Post on 12-Oct-2015
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
Rodrigo Santos Leite
Os Nmeros Explicam o Jogo?
Uma Anlise do Uso de Nmeros e Estatsticas nas Coberturas Jornalsticas do Esporte
Rio de Janeiro
2012
Rodrigo Santos Leite
Os Nmeros Explicam o Jogo?
Uma Anlise do Uso de Nmeros e Estatsticas nas
Coberturas Jornalsticas do Esporte
Monografia apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social Jornalismo, Faculdade de Comunicao Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Fbio Mrio Irio
Rio de Janeiro 2012
Rodrigo Santos Leite
Os Nmeros Explicam o Jogo?
Uma Anlise do Uso de Nmeros e Estatsticas nas Coberturas
Jornalsticas do Esporte
Monografia apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social jornalismo, Faculdade de Comunicao Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovado em:_________________________________________ Banca Examinadora:___________________________________
____________________________ Prof. Fbio Mrio Irio (orientador)
____________________________
Prof. Rafael Cas
____________________________ Prof. Joo Pedro Dias Vieira
Rio de Janeiro 2012
DEDICATRIA
Famlia e aos amigos, pelo amor, pelo incentivo e pelos exemplos de vida.
A imaginao est sempre muito mais prxima das essncias.
Nelson Rodrigues.
RESUMO
Cada vez mais, as coberturas jornalsticas dos esportes utilizam nmeros e estatsticas para tentar explicar os acontecimentos, tanto nas transmisses ao vivo quanto nas reportagens posteriores. Ao fazerem isso, alm de tentarem atender ao princpio da objetividade, ideal dominante no jornalismo contemporneo, buscam enriquecer de informaes o seu trabalho, apresentando diferenciais perante os concorrentes, sejam estes outros veculos de comunicao, ou mesmo a experincia do pblico no lugar aonde acontea as competies esportivas (in loco). Entretanto, s vezes as estatsticas no refletem com preciso o que de fato aconteceu nas disputas esportivas, nem representam a realidade de forma eficiente. Outras vezes, pelo contrrio, elas trazem explicaes coerentes para acontecimentos dos quais a simples experincia no capaz de esclarecer as razes. Pretende-se analisar aqui o uso destas ferramentas no jornalismo esportivo, seus eventuais benefcios e malefcios, contextualizando-os perante a importncia e o lugar do esporte e do jornalismo esportivo na sociedade contempornea. O objetivo ser entender como os nmeros e as estatsticas so capazes de modificar o conhecimento que se adquire atravs do jornalismo esportivo. Considerar-se- o esporte um fato social, e o jornalismo esportivo, apesar de algumas particularidades, um ramo comum do jornalismo em geral, tambm ligado aos princpios da tica, da impessoalidade, objetividade e, acima de tudo, da busca pela verdade, que norteiam, em tese, a atividade jornalstica contempornea. Palavras-chave: Jornalismo. Jornalismo Esportivo. Estatsticas. Objetividade.
ABSTRACT
Increasingly, news coverage of sports use numbers and statistics to try to explain the events, both in live broadcasts and in the subsequent reports. In doing so, besides trying to meet the principle of objectivity in contemporary journalism dominant ideal, seek information enrich their work, before presenting differential competitors, whether other media, or even the experience of the public in the place where happen competitive sports (in loco). However, sometimes the statistics do not accurately reflect what actually happened in sports disputes, nor represent the reality efficiently. Other times, however, they bring consistent explanations for events of which mere experience cannot clarify the reasons. Intend to analyze here the use of these tools in sports journalism, its possible benefits and harms, contextualizing them before the importance and place of sport and sports journalism in contemporary society. The goal is to understand how numbers and statistics are able to modify the knowledge acquired through Sports Journalism. It will be considered sport as a social fact, and the Sports Journalism, despite some peculiarities, a common branch of journalism in general, also linked to the principles of ethics, impartiality, objectivity and, above all, the search for truth, guiding, in theory, contemporary journalistic activity. Keywords: Journalism. Sports Journalism. Statistics. Objectivity.
SUMRIO
INTRODUO.................................................................................................9
1. O JORNALISMO...........................................................................................12
1.1 O Que o Jornalismo?................................................................................12
1.2 Jornalismo como Conhecimento...............................................................15
1.3 Especializao no Jornalismo....................................................................17
2. O ESPORTE..................................................................................................23
2.1 A Importncia e o Lugar do Esporte..........................................................23
2.2 Esporte: pio do Povo?..............................................................................28
3. AS ESTATSTICAS NO JORNALISMO ESPORTIVO..................................31
3.1 Estatsticas Para Qu?................................................................................31
3.2 Nmeros, Estatsticas e Objetividade........................................................37
3.3 Onde os Nmeros So teis.......................................................................45
4. CONCLUSO................................................................................................57
5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................61
9
INTRODUO
No dia 11 de maio de 2010, o ento tcnico da seleo brasileira de futebol,
Dunga, anunciou a lista de jogadores convocados para a Copa do Mundo da frica
do Sul. No houve grandes novidades, mas, como de praxe, a mdia esportiva
dedicou o resto do dia a comentar a lista e fazer previses para a Copa do Mundo.
O canal televisivo de esportes ESPN Brasil levou ao ar um programa especial, logo
aps a convocao, para discutir as escolhas do tcnico e opinar sobre o futuro da
seleo brasileira. Tudo transcorria como o esperado, at que, aps fazerem
contato telefnico com um dos jogadores convocados, Felipe Melo, que atuava pela
Juventus da Itlia, o jornalista Paulo Vinicius Coelho, conhecido como PVC, travou
o seguinte dilogo com o jogador1:
PVC: Felipe, consenso, eu acho que voc h de concordar, que voc no fez uma boa temporada na
Juventus. Por que que a gente deve acreditar que o Felipe Melo da Copa do Mundo vai ser diferente do Felipe
Melo da Juventus da temporada 2009/2010?
FELIPE MELO: Ento... voc acompanhou o campeonato italiano?
PVC: Sim, bastante.
FELIPE MELO: Bastante? Ento, porque h controvrsias... Voc, falando isso ai... eu no concordo com
voc. A gente tem que pegar nmeros, n? Eu trabalho com nmeros. Os meus nmeros aqui na Juventus...
quando o Felipe Melo no jogou... eu fiquei seis jogos sem jogar a equipe perdeu cinco... Ento, eu no
concordo com voc no...
PVC: Mas com voc jogando a Juventus fez a pior campanha em quarenta anos tambm...
FELIPE MELO: Calma a, calma a, no porque teve um prmio, na qual saiu um prmio aqui que deram...
uma... uma... rdio2 que fizeram uma sacanagem, uma brincadeira que saiu e voc vir falar disso ai, voc no
entende de futebol, me desculpa mas acho que voc no deve entender de futebol...
PVC: no, no, no desculpe Felipe... desculpe Felipe, eu no estou falando de brincadeira nenhuma, eu estou
falando porque a gente [a ESPN] transmite o campeonato italiano.
FELIPE MELO: Faz o seguinte...voc... voc... o seguinte, voc primeiro tem que pegar os nmeros do
jogador de futebol, ver o que o jogador faz na temporada, para depois fazer uma coisa dessas ai... isso ai
ridculo... no acredito... voc jornalista?
1
Vdeo disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=1HBdayi8bpk, ou digitando-se Discusso entre PVC e Felipe Melo [ESPN 2010] no site www.youtube.com. A transcrio do dilogo foi feita pelo autor.
2 O prmio a que o jogador se referia era o prmio Pior Jogador do Ano no Campeonato Italiano,
promovido pela rdio italiana RAI2.
10
PVC: Voc... voc jogador? Eu sou jornalista. Eu sou jornalista. A gente transmitiu aqui na ESPN Brasil todos
os jogos da Juventus, a Juventus fez a pior campanha em quarenta anos, muita gente criticou voc durante a
temporada. Muita gente! Eu no estou discutindo se voc tinha que estar na lista ou no, no foi essa a
pergunta. A pergunta foi: Por que que a gente deve acreditar que voc vai fazer uma grande copa do
mundo...
11
[SILNCIO]
APRESENTADOR DO PROGRAMA: Eu acho que ele desligou...
Minutos depois, o jogador retornou a ligao e pediu desculpas pelo
ocorrido, mas ressaltando que achava que a pergunta do PVC fora inadequada
para aquele momento, que era de alegria por ele ter sido convocado para uma
Copa do Mundo. Ainda assim, Felipe Melo tentou respond-la, defendendo-se
pelos nmeros que, segundo ele, naquela temporada, eram ainda melhores que na
temporada anterior. O jornalista PVC se deu por satisfeito, mas visivelmente
constrangido e contrariado com a forma como o assunto fora conduzido.
Este episdio ganhou certa repercusso, sobretudo na Internet, como
geralmente ocorre quando h um entrevero mais rspido entre entrevistador e
entrevistado. Mas o singular no episdio que h nele uma curiosa inverso de
papis. J h bastante tempo, os jornalistas que costumam, em nome da
objetividade jornalstica, utilizar os nmeros para confirmar ou refutar uma tese.
Curiosamente, o jornalista em questo, PVC, particularmente famoso por utilizar-
se de nmeros e estatsticas em seu trabalho3. Porm, nesse caso, foi o jogador
quem defendeu o discurso da objetividade, chegando a colocar em questo a
competncia do jornalista, e recomendando-lhe a forma correta de se trabalhar.
A discusso entre o jogador e o jornalista ilustra bem o objetivo deste
trabalho. Pretende-se nele investigar como a mdia utiliza as estatsticas nas
coberturas esportivas. O objetivo, porm, no fazer um trabalho matemtico: o
interesse analisar a estatstica enquanto recurso discursivo, procurando
demonstrar como o seu uso se insere na viso de jornalismo dominante, e que
tem como princpios a imparcialidade e a objetividade.
A partir de alguns exemplos gerais, ser discutido se a cobertura mais
objetiva pode entrar em conflito com outros recursos comuns no campo do
jornalismo esportivo: o apelo emoo, a criao de mitos e lendas do esporte.
Pretende-se investigar se as estatsticas no esporte podem ser, de fato, dados
definitivos sobre o desempenho dos atletas, tomando alguns exemplos em
3
Sobre o jornalista PVC, recomenda-se a leitura do perfil dele, feito pelo jornalista Joo Moreira Salles, na revista Piau, edio n 17, de fevereiro de 2008. (disponvel em http://revistapiaui.estadao.com.br/outras-edicoes/sumario/edicao-17.)
12
diferentes esportes, mas focando no caso emblemtico do futebol, que no Brasil o
esporte que possui maior espao de cobertura pela mdia.
No primeiro captulo sero apresentados alguns temas gerais de discusso
sobre o jornalismo, como a sua identidade, a especializao e a formao dos
profissionais do campo. O objetivo contextualizar o jornalismo esportivo, que aqui
ser entendido como subrea temtica do campo jornalstico, possuindo as
caractersticas basilares do jornalismo em geral, alm de procedimentos
especficos decorrentes do seu tema de cobertura.
Nesta sequncia, o segundo captulo tratar do esporte e suas
especificidades, tentando demarcar seu lugar na sociedade em geral, na mdia e na
Academia. Este captulo tentar contextualizar e delimitar a viso sobre o esporte
que ir permear o trabalho.
Aps definidas as bases e os conceitos em que se assentam o jornalismo
esportivo, no terceiro captulo ser discutido o uso que se faz dos nmeros e das
estatsticas no esporte e na sua cobertura jornalstica, investigando o quanto eles
se conectam aos interesses do pblico e aos procedimentos e princpios clssicos
do jornalismo contemporneo.
Espera-se com este trabalho contribuir para uma discusso sobre a
importncia do jornalismo esportivo, para pesquisas que visem estudar e esclarecer
as complexas relaes existentes entre um discurso terico do fazer jornalstico e a
prxis; investigaes acerca da construo de conhecimento a partir do jornalismo
e seu compromisso tico da busca pela verdade, sem, no entanto, desconsiderar,
durante o processo, os aspectos sociais e culturais, alm do papel fundamental que
o esporte detm na sociedade contempornea.
13
1. O JORNALISMO
1.1 O que o Jornalismo?
Os jornalistas Herdoto Barbeiro e Patrcia Rangel, no seu livro Manual do
Jornalismo Esportivo, afirmam, logo na introduo, que jornalismo jornalismo,
seja ele esportivo, poltico, econmico, social. (2005, p. 13). O motivo desta
afirmao tautolgica afastar a desconfiana com que historicamente o jornalismo
esportivo visto, tanto pelos prprios jornalistas quanto pela sociedade. Por ser o
esporte uma atividade profundamente ligada emoo e, desta forma,
teoricamente, alocado em oposio racionalidade, objetividade, imparcialidade,
princpios dominantes no jornalismo contemporneo , por ser associado ao lazer,
ou seja, no sendo considerado parte das coisas srias da vida, tradicionalmente
o jornalismo esportivo no goza do mesmo prestgio editorial de outras reas, tais
como a poltica e a economia4. Mas, como se ver adiante, o esporte, por qualquer
ngulo ou prisma que se analise, cresceu demais ao longo do sculo XX, e assim
tambm o acompanhou o jornalismo esportivo. Independente de qualquer
considerao sobre a utilidade, a seriedade ou a importncia do esporte na vida
das pessoas, no se pode negar o espao que ele ocupa na sociedade. O esporte
um fato na vida das pessoas. E acreditamos que tambm o seja o jornalismo que
se dedica a notici-lo.
Mesmo que mirando no caso do jornalismo esportivo - e, desta forma
possuindo um especial interesse a este trabalho - a afirmao de Barbeiro e Rangel
tambm serve de gancho para uma questo ainda maior, pois atinge um problema
central ao jornalismo como um todo, que a sua identidade. Se, para o jornalismo
esportivo, a possvel pendncia ainda legitimar-se como jornalismo, como uma
coisa sria, para o jornalismo em geral a pendncia, se h, legitimar-se como
um campo do saber, do conhecimento. Para resolver isso, a etapa inicial costuma
4 evidente que uma discusso sobre a emoo e a razo, ou uma definio sobre o que ou no
srio e importante para a vida humana ultrapassa as pretenses deste trabalho; estas so questes amplas, multi-disciplinares, que j produziram e ainda produzem caudalosos estudos de toda sorte de pensadores. Mas preciso escolher um caminho a seguir, e neste trabalho seguiremos a direo que acreditamos estar mais ligada a um senso comum; a que coloca o esporte e o jornalismo esportivo em um hall de assuntos acessrios ou coadjuvantes para a sociedade.
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ser o estabelecimento de uma definio clara. Mas, neste caso, o jornalismo parece
sofrer do mesmo mal que acomete toda a comunicao social: mais fcil fornecer
uma srie de pistas, exemplos ou analogias que aproximem, que consigam dar
alguma dimenso do que eles sejam, do que dizer com preciso o que de fato eles
so. Parece sintomtico que, numa edio relativamente recente (2009) de um
dicionrio de comunicao, organizado pelo conceituado professor Ciro Marcondes
Filho, esteja ausente o verbete jornalismo, puro e simples, embora haja, por
exemplo, jornalismo on-line e jornalismo literrio. No obstante, os verbetes
economia poltica do jornalismo e histria do jornalismo, no mesmo dicionrio,
so bastante extensos5.
Para Nelson Traquina, absurdo pensar que seja possvel responder
pergunta o que o jornalismo numa frase, ou at mesmo num nico livro (2005;
p. 19). O autor prefere trabalhar com o conceito de campo jornalstico, ao invs de
apenas jornalismo, nas bases do conceito de campo proposto pelo socilogo
Pierre Bourdieu6. Para Traquina, importa mais identificar as condies em que se
estabelecem o campo jornalstico, a natureza da atividade, sua matria-prima
(acontecimentos) e seu produto (a notcia); analisando as razes pelas quais o
produto jornalstico o que , aproximar-se- da compreenso do que de fato seja
o jornalismo. As noticias so como so por conta de uma srie de fatores
constitutivos, que podem ser de origem ideolgica, cultural, histrica, econmica. O
jornalista o sujeito central do campo, mas no o nico. Ningum detm de
forma absoluta o domnio da notcia. A pergunta o que o jornalismo? demanda
antes saber o que notcia, e por que elas so do jeito que so. Qual o papel do
jornalismo numa sociedade democrtica? As respostas oferecidas por Traquina
apontam para uma noo de que o jornalismo uma construo social da
realidade, que se realiza atravs de diversas interaes sociais: a dos profissionais
do campo jornalstico entre si; a destes com as fontes ou agentes sociais, que
utilizam as notcias como recurso social para as suas estratgias de comunicao;
5 MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Dicionrio da Comunicao. So Paulo: Paulus, 2009. A referida
obra trata-se de um esforo coletivo de diversos acadmicos, especialistas nos estudos de comunicao social, em criar uma obra referencial para o estudo da comunicao, a partir da definio de diversos conceitos-chave da rea. A inexistncia do verbete jornalismo um fato, mas o motivo desta ausncia uma mera especulao, e a meno que fazemos no carrega nenhuma pretenso de crtica negativa ao trabalho.
6 Sobre este assunto, ver Bourdieu, Pierre. Sobre a Televiso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1997.
Em especial, o texto A influncia do jornalismo, presente no mesmo livro.
15
e tambm a interao com a sociedade, que moldam a cultura profissional de todo
jornalista (Ibid).
Entretanto, neste mesmo trabalho o prprio Traquina incita o leitor
coragem de tentar a definio (ibid; p. 19), no que pode ser interpretado como uma
remessa a uma qualidade especialmente admirvel a um bom jornalista: a coragem
de tentar chegar at a verdade. Em seguida, Traquina apresenta uma srie de
definies possveis, cada uma conforme um determinado ponto de vista. De uma
perspectiva potica, o jornalismo pode ser considerado a vida, em todas suas
dimenses, como uma enciclopdia (ibid; p. 19). Da perspectiva dos jornalistas e
sua ideologia profissional, a resposta provvel seria a associao direta do
jornalismo com a realidade. Neste ponto, Traquina faz questo de demarcar a
validade desta noo, declarando um acordo tcito existente entre o jornalista e o
pblico que torna possvel dar credibilidade ao jornalismo. Embora seja sempre
possvel questionar a verdade de uma afirmao jornalstica, seu pressuposto
sempre tratar-se de algo real. Traquina diz que:
[...] o principal produto do jornalismo contemporneo, a notcia, no fico, isto
, os acontecimentos ou personagens das notcias no so invenes dos
jornalistas. A transgresso da fronteira entre realidade e fico um dos maiores
pecados da profisso de jornalista, merece a violenta condenao da comunidade
e quase o fim de qualquer promissora carreira de jornalista. (ibid; p. 18)
O jornalismo, portanto, uma atividade que se incumbe de informar a um
pblico acontecimentos reais. O que equivale a dizer, em uma definio bastante
comum, que o que o jornalismo faz contar estrias (reais). Esta outra das
definies possveis apresentadas por Traquina, que finaliza sua exposio
lembrando que, apesar das muitas definies possveis, a que ele considera que
deve ser repelida a que tenta reduzir o jornalismo a um mero domnio de
tcnicas, de linguagem, de formatos, e os jornalistas a meros empregados,
trabalhadores numa fbrica de notcias. Traquina compreende que o jornalismo
uma atividade intelectual, e cita Pierre Bourdieu, para quem o jornalismo era um
concorrente (da cincia) na busca por espao no campo intelectual. (ibid; p. 22)
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1.2 Jornalismo como Conhecimento
Ao narrar os acontecimentos, o jornalismo se incumbe, da mesma forma, a
escrever a Histria, com H maisculo, ou seja, narrar o presente, contextualizando
com o passado, servindo de ponte para o entendimento futuro. Uma das
afirmaes mais freqentes sobre o jornalismo a de que ele a histria escrita
queima-roupa. A afirmao parece verdadeira, e admitiremos aqui que ela seja.
Ela nos joga ento para dois sentimentos distintos: um que vislumbra a grandeza, e
o poder, da atividade jornalstica, jogando sobre ela uma luz que sublinha a
importncia natural que possui a atividade de registrar a Histria; e um outro
sentimento que, ao perceber a luz jogada sobre o jornalismo, atm-se mais s
reas de sombra causadas, isto , questiona-se sobre a capacidade do jornalismo
de realizar competentemente tal tarefa.
Sobre esta questo, que versa sobre o mago da atividade jornalstica, o
jornalista e pesquisador Eduardo Meditsch fez importantes consideraes.
Tentando responder se o jornalismo seria uma forma de conhecimento, ele
posicionou-se de forma afirmativa questo. Ele lembra que a era moderna, com
seu imenso avano tecnolgico, principalmente a partir do sculo XIX, acabou por
realizar o sonho dos filsofos positivistas de entronizar a Cincia como nica fonte
de conhecimento digna de crdito (MEDISTCH:1997). Ou seja, isto preconiza que,
se a inteno atingir (ou pelo menos aproximar-se) da verdade, h que se usar de
mtodos cientficos. Meditsch questiona esta supremacia da Cincia, fazendo
notar que a prpria noo do que seja conhecimento relativa. Ele menciona o
trabalho de Robert Park, que distinguiu o conhecimento de alguma coisa do
conhecimento sobre alguma coisa, sendo o primeiro sinttico e intuitivo, e o
segundo sistemtico e analtico, dentro da tradio do pragmatismo (ibid). O
jornalismo, nesta viso, alinha se primeira forma de conhecimento. Para Park, o
jornalismo realiza para o pblico as mesmas funes que a percepo realiza para
os indivduos (apud ibid); para Lage, o jornalismo descende da mais antiga e
singela forma de conhecimento (apud ibid); e Genro Filho, por sua vez, ressalva
que o jornalismo como gnero de conhecimento difere da percepo individual pela
forma sua de produo, pois nele a imediaticidade do real um ponto de chegada,
e no de partida (apud ibid).
17
Dando seqncia ao raciocnio, Meditsch afirma que a ressalva feita por
Genro Filho importante para discutir os problemas do jornalismo como forma de
conhecimento e seus efeitos. Diz ele que o jornalismo, ao se fixar na imediaticidade
do real, opera no campo lgico do senso comum, sendo esta uma caracterstica
definidora fundamental (ibid). Citando Boaventura de Souza Santos, Meditsch
acrescenta que o conhecimento do senso comum era desprezado pela teoria, pois
toda a cincia moderna se constituiu com base justamente em sua negao.
Entretanto, desta vez citando Peter Berger e Thomas Luckmann, ele faz ver que a
negao do senso comum (e, por extenso, do jornalismo) como origem apropriada
para o conhecimento ignora o importante fato do inevitvel retorno, mesmo da mais
avanada cincia, vida cotidiana, atitude natural. E "a atitude natural a atitude
da conscincia do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que
comum a muitos homens (ibid). Ora, independente de especializaes, de
profisses, ocupaes, a vida em sociedade pressupe aes e conhecimentos
comuns. De fato, negar o conhecimento comum, ou apenas comprov-lo, a
dedicao das Cincias. No entanto, ao jornalismo fica a incumbncia de trabalhar
este novo conhecimento, comunic-lo. Assumindo que a natureza o eterno
retorno ao senso comum, ao jornalismo cabe a interface, a disseminao das
novidades 7 aos pblicos, independente da origem da informao, se das Cincias,
das Artes, da Poltica e, por que no, dos Esportes.
Mas, ainda segundo Meditsch, justamente o fato de operar no campo
lgico da realidade dominante (o senso comum) que assegura ao modo de
conhecimento do jornalismo tanto a sua fragilidade quanto a sua fora enquanto
argumentao (ibid).
frgil [o jornalismo], enquanto mtodo analtico e demonstrativo, uma vez que no pode se descolar de noes pr-tericas para representar a realidade. forte na medida em que essas mesmas noes pr-tericas orientam o princpio de realidade de seu pblico, nele includos cientistas e filsofos quando retornam vida cotidiana vindos de seus campos finitos de significao. Em conseqncia, o conhecimento do jornalismo ser forosamente menos rigoroso do que o de qualquer cincia formal mas, em compensao, ser tambm menos artificial e esotrico. (ibid)
7 Neste sentido, o termo em ingls que significa notcia, news - cuja traduo literal corresponde a
novas - mostra-se bastante apropriado.
18
As concluses de MEDITSCH avanam no sentido da considerao do
jornalismo de apenas um meio de comunicao para um meio de conhecimento. E
este enfoque, esta outra perspectiva, traz importante implicaes. Com ela as
exigncias em torno do contedo do trabalho jornalstico ficam maiores, e por
conseqncia, o nvel da qualificao dos jornalistas. Se, por um lado, o fato de
operar no senso comum limita a profundidade das anlises, o papel de seleo e
interpretao dos acontecimentos do mundo requer, dos jornalistas, um saber
plural e afinado com as partes, fontes e destinos das mensagens.
1.3 Especializao no Jornalismo
Em uma das definies de jornalismo proposta por TRAQUINA, vistas acima
- a que aplicava uma viso potica - foi dito que o jornalismo era a vida, em todas
suas dimenses, como uma enciclopdia. De fato, basta abrir qualquer jornal, que
no seja monotemtico, para perceber que ele se assemelha muito a uma
enciclopdia, no que tange pluralidade de assuntos e a diviso razoavelmente
organizada em reas de interesse (que no meio jornalstico so chamados
editorias). E, ao entrar numa banca de jornal, por exemplo, a sensao que se
tm de estar em um grande supermercado, com prateleiras cheias de produtos
variados; na verdade no apenas uma sensao, a realidade mesmo. Uma
banca de jornal configura-se como uma grande casa de comrcio de informao,
onde so vendidos produtos jornalsticos diversos, que versam sobre os mais
variados temas da vida.
A imagem da banca de jornal completa para ilustrar o grau de
especializao que o jornalismo moderno possui, seja no tocante variedade de
produtos oferecidos (jornais, revistas semanais, mensais etc.) ou de temas que o
jornalismo trabalha. Segundo dados da Associao Nacional de Editores de
Revistas - ANER, no ano de 2010, foram editados no Brasil 4705 ttulos de
revistas8. E, na tabela da ANER sobre as vinte revistas mensais de maior
circulao (tambm em 2010), tm-se um total de 17 revistas de contedo
8 Dados disponveis em http://www.aner.org.br/Conteudo/1/artigo177215-1.asp. ltima consulta em
03.06.2012.
19
considerado jornalstico (as outras trs so de histrias em quadrinhos), sendo que
uma tem como tema educao (e a campe de vendas9); sete so de assuntos
do universo feminino; duas so sobre cincia; duas sobre sade e bem estar;
duas sobre decorao; uma sobre negcios; uma sobre automveis; uma sobre
astrologia e uma sobre variedades10.
Este exemplo serve para demonstrar a variedade de assuntos que o
jornalismo cobre, entre os quais se enquadra o esporte. Muito se discute sobre a
pertinncia de denominar as reas temticas em tipos de jornalismo. Jornalismo
econmico, jornalismo poltico, jornalismo esportivo; compreensvel a inteno
desta demarcao, que sobremaneira ressalta as especificidades de cada rea,
assim como sempre especfico um objeto de estudo cientfico; mas, vale reforar
a afirmao de Barbeiro e Rangel que mencionamos anteriormente: jornalismo
jornalismo, seja ele esportivo, poltico econmico ou social.
A afirmao de Barbeiro e Rangel, jornalismo jornalismo contm,
portanto, uma questo de fundo, que a especializao do jornalismo (e dos
jornalistas) em reas especficas de conhecimento. Muito se critica a capacidade
dos jornalistas em compreender suficientemente as reas temticas das quais
fazem cobertura, colocando em causa o seu mtodo, supostamente anticientfico,
pobre, quando no deturpador da realidade. o que foi discutido no tpico sobre o
jornalismo como conhecimento. Mas tambm cumpre focar a ateno no que tange
especializao do jornalista, na sua formao, no que ele deve conhecer para
exercer a profisso. A compreenso da problemtica da formao do jornalista
necessria para contextualizar a freqente desconfiana com que os jornalistas em
geral - e os jornalistas esportivos, para esta anlise particular - so vistos, e porque
importante demarcar que a atividade jornalstica no prescinde de conhecimentos
especficos e de alto grau de qualificao, no sendo de nenhuma forma uma
atividade banal; pelo contrrio, uma atividade freqentemente complexa e,
sempre, de grande responsabilidade.
9 Este tambm um exemplo de como o uso de estatsticas deve ser cuidadoso, conforme discorrer
mais adiante este trabalho, mas com foco na rea de esportes. Aqui, deve ser observado que a revista de educao citada, a Nova Escola, editada pela Fundao Victor Civita, do grupo Abril, detm este ttulo h anos. Porm, sua alta circulao no se deve a nenhum interesse especial do povo brasileiro ao tema educao, como a pesquisa pode sugerir o que seria uma tima notcia mas sim ao volume de assinaturas da revista que so feitas por escolas pblicas e privadas, um nicho naturalmente grande e relativamente estvel do mercado consumidor.
10 Dados disponveis em http://www.aner.org.br/Conteudo/1/artigo42418-1.asp. ltima consulta em
03.06.2012
20
Voltando ao texto de Eduardo Meditsch (1997), nele h a citao de uma
observao interessante do intelectual austraco Karl Kraus, crtico ferino do
jornalismo do inicio do sculo XX, na qual se reflete uma viso bastante
apocalptica sobre a atividade jornalstica, que inclusive influenciou, anos depois,
muitos representantes da Escola de Frankfurt:
O que a Sfilis poupou ser devastado pela imprensa. Com o amolecimento cerebral do futuro, a causa no poder mais ser determinada com segurana. (...) A imagem de que um jornalista escreve to bem sobre uma nova pera como sobre um novo regulamento parlamentar tem algo de acabrunhante. Seguramente, ele tambm poderia ensinar um bacteriologista, um astrnomo e at mesmo um padre. E se viesse a encontrar um especialista em matemtica superior, lhe provaria que se sente em casa numa matemtica ainda mais superior. (KRAUS apud MEDISTCH: 1997)
O pensamento de Kraus sobre a imprensa, apesar de efusivo e um pouco
datado, ainda encontra eco nos dias atuais. A formao dos jornalistas uma
discusso que no sai de pauta, e sempre ganha corpo quando acontecem
equvocos na cobertura jornalstica, ou quando se pe em causa a atuao da
imprensa como quarto poder, sobretudo nos freqentes casos em que rgos da
imprensa, ou diretamente os jornalistas, so acusados de prticas abusivas ou
antiticas no exerccio da profisso.
O assunto foi bastante discutido, por exemplo, nos meses que antecederam
a deciso judicial sobre a obrigatoriedade de diploma de nvel superior, para o
exerccio da atividade de jornalista no Brasil. No h nenhum padro mundial sobre
o assunto; h pases cuja legislao exige e outros no. Aqui no Brasil, aps anos
de debate, em 17 de junho de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que
o diploma de jornalismo no pode ser obrigatrio para o exerccio da atividade.
Regia ento no pas um Decreto-Lei de 1969, que dispunha sobre a profisso de
jornalista, e obrigava o diploma. Mas, no entendimento de alguns sindicatos de
jornalistas e proprietrios de jornal, tal lei teria se tornado nula, pois suas
disposies contrariavam os princpios de liberdade de imprensa expressos na
Constituio de 1988. Aps decises favorveis e desfavorveis abolio do
diploma, ao longo dos anos, em tribunais inferiores, a deciso final coube ao STF,
21
que finalizou a contenda em favor do veto ao artigo 4, inciso V do Decreto-Lei
972/69 Lei, declarando-o inconstitucional11.
importante notar que a deciso de no-obrigatoriedade do diploma, bem
como toda a discusso que ela envolveu, no diz respeito apenas ao aspecto
tcnico, acadmico ou profissional, que, a princpio, deveria comandar um
julgamento sobre os requisitos necessrios realizao de uma atividade
profissional. A questo envolveu diversos fatores polticos e agentes econmicos.
Um dos argumentos sobre a invalidade do Decreto-Lei era de que ele fora criado
na poca da ditadura militar, e que a obrigao da deteno de diploma fora
apenas um artifcio para atingir jornalistas contrrios ao regime. Mas, naturalmente,
de carona com este argumento, viajaram os interesses de muitos proprietrios de
veculos de comunicao. E, tambm de carona, viajou um argumento que faz eco
ao pensamento de Karl Kraus: trata-se do apelo de outros profissionais, tais como
cientistas, economistas, diplomatas, que h anos praticam o jornalismo nos meios
de comunicao, discorrendo sobre as notcias de suas reas, e que com a queda
do Decreto-Lei passaram a ter o seu trabalho na imprensa legitimado.
As prateleiras das livrarias so repletas de manuais e livros que ensinam
como fazer jornalismo. E, de fato, a atividade de jornalista sempre foi muito
associada prxis, ao aprendizado direto das redaes. O ensino superior em
jornalismo surgiu na segunda metade do sculo XIX, nos Estados Unidos, e mesmo
assim a presena de graduados no se tornou de imediato um padro nas
redaes. Michael Schudson cita uma passagem em que um reprter, recm
formado na prestigiada Universidade de Cornell, vai pedir emprego para Horace
Greeley, editor do New York Tribune, por volta de 1870, e este recusa, informando
que pouco se importava com o diploma, e que preferiria que o reprter tivesse se
formado na oficina de um tipgrafo (2010; p. 85). A primeira faculdade de
jornalismo do Brasil, e da Amrica Latina, foi a faculdade Csper Libero, em So
Paulo, fundada apenas em 1947. Grandes jornalistas brasileiros, do inicio do sculo
XX, at hoje reverenciados, jamais pisaram em uma universidade. Em geral, os
jornais eram um destino natural para quem gostava de escrever, e para muitos que
exerciam a profisso no por planejamento de carreira - que coisa que tm
existncia relativamente recente - mas sim pelos acasos da vida, sendo o
11
O texto revogado do Decreto-Lei pode ser encontrado no stio http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0972.htm. ltima consulta em 24-03-2012.
22
jornalismo, desta forma, apenas um emprego como outro qualquer. O consagrado
jornalista Cludio Abramo, que foi editor do Estado De S. Paulo e da Folha de S.
Paulo entre os anos 50 e 70, em relato autobiogrfico reunido no livro A Regra do
Jogo, conta como fora sua formao em jornalismo:
Tive uma formao clssica, humanstica. Cresci numa famlia de revolucionrios;
meu av era anarquista, todos os meus irmos eram trotsquistas. Sou autodidata,
no freqentei escola. Em 1935, com a represso do Estado Novo, minha famlia
se espalhou. Alguns irmos tiveram que se esconder, outros saram do pas, outro
foi preso. S muitos anos depois, em 1945, que a famlia se juntou novamente.
Por isso no pude ir escola; s fiz o grupo escolar, e um curso secundrio muito
precrio, que abandonei sem terminar.
Mas li muito, desde menino, e sempre freqentei pessoas que me ajudaram
intelectualmente. Minha famlia era formada de gente culta, que lia muito. Enquanto
cresci, encontrei em minha casa muitas obras que acabei lendo porque estavam l.
Li Shakespeare, Flaubert, muita literatura revolucionria, os clssicos, Dostoievski.
Essa foi a minha formao. (ABRAMO; 1989, p. 23)
O predomnio da informalidade, do jornalismo considerado como ofcio
menor, de esprito passageiro, caractersticas at meados do sculo XX (ao menos
no caso brasileiro), tambm se deduz da leitura de um depoimento do jornalista
esportivo Adriano Neiva, conhecido como De Vaney, citado por Milton Pedrosa no
texto A crnica esportiva e o cronista de futebol, por sua vez lembrado em
diversos trabalhos sobre o tema, entre eles o do Dr. Jos Carlos Marques,
intitulado O Estigma de Ser Jornalista Esportivo, e o do jornalista Mauricio Stycer,
Jornalismo Esportivo: 110 anos sob Presso. Segundo De Vaney:
As funes no eram fixas nem, muito menos, compensadoramente remuneradas. A maioria dos cronistas trabalhava de graa, s para ter o ensejo de escrever em jornal, j que essa era a sua inclinao, e para poder, principalmente, defender o seu clube, porque, naquele tempo, tal como hoje, o cronista tinha seu clube preferido, com a diferena de que, antes, quela poca, ningum fazia segredo disso. Pelo contrrio: eram comuns os escudos lapela dos cronistas e indispensvel a sua presena nas comemoraes dos triunfos. O redator profissional, mas que fazia da imprensa um simples bico, tanto podia ser cronista de esportes no domingo, como redator policial na segunda-feira, crtico teatral na tera, reprter de rua na quarta, observador poltico na quinta ou o que no era raro tudo isso ao mesmo tempo... No havia especializao. (apud PEDROSA: 1970, in STYCER: 2012 e MELO: 2012)
23
Do depoimento de De Vaney, importante destacar ainda dois aspectos j
comentados. Primeiro quanto ligao do esporte a fatos menores da vida, fait
divers12, considerado de pequena importncia, indigno de uma cobertura
profissional, do incio do sculo XX (tempo a que De Vaney se refere) at seus
meados. O esporte, assim, fora coberto sobretudo por seus interessados, sem
desapegos de paixo por clubes, cidades e etc. Outro aspecto ao qual De Vaney se
refere falta de especializao um jornalista discorria sobre todo e qualquer
assunto. Mas no possvel deduzir, da afirmao, o que pensa De Vaney sobre
isso, embora o tom parea ser de crtica falta de especializao. De qualquer
forma, a questo que fica quanto a este tpico, e que foi o motivo da disputa
travada no STF, no se d entre a necessidade ou no da especializao ela
hoje dada como um fato. O que se discute quem deve se especializar se o
jornalista, nas reas que ir cobrir; ou os jornais, trazendo para o seu corpo
especialistas nativos das reas que sero cobertas.
Assim, da simples afirmao tautolgica de Barbeiro e Rangel, foi possvel
deduzir uma srie de questes inerentes ao jornalismo em geral, desde a sua
definio at aos problemas ligados a formao que deve ter um jornalista. Mas, o
cerne da afirmativa, para os autores, era mostrar que o jornalismo esportivo
tambm jornalismo. Afinal, ele tambm faz uso do conjunto de tcnicas e
procedimentos que caracterizam o jornalismo como atividade profissional, e os
jornalistas dedicados ao tema no podem escapar de sua deontologia.
12
Em francs.No portugus, fatos diversos (traduo nossa). O termo usado no jargo jornalstico para designar os fatos no categorizveis nas grandes editorias (poltica, economia), e cujo contedo normalmente refere-se a curiosidades, casos pitorescos, acontecimentos singulares.
24
2. O ESPORTE
2.1 A Importncia e o Lugar do Esporte
J h algum tempo (dcadas, pelo menos) que uma indagao sobre a
importncia ou no do esporte na sociedade, enquanto tema a ser estudado, tem
se mostrado desnecessria. Exemplos no faltam para demonstrar o enorme
espao que ele ocupa na vida social, e eles podem ser dados a partir de diversos
pontos de vista, mirando diferentes aspectos desta participao. Eles podem ser
dados a partir de questes sociais, ou psicossociais, tais como o conhecido fato de
que a maioria dos garotos brasileiros, sobretudo os das classes sociais de menor
poder aquisitivo, tem como sonho de suas vidas serem jogadores profissionais de
futebol. Podem ressaltar, ainda, aspectos sociolgicos, psicolgicos,
comunicacionais, econmicos e polticos da sociedade, como na questo do
esporte contemporneo servir de palco para a transformao de atletas em dolos
semelhantes a astros de Hollywood. No Brasil, s segundas-feiras (no mnimo), o
assunto dominante nas ruas, nos escritrios, nas padarias, nos transportes
pblicos, em quase todo lugar, a rodada do fim de semana dos campeonatos de
futebol. E nada disso novidade; so realidades h muito presentes na sociedade,
e se ainda causam algum espanto a algum somente queles observadores mais
atentos e interessados.
Muitas das maiores audincias da televiso mundial acontecem nas
coberturas dos eventos esportivos13. A Copa do Mundo de Futebol e as
Olimpadas, competies que tradicionalmente atraem a ateno global, agora tm
a companhia de finais de campeonatos de futebol continentais, ou mesmo
nacionais, alm de outras competies de esportes que nem so to praticados no
mundo14. Ao longo dos ltimos 30 ou 40 anos, diversas modalidades esportivas
promoveram mudanas em suas regras para adaptar-se s exigncias de canais
13
A informao do autor, com todo o risco, pois no foi encontrada uma pesquisa global que por si s atestasse a afirmao, comparando o esporte com a audincia de outros programas. No entanto, a comparao, sem rigor cientfico, pde ser feita a partir da verificao de diversos rankings disponveis na Internet, mais ou menos ordenados, a partir de pesquisa simples em buscadores eletrnicos. Para um ranking mais confivel, especfico das audincias do esporte, recomenda-se a matria da revista The Economist, sobre a audincia entre 2009 e 2010, no site http://www.economist.com/node/15491106. (Em ingls. ltimo acesso em 24-03-2012)
14 Por exemplo, respectivamente, a Liga dos Campees da Europa de Futebol, e o Superbowl, a final do
campeonato nacional de futebol americano, dos Estados Unidos.
25
de televiso15. Os contratos de transmisso de eventos esportivos pela TV, de
marketing esportivo, de patrocnio em camisas de clubes, ou mesmo a criao de
equipes para disputa de campeonatos, alcanam a cada ano cifras maiores (alguns
j na casa dos bilhes de dlares/euros)16, atraindo a ateno cada vez maior de
agentes financeiros, governos, empresas de publicidade, todos interessados em
participar deste gigantesco e lucrativo nicho da economia.
Desta forma, considera-se nesta anlise que o esporte nas sociedades
contemporneas seja um fato social, que possui existncia fora das conscincias
individuais, da maneira que definiu Emile Durkheim. Segue-se procedimento similar
ao indicado j no fim dcada de 1980 pelo socilogo Ronaldo Helal, em obra
voltada formao de novos pesquisadores em cincias sociais, em que se
tentava incentivar a emergncia na Academia de uma verdadeira sociologia do
esporte (Helal: 1990). Nesta obra o autor j expunha um arrazoado de fatos que
demonstravam a quase que onipresena do esporte na vida das pessoas. O autor
convida o leitor a um passeio em Nova Iorque, a fim de observar que, apesar da
concentrao de toda a gama de atividades, poltica, econmica, artes, cincias, no
cosmopolitismo caracterstico daquela cidade, para sua surpresa, as pginas mais
lidas dos jornais de l, ele garante, sero as de esporte. Assim, o autor especula
sobre a amplitude deste fenmeno social, que impregna profundamente a vida
cotidiana do homem moderno, de modo geral (ibid., p. 11). Mais adiante, conclui
assim pelo entendimento do esporte como fato social:
Note que estamos aqui diante de um daqueles fenmenos que se impem desde cedo em nossas vidas. Assim como a lngua ou a religio, o esporte nos herdado pelo nosso meio no incio da infncia. E a sua presena entre ns to impositiva que, muitas vezes, aquele que no se liga ao esporte de seu grupo social se sente, de certa forma, como uma pessoa no integrada, que vive margem da sociedade. [...] Sendo assim, o primeiro passo para uma compreenso sociolgica do esporte no mundo moderno encar-lo como um fato social, isto , como algo socialmente construdo, que existe fora das conscincias individuais de cada um, mas que se impe como uma fora imperativa capaz de penetrar intensamente no cotidiano de nossas vidas, influenciando os nossos hbitos e costumes. (HELAL: 1990, p. 12 e 13)
15
O vlei, por exemplo, mudou sua regra de pontuao em 1997, a fim de diminuir o tempo das partidas, que sempre foi um problema para as transmisses de TV.
16 A ttulo de exemplo, segundo o site Futebol Finance, os clubes da Premier League, a 1 diviso do
campeonato ingls de futebol, receberam um total de 952.7 milhes (1.080 milhes de Euros) referentes a direitos de transmisso de TV do campeonato 2010/2011. Ver em http://www.futebolfinance.com/as-receitas-tv-dos-clubes-da-premier-league-em-201011. (ltimo acesso em 24-03-2012)
26
Ainda nesta obra, o autor comenta o descaso que o esporte viveu pelas
cincias sociais durante muitos anos. Atribui tal fato a uma inclinao dos
intelectuais da rea a negligenciar os temas que se interessavam pelo cotidiano
das pessoas, entendendo como assuntos de real interesse, dignos de empenho,
apenas aqueles relativos a economia ou a poltica (ibid, p. 14).
Entretanto, passados mais de 20 anos desta obra, parece que, para o autor,
tal descaso est superado, ou pelo menos diminudo. interessante mencionar o
que ele escreveu em texto de apresentao da Revista Logos, em 201017, cujo
tema era Comunicao e Esporte, e da qual ele foi o editor convidado. Ele sintetiza
a situao atual do esporte perante as cincias sociais no Brasil:
A literatura acadmica sobre o esporte comeou a se constituir no Brasil alguns anos aps a publicao do livro Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira, organizado por Roberto DaMatta e publicado em 1982. At este momento, os estudos eram escassos e havia uma tendncia a se utilizar uma perspectiva apocalptica (nos termos de Umberto Eco), influenciada pelo marxismo, que considerava o esporte de massa uma poderosa fora de alienao dos dominados. Mais adiante, a perspectiva apocalptica deu lugar a outra que pretendeu entender o fenmeno esportivo como expresso da cultura, como uma forma de se entender melhor a sociedade em que vivemos. Ainda naquele perodo, era comum que os escritos sobre a temtica lamentassem o descaso das cincias sociais sobre o esporte de massa, principalmente sobre o futebol, um fenmeno to abrangente no pas. Passadas quase trs dcadas desde a publicao da obra supracitada, podemos dizer que o descaso inexiste e que hoje proliferam estudos e grupos de trabalhos em congressos cientficos que tratam do tema. (HELAL, 2010)
Um outro exemplo que refora, ao mesmo tempo em que relativiza o espao
atual do esporte na Academia, pode ser obtido da experincia da Intercom
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao, que organiza
um dos principais congressos acadmicos da rea de comunicao social no
Brasil. Ela j dispe, h alguns anos, de um ncleo de pesquisa denominado
Comunicao e Esporte. Mas a vice-presidente da instituio, Marialva Carlos
Barbosa, lembra que a constituio do grupo no foi fcil, havendo rejeio
proposta.18 O tema proposto, e aceito, em Assemblia Geral, para o congresso
nacional da entidade, em 2012, "Esportes na Idade Mdia - diverso, informao
17
A Revista Logos a revista cientfica do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UERJ. A edio a que se refere o Vol. 17, n 2, disponvel no stio http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/index (ltimo acesso em 24-03-2012)
18 Em entrevista concedida para o site da instituio, disponvel em:
http://intercom2.tecnologia.ws/index.php?option=com_content&view=article&id=2236:destaques-intercom-2012-aborda-tema-inedito-que-sofre-com-pouca-aceitacao-da-academia&catid=214&Itemid=103. (ltimo acesso em 24-03-2012)
27
e educao. , no entanto, a primeira vez que o esporte tema do encontro anual
da entidade, em 35 anos que ela existe. Em uma enquete realizada no site da
instituio, entre outubro e novembro de 2011, onde se perguntava a opinio dos
visitantes do site sobre a escolha do tema, houve quase 40% de rejeio. Em artigo
no prprio site, abordando o resultado da enquete19, alguns especialistas
especularam sobre as causas da rejeio. O pesquisador e diretor administrativo
da entidade, Jos Carlos Marques, lembrou que a enquete no uma pesquisa
com rigor cientfico, mas admitiu que ainda h um enorme preconceito da
Academia com tudo que diz respeito ao esporte e a relao do esporte com a
Comunicao20. Disse ainda acreditar que essa posio representa uma miopia da
Academia, que prefere ignorar as mltiplas imbricaes socioculturais que o
esporte estabelece em nosso pas21.
Falando ainda sobre o tema do congresso da Intercom, o pesquisador e
professor da USP (Universidade de So Paulo) e da FECAP (Fundao Escola de
Comrcio lvares Penteado), Ary Rocco, acredita que a Academia no conseguiu
dar ao futebol o valor que ele merece, e que dois fatores geram a rejeio: na
poca da Ditadura Militar, o esporte, em especial o futebol, foi usado para apoiar o
discurso, inclusive no exterior, de que o Brasil era um pas que crescia e se
desenvolvia. Atualmente, o fato de o esporte estar ligado ao entretenimento e ao
mundo empresarial desagrada22.
Sendo unanimidade ou no na Academia, na vida cotidiana a importncia do
esporte est mais do que evidenciada. E o Brasil, apesar do fato de j ser h anos
uma potncia na prtica do esporte mais popular do planeta, o futebol, ter nos
prximos anos um protagonismo indito no esporte como um todo. Como sede da
Copa do Mundo de 2014 e das Olimpadas em 2016, o Brasil atualmente tem o
esporte como catalisador, ou motivador, de uma srie de aes poltico-
econmicas de interesse nacional. A expectativa de grandes obras, melhorias na
19
Informao obtida no site da instituio (www.intercom.org.br). Entre outubro e novembro de 2011, o site promoveu uma enquete para saber a opinio da comunidade acadmica sobre a escolha do tema. O resultado indicou uma rejeio da ordem de 40%, considerada alta, sendo um indcio de que ainda h certa resistncia a se estudar o esporte na Academia. Uma matria sobre o assunto pode ser lida no prprio site, em http://intercom2.tecnologia.ws/index.php?option=com_content&view=article&id=2236:destaques-intercom-2012-aborda-tema-inedito-que-sofre-com-pouca-aceitacao-da-academia&catid=214&Itemid=103. (ltimo acesso em 24-03-2012)
20 Idem nota n 8.
21 Idem nota n 8.
22 Idem nota n 8.
28
infraestrutura do pas e incremento da economia e do bem-estar social. Os eventos
esportivos seriam a cereja do bolo de um enorme processo em que se visualiza o
Brasil como uma das novas potncias econmicas do mundo.
Se de fato toda esta expectativa virar realidade, somente o tempo poder
dizer. Especula-se que, de forma diferente da Copa do Mundo de 1950, quando o
sucesso dentro das quatro linhas era considerado essencial para o projeto de
nao que se criava - num perodo em que o Brasil ainda migrava de um pas
predominantemente rural para urbano - os prximos eventos sero cobrados mais
pelo poder de organizao do pas do que pelo desempenho dos atletas. Embora
tambm possa se considerar o momento como simblico de uma nova passagem,
a de um pas subdesenvolvido para desenvolvido, questiona-se o poder atual do
esporte de acender sentimentos nacionalistas, nos mesmos moldes de dcadas
anteriores. Os atletas, os times, so cada vez mais globais; a seleo brasileira de
futebol raramente joga no pas, e raramente composta por jogadores dos times
locais. difcil acreditar que um eventual fracasso na prxima Copa do Mundo, ou
um mau desempenho dos atletas brasileiros nas Olimpadas do Rio de Janeiro,
possa tornar-se uma catstrofe nacional, semelhana da derrota brasileira na
Copa de 1950. Mas tambm no parece haver um desinteresse da populao pelo
esporte antes o contrrio. O que se percebe que no h mais uma associao
simbitica, como em outros tempos, entre time e povo. A ptria, ao que parece,
no cala mais chuteiras.
Portanto, para alm das quadras, campos, piscinas, ginsios, o esporte
afirma-se como fato social da maior importncia, acionando interesses polticos e
econmicos, pblicos e privados. Se, em algum lugar do passado, ocupava a
mente apenas dos mais jovens e dos mais aficionados, agora ocupa as mentes de
governantes, de economias, de instituies. E o papel da mdia nesse processo
de tal importncia que se torna difcil determinar at que ponto ela parte apenas
passiva, ou seja, que age conforme os acontecimentos, motivada pelo curso dos
fatos, e at que ponto ela ativa, quem faz os acontecimentos esportivos
ganharem em importncia.
29
2.2 Esporte: pio do Povo?
Conforme visto anteriormente, a aceitao do esporte como objeto de
estudo na Academia, sobretudo pelas Cincias Sociais, passou por muitos
obstculos, os quais talvez ainda nem estejam totalmente superados. Entre eles,
h a noo de que o esporte seja, alm de elemento de menor importncia na
sociedade e mero ator coadjuvante da vida cotidiana, seja tambm um perigoso
instrumento alienador da sociedade, capaz de desviar os cidados das discusses
da vida poltica.
Para alm da briga por ocupao de espao na Academia, o antroplogo
Roberto DaMatta se preocupou em tentar reposicionar os estudos sobre esporte
deslocando-os de uma perspectiva de oposio sociedade, para outra, que o
inclui como parte inseparvel desta. Segundo ele, uma tradicional equao
esporte/sociedade, tal como natureza/sociedade, ritual/sociedade,
poltica/sociedade, coloca nos dois lados entidades individualizadas, podendo
postular uma relao instrumentalizada e funcional entre um e outro termo. Assim,
o esporte faz alguma coisa para, com ou contra a sociedade, podendo ser um
instrumento neutro, negativo ou positivo vis--vis o sistema social. (1982, p. 21).
Ainda segundo DaMatta, esta noo de oposio que permitiu a criao
da famosa mistificao popular sintetizada na parfrase que diz que o futebol o
pio do povo23. A frase tenta demarcar que, no fundo, o futebol e, por extenso,
o esporte - no tem importncia real para a sociedade, podendo at ser danoso, na
medida em que desvia a ateno da populao dos assuntos que realmente
interessam, principalmente a economia e a poltica. A tese do pio do povo
assim utilitarista-funcionalista, pois assume sua existncia enquanto instituio
importante em favor de uma relao determinada com a sociedade. O corolrio da
tese a manipulao do esporte, pelas classes dominantes, como um instrumento
cuja finalidade seria manter as massas alheias as questes de fato da sociedade.
Tudo indica que a tese do futebol,pio do povo uma projeo de nossa
perspectiva da sociedade e do lugar que nela reservamos atividade esportiva.
Penetrar, pois, na maneira como classificamos a atividade esportiva em relao a
outras atividades ser discernir os motivos sociais desta tese que surge numa
23
Parfrase da afirmao a religio o pio do povo, presente na Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, de Karl Marx.
30
relao mistificadora. Em outras palavras, a reflexo sobre tudo o que
classificamos como pio revela como o teorema do esporte como atividade
mistificadora tem, para alm de suas razes prticas, motivos profundamente
sociais. S que eles so os da nossa prpria sociedade, da a dificuldade em
perceb-los e discuti-los. (DA MATTA: 1982; p.22, grifo do autor)
A tese de que o esporte seja uma atividade alienante, um mal sociedade,
parece j no encontrar muito eco, sobretudo na Academia, como se pde deduzir
pela apresentao de Ronaldo Helal Revista Logos. Mas ainda no assunto
encerrado. Em junho de 2010, o famoso crtico literrio ingls Terry Eagleton
escreveu para o jornal The Guardian um texto intitulado Football: a dear friend to
capitalism, com subttulo The World Cup is another setback to any radical change.
The opium of the people is now football24, no qual ironiza, ao mesmo tempo em
que lamenta, a eficincia do futebol em atrair a ateno do povo, em detrimento
poltica ou cultura erudita, reafirmando que o futebol um pio para o povo25.
Mesmo sendo Eagleton um terico de linha marxista, naturalmente sensvel
questo da alienao, a sua insistncia na tese causou certo espanto, e ganhou
repercusso inclusive em sua passagem pela Festa Literria de Paraty (Flip), em
agosto do mesmo ano, onde ele afirmou que Se a religio comea a falhar,
procura-se outra coisa, e uma delas a cultura. No a cultura de Balzac,
Beethoven, mas um estilo de vida. O futebol um deles, com tradio, mstica,
assim como o nacionalismo, a mais bem-acabada forma moderna de religio26.
Esta discusso sobre a importncia e o lugar do esporte na sociedade,
seja na Academia, nos gabinetes dos governos, na agenda de polticos ou de
postulantes a polticos, ou, ainda, nos escritrios de empresas interessadas em
lucrar com a atividade esportiva, ser de suma importncia para a histria do
jornalismo esportivo. Este cresceu na medida em que cresceu a participao
dos esportes na vida das pessoas. E, sua associao a este crescimento de
24
Futebol: um amigo querido do capitalismo A Copa do Mundo mais um revs para qualquer mudana radical. O pio do povo agora o futebol. (traduo nossa)
25 O texto est disponvel em http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/jun/15/football-socialism-
crack-cocaine-people. ltimo acesso em 14.10.2012.
26 Informao obtida no portal ltimo Segundo, disponvel em http://ultimosegundo.ig.com.br/flip/terry-
eagleton-quer-prender-o-papa/n1237742287727.html. Recomenda-se tambm a leitura dos blog dos jornalistas Mauricio Stycer (http://mauriciostycer.blog.uol.com.br/arch2010-08-01_2010-08-07.html#2010_08-07_14_14_25-143380757-0) e Marcelo Barreto (http://sportv.globo.com/platb/marcelobarreto/tag/flip/), onde eles comentam a participao de Terry Eagleton na Flip 2010. ltimo acesso em 14.10.2012.
31
tal ordem que dificulta, em muitos pontos, precisar quando sua influncia no
processo direta, indireta, ativa ou passiva. No caber a este trabalho estudar
a mdia em tamanha profundidade, investigando seu poder de influncia e
construo do mundo, de realidades e irrealidades, trabalho da maior
relevncia, mas tarefa herclea, talvez a demanda mais importante para os
estudiosos das teorias da comunicao. Assumir-se- como fato concreto o
poder da mdia de colocar na pauta da sociedade determinados assuntos,
recortando o mundo e potencializando histrias, influenciando e tambm sendo
influenciada, enfim, em um complexo mecanismo que parece tender ao infinito.
Ser ou no ser o pio do povo, ter ou no ter importncia para a sociedade:
uma concluso possvel a ser trabalhada de que o ethos do esporte ter
influncia direta no ethos do jornalismo esportivo. O espao do esporte na mdia, o
prestgio dos jornalistas esportivos e, em maior ou menor grau, o espao para a
opinio jornalstica, tudo isso depende da importncia que se d ao tema, para
alm da linha editorial de cada veculo. Estendendo a questo, possvel
conjeturar se a busca pela objetividade, e seus nuances no jornalismo esportivo (da
qual o uso de nmeros e estatsticas so exemplo) pode ou no ser afetada pela
importncia que se d ao esporte, do ponto de vista tanto interno quanto externo s
redaes. Ou seja, possvel imaginar que, na medida em que o objeto de trabalho
ganha em importncia, a responsabilidade dos jornalistas pela qualidade de seu
trabalho tambm aumenta, promovendo uma maior preocupao destes com a
observncia dos princpios jornalsticos ora empregados, em um possvel zelo
natural pela credibilidade do trabalho e da profisso.
32
3. AS ESTATSTICAS NO JORNALISMO ESPORTIVO
3.1 Estatsticas Para Qu? Paulo Vinicius Coelho (jornalista, tambm conhecido pela sigla PVC), ao
discorrer sobre a noo comum de que todo mundo entende de esporte, cita a
frase de outro jornalista, Mauro Cezar Pereira, que costuma dizer que Ningum
entende mais do assunto do que um garoto de 12 anos (op.cit, p.39). De fato, o
garoto de 12 anos, se gosta de um esporte, tende a ser aficionado por ele.
Acompanha todos os jogos, l artigos sobre seu time favorito, seus atletas
favoritos; coleciona figurinhas, brinquedos, e, em alguns casos, sonha em no futuro
migrar de mero f para tambm um dolo.
Este garoto de 12 anos saber informar o calendrio de jogos, o resultado
das disputas; quem fez mais gols, quem fez mais pontos, quem no vence h
quanto tempo; dependendo do seu interesse, ele pode tornar-se um criador de
informaes, esquadrinhando dados, fazendo associaes, criando teorias,
ultrapassando assim os limites de mero consumidor da informao jornalstica.
Enquanto estas informaes ficarem restritas a seu consumo, ele pode ser
considerado apenas um aficionado pelo esporte; mas, se resolve divulgar o que
descobriu, ele passa a produzir informao, cruzando a fronteira entre consumidor
e produtor. Enfim, no exagero afirmar que ele estar sendo um jornalista
esportivo. Hoje, com as facilidades proporcionadas pelas mdias digitais, que
facilitaram tanto a difuso de informao quanto o agrupamento de pessoas em
torno de interesses comuns, ele poderia transformar fatos em notcias com enorme
facilidade, mesmo sem exercer formalmente a profisso de jornalista.
A tese do garoto de 12 anos, se verdadeira, pressupe que entender de
esportes basicamente conhecer todos os fatos que o cercam. O prprio Paulo
Vinicius Coelho acredita que est em bom caminho para ser jornalista esportivo
competente o garoto de 12 anos que vive correndo atrs da informao correta
(ibid). Fato inegvel, j que este esprito constitui um dos pilares da profisso.
Mas um possvel problema com o garoto a sua falta de experincia, a
suscetibilidade a falsas impresses que a sua idade carrega. Afinal, uma das
caractersticas da adolescncia a busca incessante por dolos, por caminhos, por
33
modos de vida; a chamada fase de formao do sujeito. Nessa busca
incessante, com freqncia enfia-se os ps pelas mos; considera-se o pior
cantor do mundo o melhor; um canastro um grande ator; toma-se o mau gosto
pelo fino gosto, e tudo isso de forma natural, fazendo, de certa maneira, parte da
transformao do jovem em adulto. Assim, o garoto de 12 anos capaz de
considerar uma simples sequncia de bons jogos de um determinado jogador algo
fantstico, extraordinrio, atribuindo-lhe uma qualidade que olhos adultos, mais
desconfiados, treinados, experientes, talvez no atribussem.
No fundo, o que a tese do garoto de 12 anos expe a justaposio que
h no esporte (ou simplesmente no jogo) entre a razo e a emoo. O garoto, ou o
apenas aficionado, gasta seu tempo reunindo, organizando, analisando
informaes, toma parte em uma srie de atividades tpicas de um pensamento
racional, cientfico. Entretanto, em geral, suas concluses tendem a sucumbir a
qualquer batida mais forte da emoo. Mas, pelo menos aqui, no cabe julgar tal
procedimento; o torcedor, o amante do esporte, no tem firmado nenhum
compromisso tico com a verdade ou com qualquer discurso racional; no h
porque cobrar dele que se comporte diferente. Por outro lado, o jornalista, este sim,
tem um compromisso firmado: buscar aproximar-se, o mximo possvel, da
verdade. E a pergunta inevitvel : como manter-se no caminho da verdade,
quando se anda por um terreno cheio de obstculos sua obteno, cheio de
tentaes ao desvio? Como fazer sumir o garoto de 12 anos, que em matria de
esportes, parece residir em todo adulto?
No discurso dominante sobre o fazer jornalstico, a objetividade costuma
ser sempre saudada como a melhor ferramenta contra os malefcios da
subjetividade, do poder da emoo sobre a razo. Tambm no jornalismo
esportivo, como no poderia deixar de ser (afinal, como foi dito, jornalismo
jornalismo), este discurso prospera. Porm, em muitas ocasies, a inteno de
princpios colide com a prpria natureza daquilo que coberto. O esporte
profundamente atrelado s emoes, interao social; de forma anloga ao
pensamento dos leitores de jornais, pelo menos at o inicio do sculo XIX, o que o
consumidor das notcias de esportes (em geral, um torcedor) quer justamente ver
no jornal uma opinio, um posicionamento, e de preferncia que v ao encontro do
seu. O jornalismo esportivo se v assim, freqentemente, diante de um dilema;
satisfazer a um pblico que no est exatamente a procura da verdade, ou, de
34
outra forma, manter-se em seus princpios, publicando as informaes de forma
objetiva, ainda que sob o risco de causar desinteresse a seu pblico.
No se trata de declarar a existncia de um divrcio entre uma cobertura
carregada na emoo e a verdade, ou uma associao unvoca entre objetividade
e verdade, pois isso significaria dizer que todo veculo jornalstico que utilizasse
linguagem mais informal, mais prxima da linguagem do torcedor, ao fazer isso
estaria deixando de praticar jornalismo. A questo que colocamos aqui diferente:
de que maneira a cobertura jornalstica dos esportes se conecta, de forma mais
clara, aos princpios expressos da imparcialidade e, principalmente, da
objetividade?
A hiptese que aqui se apresenta de que, no jornalismo esportivo, h uma
tentativa de que isso acontea por meio da apresentao de dados estatsticos, de
nmeros que representem e esclaream os acontecimentos. Isto significa que o
jornalismo esportivo tenta ser objetivo quando se prope a analisar em que medida
as estatsticas so capazes de revelar ou esclarecer um fato. Porm, esta no
uma tarefa fcil. Dissertando sobre a Teoria do Jornalismo, o professor e jornalista
Felipe Pena utilizou o exemplo do jornalismo esportivo para advertir sobre as falsas
idias que os nmeros e as estatsticas, quando mal utilizados, podem passar:
No jornalismo esportivo, h o famoso scout, importado dos Estados Unidos e utilizado principalmente em esportes como o beisebol e o basquete. Entretanto, tambm no futebol (refiro-me ao soccer, no ao estilo americano) os nmeros vm sendo usados com muita freqncia, produzindo distores lamentveis. Uma delas, por exemplo, considerar os cabeas-de-rea, aqueles jogadores de meio-campo que fazem a proteo da defesa, como os melhores passadores (assistentes, para os americanos) do esporte. No, os nmeros no esto errados, mas a falta de contextualizao induz a uma interpretao fria que, por sua vez, leva a concluses absurdas. (PENA: 2005, p. 54)
Pena adverte que tirar concluses com base em nmeros uma das formas
mais simplistas de aplicar o conceito de objetividade (2005: p. 53). Quando foi
mencionada, na introduo deste trabalho, a histria da discusso do jogador
Felipe Melo com o jornalista Paulo Vinicius Coelho, o que foi colocado em relevo,
alm da inusitada inverso de papis, era uma reflexo necessria sobre a
verdade das afirmaes do jogador. Felipe Melo invocou a seu favor os seus
nmeros; o jornalista PVC defendeu um suposto consenso, uma percepo geral
35
de que a temporada de Felipe Melo no havia sido boa. Mas afinal, quem estava
com a razo?
Difcil saber. Ao que parece, ambos, ao menos em parte. Na presente
pesquisa, foram consultados o site oficial do campeonato italiano de futebol27, e
tambm o dos jornais italianos Corriere de la Serra28 e Gazzetta Dello Sport29, mas
no foram encontradas as referidas estatsticas (nmero de passes certos,
desarmes etc.) mencionadas pelo jogador. Em pesquisa em sites nacionais, da
ESPN30 e Lancenet31, tambm no foram encontradas tais estatsticas. No foi
possvel saber se o que o jogador disse era verdadeiro ou no. J a verso do
jornalista PVC era verdadeira e foi amplamente noticiada nos mesmos sites.
Porm, partindo-se do princpio que ambos estivessem falando a verdade, a defesa
do jogador parece ser muito mais lgica e consistente do que os argumentos do
jornalista. Seu mtodo de avaliao de desempenho muito mais simples e
consistente; ele compara o desempenho individual da temporada atual com a
passada. Se os nmeros so melhores, torna-se difcil contestar algo, a no ser a
verdade que tais nmeros expressam. Ou seja, a pergunta ento deixaria de ser
meramente quantitativa (quantos passes ele acertou?) para ser tambm qualitativa
(e o que isto representa?). Eis neste pequeno exemplo o grande desafio do
trabalho com nmeros e estatsticas: destacar neles o que realmente
representativo ou no, o que efetivamente explica algo ou apenas d cores a um
fato qualquer.
J a argumentao do jornalista parece remar na direo contrria, embora
parta de um dado que, visto isoladamente, est correto. O time de Felipe Melo, a
Juventus, de fato fizera uma campanha muito ruim para os seus padres -
terminara apenas em 7 lugar. Porm, a partir deste dado, pouco pode ser dito
sobre o desempenho de Felipe Melo, uma vez que o futebol um esporte coletivo
em que, a no ser em raras ocasies - e ainda assim discutveis, como em pnaltis
- um jogador sozinho no capaz de determinar o sucesso ou o fracasso de um
27
http://www.legaseriea.it/
28 http://www.corriere.it
29 http://www.gazzetta.it/
30 http://www.espnbrasil.com.br
31 http://www.lancenet.com.br
36
time em uma partida, muito menos em um campeonato inteiro32. Alm disso, h um
erro que de to comum passa praticamente despercebido por todos: a comparao
histrica entre diversos times que defenderam o mesmo clube. evidente que,
quando se fala na pior campanha da Juventus em 40 anos, estabelece-se uma
relao que no , embora pretenda ser, linear. Em tese, uma comparao deste
tipo s faz sentido para alimentar a curiosidade do garoto de 12 anos - um fato,
um registro histrico, incapaz, entretanto, de qualificar por si s o desempenho do
time atual. Afinal, mesmo com os piores nmeros, em teoria, a Juventus poderia ter
atingido o melhor dos resultados (ser campe).
evidente que estudos analticos mais detalhados so capazes de perceber
tendncias e predizer com determinado grau de certeza o que pode ser
considerado um bom ou mau desempenho, seja de todo um time ou de um nico
atleta. No esporte individual, em que a disputa contra a marca do adversrio
(como em geral no atletismo ou na natao), uma anlise comparativa dos
ltimos resultados, assim como o parmetro dos recordes, normalmente so
nmeros bastante seguros para inferir sobre o provvel desfecho de uma disputa.
J nos esportes coletivos, isto tambm ocorre, mas o grau de impreciso costuma
ser maior: so famosas, no Brasil, as previses dos matemticos Oswald de Souza
e Tristo Garcia, sobre os resultados dos campeonatos de futebol, em que as
torcidas se divertem em desdenhar as porcentagens de chances dos times,
calculadas a partir de dados estatsticos diversos, que levam por base o
desempenho atual do time e de campeonatos anteriores. Ou seja, se a dvida
saber as chances de um time ser campeo, ele ser comparado com o
desempenho de outros campees, e no com seu prprio desempenho em anos
passados.
O desdm do torcedor ao procedimento matemtico demonstra a alta carga
de emoo do esporte, que freqentemente se ope razo. fcil lembrar casos
em que esta matemtica preditiva no funciona, quando times contrariam a tudo e
32
comum a meno a times levados nas costas por um jogador, ou a expresso ganhou o campeonato sozinho. Foi assim com Maradona, na Copa do Mundo de 1986, com Romrio na Copa de 1994; e at mesmo no fracasso, freqente a atribuio dos motivos a um vilo. Disto, o goleiro brasileiro Barbosa, em 1950, e Zico, na Copa de 1986, so os exemplos mais claros no Brasil. Sob o ponto de vista especifico de uma lgica racional, estas individualizaes so equivocadas; ser sempre possvel argumentar que os outros 10 jogadores, no caso do futebol, tm necessariamente alguma participao nos resultados. Mas a questo mais complexa, do ponto de vista comunicacional, sociolgico e tambm filosfico, pois diz respeito idolatria, a maniquesmos e aspectos culturais. Sobre estes aspectos, recomenda-se a leitura da coletnea Mdia, Raa e Idolatria, de HELAL, LOVISOLO E SOARES (2001), em especial o texto Mdia, Construo da Derrota e o Mito do Heri, de HELAL.
37
a todos, contrariam a lgica. Difcil algum lembrar os acertos. Parece haver
uma amnsia geral quando os matemticos acertam.33Tal fato no propriamente
impressionante; parece fazer parte do ritual, do drama, da narrativa que se constri
sobre o esporte e que ele, por suas prprias caractersticas, proporciona. A
matemtica, no fim das contas, transforma-se em mais um adversrio a ser
derrotado, um outro muro a ser transposto. Passa a fazer parte do jogo.
H anos discute-se a eficcia das anlises estatsticas e o poder das
previses matemticas no esporte. E, o que se v em geral uma clara irritao,
da parte do pblico, com esta interferncia cientfica, pretensamente objetiva, no
meio ldico (sagrado) do esporte. Mas as estatsticas matemticas j constituem
importante fonte de notcias. De seus extratos sairo, muitas vezes, o assunto a ser
discutido; das estatsticas podem sair fatos onde antes existia apenas um mundo
de acontecimentos diversos, vistos em conjunto, mas nunca pormenorizados. Aos
jornalistas ento cabe a anlise do que relevante e merece a publicidade; o
exerccio do seu papel de gatekeeper.
O jogador Felipe Melo pode no ter inventado o que disse. Seus nmeros no
campeonato italiano poderiam no ser mesmo ruins. E o jornalista, por sua vez,
certamente no errara quanto ao sentimento geral de quem acompanhava o
campeonato italiano na poca, de que a fase do jogador no era boa. Na verdade,
a desconfiana sobre a qualidade do jogador sempre existiu, e o desempenho dele
na Copa do Mundo da frica do Sul acabou confirmando as previses. Felipe Melo
no jogou bem, foi expulso no ltimo jogo da seleo brasileira e foi considerado,
pela maior parte da mdia, o grande vilo da derrota. Porm, o desfecho no d
razo conduta do jornalista. PVC chegou a uma concluso certa, de que o
desempenho atual do atleta colocava dvidas sobre um bom desempenho futuro na
Copa do Mundo; mas, justificou-a partindo de premissas contestveis (como o
foram, pelo atleta) e tambm enganosas principalmente, a que tenta atribuir ao
jogador todo o mau desempenho do seu time. Se a inteno era ser objetivo, nada
poderia ser mais contrrio do que isso.
33
Ficou particularmente famosa a previso de Tristo Garcia no Campeonato Brasileiro de 2009, quando o Fluminense, do Rio, foi declarado com apenas 1% de chances de escapar do rebaixamento para a 2 diviso, mas acabou escapando com uma srie incrvel de vitrias (absolutamente inesperada, levando-se em considerao o desempenho que vinha tendo no campeonato).
38
Os nmeros e as estatsticas servem (ou deveriam servir), como
instrumentos para aproximao da verdade, para explicao dos fatos - tanto no
jornalismo esportivo quanto em qualquer campo onde se tente construir
conhecimento - sendo eles prprios, no entanto, reveladores de fatos, criadores de
notcias. Mas, como toda ferramenta, precisa ser usada de forma apropriada, sob o
risco de, caso assim no acontea, perder sua eficcia ou, ainda pior, voltar se
contra si mesmo, jogando contra um ideal da objetividade, de racionalidade.
Assim como os nmeros explicam, eles tambm podem deturpar. O jornalista
precisa ter cuidado para no tornar os nmeros mais realistas que o rei34.
E, no esporte, terreno onde o melhor especialista pode ser um garoto de 12
anos, e onde h pouco espao para revelaes, uma vez que a maior parte da
tarefa falar sobre acontecimentos que boa parte do pblico tambm assistiu, no
momento mesmo em que ocorreram, e j possuem, portanto, alguma opinio
formada35 - diferena substancial entre o esporte e as demais editorias jornalsticas
- a funo de esclarecimento inerente ao jornalismo ganha contornos delicados,
que iro requerer do jornalista o mximo de preciso.
3.2 Nmeros, Estatsticas e Objetividade
O dicionrio Houaiss define estatstica como o ramo da matemtica que
trata da coleta, da anlise, da interpretao e da apresentao de massas de
dados numricos36. Ou seja, a matria prima da estatstica sempre um dado
numrico. E o esporte um campo recheado deles. Uns esportes mais, outros
34
Os prprios jornalistas parecem, muitas vezes, duvidar da validade da matemtica. H um posicionamento interessante neste sentido, do reprter esportivo Andr Ilan, da Rede Globo, publicado em seu blog no portal Globo Esporte (http://globoesporte.globo.com/platb/ilanhouse/2011/10/31/matemegicos-nunca-aprendem/
Outra abordagem interessante foi feita pelo jornalista Rafael Barros, que realizou um trabalho eminentemente estatstico, e foi publicada no blog do jornalista Marcelo Barreto (http://sportv.globo.com/platb/marcelobarreto/2010/11/09/para-fazer-as-contas/).
35 Aqui nos referimos s notcias que dizem respeito estritamente ao jogo. No ignoramos que h um
grande nmero (talvez at a maior parte) de notcias de bastidores, extra-campo,;mas estas, no entanto, cada vez mais confundem-se com o que h de estritamente midatico no meio esportivo, ou seja, com a sua poro de entretenimento.
36 Dicionrio Eletrnico Houaiss da lngua portuguesa. Verso 1.0, de dezembro de 2001.
39
menos, mas todos possuem algum dado a ser analisado. A informao mais
simplria sobre uma competio esportiva qualquer, qual seja, sempre quem a
venceu. A resposta j pressupe um nmero, o 1, a ser atribudo ao vencedor. A
repetio das competies j possibilita, no mnimo, o estabelecimento de uma
classificao, contabilizando quem venceu mais vezes. Se os competidores no
forem sempre os mesmos, pode-se buscar um dado comum entre eles; talvez suas
origens, suas idades, seus estilos. Assim, ser possvel construir um estudo,
formular uma teoria enfim, criar uma notcia. Por exemplo: se os maiores
vencedores forem de um mesmo lugar, abaixo ou acima de determinada idade,
tem-se um padro. Uma notcia de previso, baseada em dados objetivos, poderia
assim ser concebida: os atletas do lugar X so os melhores do esporte Y. Dali em
diante, podero ser considerados favoritos, pertencentes a uma determinada
tradio.
Deste modelo simplificado, possvel extrair a natureza do mtodo
estatstico na construo de notcias sobre os esportes, inclusive perceber suas
diferenas em relao construo do conhecimento cientfico, como comentado
no primeiro captulo deste trabalho. Trata-se de um conhecimento primeiro,
obviamente necessrio, mas que se enfraquece justamente por impor a si mesmo a
afirmao, mesmo quando a cautela cientfica recomendaria a suposio.
Em um famoso trabalho sobre a importncia dos acontecimentos aleatrios
na vida das pessoas, intitulado O Andar do Bbado, o fsico Leonard Mlodinow
cita o matemtico Jakob Bernoulli, que teria concludo, durante os trabalhos que
resultaram na criao de seu Teorema ureo ou Lei dos Grandes Nmeros37, que
no deveramos analisar as aes humanas com base em seus resultados
(MLODINOW: 2008, p. 132). A afirmao parece contraditria, parece ocultar algo;
lanada assim, sem contexto, no parece fazer sentido, sobretudo se voltada para
o caso especfico dos esportes. Como no julgar o desempenho de um atleta, por
exemplo, a no ser por seus resultados?
Na verdade, Bernoulli estudava a quantidade de provas, ou o nmero de
amostras necessrias para afirmar ou comprovar, com segurana, um determinado
37
Este teorema foi atualizado ao longo do tempo, mas ainda considerado, pelos matemticos, o primeiro teorema fundamental da probabilidade. De forma simplificada, pode-se dizer que o objetivo do teorema determinar a quantidade ou o tamanho de amostras necessrias para determinar, com o mximo de preciso, as probabilidades de ocorrncia de um determinado evento. Fontes: MLODINOW: 2008; Enciclopdia Wikipedia, verbete Lei dos grandes Nmeros: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_dos_grandes_n%C3%BAmeros. ltimo acesso em 10-06-2012.
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fato, quando ele parte de uma srie de outras combinaes possveis. A sua Lei
dos Grandes Nmeros constitui uma das bases da estatstica, pois demonstrou que
muitos fatos comumente considerados como coincidncias, ou, por outro lado,
muitas coincidncias dadas como fato, constituam na verdade acontecimentos
mais provveis do que se supunha ou apenas erros de interpretao, decorrentes
do desconhecimento de uma teoria das probabilidades, em especial o tamanho das
amostras; em regra, quanto maior for o tamanho das amostras, maior a
proximidade do evento real. A afirmao hoje parece bvia, mas no o era naquela
poca (sculo XV), e mesmo hoje nem sempre aplicada conforme,
conscientemente, sabemos que deveria. Estatsticos e matemticos posteriores a
Bernoulli desenvolveram suas teorias de forma que, hoje, so capazes de
determinar com preciso maior o tamanho mnimo de uma amostra necessrio para
torn-la significativa. o que acontece, por exemplo, nas pesquisas de inteno de
voto, em qualquer eleio; com freqncia, a populao questiona, duvida de sua
validade, uma vez que a quantidade de pessoas entrevistadas parece sempre ser
muito pequena se comparada ao tamanho da populao. Entretanto, sem entrar na
discusso se h ou no interferncia poltica nestas pesquisas, fato que, o
mtodo dos estatsticos reveste-se de reconhecimento cientificamente aprovado.
Em O Andar do Bbado, Mlodinow estuda uma srie de armadilhas em
que a sociedade cai por ignorar a importncia da aleatoriedade. E, atravs de um
percurso histrico sobre os estudos gerais que do corpo atual a noo da
aleatoriedade, convida o leitor a tentar enxergar, por detrs dos mais simples
acontecimentos da vida cotidiana, relaes de causalidade existentes, ou
simplesmente no existentes. Os exemplos de situaes onde somos enganados
so vrios, e muitos so retirados dos esportes. Um deles, que referenda a
afirmao de Bernoulli, explica, a partir da anlise de uma partida final de
campeonato norte-americano de beisebol, entre os times do New York Yankees e
do Atlanta Braves, as probabilidades de vitria de cada time numa disputa melhor
de 7 jogos. Considerados os dois times com igualdade de foras, em
determinado momento, quando o Braves vencera as duas primeiras partidas da
srie, matematicamente suas chances de conquista eram de 81% contra 19 dos
Yankees. Mas, no fim, os Yankees venceram as quatro partidas seguintes e
sagraram-se campees. Entretanto, se a disputa fosse analisada de forma a atribuir
pesos diferentes aos times, baseados em quesitos histricos (tais como nmero de
41
vitrias dentro ou fora de casa ou confronto direto entre eles), e, se por exemplo,
conclui-se que a superioridade histrica de um time sobre o outro fosse de 55%
contra 45%, seriam necessrios pelo menos uma melhor de 269 jogos para
assegurar tal dado de forma estatisticamente significativa! Diante disso Mlodinow
conclui, mesma maneira de Bernoulli, que as finais dos campeonatos esportivos
podem ser divertidas e empolgantes, mas o fato de que um time leve o trofu no