Post on 28-Sep-2015
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PARA ALM DA MAIORIDADE PENAL
De tempos em tempos a histria se repete: algum artigo ou editorial de um grande jornal
brasileiro, pretendendo-se isento de paixes e ideologias, apresenta sua posio em relao
ao ECA (Estatuto da Criana e Adolescente), quase sempre reduzindo sua ateno a um
ponto especfico: os adolescentes em conflito com a lei e a consequente necessidade da
reduo da maioridade penal. O editorial em questo, cujo ttulo ECA no recupera menor
infrator e desprotege sociedade, do jornal O Globo, de 15 de fevereiro de 2015.
No h dvidas que a questo da maioridade penal merea ser continuamente debatida
pela sociedade, mas isolada, ela tende minimizar a responsabilidade do poder pblico em zelar
pelo bem estar integral das crianas e adolescentes. Mais do que uma abstrao, esse conceito de
bem estar integral envolve a implementao de aes e polticas que garantam um
desenvolvimento fsico, emocional e intelectual saudvel s crianas e adolescentes, alm de
proteo contra quaisquer violaes desses direitos. Enquanto tivemos nossos olhos voltados
exclusivamente para uma discusso na esfera criminal, chamada frequentemente de situao
irregular, no vamos compreender (e nem nos preocupar) com as demais questes envolvidas
na implementao daquele que um exemplo internacional de legislao.
O ECA nunca foi pensado para recuperar menor, como o editoral equivocadamente
sugere. O ttulo do artigo pobre conceitualmente, porque no compreende o papel do
estatuto em sua inteireza, e tendencioso ideologicamente porque reduz a discusso em torno
da criminalidade, insinuando que o ECA protege menor infrator. O editor escreve que a lei
revelou-se incapaz de fazer o poder pblico cumprir obrigaes no resguardo de jovens infratores!! O
ECA, assim como qualquer outra legislao, depende do compromisso do poder pblico e da
sociedade como um todo para coloc-la em prtica, e no o contrrio. A Lei obriga, mas
diante da sistemtica negao de seu cumprimento, muitos concluem que mais fcil dizer
que ela ineficaz do que cobrar providncias daqueles que so os responsveis por
implement-la; no caso do ECA, todos ns! Falamos exaustivamente muitas vezes
desqualificadamente sobre a necessidade de punio do adolescente em conflito com a lei (e
no menor infrator), mas discutimos pouco a responsabilizao do Estado (em todas as
esferas) e da sociedade na efetivao do ECA. Invertemos a lgica! Tente pensar a afirmao
acima do editorial em relao Constituio Brasileira. Diante do fracasso em cumpr-la,
vamos simplesmente dizer que ela fraca, paternalista e repleta de falhas? Vamos nos eximir
da responsabilidade de coloc-la em prtica e dizer que o caos se instaurou porque a lei
branda, e no porque no nos comprometemos o suficiente com ela? Tais perguntas no
querem sugerir que no exista a necessidade de aprimoramento das leis, mas apenas
questionam a inverso da lgica da responsabilizao no cumprimento delas. O ECA um
timo exemplo dessa dinmica de aprimoramento, cuja reviso de conceitos, textos e
expresses, demonstram que no se trata de uma lei inflexvel e ultrapassada, como o
editorial de O Globo predente mostrar.
O ECA, do ponto de vista legal, um documento de vanguarda. No entanto, como
qualquer lei, depende no somente que as polticas pblicas atreladas a ele sejam de fato
implementadas, mas tambm de um questionamento dos paradigmas que mantemos sobre as
crianas e adolescentes. Culturalmente, como diz o psiclogo e amigo Gustavo Sales, parece
que estamos alguns milnios atrasados, porque socialmente ns endossamos certos paradigmas
que supostamente pretendemos superar, como o conceito da criana como uma propriedade
dos pais e tutelada pelo Estado, e no como sujeito de direitos e pessoa em condio peculiar de
desenvolvimento. H um conflito direto e constante entre esse paradigmas. Um outro
paradigma poderosssimo o j mencionado menor infrator, cuja ateno est voltada para a
situao irregular da criana e do adolescente, ignorando todo um contexto que produz e
sustenta tal situao. Gustavo aponta o paradoxo ao afirmar que, se por um lado pedimos
avanos (seja no texto da lei ou na efetivao das polticas pblicas elaboradas com base nessa
mesma lei), por outro no rompemos de fato com os velhos paradigmas. Tratamos a criana e o
adolescente social, poltica e economicamente como objetos de posse da famlia ou de
interveno do Estado, e no como pessoa em condies e necessidades especficas. Nos
fixamos no que a criana e o adolescente fazem de errado, e no no que ns adultos deixamos de
fazer, enquanto sociedade, para garantir que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. Ou
seja, gostamos de debater o ECA, mas ainda no nos desapegamos dos paradigmas do antigo
Cdigo de Menores, que s olhava para o menor quando ele estivesse fora da esfera moral
estabelecida pelo Estado: fora da escola, fora de casa, vivendo nas ruas ou cometendo crimes,
ou seja, quando estivesse incomodando a sociedade.
Por exemplo, o editoral de O Globo se mune de estatsticas para alarmar a sociedade,
fomentando uma sensao de descontrole social, fruto de uma suposta impunidade que o
ECA provoca. Mas onde que tudo isso comea mesmo? O governo federal acaba de cortar cerca
de R$ 8 bi da educao, praticamente todos os governos estaduais e municipais tem enormes
dificuldades em elevar o nvel da escolarizao e qualidade de ensino. Tenhamos o exemplo
do governo do estado de So Paulo em vista, que tem fechado salas de aula a ponto de colocar
80 alunos no mesmo espao, isso sem falar da desvalorizao do professor, da falta de acesso
cultura e oportunidades reais de mudana de vida, no somente para os adolescentes
(erroneamente[?] chamados de menores no artigo), mas tambm para suas famlias.
O que pe em xeque a eficcia do ECA no opaternalismo do Estado, nem a curva
ascendente da criminalidade, como diz o editorial, mas a negligncia sistmica em cumprir o
que est previsto em lei e uma tendncia constante de criminalizao da juventude. O editorial
ainda diz que o ECA prdigo em listar direitos de menores de idade, [percebem o velho
paradigma?] mas parco em lhes cobrar responsabilidades. S diz isso quem no leu ou no
compreendeu o objetivo do estatuto, que apresenta medidas scio-educativas (debatveis,
verdade) as mais variadas para adolescentes em conflito com a lei. Como disse uma vez o
amigo Gustavo, no conheo nenhum adolescente que foi passar frias na Fundao Casa.
Alm do mais, o prprio conceito de direitos da criana e do adolescente a porta de entrada
pela qual deve-se abordar o estatuto: o princpio da reciprocidade. Ou seja, sendo esses direitos
individuais e coletivos, as crianas e os adolescentes que devero ter seus direitos reconhecidos
e respeitados so tambm os indivduos que devero reconhecer e respeitar os direitos de
outras crianas e adolescentes. Esse um processo educativo de mdio e longo prazo, cuja
responsabilidade no poder ser delegada a outrem, seno assumida integralmente pela
famlia, pela sociedade e pelo Estado.
Quanto questo da criminalidade, cabe perguntar: se nem o sistema penitencirio
bem sucedido na ressocializao de detentos adultos, por quais motivos se cobra tanto que as
instituies como a Fundao Casa sejam melhores, sendo que estas intituies tem o mesmo
Estado como responsvel pela qualidade do servio? Alm disso, h outras questes de
fundo, como a pobreza e o status dos envolvidos. Compare os crimes de colarinho branco ou
cometidos por adolescentes ricos com aqueles cometidos por adultos e adolescentes negros e
pobres. Agora verifique a taxa de condenao e encarceramento entre essas populaes. O
Estado brasileiro que j tem a terceira maior populao carcerria do mundo, ficando atrs
somente de EUA e China que prdigo em descumprir com suas obrigaes, e tenta nos
convencer de que a reduo da maioridade penal, que jogar um nmero maior de
adolescentes nas prises para l apodrecerem, a soluo para a acabar com a criminalidade.
Caso a proposta de reduo da maioridade penal venha a ser aplicada, o Estado contribuir
significativamente para inviabilizar o processo de ressocializao dessa populao.
No se trata, evidentemente, de simploriamente dizer que o Estado o grande
produtor da criminalidade, embora no se possa negar que tem boa parcela de
responsabilidade por ela. Tambm no se pode negar que testemunhamos diariamente a
realidade de crimes (por vezes hediondos) praticados por adolescentes, cujas motivaes so
as mais distintas. Mas no nos enganemos: sempre haver crimes de grande impacto
cometidos por adolescentes que sero cinicamente e oportunamente capitalizados por algum
a fim de comover e convencer a populao de que a reduo da maioridade penal a soluo
para a onda de violncia. No entanto, esse mesmo algum pouco ou nada discutir o que de
concreto e prtico dever ser feito para a efetivao do ECA no que diz respeito ao
desenvolvimento integral de todas as crianas e adolescentes. A doutrina da prioridade
absoluta, por exemplo, significa, dentre outras coisas, a disponibilidade de recursos pblicos,
e a falta deles uma tima medida para observar o quanto o Estado viola os direitos das
crianas e adolescentes. Como certa vez bem disse a professora e defensora do ECA em uma
sesso solene na cmara de vereadores da cidade de So Paulo, Maria Amlia Azevedo, a
maior violncia contra as crianas e adolescentes comea nessa casa! E completou: Por isso
elas precisam ser tambm prioridade no oramento pblico.
Entretanto, quando se noticia o envolvimento de adolescentes com o trfico ou com algum
crime extremamente violento, somos bombardeados por estatsticas que no final das contas
acabam responsabilizando somente o indivduo (o vagabundo, o preguioso, o trombadinha,
o psicopata juvenil) ou culpabilizando a famla pela m educao que deu ao/ filho/a.
No consideramos as variveis que levam a cada indivduo a cometer um crime, e conclumos
apressadamente que se trata simplesmente de uma questo de deciso pessoal. Assim somos
induzidos a crer em um padro, no qual todos os adolescentes, e especialmente aqueles em
conflito com a lei, so indevidamente inseridos. Generalismos do tipo o adolescente sabe
muito bem o que est fazendo, se tem idade para votar, tem conscincia sobre seus atos,
etc., fazem parte dessa dinmica de culpabilizao exclusiva do indivduo que no considera
outros fatores que podem ser determinantes para suas atitudes.
Enfim, no h respostas fceis, mas penso que o foco na criminalidade reducionista,
equivocado, e atende a muitos interesses, menos os daqueles chamados na letra da lei de
sujeitos de direito, mas que na prtica acabam servindo apenas como bodes espiatrios da
ineficcia e negligncia do Estado e da sociedade em geral, embora h que se reconhecer que
existem timas iniciativas em curso, boa parte delas executadas pela sociedade civil.
Portanto, as discusses pontuais sobre a violncia cometida por crianas e adolescentes
devem ser precedidas ou concomitantes a uma discusso mais ampla sobre a violncia
cometida contra crianas e adolescentes, especialmente a negligncia institucional que adia a
implementao integral do ECA. Qualquer debate que esteja focado na criminalidade mope
em relao s condies que geram e mantm essa mesma criminalidade.
Alexandre Gonalves