Periodização e competição de gramáticas: o caso do ...

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Periodização e competição de gramáticas: o caso do português médio Charlotte Galves IEL/Unicamp [email protected] I. Para uma nova periodização do português Com base na língua escrita, a periodização tradicional do português reconhece três grandes fases, ou períodos, na história da língua: o português arcaico, o português clássico e o português moderno. Mattos e Silva (1994, 2006) problematiza essa questão, apresentando o quadro a seguir: 1 Figura 1: Quadro Mattos e Silva Nesse quadro, observa‐se que os estudiosos variam em relação às subdivisões desses grandes períodos, bem como à denominação que lhes 1 O quadro reproduzido aqui é o quadro de Mattos e Silva (2006).

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Periodizaçãoecompetiçãodegramáticas:ocasodoportuguêsmédio

CharlotteGalvesIEL/Unicamp

[email protected]

I.Paraumanovaperiodizaçãodoportuguês

Com base na língua escrita, a periodização tradicional do português

reconhece três grandes fases, ou períodos, na história da língua: o português

arcaico, o português clássico e o português moderno. Mattos e Silva (1994,

2006)problematizaessaquestão,apresentandooquadroaseguir:1

Figura1:QuadroMattoseSilva

Nesse quadro, observa‐se que os estudiosos variam em relação às

subdivisões desses grandes períodos, bem como à denominação que lhes

1OquadroreproduzidoaquiéoquadrodeMattoseSilva(2006).

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atribuem. É interessante notar que, exceto Leite de Vasconcelos,2 todos os

autores considerados sub‐dividem o português arcaico em duas partes. À

primeira, Serafimda SilvaNetodáonomede “português trovadoresco”, Pilar

Vasquez‐Cuesta de “galego‐português”, e Lindley Cintra de “português antigo”.

Cada uma dessas denominações focaliza um aspecto diferente da língua. A

primeira faz referência ao fato de que essa primeira língua documentada tem

como veículo privilegiado a produção lírica das cantigas trovadorescas. A

segundaressaltaoaspectogeográfico‐políticodaidentidadeinicialcomogalego.

Aterceiraenfim,maisneutraemrelaçãoaessesaspectosquepodemoschamar

de história externa, estabelece uma fronteira final para a ‘antiguidade’ do

português bem anterior à tradição. Antes de voltar para a questão das datas,

olhemosagoraparaotermoescolhidoporcadaumparadefinirasegundaparte

da primeira fase. Serafim da Silva Neto a chama de “português comum,” Pilar

Vasquez‐Cuesta de “português pré‐clássico” e Lindley Cintra de “português

médio”.Essaúltimadenominaçãoseráretomada,epopularizada,porIvoCastro

na sua Introdução à historia do português. É interessante ressaltar o termo de

“portuguêspré‐clássico”propostoporPilarVasquezCuesta.Nele,temosaidéia

inovadora de que se trata de umperíodo que, em lugar de terminar um ciclo,

prenunciaoseguinte.Éumainversãodeperspectiva,quedeixadedaraoséc.16

ovalordelimitefortequetememautorescomoLeitedeVasconceloseSerafim

daSilvaNeto,umavezque,paraeles,éograndedivisordeáguasentrealíngua

antigaealínguamoderna.3Enfim,antesdeprosseguir,gostariademedeterum

pouconainteressantenoçãode“línguacomum”queSilvaNetoapresentanasua

Históriada línguaportuguesa. Paraele, “aindaque ... cristalizadoemLisboa,o

portuguêscomumnãorepresentaotipolingüísticodeumadeterminadaregião.

Pelo contrario, eleé , realmente,umamédia, a conseqüênciadeumanivelação

lingüísticaprovocadapelosfatoshistóricos”(op.cit.p.380).Ouseja,paraSerafim

da SilvaNeto, a língua comumé o produto do contato entre diversos dialetos,

queleva,nafonéticaenamorfologiaaumcertonivelamento.Nesseprocessode

nivelamento,asgrandescidades(emPortugalessencialmenteCoimbraeLisboa)

2Noquadroapresentadonoartigode1994,outrosautoressãocitadoscomocompartilhandoestaconcepção:SaidAli,IsmaelLimaCoutinho,MattosoCâmaraeFernandoTarallo.3AchamosumaidéiasemelhanteemPaulTeyssiernasuaHistóriadaLínguaportuguesa.

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desempenhamumpapelessencial,nãopelofatodeimporemseuprópriodialeto,

masporproporcionaremagrandemesclahumanafontedocontato lingüístico.

Peloseuprestígiopolíticoecultural,akoinéassimformadasetornaalínguade

prestígio, e constitui a base da língua padrão. Resta ainda a difícil tarefa de

entender como esse fenômeno de nivelamento atuou sobre a sintaxe na

elaboração de uma nova gramática que conhecerá seu apogeu nos chamado

períodoclássico.

Nestecapítulo,queriaproporumaperiodizaçãoalternativa,emqueoséc.

16 deixa de ser a grande fronteira. A outra novidade é que se trata de uma

periodizaçãobaseadananoçãodegramática,entendidacomoacompetênciaque

os falantes têm da sua língua. Desse ponto de vista, os textos não sãomais o

objetofinaldanossainvestigaçãomasomeioparadistinguirasgramáticasdos

falantesdeportuguêsqueosescrevem.Procuramoslocalizarnelesaemergência

degramáticasnovas, iniciandonovosperíodos. E,seguindoocaminhotraçado

por Anthony Kroch em vários artigos,4 interpretamos os períodos em que se

observa uma grande variação nos textos como períodos de “competição de

gramáticas”. Tal competição se trava entre uma gramática inovadora e a

gramáticaconservadora,quenãodeixadeserexpressadeumdiaparaooutro,

comobemdizCarolinaMichaelisdeVasconcelos,citadaporRosaVirginiaMattos

eSilvanoartigoreferidoacima.

Com base nessa concepção da evolução da língua portuguesa nos textos,

Galves,Namiuti, Paixãode Sousa (2006)propõemo seguinte gráfico emque a

novaperiodizaçãoécontrapostaàperiodizaçãotradicional.

4Cf.Kroch(1994,2001).

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Figura2:Novapropostadeperiodização(Galves,NamiutiePaixãodeSousa,

2006)

As linhas azuis representam a periodização tradicional, sem a subdivisão

doportuguêsarcaico.Emvermelho,representamosumaoutraversãodamesma

história, levandoemconsideraçãoasgramáticasquesesucedemnahistóriado

português. Nesta visão, o primeiro período é a primeira fase do português

arcaiconaperiodizaçãotradicional.Osegundoperíodo,aindasemdenominação

–voltaremos a essa questão na seção III – abrange a segunda fase do período

arcaicotradicional,maisoportuguêsclássico.Aíresideagrandeinovaçãodessa

proposta, que procuraremos fundamentar empiricamente na próxima seção: a

existênciadeumafase,ouperíodo,gramaticaldoportuguêsquevaidasegunda

metade do séc. 14 até o séc. 18. Essa fase engloba o português chamado por

LindleyCintrademédio(eporPilarVasquez‐Cuestadepré‐classico)bemcomo

oportuguêsclássico.Oprimeiro,comoveremos,secaracterizaporumagrande

variação entre formas antigas e formas inovadoras, ou seja uma forte

competiçãodegramáticas.Osegundo,queaparecenostextosnodecorrerdoséc.

16, e dura até a primeira metade do séc. 18, corresponde à fase em que a

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gramática inovadora se impôs definitivamente.Desse ponto de vista, o séc. 16

nãosecaracterizacomooiníciodeumnovoperíodo,mascomoofimdafasede

competição entre a gramática antiga e a nova, com a vitória da gramática

inovadora.5

II.Abaseempíricadanovaperiodização

Queriaagoradarumconteúdoempíricoaestapropostaevoltaràquestão

da datação, olhando para dois conjuntos de dados. O primeiro conjunto é

compostodefenômenosfonéticosemorfológicos,tiradosdolivrodeEsperança

Cardeira (Cardeira, 2005). O segundo conjunto diz respeito a fenômenos

sintáticos,tiradosdatesedeCristianeNamiuti(Namiuti2008).

Cardeira (2005) estuda a evolução da língua portuguesa num corpus de

textosdegênerosvariadosescritosentre1375e1475(cf.alegendadafigura3).

No gráfico a seguir, elamostra a substituiçãonamorfologia de formas antigas

por formasmodernas: na segunda pessoa do plural (“amades” substituído por

“amais” – variável B), nos particípios dos verbos da 3a conjugação (“metudo”

substituídopor“metido”‐variávelC),nosufixoadjetival (“–vil”substituídopor

“–vel” –variável D), e enfim na expressão do pronome possessivo (“sa”

substituídopor“sua”–variávelE)6

5Note‐sequeoutroperíododetransição,oucompetiçãoaparecenoséc.18.TemsidooobjetodenumerosostrabalhosbaseadosnoCorpusTychoBrahe(cf.http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/index.html).6NãoconsiderareiaquiavariávelA,quedizrespeitoàvariaçãodegrafia,reveladoradamudançanapronúnciadasnasaisfinais.

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Figura 3: Evolução das formas arcaicas entre o português clássico e o

portuguêsmédio(Cardeira2005)

Observamos que as formasmodernas aparecem numa freqüência de 0 a

60% em 1375, o quemostra que algumas delas já vinham se implementando

desdetemposmaisantigos.Note‐seemparticularos60%de“sua”emlugarde

“sa”.Emcompensação,aformasincopadada2apessoadopluralnãoapareceno

primeiro ponto da linha do tempo do gráfico. Encontramos portanto uma

variaçãonoiníciodasmudanças,bemcomoseufim(cf.oquadrofinaldeMattos

e Silva (1994).Mas fica claropara todas as formas emvariaçãoqueoperíodo

maiordecrescimentodasnovasformassedánaprimeirametadedoséc.15.

O quadro apresentado por Cardeira sustenta portanto empiricamente a

hipótese de que, do ponto de vista damorfologia é entre 1350 e 1450 que a

línguaescritaexpressaatransiçãodeumperíodoparaooutro,dentrodoponto

devistapropostoaqui,dagramáticaarcaicaparaagramáticainovadoraquese

expressaráplenamentenostextosporvoltade1550(cf.MattoseSilva,1994).O

que o quadro de Cardeira nos mostra é que o português “médio” ou “pré‐

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clássico”, é um período marcado pela variação entre as formas antigas e as

formasnovas.

Infelizmente, não temos análises sintáticas realizadas no Corpus de

Cardeira. Mas podemos verificar, com base em outros textos, que a sintaxe

também se transforma nesse mesmo período. Namiuti (2008) estuda o

fenômeno da interpolação em um corpus de documentos notariais (elaborado

por Martins, 1994) e de documentos administrativos e literários (Corpus de

Parcero, 1999, e Corpus Tycho Brahe), abrangendo do séc. 13 ao séc. 16. Ela

mostra que se podem definir dois momentos gramaticais caracterizados por

propriedadesdistintasdainterpolação:

A.1operíodo(GramáticaI):

‐interpolaçãodanegaçãoedeoutrosconstituintesdopredicado,

‐ainterpolaçãoéatestadaemcontextosdeprócliseobrigatória,

‐oclíticoécontíguoàconjunção(C).

O exemplo a seguir, tirado de Martins (1994) ilustra essa gramática.

Observamosqueoelementointerpoladoentreoclíticoeoverboéumsintagma

preposicional (“ao dicto Mosteiro”), que se trata de uma oração subordinada,

contextodeprócliseobrigatória,eenfimqueoclíticoécontíguoàconjunção:

1. queasaodictoMosteirodeuiãAlg~uaspessoas(Lx,1357)

B.2operíodo(GramáticaII):

‐desapareceainterpolaçãodeconstituintesdiferentesde“não”,

‐ surgem novos contextos para a interpolação do "não“ – em orações

raízesneutras,quenãosãocontextosdeprócliseobrigatória.

‐surgeumanovaordemlinearnassentençasdependentesnegativas,sem

contiguidadeC‐cl.

Osdoisexemplosaseguirilustramessanovagramática.Em(2),temosuma

oraçãonãodependente,quenãoconstituiumcontextodeprócliseobrigatória.

Em(3),encontramosaordemConjunção‐sujeito–clítico–verbo,emquenãohá

contigüidade entre a conjunção e o clítico. Enfim, os dois exemplos trazem a

interpolaçãode“não”.

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2. DomManoeldeLimaonãoquizouvirnaquelenegócio,dizendo‐

lhe , queera filhomais velhode seupai , que sequeria irperaoReino ,eque

quando lhe ElRei não desse de comer , que viveria com o que seu pai viveo

.(Couto‐1542,CorpusTychoBrahe)

3. Êste conselho houvera Dom Christovão de tomar em princípio ,

tantoqueseajuntoucomaRainha,esegurar‐seemparte,queosinimigosonão

pudessemcercar,atéseajuntarcomoImperador,edaserrapuderasairadar

todososassaltosquequizera.(Couto‐1542,CorpusTychoBrahe)

A figura 4 mostra a evolução da sintaxe da interpolação, mais

especificamente o aparecimento de construções em que o clítico não está

contíguoàconjunçãoemoraçõesdependentesnegativas.Olosangopretomostra

afreqüênciageraldeCclnegeoquadradobrancomostraafreqüênciadeCclX

neg(ex:quelheelenãoquizdar)emrelaçãoaCXclneg(ex:queelelhenãoquiz

dar.)

Figura4:Adinâmicadaevoluçãodainterpolação(Namiuti,2008)

Nosdoisprimeirospontosdoeixodotempo,1300e1350,osvaloressão

100% para as duas variáveis. O que mostra que a gramática instanciada nos

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textos é G1. Mas em 1450, temos 90% de contigüidade e 40% somente de

oraçõesC‐cl‐X‐neg‐V.Os10%denãocontigüidadeCclnoconjuntodasorações

dependentesnegativaseos60%deoraçõesC‐X‐cl‐neg‐Vmostramairrupçãoda

Gramática2nostextosposterioresa1350.C‐X‐cl‐neg‐Vchegaráa100%apartir

do início do séc. 17, quando elementos outros que a negação deixarão

definitivamentedeseinterpolarentreoclíticoeoverbo.

Oponto importanteparaosnossospropósitoséqueamudançasintática

acompanhanotempoamudançamorfológica,asnovasformasaparecendonos

textosentre1350e1450.Aperiodizaçãotradicionaljáestavaexpressandoesse

fato ao situar a subdivisão do primeiro grande período, conforme os autores,

entre 1350 e 1420. Tal datação é paramuitos decorrente de fatos externos à

língua: fim da produção lírica trovadoresca, batalha de Aljubarrota, início das

grandes navegações, mas a análise propriamente linguística, como vimos, não

desmenteaexistênciadeumafortealteração,quecomeçaemmeadosdoséc.14

e vai se consolidando até atingir sua plena expressão no decorrer do séc.16.

Aqui, interpretamos essa dinâmica como a substituição de G1 por G2 que se

traduznum longo tempodecompetição tantonamorfologiaquantonasintaxe

entreasexpressõesproduzidasporcadauma.

III. Entre o português antigo e o português moderno: o português

hispânico

A figura 5 acrescenta ao quadro deMattos e Silva (2006) duas colunas

relativasàpropostadeGalvesetal.(2006).

Figura5:quadrodeperiodizaçãorevisitado

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Aprimeiragramática(G1)éinstanciadanostextosatéc.1350.Asegunda

(G2) que aparece a partir dessa data, inicialmente demaneira limitada, vai se

impondonodecorrerdoséc.16etemsuaexpressãomáximaatéaviradadoséc.

17para18quandocomeçaaaparecerumanovacompetição,correspondendoà

emergênciadoportuguêsmoderno(G3).7

Voltemos agora à questão da denominação desses períodos gramaticais.

Obviamente, trata‐se de uma questão secundária. Contudo, a periodização

costuma ser acompanhada de nomeação. Proponho aqui para G1 o nome de

“galego‐português”, que realça a identidade inicial do português e do galego

devida à sua origem comum no noroeste da península ibérica. Para G3,

precisamosdistinguirportuguêseuropeueportuguêsbrasileiro,umadistinção

ligadadenovoàgeografiaeàsuainfluênciasobreamudançalingüística.Resta

nomear G2, a gramática intermediária entre o português das origens e o

portuguêsmoderno.Galvesetal.(2006),seguindoapropostadeGalves(2004),

lhe dão o nome de “portuguêsmédio”.Mas essa denominação estabelece uma

confusãocomomesmotermo,bastanteconsolidadoemPortugal,parareferir‐se

àlínguadetransiçãoentreogalego‐portuguêseoportuguêsclássico.Assim,na

proposta tradicional, oportuguêsmédioéanteriorao clássico.Napropostade

Galvesetal.oportuguêsclássicoépartedoportuguêsmédio. Issode fatocria

7Cf.Galvesetal.(2005)

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uma confusão na interpretação dos termos. Precisamos portanto de um outro

nome. Aqui, com base no estudo realizado em Paixão de Sousa (2004) – e

tambémpensando na noção de português comumde SilvaNeto ‐ gostaria de

proporonomede“portuguêshispânico”.

Obviamente, com “hispânico”, não se faz referencia nem ao espanhol de

hoje,ocastelhanodaépoca,nemaoestadoespanholdehoje.AEspanha,entreos

séc.15e18,nãoéumaunidadepolítica,masgeográficaecultural. Veja‐sepor

exemploousodotermo“Espanha”e “Espanhol”paradesignaroArcebispode

Braga na biografia redigida por Frei Luis de Sousa (grifos meus): “ Eles o

receberamcomgrandeshonrasecomextraordináriasmostrasdeamorealegria,

afirmando lhe cada um por si que nenhuma nova podiam mandar a Sua

Santidadedemaiorgostoqueadesuachegadaàquelelugar,porseroprimeiro

preladoespanholquealiviameficaremcheiosdeesperançasqueseuexemplo

seriabastanteperadarcaloratodososmaisseporemacaminho,cujatardança

tinha assaz desgostado a Sua Santidade. (Corpus Tycho Brahe, S_001,0.1658)”

....“Orachegandoeusubitamente,nãoesperado,edivulgandosequeerachegado

um arcebispo primaz dos fins de Espanha, foi grande alegria nos legados e

bispos,enacidade(aqualganhamuitoemconcílio).(S_001,0.1673)

PaixãodeSousa(2004)dedicaumacapítuloàcomplexaquestãodalíngua

em Portugal nos séculos 16 e 17, tematizando e problematizando a noção de

Espanhanaquelaépoca.Elaenfatizadoisaspectos.Oprimeiroéapercepçãoque

gramáticos quinhentistas e seiscentistas, portugueses e castelhanos, têm da

proximidadeentreasduaslínguas.PaixãodeSousacitaMayansySiscar,naobra

OrigensdeLaLenguaEspañola,de1737,queassimseexpressa:“Elportuguês,en

elqualcomprehendoelgallego,considerandoaquélcomoprincipalporquetiene

libros e domínio aparte, i dejando ahora de disputar qual viene de quál, el

portugués,digo,aunqueesdialectodistintodelcastellano,estanconformeaél

que,siunoabreunlibroportuguéssinsaberqueloes,suelesucederleeralgunas

cláusulascreyendoqueescastellano.”(op.cit.p.XXX)

OsegundoaspectoestudadoporPaixãodeSousaéobilingüismoliterário,

“termomaiscorrenteparasedescreverousogeneralizadodoidiomacastelhano

porescritoresportuguesesemumperíodocompreendidoentreosséculos15e

18”(op.cit.p.217).SegundooCatalogorazonadobiograficoebibliograficodelos

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autores portugueses que escribieron en castellano, 542 autores portugueses

publicaramemcastelhanoentreosséc.14e19.PaixãodeSousarealçaquenessa

lista se encontram não só obras literárias mas também obras de matemática,

medicina,navegaçãoeastronomia.Tambémmostrademaneiraconvincenteque

o uso do castelhano não pode ser confundido com uma submissão política à

coroacastelhana,particularmentedelicadanoperíodode1580a1640,emqueo

reinoportuguêslheéanexado,umavezqueatémesmopanfletosautonomistas

foram redigidos em castelhano, e o próprio rei restaurador escreveu em1649

umaobra sobremúsicanessa língua (op.cit. p. 225).ComodizTeyssier, citado

por Paixão de Sousa, “o bilingüismo só desaparecerá com os últimos

representantesdageraçãodeescritoresformadaantesde1640”(ibid.p.227)

Asduaslínguasestãoassimnumaíntimarelaçãoquetomaoseusentidono

âmbitodeumaunidadesuperioracadaumadasduaslínguasqueéanoçãode

Espanha,queperduraportodooperíodoemfoco.

Anoçãodeportuguêshispânicotambémseajustademaneirainteressante

à noção de português “comum” proposta por Silva Neto para caracterizar a

evolução do galego‐português quando levado para o Sul na reconquista e com

seucontatocomosoutrosdialetosdePortugal.Comefeito,umpontoessencial

na argumentação de Silva Neto é o fato de as línguas comuns se oporem aos

dialetos regionais. O galego‐português é a língua que se define pelo seu berço

geográficodeorigem.SeSilvaNetotemrazão,alínguaquesesubstituiaelenão

éadeLisboa,oudeCoimbra,masumakoinéemergindodocontatoentretodos

osdialetosdaquelesqueparticipamdareconquistadasterrassobreosmouros

bem como da repovoação das cidades depois da expulsão dos seus antigos

habitantes. Essa língua de contato, base do novo padrão, pode integrar sem

problematambémsuarelaçãoprivilegiadacomsuagrandevizinhaquepassará

pelomesmoprocesso,emboramaisdemoradonasuacompletude,umavezqueo

reino de Granada só será tomado nas proximidades do séc. 16. E podemos

pensarqueamudançagramaticalclaramentedetectávelnostextosescritospela

geração nascida depois de 1700 (cf. Galves et al. 2005, Paixão de Sousa 2004

entreoutros8)nascedeumareaçãoaessarelaçãoprivilegiada,edeumavontade

8verostrabalhosrealizadosapartirdoCorpusTychoBraheemwww.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/producao

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de afirmar a diferença. Com efeito, o motor dessa mudança parece ser o

aumento da ordem enclítica nas orações não dependentes com sujeito pré‐

verbal,associadaaumamudançaprosódicaquedáaoportuguêseuropeuuma

feiçãomuitoparticular,nãosónodomínioibéricomasnodomínioromânicoem

geral, uma vez que seu ritmo se distancia do ritmo silábico, típico das línguas

românicas,epassaaseaproximardoritmoacentual,típicodeoutrasfamíliasde

línguas como as germânicas ou as eslavas (cf. Frota et al. 2008). Um dos

correlatos fonéticos desse ritmo é a redução das sílabas pré‐tônicas, cuja

primeira referência se encontra numa Petite grammaire portugaise publicada

em Paris em 1675 (Teyssier, 1980) Não é portanto absurdo pensar que no

decorrerdasegundametadedoséc.17,comoprogressivodesaparecimentoda

“geraçãodeescritores formadaantesde1640”, foise impondopaulatinamente

umnovopadrãoprosódico,quemarcavaclaramenteaidentidadedoportuguês

falado em relação ao castelhano. Esse correlato lingüístico da luta pela

independência (que, como lembrado por Paixão de Sousa 2004, tem seu final

feliz oficial em1640,mas dura de fato até 1668)marcaria então o fim de um

longoperíododeidentificaçãomáximanoâmbito danoçãogeográfico‐cultural

compartilhada de Espanha. Muito mais tem que ser feito para consolidar a

interpretação proposta aqui, em particular uma comparação sistemática do

portuguêsedocastelhanonosséc.15a18.Masjátemoselementossuficientes

indicandoquesetratadeumcaminhoquevaleapenasertrilhado.

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