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TD C384f
MARIA CECILIA SOLHEID DA COSTA
OS "FILHOS DO CORAAO"
ADOO EM CAMADAS M~DIAS BRASILEIRAS
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antro-pologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro.
RIO DE JANEIRO
1988
Em memria de Francisca Isabel Vieira Keller.
ii
f:- .. ~r ,,-n ft1nbr~:; fHI o-ifos ,,,-;:;.
AGRADECIMENTOS
A Gilberto Velho, por seu constante encorajament:o du-
rante todos estes anos e pela orientao segura. Sua amizade,
confiana e estmulo sempre me foram de especial valia.
Aos professores, colegas e funcionrios do Programa de
Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, pelo
profcuo convvio nos anos de mestrado e doutorado. Dentre
estes, cito, em especial, Roberto da Matta, Otvio vos~lho e
Afranio Raul Garcia Junior, Coordenador do PPGAS.
As amigas e colegas Myriam Moraes Lins de Barros, Ta-
nia Dauster e Tania Salem, que me proporcionaram uma expe-
rincia de colaborao intelectual a mais rica e generosa du-
rante a convivncia no doutorado e trabalho conjunto sob a
orientao de Gilberto Velho.
A Peter Fry, grande parte responsvel por eu ter abra-
ado este tema. Viu nascer a idia deste trabalho e muito me
estimulou a segui-la.
A Maria Luiza Heilborn, Rosngela Digiovanni, Marisa
Corra e Lia Zanotta Machado, que coordenaram grupos de tra-
balho sobre a Mulher e a Famlia nas reunies da ABA em Bra-
slia e Curitiba, nos quais pude apresentar e ter discutidas
partes de meu trabalho.
ii
Dentre os muitos amigos que facilitaram contatos de
~~esqu2sa e que muito cont~ibuiram com sugestes, nomeio espe-
cialmente Elizabeth Tassi Teixeira - muitas das questes ini-
ciais de~te trabalho amadu::=-eceretm a partir de nossas conversas
e de seu interesse encorajador - e Rosngela Digiovanni - urna
interlocutora esti~ulante, amiga, paciente e solidria na fa-
se final de redao da tese.
A Zulrnara Posse e Jungla Daniel, que se revelaram co-
nhecedoras de muitos 11 casos 11 de adoo.
A Newton Grein, assessor da FUNABEM. Facilitou-me con-
tatos e facultou-me o acesso sua biblioteca especializada.
Nos anos em que cursei o doutorado, estive licenciada
do Departamento de Antropologia, da Universidade Federal do
Paran, cem bolsa de estudos da CAPES/PICO.
A Carmen Lucia Solheid, pela transcrio de fitas gra-
vadas e organizao do material de pesquisa.
A Antonia Schwinden, pela cuidadosa reviso.
A Vera Maria Santos Lima,
de datilografia.
pela dedicao no trabalho
A Andra, a quem eu nem conheo,
ilustraes.
pelas apropriadas
A meus informantes, cuja identidade me comprometi a
manter em sigilo, mas que, em seus depoimentos, transcenderam
os limites de seus prprios segredos, enriquecendo este tra-
balho.
i v
"Eles nao saem da gente, eles entram na gente."
(MARISA)
"Eles no sao filhos da barriga, so filhos do corao!"
(MES ADOTIVAS)
v
RESUMO
Este trabalho analisa as representaes e as prticas
da adoo no universo das camadas mdias brasileiras. Tem co-
mo referncia o estudo do rarentesco, a relao Biologia/Pa-
rentesco e um debate terico mais amplo sobre Natureza e Cul-
tura.
Centra-se nos focos simblicos da adoo- a. saber, na
MEDIAO, SEGREDO e BIOLOGIZAO - e em crenas e teorias que
tematizam os pontos mais controversos e ambguos em sua -pra-
tica, e se evidenciam nas acusaes, no preconceito social e
na estigrnatizao do adotivo, na construo de sua identida-
de social e nas relaes nesse contexto engendradas.
vi
SUMRIO
INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
CAPTULO I: OS "CASOS" E A PRTICA....................... 12
CAPTULO II: A HIST0RIA OFICIAL ................ 25
CAPTULO III: TECER UM DESTINO ........................... 80
3.1. "No h espontaneidade na vinda a Curitiba 11 81
3.2. A "BOLA DE NEVE": um outro lado da histria .. 83
3.2.1. "Os Tempos Passados 11 83
3. 2. 2. "Ningum coloca uma criana sozinho". . . . . . . 90
3~2.3. "Quando comecei, pensava colocar uma
bomba no Juizado" .......................... 108
3.3. 11 ENCAIXAR UMA CRIANA": o Sagrado e o Profano
na prtica da Mediao" ...................... 122
CAPTULO IV: SEGREDOS E REVELAES .. , ... 148
4.1. O 11 Sangue" e a Classe ........................ 149
4.2. A Cumplicidade e o "apagar das pistas" ....... 159
4.3. Os Muitos Segredos ........................... 195
CAPTULO V: DA BARRIGA AO CORAO: Um Parto s Avessas ... 227
CAPTULO VI: O DRAMA DA ADOO ....................... 274
CONCLUSO:............................................... 288
ANEXO I:........................................ . . . . . . 295
ANEXO II: Depoimentos ................................. 297
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ....................... 304
vii
F
INTRODUO
"Os sistemas de parentesco e os conceitos
de hereditariedade nas sociedades humanas,
apesar de nunca se conformarem a coefi-
cientes biolgicos de relaes, sao mode-
los de e para a ao social. Essas deter-
minaes culturais de parentes 'prximos'
e 'distantes' ( ... ) representam as efeti-
vas estruturas de sociabilidade nas socie-
dades em questo, e, conseqUentemente,
carreiam diretamente o sucesso reproduti-
vo. Realmente, como veremos, a relao en-
tre o reconhecimento de parentesco e o mo-
do apropriado de ao e muitas vezes rec-
proco, e as pessoas envolvidas, talvez
perfeitos estranhos antes do ato, so pos-
teriormente parentes para todo o propsito
exceto o genealgico. Isto o que signi-
fica construir um mundo social simbolica-
mente. E suas possibilidades se baseiam no
que o parentesco significa em sociedades
humanas, que no e a conexao gentica,
mas, quase sempre, como na etimologia in-
glesa do termo, pessoas do mesmo 'tipo'
(kin: people of the same 'kind'): uma no-
o de identidade social, permutada em um
sistema de valor diferencial (categorias
de parentesco) em termos de graus e tipos
de consubstancialidade.
(SAHLINS, 1976:25-6)
2
Enquanto prtica, a adoo nao parece ter recebido
muita ateno por parte dos antroplogos, desponta_ndo apenas
marginalmente em textos que tratam do parentesco, ou corno re-
gistro em etnografias clssicas.
Para MAINE, a adoo, como a.prirneira fico legal,
permitiu a incorporao de novos membros famlia atravs de
procedimentos e de meios que no o do nascimento (cf. SCHNEI-
DER, 1987:172), garantindo, assim, a continuidade da famlia
(cf. SOROSKY et alii.,l984:25). Mencionando experincias cul-
turais diversas, VAN GENNEP - em Os Ritos de Passagem (1978:
49, 122-3) - a associa ao casamento, aliana com estranhos,
incorporao de estrangeiros e, finalmente, a descreve em
termos da mudana social do adotado.
MALINOWSKI (in SCHNEIDER, 1987:171) reconhece que a a-
doo corresponde a substituio de laos de natureza biopsi-
colgica por outros que so meramente culturais, mas termina
por afirmar os limites de tal substituio, uma vez que ado-
es seriam raras, e que, "em termos estatsticos, os laos
biolgicos so quase que invariavelmente reforados, redE~ter
minados e remodelados pelos laos culturais"
MEAD, em Sexo e Temperamento (1969:191-2) revela a
importncia da adoo como fator responsvel pelo aumento da
populao entre os Mundugumor, sociedade na qual estaria as-
3
saciada ao desinteresse feminino em procriar, a recorrncia
do infanticdio, elevada incidncia de nascimentos gemeos lf e a uma lgica de aliana ancorada na estratgia de obten-
ao de irm para troca por uma esposa.
Em We, The Tikopia, FIRTH (1963,191-2) menciona urna
prtica de circulao de crianas - "the adhering child"- com
a sua incorporao a novos lares, para fins econmicos e so-
ciais, mas sem que percam suas prerrogativas junto famlia
de origem - do uso de ttulos de famlia e direitos de suces-
sao - e sem que venham a ser tratadas como numa relao pais/
filhos. Sua anlise sugere uma relao entre a adoo e o re-
forar de laos de parentesco para alm da famlia individuaL
em favor de urna unidade mais ampla, uma vez que as crianas
"aderem'' a famlias de outros parentes - como um irmo do ma-
rido,ou, mais raramente, da esposa - mas sempre conexoes pro-
ximas, ou ento "aderem" ao lar de um diferente cl, CUJa
proximidade dada por vizinhana ou laos de amizade.
EVANS-PRITCHARD, em Os Nuer (1978:229s.) e em Parent et
Mariage chez les Nuer ( 1973:39-40), faz referncia a adoo
e assimilao de laos cognatcios pelos agnticos, e cele-
brao de um rito de adoo que resulta na incorporao- como
filhos - famlia, famlia conjunta, e linhagem de seus cap-
tores, de crianas Dinka. Acrescentando que os Dinka aprisio-
nados j adultos no vm a ser adotado8, mas so assimilados
por meio do casamento ou da "criao mitolgica de fices de
parentesco'' atravs de uma ancestral, o autor enfatiza que os
"valores de parentesco constituem as normas e sentimentos
mais fortes na sociedade nuer, e todos os inter-relacionamen-
tos sociais tendem a ser expressos em funo do parentesco".
4
Em estudos mais recentes GOODY,J- & GOODY,E., 1969:
CARROLL, 1970; GOODY,E., 1982 ) , a circulao de crianas -
1 1.1 pela adoo ou fosterage - e comparada circula_o de mu-
1) Fosterage tem sido, imprecisamente, traduzido e intercambado por
11 criao", termo que, em nossa sociedade, adquire contornos muito eBpec-
ficos desde que cotejado com aquele de "adoo" - como se vera, adiante,
no Captulo li. A distino, que no encontra equivalncia na experincia
cultural brasileira e, tampouco, parece-me, em outras culturas, tem sido
operaconalizada por diversos autores. Entretanto, importa apreci-la en-
quanto distino terminolgca e conceitual construda em referncia a
um contexto cultural anglo-saxo, no qual contrasta com a adoo 8 1nedida
que esta ltima "se aplica a crianas legalmente exclu~das do ptrio po-
der dos pais naturais, por vontede ou no destes" ( MEAD, 1982:274 ). J
fosterage corresponde "delegao instituciona1izada da nurturance e/ou
elementos educacionais dos papis de pais" ( GOODY, 1982:23 ), ou, entao,
ao "cuidado temporrio de filhos alheios como uma obrigao de parentes-
co" ( CARROLL, 1970:7 ).
lheres e descrita, como o casamento, como uma modalidade de
aliana, ou como uma forma de reforar laos entre parentes
prximos, ou, ainda, de perpetuar um ncleo residencial e a
identidade da famlia por reunir membros antes dispersados
OTTINO, 1970:112s.).
A sua constatao em diferentes culturas e a descrio
de diversas modalidades em estudos histricos GOODY,J. 1976
e 1985 e registrados em pesquisas de campo na frica Dei-
dental GOODY, 1970 e na Oceania Oriental (CARROLL et.alii
1970 ) , apontam como centrais as questes da aliana, dos di-
reitos terra e do sistema de parentesco.
Segundo CARROLL (1970:8,15), no contexto de uma teoria
geral do parentesco e em referncia mesma que se devem in-
cluir os estudos sobre a adoo, ao mesmo tempo em que estes
5
ilustraro questes sobre a natureza do parentesco.
Ao concordar com o autor, o fao no sentido de que ao
Conduzir esta interpretao sobre a adoo em camadas -~ meu~dS
brasileiras, estarei, ao mesmo tempo, focalizando alguns as-
pectos a respeito das representaes de parentesco em nossa
sociedade que, de outra maneira, permaneceriam no-proble-
matizados.
A adoo tem colocado problemas interpretativos para
as anlises do parentesco , em decorrncia do entendimento de
que o mesmo corresponde ao reconhecimento social da consangi-
nidade e da afinidade, argumenta CARDOSO (1981:196s.). De urr.
lado, tem sido percebida corno uma forma de "parentesco compen-
satrio", ligado atribuio de status de pseudo-consangini-
dade e da afinidade. De outro, dados a sua recorrncia e cara-
ter extensivo em diversas sociedades notadamente entre popu-
laes de baixa renda na Amrica Latina - , tm-se produzido
tambm anlises de cunho meramente utilitrio: seria, em tais
casos, a adoo to somente um meio de " maximizao de ajuda
mtua". Ora, para a autora, h que se dar conta, nos estudos
sobre este fenmeno, tanto das peculiaridades culturais de re-
presentaes sobre o parentesco, quanto dos significados mais
profundos que informam a ideologia do parentesco nas diferen-
tes classes sociais.
Ao procurar ressaltar as peculiaridades culturais da
prtica da adoo em camadas mdias brasileiras, tomo como
parmetros duas questes que dizem, ambas, respeito a um sen-
timento de ambivalncia e de ansiedade que acompanha a expe-
rincia de adoo.
Primeiramente, conforme menciona STOLCKE (1980), de um
6
modo geral, no mundo ocidental, esse sentimento estaria asso-
~iado a uma evidente confuso - fruto de um biologismo difuso
'em nvel de senso comum - entre herana e hereditariedade.
Para esta autora, tais inq'.lietaes se complicaridm, sob:cetu-
do, no caso das classes proprietrias, pois, em decorrncia
de tal biologismo, o sentido da hereditariedade e o do ge-
ntico se encontram associados a constituio da hierarquia
social e concepo de que h uma determinao relativa as
posies ocupadas pelas classes sociais e pelos individuas.
Nesse quadro, em que o biolgico e o moral esto imbricados,
a inco1:porao de um estranho famlia por meio da adoo
traz o problema de uma ordem no-respeitada, de urna orde~rn a-
balada.
Em segundo lugar, as crenas generalizadas de que~ a a-
dao parece violar a lgica de seleo de parentes por meio
de relaes dadas nos processos de reproduo humana, na
transmisso gentica, em determinaes biolgicas, se crista-
lizam em torno da idia de um risco assumido com a incorpora-
o de um estranho ao grupo familiar.
Ora, ao ser confundida, na prtica, com relaes de pa-
rentesco, ao ser tratada como se fosse do mesmo tipo, a ado-
o cria "parentesco" onde nenhum de fato existe. Isto , on-
de no existe o que se entende como uma "real" rela:o de
"sangue" (cf.SCHNEIDER,1987:171s.). Neste particular, a ques-
to est referida prpria distino entre adotivos e paren-
tes, e se apia, sobretudo, em um operador simblico, o "san-
gue" compartilhado, como delimitador e definidor de pert:enci-
menta ou excluso do ltimo grupo. Como conseqncia., as
crenas sobre a adoo, de um modo geral marcadas pelo senti-
7
menta de ambivalncia, esto referidas a representaes que
tanto circunscrevem um domnio quanto os limites do outro. ~
A importncia das representaes sobre o "sangue" no
contexto da~5 relc.es de parentesco - enquanto princpio "in-
questionvel" por sobre o qual se assentam, existem ou nao,
tais relaes - tem sido apontada por vrios autores a res-
peito da sociedade ocidental, da sociedade brasileira em ge-
ral e de diversos de seus segmentos especficos. Fundamental-
mente, tais autores - dentre os quais cito SCHNEIDER (1987),
WOORTMANN (1977) e ABREU FILHO (1980,1981,1982) - tm desta-
cada o carter simblico e o peso ~deolgico dessa categoria.
Atravs dela tambm s relaes genealgicas - um dado biol-
gico concreto - atribudo um contedo ideolgico (WOORTMANN
1977:182). Ainda, como esta categoria se inscreve no interior
de uma caracterstica cultural da sociedade ocidental: a ten-
dncia a constituir e conceber o carter humano, a natureza
humana e o comportamento humano de um modo "biologs-
tico 11 (cf.SCHNEIDER,1987:175).
A arbitrariedade de valores dados s relaes genealgi-
cas e a questo da variabilidade cultural e da especificidade
de concepes de parentesco associadas a teorias e conceitos
de hereditariedade, tambm foram afirmadas por SAHLINS. A-
crescentando que critrios biolgicos com os mesmos nao se
confundem, e que a biologia humana meramente coloca dispo-
sio da cultura um conjunto de meios para a construo de
uma ordem simblica, aponta para o fato de que os mesmos fi-
gurarn como modelos de e modelos para a ao social (1976:25-6
e57-66).
Um dos problemas levantados por SCHNEIDER (1965:92) pa-
8
rece-me de extrema relevncia para esta discusso: "urna coisa
das ~se perguntar, como questo emprica, quais os aspectos
ielaes biolgicas entre as pessoas so relevantes, e de que
rr.odo, pa1.a suas relaes sociais? f: outra bem diferente a f ir-
mar - .no importa corno foi respondida a primeira questo- que
que devemos definir as relaes sociais - para fins analti-
cos ainda no especificados - em termos biolgicos."
Neste sentido, reconheo a importncia das representa-
oes dos informantes, o lugar atribudo s relaes geneal-
gicas e ao "sangue" - como um dado "biolgico" que se apre-
senta como qualificador da distino do adotivo.
Reconheo, tambm, que, em nossa sociedade, concepoes
cientficas permeam o senso comum, dando legitimidade a tais
crenas, ao mesmo tempo em que tal manipulao "tende a con-
taminar, de maneira grosseira ou sutil, a prpria reflexo
cientfica". (cf.DURHAM, 1983:15; e SAHLINS, 1976).
Ao eleger uma razao cultural para direcionar minha ana-
lise, e entendendo o parentesco como um sistema cultural.men-
te varivel de categorias significativas (cf.SCHNEIDER, 1965:
19), reconheo tambm a importncia atribuda em nosso pas-
conforme j apontou CARDOSO (1981) - transmisso do "sangue",
mas tambm socializao corno operadores simblicos no pro-
cesso de criao do parentesco.
Diferentemente dessa autora, que analisou a "criao" -
fostering - de filhos alheios por famlias de baixa renda em
favelas na periferia de so Paulo, estou, em meu estudo, fo-
calizando a adoo no universo cultural das camadas mdias
brasileiras.
Ao eleger as camadas mdias como o l.ocus da pesquisa,
9
levei em considerao critrios de apreensao da realidade j
\feracionalizados em trabalhos anteriores (VELHO, 1972, 1981,
!986; ABREU FILHO, 1980; SALEM, J985, 1987; LINS DE BARROS,
1987; HEILBORN, 1984, 1985: DAUST'ER, 1987).
Alguns pentes ressaltam corno recorrentes em tal tradio
terica. Quanto ao prprio conceito de camadas mdias, CUJO
uso est marcado pela preocupao em privilegiar aspectos
simblicos e em tomar corno ponto de partida a apreensao de
representaes sociais dos atores a respeito da hierarquia
social. Assim, de um lado, o conceito se contri em oposio
a teorias de estratificao social e a0 conceito de classe,
medida que se busca enfatizar critrios que nao sejam mecani-
camente deduzidos de aspectos econmicos como explicao e
base para anlise da estrutura social. De outro, est referi-
do a noo e constatao emprica da heterogeneidade sacia~
de uma pluralidade de "experincias soc~a~s e vises de mundo
altamente diferenciadas", as quais, embora nao necessaria-
mente assentadas sobre a diviso social do trabalho, podem
configurar especificidades e delimitar fronteiras simblicas
(cf. VELHO & VIVEIROS DE CASTRO, 1978), Assim, o uso do con-
ceito de camadas mdias e o apelo noo de "segmento", pau-
tam-se em alguns pressupostos: "a incorporao de qualidades
culturais j no recorte das identidades sociais"; "a conside-
raao de atributos simblicos implica(ndo) o rechao a urna su-
posta unidade dos segmentos mdios"; " a coexistncia de rnl-
tiplos cdigos culturais ou de mltiplas realidades" como uma
das "peculiaridades constitutivas das sociedades complexas mo-
dernas" ( SALEM, 1987: 23-4).
A operacionalizao de conceitos como ethos, viso de
10
mundo (para uma definio, ver GEERTZ, 1978) e a ateno as
fronteiras simblicas (VELHO,l981) entre os grupos esto tam-
lf bm associadas aos estudos de camadas mdias em geral, e mar-
ca.ram este estudo, em particular. Por sua vez , a utilizao e
o recurso a nooes como "clas:::;e 11 , por exemplo, derivam d~~ sua
apreensao no discurso dos informantes.
Portanto, os limites do grupo aqui estudado nao esto
dados pela complexidade derivada da diviso social do tl~aba-
lho que os localize e substancialize enquanto uma categoria,
segmento de uma estrutura de classes, mas enquanto um qrupo
que possui uma identidade comum construda em torno da adc;>o
enquanto" experincia sintetizadora".
Segundo SALEM (1985: 8-9), "as experincias sintetizadoras
nao s expressam uma viso de mundo como tambm exigem, ou
expressam um tipo especfico de ethos por parte dos agentes
que aderam a tais prticas". Ainda, atrelados que esto a uma
configurao de valores, so demarcadoras de 11 fronteiras so-
ciais com relao a outras identidades sociais" sem que ne-
cessariamente estejam ancoradas a nenhum grupo ou networ~: es-
pecfico, mas sim a um grupo de ethos.
Entretanto, se a partir desse referencial terico e da
enfatizao de uma singularidade construda em torno da e.xpe-
rincia da adoo que se direciona esta anlise, h que se
destacar que o universo pesquisado se caracteriza pela a.ten-
o demarcao de fronteiras sociais, medida que se in-
traduz, aqui, a questo da relao com outra classe social.
Avaliada sob a tica das representaes da hierarquia social
dos informantes, tal relao se constri a partir e em t.orno
da adoo. Tambm, como si acontecer no contexto de outros
11
estudos de camadas mdias, se caracteriza este universo por
wna heterogeneidade, minimamente perceptvel em termos da di-~
ferenciao entre adotantes e mediadores, e que se desdobra
em torno de tendnc;ias, trajetrias; ocupaes e padres ti-
cos.
O objetivo deste trabalho analisar as representaes e
as prticas de adoo no universo das camadas mdias bras i-
leiras. Ao mesmo tempo, encaminho a investigao na direo
da relao Biologia/Parentesco, tendo como referncia tanto o
contexto de um debate terico mais amplo sobre a relao
Natureza/Cultura - nos termos da tradio l~vistraussiana -
quanto o entendimento do parentesco como um sistema simblico
-nos termos de SCHNEIDER, SAHLINS e ABREU FILHO (op.Cit.).
CAPITULO I
E A PRTICA OS "CASOS"
' I '
(];:)
/
\
isa sobre a numa pesqu h 0
um caso - ? Con e ,
adoao. sante .. ~nteres bem ...
13
Os dados que informaram a elaborao deste trabalho
foram coletados em pesquisa de campo realizada nas cidades de
Curitiba e Rio de Janeiro, entre Dezembro de 1983 e Julho de
1986.
O objeto das investigaes foi o das representaes e
das prticas de adoo em nossa sociedade, conforme atuali-
zadas por famlias de camadas mdias urbanas que tivessem tal
experincia.
A medida que a pesquisa tomava corpo, dois fatos pas-
saram a modificar os limites deste universo. De um lado, e
associado com uma descoberta de especificidade que singulari-
za essa modalidade de adoo em contraste com formas encon-
tradias em outros segmentos sociais, imps-se o encaminha-
mento da investigao para o mbito da mediao de crianas.
De outro, a recorrncia de "casos de adoo" que passaram a
me ser relatados.
O que e um 11 caso" de adoo? Em primeiro lugar, a pa-
lavra "caso" retrata toda uma tradio oral a respeito desse
instituto. Tradio que se alimenta, sobretudo, dos "casos
que no deram certo", do relato de situaes dramticas que
se teriam originado na e por causa da adoo. Em segundo lu-
gar, a categoria "caso 11 amplamente utilizada por meus pro-
prios informantes - estejam estes direta ou indiretamente en-
volvidos com o tema.
14
"O meu caso de adoo. ele e meio especifico",
"Conheo um caso bem interessante".
"No sei de caso algum de adoo que tenha dado
certo".
Do detalhamento da especificidade em longas entrevistas
que me ocupavam toda uma tarde ou entravam longe na noite, a
aleatoriedade na colet..a dos "casos" 1 os resultados apresenta-
dos neste trabalho tm pretenso de universalidade no
respeita a prtica de adoes em camadas mdias brasileiras,
malgrado a coleta de dados ter se efetiva do to someni:e nas
cidades de Curitiba e Rio de Janeiro.
O que me permitiu assim concluir?
Primeiramente, pois Curitiba um conhecido "centro
de colocao de crianas" j que casais das mais diversas
localidades e regies do pas para l se dirigem em busca de
- diz-se - uma criana "branca, loira, de olhos azuis 11 para
adotar. Em segundo lugar, as informaes obtidas de mediado-
ras PROFISSIONAIS descrevem essa procura como cobrindo todo o
territrio nacional, se bem que, apontou-me uma delas,"o mai-
or nmero de casais que vem de Minas, Rio de Janeiro e Re-
cife" (MARIA APARECIDA)_. Verifiquei, de minha parte, ao fo-
lhear os lbuns, apreciar fotos, cartas e documentos e ouvir
os comentrios das mediadoras, a amplitude das redes de
clientela que se forjam a partir da adoo nessa cidade.
Entretanto, preciso frisar, grande parte de meus in-
formantes no adotou urna "criana curitibana", no sentido es-
tr~to do termo. De um lado, porque a maioria dentre os mesmos
reside nessa cidade, e um dos princpios que presidem a bus-
ca de um filho para adotar o de impor urna distncia geogra-
fica distncia social e fsica com a mae a "origem"
15
da
criana. Mas, ainda assim, quase todos - com exceo de um u-
~ico - usaram recorrer a uma mediadora estabelecida na pro-
pria cidade. Dentre esses, alguns "se arricaram" a adotar l
mesmo. De outro laclo, dos 5 informantes entrevistados no RJ.o
de Janeiro, 3 adotaram filhos em Curitiba, 1, criana do "in-
terior do Paran", e 1, no Rio Grande do Sul. Resta que
Curitiba, no mundo da adoo, representa o "Sul" como catego-
ria mais abrangente para indicar o local onde se poderia en-
contrar a 11 criana ideal" para adoo.
No , porm, este apenas o fator da atrao exercida
por essa cidade e que centraliza os "casos" de adoo que a-
naliso. como se ver no Captulo III, Curitiba um 11 Centro de
adoes 11 sobretudo na medida e por causa de um crescimento,
especializao e complexificao e - nao descarto a relevn-
cia desse fato at de burocratizao, de redes estruturadas
de colocao de crianas. Acrescente-se a isso o criterioso
processo de seleo da criana, que e demonstrado na rigorosa
seleo de casais adotantes aos quais mediadoras impem as
regras do jogo, e se vera o quanto a "tica 11 da mediao se
constri em referncia a um ethos de adoo, informando-o e
alimentando-o.
De um outro ngulo, amplio minhas concluses para o
mbito das camadas mdias brasileiras, em funo exatamente
dos numerosos "casos" colhidos e das inmeras informaes ob-
tidas - e que serviram como material de pesquisa - informal-
mente, em conversas com amigos, pessoas conhecidas, os pro-
prios entrevistados, especialistas em adoo. So informaes
construdas em conversas informais, paralelas as entrevistas
aqui incluo os to decantados relatos depois do
16
gravador
desligado - e que subsidiaram meus estudos ao acrescentar ou-
~ros "casos" que, ora fazem parte da experincia no crculo
de relaes do informante ocasional, ora so parte de uma
tradio oral que envolve a adoo e que compreende, sobretu-
do, os famosos "casos que no do certo". Da a importncia
que lhes atribu como material relevante de pesquisa.
Incontveis foram os "casos" que coletei. Ciosamente,
no incio da investigao. Mais tarde, seletivamente. Em con-
traste, o universo da pesquisa abarca um total de 33 famlias
brasileiras que tm ao menos um membro incorporado pela ado-
ao. Destas, foram entrevistadas 40 pessoas, das quais 7 fi-
lhos adotivos e 2 avs, 3 casais, 2 pais adotivos e o restan-
te, mes adotivas. Ainda, entrevistei 7 pessoas de 5 "fam-
lias adotivas 11 estrangeiras. Na rea "externa" a esse domnio
de "famlias adotivas", entrevistei 26 outros informantes:
entre mediadoras (11), mdicos (3), advogados (3), menorista
(1), enfermeiras e irms de caridade (3), psiclogas (2), um
padre, um Juiz de menores, uma jornalista, dois membros do
Consulado da Itlia e uma ativista da CUB-USA.
Do lado dos "casos", enquanto tradio oral sobre a
adoo, h que se considerar o contraste qUe pem a uma s~
tuao dita de normalidade, e que corresponde a um padro, ou
modelo, que seria universal, de uma famlia "cornum 11 Que nao
entra na histria, como " os povos felizes no tm uma b.ist-
ria11. Em contraste com a universalidade na "normalidade", a
tnica nos "casos" e a singularidade na "anormalidade".
De outro ngulo, a mesma questo, pela circulao dos
"casos" em forma de fofocas (Captulo IV), configura segura-
17
mente formas de controle social.
Do lado dos informantes, outro vasto repertrio de
Vlcasos". Desta feita resgatando apenas aspectos positivos ou,
ao menos, valorizados sobre a adoo. Face aos mesmos, a tra-
dio oral da sociedade aponta para aspectos que so "negati-
vos11, ou, simplesmente, para uma interpretao alternativa.
Descrevendo detalhes fragmentrios da biografia de a-
dotantes e adotados, seu foco incide sobre os estigmas, as
representaes mais amplas sobre parentesco e pertencimento
que tambm informam o mundo da adoo e, de certo modo, de-
terminam os procedimentos e o relacionamento no interior da
famlia adotiva.
Foi muito nessa fonte que me apoiei para desenvolver a
temtica do DRAMA DA ADOO, discutida no Captulo VI, segun-
do depoimentos de pais e filhos que se "conformam" e/ou di--
vergem de um desenho da direo desse DRAMA, de modelos de a-
dao que so ideais - "a adoo que d certo" ou que se
devem evitar - "as adoes que no do certo". O DRAMA DA A-
DOO tratado nesse cap t.ulo como um momento em que o de-
sencadear de um conflito entre pais e filhos adotivos e reve-
lador de algumas reas sensveis e ambigidades da situao
de adoo. Estas passam, a nvel de discurso, por uma tenso
entre o incontrolvel gentico as vezes qualificado como
"TARA" ), as determinaes das relaes de "sangue 11 , por opo-
sio socializao e s relaes adotivas, mas que se re-
velam focalizando desvios de projetos familiares construdos
com base em RELAES EXAGERADAS.
A nfase nas relaes que sao atadas pelo " amor " e
pela "escolha" do filho adotivo, tendo como ponto de refern-
18
cia a distino culturalmente dada entre estas e as derivadas
dos "laos de sangue" - condensadas, neste universo, na opa-
~io entre "BARRIGA 11 e 11 CORAO" - direcionam a anlise de-
senvolvida ao longo do Capit.ulo v, que trata da BIOLOGIZAO
da paternidade adotiva. BIOLOGIZAO que abarca um perodo
que antecede a efetivao do ato, e que vivido como G3AVI-
DEZ DA ADOO, e se estende at aspectos relativos a "CRIA-
O" do filho: a garantia da SOBREVIDA e a construo da PA-
RECENA. Em contraste com os captulos que o antecedem -sobre
o SEGREDO - e o sucedem - sobre o DRAMA DA ADOO, nos quais
os conflitos e tenses -e questes sugeridas conduzem a inter-
pretao, o Captulo V reproduz um modelo positivo e equili-
librado, mais prximo, portanto, s representaes e ideli-
zaoes dos adotantes.
Um dos primeiros comentrios que ouvi ao revelar a al-
guem de minhas relaes a inteno de pesquisar sobre a ado-
o em camadas mdias, foi feito mais ou menos nesses ter:mos:
"Voc no vai ter sucesso! AS PESSOAS QUE ADOTAM NO GOSTAM
DE FALAR NO ASSUNT0! 11
Contrariamente ao esperado, essa previso nao se reve-
lou verdadeira. Certo. Tal previso apont_ava para uma area
sensvel da proposta, exatamente por se tratar de algo que,
em nossa experincia enquanto membros das camadas mdias, so
nos chega ao conhecimento atravs de comentrios feitos em
voz baixa, segredados, ou do contato prximo com situaes
que, por envolver parentes ou amigos, pe sobre sua explici-
tao e fcil acesso a informaes, alguns impedimentos ou
at tabus. De um outro ngulo, a alta dramaticidade associada
a alguns dos ncasos 11 guardados na memria, fazia, de antemo,
l9
supor que alguma resistncia haveria por parte dos envolvi-
dos, em me conceder entrevistas e prestar depoimentos.
~ Essa aura de mistrio na qual permanece envolta a ado-
ao em camadas mdias, e que, sem dvida, encontra sua funda-
mentao no peso simblico atribudo aos "laos de sangue" na
determinao das relaes de parentesco, embora tenha outras
implicaes no to evidentes, veio a ser analisada no Cap-
tulo IV. O SEGREDO DA ADOO, ao ser focalizado, revela-se
como constitutivo dessa prtica social de "tomar filho alheio
como prprio", conforme atualizada em camadas mdias urbanas,
tanto quanto o so a MEDIAO obrigatria e o processo de
BIOLOGIZAO. Observa-se que o SEGREDO DA ADOO envolve uma
srie de procedimentos e tabus, referidos a um desejo de cor-
te radical com um "passado" do adotivo, que se reifica pela
evitao de relaes e, enquanto representao, em torno da
"imagem", ou do "fantasma", da ME "biolgica". Mas que tam-
bm se constroem em funo do recrutamento da criana nas ca-
madas mais baixas da hierarquia social e do conseqente
transpor das fronteiras simblicas entre as classes. Tanto a
nvel de controle quanto da mediao, muitos se encontram en-
volvidos e so portadores do SEGREDO, que, em seus mltiplos
desdobramentos, socialmente compartilhado e exige cumplici-
dade para sustentao.
Mas, ao fazer de um possvel impedimento um dado de
pesquisa - e foram incorporadas como dados as recusas e as
motivaes para no prestar depoimentos (recusas, alis, sur-
preendentemente muito menos numerosas que as manifestaes e
acolhidas positivas s minhas solicitaes) e ponto de
partida para reflexo sobre o SEGREDO, defrontei-me, num ou-
20
tro plano, com empecilhos para ampliar com mais rigor as con-
cluses sobre o tema geral da adoo. Ampliao que, no meu
~ntender, supunha um conhecimento mais acurado sobre a hist-
~ia da adoo em nosso pas e em nossa tradio cultural, pa-
ra integrar, nuiDa perspectiva comparativa, talvez estatstica,
informaes sobre as mudanas por que passara esse instituto.
O Captulo II retrata o resultado de pesqu1.sa bibl.io-
grfica em documentos, livros e peridicos, em busca de ele-
mentes para a reconstruo da histria da adoo. Reconstru-
o que esbarrou fundamentalmente em alguns obstculos como a
quase inexistncia de textos que tratassem da questo, a pou-
ca visibilidade da adoo e seu desinteresse - at bem recen-
temente - como matria para a Imprensa, mas, sobretudo, a
preeminncia da "adoo brasileira" sobre as outras formas,
que sao legais, e qual fazem recurso casados - mas tambm
solteiros - que procuram incorporar "filho alheio como pro-
prio", sem a intermediao do Estado ou das leis,
do-o corno filho legtimo.
registran-
Em anos recentes, apesar de "representar 90% das ado-
oes realizadas em nosso pas" - como sempre o mencionam JU-
ristas e menoristas em entrevistas Imprensa - tem sido a
"adoo direta" ou " brasileira" sistematicamente combatida,
atravs da atuao dos Juizados de Menores, e - em se tra-
tando das adoes por estrangeiros - da Polcia Federal. O
qne resulta numa possibilidade maior de registros mais amplos
e confiveis sobre o assunto, que seria possvel obter para
at bem poucos anos atrs. Restou-me, mais uma vez, o recurso
aos "casos", mas, sobretudo, memria das mediadoras, para
reconstituir essa histria, de outro prisma, no incio do Ca-
21
ptulo III.
No que respeita ao universo pesquisado, uma curiosida-
d~e: o total das "adoes brasileira" somente ultrapassa de
pouco aquele da::; outras modalidades. Assim, de 51 filhos ado-
ti vos, 29 o foram pot' essa "via direta", 10 pelo recurso
ADOO PLENA, e 12 por meio da ADOO SIMPLES. Se acrescl-
das a essa enumerao as 8 crianas colocadas junto a casais
estrangeiros, as quais, todas - com exceo de um nico caso
duvidoso- o foram pela via legal, e como ADOCES SIMPLES1 ,
l) Aos estrangeiros s e facultada essa modalidade de adoo.
ficar demonstrado um absoluto equilbrio entre adoes "
brasileira" e aquelas legalmente realizadas.
Os previstos empecilhos ao bom andamento da pesqulsa
levaram-me a lanar mo da estratgia de no me dirigir dire-
tamente aos adotantes, usando, para tanto, pessoa interposta
com a qual os mesmos mantivessem laos de amizade ou paren-
tesco. Como parti da premissa de que em meu prprio crculo
de amizade ou de parentesco no seriam selecionados informan-
tes - se bem que a intimidade com tais "casos" direcionou
muitas de minhas questes, e forneceu a base para um reconhe-
cimento de ambigidades, problemas e tenses posteriormente
sistematizadas -, 1ninha prpria rede de relaes funcionou
como ponto de entrada nas redes forjadas no interior do uni-
verso da adoo. Com o passar do tempo, vi-me colocada ante a
possibilidade de conhecer e explorar diversas dimenses des-
sas redes. Pois uma amiga me apresentou ROSANA, que insistiu
com que eu entrevistasse tambm NELSON, seu marido, que to-
22
mau a iniciativa de marcar um horrio para que eu falasse com
ELISA, que me passou dois outros nomes ... Uma de minhas pa-,l rentes era amiga de NARISA, que me apresentou a ZLIA, que
if,e levou a JLIA, que me levou a CARLA ,
Para evitar me prender nas malhas de uma nica rede,
usei do expediente de revelar a conhecidos o objeto de tese.
Como "todo mundo conhece um caso de adoo", novos e diferen-
tes contatos foram estabelecidos. Tambm, para nao circuns-
crever os limites da pesquisa a cidade de Curitiba, foi atra-
vs de amigos que, nesta cidade do Rio de Janeiro, colhi al-
guns depoimentos. No processo, surpreendi-me a descobrir, em
meu prprio crculo de relaes e de amizade, que lli~a amiga e
mais outra, e at uma parente bem prxima, haviam, em diver-
sas oportunidades, participado no encaminhamento de bebs pa-
ra adoo; que a irm de outra era Assistente Social no Jui-
zado de Menores e que me poderia abrir muitas portas. E asslm
por diante.
As entrevistas aconteceram quase sempre na residncia
dos adotantes e, raramente, em seus locais de trabalho. Os
depoimentos - com exceo de trs - foram todos gravados. A
durao das entrevistas oscilou entre uma e seis horas. Ao
tom discreto da situao em que se desenrolou a maioria delas
- que obrigou ao fechamento das portas ("para que a minha mo-
a no oua, ela nao sabe que a Camila adotada") e cuja ex-
ceo foi dada pelas entrevistas com mes adotivas solteiras,
as quais, invariavelmente contaram com o testemunho baru-
lhento e at participao nas respostas por parte dos filhos
- correspondeu um discurso bastante pronto, muito elabolado,
ainda que carregado de emoo. No meu entender, exatamente na
23
medida das ambigfiidades e tenses que sao inerentes prtica
da adoo e ao preconceito social que a envolve. ;;
Mas tambm
por conta das relaes com os filhos e da composio de suas
"historinhas" de vida, que se ordenam ao J.ongo do tempo, e e~
estreita dependncia com o exerccio de lilil "JOGO ABERTO" de
revelao da condio de adotivo.
O "JOGO ABERTO" ps outro limite ao meu universo, re-
!ativamente idade das crianas adotivas. Pois apenas recen-
temente que os pais admitem para os filhos a prpria adoo
e, portanto, tambm a admitem publicamente. Assim, h muitos
pais mais velhos que "NO GOSTAM DE FALAR NO ASSUNTO", mas h
muitos adotantes recentes que fazem questo de tornar pblica
sua experincia. De qualquer modo,/ as idades dos filhos ado-
tivos dos depoentes esteve entre recm-nascidos, de poucos
meses, e 23 anos, sendo que a maior parte vinte e dois- ti-
nha entre O e 6 anos, e apenas sels de 17 a 23 anos.
De minha parte, desde o incio havia decidido excluir
os adotivos e me restringir aos adotantes na coleta de dados.
O conhecimento da condio de adotivo e o seu reconhecimento
pblico so sempre problemticos e a tradio do SEGREDO DA
ADOO praticamente me negava o acesso a adultos adotados. J
a pouca idade dos filhos dos que abrem o SEGREDO tambm nao
me permitia tom-los como informantes. Entretanto, colhi de-
poimentos de 7 adotados, dentre os quais 3 cuja idade era su-
perior a 30 anos - todos tendo vivenciado uma revelao dra-
mtica de sua adoo- e 4 jovens entre 17 e 23 anos, "irms"
adotivas, que nunca ignoraram sua condio.
As entrevistas, abertas, caracterizaram-se, de um modo
geral, por assumirem um tom de desabafo, quase sem a inter-
24
venao da pesquisadora. Mas desabafos de relatos surpreenden-
temente estruturados, que comeavam com as motivaes para a-
~tar, a deciso concreta a partir da qual o relato tomava
corpo em torno da biogxafia da criana construda cor11 urna in-
sistncia nas relaes significativas: destas com os adotar.-
tes.
Meus informantes - aos quais atribu nomes fictcios -
eram quase sempre mulheres, e apenas 5 foram os homens. Com
excesso de 4 deles, todos possuam grau universitrio. As
profisses desses informantes e de seus cnjuges - se os
havia - por mim arroladas foram: empresrios, professores
universitrios, profissionais liberais, pesquisadores, socio-
logos, e algumas mulheres que, embora se autodenominando 11 do
lar" ou "donas de casa", poderiam ser categorizadas como "Se-
nhoras de Sociedade 11 (ver Captulo III). Todos se autodefini-
ram como membros da classe mdia.
E foi num equilbrio entre os "ca.sos" e a investirao
de campo que segui na direo da interpretao e anlise de
crenas e valores culturais que compem um ethos da ado.o em
camadas mdias brasileiras.
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CAPTULO 11 A HISTRIA OFICIAL ~-~~ \/
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11Adotar pedir religio e lei aquilo que no se pode conseguir da natureza. 11
(C!CERO, in COULANGES, 1975:45)
26
110 costume e a necessidade social
tm mais fora que as leis".
BULHES DE CARVALHO, 1977:190
A fim de qUe a adoo seja apresentada em sua justa
perspectiva, lano um olhar mais ao longe, no tempo, sobre a
sua histria no Brasil. Histria cuja reconstituio tem as
limitaes pertinentes a uma quase inexistncia de registros
oficiais e a informaes numerosas sobre prticas e
ocorridos margem da lei.
"casos"
O surgimento e as transformaes pelas quais passou a
adoo em nosso pas podem ser apreciados de diferentes pers-
pect.ivas, que implicam na apreciao de outras histrias: a
da proteo maternidade e infncia, a dos asilos e insti-
tuies de recolhimento de menores, a dos Juzos de Menores,
a do Servio Social, a da legislao especfica.
Para direcionar a anlise e ordenar a histria da ado-
ao, optei por tomar como central o eixo das transformaes
havidas no plano das legislaes - seja na rea do Direito de
Famlia, seja na do Direito do Menor.
Ainda que nem sempre reflitam diretamente todas as
nuances e, nem, s vezes, as generalidades das mudanas ocor-
ridas no plano da realidade social das prticas, por se en-
27
centrarem demasiadamente encerrados num quadro rigido de re-
I; t,rica e valores jurdicos, os textos da rea do Direito sao, entretanto, os que mais informaes "oficiais" oferecem para
o tewa.
Uma pesquisa empreendida para coleta de dados nurnri-
cos revelou-se estatisticamente pobre e no-controlvel. As
fontes de consulta sao limita das apenas algumas institui-
es privadas ou do Governo mantm registros e, assim mesmo,
nao abarcam largos perodos de tempo.
De outro lado, a sua validade enquanto sustentculo de
uma. reconstituio histrica se anula perante a constatao
de que "90% das adoes" que se efetivam o sao de uma forma
"quase institucionalizada", mas marginal lei e s esta-
tsticas: a "adoo brasileira". {Cf. LINS E SILVA in JOR-
NAL DO BRASIL, 6/4/86).
As "adoes brasileira", por sua fora, persistncia
e peso numrico, malgrado sejam excludas dos relatos ofi-
ciais, e combatidas por meio e por causa da legislao vigen-
te e/ ou "aperfeioadas 11 , poderiam constituir o fio condu-
tor deste captulo. Mas, como a memria dos envolvidos - e da
sociedade como um todo est contida pelo fato de que tais
adoes se concretizam na ilegalidade - sujeitas a sanoes -,
um recurso as lembranas do passado esbarra numa ausen-
cia de sistematizao e de viso em profundidade. Os
11 Casos" abundantemente relatados quase nunca sao datados
ou localizados no tempo. Esparsas recordaes, reminis-
cncias vagas, no permitiram seguir este caminho e tom-las
como referncia central. Constituram-se, porem, contrapon-
to obrigatrio e fonte enriquecedora das informaes e ana-----~ i>'"" a e14 / C'~ ~:-:..-
~ "/
~1]1dlJ ~
f i I
28
lise que se seguem.
A dinmica da criao e estabelecimento das leis espe-
c i ficas, ll'lffi balizamento do contexto e da ideologia que as in-
forma, o ponto de apoio no qual se estriba a rer::onst.ruo
da histria da adoo no Brasil.
Nossa legislao traz mencionada a adoo desde as Or-
denaes Filipinas 1
enquanto herana de Portugal e, conforme
1) "As Ordenaes Filipinas referiam-se adoo em diversas de suas dis-
posies, e foi assim que o instituto se introduziu no Brasil ( ... ) ... a
Lzi de 22 de Setembro de 1828 (foi o) primeiro dispositivo legal a res-
peito da adoo"(REICHERT. 1934:15).
desde tanto enfatizam os textos jurdicos, como uma herana
os tempos rornanos 2 Era, porm, 11 uma raridade 11 anteriormente
2) Ironicamente menosprezando a herana atravs da tradio judaica ~~ sua
influncia na ideologia crist. com os exemplos de Moiss e Ester. e oca-
so da 11 sabedoria de Salomo" na soluo de disputa de duas mes por um fi-
lho.
elaborao de nosso CDIGO CIVIL de 1916, de tal modo que
sua incluso no mesmo foi motivo de acirrada polmica, e onde
obteve lugar graas a autoridade e pertincia de Clvis Bevi-
laqua, que "atestou, fundado em sua experincia pessoal, que
a adopo, longe de ter desaparecido de nossos costumes, es-
tava em uso muito prudente em diversos Estados do Norte ... "
(GAMA, 1923:23). Sua augumentao tem acolhida, porm, porque
sustentada por referncias ao direito romano e pela afirma-
o de que figuraria "nos cdigos de quasi todas as naoes
cultas" (REICHERT, 1934:18).
29
Como resultado dos debates, ainda que se prove a vi-
~ncia da adoo entre ns, o corpo das disposies a respei-,. to assume um carter restritivo (BULHOES DE CARVALHO, 1977:
175}, o que permear tilltlbm as modificaes introduzidas em
Leis Complementares. Os 11 artigos que regulam o instituto es-
tabelecem os pr~cpios bsicos que orientam o legislador e
os adotantes. Em Guma, dizem do obrigatrio carter pblico
do ato, dos impedimentos matrimoniais entre adotante e adota-
do, das limitaes quanto herana, e de uma no extino de
direitos e deveres resultantes do parentesco "natural 11 , pois
dispem apenas sobre uma transferncia de "ptrio poder" dos
pais primitivos para adotantes (c f. LINS E SILVA in CDIGO DE
MENORES, Senado Federal, 1982:178).
Note-se que as regras estatudas so vem a sofrer alte-
raoes no ano de 1957 1 com a Lei no 3.133, quando se reduz o
limite de idade dos adotantes de 50 para 30 anos, e, pelapri-
meira vez, permite-se a adoo por aqueles j com filhos le-
gtimos ou legitimados.
A iniciativa de introduo de nooes ma1s atualizadas
e de reformulao do instituto atravs dessa Lei Complemen-
tar resultou, porm, numa redao bastante retrgrada (CA-
BRAL, 1983:75), na qual ressaltam exigncias, que no favore-
cem nem estimulam a adoo, deixando de incrementar o seu uso
legal (CHAVES 1 1983:42-5, e LINS E SILVA, 1982:179).
No seu todo, essa legislao guarda a orientao e o
esprito do momento histrico em que foi elaborado o Cdigo
Civil - a passagem do sculo. Ainda que ento se tenha apre-
sentado como uma lei progressista e avanada em relao as
condies materiais e sociais da existncia no Brasil (c f. GO-
I I
30
MES, 1985:10-11), bem exemplifica a caracterstica lent.ido
~m que se do os progressos na rea do Direito de Famlia no
Brasil: com o 11 texto frio da lei" apresentando um descompasso
com os fatos, cuja dinmica no tem siclo objeto de sistemati-
zaao mais adequada (cf. CABRAL, 1983:38-9 e 75-6).
Hoje, reconhecida a necessidade de atualizao do c-
digo Civil, coordenando e consolidando as legislaes e~;par-
sas, adequando-se realidade nacional, s diversidades cul-
turais que esta compreende, aperfeioando e inovando mas res-
peitando as tradies e fundamentos que informaram sua elabo-
rao, h um Anteprojeto para novo Cdigo Civil em tramii:ao
no Senado Federal (cf. GOMES,. 1985:1-17).
Mas, na atualidade, permanecem ntegras as disposies
sobre adoo no Cdigo Civil que entrou em vigor a lQ de ja-
neiro de 1917, com as alteraes da Lei nQ 3.133 de 1957 .. Re-
gem estas as adoes de menores "em situao regular", isto
e, cujos pais sao vivos e conhecidos, e seus princpios bsi-
cos atendem e disciplinam os interesses e os deveres dos ca-
sais (cf. ALVES FELIPE, 1986:68-9).
Um dos problemas dessa legislao, e que, de certa for-
ma,denota e ocorre em razo de um distanciamento dos fatos e
da prtica social, que "esse primeiro conjunto de normas le-
gais disciplinava a adoo como gnero, no distinguindo es-
pcies" que s viriam a ser introduzidas posteriormente, no
mbito do Direito do Menor (PEREIRA JUNIOR, 1985:5).
Um primeiro desdobramento surge com a promulgao,, em
1965, da Lei nQ 4.655, que cria a LEGITIMAO ADOTIVA. Pas-
sam, ento, a coexistir duas modalidades de adoo, reqidas
diferentemente. Uma, pelo Cdigo Civil, e esta outra pela no-
31
va Lei. O que distingue a ltima a preocupaao com o desti-
Wtrio - a criana abandonada ou j h trs anos sob a guarda
dos legitimantes se tiver menos de 7 anos de idad. Tambm, o
fato de nenhuma observao sobre o ato de a. adoo vir a cons-
tar dos registros e certides do infante, uma vez deferida a
Legi tirnao Adotiva; e o de que a equiparao em termos de di-
reitos e deveres com os outros filhos do casal adotante ocor-
re sugerindo o mais amplo grau de incorporao a nova familia,
alm do desligamento com aquela de origem, que se faz plena-
mente, excetuando-se os impedimentos matrimoniais (BULHOES DE
CARVALHO, 1977; SABINO JUNIOR, s/d:60s.; PEREIRA JUNIOR,1985).
Tudo isso considerado, a decretao dessa Lei parece,
corno na oportunidade da publicao da de nQ 3.133/57, objeti-
var uma vulgarizao do instituto, atendendo necessidade de
melhor integrar o menor na familia adotiva e s presses dos
costumes e da prtica da 11 adoo brasileira", facilitando os
procedimentos e simplificando regularizaes. No obstante, os
juristas descreveram as influncias mais marcantes em suaela-
borao como tendo sido calcadas ora nas Legislaes da Fran-
a e Portugal da dcada de 60 (BULHCES DE CARVALHO, 1977:
18ls.; PEREIRA JUNIOR, 1985:7), ora na legislao uru-
guaia, que viera do ano de 1945 (VAZ FERREIRA, 1973:264; CA-
BRAL, 1983: 37).
Alm do mais, a Legitimao Adotiva apresenta
inconvenientes com relao aos seus efeitos e forma
alguns
proces-
sual, que s encontram outras solues quando se enralzam no
novo Cdigo de Menores, com nova redao e novo estatuto: Ado-
ao Plena.
Nessa questo do tratamento legal da adoo atravs da
32
Histria, um percurso alternativo a seguir alm da rea do Di-
li: ileito de Famlia, o das transformaes ocorridas no ,.mbito
do Direito do Menor.
Apesar da preocu.pE~..o com a proteo e educao da in-
fncia ter sido objeto de polticas e providncias desde os
primrdios da colonizao - mais precismente apos ter-se ini-
ciado o sculo XVII -,a assistncia social no Brasil sempre
foi de iniciativa privada nesse perodo, antecipando-se ao
governamental. Medidas legislativas beneficiando a criana e
que se promulgaram durante o Imprio e Primeira Repblica," f o-
ram letras mortas. No passaramde boas intenes" (ORLANDI,
1985:84). somente neste sculo, na dcada de 30, que oBra-
sil vem a conhecer urna legislao especfica que vem a dar
origem e a ser ordenada em dois Cdigos de Menores (ORLANDI,
1985; BRETONES, 1962; CONTO, 1984; JUNQUEIRA, 1986)
O primeiro deles, codificado em 1927 com a firme in-
terveno de Mello Mattos 3 - e que, por esse motivo, ficou co-
3) Ver, a respeito da ao e da influncia do Juiz Jos Cndido de Albu-
querque Mello Mattos na confeco e na realizao prtica da Lei, ARAUJO
(1985).
nhecido corno "Melinho" - veio, na realidade, a consolidar di-
versas leis anteriores, dentre as quais se destaca a de n
4.242 de 05/01/1921, que incluiu no oramento da Repblica
disposies sobre menores e definies de abandono, suspenao,
perda de ptrio poder e outros (SEGURADO, 1982:98; ARAUJO,
1985:7; BULHES DE CARVALHO, 1977:32-3 e lOls.; RUSSO, 1985:
6 2s.) .
I'
f .
i
33
Inaugurando um direito especfico, que corresponde a
~a mudana qualitativa no reconhecimento e na conceituao de "menor"~ marco decisivo na histria da assistncia a in-
fncia em nossa sociedade, et:a to bem elaborado que vigorou
durante 50 anos. Foi, tambm, o primeiro dos Cdigos de Meno-
res da Amrica Latina.
Em seu texto, o "Melinho 11 acolhe os temas em torno dos
quais girar, a partir de ento, todo o Direito do Menor. A
saber: a criao de um Juzo Privativo de Menores, a restri-
o do Ptrio Poder, a distino entre menor abandonado e de-
linqente, e uma dupla definio de abandono - fsicoe moral
{RUSSO, 1984:64 e, ainda, BULHES DE CARVALHO, 1977, e ARAO-
JO, 1985).
Com essa sistematizao, inicia-se um perodo da his-
tria das medidas de proteo infncia em nossa sociedade -
a qual s chegar ao seu trmino quando da criao, em 1964,
da Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) - e que
se caracteriza por um modelo "caritativo-assistencialista"im-
perando no discurso jurdico sobre o menor, e sobre as aoes
dos poderes pblicos e da iniciativa particular (cf. ARAUJO,
1985) 4
4) Em seu estudo, ARAUJO (op.cit.) distingue dois perodos nessa histria,
marcados, um, pelo modelo "caritativo-assistencial", e, outro, pelo mode-
lo "menorista". Convm especificar que a autora intenciona, em seu traba-
lho, analisar o significado das propostas de atendimento ao menor confor-
me a perspectiva de agentes de Juizados de Menores. Tambm enfoca a le-
gislao pertinente, enquanto "sistemas classificatrios que, elaborados
juridicamente, tem servido como instrumento de qualificao e identifica-
o dos "menores" de 18 anos" (pp 2.).
,, I' ,!
34
A lgica 11 caritativo-assistencialista'' que preside as
~ticas e informa a legislao, antecede, na realidade, esse
momento de implantao do Cdigo de Menores, e pode ser apreen-
dida em textos qae tratam da histria ..Js instituies e asi-
los existentes no Brasil desde o sculo XVII, como as Santas
Casas de Misericrdia e a "Roda dos Expostos" (ZARUR, 1985;
GONALVES, 1985). Sob a orientao da doutrina crist, pauta-
da por uma leitura moralista a respeito das relaes famlia-
res e do comportamento sexual feminino, reforada pela "medi-
calizao" de problemas de ordem scio-econmicos (RUSSO,l985;
ORLANDI, 1985; GONALVES, 1985), associa-se, ainda, com uma
"pedagogia" cuja aplicao tenta "erradicar no apenas o so-
frimento ou a carncia, mas suas causas. E estas eram sempre
morais" (cf. DONZELOT in RUSSO, 1985:60).
Nesse quadro de um momento que, de um lado, refletE:! va-
leres sociais e, de outro, revela um ethos prprio
compartilhado pelos que se encontram engajados nessa questo,
no estranhvel que um avano do Estado na direo de um
controle das polticas relativas ao amparo dos 11 abandonados 11
corresponda a urna associao entre poderes pblicos e a ini-
ciativa particular. Nos primeiros tempos de atuao do J'uzo
de Menores, este socorria-se da "iniciativa filantrpica, se-
ja em termos de ajuda financeira, seja em termos de bases. fi-
f sicas para a construo de abrigos destinados a menores "(i!\RAU-JO, 1985:8). E abrigos e instituies proliferam,
dos pelo Governo.5
prestigia-
-------------------------------------------------------------------------5) Tomando o Estado do Paran como um exemplo, observa-se que a mais an-
tiga instituio dedicada proteo Maternidade e Infncia desse Es-
tado, foi a Maternidade Victor do Amaral, criada em 1914. E, desde
funciona o Asilo So Luiz, nara meninos rfos e abandonados (cf,
i>NALVES, 1953:15-18). Con~m mencionar ainda, que sonos anos 40 criadas vrias associaes, ''obras" e instituies. Como: Associao
35
1919
MliDER -sao de
Assistncia Criana do Paran; Educandrio de Curitiba; Abrigc de Carupc
Comprido para meninas rfs e abandonadas; Abrigo provisrio de Santa Fe-
licidade; a Obra do Bero (sob o patrocnio da LBA, que tambem abre Pos-
tos de Puericultura); Lar Infantil Iclia (fundado pela Federao Espri-
ta do Paran) e muitos outros,
Ver, tambm, para exemplificar o que ocorre nos anos subseqUentes, a 11 re-
lao das entidades assistenciais da Capital e do Interior do Estado (de
So Paulo) subvencionadas pelo FUNDO DE ASSISTENCIA AO MENOR em 1960, 1961
e 1962 at a presente data", arroladas por BRETONES (1962: 37s.), e que to-
~ talizam: 94 na Capital e 297 no Interior. ! -------------------------------------------------------------------------
Por volta do final da SegundaGrande Guerra, assim co-
mo ocorrera ao trmino da Primeira - com o saldo elevado de
rfos sem parentes prximos-, promovem-se campanhas mundiais
para a adoo e proteo dos mesmos. O valor social da adoo
passa a ser reconhecido (ARNAUT, 1962:23}. No Brasil, inten-
sificam-se os movimentos e cresce o nmero de instituies
voltadas para a assistncia e educao de rfos e abandona-
dos. A LBA- Legio Brasileira de Assistncia, criada eml942,
fundao de carter nacional, que "atua atravs de rede de
unidades e centros que se estendem por todos os Estados da
Unio e grande maioria de municpios do pas" (JUNQUEIRA, H.
et alii, 1961:22} - inicia a campanha da "REDENO DA CRIAN-
A". Cursos para a formao de tcnicos e especialistas sao
patrocinados pelo Departamento Nacional da Criana (DNCr.),
criado m 1940 (MADER GONALVES, 1953:11-27).
Tambm, durante o mesmo perodo dos anos 40 que se
instituem reparties oficiais e departamentos assistenciais
36
em vrios Estados e Municpios do Pais, na esteira de medidas
~nticas a nvel federal, ou mesmo as precedendo (ORLANOI,
1985:85 e 92).
interessante notar que esse movimento ocorre entre a
dcada de 20 e os anos 60. A partir de ento, inicia-se e fir-
ma-se um processo centralizador, que resulta num decrescer da
nfase na 11 assistncia 11 infncia, num enfraquecimento pro-
gressivo e, finalmente, na extino de vrios dos departamentos
- no plano federal e, depois, estadual. 6 A desativao des-
-------------------------------------------------------------------------6) ORLANDI registra, por exemplo a trajetria, da criao extino, do
Departamento Nacional da Criana (DNCr .). Seus programas compreendiam. 11va-
cinaes, pesquisas de cunho mdico, campanhas contra a desnutrio, cur-
sos de puericultura e auxlio tcnico a hospitais, maternidades e insti-
tuies mdico-assistenciais destinadas infncia. 11
"Desde 1930, o crescimento do interesse do Governo por uma poltica de am-
paro a criana fora demonstrada pela elevao da antiga Inspetoria d.e Hi-
giene Infantil (criada em 1923) a Diretoria de Amparo Maternidade e -a Infncia (1937), culminando na passagem a Departamento Nacional da Crian-
a, em 1940. Depois de 1960, o caminho foi inverso, influindo de maneira
negativa em todos os Estados e municpios do pas".
Em meados da dcada de 60, seus cursos e servios se subdividiram e foram
alocados em diferentes Ministrios. Em 1970 foi o DNCr. transformado em
Coordenao de Proteo Materno Infantil e, depois, em Diviso
de Proteo Materno Infantil (1985:85-7).
Naeional
ses rgos est relacionada, tambm, com um avano do Estado
nas reas de atuao da iniciativa privada, atravs da atua-
ao dos Juizados de Menores. O que parece ser um indicador de
uma crena na eficcia e aplicao da lei sobre polticas, ou,
talvez, como capaz, por si s, de implantar polticas.
No que interessa mais diretamente questo da adoo,
a dcada de 40 se destaca por uma srie de eventos e inicia-
'
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I
37
tivas que iro nortear os posteriores avanos legislativos e
Iflticas voltadas para a colocao de menores em casas de fa-
mlia, nesse contexto apresentada como um dos meios vrios e
possveis de assistncia oficial a menores com "desajustamen-
tos 11 de ordem econmica, "moral 11 e/ou social.
taduais que se criam durante essa dcada. Todas subordinadas
a orgaos e instituies variadas, tais como Departamentos Es-
taduais da Criana, Secretarias do Interior, Departamentos de
Assistncia Social, Servios Sociais de Menores, Servios de
Vigilncia de Menores da Chefia de Polcia, e outros (cf. PI
DE ANDRADE, l952:18s.).
Mas apenas a 27 de Dezembro de 1949, pela Lei de no
560, que o SERVIO DE COLOCAO FAMILIAR vem a sercriadojun-
to aos Juzos de Menores no Estado de so Paulo- para, em se-
guida, assim se constituir em outros Estados da Federao: en-
quanto lei, objetivo e forma de organizao.
A partir dessa lei, instaura-se, ento, urna poltica
de encaminhamento para "casas de famlia, a ttulo gratuito ou
remunerado, de menores at quatorze anos de idade que, por
forca de fatores individuais ou ambientais, no tenham lar ou
nele no possam permanecer" (SABINO JUNIOR, s/d: 185). Aos Ser-
vios de Colocao nos Juizados, cabe a seleo, o acompanha-
mente e o controle das famlias "substitutas". Diz o texto da
Lei no 560: "a pessoa que receber esse menor assinar compro-
misse de bem e fielmente cumprir as obrigaes que lhe forem
'
l
38
estipuladas pelo juiz, dentre as quais incluem-se a de prover
avducao familiar, aliment-lo, vesti-lo, dar-lhe tratam.en-
t mdico e dentrio, recreao e tudo o mais que for neces-
srio ao seu desenvolvimento, em igualdade de condies com
os prprios filhos, e, sobretudo, manter o juiz competente, a
par da observncia dessas obrigaes, inclusive a de comu.ni-
car qualquer mudana de domicilio 11 (Arts. 2Q a SQ in SABINO
JUNIOR, op.cit.).
A colocao familiar, enquanto soluo ao problema da
criana 11 impedida de permanecer em seu meio natural, -a pro-pria famlia" (PIA DE ANDRADE, 1952:2), compreende duas moda-
!idades. A primeira 11 consiste na entrega da criana abandona-
da total ou parcialmente, a famlias
39
sua manuteno. Esta outra forma era conhecida como COLOCAAO
~MUNERADA (ZAFFARI, 1963:31-6; PIA DE ANDRADE, 1952:11-3;CA-
VALLIERI, 1986:168).
Alguns esclarecimentos se fazem necessrios para ex-
plicar a abrangncia dessa Lei de nQ 560.
Primeiramente, no se tratava de prtica estranha a
cultura brasileira. Muitas crianas, atravs da colocao fa-
miliar realizada em pequena escala por particulares, ou por
iniciativa de suas prprias famlias, vinham sendo postas 11 em
criao'' junto a famlias brasileiras abastadas. Muitas vezes
se integrando ao ambiente e assistidas convenientemente. Mas
nem sempre. Numa anlise a respeito da situao de 50 crian-
as colocadas em casas de famlia, o Departamento de Servio
Social de so Paulo constatou que somente cinco se encontravam
neSsa condio. O resultado final dessa anlise foi publicado
no JORNAL DE SO PAULO a26/10 de 1946, onde se l: "Com a
falta de empregadas domsticas do momento, os outros 45 meno-
res estavam sendo empregados em mistres para os quais se exi-
gem pessoas adultas e mais ou menos bem remuneradas"(cf. VAS-
CONCELOS, 1956:30-1).
Ao longo do tempo, abrigos, asilos e orfanatos passam
a ser cada vez mais procurados por famlias, por iniciativa
prpria ou indicao de outras, manifestando o seu desejo de
retirar uma criana e de lev-la para suas casas. A grande
maioria declarando pretender "criar" o(a) menor, quando a in-
teno era a de obter um auxiliar para os servios domsticos
''ou uma pagem para seus prprios filhos". Muito raras eram as
famlias que buscavam "encontrar na criana retirada do abri-
go as alegrias da maternidade, que a natureza lhes negou"(PIA
40
DE ANDRADE, 1952:61-2 e 78).
Para suprir essa demanda, instituies - abrigos, o r-
' fanatos e asilos - inicia.Tit e aperfeioam programas de coloca-, o de suas internadas. Muitas vezes por interveno e ini-
ciativa de Assistentes Sociais, em nome de rgos governamen-
tais, e nao raro em franco confronto com os interesses e me-
todos, em suma, com a ideologia dessas instituies totais
(cf. PIA DE ANDRADE, 1952). Instala-se, nesse quadro, urna ver-
dadeira 11 indstria de colocao familiar", com famlias que
pretendiam cuidar de crianas abandonadas e no o faziam" (CA-
VALLIERI, 1986:14).
Em segundo lugar, a interveno dos Juizos de menores
nessa area se teria efetivado com o objetivo de supervisionar
o seu uso, a fim de que no 11 degenerasse em explorao 11 As-
sim, a Lei de no 560 tem o sentido de regular o trabalho do
menor (SABINO JUNIOR, s/d:l84), e incide, especialmente, so-
bre as formas remuneradas de colocao familiar, para evitar
a tendncia que se firmava de transformao de menores em qua-
se-escravas, a pretexto de prestao de servios domsticos
(CAVALLIERI, 1986:168).
Em terceiro lugar, o Estado intencionava um reforar
dos laos internos famlia, e passa a buscar a reintroduo,
atravs do subsdio econmico, da criana em sua prpria fa-
mlia. E, aos poucos, se foi firmando esta como a estratgia
predominante no que tange aplicao da lei: capacitar fam-
lias com deficincias no plano econmico, atravs de um sis-
tema de auxlio, para a educao dos filhos, "tendo como ob-
jetivo final evitar a internao dos menores 11 (ASSIS DIAS in
BULH0ES DE CARVALHO, 1977:160).
i '
41
Nesta fase da histria, os Juizados de Menores comeam
~competir francamente com as instituies, ao assumirem a
:hmo de coordenadores des a 1 - I de s s co ocaoes. sso se a, em gran-
de rnediat pela atuao de Assistentes Sociais, as quais, li-
gadas aos Departamentos Estaduais de Assistncia Social ou da
Criana, organizam servios nas instituies, relatando os ca-
sos ou remetendo-os aos Juizados. Portanto, no estranhvel
que a atuao mais direta do Estado se tenha dado no mbito
da "reintegrao familiar'' de menores "carentes" ou "delin-
qllentes", para evitar a internao.
O que leva considerao das ltimas - mas nao menos
importantes - motivaes e intenes dessa lei: evitar a ins-
titucionalizao.
Convm que se recorde que, em contraste com legisla-
oes que tratam do direito de famlia e que abranjem, em seu
texto e aplicao, as situaes "regulares" de menores com
responsveis legais, um Cdigo de Menores focaliza priorita-
riamente crianas em "situao irregular". Isto , disciplina
os casos de crianas menores de 18 anos que, como resultado
da "exposio", abandono, organdade, incapacidade dos pais para
cri-los (seja por deficincias fsicas ou mentais, ou por
questes de ordem econmica ou moral) , ou at por desvios de
conduta, so colocadas sob a tutela protecional do Estado. 7
7) Na realidade, o ponto de incidncia de um Cdigo de Menores, mesmo em
suas especificidades, vem a ser sobre todos os menores - brasileiros, no
caso - e no apenas os que se encontram em 11situao irregular" (SIMES,
1983:89). No entanto, no que tange ao particular da adoo, esta defi-
nio implica em que seja apenas o Cdigo Civil que abranja, em seu texto
e aplicao, as situaes "regulares". Matenho, portanto, o uso da dis-
42
tino entre as expressoes, a fim de reforar aquela entre uma legislao
~e atinja especificamente o menor, em oposio s que tratam do
de fam{lia.
dir"eito
Por outl:O lado, a expresso "situao irregular11 entrou recentemente no
contexto jurdico. O Juiz Alyrio Cavallieri, quando da elaborao do C-
digo de Menores de 1979, sugeriu a adoo desta expresso em substituio
a denominaes tais como 11 abandonado 11 , "exposto", "delinquente11 , "infra-
tor", e outras mencionadas no Primeiro Cdigo de Menores, apontando para
o carter eminentemente jurdico da expresso, em oposio ao de "rotula-
menta" gerador de preconceitos, das demais (in CDIGO DE MENORES, S1mado
Federal, 1982:83-6; e tambm CAVALLIERI, 1986:59-60). Ainda mais uma vez,
remeto leitura de ARAUJO (1965) para uma anlise mais aprofundada des-
sas categoriaa.
-~-----------------------------------------------------------------------
Ora, a atuao do Estado, durante a vigncia do pri-
meiro Cdigo de Menores, quase sempre resultava em institu-
cionalizao dessas crianas. Como, de resto, antes o faziam
entidades beneficientes clssicas, com seus abrigos e "asilos
para rfos 11
A colocao familiar de crianas com a interveno de
um orgao especializado, pode e deve ser encarada como uma me-
dida concreta na direo de uma desinstitucionalizao de me-
nores dependentes da assistncia do Estado. Mas este fato nao
est associado to somente a presses de juristas objetivando
mudanas na legislao e nas polticas relativas ao me~ no r,
que vm a tornar forma na dcada de 60.
H um quadro de criticas e questionamentos a prposito
da institucionalizao, gerados no seio de movimentos de as-
sistncia e proteo infncia liderados por mdicos, que se
evidencia desde o final do sculo passado.8 Construidos sob
8) RUSSO menciona que o Instituto de Proteo e Assistncia Infncia do
I
43
Rio de Janeiro foi criado em 1899 pelo mdico Arthur Moncorvo Filho. Se-
~e-se-lhe a criao do Instituto de Proteo e Assist~ncia Criana da
Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em 1904. "A partir de 1910, su-
cessivas -filiais sao inauguradas em outros Estados. Um Decreto de 12/11/ 1919 reconhece todoa os Institutos como Tnsttuices de Utilidade Pblicd
Federal. Neste mesmo ano, o Instituto carioca cria e mantm, s suas pr-
prias expensas, o "Departamento da Criana no Brasil" (RUSSO, 1985:66 e
71, nota nQ 23).
Minha inteno aqui a de meramente apontar para a anterioridade da ques-
to na rea mdica com relao a posteriores contemplaes do tema e cr-
ticas institucionalizao.
urna tica higienista e eugnica, os argumentos que sustenta-r ~~ vam os debates mdicos apresentam ntida inteno profiltica
de atacar as causas do abandono e da mortalidade infantil,
condenando incisivamente as condies dos estabelecimentos
existentes e voltando-se para a famlia como foco originador
de desvios e doenas. Conseqftentemente, a famlia tambm de-
ve ser "objeto de controle e vigilncia 11 Isto , a famlia
pobre {cf. RUSSO, 1985;66s.).
Ao produzir uma "traduo de questes de ordem scio-
econmicas para questes de ordem moral", o vis ideolgico
que orienta a perspectiva mdica vai prevalecer nas discus-
ses sobre o menor abandonado e/ou delinq~ente no Brasil. E
urna interpretao moralista, medicalizante e despolitizada que
''funciona como uma espcie de defeito de base que vai marcar
toda a reflexo" sobre o que se denomina, de forma ampla e
abrangente, o "problema do menor" (cf. RUSSO, 1985:73 e 83),
e afetar os programas de desinstitucionalizao~
r No entanto, h que se observar; desde a epoca da
criao, pela Lei nQ 560, do Servio de Colocao Familiar
j junto ao Juizado de Menores de so Paulo, e por conta da in-
~
f
l
44
terveno concreta do Estado no interior da famlia, j se de-
~neia uma tendncia de enfatizar a varivel scio-econirnica
nas interpretaes que se produzem sobre o assunto.
Par a par com um avano em direo . interveno doEs-
tado na famlia atravs da aplicao de polticas e integra-
o do menor na comunidade e uma focalizao crescente da va-
rivel scio-econmica nos discursos, a problemtica da ir.-
ternao passa a chamar cada vez mais a ateno de juristas,
membros da sociedade e legisladores.
Assim, dentre os fatos ainda significativos nesse pe-
riodo e que, de certa forma, prenuciarn as transformaes que
se vo operar ao nvel da legislao posterior, esto as Se-
manas do Menor realizadas em so Paulo desde 1944 at meados
dos anos 50, com o patrocnio do Tribunal de Justia. Em ques-
to, estudos e sugestes de reforma da ordem jurdica, e mo-
dificaes "da aao executiva das medidas de proteo, isto
e, da organizao e aparelhamento dos rgos executores da as-
sistncia ao menor. E na o s isso, mas, tambm, reforma de
ordem pedaggica e social, no estudo e recuperao de menores
abandonados'' (BRETONES, 1962:10). As Semanas de Estudos dos
Problemas de Menores foram de grande importncia e tiveram
grande repercusso. Seus efeitos de muitas maneiras se :Eize-
ram sentir.
Mas somente na dcada de 60, mais precisamente a lQ
de Dezembro de 1964, com o sancionamento da Lei n 4.513
que cria a FUNABEM - que se assinala significativa mudana na
orientao ideolgica estatal e jurdica no que concerne ao
menor. 9
45
-------------------------------------------------------------------------9) Sobre a gnese dessa Lei, ver FLORES DA CUNHA, M.C. 1984. Em suma, se-
Jtndo FAVEIROS, ela "nasceu da articulao de setores da Igreja Catlica
com a antiga Unio Democrtica Nacional (UDN) - contou com o apoio de D,
Helder Cmar-a. na ocasio bispo do Rio de Janeiro, e d12 Prado Kelly, pre-
sidente do Congresso e membro da UDN. A criao da FUNABEM foi acelerada
em razo do assassinato do filho do famoso Odilo Costa por um menor de 15
anos, egresso do SAM, e que mais tarde morreu assassinado, qui pela pr-
pria polcia." (1987:11).
Tendo como pressuposto bsico a Declarao Universal
de Direitos da Crlana, proclamada pela Assemblia Geral da
ONU em 1959 {cf. FUNABEM, Ano 20, 1984), a criao da FUNABEM
enfatiza perspectiva "essencialmente modernizante, tcnica e
racional de atendimento ao menor", cuja caracterstica nao
apenas a de reformular radicalmente a prtica institucional
levada a cabo pelo antigo Servio de Atendimento ao Menor
{SAM) 10
, mas tambm a de seguir diretrizes de integrao, resso-
10) O SAM havia sido criado em 1941, 11 com a atribuio de prestar, em to-
do o territrio nacional, amparo social aos menores desvalidos e infrato-
res." No entanto, por conta de "uma estrutura emperrada, sem autonomia
e sem flexibilidade", com mtodos inadequados de atendimento (CUNTO,
1984:5), o SAM ficou conhecido "pela tortura e maus tratos que impunha aos
menores nele internados" (FALEIROS, 1987:11), "parecendo representar o
ponto mximo que podia chegar o desvirtuamento de uma instituio oficial:
em vez de recuperar, ele introduzia ou aperfEioava o menor no mundo do
crime" (P..RAUJO, 1979:5).
cializao e de volta farnilia (cf. A~~UJO, 1979:5-7; FALEI-
ROS, 1987:11), implantando-as num plano naciona1f 1
11) Sobre as diferentes orientaes nessa poltica da FUNABEM nos anos
l
46
subseqUentes~ consulte-se ARAUJO, 1985 (sobretudo pp Sls.). Convm acres-
'l3ntar, tambm, que no caso de 1974, ao ser criado o Ministrio da Previ-
~ncia Social (MPAS), esta Fundao passa a ser subordinada ao mesmo, jun-
tamente com a LBA. Outras instituies e programas de menor projeo tam-
bm foram encampados, dentro do que j apontei anteriormente como uma ten-
dncia centralizadora do Estado, que passa a ser o originador, organiza-
dor e controlador de polticas globais nessa rea (cf. JUNQUEIRA, H. I.
et alii, 1981:21-2).
--------------------------------------------------------------------------
Nesse contexto, o problema social do menor assume um
novo relevo. Entrando na pauta dos assuntos de Estado_. :Lnau-
gura-se um novo perodo em sua histria.
No ano seguinte, em junho, pela Lei nQ 4.655 - ante-
riorrnente mencionada - permite-se a Legitimao Adotiva. Mo-
dalidade de adoo que, pelos efeitos que produz, est emcon-
formidade com as intenes da Poltica Nacional do Bem Hstar
do Menor, constituindo a primeira medida efetiva no sen-
tido de incentivar a adoo sobre as formas anteriorrnentH co-
nhecidas de colocao familiar.
Com essa Lei, o Estado passa a se armar de "inest.irn-
vel instrumento de proteo infncia desvalida e de in te-
graao da famlia sem filhos, diminuindo a populao das cre-
ches e orfanatos, com economia para os cofres pblicos" (CHA-
VES, 1983:441).
Surge essa Lei, tarnbrn, num momento em que se ins1:aura
urna nova postura filosfica na ordem jurdica brasileira,. ca-
racterizada por um zelo pelo interesse da criana e consa-
grada corno uma tendncia "rnenorista" (c f. PEREIRA JUNIOR,
1985:2).
O "menorisrno" que distingue um segundo perodo na his-
tria das concepes e prticas ligadas assistncia e ampa-
47
ro a infncia no pas, faz do menor o elemento central, o su-
'UITO de um Direito especfico, concretizado no segundo e atual
C-d. d 12 o lgo e Menores, em 1979.
-------------------------------------------------------------------------12) Segundo ARAUJO (1985:35-6), o primeiro Cdigo de Menores coloca o me-
nor como objeto das normas jurdicas, Alm disso, em sua terminologia "na-
turaliza" o menor, ao "enfatizar menos a sua condio de menor de idade
em favor da situao de abandono, da delinqUncia, da mendicncia, de va-
diagem, etc., em que pudesse estar envolvido".
------------------------------------------------------------------------
As teses que o sustentam sao, basicamente, a da defi-
nio essencialmente jurdica de menor - desvinculada de ca-
tegorizaes valorativas -; a vigncia de um novo modelo de
judicirio que, distanciando-se da postura caritativo-assis-
tencial, "preza a sua dissociao da prestao da assistncia
direta 11 , pautado em "bases cientficas'' e em um procedimento
annimo da justia" em que a figura do juiz se distancia da
imagem paterna. Tambm, finalmente, pela tese da "desbiologi-
zaao da paternidade" (cf. ARAUJO, 1985:34-47).
Essa ltima tese que tem relao mais direta com a
adoo. Implica uma crtica concepo de PTRIO PODER - um
"direito absoluto e discricionrio do pai 11 de famlia sobre
seus filhos - sustentada de forma ortodoxa por muitos magis-
trados brasileiros, em nome do "sagrado direito do sangue 11 , e
uma afirmao de que a desbiologizaco se caracteriza, por
oposio, como "instituto em funo do interesse superior do
menor'' (SATURNIO FERNANDES, 1985). Defendendo preferencial-
mente a "figura do menor corno pessoa e no como filho", pri-
vilegia os aspectos sociais da relao menor-adultos, na
atualizao do papel da paternidade (ARAUJO, 1985:44-5). Ate-
.t
~ I
48
se assinala que os valores fundamentais da paternidade se
\1?resenta independentemente dos liames biolgicos, e preconi-
za que "mais importante que gerar criar" (cf. VILLELA,J987).
Assim, uma paternidade adotiva suplantaria a de "precedncia
biolgica, pelo seu maior poder de autodeterminao". Na tese
da desbiologizao, os "sagrados laos de sangue" so relati-
vizados em favor de uma valorizao da "afetividade" e do "es-
pirita humanitrio" dos quais a adoo representaria o ideal
(CAVALLIERI, 1986:19-21 e 177-8) .[3
Mas o "menorismo", enquanto conjunto de teses e prti-
cas, est tambm referido ao enfrentamento do problema dos
"milhes de menores abandonados 11 que existem em nosso pas,
e esta tarefa precede e forja as teses j mencionadas.
Segundo o Juiz Jess Torres PEREIRA JUNIOR, os "milhes
de menores abemdonados comearam a existir depois que a cma-
ra dos Deputados constituiu, em 1975, uma Comisso Parla.men-
tar de Inqurito para estudar o assunto": a CPI do MENOR l!.BAN-
DONADO, que se destinava a "investigar o problema da criana
e do menor carentes no Brasil". Concludos os trabalhos, os
resultados de um levantamento estatstico sobre o fenmeno do
abandono, encomendado por aquela Casa Legislativa, acabaram
por popularizar-se, transformando-se em "verdade popular", a
despeito de uma srie de manipulaes a que se prestaram.. Os
dados tabulados trazem a marca de imperfeies . . e V~C~O~i na construo dos formulrios, pouco especficos e imperfeitos
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para o fim a que se propunham. Tambm pouco idneos, pelo fal-
,arnento que sofreram por parte dos destinatrios, os prefei-
tos, os quais, na expectativa de angariar mais verbas para
seus Municpios, teriam alterado e aum~ntado c nmerc real de
menores carentes e abandonados em sua circunscrio. (PEREI-
RA JUNIOR, 1985:3)
Apesar da posterior vulgarizao, atravs da imprensa,
de nmeros que se elevam de 20 a 30 "milhes de abandonados"
e da desconsiderao da distino entre menor realmente aban-
do nado, e menor carente ("aquele cujos pais ou responsveis
no possuem condies para atender s suas necessidades bsi-
cas") que se somam e se confundem nesse total, a CP! do Me-
nor teve o mrito de, ao redor desse resultado, trazer a luz
com mais nfase o fato de que o problema do menor no Brasil
nao propriamente o do abandono mas, sim, o do baixo ndice
de qualidade de vida em que se encontram suas respectivas fa-
mlias 11 (cf. PEREIRA JUNIOR, 1985).
A problemtica dos "milhes de menores abandonados"
traz a varivel scio-econmica para o centro das discusses.
Esta vertente de interpretao passa a predominar sobre as
demais, ainda que o vis moralista permanea como "defeito de
base" e que cada vez mais se valorizem os aspectos psicol-
gicos do abandono, e urna abordagem psicolgica em relao a
estrutura da famlia.
Com o "menorismo" e sob as diretrizes da Poltica Na-
cional do Bem-Estar do Menor, o equacionamento dos aspectos
scio-econmicos da marginalizao da famlia e do menor" vem
a se constituir em "tarefa imperiosa, num Pas que vem rena-
vando sua poltica para com a infncia e a juventude". O en-
~ I
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frentamento do problema depende da identificao desses com
~ "subconjunto de problemas mais amplos da mesma natureza'',
decorrentes e encontradios ao nvel da estrutura social mais
Qmpla. Tambm depende de planejamento c aplicao de tcnicas
de interveno na realidade social, e as diretrizes e normas
que passam a reger a poltica nacional do bem-estar do menor,
buscam "impedir a dissociao de programas para menores, dos
seus componentes mais amplos de proteo a famlia em contex-
to comunitrios" (ALTENFELDER, 1984:124 e 129).
Embora desponte nesse contexto como um paradoxo, h~i que
se registrar urna lei de 1968 que teria sido baixada para fa-
zer face "indstria de colocao familiar'' que se havia ins-
talado a partir de instituies privadas ou controladas pelo
Governo, que colocavam menores A SOLDADA, e tambm, corno res-
posta a "desvirtuamentos" da COLOCAO REMUNERADA do menor
junto a sua prpria famlia ou a outras, regime que se have-
ria convertido de exceo em regra. Esta lei admitiu que es-
se pagamento s famlias fosse "quase que inteiramente trans-
formado em subsdio aos