Post on 07-Aug-2015
A revolta e a revolução foram os polos sobre os quais Pasoline oscilou toda sua
vida. Ou de outro modo: que o percurso da juventude à maturidade é o caminho
trilhado da perspectiva revolucionária à revolta. Pasoline vive sob a emblemática
contradição: que é a de que para estar, somente não estando.
Embora progressivamente descrente do marxismo, vez que a sociedade já dava
sinais de ter irremediavelmente encarnado os valores da burguesia, de o proletariado
não mais contrapor-se ao estilo de vida capitalista e sim de inveja-lo, em crer que a
história não seja e não possa ser senão a história da burguesia; engana-se, porém
quem entenda a revolta enquanto um expediente meramente quietista, uma
resignação silenciosa, um suportar de dores sem gemidos, sem resistência.
A revolta é o comportamento mais vociferante possível, mesmo que a
possibilidade de vencer seja nenhuma, assim como o jovenzinho de Salò, que diante de
seus algozes levanta seu braço, ou mesmo de Medéia, que conclui sua inadequação ao
mundo burguês racional com a morte a si e a de seus filhos. Assim também Pasoline
revestiu toda sua revolta em argumentos, em obras, em expressão, em bramidos
contra a decadência que assolava sua época e já tinha se espalhado pelo ocidente
inteiro – o verdadeiro fascismo.
Em um de seus diagnósticos de época, seus escritos jornalísticos reunidos em
Lettere Luterane e Scritti Corsar, que no Brasil foi reunido e publicado sob o título de
Jovens Infelizes, Pasoline nos pinta o cenário de sua época sob o avançar progressivo
do mal burguês.
Em uma de suas crônicas que empresta o título à publicação brasileira, Jovens
Infelizes, Pasoline já pensa a relação com a tragédia grega e a situação que se
apresenta. Segundo ele, sempre lhe perturbou o desfecho triste dos jovens no teatro
trágico. Um dos temas mais misteriosos do teatro trágico grego é a predestinação dos
filhos para pagar as culpas dos pais. Por que os filhos têm que pagar pelas culpas dos
pais? Pasoline responde tal pergunta não a partir de uma teorização acerca da
tragédia, mas antes partindo da observação de sua época. O mal velado, o mal que os
filhos trazem e por isso justifica sua punição, é o próprio fato de já surgirem num
mundo desencantado. De já surgirem de alguma forma contaminada por uma moral
fascista que assola seu tempo. Já é uma geração que surge morta. Assim como Medéia
atenta contra sua própria vida e a de seus filhos, porque é uma existência que só pode
viver sob a áurea de um tempo que não pode mais ser, as gerações dessa época já
nascem sob o mesmo desfecho que acomete ao mito – o esquecimento. Ou seja, uma
espécie de existência privada completamente de vida. E essa culpa recai toda sobre
nossos pais, sobre uma geração anterior que se deixou contaminar, a ponto de legar a
seus filhos um triste futuro.
O mesmo desfecho trágico já se anuncia também em Acatone, um de seus
primeiros filmes. O filme não apresenta nenhuma perspectiva pedagógica, nem se
trata de um cinema de formação. Assim como praticamente toda obra cinematográfica
de Pasoline, Acatone é um retrado angustiado de época. Acatone é mais um jovem
que vive na periferia de Roma. Pertencente a um quinhão da população excluída das
benesses do capitalismo, que vive de pequenos furtos, pequenos delitos, mas que,
sobretudo, procura ter uma vida que se distancie o máximo possível do estilo de vida
demarcado pelo times is money. Porém, o afastamento de Acatone não é uma
conversão de yuppie que exaustos da violência dos pregões de Waal Street, refugia-se
à beira da praia com uma poupança avantajada, para agora, usufruir tranquilamente
de suas conquistas. Acatone não é muito menos um Hippie ( para Pasoline, mesmo
esses hippies não passam de um produto do mundo capitalista, é uma espécie de
hausto fabricado, de um bocejar descolorido, de uma liberdade de lábios cianóticos
comercializada, do mesmo tipo das experiências religiosas de nosso tempo, que antes
é mais a experiência cronometrada de tomar água suja no curral, ou dos êxtases
comprados para os filhos celebrarem seu aniversário num cercado com espaço e
tempo cronometrado nos charcos dos fast foods) Decididamente, Acatone não é um
desses, encontra partida, já nasceu livre. Mas esse mundo não é mais daqueles que
desejam viver ainda uma vida limpa, longe da sanha consumista que se aproxima,
longe da moral burguesa estritamente fundada sob a insígnia do ter. Acatone também
morre. O mundo não possui mais lugar para gente de seu tipo. É mais uma figura,
como tantas outras, que se torna emblema de uma época em que a vida não é mais
vida. Não é à toa que se despede disso, com um vociferante: “agora tudo vai bem.”
Não é o pessimismo socrático de que um galo é devido a Asclépio, mas a não crença
na possibilidade da transformação aliada à certeza de que este mundo não é mais o
seu.
A postura crítica com ambições revolucionaria fazia sentido no mundo facista-
clerical, mas agora tal crítica é inútil. Entretanto se tornou uma aliada de seu próprio
coveiro sem o saber. O inimigo se instalou inclusive na estrutura da linguagem. Por uma
ironia do destino, por exemplo, a “crítica” agora é antes de tudo um uma aliada da nova
ordem,; isso fica claro na questão sobre a legalização do aborto, na propaganda do jeans
Jesus etc. O mundo foi dessacralizado, a vida foi dessacralizada, a coerção se escondeu
por trás da tolerância e a rebeldia apenas ensaia um gesto revolucionário. Só resta
resistir. Pasoline já não é tão otimista quanto à época dos poemas friulanos.
O novo fascismo, que antes é um fascismo moral e muito pior que os
movimentos totalitários do século XX, porque não uma coerção externa, mas porque
se trata de uma violação interna, muito mais sutil, mas de efeitos desastrosos, é o
grande responsável pela mudança nos homens. Opera uma transformação tão grande
que para fins de descrição, apenas a enunciação gramátical já não é mais suficiente, é
necessário a ótica da semiologia, uma descrição somática. É esse novo fascismo que
desaloja Pasoline de seu sonho revolucionário. À medida que vai se desanimando de
um otimismo para o futuro, seu cinema também toma feições mais densas, como em
salò – um totalitarismo hedonista, onde taras e prazeres correm por valas estreitas,
onde a alegria morta é arrancada ao maquinismo da carne, em que a permissividade é
aquela que satisfaz à sanha do dominador. Ali não há mais vida, apenas aparência de
vida.
As poesias friulanas são testemunho, saudades, de seu apelo a um mundo
melhor. Sua participação no PCI também foi testemunho de sua sanha revolucionária.
Mesmo passado algum tempo já longe de sua terra natal e já dedicado a produção de
roteiros e romances, ainda dá demonstração de seu engajamento. As crônicas Corsárias,
bem como todo o conjunto de crônicas compreendidas entre 1960 a 1965, nos fala de
sua vontade revolucionária. Responde com ternura e esmero às perguntas dos leitores,
bem como refuta e ataca agressivamente, quando a situação o exige, no espaço
jornalístico de Vie Nuove.
Vez que a gramática está contaminada, resta a linguagem do cinema para
denunciar e resistir. É necessário um outro suporte, uma nova arte, uma nova expressão
que fuja completamente ao clima tecnicista, superficial e burguês que a tudo
contaminou. Para Pasoline, as conclusões de suas observações não são veiculadas
apenas a partir de uma linguagem estritamente escrita, analista, não é um relatório
médico, por exemplo, ou de alguém que pertença a qualquer outro tipo círculo técnico.
À estilística literária se junta uma maneira plástica de expressar o real. Veja, que, por
exemplo, quando fala da derrocada do velho mundo, daquele mundo que existia sob a
égide dos valores como, família, ordem e Deus, fala de mudanças físicas, mudanças de
comportamentos físicos, mudanças no modo de falar, de se portar, no modo de olhar.
Mas fala de mudanças comportamentais sem querer ser psicólogo behaviorista. Pasoline
dá estatus de linguagem ao cinema.
Gostaria ainda de invocar aqui, mais um caso emblemático da tragédia
moderna, ou, ao menos aquilo que se mostra com o embate dos dois mundos. Nesse
texto, Pasoline dá uma mostra de sua observação plástica-somática de sua época. Trata-
se da fuga de um prisioneiro e o suicídio de um policial. Tal escrito, também em Jovens
Infelizes, com o título Argumento para um filme sobre um policial. Aqui, encurtando a
história, trata-se de um fato anunciado pelos jornais daqueles dias. Um prisioneiro que
sob a guarda de um policial, empreende fuga. O policial, atordoado, se suicida. Pasoline
tece de modo claramente e condensa nesse texto. Tanto o policial quanto o prisioneiro,
ainda pertencem àquilo que Pasoline chama de mundo pre-consumista, palioindustrial.
Aqui, tal demarcação não é somente algo retórico, uma um delimitação histórica
meramente ideológica ou abstrata. Toda demarcação entre época do consumo e época
do pré-consumo vem com uma caracterização do homem a partir de uma perpectiva
fisionômica, diga-se, somática. Pasoline é muito sensível à linguagem corporal, à
linguagem da carne. Ele extrai das aparências, do real, toda uma história de mudanças,
de conflitos, de declínio e transformações. É a mesma linguagem cinematográfica.
Poderia dizer que sua linguagem é cinematográfica, se sem, como em alguma parte
adverte, que não se trata de um método lombrosiano de caracterização fisionômica, mas
de visão semiótica. A mudança antropológica não é apenas uma transformação
ontológica, mas é uma modificação visível aos olhos, que se mostra na flor do
fenômeno factual.
Sua produção cinematográfica, bem como toda sua teoria cinematográfica,
compilada em Empirismo Herético, é toda demarcada por esse desejo plástico de
mostrar o real tal qual é. Nessa perspectiva, o cinema, para Pasoline, não é apenas um
mero suporte, um suporte meramente diferente para expressar uma mesma idéia que
poderia ser dita em outro tipo de suporte, como o da literatura, por exemplo, ou da
música. O cinema possui sua peculiaridade epistemológica por assim dizer. Algumas
coisas apenas podem ser mostradas por esse tipo próprio de expressão. Claro que toda
essa teoria tem um fundo de embate com a chamada nacionalização da língua italiana. A
Itália era um acervo dialetal, naquela época. A nacionalização do florentino coincide
com a instrumentalização da língua. Uma língua feita e escolhida para os signos do
poder. Tal língua contaminada não mais atenderia os propósitos artísticos de Pasoline. É
necessária outra linguagem: a linguagem do real.
Mas é isso: a existência de Pasoline foi toda ela um ato incômodo. Sua crítica
sempre ácida e cheia de realismo. Em tudo soube ser um intelectual engajado, mesmo já
desprovido de grandes esperanças para o amanhã. Pasoline morreu cedo; quem sabe se
sua existência se estendesse mais uma migalha de tempo sobre esta terra sua revolta se
tornaria possibilidade de revolução. Mas creio que não, pois o mundo só tem se tornado
mais feio desde antes. De alguma forma é como se não houvesse possibilidade de
devolver à existência qualquer possibilidade de beleza.
Emerson de Almeida Fonseca – Matrícula 110115724