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OS CLÁSSICOS NA FORMAÇÃO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO
BORDIN, Reginaldo Aliçandro1
PEREIRA MELO, José Joaquim2
O tema desta discussão é a importância das obras consideradas clássicas e seu papel
no processo de formação humana. O objetivo é tomar a literatura, especialmente duas
tragédias - uma grega e uma romana - como ponto de partida para debater o sentido dos
clássicos e neles identificar o fenômeno educativo como processo histórico.
Para cumprir esta proposta este estudo foi organizado em três momentos: o
primeiro, de ordem conceitual, implica na definição do que seja uma obra clássica; o
segundo, o que elas podem nos dizer em termos de educação; e por fim, a escolha, ainda
que limitada, de autores para abordagem do tema proposto. A opção pela tragédia
intitulada Antígona, de Sófocles, e a Medeia, de Sêneca, leva em consideração o caráter
público do teatro grego e o caráter privado da tragédia senequiana. As duas - cada uma em
seu tempo histórico - colocaram em discussão a condição humana e os valores que
orientaram sua educação, com vistas aos fins pretendidos.
1. OS CLÁSSICOS
É comum observar o uso da designação de clássico para referir-se a um livro ou a
qualquer outra expressão artística. Geralmente se emprega o termo clássico para referir-se
àquelas obras de autores consagrados do passado. Essa definição, apesar de usual, não
corresponde à definição do clássico que propomos discutir, nem mesmo em sua finalidade
formativa.
Foi o gramático romano Àulio Gélio, do século II d.C., quem procurou delimitar o
conceito de uma obra clássica. Em suas Noites Áticas, texto publicado por volta de 175 a
1 Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Professor da UCPR e CESUMAR 2 Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.
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177, ele definiu como clássica aquela obra que, por sua natureza métrica, exatidão de
palavras e referências, fosse digna de apreciação literária. Apesar de parecer subjetivo, o
critério que definia o clássico levava, na ideia de mérito que o caracterizava, as marcas da
história; em outras palavras, os critérios não seriam arbitrários, já que estariam
respaldados pelos valores que norteiam uma sociedade (CAIRUS, 2005).
Na concepção do escritor romano, um clássico é aquele livro que pertence a uma
ordem literária superior e que, pelo caráter novidadeiro e estilo literário, merece ser lido e
apreciado. A pretensa superioridade literária parece ter sido originada de outra ambiência
que não a da semântica. Segundo Carlos Ceia, para Áulio Gélio o clássico tinha uma
conotação política, porque identificava os indivíduos que pertenciam a uma classe superior
e os que eram de uma classe inferior (CEIA, 2005) Desse modo, o escritor clássico era
aquele que, reconhecido por suas qualidades, escrevia para uma classe de indivíduos
favorecidos, enquanto o escritor “popular” redigia para os de menor condição social,
portanto, de outra classe.
Chamavam-se clássicos não todos os que estavam divididos em classes, mas apenas os da primeira, que tinham cento e vinte e cinco mil dinheiros de renda ou mais. Contudo, infra classem chamavam-se os pertencentes à segunda classe ou a todas as outras classes, que possuíam menor quantidade de dinheiro. Isso é suficiente para explicar as palavras classicus e infra classem, cuja definição geralmente se busca em Catão, na lei Voconia (GÉLIO, 2005, p.170).
Essa concepção de clássico estabeleceu como critério um tipo de literatura que
agradava aos gostos estéticos e interesses de certas camadas sociais, privilegiadas pela sua
condição econômica e formativa. Em contrapartida, esses grupos procuraram diferenciar
suas obras daquelas que não pertenciam aos seus quadros sociais nem agradavam aos seus
interesses, seja pela qualidade estética seja pelos valores e ideais que reproduziam.
Os clássicos, nessa compreensão, estão associados à ideia de permanência dos
valores e das concepções filosóficas e pedagógicas característicos de determinados grupos.
Assim, por serem considerados de natureza superior à dos demais, eles desempenham a
função de modelo e referência literária, além de comportamental.
Nessa condição de modelo e referência, as obras clássicas “atravessaram” o tempo,
o momento histórico em que foram produzidas. É possível, por exemplo, reconhecer na
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Medievalidade a presença das ideias de autores como Platão, Aristóteles e Sêneca que
serviram de ancoragem à formação do pensamento filosófico medieval. Em condições mais
amplas, a longevidade desses autores evidencia uma situação mais importante: a percepção
da dinâmica da História e nela o reconhecimento dos valores e ideias herdados e
transmitidos pelas gerações, além do entrelaçamento dos acontecimentos e das práticas
humanas.
Não obstante, essa presença de pensadores da antiguidade clássica permaneceu viva
não apenas na Idade Média, mas também no período moderno. Na Modernidade, com o
desenvolvimento das trocas comerciais e o renascimento urbano e artístico, o clássico
representou um retorno aos antigos gregos e romanos. Segundo Massaud Moisés, um
movimento artístico – o Classicismo - procurou supervalorizar os escritores da
Antiguidade grega e latina. Impulsionados pelas teorias estéticas defendidas pelos antigos
(Poética, de Aristóteles; Arte Poética, de Horácio), os partidários do Classicismo
defendiam que a obra literária deveria obedecer aos cânones implícitos ou explícitos nos
textos gregos e latinos. Em outras palavras, a imitação dos antigos constituía o princípio
básico dos clássicos. Imitá-los não significava copiá-los, mas pressupunha destacar o
talento individual, a inspiração, a imaginação - em suma, o gênero artístico. Assim, os
autores modernos, ao conviverem com os clássicos, poderiam aprender as técnicas.
Nessa concepção, o respeito aos autores antigos alude a uma série de requisitos que
compunham o ideal de um clássico, entre os quais se destacam: a existência de regras que
estabeleciam parâmetros para a criação literária, a fim de evitar o caos; a razão, concebida
como bom senso e reflexão; a autoridade, fundada na razão e na lição dos antigos que, em
suas obras, elaboraram grandes composições; a imitação da natureza, que implicava no
pressuposto de que a arte imita a natureza; os objetivos da arte, já que se considerava
indispensável esta perseguir fins morais; o respeito às regras e aos modelos, com o que se
visava elaborar uma obra agradável e também instrutiva; por fim, a erudição, que
possibilitaria um conhecimento amplo, universal (MOISÉS, 2004).
Essas características tendem a privilegiar os componentes estéticos e semânticos,
aspectos que fazem uma obra ser considerada clássica. É clássica, então, aquela obra que
obedece a cânones determinados e reconhecidos como válidos e que atinge o nível de
perfeição.
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A concepção de clássico enquanto obra perfeita foi adotada por Hegel, autor de
Estética, livro publicado postumamente. Para Hegel, a arte clássica só pode ser produto de
um espírito livre, e sua produção revela-se claramente como o trabalho de um homem
reflexivo que sabe o que quer e pode o que quer, portanto, daquele que possui uma ideia
clara do conteúdo substancial que se propõe tornar perceptível e possui o domínio técnico
que essa realização exige (HEGEL, 2000). Além disso, cumpre lembrar que, para Hegel, a
arte não tem uma finalidade meramente contemplativa: antes disso, ela cumpre uma função
moralizante, isto é, a purificação do homem. Ela humaniza o homem, criando os meios
para que ele vença as paixões (HEGEL, 2001).
Além dessas perspectivas, que procuraram definir o clássico com base nos critérios
de superioridade literária, de modelo e perfeição, outro ponto de vista merece destaque.
Trata-se de abrir uma discussão considerando o seu caráter de historicidade: as obras não
existem fora do tempo histórico ou das contingências que a ele pertencem. Elas, por se
situarem em um momento histórico, expressam o cenário dos conflitos sociais, as
experiências humanas, os valores predominantes e, principalmente, as mudanças nas
formas de viver. Nesse aspecto, os clássicos ajudam a compreender a história como
mudança permanente, como transformação, por isso o diálogo com eles possibilita a
reconstrução do passado e das experiências coletivas, principalmente aquelas concernentes
à educação.
Visitar os clássicos implica, a princípio, uma ida ao passado a fim de nele conhecer
a dinâmica da história para reconhecer a elaboração das ideias e dos valores que
direcionaram o homem com vista aos ideais e fins pretendidos. A história, neste caso,
permite-nos atentar para as mudanças, as semelhanças, as diferenças e também as
permanências. Ela abre o leque das possibilidades que podem subsidiar o pesquisador - no
caso específico, o educador - na compreensão das concepções de mundo, de homem e de
sociedade e, especialmente, no entendimento de que o presente é resultado das elaborações
do passado.
O diálogo com o passado nos permite observar que os homens sempre buscaram entender sua essência, sua humanidade e formar indivíduos virtuosos e felizes, ou, ao menos, capazes de viver em sociedade. É o processo histórico impressionante e complexo, formador de quem hoje
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somos que intencionamos, ao máximo quanto for possível, compreender (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2009, p. 17).
Nessa direção, os clássicos se colocam como porta-vozes da história e, por
extensão, do passado educativo. Eles trazem as marcas do tempo no contexto em que
foram elaborados, o registro do cenário que se descortinou ao observador. A importância
de lê-los parte do pressuposto de que, ao registrarem o cotidiano dos homens, suas
condutas e experiências educativas, ampliam os nossos horizontes e nos munem de
informações que podem ser ferramentas úteis para o entendimento de nossos problemas,
mesmo que o momento seja outro.
Em face disso, os clássicos se convertem em fontes para as pesquisas e estudos das
mais diversas áreas do conhecimento, a exemplo da história, da filosofia, da estética e da
educação. No caso específico da educação, eles são considerados documentos histórico-
pedagógicos, uma vez que neles está contido o registro do modo como os homens
construíram seu agir pedagógico, seus princípios, costumes e valores. Eles não apenas
põem em relevo os modelos que orientaram a formação dos homens e a diversidade dos
comportamentos, mas também podem evidenciar a emergência de novos atores sociais.
Assim, o tratamento das fontes, em particular o da História da Educação, qualifica
o pesquisador para um recuo no tempo, para uma metodologia histórica de análise da
educação como produto humano. No diálogo com as fontes é possível discutir a “[...]
dinâmica e a permanência de valores produzidos historicamente com a preocupação de
direcionar o homem na busca do ser ideal e entender por que eles não permanecem reféns
de um tempo ou de uma época específica” (PEREIRA MELO, 2010, p.23).
Dessa maneira, o que torna os clássicos importantes como fontes é que eles, pelas
qualidades que os distinguem e os caracterizam, permitem-nos recompor os caminhos já
utilizados pelos homens na construção de sua humanidade, o que inclui os rumos
percorridos pela educação. A educação, neste sentido, deve ser vista como uma proposta
complexa de uma geração de homens que sucede a outra, não podendo ser reduzida ao
exame de qualquer tipo de ensino institucionalizado, uma vez que compreende a prática de
todos na luta pela sobrevivência. Assim, reaver os clássicos significa recuperar a História e
a história da educação e, por extensão, como os homens, de formas distintas e em
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momentos diferenciados, ligaram e religaram os indivíduos à sociedade em geral (LÍZIA,
2006).
Desse modo, o estudo dos clássicos fornece ferramentas para reconstruir o passado
educativo e pensar os valores que orientaram a formação humana e se tornaram
permanentes e, por isso, referências para o entendimento do presente. Importa considerar,
nessa perspectiva, não apenas o registro da mudança que se processa, enquanto produto das
ações dos homens, mas principalmente as razões que levam às profundas transformações
que resultam no homem e na sociedade tal como estes hoje se apresentam.
Assim sendo, considerando a concepção de obras clássicas e sua importância na
educação, a proposta deste trabalho é tomar dois autores, de épocas diferentes, para
analisar sucintamente os princípios da formação do homem na Antiguidade Clássica: o
primeiro é Sófocles, em sua tragédia Antígona; o segundo é o filósofo romano Sêneca, que
em sua tragédia Medeia delineia um perfil de indivíduo.
2. ANTÍGONA: NA TRAGÉDIA DE SÓFOCLES, UM DEBATE SOBRE A
FORMAÇÃO DO HOMEM GREGO
A tragédia foi uma produção dos gregos. Esse gênero artístico ainda hoje
representado, embora em situações que diferem da Antiguidade clássica, adquiriu funções
diversas: elaboradas para o entretenimento, elas assumiram também os papéis político e
pedagógico. Esse último papel desempenhado pela tragédia, mesmo que indiretamente,
pode ser examinado em Sófocles (496 - 406 a.C.), um dos principais poetas gregos,
nascido em Colono, nos arredores de Atenas.
Popular nas festas de Dioniso, no mês de março, época em que se realizavam
festividades a essa divindade, a origem da tragédia, ainda que duvidosa, está associada à
religião. Essa posição é sustentada por Jacqueline de Romilly. Ela afirma que essa origem
era visível nas representações da Atenas clássica, encenadas nas festas a Dioniso. Inseridas
em um contexto religioso, elas eram acompanhadas por procissões e sacrifícios
(ROMILLY, 1998).
Encenadas nos teatros - criados possivelmente pelo tirano Pisístrato (534 a.C.) para
prestar homenagens ao deus do vinho -, as tragédias não tinham função apenas religiosa,
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mas também política e, mesmo que não intencionalmente, formativa. Em uma época em
que a polis se estabelecia, as tragédias dirigiam-se à totalidade de seus cidadãos, já que ela
era também um discurso sobre a cidade e sobre o homem que deveria adequar-se a ela.
Segundo Anne Lebeau, o conflito trágico estava sempre relacionado com o pensamento
social, político e jurídico e com a tensão entre os valores da decadente aristocracia e a
ordem democrática, esta estabelecida pelas reformas de Clístenes, em 508 a. C. (LEBEAU,
s/d).
Criação artística característica da democracia ateniense, as tragédias expressavam
os conflitos da estrutura social de Atenas. Embora os aspectos externos de sua
apresentação às massas fossem democráticos, seus conteúdos, que refletiam as sagas
heroicas em uma perspectiva trágica da vida, tinham teores aristocráticos, o que sugere a
propaganda dos seus padrões de homem generoso e virtuoso (HAUSER, 1998).
Os solenes espetáculos que ocorriam nos teatros, especialmente na primavera,
tratavam dos problemas candentes do homem grego, fossem eles pertencentes à nobreza ou
não. O certo é que, para um público variado e atento, nas tragédias perfilavam outros
temas, como a condição humana, a dor, o sofrimento e os valores educativos. Neste caso, a
tragédia, tipicamente pública, representava a condição do homem grego e, por isso,
expressava as transformações por que este passava.
Nessas discussões a respeito da condição do homem, Sófocles evidenciou as
contradições políticas dos gregos. Especialmente em Antígona, o autor discutiu os limites
do Estado nas relações com o indivíduo. Na trama e nos personagens, a exemplo de
Antígona e de Creonte, o poeta questiona a soberania do poder político, representado pelo
direito positivo. Essa concepção política se choca com o direito natural, defendido por
Antígona, figura dramática que evoca a consciência individual, a crença nos deuses e o
respeito à tradição. Essa oposição entre o direito exercido pela família e o direito da Cidade
se evidencia quando Antígona procura cumprir seu dever para com o irmão morto, em
respeito aos ritos fúnebres que cabiam à família (KURY, 2002).
Com isto, Sófocles colocou em discussão a ordem democrática instituída na polis e
a sua rejeição. Na Grécia Clássica, com a democracia, a cidade parece rejeitar as
contradições da antiga aristocracia e das relações gentílicas e, com elas, os valores cívicos
e pedagógicos correspondentes. Antígona parece evidenciar a luta pela manutenção desses
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ideais, quando confrontada pelas decisões de Cronte, consideradas arbitrárias. As leis
imputadas por Creonte à coletividade têm outro caráter que não os de ordem familiar: a
vida é regulada por leis escritas e não tem vínculos com a tradição doméstica. A Pátria,
portanto, ocupa o lugar da ordem social até então elaborada por valores gentílicos.
No conflito entre a velha e a nova ordem, representado pelo embate entre Antígona
e Creonte, Sófocles descortina os valores que orientam a formação do homem, seja os
antigos, seja os novos. O respeito à tradição, a obediência aos deuses, a honra aos amigos e
o cumprimento dos deveres se destacam no conjunto de comportamentos defendidos pela
heroína da tragédia; mas sua postura tem algo a mais: nela Sófocles também coloca a força
da mulher. Em contrapartida, a obediência às leis da cidade e à autoridade civil é colocada
como prioritária na nova ordem que se impõe, mesmo que isso signifique rupturas no
universo familiar, a exemplo de Creonte, desafiado por seu filho Hêmon.
No desfecho da luta entre Antígona e Creonte, que leva a heroína ao isolamento e
nele a cometer suicídio, há uma cadeia de ações ou consequências. Hêmon, seu noivo,
tenta resgatá-la, mas não consegue e também morre. A mãe, ao saber da trágica morte do
filho, tem o mesmo destino. Creonte, no desespero e sozinho, aprende a pior das lições: os
seus supostos erros levam à perda dos entes queridos.
Nesse conjunto de ações representadas pelos personagens, Sófocles revelou sua
posição a respeito de seu momento histórico. Diante da mudança que se processa, ele
apontou para a obrigação de discernimento das ocorrências sociais, já que considerou a
irreflexão o maior dos defeitos dos homens. Também assinalou a concepção de que as
ações individuais, estando acima dos princípios normativos da vida pública, têm
consequências trágicas. Assim, em Sófocles a educação cumprirá o dever de orientar os
homens no discernimento das escolhas e do papel histórico que pretendam assumir, seja na
vida pública seja na privada.
3. A MEDEIA DE SÊNECA, UM OLHAR SOBRE A FORMAÇAO DO ROMANO
Não eram apenas os gregos que se preocupavam com os limites dos indivíduos ou
do Estado, os romanos também procuraram refletir sobre o ambiente social e político. Se a
tragédia grega se caracterizava principalmente pela natureza pública, ainda que os
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conteúdos exaltassem o ideal de vida da nobreza, essa mesma perspectiva não se vislumbra
nas tragédias de Sêneca (4 a.C - 64 d.C), um dos mais ilustres filósofos estoicos do
primeiro século da Era Cristã.
A atuação desse pensador romano não se restringiu às atividades filosóficas e
literárias, mas ele foi bastante atuante também na política de sua época: enquanto pessoa
pública, Sêneca foi conselheiro do imperador Nero. Na filosofia, ele foi influenciado pelo
estoicismo grego e defendeu o princípio de que o homem, a fim de obter felicidade,
deveria dominar as paixões e procurar viver virtuosamente, segundo os ditames da
natureza. Ele também se dedicou a escrever tragédias, entre as quais se destaca Medeia,
história que narra a situação e a vingança de uma esposa traída.
A tragédia de Sêneca, diferente da de Sófocles, destinou-se a um público mais
restrito: a nobreza palaciana. As tragédias senequianas, pela sua configuração estilística,
não foram compostas para o grande público, mas para serem recitadas em ambientes
privados. A hipótese mais provável é que Sêneca acreditava que, por meio de seus
trabalhos, pudesse ter alguma ressonância na formação dos grupos que compunham a
nobreza romana, já que apontava a formação do homem sábio como ideal pedagógico.
Em suas obras filosóficas e em suas tragédias, Sêneca preconizou o ideal de sábio
definido pela imperturbabilidade e impassibilidade da alma diante de situações
controversas. Nas tragédias, além de converter ficcionalmente as suas experiências
políticas, ele deixou patente o seu ideal de sábio e a conduta que ele deveria assumir ante
as adversidades. Por outro lado, ao mostrar os crimes cometidos por seus heróis e heroínas,
Sêneca também advertiu os homens dos perigos e catástrofes iminentes e afirmou que, no
embate entre razão e paixão, esta triunfa (VIEIRA, 2008).
Neste sentido, as paixões, cegas e desvairadas, levariam os homens a cometer atos
inconsequentes, fazendo-os mergulhar na loucura e na cegueira. O erro parece ser a
consequência da ação não refletida e das paixões de um homem acostumado aos vícios
resultantes dos apegos aos bens materiais. A paixão, diferentemente da razão, não freia os
impulsos, já que ela não mede a extensão de seus atos, como expressou em sua tragédia:
“Cega é a paixão que estimula o ódio: não se preocupa de ser moderada nem suporta ser
freada, não tem medo da morte, que espontaneamente jogar-se sobre a espada” (SÊNECA,
1973, 590-593).
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Em sua peça trágica Medeia, Sêneca parece ter levado ao extremo o
comportamento humano guiado pelas paixões e pelos vícios. A esposa de Jasão, num ato
de ódio pela traição do marido, mata seus próprios filhos por vingança, mesmo diante dos
pedidos de clemência do pai desesperado. Neste caso, o autor parece indicar que o
indivíduo que tem como guia as paixões não reconhece a clemência, virtude considerada
por Sêneca como essencial ao homem sábio e, por extensão, ao governante.
Para o filósofo romano, o sábio é aquele que cultiva a insensibilidade pelas paixões
e que exige moderação nas ações. Além disso, o sábio consegue ordenar os sentimentos e
afecções a fim de modelá-los em conformidade com o bem. Para isso ele deve alcançar
uma alma tranquila, o que só é possível pela meditação filosófica. Para um estoico, o
estado de apatia só é possível quando o homem segue a natureza universal e racional, da
qual ele mesmo faz parte. Assim, seguindo o curso da natureza racional, domando as
paixões e medindo as ações, o sábio alcança a felicidade, que é o bem.
Contrária a essa perspectiva, Medeia parece encarnar a loucura trágica marcada
pela perda do domínio de si em função de um desmedido e insensato desejo de vingança
que a motiva (VIEIRA, 2008). Seu crime parece ser inexplicável segundo a lógica da
moralidade humana, mas, no contexto das ideias estoicas, a tragédia ganha um sentido
pedagógico e moral: pedagógico porque a filosofia senequiana foi pensada com a
finalidade de preparar um homem virtuoso, seguro de si e capaz de racionalizar os desejos;
e moral porque o conteúdo da ação pedagógica é a virtude, entendida como uma vida em
conformidade com a natureza, afastada dos vícios.
Assim, com a tragédia, Sêneca debateu a condição humana suplantada pela
violência e pelos amores passionais. Por meio dos personagens ele compreendeu o mundo
como sujeito à loucura, já que os indivíduos são determinados a agir de acordo com as
paixões humanas. Não entendeu o mundo restabelecido pela interferência das divindades,
que na tragédia estão distantes do homem. Pelo contrário, Sêneca sustentou que o papel do
sábio é encontrar, por meio da razão, a ordem das coisas, e para alcançar esse objetivo,
caberá ao filósofo o exercício paciente e constante da meditação filosófica.
Em resumo, para recuperar a ideia central do texto, cumpre observar a importância
das obras clássicas como referencial de pesquisa para os estudos da formação do homem,
já que expressam o caráter universal e histórico da educação. Essas obras, embora estejam
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situadas em condições sociais e políticas diferentes, têm em comum o fato de apontarem a
necessidade de formar o homem com vistas a determinadas finalidades. No caso específico
de Sófocles e Sêneca, destaca-se a necessidade da formação moral do homem. Essas
intenções apontam para o estabelecimento de modelos de homem pautados na busca de
uma sabedoria que humaniza o homem e refreia suas paixões, preparando-o para a vida
comum. Assim, esses dois filósofos indicam que os indivíduos precisam aprender
princípios de formação humana, sejam eles morais, filosóficos ou políticos, valores
permanentes e indispensáveis ao convívio humano.
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