Post on 16-Oct-2021
Periodizaçãoecompetiçãodegramáticas:ocasodoportuguêsmédio
CharlotteGalvesIEL/Unicamp
galvesc@unicamp.br
I.Paraumanovaperiodizaçãodoportuguês
Com base na língua escrita, a periodização tradicional do português
reconhece três grandes fases, ou períodos, na história da língua: o português
arcaico, o português clássico e o português moderno. Mattos e Silva (1994,
2006)problematizaessaquestão,apresentandooquadroaseguir:1
Figura1:QuadroMattoseSilva
Nesse quadro, observa‐se que os estudiosos variam em relação às
subdivisões desses grandes períodos, bem como à denominação que lhes
1OquadroreproduzidoaquiéoquadrodeMattoseSilva(2006).
atribuem. É interessante notar que, exceto Leite de Vasconcelos,2 todos os
autores considerados sub‐dividem o português arcaico em duas partes. À
primeira, Serafimda SilvaNetodáonomede “português trovadoresco”, Pilar
Vasquez‐Cuesta de “galego‐português”, e Lindley Cintra de “português antigo”.
Cada uma dessas denominações focaliza um aspecto diferente da língua. A
primeira faz referência ao fato de que essa primeira língua documentada tem
como veículo privilegiado a produção lírica das cantigas trovadorescas. A
segundaressaltaoaspectogeográfico‐políticodaidentidadeinicialcomogalego.
Aterceiraenfim,maisneutraemrelaçãoaessesaspectosquepodemoschamar
de história externa, estabelece uma fronteira final para a ‘antiguidade’ do
português bem anterior à tradição. Antes de voltar para a questão das datas,
olhemosagoraparaotermoescolhidoporcadaumparadefinirasegundaparte
da primeira fase. Serafim da Silva Neto a chama de “português comum,” Pilar
Vasquez‐Cuesta de “português pré‐clássico” e Lindley Cintra de “português
médio”.Essaúltimadenominaçãoseráretomada,epopularizada,porIvoCastro
na sua Introdução à historia do português. É interessante ressaltar o termo de
“portuguêspré‐clássico”propostoporPilarVasquezCuesta.Nele,temosaidéia
inovadora de que se trata de umperíodo que, em lugar de terminar um ciclo,
prenunciaoseguinte.Éumainversãodeperspectiva,quedeixadedaraoséc.16
ovalordelimitefortequetememautorescomoLeitedeVasconceloseSerafim
daSilvaNeto,umavezque,paraeles,éograndedivisordeáguasentrealíngua
antigaealínguamoderna.3Enfim,antesdeprosseguir,gostariademedeterum
pouconainteressantenoçãode“línguacomum”queSilvaNetoapresentanasua
Históriada línguaportuguesa. Paraele, “aindaque ... cristalizadoemLisboa,o
portuguêscomumnãorepresentaotipolingüísticodeumadeterminadaregião.
Pelo contrario, eleé , realmente,umamédia, a conseqüênciadeumanivelação
lingüísticaprovocadapelosfatoshistóricos”(op.cit.p.380).Ouseja,paraSerafim
da SilvaNeto, a língua comumé o produto do contato entre diversos dialetos,
queleva,nafonéticaenamorfologiaaumcertonivelamento.Nesseprocessode
nivelamento,asgrandescidades(emPortugalessencialmenteCoimbraeLisboa)
2Noquadroapresentadonoartigode1994,outrosautoressãocitadoscomocompartilhandoestaconcepção:SaidAli,IsmaelLimaCoutinho,MattosoCâmaraeFernandoTarallo.3AchamosumaidéiasemelhanteemPaulTeyssiernasuaHistóriadaLínguaportuguesa.
desempenhamumpapelessencial,nãopelofatodeimporemseuprópriodialeto,
masporproporcionaremagrandemesclahumanafontedocontato lingüístico.
Peloseuprestígiopolíticoecultural,akoinéassimformadasetornaalínguade
prestígio, e constitui a base da língua padrão. Resta ainda a difícil tarefa de
entender como esse fenômeno de nivelamento atuou sobre a sintaxe na
elaboração de uma nova gramática que conhecerá seu apogeu nos chamado
períodoclássico.
Nestecapítulo,queriaproporumaperiodizaçãoalternativa,emqueoséc.
16 deixa de ser a grande fronteira. A outra novidade é que se trata de uma
periodizaçãobaseadananoçãodegramática,entendidacomoacompetênciaque
os falantes têm da sua língua. Desse ponto de vista, os textos não sãomais o
objetofinaldanossainvestigaçãomasomeioparadistinguirasgramáticasdos
falantesdeportuguêsqueosescrevem.Procuramoslocalizarnelesaemergência
degramáticasnovas, iniciandonovosperíodos. E,seguindoocaminhotraçado
por Anthony Kroch em vários artigos,4 interpretamos os períodos em que se
observa uma grande variação nos textos como períodos de “competição de
gramáticas”. Tal competição se trava entre uma gramática inovadora e a
gramáticaconservadora,quenãodeixadeserexpressadeumdiaparaooutro,
comobemdizCarolinaMichaelisdeVasconcelos,citadaporRosaVirginiaMattos
eSilvanoartigoreferidoacima.
Com base nessa concepção da evolução da língua portuguesa nos textos,
Galves,Namiuti, Paixãode Sousa (2006)propõemo seguinte gráfico emque a
novaperiodizaçãoécontrapostaàperiodizaçãotradicional.
4Cf.Kroch(1994,2001).
Figura2:Novapropostadeperiodização(Galves,NamiutiePaixãodeSousa,
2006)
As linhas azuis representam a periodização tradicional, sem a subdivisão
doportuguêsarcaico.Emvermelho,representamosumaoutraversãodamesma
história, levandoemconsideraçãoasgramáticasquesesucedemnahistóriado
português. Nesta visão, o primeiro período é a primeira fase do português
arcaiconaperiodizaçãotradicional.Osegundoperíodo,aindasemdenominação
–voltaremos a essa questão na seção III – abrange a segunda fase do período
arcaicotradicional,maisoportuguêsclássico.Aíresideagrandeinovaçãodessa
proposta, que procuraremos fundamentar empiricamente na próxima seção: a
existênciadeumafase,ouperíodo,gramaticaldoportuguêsquevaidasegunda
metade do séc. 14 até o séc. 18. Essa fase engloba o português chamado por
LindleyCintrademédio(eporPilarVasquez‐Cuestadepré‐classico)bemcomo
oportuguêsclássico.Oprimeiro,comoveremos,secaracterizaporumagrande
variação entre formas antigas e formas inovadoras, ou seja uma forte
competiçãodegramáticas.Osegundo,queaparecenostextosnodecorrerdoséc.
16, e dura até a primeira metade do séc. 18, corresponde à fase em que a
gramática inovadora se impôs definitivamente.Desse ponto de vista, o séc. 16
nãosecaracterizacomooiníciodeumnovoperíodo,mascomoofimdafasede
competição entre a gramática antiga e a nova, com a vitória da gramática
inovadora.5
II.Abaseempíricadanovaperiodização
Queriaagoradarumconteúdoempíricoaestapropostaevoltaràquestão
da datação, olhando para dois conjuntos de dados. O primeiro conjunto é
compostodefenômenosfonéticosemorfológicos,tiradosdolivrodeEsperança
Cardeira (Cardeira, 2005). O segundo conjunto diz respeito a fenômenos
sintáticos,tiradosdatesedeCristianeNamiuti(Namiuti2008).
Cardeira (2005) estuda a evolução da língua portuguesa num corpus de
textosdegênerosvariadosescritosentre1375e1475(cf.alegendadafigura3).
No gráfico a seguir, elamostra a substituiçãonamorfologia de formas antigas
por formasmodernas: na segunda pessoa do plural (“amades” substituído por
“amais” – variável B), nos particípios dos verbos da 3a conjugação (“metudo”
substituídopor“metido”‐variávelC),nosufixoadjetival (“–vil”substituídopor
“–vel” –variável D), e enfim na expressão do pronome possessivo (“sa”
substituídopor“sua”–variávelE)6
5Note‐sequeoutroperíododetransição,oucompetiçãoaparecenoséc.18.TemsidooobjetodenumerosostrabalhosbaseadosnoCorpusTychoBrahe(cf.http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/index.html).6NãoconsiderareiaquiavariávelA,quedizrespeitoàvariaçãodegrafia,reveladoradamudançanapronúnciadasnasaisfinais.
Figura 3: Evolução das formas arcaicas entre o português clássico e o
portuguêsmédio(Cardeira2005)
Observamos que as formasmodernas aparecem numa freqüência de 0 a
60% em 1375, o quemostra que algumas delas já vinham se implementando
desdetemposmaisantigos.Note‐seemparticularos60%de“sua”emlugarde
“sa”.Emcompensação,aformasincopadada2apessoadopluralnãoapareceno
primeiro ponto da linha do tempo do gráfico. Encontramos portanto uma
variaçãonoiníciodasmudanças,bemcomoseufim(cf.oquadrofinaldeMattos
e Silva (1994).Mas fica claropara todas as formas emvariaçãoqueoperíodo
maiordecrescimentodasnovasformassedánaprimeirametadedoséc.15.
O quadro apresentado por Cardeira sustenta portanto empiricamente a
hipótese de que, do ponto de vista damorfologia é entre 1350 e 1450 que a
línguaescritaexpressaatransiçãodeumperíodoparaooutro,dentrodoponto
devistapropostoaqui,dagramáticaarcaicaparaagramáticainovadoraquese
expressaráplenamentenostextosporvoltade1550(cf.MattoseSilva,1994).O
que o quadro de Cardeira nos mostra é que o português “médio” ou “pré‐
clássico”, é um período marcado pela variação entre as formas antigas e as
formasnovas.
Infelizmente, não temos análises sintáticas realizadas no Corpus de
Cardeira. Mas podemos verificar, com base em outros textos, que a sintaxe
também se transforma nesse mesmo período. Namiuti (2008) estuda o
fenômeno da interpolação em um corpus de documentos notariais (elaborado
por Martins, 1994) e de documentos administrativos e literários (Corpus de
Parcero, 1999, e Corpus Tycho Brahe), abrangendo do séc. 13 ao séc. 16. Ela
mostra que se podem definir dois momentos gramaticais caracterizados por
propriedadesdistintasdainterpolação:
A.1operíodo(GramáticaI):
‐interpolaçãodanegaçãoedeoutrosconstituintesdopredicado,
‐ainterpolaçãoéatestadaemcontextosdeprócliseobrigatória,
‐oclíticoécontíguoàconjunção(C).
O exemplo a seguir, tirado de Martins (1994) ilustra essa gramática.
Observamosqueoelementointerpoladoentreoclíticoeoverboéumsintagma
preposicional (“ao dicto Mosteiro”), que se trata de uma oração subordinada,
contextodeprócliseobrigatória,eenfimqueoclíticoécontíguoàconjunção:
1. queasaodictoMosteirodeuiãAlg~uaspessoas(Lx,1357)
B.2operíodo(GramáticaII):
‐desapareceainterpolaçãodeconstituintesdiferentesde“não”,
‐ surgem novos contextos para a interpolação do "não“ – em orações
raízesneutras,quenãosãocontextosdeprócliseobrigatória.
‐surgeumanovaordemlinearnassentençasdependentesnegativas,sem
contiguidadeC‐cl.
Osdoisexemplosaseguirilustramessanovagramática.Em(2),temosuma
oraçãonãodependente,quenãoconstituiumcontextodeprócliseobrigatória.
Em(3),encontramosaordemConjunção‐sujeito–clítico–verbo,emquenãohá
contigüidade entre a conjunção e o clítico. Enfim, os dois exemplos trazem a
interpolaçãode“não”.
2. DomManoeldeLimaonãoquizouvirnaquelenegócio,dizendo‐
lhe , queera filhomais velhode seupai , que sequeria irperaoReino ,eque
quando lhe ElRei não desse de comer , que viveria com o que seu pai viveo
.(Couto‐1542,CorpusTychoBrahe)
3. Êste conselho houvera Dom Christovão de tomar em princípio ,
tantoqueseajuntoucomaRainha,esegurar‐seemparte,queosinimigosonão
pudessemcercar,atéseajuntarcomoImperador,edaserrapuderasairadar
todososassaltosquequizera.(Couto‐1542,CorpusTychoBrahe)
A figura 4 mostra a evolução da sintaxe da interpolação, mais
especificamente o aparecimento de construções em que o clítico não está
contíguoàconjunçãoemoraçõesdependentesnegativas.Olosangopretomostra
afreqüênciageraldeCclnegeoquadradobrancomostraafreqüênciadeCclX
neg(ex:quelheelenãoquizdar)emrelaçãoaCXclneg(ex:queelelhenãoquiz
dar.)
Figura4:Adinâmicadaevoluçãodainterpolação(Namiuti,2008)
Nosdoisprimeirospontosdoeixodotempo,1300e1350,osvaloressão
100% para as duas variáveis. O que mostra que a gramática instanciada nos
textos é G1. Mas em 1450, temos 90% de contigüidade e 40% somente de
oraçõesC‐cl‐X‐neg‐V.Os10%denãocontigüidadeCclnoconjuntodasorações
dependentesnegativaseos60%deoraçõesC‐X‐cl‐neg‐Vmostramairrupçãoda
Gramática2nostextosposterioresa1350.C‐X‐cl‐neg‐Vchegaráa100%apartir
do início do séc. 17, quando elementos outros que a negação deixarão
definitivamentedeseinterpolarentreoclíticoeoverbo.
Oponto importanteparaosnossospropósitoséqueamudançasintática
acompanhanotempoamudançamorfológica,asnovasformasaparecendonos
textosentre1350e1450.Aperiodizaçãotradicionaljáestavaexpressandoesse
fato ao situar a subdivisão do primeiro grande período, conforme os autores,
entre 1350 e 1420. Tal datação é paramuitos decorrente de fatos externos à
língua: fim da produção lírica trovadoresca, batalha de Aljubarrota, início das
grandes navegações, mas a análise propriamente linguística, como vimos, não
desmenteaexistênciadeumafortealteração,quecomeçaemmeadosdoséc.14
e vai se consolidando até atingir sua plena expressão no decorrer do séc.16.
Aqui, interpretamos essa dinâmica como a substituição de G1 por G2 que se
traduznum longo tempodecompetição tantonamorfologiaquantonasintaxe
entreasexpressõesproduzidasporcadauma.
III. Entre o português antigo e o português moderno: o português
hispânico
A figura 5 acrescenta ao quadro deMattos e Silva (2006) duas colunas
relativasàpropostadeGalvesetal.(2006).
Figura5:quadrodeperiodizaçãorevisitado
Aprimeiragramática(G1)éinstanciadanostextosatéc.1350.Asegunda
(G2) que aparece a partir dessa data, inicialmente demaneira limitada, vai se
impondonodecorrerdoséc.16etemsuaexpressãomáximaatéaviradadoséc.
17para18quandocomeçaaaparecerumanovacompetição,correspondendoà
emergênciadoportuguêsmoderno(G3).7
Voltemos agora à questão da denominação desses períodos gramaticais.
Obviamente, trata‐se de uma questão secundária. Contudo, a periodização
costuma ser acompanhada de nomeação. Proponho aqui para G1 o nome de
“galego‐português”, que realça a identidade inicial do português e do galego
devida à sua origem comum no noroeste da península ibérica. Para G3,
precisamosdistinguirportuguêseuropeueportuguêsbrasileiro,umadistinção
ligadadenovoàgeografiaeàsuainfluênciasobreamudançalingüística.Resta
nomear G2, a gramática intermediária entre o português das origens e o
portuguêsmoderno.Galvesetal.(2006),seguindoapropostadeGalves(2004),
lhe dão o nome de “portuguêsmédio”.Mas essa denominação estabelece uma
confusãocomomesmotermo,bastanteconsolidadoemPortugal,parareferir‐se
àlínguadetransiçãoentreogalego‐portuguêseoportuguêsclássico.Assim,na
proposta tradicional, oportuguêsmédioéanteriorao clássico.Napropostade
Galvesetal.oportuguêsclássicoépartedoportuguêsmédio. Issode fatocria
7Cf.Galvesetal.(2005)
uma confusão na interpretação dos termos. Precisamos portanto de um outro
nome. Aqui, com base no estudo realizado em Paixão de Sousa (2004) – e
tambémpensando na noção de português comumde SilvaNeto ‐ gostaria de
proporonomede“portuguêshispânico”.
Obviamente, com “hispânico”, não se faz referencia nem ao espanhol de
hoje,ocastelhanodaépoca,nemaoestadoespanholdehoje.AEspanha,entreos
séc.15e18,nãoéumaunidadepolítica,masgeográficaecultural. Veja‐sepor
exemploousodotermo“Espanha”e “Espanhol”paradesignaroArcebispode
Braga na biografia redigida por Frei Luis de Sousa (grifos meus): “ Eles o
receberamcomgrandeshonrasecomextraordináriasmostrasdeamorealegria,
afirmando lhe cada um por si que nenhuma nova podiam mandar a Sua
Santidadedemaiorgostoqueadesuachegadaàquelelugar,porseroprimeiro
preladoespanholquealiviameficaremcheiosdeesperançasqueseuexemplo
seriabastanteperadarcaloratodososmaisseporemacaminho,cujatardança
tinha assaz desgostado a Sua Santidade. (Corpus Tycho Brahe, S_001,0.1658)”
....“Orachegandoeusubitamente,nãoesperado,edivulgandosequeerachegado
um arcebispo primaz dos fins de Espanha, foi grande alegria nos legados e
bispos,enacidade(aqualganhamuitoemconcílio).(S_001,0.1673)
PaixãodeSousa(2004)dedicaumacapítuloàcomplexaquestãodalíngua
em Portugal nos séculos 16 e 17, tematizando e problematizando a noção de
Espanhanaquelaépoca.Elaenfatizadoisaspectos.Oprimeiroéapercepçãoque
gramáticos quinhentistas e seiscentistas, portugueses e castelhanos, têm da
proximidadeentreasduaslínguas.PaixãodeSousacitaMayansySiscar,naobra
OrigensdeLaLenguaEspañola,de1737,queassimseexpressa:“Elportuguês,en
elqualcomprehendoelgallego,considerandoaquélcomoprincipalporquetiene
libros e domínio aparte, i dejando ahora de disputar qual viene de quál, el
portugués,digo,aunqueesdialectodistintodelcastellano,estanconformeaél
que,siunoabreunlibroportuguéssinsaberqueloes,suelesucederleeralgunas
cláusulascreyendoqueescastellano.”(op.cit.p.XXX)
OsegundoaspectoestudadoporPaixãodeSousaéobilingüismoliterário,
“termomaiscorrenteparasedescreverousogeneralizadodoidiomacastelhano
porescritoresportuguesesemumperíodocompreendidoentreosséculos15e
18”(op.cit.p.217).SegundooCatalogorazonadobiograficoebibliograficodelos
autores portugueses que escribieron en castellano, 542 autores portugueses
publicaramemcastelhanoentreosséc.14e19.PaixãodeSousarealçaquenessa
lista se encontram não só obras literárias mas também obras de matemática,
medicina,navegaçãoeastronomia.Tambémmostrademaneiraconvincenteque
o uso do castelhano não pode ser confundido com uma submissão política à
coroacastelhana,particularmentedelicadanoperíodode1580a1640,emqueo
reinoportuguêslheéanexado,umavezqueatémesmopanfletosautonomistas
foram redigidos em castelhano, e o próprio rei restaurador escreveu em1649
umaobra sobremúsicanessa língua (op.cit. p. 225).ComodizTeyssier, citado
por Paixão de Sousa, “o bilingüismo só desaparecerá com os últimos
representantesdageraçãodeescritoresformadaantesde1640”(ibid.p.227)
Asduaslínguasestãoassimnumaíntimarelaçãoquetomaoseusentidono
âmbitodeumaunidadesuperioracadaumadasduaslínguasqueéanoçãode
Espanha,queperduraportodooperíodoemfoco.
Anoçãodeportuguêshispânicotambémseajustademaneirainteressante
à noção de português “comum” proposta por Silva Neto para caracterizar a
evolução do galego‐português quando levado para o Sul na reconquista e com
seucontatocomosoutrosdialetosdePortugal.Comefeito,umpontoessencial
na argumentação de Silva Neto é o fato de as línguas comuns se oporem aos
dialetos regionais. O galego‐português é a língua que se define pelo seu berço
geográficodeorigem.SeSilvaNetotemrazão,alínguaquesesubstituiaelenão
éadeLisboa,oudeCoimbra,masumakoinéemergindodocontatoentretodos
osdialetosdaquelesqueparticipamdareconquistadasterrassobreosmouros
bem como da repovoação das cidades depois da expulsão dos seus antigos
habitantes. Essa língua de contato, base do novo padrão, pode integrar sem
problematambémsuarelaçãoprivilegiadacomsuagrandevizinhaquepassará
pelomesmoprocesso,emboramaisdemoradonasuacompletude,umavezqueo
reino de Granada só será tomado nas proximidades do séc. 16. E podemos
pensarqueamudançagramaticalclaramentedetectávelnostextosescritospela
geração nascida depois de 1700 (cf. Galves et al. 2005, Paixão de Sousa 2004
entreoutros8)nascedeumareaçãoaessarelaçãoprivilegiada,edeumavontade
8verostrabalhosrealizadosapartirdoCorpusTychoBraheemwww.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/producao
de afirmar a diferença. Com efeito, o motor dessa mudança parece ser o
aumento da ordem enclítica nas orações não dependentes com sujeito pré‐
verbal,associadaaumamudançaprosódicaquedáaoportuguêseuropeuuma
feiçãomuitoparticular,nãosónodomínioibéricomasnodomínioromânicoem
geral, uma vez que seu ritmo se distancia do ritmo silábico, típico das línguas
românicas,epassaaseaproximardoritmoacentual,típicodeoutrasfamíliasde
línguas como as germânicas ou as eslavas (cf. Frota et al. 2008). Um dos
correlatos fonéticos desse ritmo é a redução das sílabas pré‐tônicas, cuja
primeira referência se encontra numa Petite grammaire portugaise publicada
em Paris em 1675 (Teyssier, 1980) Não é portanto absurdo pensar que no
decorrerdasegundametadedoséc.17,comoprogressivodesaparecimentoda
“geraçãodeescritores formadaantesde1640”, foise impondopaulatinamente
umnovopadrãoprosódico,quemarcavaclaramenteaidentidadedoportuguês
falado em relação ao castelhano. Esse correlato lingüístico da luta pela
independência (que, como lembrado por Paixão de Sousa 2004, tem seu final
feliz oficial em1640,mas dura de fato até 1668)marcaria então o fim de um
longoperíododeidentificaçãomáximanoâmbito danoçãogeográfico‐cultural
compartilhada de Espanha. Muito mais tem que ser feito para consolidar a
interpretação proposta aqui, em particular uma comparação sistemática do
portuguêsedocastelhanonosséc.15a18.Masjátemoselementossuficientes
indicandoquesetratadeumcaminhoquevaleapenasertrilhado.
Referênciasbibliográficas
Cardeira,Esperança.2005.Entreoportuguêsantigoeoportuguêsclássico.
Lisboa:ImprensaNacional‐CasadaMoeda.
Castro, Ivo. 2006. Introdução à História do português. Lisboa, Edições
Colibri.
Frota,Sónia,CharlotteGalves&MarinaVigário.2008.“Lerafonologia:do
português clássicoaoportuguêseuropeumoderno”. In: SóniaFrota;AnaLucia
Santos.(Orgs.).XXIIIEncontroNacionaldaAssociaçãoPortuguesadeLinguística
Textos Selecionados. Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística/Colibri, pp.
193‐206.
Galves, Charlotte. 2004. “Padrões rítmicos, fixação de parâmetros e
mudança lingüística – Fase II”. Projeto de pesquisa submetido à FAPESP. Cf.
www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/prfpml/fase2/projeto_completo.html
Galves,Charlotte,HelenaBritto&MariaClaraPaixãodeSousa.2005.“The
Change in Clitic Placement from Classical to Modern European Portuguese:
ResultsfromtheTychoBraheCorpus”,JournalofPortugueseLinguistics,vol.4,1,
JoséIgnacioHualde(org.).SpecialIssueonVariationandChangeintheIberian
Languages:thePeninsulaandbeyond.
Galves,Charlotte,MariaClaraPaixãodeSousa&CristianeNamiuti.2006.
“Novasperspectivasparaantigasquestões:revisitandoaperiodizaçãodalíngua
portuguesa”, in A, Endruschat, R. Kemmler& B. Schafer‐Prieβ (orgs.)
Grammatische Strukturen des Europaischen Portugiesisch, Tubingen: Calepinus
Verlag.
Kroch,Anthony.1994.“MorphosyntacticVariation”Proceedingsofthe30th
annualmeetingoftheChicagoLinguisticsSociety,vol2,pp.180‐201.
______________2001.“SyntacticChange”,inMarkBaltin&ChrisCollins(orgs.),
HandbookofSyntax,Blackwell.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia. 1994. “Para uma caracterização do período
arcaicodoportuguês”,D.E.L.T.A,vol.10,Noespecial,pp.247‐276.
Namiuti, Cristiane. 2008. Aspectos da história gramatical do português:
interpolação, negação e mudança, tese de doutorado inédita. Universidade
EstadualdeCampinas.
Paixãode Sousa,MariaClara. 2004. Línguabarroca: sintaxe e história do
português nos seiscentos, tese de doutorado inédita,UniversidadeEstadual de
Campinas.
Silva Neto, Serafim. 1970.História da língua portuguesa, Rio de Janeiro:
LivrosdePortugal,2aediçãoaumentada.
Teyssier, Paul. 1980História da Língua portuguesa, Paris: PUF, Coll. Que
Sais‐je.