997), por enunciados como: “F.
Mitterand é eleito presidente da República Francesa”; “A esquerda francesa
leva a vitória eleitoral dos presidenciáveis”; “A coalização socialista-comunista
se apodera da França”. Partindo daí, nos esclarece Pêcheux que, apesar de
se referirem ao mesmo fato, os três enunciados “não constroem as mesmas
significações” (1997, p.20).
Pêcheux (1997) passa, em seguida, a fazer uma breve análise do
famoso enunciado “on a gagné” que foi entoado coletivamente pelos eleitores
de Mitterand na praça da Bastilha para celebrar a vitória eleitoral. De acordo
com o autor:
A materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ela não tem o conteúdo nem a forma nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de uma manifestação ou de um comício político. “On a gagné” [ganhamos] cantado com um ritmo e melodia determinados (on-a-ga-gné/dó-dó-sol-dó) constitui a retomada direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo de torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar (1997, p.21).
Assim, utilizaremos conceitos da Análise do Discurso como formações
discursivas e memória discursiva, além de tomar a materialidade linguística
como possibilidade de adentrar o corpus de análise, utilizando-nos de alguns
recursos linguísticos para interpretar os recortes discursivos que o constituem,
tais como o uso de dêiticos, tempos verbais, a adjetivação e a nominalização.
29 Tais procedimentos expõem, portanto, o olhar discursivo para o material de
análise, que permite articular língua e história e a perspectiva de
acontecimento discursivo.
30 1.2. Dobra primeira - Memória e arquivo: as ocupações secundaristas e a memória discursiva dos movimentos estudantis
Quando, em 22 de março de 1968, os estudantes da faculdade de Letras
de Nanterre, nos arredores de Paris, ocuparam o prédio da administração da
cidade em protesto contra a prisão de estudantes que se manifestavam contra
a guerra do Vietnã e iniciaram o “movimento 22 de março”, talvez não
pudessem prever que aquela se transformaria na maior e mais importante
manifestação estudantil organizada da história – a qual viria a culminar em
maio daquele ano e que, até hoje, é a grande referência quando o assunto são
manifestações estudantis no mundo (o que nos remete à ideia de
acontecimento, tanto em 1968, quanto em 2015).
Para se ter uma ideia do tamanho e da importância do movimento, em
13 de maio de 1968, com o apoio da classe trabalhadora francesa, entre 6 e
10 milhões de grevistas pararam o país em apoio aos estudantes. Os operários
da Renault e da Rodia ocuparam as fábricas em que trabalhavam e intelectuais
e artistas ocuparam o teatro Odeon - foi a primeira vez na história que
operários, intelectuais e estudantes uniram-se em uma causa comum. Sobre
isso, diz-nos Hobsbawm:
De todos os acontecimentos inesperados dos últimos anos da década de 1960, período notavelmente ruim para os profetas, o movimento de maio de 1968 foi, sem dúvida, o mais surpreendente e para os intelectuais de esquerda, provavelmente o mais empolgante. Pareceu demonstrar o que praticamente nenhum outro revolucionário acima de vinte e cinco anos, incluindo Mao-Tse-Tung e Fidel Castro, acreditava, isto é, que era possível fazer uma revolução em um país industrial avançado em condições de paz, prosperidade e aparente estabilidade política (2015, p. 301).
O ano de 68 foi, aliás, especialmente importante para os movimentos
estudantis como um todo. De acordo com Carmo (2000), naquele ano a
Organização das Nações Unidas chegou a contabilizar manifestações
estudantis em cerca de 50 países em todo o mundo. Desde a Passeata dos
100 mil, aqui no Brasil, em 26 de junho, até o trágico Massacre Tlateloco, no
31 México, com o assassinato de 300 estudantes que faziam uma passeata no
centro da Cidade do México em 2 de outubro. Assim, a força das
manifestações francesas parecia inspirar estudantes em todo o mundo. Não à
toa, Carmo afirma que:
[o] ano de 1968 simboliza o sonho de uma transformação social. A partir da expansão descontrolada da revolta estudantil, com greves e barricadas detonadas na França, a rebelião explodiu em diversas partes do mundo e teve características distintas em cada país. A rebelião da chamada “nova esquerda” encampou ideologias diversas, rejeitando tudo o que envolvia o conservadorismo burguês (CARMO, 2000, p.301).
Todavia, muito se discute sobre os efeitos dessas manifestações.
Hobsbawm chega a afirmar que elas “malograram” (2000, p.75), mas outros
autores, como Edgar Morin, em 1978 (dez anos, portanto, após o início dos
movimentos na França), entendem que os efeitos são maiores do que a
derrubada (ou não) do governo francês de De Gaulle. Refletindo sobre os
(ainda) possíveis efeitos das manifestações, o autor afirma que:
[o] essencial é o seguinte: maio de 68 ensinou que o subsolo da sociedade está minado. Antes de 68, vivíamos em uma sociedade que acreditava repousar em um terreno sólido, maciço. A sociedade industrial triunfava, era capaz de resolver todos os problemas do homem moderno – a fome, a miséria, a servidão (....). Agora, depois de 68, uma ansiedade, uma inquietação, pairam sobre a sociedade industrial. Maio de 68 marca, assim, uma ruptura. Antes desse acontecimento, a sociedade industrial não duvidava de si mesma, estava como que anestesiada com o próprio êxito. Desde então, ela sabe que seu subsolo é poroso, oco (MORIN, 1978, p. 34 apud Cohn e Pimenta, 2008).
Todavia, é importante recordar que Maio de 68 não aconteceu por
acaso: desde 1964, estudantes começaram a se reunir em manifestações em
diferentes lugares do mundo: os manifestos contra a guerra do Vietnã, nos
Estados Unidos; as manifestações na Alemanha, desde 1967, com o
assassinato do estudante Benno Obnesorg; e, em abril de 1968, com o
atentado contra o líder estudantil Rudi Dutschke, fatos que criaram algumas
das condições para que os movimentos na França florescessem: toda uma
32 geração parecia querer lutar contra o conservadorismo, a favor dos direitos
civis, da revolução sexual e pela criação do movimento pelo meio ambiente.
Aqui no Brasil, com o silêncio imposto pela ditadura militar a todos os
setores da sociedade, o protagonismo dos estudantes contra o regime ficou
cada vez mais evidente: ao longo de 66 e 67, várias greves e passeatas foram
organizadas a partir de Centros Estudantis e, em 1968, a morte do estudante
Edson Luís, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, foi o estopim para
uma série de manifestações contra a repressão militar, como a Passeata dos
Cem mil, em 26 de junho de 1968, que contou com a presença de artistas e
intelectuais, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Nara Leão e Clarice
Lispector, entre outros.
Figura 1 - Passeata dos Cem mil, 26 de junho de 1968. Disponível em www.memoriasdaditadura.org.br. Acesso em 21 de dezembro de 2017.
Assim como no resto do mundo, as manifestações no Brasil tiveram,
além do caráter político, o papel de desafiar as regras de costumes. Conta-nos
Zuenir Ventura, que também estava na Passeata dos Cem Mil, que
“questionavam-se os valores institucionais do casamento burguês: monogamia,
fidelidade, ciúme, virgindade” (1988, p.51).
33
Porém, com a decretação do Ato Institucional número 05 (AI-5), que
estabelecia, entre outras medidas, a dissolução do Congresso Nacional, a
repressão aumentou significativamente e os movimentos estudantis
radicalizaram-se, indo para clandestinidade: A UNE (União Nacional dos
Estudantes), as UEEs (Uniões Estaduais dos Estudantes) e os DCEs
(Diretórios Centrais Acadêmicos) foram postos na ilegalidade e uma parte do
movimento estudantil acabou se transformando em base para a guerrilha
urbana, dando suporte a grupos armados como a VPR (Vanguarda popular
revolucionária) e a ALN (Aliança libertadora Nacional). Segundo o grupo
Memórias da Ditadura14, ligado à comissão da verdade, 6% de todos os mortos
e torturados na ditadura militar no Brasil eram estudantes.
Os movimentos estudantis retornaram à legalidade apenas em 1977,
com Ernesto Geisel na Presidência e com a retomada das manifestações
estudantis nas ruas de todo país. Em 1979, a UNE foi refundada.
Figura 2 - Congresso de reconstituição da UNE, em 1977 Foto disponível em www.une.org.br. Acesso em 21 dez 2017.
14Disponível em http://memoriasdaditadura.org.br/. Acesso em 23 de dez. 2017
34
Outro momento em que os estudantes foram colocados como
protagonistas de mudanças sócio-políticas aconteceu nos anos 90, durante a
campanha pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, o primeiro
presidente eleito democraticamente após a ditadura militar.
Após denúncias publicadas na revista Veja, em 27 de maio de 1992,
feitas pelo irmão do presidente, Pedro Collor, de que o presidente e seu
tesoureiro de campanha, Paulo Cesar Farias, estariam envolvidos em lavagem
de dinheiro, evasão e divisas e trafico de influências, a UNE (União Nacional
dos Estudantes) voltou a assumir o protagonismo realizando um fórum pelo
afastamento do presidente, em 29 de maio de 1992. A partir daí eles ficaram
conhecidos como os “caras-pintadas”, pois saíam às ruas com tinta no rosto.
Em 14 de agosto, o Presidente foi à TV pedindo que os brasileiros
fossem às ruas vestindo verde e amarelo como demonstração de apoio ao seu
governo, mas o que se viu foi justamente o contrário: os jovens se vestiram de
preto, em sinal de luto e o dia ficou conhecido como “domingo negro”.
Figura 3 - Os caras-pintadas, em 1992. Imagem disponível em http://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/jovens-de-caras-pintadas-9666114, acesso em 21 dez 2017
35
Em 25 de agosto, cerca de 400 mil estudantes protestaram em frente ao
MASP, 80 mil em Salvador e 100 mil no Recife, fazendo pressão sobre o
Congresso Nacional que apurava as denúncias através de uma CPI. Em 29 de
setembro a Câmara votou pelo afastamento do presidente e, em 29 de
dezembro de 1992, Fernando Collor de Mello renunciou à presidência.
Mas trazendo esses fatos históricos para nosso estudo sobre as
ocupações estudantis de 2015, em que aspectos podemos afirmar
similaridades entre os movimentos? Podemos dizer que os movimentos das
ocupações de 2015 se inscrevem na memória dos movimentos estudantis?
Em primeiro lugar, é preciso pensar no que queremos dizer com
“memória discursiva”. Segundo Coracini (2011, p.32),
[a] perspectiva discursiva desloca a memória como lembrança ou recordação como algo que se supõe ter realmente acontecido para a constituição dos sujeitos e dos discursos: uma forma de o sujeito se dizer e dizer o mundo. (...) Abarcando outros dizeres historicamente construídos, que o sujeito reatualiza em seu discurso e recebida por herança ou por experiências vivenciadas, a memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no seio das práticas discursivas já que marca a relação do homem com a linguagem.
Para Foucault (2013), que também trata a memória sob uma perspectiva
discursiva, a noção de arquivo não é nem o conjunto de documentos que uma
cultura tem, nem a instituição encarregada de guardar esses documentos, mas
“a lei do que pode ser dito. O sistema que rege o surgimento dos enunciados
como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2013, p.170) e que faz com
que interpretemos os arquivos segundo um tempo-espaço, dentro das relações
de poder que o constituem. Em A arqueologia do saber, Foucault (2015) nos
propõe sua visão de arquivo:
Não entendo por este termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida: não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que
36
tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas: mas que tem aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo (2015, p.158)
Ou seja, para Foucault, é o conjunto de enunciados efetivamente ditos em
determinada época. Em Ditos e Escritos I (2014, p.499), o autor ainda nos
esclarece que entende por arquivo o conjunto de “discursos pronunciados”,
considerando que esse conjunto continua funcionando e se transformando
através da história, e que se trata da possibilidade de surgir através de novos
discursos.
Coracini, todavia, complementando o pensando foucaultiano em relação à
memória esclarece que:
[c]abe aqui um esclarecimento: não se pode lembrar se o que aconteceu não tiver sido esquecido, porque recordar é sempre interpretar. A memória, é portanto, sempre um esquecimento, pois é sempre uma interpretação de algo que já passou; passado que se faz presente, presente que a todo momento já é futuro (2007, p.16)
Partindo para a discussão das ocupações como elemento constitutivo dos
arquivos de memória, um episódio acabou por elucidar questões ligadas à
memória dos acontecimentos de forma quase espontânea: um vídeo, publicado
na página Não mexa no Josepha,15 mostrava uma aluna/manifestante sendo
entrevistada por um repórter da Rede Globo de televisão. O repórter pergunta:
quanto tempo vocês pretendem manter a invasão da escola? E a garota
responde: em primeiro lugar, gostaria de fazer uma correção: isso aqui é uma
ocupação, não uma invasão. A resposta, um tanto inusitada para uma
adolescente que obrigatoriamente não precisava estar “consciente” da memória
discursiva dos movimentos de que participava, colocou em pauta para a
15 https://www.facebook.com/naomexanojosepha/videos/186127448394455/. Acesso em 21 dez. 2017.
37 sociedade a importância da nomeação dos eventos indo ao encontro do que
Foucault (2013, p.170) chamou de “a lei do que pode ser dito”, ou seja, da
ordem do discurso nos quais se inserem os arquivos. Conforme Coracini:
[o] discurso é o lugar em que o poder se exerce, mas é também o lugar da resistência do sujeito a esse mesmo poder, resistência que, diga-se de passagem, se encontra, prevista ou dissimulada, no próprio dispositivo de poder (2007, p.17).
Assim, quando a adolescente “corrige” o repórter da Rede Globo, o que
ela acaba por fazer é reposicionar a nomeação dos acontecimentos, retirando-
o da esfera criminal, ilegítima (invasão), e posicionando-o juntamente à
memória discursiva dos movimentos estudantis e sociais – a ocupação como
uma tática de manifestação16 (em conjunto com outros eventos como a
ocupação das universidades de Nanterre e Sorbonne, em 1968, ou movimento
Occupy Wall Street, em 2011, entre outros).
Outro aspecto que chama atenção nos movimentos paulistas de 2015 é
que eles se colocam como seguidores dos movimentos estudantis chilenos. No
Chile, os movimentos tiveram dois momentos: um primeiro, em 2006, com a
criação da Cartilha “como tomar seu colégio” (que pode ser lida na íntegra no
anexo deste trabalho) e um segundo, ainda maior e que ficou conhecido
como a Revolta dos Pinguins, de 2011 (referência ao uniforme escolar
chileno), A cartilha acabou “guiando” as manifestações brasileiras e argentinas
de 2015 pois trazia diretrizes para todos os aspectos das manifestações
(limpeza e organização das escolas, declarações para a mídia, aspectos
jurídicos, repressões policiais, etc). Ou seja, os movimentos brasileiros se
colocam como parte de uma tradição de manifestações que tem por tática a
ocupação de locais públicos para forçar o diálogo com as autoridades e
constituir uma forma de resistência às relações de poder dentro de um certo
contexto sócio-histórico.
16 De acordo com Andrew Boyd e Dave Oswald Mitchell (2013, p.42), as ocupações são uma tática popular utilizada pelos movimentos sociais para tomar e defender espaços.(...). A lógica de ação de muitas dessas ocupações é a de que as pessoas estão retomando espaços que são seus, o que expõe grandes roubos. Essa mesma lógica pode ser aplicada a estudantes que tomam um prédio que deveria servir a eles (por exemplo, no final dos anos 60, quando estudantes afro-americanos ocuparam prédios de universidades em todo o país, levando à criação de muitos departamentos de Estudos Afro-americanos/Étnicos).
38
Apesar de parecidos, os movimentos latino americanos traziam diferenças
em suas pautas reivindicatórias: o movimento chileno pedia a gratuidade do
exame de seleção para a universidade, passe escolar grátis e o fim das
restrições de horário para o transporte municipal, melhoria da merenda, além
da reforma e das condições das instalações sanitárias escolares. Os
movimentos argentinos surgiram principalmente depois da aprovação do
“protocolo antipiqueteiro”, uma resolução do governo Macri que autorizava a
repressão e a criminalização de quem protestar em vias públicas. Já os
movimentos paulistas se iniciaram com o anúncio da Secretaria Estadual da
Educação em reorganizar as escolas em ciclos, separando-as em três níveis
de Ensino: anos iniciais do Ensino Fundamental (1º. ao 5º. ano), anos finais do
Ensino Fundamental (6º. ao 9º. ano) e escolas para o Ensino Médio (1º. ao 3º.
ano). A reorganização da rede tinha como proposta, para 2016, transformar
754 escolas em ciclo único, focadas em uma única faixa etária. Assim, 2.197
escolas em todo o Estado (43% do total) passariam a funcionar neste modelo.
Além disso, 94 escolas seriam fechadas, ou seja, deixariam de ser destinadas
à oferta de educação básica e disponibilizadas, segundo a secretaria de
Educação, para outras atividades. Essa medida envolveria a transferência de
311 mil alunos para outras escolas.
Assim, apesar de apresentarem pautas diferentes, os movimentos latino-
americanos trouxeram alguns pontos em comum: a defesa da educação
pública de qualidade e de melhoria nas condições para que essa educação
seja efetivamente exercida e, assim como em 1968 e 1992, mostraram que a
juventude é uma força motriz essencial para que as mudanças sociais
aconteçam.
39 1.3. Dobra segunda - Mídia e comunicação urbana: a cobertura jornalística e as relações de poder
Para este trabalho, baseamo-nos nas definições de sincretismo (2013) e
de polifonia (2004), de Massimo Canevacci, no sentido de perceber os muitos
olhares sobre a cidade a partir de um “perder-se” como procedimento
metodológico da comunicação urbana. O autor se utiliza desses conceitos para
construir o que chama de “paradigma inquieto”: uma mistura de diversas
técnicas interpretativas que nos levam a conhecer um determinado momento
da vida na grande metrópole. O autor enfatiza que a comunicação ocorre na
“zona cinzenta”, formada pela interação entre as diferentes construções da
cidade e utiliza-se do conceito de antropofagia e do procedimento da
comunicação urbana para definir esse processo.
A antropofagia é sincrética, a subjetividade, diaspórica, as antropologias, híbridas. Elas praticam a remastigação de todo código que chega de qualquer parte geográfica, selecionam atentamente as partes conceituais a devorar, cospem zonas carnais ou sintaxes confusas porque consideradas saborosas e que, ao contrário, se revelam pútridas, saboreiam o bolo antes de engoli-lo definitivamente, defecam histórias depois de ter absorvido toda nutrição possível e, como extrema ratio, vomitam simbólicos pedaços nojentos. A antropologia degusta a antropofagia (CANEVACCI, 2013, p.23).
Isso significa dizer que entender a São Paulo do século XXI só é possível
se se abandonar o método positivista do século XIX e passar a abraçar o
híbrido, o pastiche, o instável, o líquido do século XXI, ou seja, se se trouxer
para a questão das ocupações, o olhar híbrido sobre um adolescente
influenciado pelas mídias de massa e pelas redes sociais, que aprendeu com o
movimento estudantil chileno uma tática de manifestação que já foi usada em
maio de 68 na França e que hoje se expressa através do hip hop e do grafite
(originalmente) norte americanos, com seu smartphone produzido na China.
Isso é o que também Canevacci (2013) conceitua quando usa o termo “glocal”,
união de global com local.
40
Nesses redemoinhos flutuantes e plurais, de panoramas glocais, emerge com força a produção, a difusão e o consumo de sincretismos culturais. Tal palavra é fruto de recíprocas contaminações entre global cunhada justamente para abarcar a complexidade multidirecional dos processos atuais (...) O sincretismo é glocal (CANEVACCI, 2013, p.46).
Todavia, a notícia sobre esses sincretismos é produzida com os
midiascapes,17 que não são unilaterais ou neutros - e, hoje, importante
lembrar essa notícia é construída por vários sujeitos em seu entremeio: o autor,
o expectador, que também pode passar a ser autor, que terá outros
expectadores e, assim por diante, “[n]inguém é mais só expectador e muito
menos deseja sê-lo. Expect-atoro” (CANEVACCI, 2013, p.45).
Importante, entretanto, salientar que a definição usual que se tem sobre
mídia vem da teoria da comunicação e diz respeito à sua origem latina “media”,
como plural de “medium”, ou meios: aquilo que generalizadamente chamamos
de mídia (por vezes como sinônimo de imprensa ou meios de comunicação de
massa) seria uma espécie de instituição intermediária entre o fato e o
espectador (GUAZINA, 2007). Todavia, para este trabalho, assumimos uma
concepção outra do que esta apresentada pela teoria da comunicação. A
mídia, aqui, participa de um processo de subjetivação que caracteriza um modo
de ser sujeito na contemporaneidade. Daí o termo cultura midiatizada, assim
como sujeito midiatizado. Thompson (2011) esclarece essa distinção logo na
introdução de A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia, ao afirmar
que:
17 O termo midiascape foi cunhado por APPADURAI (1996) para designar as “paisagens midiáticas”, ou seja, o fluxo imagético global criado a partir de revistas, jornais, televisão e principalmente publicidade, que impacta diretamente na paisagem através de pôsteres, outdoors, vídeos e ferramentas eletrônicas.
41
Só podermos entender o impacto social do desenvolvimento das novas redes de comunicação e do fluxo de informação se pusermos de lado a ideia intuitivamente plausível de que os meios de comunicação servem para transmitir informação e conteúdo simbólico a indivíduos cujas relações com os outros permanecem fundamentalmente inalteradas. (...) [a]o invés, que o uso dos meios de comunicação implica a criação de novas formas de ação e de interação com o mundo social, novos tipos de relações sociais e novas maneiras de relacionamento dos indivíduos com os outros e consigo mesmo (2011, p.13).
Mais do que investigar o meio, focamos este estudo no fenômeno
chamado de midiatização do sujeito, conceito trazido por Hjarvard (2014), que
apresenta as mídias como estruturas capazes de condicionar e permitir a ação
humana reflexiva. Diz-nos Hjarvard:
Hoje, experimentamos uma midiatização intensificada da cultura e da sociedade que não está limitada ao domínio da formação da opinião pública, mas que atravessa quase toda instituição, social e cultural, como família, trabalho, política e religião. As mídias são coprodutoras de nossas representações mentais, de nossas ações e relacionamentos com outras pessoas em uma variedade de contextos privados e semiprivados, e deveríamos considerar essa uma revolução significativa também (2014, p. 23).
Isso significa dizer que este trabalho não foca necessariamente em um
veículo individualizado da mídia (ainda que tenhamos que discursivamente
selecionar material de alguns deles), mas que deslocamos o foco para seu
papel nos modos de subjetivação e nas relações desse sujeito midiatizado com
a sociedade. Nesta perspectiva, o sujeito midiatizado não se caracteriza como
receptor de informações por estes meios, pois, ao mesmo tempo que recebe
conteúdo midiático por vias diversas, graças ao poder disseminador cada vez
maior das mídias digitais, também é produtor de conteúdo dentro daquilo que
Bruns (2006) chama de produser, ou seja, aquele que é receptor e produtor de
conteúdo midiático ao mesmo tempo.
Um bom exemplo da ação de produser ocorreu justamente durante as
ocupações em 2015. Durante os primeiros dias do movimento, o jornal Folha
de São Paulo publicou uma série de reportagens em que tratava do tema,
42 procurando ouvir os dois lados envolvidos (a Secretaria de Educação e os
alunos), mas que ainda se posicionava, mesmo que de forma sutil, contra as
manifestações, como se pode notar a partir de alguns recortes18 do texto da
Folha on line, publicado em 17 de novembro de 201519que traremos como
exemplos para ilustrar este posicionamento. Nele se lia o seguinte título:
“Invasão de 25 escolas atinge ao menos 26 mil alunos em São Paulo”.
Exemplo 1:
Observe-se que, nos trechos “Porque não fazem em outro lugar? Assim
atrapalham as aulas” e “Não tenho quem fique com meu filho”, o jornalista, para
(re)contar os fatos, relata como o movimento prejudicou os alunos e suas
famílias, em vez, por exemplo, de mostrar as reinvindicações do movimento.
Discutiremos isso mais adiante.
Os estudantes, no entanto, não satisfeitos com a maneira pela qual a
mídia corporativa os havia retratado, tomaram a decisão de relatar sua própria
experiência através das redes sociais. Páginas como O mal educado e Não
fechem a minha escola passaram a receber conteúdos produzidos pelos
manifestantes diariamente, numa tentativa de construir uma narrativa sobre os 18 Importante salientar que não se tratam de recortes discursivos, mas exemplos que ilustram os diferentes olhares da mídia sobre os acontecimentos. 19 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1707369-invasao-de-25-escolas-estaduais-atinge-ao-menos-26-mil-alunos-em-sp.shtml. Publicado em 17 de nov. 2015. Acesso em 09 mai. 2017.
43 acontecimentos que se opunha à narrativa trazida pela mídia corporativa (e,
por vezes, desafiava sua “autenticidade”). O recorte abaixo foi retirado da
página do Facebook Não fechem a minha escola, publicado em 26 de
novembro de 201620:
Exemplo 2:
21DIA 4 – 26 DE NOVEMBRO DE 2015 – 209 ESCOLAS OCUPADAS!
Esse é o boletim informativo da página Não fechem minha escola, construído
do muros de dentro das escolas para fora, organizando os principais
acontecimentos do dia nas Escola Ocupadas do Estado de São Paulo e da
mobilização que está sendo construída contra a “desorganização escolar” e o
20 Disponível em: https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/photos/a.1485520751742887.1073741829.1485355621759400/1495929504035345/?type=3&theater. Publicado em 26 de nov. 2015. Acesso em 09 de maio de 2017. 21Para este trabalho, tomamos a decisão de digitar o texto das páginas impressas que estão, de algum modo, com a leitura dificultada, seja pelo tamanho ou pela qualidade da imagem.
44 fechamento das escolas. Quer noticiar eventos, posicionamentos, vídeos, fotos
da ocupação que você constrói? Entre em contato conosco!
Participe do Encontro das Escolas de Luta, esse sábado, 28 de Novembro!
Atente-se ao fato de que a publicação convoca alunos (e quaisquer
pessoas que estejam lendo a página) a noticiar “eventos, posicionamentos,
vídeos e fotos das ocupações”, indo ao encontro do que Bruns (2006)
conceitua como produser.
In such models, the production of ideas takes place in a collaborative, participatory environment which breaks down the boundaries between producers and consumers and instead enables all participants to be users as well as producers of information and knowledge, or what I have come to call produsers (also see Bruns 2005a). These produsers engage not in a traditional form of content production, but are instead involved in produsage – the collaborative and continuous building and extending of existing content in pursuit of further improvement. (BRUNS, 2006, p. 02)22
Noam Chomsky (2013), que classifica nossa sociedade como “uma
democracia de espectadores”, nos reconta um episódio relatado por Walter
Lippmann, decano dos jornalistas americanos, sobre o que ele acabou por
chamar de mecanismo de “consenso fabricado” pela imprensa. Segundo
Chomsky, Lippmann defendia que a imprensa poderia ser responsável por uma
revolução no sentido de conduzir a opinião pública na construção de um
consenso sobre temas considerados mais importantes, através de técnicas de
propaganda política. Chomsky passa, então, a narrar um episódio para
demonstrar como a fórmula de Lippmann passou a ser efetivamente utilizada em
casos em que interessavam aos poderes hegemônicos. A técnica consistiu em
divulgar largamente na imprensa como a greve dos trabalhadores da Steel, no
oeste da Pensilvânia, em 1937, prejudicava o andamento de toda a sociedade, 22 Em tradução livre: “Nesses modelos, a produção de ideias acontece em um ambiente colaborativo e participativo, que quebra as barreiras entre produtores e consumidores e propicia, ao contrário, que todos os participantes sejam usuários tanto quanto produtores de informação e conhecimento, ou, como eu passei a chamá-los, produsers (veja também Bruns 2005a). Estes produsers envolvem-se de um jeito não tradicional de produção de conteúdo mas, ao contrário, envolvem-se em produsage – a construção contínua do conteúdo existente no intuito de aperfeiçoá-lo.”
45
numa tentativa de colocar a opinião pública contra os grevistas. O plano foi tão
eficiente que depois acabou sendo largamente usado e conhecido como a
“fórmula do Vale do Mohawk”, ou “método científico para por fim a greves”.
Segundo Chomsky:
[o] plano era imaginar formas de colocar a população contra os grevistas, apresentando-os como desordeiros, nocivos à população e contrários ao interesse geral. O interesse geral é “nosso”, o do homem de negócios, do trabalhador, da dona de casa. Todos esses somos “nós”. (2013, p.25)
Assim como o primeiro exemplo trazido acima enfatizava os prejuízos
trazidos pelas ocupações (reportagem que foca as dificuldades da mãe e que
enfatiza o fato de ela ser uma empregada doméstica e, portanto, alguém de uma
classe desfavorecida diante da situação da suspensão das aulas), tratando os
manifestantes como nocivos (de acordo com “a fórmula do Vale do Mohawk”),
encontramos a mesma postura da mídia corporativa em outros momentos, tais
como no exemplo abaixo, em que a diretora da escola Fernão Dias Paes afirma
que: “Esse grupo não quer diálogo e está prejudicando os alunos” ou, como na
reportagem de 23 de novembro de 2015, cuja manchete é “Governo paulista
cancela prova em escolas invadidas23”
Exemplo 324:
23 Disponível em: Folha de São Paulo, 23 de novembro de 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1709920-governo-paulista-cancela-prova-estadual-em-escolas-invadidas.shtml. Acesso em 11 mai. 2017 24 Disponível em Folha de São Paulo, 11 de novembro de 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1704798-estudantes-mantem-ocupacao-de-escola-estadual-em-sp.shtml. Acesso em 10 mai. 2017.
46 Exemplo 425:
No exemplo 4, a mesma estratégia é utilizada contra os manifestantes: a
reportagem mostra que há uma vontade da Secretaria da Educação em
dialogar, porém não há reciprocidade dos manifestantes (o que sugere que
eles são “intransigentes” ou “não abertos ao diálogo”). Ou seja, mais uma vez,
usando a “fórmula do Vale do Mohawk”, a imprensa tenta construir um
consenso mostrando como movimentos reivindicatórios prejudicam a vida de
todos. A reportagem afirma que a Secretaria da Educação não apoia “atos de
vandalismo”, desqualificando os manifestantes como “baderneiros” ou
“vândalos” - mais uma vez na linha do consenso fabricado.
Porém, este “consenso fabricado” - conceito criado por Noam Chomsky
para determinar essa espécie de voz única entre os veículos da mídia
corporativa, dentro do que o próprio autor chama de “monopólio coletivo”
(CHOMSKY, 2013, p. 29) - encontra saída naquilo que o autor chama “cultura
da dissidência’. Em entrevista para o programa brasileiro Roda Viva, Chomsky
explicou em que consistiria essa cultura da dissidência:
25 Disponível em: Folha de São Paulo de 13 de novembro de 2015. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1705853-sobe-para-7-o-numero-de-escolas-estaduais-invadidas-na-grande-sp.shtml. Acesso em 11 mai. 2017.
47
Há muito que se pode fazer (...) Os [jornalistas independentes] tentam pressionar a abertura até o limite, frequentemente fazendo coisas interessantes (...). A mídia deveria envolver a participação popular. Na verdade, o modelo já existe. Eu vi coisas interessantes no Rio há alguns dias, quando fui ao subúrbio de Nova Iguaçu e assisti à TV popular. Eles recebem equipamento e apoio técnico para grupos populares e produzem sua própria TV. 26
Chomsky concedeu esta entrevista em 1996. O que aconteceu nas
próximas décadas veio a fortalecer essa cultura das dissidências. A
popularização da tecnologia digital permitiu que durante as ocupações, por
exemplo, muito do material que circulava nas redes provinha de sites de
jornalismo independentes (como Mídia Ninja, ou Jornalistas Livres), mas
também de canais no You Tube ou no Facebook produzidos pelos próprios
manifestantes, que não se contentavam com a mídia corporativa e se
propunham a produzir uma outra narrativa. Daí nasceram páginas como Não
fechem minha escola, O Mal educado e Escolas em luta, todas com a missão
de transmitir a visão dos alunos sobre os eventos e que constituem rica fonte
de análise para o estudo do discurso dessa nova mídia.
A partir do olhar das mídias dissidentes e das páginas dos próprios
alunos, portanto, a opinião pública teve acesso a um outro olhar sobre as
ocupações, como os exemplos a seguir:
26 Entrevista realizada em 1996. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6HvZfzHhW5k. Acesso em 09 mai. 2017.
48 Exemplo 527:
O Fernão, como é conhecida no bairro de Pinheiros, é uma das escolas
programadas para ter o Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) fechado a partir do
ano que vem pelo Governo do Estado de São Paulo.
Sim, aquele governo que constrói presídios e fecha escolas.
O governo que esconde da população os atos obscuros que pratica,
ocultando informações sobre o Metrô, o governo que esconde da população
dados estatísticos sobre as mortes cometidas por policiais militares fora do
serviço, policiais que pertencem a uma corporação que, segundo a própria
corregedoria da Polícia Militar “é uma corporação que tem entre seus quadros
uma organização criminosa que se organiza em grupos de extermínio”.
27 Jornalistas Livres, em 11 nov. de 2015. Disponível em: https://jornalistaslivres.org/2015/11/a-sao-paulo-sem-educacao-que-restara-para-nossos-filhos/. Acesso em: 12 mai. 2017.
49
Exemplo 628:
No exemplo 5, publicado no mesmo dia (11 de novembro de 2015) do
exemplo 3 – parte da matéria da Folha de S. Paulo trazida anteriormente -,
ressalta-se a formação discursiva do jornalista da mídia dita alternativa, a qual
diverge totalmente do olhar corporativo: foca nas razões que levaram os
estudantes a realizarem as manifestações e critica veementemente o governo
do Estado de São Paulo e a Polícia Militar, que chega a chamar de “grupo de
extermínio”. Já no exemplo 6, vê-se a primeira publicação da página
“Secundaristas em luta de São Paulo”. O objetivo da página é divulgar à
opinião pública os motivos pelos quais os estudantes estavam em luta,
divulgar decisões obtidas durante as assembleias nas escolas ocupadas e
também trazer uma narrativa outra sobre o que estava acontecendo nas
ocupações, por isso, o panfleto traz, em caixa alta, “OS ESTUDANTES ESTÃO
MELHORANDO AS ESCOLAS OCUPADAS, NÃO DANIFICANDO” e o texto
começa com “nas escolas ocupadas não há bagunça”, além de “fizeram faxina
em lugares que nunca eram limpos”, em uma disputa de narrativas com o
governo de São Paulo.
28 Materiais retirados da página Secundaristas em luta de SP. Disponíveis em: https://www.facebook.com/luta.secundas/photos/a.774610605994457.1073741828.774315626023955/777691639019687/?type=3&theater. Acesso 17 set. 2017.
50
O impacto de páginas como Secundaristas em luta só foi possível graças
à popularização das tecnologias digitais e das redes sociais, indo ao encontro
ao que Jenkins (2006) e Shirky (2010) chamam de “cultura participativa” –
Shirky, inclusive, nos alerta para o fato de que a cultura participativa não é
exatamente uma novidade, mas que o fato da automização da vida social do
século XX ter nos afastado tanto deste tipo de cultura, fez com que tivéssemos
que criar uma expressão para nominá-la. Se isso fosse feito no século
passado, seria, provavelmente, uma tautologia (2010, p.23). As tecnologias
digitais desordenaram as noções antes estabelecidas entre consumidores e
produtores de mídia. Diz-nos Jenkins:
A expressão “cultura participativa” contrasta com noções mais
antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios de
comunicação. Em vez de falar sobre produtores e
consumidores de mídia como ocupantes de papeis separados,
podemos agora considera-los como participantes interagindo
de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de
nós entende por completo (JENKINS, 2006, p. 28).
Tanto a mídia alternativa - ou “dissidente”, nas palavras de Chomsky
(2013) -, quanto as páginas criadas pelos próprios alunos tiveram um impacto
tão grande na opinião pública que houve uma nítida mudança de
comportamento da mídia corporativa: em 3 de dezembro de 2015, a TV Folha
publicou na rede um vídeo em que relatava de forma positiva as ocupações –
era possível assistir aos alunos das ocupações explicando seus argumentos
para o movimento, a organização das escolas, o material sucateado pela
diretoria das próprias unidades e a manutenção dada, então, pelos alunos
ocupantes. O vídeo imediatamente viralizou nas redes sociais e, curiosamente,
foi apagado do site da TV Folha em menos de 24 horas. Segundo denúncia
feita pelo site de mídia alternativa Revista Forum, o vídeo foi apagado logo
após visita do governador à redação da Folha de São Paulo29.
29 Tanto o vídeo quanto as denúncias sobre os motivos da retirada do vídeo da TV Folha estão disponíveis em: http://www.revistaforum.com.br/2015/12/03/podemos-tirar-se-achar-melhor-folha-retira-video-de-ocupacoes-de-estudantes-do-ar-apos-visita-de-alckmin/. Publicado em 03 de dez. 2015. Acesso em 13 de mai. 2017.
51
De qualquer forma, o que este e outros episódios ilustram é que se pode
observar que não é mais possível afirmar que exista um “consenso fabricado” -
Chomsky (1996) - porque a “cultura da dissidência” (também Chomsky, 1996)
impacta a opinião pública significativamente, graças à popularização da cultura
da convergência, empoderada pelas novas tecnologias.
52 1.4: Dobra terceira: O acontecimento e a escola-outra
Uma das questões que norteiam este estudo é saber se as ocupações
estudantis de 2015 podem ser consideradas um acontecimento, no sentido em
que nos trazem Foucault e Derrida. Para isso, conceituaremos as noções dos
dois pensadores e depois as confrontaremos com os fatos ocorridos em 2015.
1.4.1. A noção de acontecimento
Em A ordem do discurso, livro que reproduz a aula inaugural de Foucault
(2014a) no Collège de France, o pensador francês nos alerta para o fato de
que a noção de acontecimento é paradoxal, já que há, num primeiro momento,
dois sentidos deste termo: o acontecimento como novidade ou diferença e o
acontecimento como prática histórica ( FOUCAULT, 2014a: p. 59).
No sentido de novidade ou diferença, Foucault fala de "acontecimento
arqueológico", ou seja, uma novidade histórica, algo que seria tomado como
imprevisível, inesperado dentro das condições de produção existentes. A
mutação de uma episteme a outra é pensada como acontecimento radical que
estabelece uma nova ordem do saber; desse acontecimento só é possível
seguir os signos, os efeitos. Por isso, a arqueologia deve percorrer o
acontecimento em sua disposição manifesta (FOUCAULT, 1999, p. 573). O
acontecimento que produz a mutação da episteme é apresentado como
abertura. Neste sentido, o autor fala de acontecimento arqueológico.
Já como prática histórica, Foucault fala de "acontecimento discursivo", em
que se leva em conta a regularidade histórica das práticas, ou "séries
homogêneas". É sobre este segundo sentido que tratam as descrições
arqueológicas foucaultianas, modo de análise histórica que trata dos
acontecimentos discursivos. A arqueologia descreve os enunciados como
53 acontecimentos. Foucault faz uma oposição entre a análise discursiva em
termos de acontecimento às análises que descrevem o discursivo desde o
ponto de vista da língua ou sentido, da estrutura ou do sujeito. A descrição em
termos de acontecimento, em lugar das condições gramaticais ou das
condições de significação, leva em consideração as condições de existência
que determinam a materialidade própria do enunciado.
Em Ditos e escritos IV, Foucault (2015), nos explica que:
Utilizo a palavra 'arqueologia' por duas ou três razões principais. A primeira é que é uma palavra com a qual se pode jogar. Arche, em grego, significa "começo". Em francês, também usamos a palavra 'arquivo' que designa a maneira como os elementos discursivos foram registrados e podem ser extraídos. O termo 'arqueologia' remete, então, ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo (...). Assim, meu projeto não é o de fazer um trabalho de historiador, mas descobrir por que e como se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos. Se faço isso, é com o objetivo de saber o que somos hoje. (...) Somos inextricavelmente ligados aos acontecimentos discursivos. Em um certo sentido, não somos nada além do que aquilo que foi dito há séculos, meses, semanas... (2015, p. 252)
Já em As palavras e as coisas (1999), Foucault toma o acontecimento
como uma ruptura radical da episteme30, só manifesta por seus efeitos. Assim,
Foucault coloca a noção de acontecimento entre a novidade e o acontecimento
como regularidade. Em A Ordem do Discurso (2014a) o termo acontecimento
adquire um terceiro sentido: um acontecimento como relação de forças,
conceito que se entrelaça com o conceito de atualidade. Diz-nos Foucault:
As noções fundamentais que se impõem agora não são mais aquelas da consciência e da continuidade (com os problemas que lhe são correlatos, da liberdade e da causalidade), nem são tampouco aquelas que do signo e da estrutura: são o acontecimento e a série, com o jogo de noções que lhe são
30 Para Foucault, O paradigma geral segundo o qual se estruturam os pensamentos científicos em determinada época que por esta razão compartilham certas formas ou características. O surgimento de uma nova episteme estabelece uma forte ruptura epistemológica que abole a totalidade de métodos e de modos cognitivos anteriores, o que implica uma concepção fragmentária e não evolucionista da história da ciência. (2009, p. 301)
54
ligadas: regularidade, aleatoriedade, descontinuidade, dependência e transformação (2014a, p. 53)
Em Ditos e Escritos III, Foucault (2009) nos diz que "[d]ito de outra forma,
nós estamos atravessados por processos, movimentos, de forças: nós não os
conhecemos, e o papel do filósofo é ser, sem dúvida, o diagnosticador destas
forças, de diagnosticar a realidade" (2009, p. 573). Aqui aparece na obra de
Foucault um quarto sentido para palavra acontecimento que parte da palavra
"événementaliser" ou "acontencimentalizar", como método de trabalho
histórico. Com a criação deste neologismo, Foucault faz surgir na análise
histórica uma nova ruptura: observar uma singularidade onde antes se observa
uma constante histórica. Importante ressaltar, ainda, que Foucault opõe a
noção de acontecimento com a noção de criação. Em a A Ordem do Discurso,
o autor nos esclarece que:
Quatro noções devem servir, portanto, de principio regulador para a análise: a noção de acontecimento, de série, a de regularidade, a de condição de possibilidade. Vemos que se opõem termo a termo: O acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade e a condição de possibilidade à significação (FOUCAULT, 2014a, p.51).
Por fim, em Ditos e escritos IV, Foucault (2005) nos esclarece que podemos
considerar como uma filosofia do acontecimento não só a arqueologia dos
discursos, mas também a ontologia do presente. Diz-nos o autor:
Para dizer as coisas claramente: meu problema é saber como os homens governam (a si mesmos e aos outros) através da produção de verdade (repito-o mais uma vez, por produção de verdade não entendo a produção de enunciados verdadeiros, mas o ajuste de domínios onde a prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo, regrada e pertinente). Acontecimentalizar (événementialiser) os conjuntos singulares de práticas, para fazê-los aparentemente bárbaros o que eu queria fazer. Vocês veem que não é nem uma história dos acontecimentos, nem uma análise da racionalidade crescente que domina nossa sociedade, nem uma antropologia das codificações que regem nosso comportamento sem que o saibamos. Eu queria, definitivamente, ressituar o regime de produção do verdadeiro e do falso no coração da análise histórica e da criação política (FOUCAULT, 2005, p.27).
55
Já para Derrida (2004), em Papel Máquina, a noção de acontecimento
vem entrelaçada com as noções de sensibilidade, de afecção estética e
presunção de organicidade viva. O acontecimento vem para interromper o
curso do possível, é imprevisível e cria uma experiência. Diz-nos Derrida:
Um acontecimento apenas advém se sua irrupção interrompe o curso do possível, e, como impossível mesmo, surpreende toda a previsibilidade. (...) Ora, é difícil conceber um vivente A QUEM ou ATRAVÉS de quem algo acontece sem que alguma afecção venha a se inscrever de maneira sensível, estética, diretamente em algum corpo ou em alguma matéria orgânica. Por que orgânica? Porque parece não haver pensamento do acontecimento sem uma sensibilidade, sem uma afecção estética e alguma presunção de organicidade viva (2004, p. 35).
É precisamente neste ponto em que os dois pensadores divergem. Para
Foucault, o acontecimento é discursivo, produz novos efeitos de sentido. Já
para Derrida, o acontecimento é performativo, ou seja, utiliza-se da afecção do
corpo orgânico para existir. Em A Ordem do Discurso (2014a), Foucault nos
explica que:
Certamente o acontecimento não é nem substancia nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material (2014a, p.54) (destaques nossos)
Para Derrida, a condição de possibilidade paradoxalmente impossibilita o
acontecimento, como também a experiência da qual ela se pretende condição.
O im-possível pressupõe o im-previsível em relação ao horizonte de
expectativa do sujeito. Um acontecimento, explica Derrida, não chega nunca
“na horizontal”, ele não se perfila no horizonte donde se poderia prevê-lo; um
acontecimento vem do alto, na vertical, como surpresa absoluta:
56
O acontecimento como aquilo que chega é o que verticalmente me cai em cima, sem que eu possa vê-lo vir; o acontecimento não pode me aparecer antes de chegar senão como impossível. O acontecimento é o que ocorre e, ao ocorrer, acontece de me surpreender, de surpreender e de suspender a compreensão; o acontecimento é de imediato o que não compreendo. Ou melhor, o acontecimento é de imediato que eu não compreenda. (DERRIDA, 2012, p.242).
Exatamente por isso que Derrida se utiliza da expressão a “possibilidade
impossível de dizer o acontecimento”: algo tão fora da ordem do previsível que
a nomeação (de tal evento) se faz difícil (Invasão? Ocupação? Manifestação?).
Tendo esses conceitos em mente, nos perguntamos: teriam sido as
ocupações estudantis de 2015 um acontecimento? Que vestígios os fatos nos
deixaram para que cheguemos a uma conclusão? Seguindo essa trilha com o
intuito de descobrir se as ocupações constituíram um acontecimento, propomos
um breve caminho pelas razões que fizeram as ocupações significarem uma
resistência à medida do governo, bem como um manifesto à incompatibilidade
desses estudantes com a instituição escolar.
1.4.2. A escola disciplinar e a heterotópica
As ocupações fizeram emergir questões outras a respeito da escola, que
acabaram por ir além da proposta de reorganização. Além do visível
descontentamento com a medida do governo estadual, a maneira como foram
ocupados os espaços escolares escancarou, também, uma insatisfação com a
maneira como a escola é gerida e com o modelo pedagógico adotado pela
escola pública.
Durante as ocupações, os alunos organizaram, além do espaço escolar,
dinâmicas de ensino-aprendizagem que chamaram de “oficinas”, além de
palestras, debates e assembleias, ou seja, os alunos acabaram por criar um
57 modelo de escola que gostariam de ter, e que está longe do modelo baseado
no século XIX que ainda usamos.
Althusser (1980) nos alerta para o fato de que a escola faz parte daquilo
que ele chama de “aparelho ideológico do Estado”, uma instituição criada pela
classe dominante, com o intuito de perpetuar as condições sociais e manter o
status dessa mesma classe através da transmissão da ideologia. A escola seria
o principal reprodutor da qualificação da força de trabalho no sistema
capitalista. Diz-nos Althusser:
A escola (mas também outras instituições do estado como a igreja ou o exército) ensinam “saberes práticos” mas em moldes que asseguram a sujeição à ideologia dominante ou o manejo da prática desta. Todos os agentes da produção, da repressão, da exploração, não falando dos profissionais da ideologia (Marx) devem estar de uma maneira ou de outra “penetrados” dessa ideologia para desempenharem “conscienciosamente” a sua tarefa – quer de explorados (proletários) quer de exploradores (capitalistas), quer de auxiliares da exploração (seus “funcionários”) etc. (1980, p. 21).
Isso significa dizer que, para Althusser (1980), a escola funciona como
um aparelho de submissão à ideologia do Estado, mas essa submissão se dá
pela palavra, e, por isso, a escola tem a função, desde a fundação da
sociedade industrial, de instruir, civilizar, moralizar e disciplinar seus alunos
(SIBILIA, 2012).
Cabe à escola a função de ensinar “saberes práticos” que conduzem o
individuo para o mercado de trabalho, bem como ensiná-lo o “bom
comportamento” neste mesmo ambiente.
Isso vai ao encontro daquilo que Foucault (2009) chama de relações de
poder e saber: apesar do filósofo francês não considerar o poder como algo
necessariamente ruim, pois para ele o poder incita e pro(se)duz, amplia os
limites para novas práticas, ao mesmo tempo destaca que nenhum poder
emana unicamente do indivíduo, mas de uma rede de relações de poder que
constituem o sujeito, como o discurso. O poder é concebido como uma rede,
não nasce por si só, mas por relações que submetem o indivíduo. Por isso, a
58 Escola faz parte dessa grande rede, que enfatiza o autodisciplinamento – os
estudantes aprendem na escola que devem disciplinar a si mesmos e a seus
pares. Diz-nos Foucault:
Uma relação de fiscalização, definida e regulada está inserida na essência da prática de ensino: não como uma peça trazida ou adjacente mas como um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiência (2015, p. 158)
Ou seja, para Foucault a disciplina é uma forma de dominação e controle
com o intuito de vigiar e domesticar comportamentos.
Em Vigiar e Punir (2014b) Foucault cita o conceito de panóptico de
Bentham para delinear alguns aspectos que se referem a instituições
disciplinares, como a prisão e a escola: o panóptico é uma estrutura circular
com ponto de observação no meio. Os prisioneiros das celas são “vistos sem
ver”. Dessa forma, os prisioneiros experimentam um sentimento constante de
incerteza, que acarreta, cedo ou tarde, em paranoia e auto-vigilância. Segundo
Foucault:
O panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver
sem parar e reconhecer imediatamente. A plena luz e o olhar
de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente
protegia. A visibilidade é uma armadilha (FOUCAULT, 2014b,
p.194).
A partir disso, pode-se questionar aspectos básicos pensando nas
relações de poder dentro da escola: qual saber é valido? Que tipo de saber é
valorizado nas escolas? Que tipo de saber é produzido? É por isso que o autor
afirma que “toda forma de saber produz poder” (2014b, 143).
59
Figura 4- Panóptico de Bentham – disponível em http://humanitats.blogs.uoc.edu/files/2016/06/panoptico-de-bentham.jpg. Acesso em 05 jan 2018.
A instituição escolar tornou-se central dentro do que Foucault (2014e)
chamou de sociedade disciplinar: teve a função primordial de disciplinar os
alunos, exercer o controle e o poder diretamente sobre seus corpos, exigindo
uma certa normatização do comportamento enquanto garantia o domínio da
cultura letrada. A sociedade disciplinar surgiu, ainda segundo o autor, com a
decadência do poder soberano no século XVIII, e é formada por instituições
que são responsáveis por internalizar as regras de convívio social (através do
que ele denominou de técnicas de si), pela vigilância ao cumprimento dessas
mesmas regras, bem como à punição dos que não a cumprem. Diz-nos o autor:
O poder disciplinar é [...] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”: ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. [...] “Adestra” as multidões confusas [...] (FOUCAULT, 2014e, p.143).
Assim, o ideal de que, para se inserir na sociedade contemporânea (ou
seja, tornar-se “cidadão”), o indivíduo precisa ser alfabetizado, pode ser uma
das manifestações desse tipo de poder, já que esse indivíduo assujeita-se a
uma instituição – a escola – que o disciplina, o vigia e o pune.
60
Entretanto, a sociedade do século XXI trouxe, junto com o advento das
novas tecnologias digitais, novas formas de subjetivação que não se
encontram mais nas frias carteiras das escolas do século XIX. Sobre isso,
Sibilia diz que:
Existe uma incompatibilidade entre os corpos infantis e adolescentes com as antiquadas normas colegiais. Não parece haver uma maneira de se estabelecer o diálogo entre estas inquietas subjetividades tão contemporâneas, com seus próprios sonhos e ambições, seus estilos de vida e suas realidades cotidianas de um lado e, de outro, a parafernália escolar, com seus rançosos ritos disciplinares, e sua inútil insistência nas diferenças hierárquicas, seu respeito surrado pela tradição letrada e sua aposta no valor do esforço a longo prazo (SIBILIA, 2012, p.203).
Ou seja, o aluno do século XXI não enxerga mais o professor como uma
fonte incontestável de saber e têm dificuldade em aceitar as hierarquias e os
ritos escolares. Isso provoca uma crise na instituição escolar, justamente
porque, entre outros fatores, os alunos mudaram, mas a escola, não. A escola
ainda privilegia a hierarquia e a disciplina para que se alcance aquilo que
Foucault (2014e) chama de “corpos dóceis”, ou seja, ela ainda é um reflexo da
sociedade disciplinar do século XIX.
Outro ponto importante trazido por Sibilia (2012) é influência das
relações de consumo no ambiente escolar: a lógica do mercado perpassa a
escola e os alunos, mas não oferece os mesmos múltiplos atrativos que o
mundo virtual oferece, por meio das variadas tecnologias digitais. Isso faz da
escola uma instituição ligada a valores indesejados às novas formas de
subjetivação vigentes. Daí não é de se estranhar que, quando em 23 de
setembro de 2015, o governador de São Paulo anunciou a chamada
reorganização do ensino, com o fechamento de 93 escolas, os alunos
organizaram-se porque queriam ser ouvidos, não só em relação ao projeto de
reorganização, mas também à escola que desejavam, em confronto com a que
eles realmente tinham.
61
1.4.2.1. Heterotopia O projeto de reorganização pode ter sido o estopim que deu o ponta pé
inicial nas ocupações, mas lembremos que foram realizadas por uma geração
que não tinha identificação com o próprio ambiente escolar e que parecia
desejar construir um outro tipo de escola. É sobre este “espaço outro” que os
alunos construíram dentro do espaço da escola, durante as ocupações, que
discutiremos a seguir: o conceito foucaultiano de heterotopia.
Foucault dissertou sobre heterotopia apenas três vezes: a primeira, no
prefácio de As Palavras e as Coisas, em 1966; a segunda, em uma conferência
radiofônica intitulada As heterotopias, também em 1966, e a terceira, na
conferência Outros Espaços, proferida em 1967 e que está no livro Ditos e
Escritos volume III (2005), cuja primeira publicação se deu em 1994. Em todas
as oportunidades, Foucault traz a ideia de heterotopia como um “espaço-outro”
em contraste com o “outro-espaço”, ou seja, as múltiplas camadas de
significação de um mesmo lugar, que Foucault chama de contraespaços. Diz-
nos o autor:
As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na quinta feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar por entre as cobertas, depois essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis (FOUCAULT, 2013, p.20).
As heterotopias são, assim, uma construção de um espaço-outro sobre
um determinado espaço “real”. É o que ocorre no teatro, por exemplo, que
Foucault chama de ‘heterotopia por excelência’: de repente, ao abrirem-se as
cortinas, o espaço de madeira e cimento passa a significar o espaço-outro
desejado pelo enredo que se encena.
Importante ainda salientar que o próprio autor diferencia a heterotopia e a
utopia: o nome utopia, nos esclarece, deve ser reservado àquilo que não existe
de fato, o não-lugar, em oposição ao lugar-outro, possível e real da heterotopia.
62
Segundo este olhar, Foucault nos explica, ainda, que as heterotopias
podem existir em dois modos possíveis: recriando minuciosamente um mundo
ideal ou criando uma ilusão que desvenda a todo o resto como uma ilusão. Diz-
nos o autor:
E aí que encontramos o que há de mais essencial nas heterotopias. Elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância (...) criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como uma ilusão ou, ao contrário, criando um espaço real tão perfeito tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado” (FOUCAULT, 2013, p. 27).
Poderíamos nos questionar, então, se a relação dos manifestantes com o
espaço das escolas ocupadas constituiria uma heterotopia foucaultiana, uma
vez que os alunos estariam construindo um espaço-outro dentro daquilo que
consideraram um espaço escolar obsoleto e ameaçado pelas medidas
formuladas pelo Governo do Estado.
1.4.2.2. TAZ
Tentando entender a relação da heterotopia com a criação de uma escola
outra durante as ocupações de 2015, aproximamo-nos do conceito de Zona
Autônoma Temporária (ou T.A.Z., seguindo sua sigla em inglês), criado pelo
escritor anarquista norte americano Hakin Bey (1985) - codinome de Peter
Lamborn Wilson - cuja principal ideia é a de criar espaços para o exercício
pleno da liberdade longe do alcance do Estado, o que seria próximo ao que
concebemos como levante31. Bey justifica a ação, afirmando que todas as
31 Para Bobbio, Matteucci e Pasquino, “podemos distinguir a existência de duas correntes na reflexão dos clássicos. De um lado estão os que, como Le Bon, Tarde e Ortega y Gasset, se preocupam com a irrupção das massas na cena política e vêem nos comportamentos coletivos da multidão uma manifestação de irracionalidade, um rompimento perigoso da ordem existente; antecipam assim os teóricos da sociedade de massa. De outro lado estão os que, como Marx, Durkheim e Weber, se bem que com alcance e implicações diversos, vêem nos movimentos coletivos um modo peculiar de ação social, variavelmente inserida ou capaz de se inserir na estrutura global da sua reflexão, quer eles denotem transição para formas de solidariedade
63 revoluções como as conhecemos terminaram com a ascensão de uma força
opressora ainda maior, além do fortalecimento do Estado e que, por isso, a
TAZ teria este caráter efêmero e não hierárquico. Segundo o autor:
A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar" clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais – porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação. (BEY, 1985, p.6.)
A TAZ, portanto, leva o caráter de insurgência a espaços ocupados
clandestinamente, sempre de forma efêmera: quando uma TAZ é descoberta e
dominada pelo Estado, outra, instantaneamente, aparece em outro espaço
igualmente clandestino e libertário, já com intuito de se dissolver
posteriormente, ao menor sinal de interferência do Estado. O mesmo
mecanismo parece ter ocorrido durante as ocupações, e aqui arriscamos uma
interpretação menos ortodoxa da obra de Foucault (2013), indo ao encontro da
teoria de Hakim Bey (1985), uma vez que a escola tornou-se um espaço
ocupado temporariamente de modo clandestino com dois objetivos distintos:
primeiramente, pressionar o governo do Estado para que recuasse na decisão
de instaurar o projeto de “reorganização escolar” e o segundo, criando um
espaço-outro, uma escola que fosse ao encontro dos desejos e aspirações dos
alunos e que, por isso, exponha a ineficiência do estado ao geri-la. Um escola-
outra dentro da própria escola: uma heterotopia.
mais complexas, a transição do tradicionalismo para o tipo legal-burocrático, quer o início da explosão revolucionária.” (1998,p.787). Para o dicionário Léxico on line, levante é o mesmo de rebelião, insurreição ou motim. Disponível em: https://www.lexico.pt/levante/. Acesso em 06 jan. 2018.
64 II. Análise: estudando representações que emergem das linhas do tecido
Para esta seção, utilizaremos a Análise do Discurso de linha francesa
como dispositivo de análise. Para este estudo, ainda, gostaríamos de utilizar o
conceito de linguagens líquidas trazido por Lucia Santaella (2007). Para a
autora, estamos na era da fluidez, em estado de “permanente devir” e
constante autotransgressão, devido à aceleração do mundo industrializado –
não há mais o sentimento de estabilidade de nossos limites corporais (2007,
p.18). Santaella leva para a linguagem a “modernidade líquida”, conceito
consagrado por Bauman (2003) para descrever um período do capitalismo –
que Bauman chama de “leve” ou “flexível” -, cuja principal característica seria a
fluidez, responsável pela incerteza e fugacidade das relações sociais que se
baseiam no consumo. Santaella (2007) nos explica:
Linguagens antes consideradas do tempo – verbo, som, vídeo, – espacializam-se nas cartografias líquidas e invisíveis do ciberespaço, assim como as linguagens tidas como espaciais – imagens, diagramas, fotos – fluidificam-se nas enxurradas e circunvoluções dos fluxos. Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas entram na dança da instabilidade. Texto, imagem e som já não são o que costumavam ser. Deslizam uns para os outros, sobrepõem-se, complementam-se, confraternizam-se, unem-se, separam-se e entrecruzam-se (2007:24).
Isso significa dizer que, para este estudo, escolhemos um olhar pós-
moderno para as questões da linguagem, usando a imagem, além do texto
verbal, como materialidade linguística (seguindo um olhar interdisciplinar): A
imagem será tratada como recorte discursivo pois remete à memória
discursiva, a outros discursos já ditos e a outros textos que fazem parte da
memória, ou seja, são modos outros de se entrar no arquivo – e este é
constituído por outras linguagens –, pois o humano tem essa capacidade de
estetizar e de se expressar de várias formas (na sua relação com a tecnologia,
65 com as artes etc). Além disso, fazemos o uso do conceito de convergência das
mídias (Jenkins, 2006) para pensar nas diferentes linguagens que se cruzam e
interagem em meios diversos, tais como fotos, grafites, cartazes, entre outros,
utilizados para constituir o discurso, na sua relação materialidade linguística e
História e os modos de subjetivação na contemporaneidade.
Tendo isso em mente, trazemos três linhas de análise para este trabalho:
a primeira, chamamos de Invasão ou Ocupação, que tem a finalidade de
discutir alguns efeitos de sentido usados pela nomeação dos fatos em torno
dos movimentos estudantis dessas duas maneiras. O segundo, que chamamos
de Estudantes (In)fames, é inspirado no texto A vida dos homens infames, de
Foucault (2015), que será brevemente introduzido na linha 2 e que traz a
discussão de como os estudantes viam a si mesmos e ganharam notoriedade,
apesar das circunstâncias adversas, exatamente como escreveu Foucault. O
última linha de análise, chama-se Escola disciplinar e escola heterotópica e
pretende trazer indícios do que chamamos de escola-outra, pensada pelos
alunos durante as ocupações e discutida na dobra 3 deste trabalho. Importante
salientar que todas as linhas de análise estão permeadas pelas noções de
acontecimento (nos sentidos foucaultiano e derridiano), o que nos permite fazer
a leitura do objeto por entradas diferentes. Ressaltamos, ainda, que todas as
linhas de análise estão permeadas pelo olhar polifônico32 e sincrético que nos
traz Canevacci (2004; 2013), por se tratar de uma maneira instável, líquida
(retomando Santaella e Bauman) e pós moderna de olhar para os fenômenos
contemporâneos.
2.1. Ocupação x Invasão
A primeira linha trata da questão de como foram nomeados pela mídia e
pelos manifestantes os acontecimentos de 2015. A nomeação destes
acontecimentos se faz importante na medida em que inscreve-os na memória
discursiva da sociedade, bem como faz transparecer a formação discursiva de
quem nomeia, como veremos a seguir. 32 Lembrando que para Canevacci (2004) polifonia está atrelada com a comunicação da cidade através de “vozes” diversas e atuantes – por isso a cidade é polifônica – e para interpretar essas vozes é necessária uma metodologia que comporte essa diversidade, que ele chama de “paradigma inquieto”.
66
Começamos com uma breve análise do material publicado na Folha de S.
Paulo on line, um dia após a primeira ocupação estudantil, na Escola Estadual
Diadema, em 10 de novembro de 2015:
Recorte 1
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1704401-estudantes-
ocupam-e-trancam-escola-em-ato-contra-fechamentos-em-sp.shtml. Acesso em 01 abril
2017.
67
O que inicialmente chama a atenção, e que se observará com
regularidade nas imagens sobre as ocupações, é a presença de grades que
isolam os manifestantes de toda a sociedade. O olhar da formação discursiva
da Folha é exterior aos movimentos, ao lado da Polícia Militar, o que faz com
que o leitor perceba os estudantes como “bandidos” que se encarceram - o que
nos remete à ideia de presídio, ou até aos espaços de exclusão, como nos
explica Foucault (2014) -, indivíduos cujas condutas não são aceitas pela
sociedade e, por isso, são forçados ao isolamento (como hospícios, prisões
etc). Interessante notar, entretanto, que se trata de um isolamento voluntário e
que os alunos são constituídos também por este olhar da sociedade disciplinar
que isola e domestica – adestra os corpos, os confina e tranca o pensamento.
A manchete da Folha descreve que os alunos “invadiram” e “trancaram” a
escola. Assim, podemos refletir brevemente sobre o uso dos termos usados a
partir de uma breve reflexão a partir do dicionário33:
Invasão: ato ou efeito de invadir 1 ato de penetrar (em local, espaço etc.), ocupando-o pela força migração acompanhada de violência e devastações ‹i. dos povos nômades› ‹i. dos bárbaros› 2 ato de alastrar-se e difundir-se maciça e rapidamente ‹i. de formigas› ‹i. de pragas no jardim› 3 fig. Difusão de largo alcance, propagação de alguma coisa de cunho abstrato ‹uma i. de ideias exóticas› 4 fig. desrespeito, desconsideração, esp. em relação à vida pessoal de outrem; usurpação ‹aquelas perguntas caracterizavam uma i. em sua vida particular 5 terreno, área ilegalmente ocupada por moradias populares 6 DIR.INT.PÚB entrada, sem prévia autorização, de forças armadas estrangeiras em território de um Estado 7 crime que consiste na entrada, sem autorização, em estabelecimento de trabalho com o objetivo de prejudicar as atividades normais ou danificar o próprio estabelecimento
Assim, atentemo-nos ao fato de que o enunciado da Folha de S.
Paulo (Recorte 1) pode sugerir a ideia de crime, de invasão, nos moldes
33 De acordo com o Dicionário Houaiss on line, consultado em 04 de setembro de 2017. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#2
68 dos bárbaros e ilegítimos, de uma ação delituosa por parte dos
estudantes.
Já o verbo trancar traz a seguinte definição no mesmo dicionário34:
1 t.d. fechar (porta, banheiro, casa, cofre etc.) com tranca; atrancar 2 t.d. e pron. (prep.: em) manter(-se) em recinto fechado com ou sem tranca (no sentido de 'retranca', 'artefato') ‹trancou o cão de guarda por causa das crianças› ‹trancou-se no quarto para meditar› 3 t.d.bit. (prep.: em) prender (alguém) em (penitenciária, cela etc.); encarcerar, trancafiar
Portanto, os verbos trancar e invadir sugerem a ideia de algo da
esfera criminal e que, por esse motivo, compete à polícia resolver: alguém
que não pertence àquele espaço entra à força e cabe à força policial
resolver a questão.
Na reportagem, percebe-se que uma das demandas dos
manifestantes é justamente a de ‘serem ouvidos’ (queremos ser ouvidos,
e esse foi o jeito que conseguimos. Ninguém ouve a gente porque a gente
é adolescente), o que nos remete ao estudo da linha de análise n. 2 deste
trabalho, chamado de Estudantes (In)fames. Reforça-se, também, o
tempo todo, a ideia de que são adolescentes imaturos, que precisam da
autorização dos pais para ali ficarem, que se trata de um número
insignificante de manifestantes (menos que 10) e que “não estavam lá
para estudar”. A reportagem ainda reforça a ideia difundida pelo Governo
do Estado de que as escolas não seriam simplesmente fechadas, mas
dariam lugar a outros segmentos como ensino técnico ou creche, e que
os alunos-manifestantes seriam transferidos para um local próximo (1,5
km), o que acaba por deslegitimar a pauta levantada pelos manifestantes
(o fechamento das escolas).
Todavia, o site O mal educado, escrito e editado pelos estudantes
manifestantes, na mesma data de 10 de novembro de 2015, trazia a
seguinte reportagem: 34 De acordo com o Dicionário Houaiss on line, consultado em 04 de setembro de 2017. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#2
69
Recorte 2
10 NOV 2015 (BR-SP) O Mal Educado: E.E. Diadema e E.E Fernão
Dias ocupadas!
Escola Estadual Diadema ocupada por estudantes!
ESTUDANTES, PAIS E PROFESSORES DA E.E. DIADEMA ESTÃO
DENTRO DA ESCOLA AGORA E DIZEM QUE NÃO VÃO SAIR EM
FORMA DE PROTESTO.
Após tentar outras formas de luta contra a reorganização escolar do
governo estadual, com vários atos espalhados pelo estado de SP ao
longos desses últimos meses e percebendo que existiria outra maneira de
serem ouvidos os estudantes da E.E. Diadema acabaram de ocupar sua
escola.
Disponível em http://www.passapalavra.info/2015/11/106753. Acesso em 01 abr. 2017.
70
O olhar do fotógrafo da página da Internet, neste recorte, é de dentro
da escola e a reportagem não traz imagens de ações policiais ou grades,
mas, ao contrário, de atividades diversas dos alunos dentro do ambiente
escolar. O texto é assinado pelo coletivo “Movimentos em luta”, o que
levanta aqui uma observação sobre a questão da autoria. Para Foucault
(2002), a questão da autoria refere-se a uma função discursiva, não a um
indivíduo, e é por isso que Foucault fala de função-autor e de como esta
função se torna importante dentro do conjunto de ordens discursivas. Diz-
nos Foucault:
Um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser um sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc), exerce certo papel com respeito aos discursos: assegura uma função de classificação, um nome desse tipo permite agrupar um certo número de textos, de delimitá-los, excluir alguns, opô-los a outros (...) A função-autor é, pois, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos dentro da sociedade (FOUCAULT, 2002, p. 798)
O site Passa Palavra é escrito pelo coletivo, sem que um deles
assuma a responsabilidade de seu conteúdo, como uma autoria coletiva.
O site enfatiza que os alunos “tentaram outras formas de luta” e que as
ocupações teriam sido, assim, a única forma encontrada para resistir ao
Poder Público, que insistia em reprimir violentamente os secundaristas.
Interessante perceber que o campo semântico de “luta” remete-nos à
guerra, ou seja, quem luta, luta contra alguém ou algo: no caso dos
estudantes, a luta é contra todos os aparelhos do Estado, com seus
obstáculos, ameaças e intransigências.: luta é vocabulário do campo das
guerras ou das disputas esportivas35, além de ser vocabulário próprio do
âmbito das ideias marxistas, como em luta de classes.
35 No entanto, interessante notar que mesmo a ideia de luta dentro do campo semântico dos esportes é uma derivação, um deslizamento de sentido a partir do campo semântico da guerra: as disputas desportivas trazem, ainda, um caráter bélico – e isso pode explicar as chamadas “guerras de torcidas” (conforme explica Pêcheux, 1997)
71
A reportagem da Folha de São Paulo (Recorte 1) traz a ideia de que
o movimento é criminoso e que, portanto, tem que ser resolvido pela
polícia; neste segundo recorte, a ideia é a de que a ação dos alunos é
legítima e a forma como o Estado encara o movimento (de maneira
“autoritária”, “arbitrária” e “despótica”) - usando inclusive um aparelho de
repressão do Estado - bem como a reorganização do ensino é que são
criminosas (ofensiva criminosa), já que usam armas contra adolescentes
“indefesos”, não dialogam e usam a força policial para reprimir as
manifestações.
Há, também, o uso do dêitico “agora”, que nos remete à
característica síncrona das redes sociais e àquilo que Santaella (2013)
chama de ubiquidade: o leitor ubíquo, segundo a autora, é aquele que se
fragmenta e se movimenta em meio ao caos, que tem a atenção sempre
parcial contínua e que responde a muitos estímulos simultaneamente.
Focamos, ainda, na escolha da palavra “ocupação”, contrapondo-se
à ideia de “invasão” trazida pelo Recorte 1. De acordo com o mesmo
dicionário36, ocupar sugere um efeito de sentido diverso:
Ocupação: substantivo feminino 1 ato de apoderar-se de algo ou de invadir uma propriedade; posse 2 ato de trabalhar em algo; o próprio trabalho a ser executado ou que se executou; serviço 3 atividade, serviço ou trabalho principal da vida de uma pessoa 4 obrigação a cumprir, papel a desempenhar em determinados setores profissionais ou não; cargo, função, ofício etc., que estava livre); preenchimento 6JUR modo de aquisição da propriedade de coisa móvel sem dono ou abandonada; apropriação.
Ocupação, no recorte 2, já não remete à ideia de ilegalidade, com
exceção do primeiro sentido, mas à ideia de trabalho, de atividade e de
apoderar-se produtivamente de algo abandonado. Ao invés de
imaginarmos bárbaros depredando uma escola pública, o uso dessa
palavra parece-nos remeter à imagem de estudantes ocupando-se do
3636 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa on line. Acesso em 04 de set. de 2017.
72 trabalho da escola, como é sugerido pela foto que acompanha o texto do
Passa palavra. Passa palavra, aliás, nome escolhido pelos alunos para o
site que comunica os acontecimentos de acordo com o olhar de quem
está no movimento, é um nome que parece nos remeter à ideia de
democracia, de movimento social, bem como à ideia de que “mídia
dissidente” de Chomsky (2013) no sentido de que os manifestantes
podem construir uma narrativa outra que não aquela trazida pelas
grandes mídia corporativas.
Portanto, a partir desse breve exemplo dos enunciados utilizados
pela mídia corporativa e pela mídia dita alternativa, pode-se apreender
que partimos de formações discursivas diversas e que poderemos
observar como as formações ideológicas se manifestam dentro do
discurso (como formações discursivas) legitimando ou questionando
relações de poder estabelecidas.
No entanto, à medida em que as manifestações foram ocorrendo e
ganharam apoio da opinião pública, foi mudando, também,
paulatinamente, o comportamento da mídia corporativa, que passou a
adotar o uso da palavra “ocupação”, apesar de, por muitas vezes, ainda
criminalizar o movimento. Um bom exemplo disso é o recorte abaixo,
retirado da mesma Folha de São Paulo, mas em 24 de novembro de
2015, ou seja, 15 dias após o início das primeiras manifestações.
73
Recorte 3
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1710194-estudantes-
ocupam-escola-estadual-na-zona-leste-de-sao-paulo.shtml. Acesso em 09 abr. 2017.
74
Podemos perceber que, aqui, apesar do jornal já nomear as
manifestações como “ocupações”, ao contrário do que fazia no início do
movimento, já no primeiro parágrafo volta a chamá-las de invasões. Mais uma
vez, temos a imagem de uma aluna-manifestante atrás das grades da escola e
um olhar externo ao movimento, remetendo a escola a um espaço de
segregação (para nomear as ações, a Folha utiliza-se dos substantivos onda,
invasão, manifestação e protesto. Para indicar as ações, utiliza-se dos verbos
ocupar e invadir).Também é importante perceber que, se no recorte anterior a
Folha trazia o movimento como irrelevante por se tratar de “menos de 10
alunos”, agora fala-se em 108 escolas, o que altera a posição discursiva do
veículo, dando-lhe maior relevância.
No segundo parágrafo, notamos que a Folha tem atitudes diferentes em
relação às duas partes do conflito: quando os manifestantes afirmam algo, é a
polícia que deve “confirmar” determinada informação, ou seja, a Polícia é
usada como uma instituição de legitimação das informações (“a Polícia Militar
não confirma este número”), portanto, o dizer dos alunos não é (a)creditado.
Já o terceiro parágrafo traz uma nomeação curiosa: o uso da palavra
“onda” para designar a ocorrência da disseminação da tática de ocupação das
escolas. Tal vocábulo parece remeter a uma moda, a algo que é mimetizado
acriticamente, como um julgamento a uma atitude adolescente inconsequente
e, mais uma vez, volta a chamar de “invasão” o movimento, levando o leitor a
criminalizar a atitude dos manifestantes, o que os levou a criar estratégias para
comunicar-se diretamente com a sociedade (remetendo-nos ao gênero
discursivo do manifesto), como as páginas do Facebook e cartazes colocados
em frente às escolas ocupadas, como o Recorte 4, que trazemos abaixo:
75
Recorte 4
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-E-E-Antonio-
Manoel- Alves-de-Lima-637379003071727/photos/?ref=page_internal. Acesso em 15
abr. 2017
O Recorte 4 traz uma foto do portão de uma das escolas ocupadas, no
qual os manifestantes resolveram pendurar um aviso aos que estavam do lado
de fora, para justificar a atitude de ocupar a escola.
O primeiro aspecto que chama a atenção é o formato deste aviso:
intitulado “Por que ocupamos o Antonio” ( em referência à Escola Estadual
Antonio Manuel Alves de Lima), o texto se apresenta em formato de manifesto,
gênero tantas vezes usado na história, tanto no mundo das artes como em
manifestações em outros campos discursivos (lembremos do Manifesto
Antropofágico, de Oswald de Andrade, O Manifesto Comunista de Marx, ou o
Manifesto Surrealista, de André Breton), com o propósito de convencer o leitor
e trazer de forma clara e sucinta, em tópicos, o posicionamento e as
justificativas dos autores em relação a suas ideias.
76
Todo manifesto é escrito em linguagem formal e este não foge à regra
(com o uso de palavras como “exigimos”, “permanência” ou “mesa de
negociação”). Todavia, há momentos de informalidade, como que em um
“escape” da língua: primeiramente, com o uso do verbo “mexer” e,
posteriormente, com o uso de gírias, na última linha do manifesto: ‘Por que nóiz
é chave e tamo fervendo!!!” . Segundo o dicionário de gírias on line37, chamar
alguém de “chave” significa dizer que a pessoa é estilosa, bonita, legal,
interessante. Já “fervendo”, segundo o mesmo dicionário, significa estar
animado, exaltar-se, estar cheio de energia. Ou seja, a última linha do
manifesto traz algumas representações dos estudantes sobre si mesmos:
estilosos, legais e cheios de energia. Assim, começamos a desenhar um
pequeno esboço da próxima linha de análise – os estudantes infames – no
intuito de investigar quais imagens os alunos guardavam de si mesmos e quais
representações desses alunos as diferentes mídias construíram sobre eles e
suas ações.
Na segunda linha do manifesto, pode-se ler também “Porque o ‘senhor
Alckmin’ mexe na educação sem consultar os alunos”. Neste trecho, existe a
personalização do movimento contra a figura de Geraldo Alckmin – não há
referência ao governo e sequer o chamam de governador. A palavra senhor
aparece em letra minúscula e o fato de “senhor Alckmin” estar grifado entre
aspas pode sugerir uma ideia de ironia ou até mesmo ofensa.
Assim, percebemos que os estudantes não se veem representados pelos
agentes do governo, já que não se sentem ouvidos pelo aparato estatal e
tomam a palavra em forma de protesto, de ocupação do espaço da escola.
Desta forma, passaram a ter voz, a ter “fama”, como veremos na próxima linha
de análise.
2.2. Estudantes (In)fames Foucault (2003) utiliza-se do termo “homens infames” para descrever
aqueles “poemas-vidas”, indivíduos cujas vidas teriam perecido na memória de
nossa sociedade não fossem sua exposição junto às instâncias do poder: são
37 Disponível em: www.dicionarioinformal.com.br. Acesso em 05 jun.2017
77 vidas simples, porém singulares, que estariam destinadas a não figurar nos
registros da História (aquela contada pelas grandes personagens), a não ser
pelo fato de serem infames, desonradas, vidas essas cujos rastros percebemos
através de documentos, cartas, petições, que Foucault chama de “antologia da
existência”. Diz-nos o autor:
Aparentemente infames, por causa das lembranças abomináveis que deixaram, dos delitos que lhes atribuem, do horror respeitoso que inspiraram, eles são de fato homens da lenda gloriosa, mesmo se as razões dessa fama são inversas àquelas que fazem ou deveriam fazer a grandeza dos homens. Sua infâmia não é senão uma modalidade universal da fama (FOUCAULT, 2003, p.210).
Assim como aconteceu com os “poemas-vidas” analisados por Foucault
(2003), a fama - de certa forma “infame” - atingiu os manifestantes: suas vidas
ganharam notoriedade através do choque com o poder e estariam fadadas a
serem esquecidas não fossem os acontecimentos do final de 2015. Vejamos:
Recorte 5
Disponível em:
https://www.facebook.com/mal.educado.sp/photos/a.291836464283439.1073741
825.291834600950292/726116010855480/?type=1&theater. Acesso em 11 set
2017.
Esta é a foto que foi escolhida por um grupo do Facebook para ser o
ícone do movimento. A garota está em um protesto de rua, embora não
78 possamos ver o contexto geral em que a foto foi tirada. A menina segura um
cartaz com o que se tornaria o nome de uma vertente do movimento: “o mal
educado”, que nos remete a alguns efeitos de sentido: um deles, refere-se à
criança que desobedece aos pais; um segundo, à ideia de quem não recebeu
educação de uma forma considerada apropriada. Ambas as ideias estão
ligadas aos movimentos de ocupação descritos: a primeira por ser uma
provocação à ideia de autoridade e a segunda por se tratar de um movimento
que também reivindica a melhoria da educação. Outro ponto a ser observado é
o uso do substantivo “prazer”, no início do cartaz: remete-se à ideia de uma
apresentação formal, como se os estudantes estivessem apresentando-se à
sociedade (ou às autoridades, ou até mesmo ao governador), como se a
sociedade não os conhecesse antes e agora fosse ‘obrigada’ a enxergá-los, a
ouvi-los.
Também chama a atenção o uso da hashtag (referência a mecanismos
de busca da internet) escola de luta, que remete à adoção, por parte dos
manifestantes, do discurso ideológico marxista. Isso nos remete à questão da
convergência das mídias, conceito desenvolvido por Jenkins (2006) e
trabalhado na dobra 2 deste trabalho, no sentido de que através das hashtags
a busca por assuntos na internet tornou-se direta e simplificada – e é
justamente essa a ideia de divulgar a hashtag nas ruas – facilitar o encontro
das manifestações nas redes sociais.
79 Recorte 6
Disponível em:
https://www.facebook.com/mal.educado.sp/photos/a.887695618030851.1073741846.2
91834600950292/887695691364177/?type=3&theater. Acesso em 22 abr 2017
A foto acima, retirada da página dos manifestantes no Facebook, o Mal
Educado, mostra um garoto, cujo rosto não se pode ver, mas em posição de
combate como um atirador de elite ou um fora da lei que não quer ser
identificado. O garoto simula uma posição de ataque com arma de fogo.
Contudo, em vez de uma arma, vê-se um livro: uma provável alusão de que o
conhecimento, a leitura, é a melhor “arma” que o estudante pode ter e que
talvez seja (também) contra isso que se protesta: além do fechamento das 99
escolas, a precarização do ensino e do acesso ao conhecimento.
Um detalhe chama atenção na foto em questão: o livro que o garoto
segura não é um livro qualquer, mas a Propriedade Privada é um roubo, do
escritor anarquista russo Pierre Joseph Proudhon, publicado em 1840. O
“flerte” com os anarquistas não é mera coincidência: as ocupações brasileiras
seguiram uma cartilha criada em 2012 no Chile, intitulada Como tomar a tu
colégio, escrita pelo grupo Agrupación política frente de estudiantes libertários
80 (FEL), o qual se define como anarquista marxista38. Assim, o fato de o grupo
prezar pela autogestão, pela organização horizontalizada (não há um líder que
se apresente e fale em nome do grupo) e pelo choque com o poder
estabelecido, sugere que essas ações têm, de fato, uma inspiração nos
modelos pensados pelos teóricos anarquistas.
Proudhon, que foi o primeiro pensador a se autodenominar anarquista,
viveu no século XIX e se opôs radicalmente à posse de terras e ao acúmulo de
capitais. Para o autor, o direito de posse só seria legítimo se nascesse da
ocupação e fosse sancionado pela lei e, por isso, o direito do produto do
trabalho deve ser exclusivo de quem o produz (e não do capitalista, portanto),
conceito que, aliás, serviu de inspiração para a escrita da cartilha chilena usada
nas manifestações de São Paulo. Este último pensamento, aliás, remete-nos
ao conceito Marxista de alienação, utilizado pelos manifestantes, como no
recorte a seguir:
38 De acordo com o site: https://felestudiantil.org/la-fel/. Acesso 17 mai 2017. O texto da cartilha se encontra no Anexo deste trabalho.
81 Recorte 7
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Ocupa-E-E-Diadema-
1505790296409080/photos/?tab=album&album_id=1505902653064511. Acesso em 15
abr. 2017.
A foto mostra um dos manifestantes segurando um cartaz em que se lê
“não seremos mais uma geração de alienados!”, o que acaba por transparecer
um pouco sobre o que os alunos/manifestantes pensavam sobre si, bem como
o que pensavam sobre as gerações que os antecederam. O uso do advérbio
“mais” funciona provavelmente como uma crítica às gerações anteriores que
82 frequentaram a escola pública, bem como levanta o questionamento do que
seria, para estes manifestantes, uma geração “alienada”: lembramos, mais uma
vez, que os movimentos paulistas se inspiraram nos movimentos latino-
americanos que se definiam como “comunistas libertários” ou “marxista-
anarquistas”, segundo seu próprio website39, o que nos remete ainda à
definição de alienação em Marx.
Em Manuscritos econômicos-filosóficos (MARX, 2008, p. 46), o autor
coloca o trabalho como uma atividade privilegiada da atividade humana: a
capacidade de construir ferramentas que sejam capazes de ajudá-lo a
modificar o ambiente em que vive. Todavia, com o advento do capitalismo, o
homem passou a separar-se cada vez mais do produto de seu trabalho, a
reconhecer-se cada vez menos naquilo que fabrica. Isso geraria uma série de
problemas: o homem passaria a não ter mais o domínio de processo de
produção, haveria uma quebra da percepção de que o individuo é membro de
uma comunidade, o que o impediria de guiar-se (e a seus companheiros) e de
assumir as responsabilidades da sociedade que habita – o sujeito alienado é,
em última análise, aquele que não consegue perceber a possibilidade de
mudança através da mobilização coletiva, pois não se reconhece no produto do
trabalho que faz.
Ao afirmar “não seremos mais uma geração de alienados”, o
estudante/manifestante coloca-se como consciente da exploração do trabalho
na sociedade capitalista e opõe-se, justamente, à esta exploração que é levada
à Escola. Daí podemos entender a necessidade da criação de inúmeras
oficinas durante as ocupações – uma maneira de produzir as próprias
ferramentas, fugir do fetiche do consumo e afastar-se da alienação.
39 De acordo com o website do movimento: https://felestudiantil.org/, acesso em 11 de set. 2017.
83
Recorte 8
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/mal.educado.sp/photos/?ref=page_internal. Acesso em 15
abr 2017.
Na foto acima, dois manifestantes, que usam o uniforme de suas
escolas, seguram cartazes. No primeiro, lê-se: “A gente quer ter voz ativa, no
nosso destino mandar” e no segundo lê-se: “Não adianta muita fé e pouca luta
#vem pra rua contra o Geraldo”.
O primeiro cartaz faz uso de intertextualidade e interdiscursividade ao
citar uma passagem da música Roda Viva de Chico Buarque, referência
interessante tendo em vista os movimentos estudantis contra a ditadura militar
no Brasil na década de 60, além de uma revisita à memória dos movimentos
estudantis no Brasil, já que abre de novo o arquivo e reinterpreta-o segundo um
novo contexto social, ao mesmo tempo em que traz a importância da ideia de
futuro, justamente uma das reivindicações das manifestações pela educação.
Já o segundo, que chama os manifestantes para a ação, traz embutida
uma crítica ao pensamento religioso, fazendo, portanto, uso da
interdiscursividade, ao criticar manifestantes que têm “fé” mas não lutam
efetivamente pelo que acreditam. Mais uma vez, há a alusão à linguagem da
84 internet com o uso da hashtag (#) que chama novamente os manifestantes
para a prática. Interessante notar que o segundo cartaz chama os
manifestantes contra “o Geraldo”, personificando as manifestações na figura do
governador mais uma vez (como ocorreu no Recorte 4), ao invés de apontar
uma instituição como o governo do Estado ou a Secretaria da Educação:
personificar a luta é necessário no sentido de delinear um inimigo claro no
combate, direcionar toda a força contra e para um alvo único, a fim de não
dispersar o movimento – o governador representa o poder, mas ele é também
conservador e religioso, formações discursivas política e religiosa que, de certa
forma, são representadas em sua figura.
Podemos perceber, ainda, que, além da referência à memória das
manifestações estudantis a partir da intertextualidade com o trecho da música
de Chico Buarque, há também a referência aos ‘caras-pintadas’, movimento
dos anos 90 a favor do impeachment de Fernando Collor, com o uso de tinta no
rosto dos dois manifestantes, o que pode demonstrar uma intenção dos
alunos/manifestantes em se inserir na memória desses movimentos ou trazê-
los à tona, já que o movimento dos “caras-pintadas”, por exemplo, foi tido
como vitorioso, atingindo o objetivo de fazer pressão popular para retirar
Fernando Collor da presidência, evocando, assim a memória de vitória
também.
85
Recorte 9
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/mal.educado.sp/photos/?ref=page_internal. Acesso em 18
abr. 2017.
Nesta fotografia, temos a imagem de uma adolescente que levanta um
cartaz, durante uma manifestação dos alunos em que se lê: “Desculpa, mãe,
hoje a aula é na rua”. Alguns aspectos chamam a atenção: primeiramente, a
necessidade de reportar-se à mãe, à autoridade, à instituição familiar, apesar
de os manifestantes se denominarem ‘mal educados’ (conforme discutimos
anteriormente). A aluna manifesta-se contra a autoridade nas ruas, mas vê a
necessidade de desculpar-se perante à autoridade familiar. Outro aspecto é a
imagem que a aluna/manifestante demonstra ter da própria instituição escolar:
aprender ainda é ter aula e esta parece não poder ser feita fora do espaço de
confinamento que a escola se tornou (mais uma vez, a imagem da escola como
espaço de isolamento, de “se estar atrás das grades”) – o que pode demonstrar
uma visão até conservadora da escola e por conseguinte dos métodos de
86 ensino utilizados (assunto que discutiremos na linha de análise 3 – a escola
disciplinar e a escola heterotópica).
Recorte 10
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/mal.educado.sp/photos/?ref=page_internal. Acesso em 18
abr. 2017.
Na fotografia acima, vemos uma representação teatral de duas
alunas/manifestantes: elas se deitam no chão, simulando uma morte violenta,
através do uso de tinta vermelha que lembra sangue humano espalhado por
suas roupas. A cena traz uma lousa escolar com os dizeres “Geraldo Alckmin,
o exterminador de futuro”, alusão a uma série de filmes hollywoodianos em que
o enredo traz um robô assassino (o exterminador) que tem a missão de matar
humanos, portanto, intertextualidade e interdiscursividade com o cinema, já que
há referência a um outro texto e uma “conversa” entre dois discursos (o do
cinema e o do teatro).
Algumas coisas chamam a atenção do expectador: em primeiro lugar, a
escolha por uma representação teatral – nota-se, durante todo o período das
ocupações, a presença das artes permeando as atividades dos alunos – o que
87 nos remete, também, à ideia de simulacro e da sociedade do espetáculo, do
pensador marxista Guy Debord (2016) .
Debord chamou de sociedade do espetáculo aquela constituída por
imagens que se colocam como produto de consumo, em que o espetáculo é o
meio pelo qual a burguesia domina o proletariado em todos os seus aspectos –
tanto na esfera privada, quanto nos aspectos profissionais dos cidadãos.
Viveríamos, portanto, no simulacro, constituídos por essas imagens. Os
estudantes utilizaram-se de imagens (de si, do governador e de ícones da
cultura contemporânea) o tempo todo para conseguir comunicar-se com a
opinião pública – até o ponto de usar o vídeo como “arma” contra a repressão
policial – contando com o poder das redes sociais. Diz-nos Debord:
Nunca a tirania das imagens e a submissão alienante ao império da mídia foram tão fortes como agora. Nunca os profissionais do espetáculo tiveram tanto poder: invadiram todas as fronteiras e conquistaram todos os domínios – da arte à economia, da vida cotidiana à política -, passando a organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade moderna. (Debord, 2016, p.132)
O título do filme também se refere a (im)possibilidade de um futuro
melhor para os alunos que teriam suas escolas fechadas, daí a referência ao
termo “extermínio”, ou aniquilamento, morte, destruição veiculada na
representação realizada pelas manifestantes. Abaixo dos dizeres, mais uma
vez fazendo o uso da linguagem da internet, e da convergência de mídias com
seu potencial disseminador das redes sociais, a hashtag (#) “não fechem a
minha escola” parece demonstrar uma outra característica dessa geração: a
preocupação com o numero de hits que determinado assunto tem nas redes,
levando-se em consideração que as redes sociais acabaram por ser as
grandes divulgadoras das pautas dos manifestantes.
88 Recorte 11
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/mal.educado.sp/photos/?ref=page_internal. Acesso em 18
abr. 2015.
O cartaz registrado na fotografia que aparece no site O Mal Educado
estabelece uma atmosfera de ironia que consiste em perceber que a charge
exibida pelos manifestantes traz a figura do governador, que conduz a policia
militar como marionetes, posicionada justamente na frente de uma linha da
Polícia Militar.
A ironia, de acordo com Andrade (2007), “aponta sempre para a dialética
da construção discursiva, para a ideia de contradição, de duplicidade como um
traço essencial a um discurso dialeticamente articulado”. Ou seja, a
justaposição de elementos discursivos que remetem a formações discursivas
diversas (BRAIT, 1996) provoca o efeito que constrói a ironia.
89
No recorte o governador diz: “A mídia vai omitir, a polícia vai reprimir e
os coxinhas vão aplaudir”, num paralelismo linguístico com o uso do verbo ir
conjuntamente com outro, no infinitivo, sugerindo, talvez, que a mídia seja mero
instrumento a serviço do governador, ajudando-o no propósito de instituir
políticas públicas conservadoras e colocar a opinião publica a seu favor. A
charge novamente traz o reflexo da polarização política no país por meio do
uso da palavra “coxinha” para denominar uma elite que apoia o governador do
PSDB e também os aparelhos repressores do Estado (como a polícia),
colocando o movimento, então, ao lado dos “mortadelas”, ou seja, no espectro
político de esquerda (ideia essa reforçada na Cartilha Chilena).
A charge é um gênero textual que se insere no universo jornalístico
através da combinação da crítica a algum fato social ou politico de relevância,
da imagem e do uso da ironia. Tem suas origens no francês charger que pode
significar carga ou ataque violento. Esta pode ser colorida ou em preto e
branco, e as linhas do desenho tem características simples, como um texto de
panfletagem, e guarda em si algumas características do gênero cartaz: tem o
objetivo de informar e convencer o interlocutor, cumprindo, assim, com as
funções informativa e apelativa.
Há, aqui, um posicionamento político: o governador é retratado com “nariz
de Pinocchio” (uma insinuação de que seria um mentiroso) e traz, em seu
paletó, dois crachás em que se leem: “exterminador de futuros” (mais uma vez
a referência ao filme hollywoodiano, como no recorte 10) e “exterminador da
água”, uma revisitação aos arquivos de memória sobre a crise hídrica40 no
Estado de São Paulo que constituem os paulistas e que estão sendo
ressignificados por um olhar atual, conforme o conceito de arquivo-monumento
de Foucault (FOUCAULT, 2004).
O governador manobra os policiais como marionetes, que seguram
símbolos de violência e repressão: três disparam armas de fogo, um deles joga
40 Período em que o governador foi duramente criticado por setores da sociedade por não ter realizado obras de infraestrutura necessárias para a distribuição de água no Estado em caso de escassez severa – o que veio a acontecer em 2013 e 2014.
90 um objeto que parece ser uma bomba de gás e um quarto policial está de mãos
vazias, porém com um balão em que se representa o seu pensamento: algo
que lembra uma coxinha. A imagem, aliás, provoca questionamentos: por que o
policial pensa em uma coxinha? Estaria o autor da charge insinuando que os
manifestantes veem a polícia como marionetes dos coxinhas? Outro aspecto
instigante: na parte inferior direita do cartaz, há a representação de um rapaz
com um boné típico da corporação e a assinatura “Tavarez”. Seria esta imagem
um autorretrato do artista ou uma menção à policia militar?
O Recorte a seguir traz outra charge produzida por apoiadores das
ocupações.
Recorte 12
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/mal.educado.sp/photos/?ref=page_internal. Acesso em 22
abr 2017.
A imagem mostra uma menina, com expressão serena, segurando um
cartaz em que se lê “Não fechem a minha escola”, enquanto um policial militar
fortemente armado aponta uma arma para a criança. A charge trabalha o
tempo todo com a contradição entre os manifestantes e a força policial: há o
91 contraste entre luz e sombra, preto e branco, serenidade e violência, inocência
e repressão, bem e mal, o que acaba por marcar mais uma vez a polarização
constante entre as formações discursivas direita x esquerda ou “coxinhas” x
“mortadelas” – há uma disjunção, ou seja, a constituição de uma lógica que
nega a possibilidade de um pensamento que inclui (a ideia de um “e”),
trazendo a ideia de um “ou” que exclui, o que é discutido por Derrida (1997),
em seu livro A farmácia de Platão, a partir da imagem do phármakon utilizada
no texto. Para o autor, não há um sentido único para a palavra phármakon – ao
contrário, ela deve ser tomada por uma cadeia de significações (DERRIDA,
1997, p.43). O pharmakon pode ser droga, remédio, veneno; a substância e a
antissubstância.
Além disso, o sujeito enunciador parece sugerir quão desproporcional é a
reação do Estado aos movimentos de ocupação, opondo a imagem de uma
criança (imagem idealizada de inocência, uma menina, o que também nos
remete à questão de gênero - já que se trata do socialmente desfavorecido)
que não representa ameaça alguma, e o policial, visivelmente transtornado e
fortemente armado.
Interessante notar que, ao contrário da charge anterior, esta faz o uso dos
tons variados das cores preta e branca: tanto o fundo quanto o policial são
representados em tons de preto e o único ponto claro da charge é exatamente
a menina com seu cartaz, trazendo mais uma vez a oposição de luz e sombra,
bem e mal, opostos que demonstram a polarização do debate.
Outro ponto importante é o uso do imperativo no cartaz “não fechem a
minha escola”. O uso do modo imperativo indica uma ordem direta e a
conjugação do verbo na terceira pessoa do plural sugere que, aqui, não se
responsabiliza apenas a pessoa do governador diretamente, mas um sujeito
diluído que lê a charge como em um pedido de socorro.
Passemos então para a representação de um grafite sobre os
movimentos como próximo recorte.
92
Recorte 13
Grafite do artista GregOneBr. Publicado na página do facebook Não fechem minha
escola em 8 de dezembro de 2015. Disponível em:
https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/photos/a.1485520751742887.1073
741829.1485355621759400/1498581373770158/?type=3&theater. Acesso em
22/04/2017.
A imagem, dividida em três partes para que se possa observar com mais
clareza, é, na verdade, um grafite em um único muro na zona sul de São Paulo.
Apesar do grafite ter suas raízes na Roma antiga (em que manifestações
populares eram feitas nas paredes da cidade com o uso de grafite – daí o
93 nome) o grafite moderno teria surgido em Nova Iorque, mas popularizado entre
os jovens a partir das manifestações de maio de 68 na França, como inscrições
caligrafadas ou desenhos pintados em espaços públicos, geralmente em
suportes que não foram destinados originalmente a esta finalidade. O grafite já
foi visto como contravenção, mas está, a passos largos, ganhando legitimação
no mundo das artes, que expõe seus principais artistas em galerias de street
art (ou arte urbana) ou em conceituados museus de arte contemporânea pelo
mundo (como a Tate Modern, em Londres).
Na imagem, há a representação do governador de São Paulo
manipulando uma espécie de animal monstruoso que, por sua vez, ataca os
estudantes, que se defendem usando dois objetos do dia a dia escolar: o lápis
(que é utilizado como uma lança) e o caderno (que é utilizado como um
escudo), o que pode sugerir, em primeiro lugar, a desigualdade de armas da
luta (a truculência do Estado que ataca, em contraste com a fragilidade juvenil,
desarmada, que se defende) e também que o conhecimento, representado
pelos materiais escolares, pode ser uma proteção contra a tirania e a violência.
Os alunos, que se posicionam do lado direito da imagem, são
apresentados como heróis que enfrentam esse monstro invencível, usando
lápis e cadernos como armas. Todavia, notamos que, ao mesmo tempo que os
alunos enfrentam o “monstro” do governador, são representados usando o
uniforme escolar – símbolo da sociedade disciplinar contra a qual,
aparentemente, também se manifestam, mas na qual são também constituídos
– há uma (con)fusão de ideias novas e velhas que se confrontam em sua
formação subjetiva.
Outras coisas também chamam a atenção na imagem: o fato de o
governador ser o manipulador de um “monstro” de duas cabeças, que carrega
a bandeira do Estado de São Paulo, remete-nos a imagem da Hidra de Lerna,
monstro da mitologia grega que tinha corpo de dragão e três cabeças de
serpente. O monstro era considerado invencível, pois, a cada cabeça cortada,
duas novas nasciam em seu lugar. Na imagem, o corpo tem o formato de uma
espécie de dragão e a cabeça, humana, traz a inscrição “Non ducor, duco” (não
sou conduzido, conduzo), uma referência ao brasão da cidade de São Paulo,
94 que também pode fazer alusão à atitude de ‘conduzir-se’ (e da condução do
movimento ao qual estão vinculados). Assim, podemos inferir como efeito de
sentido que, ao invés de se deixaram levar pelas autoridades, eles pretendem
“conduzir” as próprias escolhas - o que nos remete à terceira linha desta
análise, a heterotopia, em que os alunos desejam construir uma “escola-outra”,
que lhes permita uma participação mais ativa nas decisões escolares.
2.3. Escola disciplinar e escola heterotópica
As heterotopias são um conceito criado por Foucault (2013), para
designar espaços que, graças à criação humana, passaram a ter múltiplas
camadas de significação, que o autor chama de contraespaços. Esses espaços
seriam alteridades, ou seja, são, ao mesmo tempo físicos e mentais.
Todavia, importante lembrar, que o próprio autor diferencia a heterotopia e
a utopia: o nome utopia, nos esclarece, deve ser reservado àquilo que não
existe de fato, o não-lugar, em oposição ao lugar-outro, possível e real da
heterotopia.
Vejamos, então, alguns recortes em que relacionamos os movimentos
estudantis à possibilidade de criação de um espaço de heterotopia nas escolas
ocupadas.
95
Recorte 14
Disponível em: http://www.envolverde.com.br/1-1-canais/zeramos-a-escola-jovens-
criam-espacos-vivos-de-aprendizado-dentro-das-ocupacoes/. Acesso em: 3 de nov.
2016.
Na foto do grafite, que representa a tradicional lousa escolar, vemos
duas colunas: a da esquerda, com substantivos que os alunos usam para
descrever a escola “normalmente”: Nela, se lê: “opressão, avaliação (provão,
Saresp, pesquisas), tédio, obrigação e rotina”. Do lado direito, aparecem
palavras com as quais os manifestantes caracterizam a escola “ocupada”. Nela
pode-se ler: “lazer (jogos, filmes, debates), cultura (música, sarau, circo, teatro,
arte – grafite, telas...), esporte, aulas temáticas, alegria, amor e união”.
Alguns efeitos de sentido são provocados pela imagem. Primeiramente,
temos o olhar do aluno para a própria escola - apesar de terem sido
movimentos pela melhoria na educação, o grafite retrata uma lousa antiga de
uma escola tradicional, revelando que os alunos ainda mantem uma visão
disciplinar do espaço escolar, remetendo-nos ao que foi discutido no Recorte
1: a escola como cárcere, como lugar de aprisionamento do pensamento e da
96 formatação dócil dos corpos dos alunos, onde há repressão ao invés de
liberdade.
A coluna da esquerda é denominada de “normalmente” (portanto, um
advérbio de modo) e a segunda, “ocupada” (portanto, um adjetivo), como se a
escola anterior às ocupações não precisasse ser adjetivada - fosse tão
conhecidamente cristalizada, que se tornara uma inominável fonte de
“opressão”, “tédio” e “rotina”. Já a escola que os alunos criaram durante a
ocupação seria, em primeiro lugar, “participativa”, “alegre” e “cheia de união”.
Estariam estas mudanças no campo do imaginário ou o grafite é uma espécie
de relato da situação das escolas ocupadas? De qualquer forma, a ideia de
que a escola seria “normalmente” cristalizada em “tédio”, “opressão” e “rotina” é
quebrada a partir do momento em que se percebe que as palavras
“normalmente” e “ocupação” se referem à palavra “situação”, que é algo
provisório, e que nos remete à noção de acontecimento, conforme Foucault
(2014) e Derrida (2001). Assim, além de trazer o enunciado “ocupações
estudantis” para o arquivo de nossa sociedade, o grafite nos dá pistas sobre a
escola heterotópica que os alunos construíram. Note-se que a escola da
sociedade disciplinar (descrita pelos alunos como “normalmente” ) é descrita
como aquela que oprime e é entendiante. E a escola heterotópica é
participativa e alegre, segundo os alunos, apesar de conter, também,
elementos da sociedade disciplinar, como a representação da lousa tradicional
demonstra.
Os próprios alunos nos falam sobre esse encadeamento de sentidos:
como também se verá no Recorte 15, a escola ocupada tem afinidades com a
“Escola Ativa”, programa do Ministério da Educação que privilegia estratégias
vivenciais que objetivam a participação, estimulando hábitos de colaboração,
solidariedade e gestão da escola pelos alunos41. Note-se que este programa foi
desenvolvido durante a gestão de um governo de formação discursiva diferente
da do governo de São Paulo – a iniciativa data de 2005, durante o governo Lula
- o que reabre o debate da polarização esquerda x direita nas manifestações
41 De acordo com http://portal.mec.gov.br/escola-ativa/escola-ativa. Acesso em 18 de set. 2017.
97 estudantis. Observa-se que os manifestantes escolheram privilegiar atividades
em que o aluno tem um papel ativo e colaborativo.
Recorte 15
Disponível em:
https://www.facebook.com/mal.educado.sp/photos/a.301502323316853.107374
1829.291834600950292/720862224714192/?type=3&theater. Acesso em: 03
de nov de 2016.
No cartaz afixado na E. E. Salvador Allende, lê-se: “Programação de sábado:
assembleia, teatro, sarau, almoço, assembleia, maracatu, oficina de camisetas,
debate sobre a reorganização, jantar, assembleia, filme”. Podemos observar,
num exercício de acesso aos arquivos existentes e que constituem a nossa
98 memória, primeiramente, que o nome da escola é uma homenagem ao
presidente socialista chileno que governou o país até ser deposto em 1973 pelo
general e ditador Augusto Pinochet. Os alunos estariam cientes da história
desse homenageado? E, em caso afirmativo, a memória desse acontecimento
sul-americano teria influenciado essa geração que usou a cartilha chilena para
organizar-se nas ocupações?
Retornando a Foucault (2014b) e à ideia de sociedade disciplinar ao
analisar as atividades sugeridas pelos alunos que ocuparam a escola,
observamos que elas são, em sua maioria, descentralizadas, realizadas em
cooperação entre os membros – ou seja, não há, como no modelo tradicional,
um professor que seja (a fonte de toda a informação e que exige um
comportamento passivo dos alunos. Ao contrário, atividades como assembleias
e debates valorizam a opinião de cada aluno e tiram do centro a figura do
professor. Em todas, os alunos têm um papel ativo e colaborativo, em contraste
com a tradicional hierarquia da sociedade disciplinar, que teimaria em adestrar
os corpos e comportamentos.
Levando-se em consideração esta imagem como forma de expressão de
seus desejos, os alunos parecem querer caminhar em direção a um sociedade
que se autogere, o que nos remete às formas de poder vigentes em uma
sociedade que Deleuze chamou de controle (DELEUZE, 1992, p. 220). Nela há
uma recusa em se aceitar formas de confinamento que gerem um sistema
fechado sobre si, lembrando a configuração em rede do mundo virtual. No
entanto, é preciso esclarecer, como faz o autor, que os controles são uma
forma de “modulação”, que ocorre continuamente, a todo instante, o que
implica um “estar em formação permanente”, o que ocorre numa sociedade
capitalista.
Ao contrário da sociedade disciplinar, a sociedade de controle seria
marcada pela interpenetração dos espaços, por sua suposta ausência de
limites definidos e pela instauração de um tempo contínuo, no qual os
indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa nenhuma, pois estariam sempre
enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável,
prisioneiros em um campo aberto. O que haveria nessa situação, segundo
99 Deleuze (1990), seria uma espécie de modulação constante e universal que
atravessaria e regularia as malhas do tecido social.
A sociedade de controle seria, portanto, uma ampliação nas relações da
sociedade disciplinar de Foucault. Ela funcionaria em rede e possuiria controle
aberto e contínuo, o que significa dizer, também, descentralizado e aberto,
remetendo à constituição em redes.
Recorte 16
Disponível em: https://jornalistaslivres.org/2015/11/ocupando-o-que-e-seu-por-direito-a-
radicalizacao-da-democracia-na-medida-certa/. Acesso em 30 abr. 2017.
A imagem acima é a manchete de um artigo dos Jornalistas Livres, mídia
dita alternativa, veiculado no começo das ocupações, em 22 de novembro de
2015. Nela observam-se duas imagens sobre fundo vermelho: na parte
esquerda lê-se Contra a reorganização e na parte direita há o complemento
Ocupe sua escola. Interessante perceber, primeiramente, que o fundo da
100 imagem, em vermelho, remete à cor adotada pelos movimentos sociais que se
identificam com as ideias políticas de esquerda, como uma identificação
ideológica imediata. No campo esquerdo da imagem, veem-se carteiras
escolares “arrumadas” antes da ocupação: note-se, todavia, que há carteiras
sem o encosto da coluna, quebradas, sem a braçadeira usada para escrever.
Ou seja, a imagem reproduz uma escola imperfeita, decadente, sem
manutenção. Já a imagem da direita, reproduz as mesmas carteiras da parte
esquerda da imagem, porém amontoadas, como uma barricada de guerra ou,
também, como uma disposição anárquica do espaço escolar. Se fizermos a
leitura de acordo com a primeira hipótese (uma barricada), mais uma vez
teremos a menção a um campo semântico de guerra, luta, disputa – os
estudantes poderiam estar encarando a escola como campo de batalha contra
o governo do estado. Já se fizermos uma possibilidade outra de leitura
pensando em uma disposição anárquica das carteiras, podemos mais uma vez
remeter-nos à ideia de quebra da escola como instituição disciplinar nos
moldes de Foucault, ou seja, os alunos estariam sinalizando que a escola que
consideram ideal, a escola heterotópica a ser criada por eles, tem relação com
o caos criativo, com a quebra do disciplinar.
Outro ponto interessante é o uso do imperativo “Ocupe sua escola!”, uma
ordem ao leitor do texto, o ocupar como única saída para o enfrentamento à
reorganização. A pontuação exclamativa aqui marca um chamamento à
participação no movimento, uma tomada de consciência em relação ao evento.
101
Recorte 17
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/12/1713326-alunos-
interditam-parte-da-ponte-joao-dias-contra-reorganizacao-de-escolas.shtml. Acesso
em 30 set 2017.
A foto acima acabou se tornando uma das mais emblemáticas sobre os
movimentos de 2015. Trata-se de uma manifestação contra a reorganização
escolar, ocorrida em 30 de novembro de 2015, em que alguns estudantes
bloquearam a Marginal Tietê, usando as carteiras escolares como instrumento
de protesto. Note-se que, apesar de haver um discurso por parte dos
manifestantes que remetem às praticas anarquistas, há, nesta foto, uma
representação do que há de mais tradicional no ensino: os alunos enfileirados,
sentados, com os “corpos domados”, como diria Foucault, e uma estudante que
estaria numa posição de liderança, como se fosse uma professora
comandando seus alunos. No entanto, a aluna professora empenha o punho
em referência à luta, revelando que várias formações discursivas se
entrecruzam na constituição subjetiva desse estudante.
102
Recorte 18
Disponível em:
https://www.facebook.com/mal.educado.sp/photos/a.301502323316853.1073741829.2
91834600950292/724969134303501/?type=3&theater. Acesso em 30 set 2017.
A imagem mostra um punho com paletó e camisa, numa provável
representação do governador de São Paulo (já que se observam penas azuis
de tucano ao lado desse punho, uma provável referência ao seu partido, o
PSDB), colocando dinamites dentro de uma escola ocupada. As três dinamites
têm as inscrições: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, ou
seja, os nomes dos três jornais de maior circulação no país e que representam
as grandes mídias corporativas. O sujeito-autor parece indicar que o
governador faz uso da grande mídia para destruir, aniquilar, os movimentos de
ocupação, o que nos remete ao conceito de Consenso Fabricado, de Noam
Chomsky (2013), uma espécie de voz única entre os veículos da mídia
corporativa, dentro do que o próprio autor chama de “monopólio coletivo”
(CHOMSKY, 2013, p. 29), que sabemos, hoje, é desafiada pela cultura da
dissidência que se encontra nas produções da rede mundial de computadores.
103
Na imagem, a mão desproporcionalmente grande do governador parece
manejar e direcionar a destruição de uma pequena e frágil escola ocupada, de
modo que a grande mídia serviria como instrumento dessas pretensões e que
também nos remete à imagem que a escola pública parece ter para a
sociedade: frágil, vulnerável, pequena e, portanto, instituição manipulável pelos
que estão no poder.
Recorte 19
Disponível em:
https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/photos/a.1485520751742887.1073
741829.1485355621759400/1495240494104246/?type=3&theater. Acesso em 30 set
2017.
A charge acima, intitulada “Escola dos tempos modernos”, em clara
referência ao filme de 1936, estrelado por Chaplin, representa bem a ideia de
que a escola atual não consegue abranger as subjetividades dos alunos do
século XXI: O título irônico e a imagem mostram uma linha de produção
104 industrial nos moldes do começo do século XX que, ao invés de produzir
peças, reproduz avaliações de múltipla escolha, fazendo uma referência talvez
aos modelos avaliativos institucionais (Prova Brasil, ENEM), que são
constituídos por provas com respostas alternativas, usadas para medir
conhecimentos de forma quantitativa e estatística. A imagem se complementa
com a presença de um aluno, com chapéu e bigode, que remete a Carlitos,
personagem de Charlie Chaplin, numa clara interdiscursividade com o cinema
e com o uso da memória discursiva. O aluno preenche as respostas das
avalições pressionado por dois fatores: o tempo e um professor colérico e
tradicional, que o ameaça.
A imagem faz uma crítica àquilo que Foucault nos advertiu em Vigiar e
Punir (2014b): tendo como modelo a prisão, a escola criada pelas sociedades
industriais concebe os corpos como peças de um maquinário, forçando os
corpos infantis à disciplina necessária à produção industrial, como em um
adestramento. Ao mesmo tempo, sugere-se a crítica a falta de reflexão na
escola quando se aponta que esta mesma linha de montagem é uma “linha de
montagem de respostas”, o que remete a uma sociedade de iguais,
homogeneizadora. Além disso, a linha de montagem remete ao modelo fordista
industrial, a um produto capitalista, portanto, a escola como mercadoria,
conforme descrito por Sibilia (2012). A escola, aqui, é vista como um “chão de
fábrica” em que o professor se torna uma espécie de capataz ou o chefe da
seção, remontando à ideia de alienação do discurso marxista: o rodar dessa
linha de produção para o dono dos meio de produção, que aqui aparece como
o Estado e seu conluio com as empresas: uma escola que prepara mão de
obra barata para as mesmas: o trabalho automatizado, a alienação dos meios
de produção e do produto final. É justamente o romper com esse modelo
escolar que levou os militantes para as ocupações e as ruas, como um sonho
de uma escola participativa, alegre e não ancorada no século XIX, como se
pode ver no recorte a seguir.
105
Recorte 20
Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/eu-tenho-em-mim-todos-os-sonhos-do-
mundo. Acesso em 30 set 2017.
A fotografia acima retrata um dos aspectos de maior destaque durante as
ocupações escolares: a repressão policial. Lembrando-nos de Althusser (1980)
e sua definição de Aparelhos Ideológicos e Repressivos do Estado, vemos um
aluno/manifestante, aparentemente desarmado, de costas para o fotógrafo e de
frente para o batalhão de choque da polícia militar, ou seja, um manifestante
que deseja romper com a escola de que mata o sonho e formata os alunos e
que por isso mesmo esbarra com a força do aparelho repressivo do Estado.
Logo percebemos o contraste entre o garoto e a rigidez da tropa policial. Em
sua camiseta, em intertextualidade e interdiscursividade com a poesia, lemos a
célebre frase de Fernando Pessoa “Tenho em mim todos os sonhos do
106 mundo...”, do poema “Tabacaria”, trazendo a ideia de um sonho coletivo, uma
exposição de seu interior para fora, comum no sujeito contemporâneo.
O texto de Pessoa traz quais seriam esses sonhos contidos no poeta - a
primeira estrofe do poema contém: “Não sou nada/Nunca serei nada/Não
posso querer ser nada” – seria este um grito para romper com o “ser nada” ou
a justificativa da luta? A ideia de que o estudante das ocupações usa a
camiseta com a frase que é precedida por estas afirmações também nos
remete, mais uma vez, à ideia dos “homens infames” de Foucault (2003):
indivíduos cujas memórias seriam irrelevantes não fosse o choque com o
poder vigente (aqui representado pela força policial) e que passa a ter uma
existência a partir do momento que cai na notoriedade.
O ideal dos jovens manifestantes parece consistir em melhorar a
educação no país, em construir uma escola utópica, daí remeter a um sonho,
ou heterotopia, que pense a escola em transformação, que desobedeça, de
certa forma, às instituições disciplinares (como a polícia) e sirva como
resistência à truculência do Estado, constituindo, assim, talvez, uma zona
autônoma temporária (BEY, 1985), clandestina e que sirva para o exercício da
liberdade, mas que também sirva como inspiração para uma escola
heterotópica que vá ao encontro do desejo desse sujeito na
contemporaneidade.
107
Conclusões
Em uma enorme faixa colocada em frente ao edifício central da
Universidade de Sorbonne, em Paris, durante as manifestações em maio de
1968, lia-se: “Os estudantes estão inventando um mundo novo e original. A
imaginação está tomando o poder”. O mundo mudou, a cultura de massa e as
redes sociais influenciam de forma decisiva toda a sociedade, mas, talvez a
mesma faixa pudesse ser colocada em uma das mais de 200 escolas
ocupadas em 2015, em São Paulo, exatamente por trazer à memória o que
há de mais vivo em todos os movimentos estudantis: o fervor pela mudança.
Se o ano de 1968 simbolizou um sonho de transformação social, um
grito contra o conservadorismo burguês das arcaicas instituições francesas, o
ano de 2015 mostrou que este sonho está vivo e mora nas escolas públicas
de uma América Latina que se comunica na velocidade de um clique. Há
diferenças, é claro: em 1968, os estudantes se manifestavam “e estavam
muito mais descontentes com certo modo de existência social do que com
carências materiais” (CARMO, 2000, p.79); em 2015, as manifestações
sonhavam também com uma “utopia escolar”, mas puseram em prática
medidas provisórias de gestão escolar que expuseram a ineficiência do
governo – tudo de forma organizada e pragmática. Pragmatismo, aliás, que
também se podia observar nos caras-pintadas: em 1992, como em 2015, o
objetivo era pontual e preciso: lá, a queda do presidente; aqui, o fim da
reorganização escolar. Mas se, em 1992, os caras-pintadas levaram para
grandes avenidas de todo país a indignação estudantil, 2015, por muitas
vezes, fez um movimento inverso: levou o pequeno cotidiano escolar de cada
ocupação para milhares de olhos, graças ao poder disseminador das redes,
movimentando o olhar da sociedade para dentro e para fora, numa dobra que
se refazia a cada momento.
Levando-se em consideração que, para Foucault (2014a), o arquivo
representa o conjunto dos dizeres efetivamente pronunciados por
determinada sociedade em determinado período, o arquivo da nossa
sociedade a partir de 2015 ficará marcado como aquele que, em virtude de
suas condições sócio-históricas, consolidou o enunciado “ocupações
108
secundaristas” como parte da memória dos movimentos estudantis, e por
isso, passou a constituir um acontecimento foucaultiano (acontecimento
discursivo), no sentido de que as condições de existência determinaram a
materialidade própria do enunciado.
No sentido derridiano, as ocupações também podem ser descritas como
acontecimento: para Derrida (2001) a noção de acontecimento está
entrelaçada com as noções de sensibilidade, de afecção estética e presunção
de organicidade viva. As ocupações foram um acontecimento derridiano
justamente por serem impossíveis e, exatamente por isso, não é de se
estranhar o fato de a mídia não saber lidar com tais eventos: no começo das
manifestações, especialmente nos meses de outubro de novembro,
percebemos uma divergência entre as mídias corporativa e dissidente:
enquanto a mídia corporativa dava voz às autoridades do Estado e à força
policial, criminalizando o movimento, a mídia dissidente tratava de enxergar
os movimentos a partir do ponto de vista dos manifestantes.
O olhar dissidente, aliás, pode ser apontado como – juntamente com as
páginas feitas pelos próprios alunos - um dos fatores que fizeram com que a
opinião pública ficasse cada vez mais inclinada na direção dos manifestantes,
interrompendo aquilo que Chomsky (2013) chamou de “consenso fabricado”
e que, graças às redes, tornou-se muito difícil na sociedade atual, tendo se
tornado mais um elemento de resistência nas relações de poder da
sociedade: antes, como aponta Chomsky (2013), manipulava-se a opinião
pública através de estratégias como a conhecida “fórmula do Vale de
Mohawk” (1936/37), hoje, tanto a mídia dissidente quanto as redes sociais
fazem com que a opinião pública seja alimentada com olhares diversos sobre
o mesmo fato e que, portanto, o antigo consenso não seja mais possível.
Através do olhar dos próprios manifestantes disseminado nas redes
sociais, vimos a construção de uma escola-outra: a geração que ocupou as
escolas paulistas protestou não apenas contra a reorganização escolar mas
contra toda uma instituição disciplinar, ainda moldada nos ideais do século
XIX e que não mais representa as formas de subjetivação do adolescente do
século XXI. A escola-outra, construída a partir dos desejos dos manifestantes,
109
tem o aluno como protagonista, ativo no processo de aprendizagem, prioriza
atividades culturais, debates mas se baseia também na ideia de que a escola
deve alinhar-se com uma sociedade mais voltada ao espetáculo (DEBORD,
2016), vivendo através do simulacro42 e promovendo aprendizagem através
de eventos e oficinas.
Os alunos/manifestantes construíram, assim, aquilo que Foucault (2013)
chama de heterotopia: um contraespaço, um espaço outro em que predomina
a criação dentro de um determinado espaço, indo também ao encontro
daquilo que o escritor anarquista Hakim Bey (1985) chamou de Zona
Autônoma Temporária (TAZ, em inglês): um contraespaço de insurgência,
temporário e clandestino, cuja criação se dá de forma horizontalizada e que
se destina ao exercício da liberdade.
Temos, assim, dois movimentos: o primeiro, reivindicatório e pragmático,
que propunha as ocupações como tática para pressionar o poder público a
retirar o projeto de reorganização escolar. O segundo, mais contestatório,
criava uma heterotopia foucaultiana para expor a ineficiência da gestão
escolar do governo do estado, bem como para criar uma escola quase utópica
de acordo com os desejos dos alunos/manifestantes. O resultado, como se
sabe, foi a vitória dos alunos em relação ao primeiro movimento: a renúncia
do secretário de Educação e o recuo do governo do Estado quanto ao projeto
de reorganização escolar. O segundo movimento, mais utópico, simbolizou o
desejo de transformação social - o que nos remete a 1968 e 1992 - e que
chegou a essa geração, por Santiago e Buenos Aires, trazendo o desejo de
mudanças, e, por isso, não pode ser medido factualmente, mas deixa
algumas pistas para nos guiar no sentido de qual caminho tomar para que
possamos nos aproximar cada vez mais de um “ideal”: uma escola outra, um
aluno outro, que não cabe mais na escola que conhecemos: uma escola que
ainda privilegia uma subjetividade formatada quase que exclusivamente de
modo disciplinar e que afasta a possibilidade de lidar com as diferenças de
maneira produtiva e criativa. 42 Simulacro aqui entendido como simulação da realidade, ou como define Baudrillard, ao refletir sobre realidade, símbolos e sociedade: “O Simulacro nunca é aquilo que esconde a verdade – é a verdade que esconde que não existe. O simulacro é verdadeiro” (BAUDRILLARD, 1991, p. 72)
110 Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. 3. ed.
Lisboa: Presença, 1980. Disponível em:
https://politica210.files.wordpress.com/2014/11/althusser-louis-ideologia-e-
aparelhos-ideolc3b3gicos-do-estado.pdf. Acesso em 06/01/2018
ANDRADE, Elaine Nunes. Rap e Educação, Rap é Educação. São Paulo:
Selo Negro, 1999.
ANDRADE, Eliane Righi de. A ironia como efeito de linearidade e
imparcialidade do discurso jornalístico. In Cadernos do IL/34 e 35, junho e
dezembro de 2007.
APPADURAI, Arjun. Modernity at large: cultural dimensions of
globalization. University of Minesotta Press, 1996. Disponível em:
https://pt.scribd.com/document/244556073/Appadurai-Modernity-at-Large-
Cultural-Dimensions-of-Globalization-pdf. Acesso em 23/12/2017.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: relógio d’água,.
Disponível em:
https://monoskop.org/images/c/c4/Baudrillard_Jean_Simulacros_e_simula%C3
%A7%C3%A3o_1991.pdf , 1991.
BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zaar, 2003.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO Gianfranco. Dicionário
de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. São Paulo: Editora da
Unicamp, 1996.
111 BRUNS, A. Toward Produsage: Future for User-Led Content Production. In:
Proceedings Cultural Attitudes Towards Communication and Technology,
Tartu University press, 2006.
BEY, Hakim. Zona autônoma temporária. Copyleft, disponível em:
http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf,
1985.
CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
14ª impressão, 2004.
_____ . Sincretika: Antropologia da Comunicação Visual. São Paulo: Studio
Nobel, 2013.
CARMAGNANI, Anna Maria. O discurso da mídia e o consenso fabricado. In
Estudos Linguísticos, vol. 32. Disponível em:
http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/32/htm/mesaredo/mr001.htm.
CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão.
São Paulo, editora Senac, 2000.
CHARAUDEAU, Patrick.Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012.
CHOMSKY, Noam. Midia: Propaganda política e manipulação. Tradução:
Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
_____. Herman, E. Manufacturing Consent.. NY: Pantheon Books, 1996.
_____. Para entender o poder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
_____. Sistemas de poder: entrevistas com David Barsamian. Rio de
Janeiro, Apicuri, 2013.
COHN, Sergio e PIMENTA, Heyk (org.). Maio de 68. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue Editorial, 2008.
112 CORACINI, Maria José. A celebração do outro: arquivo, memória e
identidade. Campinas: mercado das letras, 2007.
______; Ghiraldelo, Claudete Moreno (orgs). Nas malhas do discurso:
memória, imaginário e subjetividade. Campinas: Editora Pontes, 2011.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
2016.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. (1992) O que é filosofia? São Paulo:
Editora 34, 3a edição, 2010.
_____. (1995) Mil Platôs, volume 1: Capitalismo e esquizofrenia . São
Paulo: Editora 34, 2ª edição, 2011.
DELEUZE, Gilles. Mil platôs não formam uma montanha. Entrevista para o
jornal Liberation em 23 de outubro de 1980, s,p. Disponível em:
http://www.4shared.com/file/143777769/6e077d82/mil_platos_nao_formam_mo
ntanha.html em 05/06/2016 às 23:52 .
DERRIDA, Jacques. (2001) Papel máquina. Tradução: Evandro Nascimento.
São Paulo: Estação liberdade, 2004.
________ . A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997.
________. Pensar em não ver - escritos sobre as artes do visível
Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de
Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica de João Camillo Penna.
Florianópolis: Editora UFSC, 2012.
______. (1995). Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
113 ______ . Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. In:
Revista Cerrados, Universidade de Brasília, v. 21, n. 33, 2012 . Disponível em:
ihttp://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/8242. Acesso em
23/12/2017.
FAZENDA, Ivani (org). O que é interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez,
2008.
FERREIRA, Flavia Turino. Rizoma: Um método para as redes? In Liinc em
Revista, v.4, n.1, março 2008, Rio de Janeiro, p.28-40. Disponível em
http://www.ibict.br/liinc.
DIÓGENES, Glória. Cartografias da Cultura e da Violência. São Paulo:
Annablume, 1998.
FEDERACIÓN ESTUDANTIL LIBERTÁRIA. Como tomar tu colégio? Disponível
em http://amjseditora.com.br/pdf/como_tomar_un_colegio.pdf. Santiago, 2006.
Acesso em 16 mai. 2017.
FOUCAULT, Michel (1984). História da sexualidade 1: A vontade de saber.
Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Paz e terra,
2014d.
____. Filosofia e Biopolítica. Tradução Guilherme Castelo Branco. Belo
Horizonte: Autentica Editora, 2015.
____ . Aulas sobre a vontade de saber: curso no Collège de France.
Tradução Rosemary Abílio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014e.
____ . História da sexualidade 3: O cuidado de si. Tradução: Maria Thereza
da Costa Albuquerque. São Paulo: Paz e terra, 2014c.
114 ____. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos IV, estratégias, poder-
saber. Rio de Janeiro, Forense universitária, 2003.
____ O corpo utópico; as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013.
____.Ditos e escritos I: Problematização do sujeito. Tradução Vera Lucia
Avellar Ribeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária 2002.
____Ditos e escritos III: estética: literatura, pintura, música e cinema. Rio
de janeiro, Forense universitária, 2009.
____. Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro, forense
universitária, 2015.
____. O corpo utópico. Radio conferência. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-
michel-foucault. Acessado em 05/06/2016 18:45.
____. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
____. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France. São Paulo:
Edições Loyola, 2014a.
____ É inútil revoltar-se? Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015.
____ Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles
Deleuze. In: MACHADO, Roberto (org.) Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Graal, 2004.
____. Vigiar e Punir. O nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
16a edição, 2014b.
115 ____ La ética del cuidado de uno mismo como práctica de la
libertad . Acessado em:
http://www.topologik.net/Michel_Foucault.htm em 04/06/2016 às
15:38.
____ Outros espaços. Ditos e Escritos III. Tradução Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
____. Ditos e escritos VI. Tradução Vera Lucia Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2013.
_____ A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.
2004.
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo.
São Paulo: Brasiliense, 2ª ed., 1985
GUAZINA, Liziane. O conceito de mídia na comunicação e na ciência política:
desafios interdisciplinares. In Revista Debates, UFRS julho-dezembro de
2007. Disponível em: www.seer.ufrgs.br/debates/article/download/2469/1287.
GLUCKSMANN, Andre; GLUCKSMANN, Raphäel. Maio de 68 explicado a
Nicolas Sarkozy. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HJARVARD, Stig. Midiatização: conceituando a mudança social e cultural. In
Revista Matrizes, jan/jun 2014. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/viewFile/82929/85963
HOBSBAWM, Eric. Revolucionários: Ensaios Contemporâneos. 5ª edição,
São Paulo: Paz e Terra, 2015.
116 JAKOBSKIND, Mario Augusto. Resistir, resistir, resistir. In Revista Caros
Amigos. Especial Golpe, 50 anos. N. 67, abril 2014.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
JENKINS, H. Convergence culture. NY/ London: New York University Press,
2006.
LARA, Arthur Hunold. Grafite arte urbana em movimento. São Paulo:
dissertação de mestrado, USP, 1996.
LASSALA, Gustavo. Pichação não é Pixação. São Paulo: Altamira Editorial,
2010.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos, 3ª edição. Boitempo
Editorial, 2008.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCOSSIA, Liliana da. (orgs). Pistas
do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de
subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014.
PASSOS, Eduardo; EIRADO, André do. Cartografia como dissolução do ponto
de vista do observador. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia;
ESCOSSIA, Liliana da. (org) Pistas do método da cartografia: Pesquisa-
intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014.
PETERS, Michael Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso. In: Revista Estudos
da Lingua(gem), Vitória da Conquista, junho de 2005. Disponível em
http://www.estudosdalinguagem.org/index.php/estudosdalinguagem/article/view
File/4/3. Acesso 01/04/2017 18:07
117 PÊCHEUX et al. Papel da memória. Campinas: Pontes Editores, 1999.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. 2ª edição.
Campinas: Pontes, 1997.
PIAGET, Jean (1973). Problemas gerais da investigação interdisciplinar e
problemas comuns. São Paulo: Bertrand Brasil, 1973.
ROSE, Nikolas. Como se deve fazer a história do eu? In Educação e
Realidade n. 26. Janeiro/julho 2001a.
_____. Inventando nossos eus. In Silva, Thomas. Tadeu. da. Nunca fomos
humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo:
Editora Paulus, 2007.
_____. Desafios da ubiquidade para a educação. In Revista Ensino Superior
Unicamp, abril 2013. Disponível em:
https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/edicoes/edicoes/ed09_abril201
3/NMES_1.pdf. Acesso 18/10/2017 às 20:22.
SANTOS, Jordana de Souza. A repressão ao movimento estudantil na ditadura
militar. In Revista Aurora, ano III, n. 5, 1999.
SIBILIA, Paula. Redes ou paredes? A escola em tempos de dispersão. Rio
de Janeiro: Ed. Contraponto, 2012.
SILVA, Wagner Rodrigues. Construção da Interdisciplinaridade no espaço
complexo de ensino e pesquisa. Cadernos de Pesquisa, vol. 41, maio/agosto
2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v41n143/a13v41n143.pdf.
Acessado em 25/06/2016 às 23:40.
SHIRKY, C. A Cultura da Participação. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
118 SHORE, Stephen. A natureza das fotografias. Tradução: Donaldson
Garschagen. Cosac Naify, 2014.
SOLIDARITY Group. Paris: maio de 68. Coleção Baderna. Tradução Leo
Vinicius. SP: Conrad Livros, 2003.
TEIXEIRA, E. F. B. Emergência da inter e da transdisciplinaridade na
universidade. In: AUDY, J. L. N.; MOROSINI, M. C. (Org.). In Inovação e
interdisciplinaridade na universidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. p. 58-
80.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 12ª
edição, 2011.
TRINDADE, D. F. Interdisciplinaridade: um olhar sobre as ciências. In:
FAZENDA, I. (Org.). O que é interdisciplinaridade?. São Paulo: Cortez, 2008.
p. 65-83.
VALCARCEL, Amélia. Ética contra estética. São Paulo: Editora Perspectiva,
SESC, 2005.
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não acabou. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988.
ZIBAS, Dagmar M,L. A revolta dos Pinguins e o novo pacto educacional
chileno. In Revista Brasileira de Educação, vol. 13 n. 38, Rio de Janeiro,
agosto de 2008. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782008000200002.
119 ANEXO43
43 Disponível em http://amjseditora.com.br/pdf/como_tomar_un_colegio.pdf. Acesso em 17 mai 2017
120
121