Post on 10-Feb-2019
Os índices de oralidade em pauta nas histórias afro-brasileiras: o caso de Caroço de
dendê
Juliana Franco Alves-Garbim
(Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis - CAPES)
julianafrancoag@gmail.com
Resumo: O presente estudo objetiva abordar e identificar os índices de oralidade presentes em
poéticas orais afro-brasileiras que são publicadas em meio escrito. Ao migrar para o meio
escrito, as histórias orais perderiam, segundo Paul Zumthor (1993) e outros estudiosos da voz,
alguns traços muito particulares próprios da cultura oral, tais como a performance, a entonação,
o ritmo e a linguagem coloquial. No entanto, alguns índices de oralidade ainda permanecem
incrustados no texto quando da passagem do discurso falado para o livro. Na coletânea escrita
por Mãe Beata de Yemonjá1, a partir de contos ouvidos durante sua infância ou recriados pela
autora na medida em que os aprendia por meio da contação de histórias, buscaremos entender
a conservação ou o apagamento dos itens alusivos a uma oralidade reminiscente nas coletâneas
de histórias afro-brasileiras.
Palavras-chave: índices de oralidade; poética oral afro-brasileira; escrita.
Abstract: this study aims to approach and identify the orality indices available in the Afro-
Brazilian oral poetics that are published in written form. Through the migration to the written
form, the oral stories would lose, according to Paul Zumthor (1993) and other oral historians,
some particular traces of the oral culture, such as performance, intonation, rhythm and
colloquial language. Some orality indices, however, still remain embedded in the text during
the transition from the spoken word to the one in the book. In the collection written by Mãe
Beata de Yemonjá2, with short stories heard during her childhood or recreated by the author
while she would learn them through storytelling, we seek to understand the preservation or the
erasure of items allusive to a reminiscent orality in the collections of Afro-Brazilian stories.
Keywords: orality indices; Afro-Brazilian oral poetics; writing.
Rastros da voz ancestral na escrita afro-brasileira
Sabemos que as marcas de oralidade, presentes na prosa poética de inúmeros narradores
populares são itens um tanto quanto controversos quando da passagem do discurso oral para o
meio escrito. Isso ocorre, pois, apesar de muitas publicações que foram baseadas na tradição
oral preservarem traços dessa cultura, grande parte da oralidade primária acaba se perdendo
durante os processos de editoração do texto.
1 Mãe Beata de Yemonjá é o nome religioso atribuído a sacerdotisa de candomblé Beatriz Moreira Costa. 2 Mãe Beata de Yemonjá is the religious name attributed to the candomblé priestess Beatriz Moreira Costa.
Partindo dessa premissa, saímos em busca dos índices de oralidade presentes nos contos
publicados por Mãe Beata de Yemonjá, autora de histórias que retrata o universo cultural dos
afrodescendentes e da religiosidade iorubá. As narrativas escritas com base nas vivências da
escritora e nas tradições afrodescendentes apresentam alguns poucos índices de oralidade nas
entrelinhas do discurso, como veremos adiante. Tais marcas simulam não apenas o mundo no
qual ela viveu, isto é, o contexto social dos terreiros de candomblé como também representam
a mulher Beatriz Moreira Costa, cidadã semiletrada, alfabetizada pela vida e pela contação de
histórias.
De forma bastante ampla, a coletânea Caroço de Dendê publicada em 1997 foi escrita
ao longo da vida da autora. Pouco a pouco, Mãe Beata construiu um livro de narrativas sobre
a realidade dos ritos e costumes que cercam a sacralidade iorubá. Mais do que a religiosidade
dos povos de santo, os contos revelam, sobretudo parte das histórias de vida da própria autora,
além do cotidiano das comunidades de terreiro. Denuncia ainda, a condição de inúmeros negros
que coabitam as periferias Brasil afora, por meio da figura representada por uma mulher negra,
mãe, pobre, de pouca instrução nas letras, porém escritora.
Os contos que compõem as antologias refletem as misérias humanas e sociais mais
prementes e instantâneas: a cobiça, a inveja, a fome, a avareza, o ciúme são temas recorrentes
nas histórias. Como toda narrativa popular imprime situações e diálogos a fim de ensinar,
transmitir valores e normas da comunidade narrativa. Desta forma, praticamente todas as
histórias contadas oralmente e que, posteriormente migram para o meio escrito acabam por
revelar um conteúdo pedagógico-moralizante.
A narrativa oral afro-brasileira e os índices de oralidade na escrita contemporânea
Para além dos sentidos e das intenções da contação de histórias, outra celeuma intriga
os pesquisadores quando o assunto é poéticas orais em meio escrito. Diz respeito à manutenção
ou apagamento dos índices de oralidade quando da passagem do texto oral para o livro. Neste
caso as trilhas deixadas pela voz dependem e muito do processo de editoração, por isso não há
regras no que diz respeito ao assunto. Cada editora trabalha com uma política editorial
particular e respeita as normas impostas pelo conselho editorial que a rege. Os poucos índices
de oralidade presentes em suas coletâneas relembram a presença, ainda que longínqua, da voz
ancestral, aquela pela qual se pauta a cultura afrodescendente.
Entender a permanência das marcas da oralidade nas obras que Yemonjá publicou
remete o leitor não apenas ao universo sagrado que a autora quer comunicar, mas também o
aproxima de uma cultura oral de representação e indicam resistência cultural. Os poucos
índices de oralidade mantidos em suas coletâneas recordam a presença, ainda que longínqua,
da voz ancestral, aquela pela qual se pauta a cultura afrodescendente. E, para além da tradição,
revela-nos outras formas do fazer literário, distantes do cânone, mas um pouco mais próximo
da arte cotidiana derivada do povo.
Mãe Beata de Yemonjá iniciou-se no candomblé ainda jovem, mas somente anos mais
tarde, já ocupante do cargo de ialorixá na Baixada Fluminense é que Beatriz adentrou o
universo das letras, com a publicação de Caroço de Dendê.
Às vezes me surpreendo ao lembrar das coisas que venho conseguindo pela
vida afora. Eu, uma mulher com o terceiro ano primário, semi-analfabeta, já
tive palestras traduzidas em diversos idiomas e, como disse, escrevi um livro
de contos, Caroço de Dendê. Nesse livro dou a devida importância à
sabedoria dos terreiros, contando como as ialorixás e os babalorixás passam
seus conhecimentos para os filhos. (COSTA, 2010, p. 125).
A autora narra a história dos orixás, da formação do mundo segundo a mitologia
africana e aborda a cultura e religiosidade iorubá no Brasil, tanto em Caroço de Dendê quanto
em Histórias que a minha avó contava. Os contos foram escritos por ela mesma, apesar do
precário letramento, com todas as marcas de oralidade que a contadora trazia consigo, mas
também com traços de uma escrita rudimentar, próprio de quem pouco havia frequentado a
escola, mas foi sendo escolarizada em função do alto cargo religioso que ocupa.
Escrevendo meus livros, trato de documentar pelo menos um pouco da nossa
trajetória que vem passando de boca em boca pelos navios negreiros. Tenho
escrito muito, em breve vou lançar um livro, mas só com poemas picantes,
críticos, tipo cordel, que é do que eu mais gosto. (COSTA, 2010, p. 126).
Mãe Beata escreveu a partir de seu ponto de vista de sacerdotisa, a visão de quem está
do lado de dentro do terreiro, de quem viveu e acredita em cada linha que integra suas
coletâneas. Partindo dessa premissa inicial, entendemos que o livro conserva não apenas a
cultura e tradição oral de raiz africana, mas preserva a história dos deuses e da crença ancestral.
Obviamente, em se tratando de contação de histórias e o produto livro, entendemos que
são produtos linguísticos bastante diferenciados. A sintaxe do discurso oral, no caso da autora
em estudo, foi pouco preservada durante o processo de editoração. A contação de histórias
proporcionada por Yemonjá a seus familiares e amigos possivelmente expunha um número
maior de traços da voz, diferentemente do texto escrito elaborado por ela. Repetições,
marcadores conversacionais, vírgulas e palavras muito excêntricas ao vocabulário da
população comum podem ter sido suprimidas dos contos, com a intenção de tornar a leitura
mais fluída e acessível a um maior número de pessoas, além de atender às regras ortográficas
vigentes.
A linguagem oral da escritora permeia as narrativas e expõe marcas de uma autora com
pé fincado na tradição da palavra. Na composição das histórias conta com o auxílio do léxico
notadamente ioruba e o discurso contempla pitadas de oralidade que retratam o cotidiano das
práticas e lendas sagradas do candomblé. Os enredos revelam o meio social e as experiências
da autora.
Sobre as relações entre fala e escrita presentes nas antologias publicadas por Yemonjá,
vale lembrar que ao consideramos a oralidade na composição de uma obra, ampliamos o valor
estético da voz e a inserimos no roteiro validado pela práxis literária. Consideramos a contação
de histórias parte de uma cultura popular que se processa naturalmente nas mais diversas
histórias contadas oralmente no dia a dia das pessoas, em circunstâncias improvisadas.
Frederico Fernandes (2013) reflete sobre a importância da permanência dos índices de
oralidade no discurso escrito, pois “[…] corresponde também a dar um tratamento diferenciado
ao que se entende por literário” (Fernandes, 2013, p. xii). A partir do momento em que
escolhemos estudar as poéticas orais em meio escrito, entendemos que, nas palavras de
Fernandes, a literatura abandona a noção de escritura e passa a ser estudada como manifestação
cultural.
Em Caroço de Dendê, é nítido o uso de termos e expressões oriundos da língua popular
ioruba, no entanto, isso é insuficiente do ponto de vista da preservação dos índices de oralidade.
Há vestígios e marcas que remetem a uma oralidade inicial, porém o livro, enquanto objeto
manipulado editorialmente transforma-se em um produto cuja oralidade é apenas residual. Um
dos objetos principais na constituição das histórias, na obra publicada: a voz torna-se matéria-
prima de segundo plano. Há, sem dúvida, uma oralidade por trás da letra, pano de fundo para
os acontecimentos que se reproduzem no discurso e isso fica nítido a cada leitura dos contos,
no entanto, para uma cultura oral, onde tudo que existe passa pelo artefato vocal, esta realização
escrita fica em débito.
A oralidade residual, entretanto é espontânea e parte da escritora como uma prática
instintiva e natural de quem está habituado a ter na fala seu principal meio de difusão cultural.
Yemonjá desejava projetar em seus contos a imagem de uma escritora do povo, mas que tinha
conhecimento sobre a língua e a tradição que abordava, lançando mão de palavras típicas desse
nicho cultural.
O pouco da oralidade inerente à prática de contação de histórias ainda subsiste nas
entrelinhas do texto e salta pelas páginas por meio dos marcadores linguísticos, específicos da
linguagem popular e rotineira. Tal fato acaba por conferir um ar diferenciado as suas narrativas,
pois enquanto narradora conferiu ao discurso marcas pessoais de suas vivências e, nisso inclui-
se, sua linguagem e estilo de contar, a fim de impor veracidade aos enredos.
Entretanto, é importante pontuar que, nos contos analisados, a sintaxe do discurso
coloquial e informal foi pouco preservada pelo processo de editoração, especialmente no que
diz respeito às repetições, aos marcadores conversacionais e a estrutura sintática oral, que,
embora existam, não são a tônica, como veremos nos exemplos mais adiante. Ao longo da
antologia Caroço de Dendê há várias marcas sutis de oralidade, porém importantes para a
composição final, considerada como poética oral em meio escrito.
Outro fator que abre precedente para elencarmos a obra de Yemonjá como originário
de uma poética oral é o fato de muitos personagens não receberem nome. Em alguns contos,
as personagens são chamadas apenas de “a mulher que gostava de sambar” (YEMONJÁ, 2008,
p. 27) “o menino do caroço” (YEMONJÁ, 2008, p. 29), “o rapaz que conversava com a mãe
sobre a aparição de Tia Cilu” (YEMONJÁ, 2008, p. 31), “o homem que se casou e queria ter
filhos” (YEMONJÁ, 2008, p. 49), “o menino que tinha muito saber” (YEMONJÁ, 2008, p. 51)
ou ainda “a mulher que sabia demais” (YEMONJÁ, 2008, p. 53), dentre outras histórias cujos
personagens não são nomeados. O fato de não atribuir nome a algumas das personagens
principais de seus contos figura como índice de oralidade semântico e coloca em evidência a
face da tradição oral, uma vez que nas culturas onde a voz é o veículo principal de propagação
dos costumes, as histórias são passadas da boca ao ouvido e, em muitos casos, os nomes das
personagens acabam se perdendo
Ao contrário da linguagem oral natural há, nos livros uma preocupação com o correto
uso sintático. Mesmo com a baixa escolarização da autora ou do meio em que vive e reproduz
a tradição oral, os plurais são empregados corretamente, seguindo a norma padrão da língua,
opção com prestígio e reconhecimento social. Reforçando as características híbridas da autora
e sua produção, existe uma informalidade em nomear as personagens por codinomes, como Tia
Cilu, Tude ou Tia Africana, fato que prenuncia uma atmosfera de oralidade semântica para os
contos.
Perceber essa vocalidade residual é como raspar as letras e entender que o texto, embora
se apresente em estado escrito, originou-se da experiência vocal. É preciso sensibilidade
interpretativa para ouvir a voz que vibra por trás do discurso impresso, mesmo que os traços
de oralidade tenham sido reduzidos ou apagados como veremos mais adiante. Zumthor observa
que todo texto comporta seus “índices de oralidade”, isto é, tudo o que inserido no discurso
“informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer dizer, na mutação
pela qual o texto passou [...] e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos”.
(ZUMTHOR, 1993, p. 35). Isso implica dizer que resquícios da voz podem manter-se presentes
mesmo quando o texto original, já à distância do contador, passa pelo crivo da letra. Qualquer
indício, proposital ou não, de que naquele texto há a intervenção da voz humana concebe ao
leitor a presença de uma poética oral ancestral no discurso.
A literatura ficcional de expressão oral constitui-se como poética enquanto intepretação
do mundo, dos costumes e do homem por meio da voz. Por outro lado, a consciência do
contador-autor empregada nas histórias já transcritas pode provocar sensações diversas, uma
espécie de “gestualização fantasia” do texto. Para este estudo selecionamos pequenas amostras
cujas marcas estão mais evidentes e que apontam para um quadro de vocalidade residual nas
narrativas. Os índices de oralidade foram documentados no campo da morfossintaxe.
O conto “As patacas malditas” abre caminho para elencarmos a obra de Yemonjá como
originária da tradição oral. O texto apresenta alguns resquícios da oralidade performática
suprimida pelo trabalho editorial, além de trazer à cena expressões pertencentes ao jargão
popular, segundo a forma tradicional de contar histórias:
[...] Antigamente era assim, quando o dono do engenho não prestava, os
parentes chamavam várias pessoas e mandavam chorar. Para isso, tinham
várias mulheres chamadas choradeiras. Na minha terra mesmo, quando
morria uma destas pessoas, ia muita gente com aqueles véus pretos na cabeça,
e aí começavam a chorar, dando ataque e tudo. Às vezes a pessoa nem
prestava. Pois foi o que aconteceu com o funeral deste homem.
Passado um tempo, as pessoas que passavam embaixo do pé da gameleira
começaram a ouvir choro e corrente arrastando. Viam gato correr e cachorro
também. Aí todo mundo começou a pensar: “ai, que ninguém mais passa pelo
pé da gameleira, ninguém passa por ali”, que ali tinha isso, ali tinha
aquilo.[...]. (YEMONJÁ, 2008, p. 38, grifos meus).
O uso de advérbios ou locuções adverbiais de tempo (antigamente, quando, passado um
tempo...), de verbos no pretérito perfeito e imperfeito do modo indicativo (chamavam,
mandavam, tinham, começavam, aconteceu, passavam, começaram, viam, começou),
associado a pronomes possessivos (minha) e demonstrativos (aqueles), remetem o leitor ao
passado e cogita um cenário de contação de histórias. Outros itens lexicais pertencentes ao
jargão popular e oral (“ia”, “e aí”, “dando ataque e tudo”, “pois foi”, “aí”, “ali tinha isso, ali
tinha aquilo”), também somam-se aos índices linguísticos da oralidade presentes no trecho
deste conto. Tais índices assinalam uma herança prosódica ao texto escrito por Yemonjá, na
medida em que reverberam práticas narrativas seculares, presentes em praticamente todas as
culturas.
Identificar as marcas da voz que ainda persistem mesmo após o discurso já ter sido
tratado pelos processos editoriais justifica a preocupação com as perdas que poderiam ocorrer
no processo de transposição de um meio a outro. Entretanto, Walter Ong apazigua essa celeuma
quando pondera que:
Atualmente, a cultura oral primária, no sentido restrito, praticamente não
existe, uma vez que todas as culturas têm conhecimento da escrita e sofreram
alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus, muitas culturas e
subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia, preservam muito da
estrutura mental da oralidade primária. (ONG, 1998, p. 19).
As estratégias de (re) textualização do meio oral para o escrito revelam que a
combinação entre voz e letra modificou alguns elementos do discurso oral original. No caso
das antologias propostas por Yemonjá, elementos prosódicos e performáticos certamente
perderam-se durante a transposição de meio oral para escrito. São marcações típicas da fala
como repetições, hesitações (ah! Eh! Hum...), discurso descontinuado ou interrompido, próprio
do processo de contar oralmente e do movimento mnemônico. Além disso, marcadores
conversacionais (não é? né? entende? sabe? daí, então) foram suprimidos ou reduzidos das
histórias e demonstram o grau de interferência das edições. Marcushi esclarece que os
marcadores discursivos enquanto recursos verbais
[...] não contribuem propriamente com informações novas para o
desenvolvimento do tópico, mas situam-no no contexto geral, particular ou
pessoal da conversação. Alguns não são sequer lexicalizados, tais como
“mm”, “ahã”, “ué” e muitos outros. (MARCUSCHI, 1986, p. 63).
No discurso oral, os marcadores linguísticos são uma prerrogativa muito comum
utilizados na construção frasal para dar coesão e coerência ao enredo. Podem conferir
veracidade e chamar a atenção do ouvinte e funcionam como articuladores da interação entre
os interlocutores. Valter Pereira Romano (2013), estudioso da área dos estudos linguísticos,
disserta sobre a importância dos marcadores ao longo do discurso:
Passaram de simples palavras expletivas da língua a elementos de grande
importância nos processos de interação conversacional, marcas linguísticas
polifuncionais que podem exercer desde funções meramente conectivas
(sintáticas) até metadiscursivas (comunicativas). Os marcadores
conversacionais designam não somente elementos verbais, mas também
elementos prosódicos que caracterizam a fala. (ROMANO, 2013, p. 07).
Com base nessa conceituação teórica, expomos abaixo outro exemplar que expõe
indícios de uma vocalidade residual, evidenciada por índices de oralidade da ordem dos
marcadores discursivos, presentes na antologia Caroço de dendê. Trata-se do conto “A mulher
que sabia demais”:
Existia uma mulher que achava que tudo quem mais sabia era ela.
Uma amiga lhe disse:
- Mulher, tira essa mania de tudo você dizer que sabe mais do que os
outros.
Os amigos e a vizinhança já andavam aborrecidos com ela e não
queriam mais conversa, pois só ela sabia de tudo e sempre tinha razão. De
certa feita, armaram uma cilada para desmascará-la.
- Olha, vai haver uma festa na cidade e todos nós fomos convidados.
E você? – perguntaram à mulher.
- Ah! – ela logo gritou. – Eu estou sabendo, pois até me chamaram
para sair na frente da carroça – pois, naquele tempo, não havia carro.
Aí, alguém logo disse:
- Mas será que você sabe que quem chegar primeiro à praça, e com
vestido mais engraçado, vai ter um prêmio?
- Eu sei! E já tenho uma ideia – ela logo respondeu.
Então ela foi para a casa e começou a fazer a fantasia, a mais horrenda
possível. E arrumou a sua carroça, mas ao mesmo tempo ficou matutando:
- Eu não vejo ninguém falar nada... Hum... Mas, como é competição,
tá certo!
No dia da festa ela levantou cedo, se arrumou e foi para a praça, que
já estava cheia. Ela começou a desconfiar de que tinha caído numa armadilha,
e perguntou:
- Como é que é? Não vai haver competição?
E aí todos começaram a rir e a vaiá-la.
- Ô mulher! Você não sabe tudo? Como você não sabia do que nós
armamos para você? Pois tudo aquilo que nós lhe falamos, você diz logo “Eu
já sei!” E não é assim! Ninguém sabe tudo. Às vezes nós temos que recorrer
aos nossos irmãos, pois quem sabe tudo é Olorum. Tanto assim que ele criou
a nós e a você. Isto vai lhe servir de exemplo. (YEMONJÁ, 2008, p. 53-54).
Com o auxílio do escárnio e da vingança, o conto revela práticas sociais inseridas no
contexto do lendário ketu-nagô. Na intenção de ensinar a humildade e modéstia para uma
companheira, os amigos e vizinhos resolveram aplicar-lhe uma lição. Tramaram uma situação
onde a mulher fosse pega pela arrogância e soberba. Sob o manto da chacota a intenção era
ensinar à senhora a importância de ouvir os irmãos, de pedir conselhos e render préstimos à
Olorum, Ser Supremo, que, na crença iorubá, tudo sabe e tudo vê.
Para além das questões didático-moralizantes, “A mulher que sabia demais” é outra
narrativa cujos rastros da voz foram cunhados na versão impressa. Os trechos destacados acima
revelam tais marcas: “Existia uma mulher que achava que tudo quem mais sabia era ela.”;
“Mulher, tira essa mania de tudo você dizer que sabe mais do que os outros”; “Ah! – ela logo
gritou”; “Aí, alguém logo disse”; “ficou matutando”; “Hum...”; “Tá certo!”; “E aí todos
começaram a rir”; “Ô mulher”; “Pois tudo aquilo que nós lhe falamos, você diz logo “Eu já
sei!””; “Tanto assim”. São expressões indicativas do pertencimento a uma cultura oral que,
incutida no imaginário da autora, não conseguiu desvencilhar-se da letra.
Ainda na esteira dos contos de Caroço de Dendê, temos abaixo outro exemplar que
carrega consigo resquícios da oralidade:
O pescador teimoso
Existia numa aldeia um pescador muito avarento. Quando ele lançava
a rede ao mar, pegava até os peixinhos, por menores que fossem. Mas a deusa
do mar não estava gostando. Um dia ele sonhou com uma mulher dizendo:
- Olha, você não faz mais isto, pois isto é uma devastação da natureza.
Ela disse que aquilo era prejudicial até para seu próprio sustento, que
ele deixasse de ser avarento e carregasse só os peixes já grandes.
Ele acordou e contou para sua mulher:
- Sabe o que me aconteceu? Eu sonhei que vinha uma mulher e me
dizia que eu deixasse de pegar peixe miúdo. Ah, isto tudo é ilusão! Eu não
acredito nessas bobagens.
Aí, a mulher lhe disse:
- Tome cuidado, eu acho que você deve consultar um olhador.
- Mulher, mulher, deixe de invenção – respondeu o pescador.
Mas acontece que, a partir daquele dia, toda vez que ele ia pescar, não
vinha nada na rede. Então ele disse:
- Eu acho que vou consultar esse tal de olhador.
E lá se foi ele. Chegando à casa do olhador, o homem foi logo lhe
dizendo:
- Entre homem, se aproxime e sente.
- Eu estou aqui para lhe fazer uma pergunta... que de uns dias para cá
eu lanço a rede no mar e não pego peixe – disse ele ao olhador.
- Olha, Yemanjá está muito aborrecida com você, e ela quer uma
oferenda – respondeu o olhador.
- Seu olhador, eu não sou muito de acreditar nestas coisas, mas o que
ela pede?
Simplesmente – o olhador respondeu – cê oferece pra ela flores,
frutas e enfeites para mulher. E ponha a mão na água três vezes pedindo
perdão a ela do que você fez e das suas palavras.
Isto o pescador fez e, a partir daí, toda vez que ele ia pescar, que
lançava a rede, a mesma vinha cheia de peixes graúdos, e a vida dele começou
a prosperar. (YEMONJÁ, 2008, p. 69-71).
“O pescador teimoso” apresenta-se como uma conversa entre marido e mulher e tem
como pano de fundo o universo onírico do protagonista. Em sonho, a mitologia iorubá mais
uma vez desponta como eixo temático principal. Aqui, índices de oralidade são reproduzidos
nos seguintes excertos: “Existia numa aldeia”, “Aí, a mulher disse”, “E lá se foi ele”, “lanço a
rede no mar”, “Cê oferece pra ela” e “Isto o pescador fez”.
Os marcadores linguísticos aqui apontados novamente remetem o leitor para um
ambiente de prosa e coloquialismos. O desfecho narrativo, por sua vez, abre precedente para
que a interpretação do texto transporte o interlocutor a um espaço-tempo de contação de
histórias. Todos os itens corroboram as teorias já abordadas neste estudo. São índices sintáticos
e semânticos que, dentro do texto, concordam entre si e ratificam a estilística da voz, por meio
dos resquícios da oralidade primária.
Considerações finais
Por meio da análise das narrativas podemos notar que a oralidade, ainda que residual
mantem-se presente nos contos escritos por Mãe Beata de Yemonjá. De maneira geral, o léxico
empregado pela autora e que representam traços de oralidade em seu discurso literário, bem
como o texto corrigido e tratado pelos editores justapõem-se e reforçam a carga de
verossimilhança dos enredos. Palavras comuns utilizadas no contexto prático de contação de
histórias refletem não apenas as vivências, mas o estado social em que vive a autora.
Na coletânea em análise, aparato linguístico e semântico utilizado durante a escrita
reverbera a todo o instante uma poética oral do etéreo iorubano. Desde a temática escolhida,
passando pelo léxico empregado na construção das histórias, os resquícios linguísticos ou os
índices de oralidade ainda presentes no discurso formam conjunto de fatores que geram a
atmosfera de uma poética da voz reminiscente.
A linguagem oral misturada às normas da linguagem escrita revela o caráter híbrido não
apenas dos contos, mas também da escritora, produto da cultura oral e da escrita, mulher dos
terreiros e do assediado mundo dos escritores. As palavras escolhidas para integrar as histórias
projetam não apenas a própria Yemonjá enquanto sujeito no discurso, mas projetam a mulher
para o mundo. Em suma, os índices de oralidade são a ponte que liga o universo poético-oral
com o mundo da escrita contemporânea, mediados pelo sistema editorial e pela atuante prática
de contação de histórias.
Sua escrita, além de libertária, promove enfrentamentos de ordens diversas. Ao falar
de suas memórias e vivências com base na tradição oral, a autora chama para si uma
visibilidade almejada por muitos negros que anseiam reconhecimento. Ao mesmo tempo,
quando suas narrativas são publicadas, Yemonjá ganha espaço nas pesquisas acadêmicas e
coloca o negro no centro do discurso.
Assim, não apenas sua persona torna-se contestatória, mas a escrita de que dela emana
incita a debates e reflexões, no âmbito acadêmico e midiático, sobre o negro sujeito e agente
de sua própria história. Ao entrar pelos muros acadêmicos, a escritora confronta o cânone
instituído, confronta paradigmas estéticos e literários, apresentando ao leitor outros
mecanismos de construção do texto e do sujeito negro diferentes do clássico. A escrita, por sua
vez, torna-se um organismo de inserção, inclusão e uma forma de combater a discriminação
racial.
É nesse ínterim que, ao discutirmos a manutenção das marcas de oralidade que, ao
mesmo tempo, propomos a revisão e problematização de conceitos como a identidade dos
afrodescendentes, construída a partir da textualidade ocidental, calcada em valores históricos e
culturais dos brancos. Assim, temos na escrita de Yemonjá, uma vertente literária, que, embora
nascida longe da África, encena, por meio da tradição oral ioruba, para a subjetividade
individual e coletiva do ser negro, representada pelo eu-enunciador.
É por meio da literatura e da condição de escritora que Yemonjá ressignifica, a partir
da diferença, sua história e de muitos afro-brasileiros que perderam a identidade durante os
processos de colonização e escravidão do homem negro. Escrever é, para a autora, uma válvula
de escape e ratifica sua paixão pelas artes e pelo povo negro.
Referências
COSTA, Haroldo. Mãe Beata de Yemonjá: guia, cidadã, guerreira. Rio de Janeiro: Garamond:
Fundação Biblioteca Nacional, 2010.
FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (org.). Oralidade e literatura: manifestações e
abordagens no Brasil. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2013. Disponível em
<http://www.uel.br/editora/portal/pages/arquivos/oralidade_digital.pdf> Acesso em 07 de set.
de 2017.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da Conversação. Editora Ática: São Paulo, 1986. P.
61 – 74.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Trad. Enid Abreu
Dobránszky. Campinas: Papirus, 1998.
ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. Olho d’água, s/d.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana
do século XX. 2.ed. Niterói: EdUFF, Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ROMANO, Valter Pereira. Os Marcadores Conversacionais Na Fala Dos Informantes Do
Projeto Atlas Linguístico Do Brasil: Uma Abordagem Sociolinguística. In: Identidade
Científica, Presidente Prudente-SP, v. 4, n. 1, p. 3-21, jan./jun. 2013.
Disponível em http://revistas.unoeste.br/revistas/ojs/index.php/ic/article/viewFile/857/1008.
Acesso em: 10 Ago. 2017.
YEMONJÁ, Mãe Beata de. As histórias que minha avó contava. São Paulo: Terceira
Margem: CESA – Sociedade Científica de Estudos da Arte, 2004.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz. Tradução de Amália Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. SP:
Companhia das Letras, 1993.