Post on 22-Jul-2016
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NÔMADES DIGITAISQuem são e como eles ganham dinheiro e se sustentam na estrada
▌CAPA
VIAJANDO DE BICICLETA
Conheça a história de Argus e o que se pode aprender pedalando mundo a fora
CICLISMO E VIAGEM ▌
A revista Pé Na Estrada foi desenvolvida
como sendo um compilado de artigos de
blogs, páginas e referências da internet sobre
experiências com viagem que envolvem arte,
cultura, música e trabalho. A proposta é unir
vertentes que englobam temas distintos,
mas que convergem para uma mesma
realidade: o mundo contemporâneo e a
forma como você se relaciona com ele.
Seja em sonhos e objetivos pessoais,
vida profissional, hobbies e interesses,
a melhor forma de descobrir é explorando.
Então junte sua bagagem e vamos descobrir
o que a vida tem de melhor.
CONCEITUAÇÃO E PROJETO GRÁFICO
Lucas Luccas CAPA POR
Abhimanyu Bose (www.abhimanyubose.com)
TEXTOS POR
Gluck Project (www.gluckproject.com.br)
Vira Volta
(www.projetoviravolta.com)
Fêliz com a Vida(www.felizcomavida.com)
Dicas de Fotografia
(www.dicasdefotografia.com.br)
Editoral
36
1210
TRABALHO E CARREIRA
CICLISMOE VIAGEM
CAPA
ESTILODE VIDA
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015 3
POR CLAUDIA REGINAWWW.DICASDEFOTOGRAFIA.COM.BR
Por muito tempo tive uma empresa de
criação de blogs. Sendo os blogs, hoje,
uma ferramenta incrível e barata para
divulgação do trabalho de pequenas
empresas e pequenos empreendedores,
vi nascerem muitos negócios. Fiz o blog
de gente que largou o escritório para fazer
cupcakes, de gente que largou o consultório
para fotografar e que largou o chefe para
fazer qualquer coisa em casa que permitisse
mais tempo com a família.
Vi gente se decepcionar, vi gente ganhar
muito dinheiro e ficar, de novo, sem
tempo. Vi gente que não esperava a hora
de chegar a segunda feira pois o sábado
era dia de fotografar casamento até de
madrugada. Vi gente voltando a trabalhar
em prédios pro passatempo voltar a ser
passatempo. Por que isso aconteceu?
É bem possível gostar do que se faz sendo
dentista ou fotógrafa. Mas, normalmente,
dentistas têm uma vantagem: conseguem
separar melhor o que é trabalho e o que
é diversão. Afinal, o trabalho dela não é
passatempo de quase ninguém.
MEU TRABALHO, SEU PASSA-TEMPO
TRABALHO E CARREIRA
Porque essas pessoas passaram a trabalhar com algo que amavam.
FOTO PORNEIL MORALEEWWW.FLICKR.COM/PHOTO/NEILMORALEE
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Quem inventou a frase “escolha um trabalho
que goste e nunca mais trabalhará um dia
na sua vida” não podia estar falando uma
besteira maior! E não, não foi Confúcio.
Trabalho é trabalho. Trabalhar com o que
gostamos é essencial, mas quando não
separamos as coisas corremos o triste
risco de deixar de gostar. Sim, posso
garantir que nosso trabalho pode ser
prazeroso, mas ainda sim não é um hobby.
Trabalho tem contrato, tem expectativas,
tem dinheiro, tem horários e prazos a
cumprir. Uma fotógrafa de casameto pode
amar muito seu trabalho, por exemplo,
mas se acordar no sábado com preguicinha
não dá pra simplesmente deixar tudo pra
lá e ficar dormindo o dia inteiro. Se fosse
hobby, poderia. Essa é a diferença.
Não compreendo quem quer milhões de
clientes e muito trabalho. Não compreendo
quem acha bonito dizer que está cheio
de trabalho no facebook, com a agenda
repleta de prospectos e compromissos.
Se a questão é financeira e você precisa
da agenda lotada para conseguir pagar as
contas no fim do mês… então é hora de
rever seus preços ou rever a organização
do seu negócio.
Eu, por exemplo, não quero ser fotógrafa
de gente rica. Para conseguir trabalhar
pouco e não cobrar preços inviáveis, a
única opção que considero ética é ter um
custo de vida menor.
Não tenho TV a cabo, não tenho carro, vivo
em um apartamento minúsculo. Tudo isso,
entre outras coisas, para poder trabalhar
menos cobrando um valor justo para
minhas clientes. Tenho uma amiga que
trabalha meio período e recebe pressão de
todos os lados, da família e da sociedade,
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Clientes são quem pagam minhas contas, por isso abro mão de muita coisa para poder trabalhar do jeito (e na quantidade) que quero.
para pegar um segundo trabalho e ganhar
mais. Se ela trabalha só à tarde e tem
a manhã livre, parece o caminho lógico.
Por que ficar em casa, lendo e brincando
com seus cachorros, se dá pra ir pra rua
ganhar mais números na conta bancária?
Acho tudo isso maluquice: vejo muito
mais sentido em ganhar menos e ficar
metade do dia brincando com cachorros.
Ela ama o que faz, e faz questão de não
fazer muito para continuar amando.
Bertrand Russel, no seu livro O Elogio ao
ócio, cria uma solução (bem utópica, é de
se admitir) para uma sociedade com mais
ócio criativo. Uma sociedade onde todos
possam trabalhar por meio período, onde
tarefas como a criação das crianças são
divididas e, mais importante, onde todos
tenham tempo livre. Seja para pensar no
sentido da vida, seja para ir tomar sol na
praia. É nesse momento que a mágica
acontece. Se você está pensando em
fazer a transição do trabalho-típico para
o trabalho-hobby, coisa que muita gente
está conseguindo fazer graças à internet,
pense nisso. Amar o que se faz para pagar
as contas é maravilhoso, mas trabalhar
muito compromete não só a qualidade
final do seu trabalho, mas também sua
qualidade de vida. Melhor um dentista
feliz do que dois fotógrafos voando. ♦
5PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Existem diferenças entre hobby e trabalho que podem mudar a maneira como você lida com a atividade.
FOTO POR DOMIZIANA SWWW.FLICKR.COM/PHOTO/AAYLA
POR FERNANDA NEUTEWWW.FELIZCOMAVIDA.COM.BR
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COMO É A VIDA DE UM NÔMADE DIGITAL?
CAPA
FOTO POR MOYAN BRENNWWW.FLICKR.COM/PHOTOS/AIGLE_DORE/
São pessoas que se aproveitam da
tecnologia e da internet para realizarem
seu trabalho independentemente do lugar
onde estejam. Eles não tem moradia fixa e
obviamente trabalham em negócios que
possam ser geridos online. Essa comunidade
é bem grande, mas hoje ainda concentra
muitos americanos, europeus, alguns
australianos e infelizmente, pouquíssimos
brasileiros ou mesmo sul-americanos.
A primeira em vez que eu ouvi essa
expressão foi há quase 2 anos, quando
conheci o Mark Manson, meu atual
namorado. Ele vive como nômade digital
há 5 anos e conhecê-lo fez a minha ca-
beça quase explodir. Não conseguia parar
de perguntar: "Como assim você mora
onde quiser? Como assim você ganha
dinheiro trabalhando online? Como assim
você tem vários amigos que fazem isso?
Como assim? Como assim?"
Me afoguei em um mar de curiosidade ao
mesmo tempo em que meu mundo desabou.
Tudo o que eu sempre pensei sobre carreira,
sobre ter de trabalhar como louca por 335
dias para me contentar com 30 dias de
férias, sobre trabalhar 30 anos e se aposentar,
sobre comprar um apartamento e pagar
por 10 anos… Tudo isso podia ser diferente?
E o que eu percebi foi que sim, não era
fácil mas, podia ser diferente.
Um dos grandes precursores desse estilo
de vida foi o americano Tim Ferris, que
ficou milionário por causa do best seller
“The 4-Hour Workweek”. Neste livro ele
apresenta uma fórmula bem simples,
mas não muito realista de que todo
mundo é capaz de ter um negócio online
e ser feliz trabalhando 4 horas por sema-
na sem ter de esperar a aposentadoria
para aproveitar a vida.
7
O que são nômades digitais?
Quem pode ser um nômade digital?
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Este discurso ganhou tamanha força que
existem milhares de sites e negócios
online no mercado americano que ganham
dinheiro vendendo essa ideia e motivando
pessoas a pedirem demissão e a construírem
o trabalho dos seus sonhos, se possível,
viajando. O problema é que muitos deles
trazem somente o discurso sobre a geração
wireless e o de que você deve seguir a
sua paixão, mas no fundo, não ensinam
absolutamente nada de útil.
Seguindo essa linha de raciocínio, teorica-
mente, todo mundo pode ser um nômade
digital, certo? Afinal, é muito simples entrar
no WordPress e começar um blog de
graça, montar uma loja online vendendo
produtos da China ou até criar um brechó
online. Também existem profissões em
que é possível trabalhar como freelancer
que é o caso de designers gráficos, progra-
madores, escritores, fotógrafos, jornalistas,
blogueiros, consultores e coachings, por
exemplo. A grande verdade é que, como
em todas as profissões existentes no
planeta, alguns vão dar certo e vão ser bem
sucedidos, e outros (quase sempre a
grande maioria) não.
Não porque eles sejam menos competentes
do que outros, mas porque é preciso ser
realista e entender que essa não é uma
escolha de vida fácil e também exige
tanto quanto ou até mais trabalho e
sacrifício do que o emprego que você
provavelmente tem hoje em dia.
Isso não significa que uma coisa exclua a
outra, mas não é porque você é um nômade
digital, que vai viver perambulando por
hostels fazendo check-list de pontos turís-
ticos e também não significa que em algum
momento você vai “se encontrar” e voltar
para casa.
Ser nômade digital é uma decisão de vida.
Eles conscientemente não têm uma casa
para voltar. Eles escolheram não ter raízes
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Nômades digitais não são mochileiros e nem estão em um período sabático.
FOTO POR MOYAN BRENNWWW.FLICKR.COM/PHOTO/MOYAN_BRENN
em seus países ou em qualquer outro país
onde eles venham morar eventualmente.
Eles não estão fugindo de nada e nem estão
em busca de nada. Eles simplesmente
aproveitam o percurso e as novas paisagens
enquanto vivem a vida e trabalham
“normalmente”.
É claro que mudanças acontecem no
percurso. As pessoas casam, têm filhos,
expandem seus negócios ou mudam seus
gostos pessoais. Mas aqueles que decidem
viver esse estilo de vida geralmente aca-
bam conciliando tudo isso com a vida na
estrada. Quando olhamos de fora, parece
a vida dos sonhos de qualquer um. Viajar
pelo mundo sem precisar estar de férias,
trabalhar de onde quiser e ainda ganhar
dinheiro! Mas, ser um nômade digital tem
seus altos e baixos e, depois de viver dessa
forma por 6 meses, eis o que posso dizer:
1. Temos a oportunidade de conhecer
mais profundamente vários lugares.
2. Conhecemos pessoas e culturas incríveis
o tempo todo.
3. Temos flexibilidade de horários.
4. O custo de vida é relativamente mais baixo.
1. Estamos trabalhando em lugares onde
quase todo mundo está de férias
2. Temos de lidar com o stress que é
precisar estar conectado o tempo todo.
3. Não pertencemos a lugar nenhum.
4. Nós somos sem fronteiras, mas o
mundo não é.
Para quem sonha em viver desse jeito,
saiba que não é fácil. O segredo é fazer
um balanço e avaliar se os pontos positivos
te fazem mais felizes do que os negativos
e aí sim, vale muito a pena! É claro que
essas são percepções baseadas na minha
experiência pessoal, sendo brasileira e
tendo vivido apenas 6 meses no Sudeste
Asiático conhecido por ser um destino
relativamente barato e atraente principal-
mente entre os iniciantes.
Não faço a menor ideia se eu vou viver
essa vida para sempre, mas nos próximos
6 meses a aventura continua, desta vez,
nas Américas. ♦
9PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Sim, é tão legal quanto parece porque…
Mas, nem tudo são flores porque…
POR CAROL FERNANDESWWW.PROJETOVIRAVOLTA.COM
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Já faz 9 anos que ele voltou da viagem e
eu sempre me perguntei se era possível
guardar todos os aprendizados e sensações
de uma experiência tão intensa como essas
depois que voltamos para a loucura da
nossa sociedade. Sai da conversa com o
coração radiante. Quando decidiu fazer
a viagem, em 2001, ele tinha apenas 25
anos e nenhum dinheiro no bolso. Mas isso
nunca o fez desistir do sonho. Ele estava
determinado a fazer com ou sem dinheiro
e então surgiu a grande idéia de fazer de
bicicleta, o que deixaria tudo bem mais barato.
A falta de dinheiro também estimula a
criatividade e só quem fica sentado no
sofá reclamando da vida não encontra
soluções. Para custear sua viagem ele criou
um projeto que se chamava “Pedalando e
educando”, onde ele passava por escolas no
seu caminho ensinando história e geografia
dos países que já tinha visitado. Com isso
ele conseguiu o patrocínio de três em-10
ARGUS VIAJOU DE BICICLETA SOZINHO POR TRÊS ANOS
CICLISMO E VIAGEM
O Argus é um arquiteto de 39 anos que trabalhava com construção e um dia decidiu viajar o mundo 3 anos e meio, mesmo sem ter a grana.
FOTO POR XAVIWWW.FLICKR.COM/PHOTO/18614695@N00
presas que gerava 300 dólares por mês
e ainda se sentia útil para a humanidade.
Combinação perfeita.
Na média ele gastava 500 dólares por
mês. Bem menos do que ele gasta parado
no Rio de Janeiro atualmente. Mas ele
alerta, viajar barato é uma arte e demanda
disposição. Em contrapartida, pra ele,
viajar dessa forma trouxe experiências
maravilhosas para a sua aventura e foi
uma oportunidade fantástica de interagir
com os locais e de novos aprendizados.
“Sempre vejo pessoas que sonham em
viajar o mundo e ficam com medo de
‘largar tudo’. Mas eu vivo me perguntando:
largar tudo o quê?” O Argus deu uma das
melhores respostas que eu já vi. Na visão
dele, ele nunca largou tudo, ele apenas
se proporcionou uma oportunidade para
aprender muito mais, inclusive sobre a
sua profissão. E isso só gerou bons
frutos no futuro.
Quando perguntei sobre os medos ele
disse: “O medo sempre existe, mas ele
não pode nos frear ao ponto de impedir a
realização de nossos desejos e sonhos,
ele apenas conscientiza.” Ele se jogou
no mundo sozinho de bicicleta sem ter
nenhum preparo físico ou experiência e
garante que depois que vivemos a aven-
tura aprendemos que o medo é criado
pela nossa imaginação e pela mídia. No
segundo dia de viagem ele tomou o maior
e pior tombo de toda a trajetória, o que
poderia ter acabado com a viagem, mas
mesmo assim ele não desistiu.
Após ter vivido tudo isso ele se sente
muito mais corajoso. E eu entendo exata-
mente o que ele está falando. Viver essa
experiência de experimentar o mundo te
enche de coragem, mesmo que você já
tenha um quê dela.
11PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Como assim largar tudo?
O medo e a coragem
FOTO POR ARGUS CARUSOO WWW.ARGUSCARUSO.COM.BR
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
Viajar com tão pouco foi um desafio que
impactou a forma de pensar. Quando
voltou levou um tempo para se readaptar
novamente, mas hoje ele se sente um
cara “normal” (diz ele fazendo o gesto de
entre aspas com as mãos), mas 9 anos
após ter voltado, ele ainda carrega forte
com ele todos os aprendizados da sua
aventura e tenta aplicar ao máximo em
sua vida. Pra ele é impossível viver uma
experiência como essa e não se trans-
formar e mesmo após tanto tempo ele
continua desapegado e nada consumista.
Na sua casa não tem TV e programa de
shopping é uma coisa que ele não faz.
Ter vivido essa experiência mudou a
trajetória da sua vida e abriu muitas
portas no futuro. Ele lançou o seu livro
“Caminhos”, fez várias exposições e
palestras, conseguiu ótimas oportunidades
de trabalho na sua carreira e atualmente está
trabalhando no projeto de uma bicicleta a
vela anfíbia e foi convidado pela prefeitura
de Niterói para coordenar o projeto Niterói
de Bicicleta. É, pelo visto sua vida continua
cheia de aventuras e é isso que deixa a
vida empolgante.
Ter vivido essa experiência mudou a
trajetória da sua vida e abriu muitas portas
no futuro. Ele lançou o seu livro “Caminhos”,
fez várias exposições e palestras, con-
seguiu ótimas oportunidades de trabalho
na sua carreira e atualmente está traba-
lhando no projeto de uma bicicleta a vela
anfíbia e foi convidado pela prefeitura de
Niterói para coordenar o projeto Niterói de
Bicicleta. É, pelo visto sua vida continua
cheia de aventuras e é isso que deixa a
vida empolgante.
Argus é mais um cara como todos nós,
que estava levando a sua vida, mas que
um dia decidiu viver uma aventura única
pois acreditava que isso só ia trazer bons
aprendizados. Ele não era rico, nem milio-
nário, muito pelo contrário. Mas encontrou
uma forma de realizar o seu sonho ao
invés de ficar apenas sonhando. ♦
12
Os aprendizados da experiência
Um mundo de oportunidades
13PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
POR FRED DI GIACOMO WWW.GLUCKPROJECT.COM.BR
Meia dúzia de folhas de sulfite grampeadas
e com um desenho feito com uma caneta
Bic mudaram minha vida. Era um trabalho
sobre a cultura punk na mesa da minha
mãe – professora de sociologia. Molecote
cheirando à leite, eu via aquele desenho
de um cara moicano, vestindo calça rasgada
e calçando coturno e achava aquela a coisa
mais legal (e brutal) do mundo. Tão legal
quanto as gangues do filme “Warriors –
Selvagens da Noite” que quebravam o
pau numa Nova York futurista. Eu tinha lá
meus 7, 8 anos de idade e pedi pra cortar
o cabelo espetado. No dia seguinte, todos
meus coleguinhas passaram a me chamar de
“gótico”, inspirados pelo bisonho personagem
de Eri Johnson na novela “De corpo e alma”.
Não era bem a referência que eu buscava.
Quando tinha uns 12 anos, meu pai trouxe
uns fanzines pra casa. Aquilo era fantástico:
dava pra fazer sua própria revista em casa
com cola, papel e xerox. Era baratinho,
tosco, mas era um jeito de gritar e todo
mundo ouvir. Foi assim que criei o Afro-
ciberdeli@, meu primeiro zine, com meu
irmão e um amigo, em 1997. A gente pedia
patrocínio pro comércio local, imprimia
FAÇA VOCÊ MESMO!
ESTILO DE VIDA
FOTO POREYE STEEL FILMWWW.FLICKR.COM/PHOTO/EYESTEEL
PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015
umas 120 cópias e distribuía no colégio.
Eu tinha 13 anos e pela primeira vez
senti que as pessoas olhavam pra mim.
Para um magrelo nerd, esquisito e tímido
foi uma sensação poderosa. As pessoas
OLHAVAM PRA MIM e, de quebra, ainda
liam o que eu escrevia. Uau! Imagina se
elas ainda parassem para escutar o que
eu grunhisse igual aquelas bandas que
eu estava descobrindo: Ratos de Porão,
Devotos do Ódio, Nirvana… O punk rock
falava das coisas que eu vivia. Eu era
claro demais pra ser um rapper e pobre
demais pra ser playboy. O punk rock era
aquele meio termo “classe média-baixa
records” sujo e agressivo. Nessa época
eu ainda ouvia Chico Science, Sepultura e
Planet Hemp, mas quando escutei a linha
de baixo de “O Dotadão deve morrer” do
disco “Feijoada Acidente?” – que reunia
os maiores clássicos do punk brasileiro
regravados por João Gordo e Cia – a casa
caiu. Rasguei minha calça jeans, furei a
outra orelha, comecei a só usar preto e
fui tocar baixo. Virei punk num calor de 40
graus de uma cidade caipira do interior
de São Paulo, esquina com o Mato Grosso
do Sul e famosa por ter exportado para o
mundo as curvas da Sabrina Sato.
14FOTO POR RACHEL VOORHEESWWW.FLICKR.COM/PHOTOS/RACHELVOORHEES
A principal lição que o punk rock me
ensinou foi o do it yourself. Era possível
“fazer”, se você corresse atrás. Dava pra
montar uma banda tocando três acordes,
dava pra fazer uma revista xerocando seus
rabiscos e dava para organizar festivais
de rock no sertão paulista. O mercado hoje
pode chamar isso de empreendedorismo,
mas o punk chamava de “faça você mesmo”.
Sua cidade não tem bandas legais? Monte
uma! Sua cidade não tem uma política boa?
Faça! Seu cinema não passa bons filmes?
Filme-os! Faça, faça, faça. O principal
arrependimento de quem está no leito de
morte são as coisas que a pessoa deixou
de fazer. Não deixe para amanhã. Faça hoje.
O poeta Drummond de Andrade bancou
a primeira edição do seu livro do próprio
bolso – o best seller André Vianco fez o
mesmo usando seu FGTS. Glauber Rocha
inscreveu o cinema brasileiro no cenário
mundial com o lema do “uma câmera na
mão e uma ideia na cabeça” e Zé do Caixão
virou uma lenda filmando com amigos.
O Facebook começou no quarto do
Zuckerberg e a Apple na garagem dos pais
de Steve Jobs. A vida sempre foi muito
mais sobre ter uma boa ideia do que sobre
esperar as condições ideais para executá-
-la. Enfim, tire seus sonhos do papel hoje.
Nem que eles sejam uma versão xerocada
do mundo ideal. ♦
15PÉ NA ESTRADA JUNHO DE 2015