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Belo Horizonte
FALE/UFMG
2011
Organizadoras
Mariana PithonNathalia Campos
Poemas russos
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Diretor da Faculdade de Letras
Luiz Francisco Dias
Vice-Diretora
Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet
Comisso editorialEliana Loureno de Lima ReisElisa Amorim VieiraFabio Bonm DuarteLucia Castello BrancoMaria Cndida Trindade Costa de SeabraMaria Ins de AlmeidaSnia Queiroz
Capa e projeto grco
Glria CamposMang Ilustrao e Design Grco
Preparao de originais
Mariana PithonNathalia Campos
Diagramao
Mariana PithonNathalia Campos
Reviso de provasMariana PithonNathalia Campos
Endereo para correspondncia
Laboratrio de Edio FALE / UFMGAv. Antnio Carlos, 6.627 sala 408131270-901 Belo Horizonte / MGTelefax: (31) 3409-6072e-mail: revisores.fale@gmail.comwww.letras.ufmg.br/labed
Revoluo de Outubro no pode deixar de inuenciar o meutrabalho uma vez que me privou da biograa, da sensao de
importncia pessoal. Eu lhe sou grato por ela ter acabado de
uma vez por todas com o bem-estar intelectual e a sobrevivncia
baseada em renda proveninete da cultura... semelhana
de muitos outros, eu me sinto devedor da revoluo, mas lhe
ofereo algo de que ela por enquanto no est necessitando.
ssip Mandelstam
Toda a carne, meia-noite,
silenciar.
e a voz da primavera renunciar,
correndo,
que, apenas amanhea o dia,
a morte estar vendida,
pelo esforo da RessurreioBoris Pasternak
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11 Itinerrio para uma antologia de poesia russaNathalia Campos
Sis17 Cano Bquica
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
18 Manh de invernoAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
19 Nacos de nuvemVladmir Maiakvski
Traduo de Augusto da Campos
20 A extraordinria aventura vivida por
Vladmir Maiakvski no vero na datchaVladmir Maiakvski
Traduo de Augusto da Campos
24 O sol um s. Por toda parte caminha
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Foroni Bernardini
25 O lavrador, abandonando a enxadaVielimir Khlbnikov
Traduo de Marco Lucchesi
Eu, Rssia29 A Tchaadev
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
Sumrio
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30 FbricaAlexander BlokTraduo de Boris Schnaiderman e
Haroldo de Campos
31 De transguraoSiergui Iessinin
Traduo de Augusto de Campos
32 De O presente:Vozes e cantos da ruaVielimir KhlbnikovTraduo de Augusto de Campos e
Boris Schnaiderman
34 No ests mais entre os vivosAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
35 Recusa Vielimir KhlbnikovTraduo de Boris Schanaiderman
36 A Erassip Mandelstam
Traduo de Haroldo de Campos
37 Vivemos sem sentirssip Mandelstam
Traduo de Boris Schnaiderman
38 De Primavera em LeningradoMargarita Aliguer
Traduo de Haroldo de Campos
39 Resposta tardiaAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
40 De O vento da guerraAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
41 Terra natalAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
42 Rquiem:um ciclo de poemasAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
43 OraoAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
O Poeta47 Pressgios
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
48 A um poetaAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
49 O ecoAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
50 Um momento ergui a mim, obra extra-humanaAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
51 Para meus versos escritos num repenteMarina TsvetievaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
52 EuVladmir Maiakvski
Traduo de Haroldo de Campos
53 Hoje de novo sigo a sendaVielimir Khlbnikov
Traduo de Augusto de Campos
54 Que vou fazer, cego e enteadoMarina Tsvetieva
Traduo de Aurora Fornoni Bernardini
55 PoesiaBoris Pasternak
Traduo de Haroldo de Campos
56 De V InternacionalVladmir Maiakvski
Traduo de Augusto de Campos
57 Pobre escrevinhador, tuaSiergui Iessinin
Traduo de Augusto de Campos
58 Ah, se eu antes soubera desta sinaBoris Pasternak
Traduo de Boris Schnaiderman e
Haroldo de Campos
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Versos a Blok61 Eu e a Rssia
Vielimir Khlbnikov
Traduo de Marco Lucchesi
62 Meninas, aquelas que passamVielimir Khlbnikov
Traduo de Marco Lucchesi
63 Eu visitei o poetaAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
Versos a Pchkin67 Na mo um pssaro que cala
Marina Tsvetieva
Traduo de Aurora Fornoni Bernardini
68 cidade de PuchknAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
69 Os homens quando amamVielemir Khlbnikov
Traduo de Marco Lucchesi
Versos a Maiakvski73 A morte do poeta
Boris Pasternak
Traduo de Haroldo de Campos
74 A Vladmir MaiakvskiMarina Tsvetieva
Traduo de Haroldo de Campos
Vida77 Vida, dom vo e fortuito
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
78 ElegiaAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
79 vidaMarina Tsvetieva
Traduo de Haroldo de Campos
Insnia83 Versos compostos durante uma noite de insnia
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
84 Insnia. Homero. Velas rijas. Navesssip Mandelstam
Traduo de Augusto de Campos
85 Insnia! Amiga minha!Marina Tsvetaiva
Traduo de Aurora Fornoni Bernardini
Dois89 O tu e o vs
Alexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
90 Eu vos amei. Ainda talvez vivoAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
91 Quando esse esbelto corpo teuAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
92 De nobre espanhola dianteAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
93 LLITCHKA! Em lugar de uma cartaVladmir Maiakvski
Traduo de Augusto de Campos
95 Uma vez mais, uma vez maisVielimir Khlbnikov
Traduo de Augusto de Campos
96 Num mundo, onde cadaMarina Tsvetieva
Traduo de Aurora Fornoni Bernardini97 Fragmentos
Vladmir Maiakvski
Traduo de Augusto de Campos
99 De As roseiras silvestres orescemAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
100 A carta incineradaAlexander Pchkin
Traduo de Jos Casado
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101 A auta vrtebra
PrlogoVladmir Maiakovski
Traduo de Boris Schnaiderman e
Haroldo de Campos
Separao105 At logo, companheiro
Siergui Iessinin
Traduo de Augusto de Campos
106 Cano do ltimo encontroAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado Coelho
107 Raramente penso em tiAnna Akhmtova
Traduo de Lauro Machado CoelhoVanguarda
111 Usina cindidaAlieksii Krutchnikh
Traduo Boris Schnaiderman e
Haroldo de Campos
112 A Plenos PulmesVladmir Maiakovski
Traduo de Haroldo de Campos
118 InvernoAlieksii Krutchnikh
Traduo Boris Schnaiderman e
Haroldo de Campos
Apndice123 Traduo potica: conscincia do
impossvel ou o esforo de recriar?Mariana Pithon
127 Haroldo de Campos e atranscriao da Poesia Russa Moderna
Boris Schnaiderman
137 Carta de Marina Tsvetieva a Andr Gide
sobre a traduo de um poema de Pchkin
145 Vida-escrita
152 Referncias
A escolha da poesia russa para um projeto de edio veio, num primeiro
momento, do desejo de visitar novas paragens, para alm do circuito das
lnguas mais largamente traduzidas no Brasil, como o espanhol e o francs
(entre as demais lnguas latinas), e o ingls. A necessidade de transpor as
fronteiras do acostumado foi a de buscar em produes poticas que por
aqui ainda correm subterrneas e margem, como no caso da russa, um
respiro, e, em se tratando de uma antologia de poesia, de no se repetir.
Ao travar conhecimento com o trabalho de traduo de poesia
russa realizado pelos irmos Augusto e Haroldo de Campos, em parceria
com Boris Schnaiderman, percebemos estar diante de uma seara literria
maior e mais vasta do que supnhamos a princpio. Muitos dos nomes
que j faziam parte de nosso repertrio, como Maiakvski (sob a repu-
tao de poeta do comunismo, e que nos atingia, sobretudo, atravs
de sua biograa) e Boris Pasternak (que conhecamos de Doutor Jivago,
mas cuja produo potica ignorvamos), revelaram-se grandes surpre-
sas, uma vez lidos e observados mais a fundo. Outros que conhecamos
bem pouco, como Anna Akhmtova, e outros que desconhecamos por
completo, tambm nos foi possvel ler, em grande parte, nas antologias
organizadas pelos Campos e por Schnaiderman Antologia de poesia
russa moderna, publicada pela Editora Brasiliense, em 1968, e Poemas de
Maiakvski, pela Perspectiva, em 1982.
De incio, foi preciso um levantamento das publicaes de poesia
russa, e, a m de que pudssemos nos cercar do maior nmero possvel
Itinerrio para umaantologia de poesia russa
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12 Itinerrio para uma antologia de poesia russa 13
de referncias, no restringimos o universo s obras traduzidas em lngua
portuguesa. A essa etapa, seguiu-se uma intensa pesquisa sobre a tradu-
o do idioma russo, em particular da poesia: a experincia daqueles que
a encabeam no Brasil; as questes histricas acerca de sua traduo,
a exemplo da traduo indireta do russo (que passava pelo francs, em
geral realizada por literatos), prtica corrente sobretudo durante o sculo
XIX; as consideraes estticas a respeito da lngua russa trabalhada em
dimenses poticas etc.
Como no poderia deixar de ser, em meio a esse percurso de leitu-
ras obrigatrias muitas vezes sugeridas e monitoradas pela professora
Snia Queiroz , que nos serviram de estofo terico para chegar a um
projeto editorial de uma antologia de poesia russa em lngua portuguesa,
buscamos mergulhar nos universos poticos dos autores lidos, das fun-
daes da literatura russa moderna, com Alexander Pchkin, poesia
sovitica e ps-sovitica (de que h grande escassez de material dispo-
nvel traduzido em outras lnguas), sempre tentadas a visitar a histria
russa, da qual esses nomes so importantes testemunhas e agentes. O
contato com outras expresses artsticas, como a pintura de vanguarda
e a msica erudita russas, mantendo relao com o contexto em que se
movem essas personagens, tambm se somou experincia como um
ingrediente de imerso.
Finalmente, abastecidas de extensa leitura e num estado de pro-
funda contaminao pelas verves poticas russas, vimo-nos diante da
difcil tarefa de selecionar, entre uma vastido de textos, aqueles que
integrariam essa antologia. De imediato, constatamos o bvio: a neces-
sidade de eleger, ou melhor, conceber um critrio (ou mais de um), para
alm do impressionismo de nosso gosto, que norteasse e justicasse nos-
sas escolhas. Tal necessidade, agravada pela excluso do recorte tempo-
ral como possvel critrio (adotado em Poesia russa moderna e predomi-
nante na maior parte das publicaes que se propem a um panorama da
produo de um determinado autor ou de uma expresso literria), uma
vez que nossa inteno era desenvolver algo diferente daquilo j reali-
zado, levaram-nos opo por um critrio temtico de seleo.
A seleo de poemas por tema no foi, entretanto, uma deciso
baseada unicamente na ausncia de um outro critrio condizente com
nosso objetivo inicial. J havamos vericado a existncia de uma certa
potica russa, em especial nos textos da era sovitica, pela patente
recorrncia de certos temas, tambm desenvolvidos sobre um painel
scio-histrico-cultural comum. Dessa forma, os poemas constituam um
conjunto o que naturalmente est ligado a um aspecto cronolgico e ao
contexto de uma poca rico em sua multiplicidade de vozes e olhares, e
que parece estar, direta ou indiretamente, em permanente dilogo.
Nas pginas que se seguem, alm do resultado desse trabalho de
seleo, o leitor poder ainda conhecer um pouco mais sobre o processo
de traduo empreendido pelos irmos Campos e por Boris Schnaiderman,
assim como outros tradutores de poesia russa; uma breve biograa dos
autores que compem essa antologia e um panorama da poesia russa a
partir da Idade de Ouro at a atualidade, em que se destacam grupos de
poetas como Babylon; alm de uma sugesto de bibliograa relacio-
nada ao tema.
Belo Horizonte, dezembro de 2009
Nathalia Campos
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O sol uma imagem constante na poesia russa. Seja como
astro reverenciado dentro da cultura de um pas acostumado a
glidas temperaturas; seja assumindo a roupagem de cone do
comunismo; seja, ainda, o sol metafsico da poesia, ou o smbolo
de uma exterioridade ao poema no momento em que vem luz.
Sis
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Cano Bquica 17
Cano Bquica
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Que fez calar a alegre voz?Ressoai, canes licenciosas!Bem-vindas, moas carinhosas
E esposas to jovens que amveis a ns!As taas enchei sem tardana!
No vinho a espumar,No fundo, o jogar
Vinde (e ouvi-las soar) cada aliana!Cada taa se erga, de vez seja nda!
Bem-vindas, musas; Razo, s bem-vinda!Astro sagrado, arde tu, sol!Como o lampio empalideceAo claro surgir do arrebol,
Assim o saber falso hesita e esvaneceAnte o imortal sol da Razo.
Bem-vindo s tu, sol; vai-te negrido!
1825
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18 Sis Nacos de nuvem 19
Manh de inverno
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
H frio e sol: que manh linda!Tu, meu primor, dormes ainda. tempo, bela, de acordar.Desvenda o olhar que o torpor cerra,Encara a aurora sobre a terraQual fosses novo astro polar!
noite, neve e tempestadeHouve e, no cu, nvoa, verdade?
A mancha lvida do luarNos nimbos era amarelada.Tristonha estavas e sentada;E ora... janela vem olhar:
Ao claro azul do cu que esplende,Tapete raro que se estende,A neve jaz a fulgurar;O bosque, s, sobressai, preto;Verdeja, sob a geada, o abeto;Sob gelo, eis a gua a lucilar.
Faz-se ambarino o quarto inteiro.Vem estalido prazenteiroDo recm-aceso fogo.Meditar perto dele grato.Mas dize: queres que, neste ato,A poldra parda atrele, no?
A deslizar na neve, amada,Dar-nos-emos galopadaDo equino e sua agitao.Iremos ver os nus e imensosCampos, faz pouco inda to densos,E a praia de minha afeio.
1829
Nacos de nuvem
Vladmir MaiakvskiTraduo de Augusto da Campos
No cu utuavam traposde nuvem quatro farrapos;
do primeiro ao terceiro gente;o quarto um camelo errante.
A ele, levado pelo instinto,no caminho junta-se um quinto.
Do seio azul do cu, p-ante-p, se desgarra um elefante.
Um sexto salta parece.Susto: o grupo desaparece.
E em seu rasto agora se estafao sol amarela girafa.
1917-1918
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20 Sis A extraordinria aventura vivida por Vladmir Maiakvski no vero na datcha 21
A extraordinria aventura vividapor Vladmir Maiakvski no vero na datcha1
Vladmir MaiakvskiTraduo de Augusto da Campos
(Pchkino, monte Akula, datcha de Rumintzev, a 23 verstas2 pela
estrada de ferro de Iaroslvl)
A tarde ardia com cem sis.O vero rolava em julho.O calor se enrolavano ar e nos lenisda datcha onde eu estava.
Na colina de Pchkino, corcunda,o monte Akula,e ao p do montea aldeia enrugaa casca dos telhados.E atrs da aldeia,um buracoe no buraco, todo dia,o mesmo ato:o sol descialento e exato.E de manhoutra vezpor toda a partel estava o solescarlate.Dia aps diaistocomeou a irritar-meterrivelmente.Um dia me enfureo a tal pontoque, de pavor, tudo empalidece.E grito ao sol, de pronto:Desce!Chega de vadiar nessa fornalha!
1 Datcha casa de veraneio. (N.T.)2Versta medida itinerria equivalente a 1067m. (N.T.)
E grito ao sol:Parasita!Voc, a, a anar pelos ares,e eu aqui, cheio de tinta,com a cara nos cartazes!E grito ao sol:EspereOua, topete de ouro,e se em lugardesse ocasode paxvoc baixar em casapara um ch?Que mosca me mordeu! o meu m!
Para mimsem perder tempoo solalargando os raios-passosavana pelo campo.No quero mostrar medo.Recuo para o quarto.Seus olhos brilham no jardim.Avanam mais.Pelas janelas,pelas portas,pelas frestas,a massasolar vem abaixoe invade a minha casa.Recobrando o flego,me diz o sol com voz de baixo:Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.Voc me chamou?Apanhe o ch,pegue a compota, poeta!Lgrimas na ponta dos olhos- o calor me fazia desvairar -eu lhe mostroo samovar:Pois bem,sente-se astro!
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22 Sis A extraordinria aventura vivida por Vladmir Maiakvski no vero na datcha 23
Quem me mandou berrar ao solinsolncias sem conta?Contrafeitome sento numa pontado banco e espero a contacom um frio no peito.Mas uma estranha claridadeua sobre o quartoe esquecendo os cuidadoscomeopouco a poucoa palestrar com o astro.Falodisso e daquilo,como me cansa a Rosta1,
etc.E o sol:Est certo,mas no se desgoste,no pinte as coisas to pretas.E eu? Voc pensaque brilhar fcil?Prove, pra ver!Mas quando se comea preciso prosseguire a gente vai e brilha pra valer!Conversamos at a noite,ou at o que, antes, eram trevas.Como falar, ali, de sombras?Ficamos ntimos,os dois.Logo,
com desassombro,estou batendo no seu ombro.E o sol, por m:Somos amigospra sempre, eu de voc,voc de mim.Vamos, poeta,
1Rosta A Agncia Telegrca Russa, para a qual Maiakvski executou cartazes satricos de notcias
as janelas Rosta , de 1919 a 1922. (N.T.)
cantar,luzir,no lixo cinza do universo.Eu verterei o meu sole voc o seucom seus versos.O muro das sombras,priso das trevasdesaba sob o obusdos nossos sis de duas bocas.Confuso de poesia e luz,chamas por toda a parte.Se o sol se cansae a noite lentaquer ir pra cama,
marmota sonolenta,eu, de repente,inamo a minha amae o dia fulge novamente.Brilhar para sempre.brilhar como um farol,brilhar com brilho eterno,gente pra brilhar,que tudo mais v pro inferno,este o meu slogane o do sol.
1920
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24 Sis O lavrador, abandonando a enxada, 25
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Foroni Bernardini
O sol um s. Por toda parte caminha.No o darei a ningum. Ele coisa minha.
Nem por um raio. Nem por um olhar. Nem por um instante. Aningum. Nunca.
Que morram as cidades numa noite constante!
Nos braos vou apertar, que no possa girar!
Fao as mos, os lbios, o corao queimar!
Se desaparecer na noite innita, no encalo hei de correr...Meu sol! A ningum o darei!
fevereiro de 1919
Vielimir KhlbnikovTraduo de Marco Lucchesi
O lavrador, abandonando a enxada,Contempla o voo de um corvoE diz: em sua voz ressoaA Guerra de Troia,A ira de Aquiles,O pranto de Hcuba,enquanto voasobre nossas cabeas.Na mesa empoeirada
O acaso criou na poeiraSeus estranhos desenhos.Diz um menino curioso:Essa poeira talvez MoscouE essa talvez Chicago ou Pequim.A rede de um pescadorEntrama as capitais da TerraNos laos da poeira,Nas malhas dessa melodia.E a noiva no desejandoManter a poeira das unhasarma ao limp-las:Esplendem na poeiraVivos Sis e tantos mundosDe todo inatingveis,Fechados na matria fria.E Sirius resplandece sob as unhasRompendo com seu brilho a escurido.
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O elo que liga os russos ptria transcende o nacionalismo.
Para alm de uma feio matricial, a ptria ganha, a um tempo,
os contornos de Babel e de Sio, lugar da heterogeneidade
e do cosmopolitismo; da familiaridade e do aconchego. Se
nela, de corpo presente, os russos so capazes de olhar a
Rssia com a distncia de cidados do mundo; se ausentes,
louvam-na como se a tivessem inscrita em si. De qualquer
forma, parecem estar sempre voltando para casa, onde se
confundem intimidade e estranheza; origem e expatriao.
A identidade que se revela na poesia , portanto, mais do
que nacional aquela que pretexta efuses revolucionrias
e conscincia social. Por vezes, ela se agura anterior,
fundamental, amalgamada a um eu que no se dene
longe dela. Esse um trao vivamente presente na dicopotica vericada nestes poemas, que aponta, talvez, para
essa identidade como um tema intrnseco, por assim dizer.
Eu, Rssia
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A Tchaadev 29
A Tchaadev1
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Amor, glria quieta e esperanaForam nossa breve iluso;Passou dessa quadra a folgana:Sono, matinal cerrao.Mas arde em ns inda vontade:Nosso impaciente coraoDa ptria sob autoridadeFatal ouve a convocao.Aguardamos com f estuante
Da hora da liberdade soar,Tal como aguarda o moo amanteA hora do encontro regular.Enquanto o ardente coraoIncitam honra e liberdade,Do ntimo a nobre agitaoDemos ptria, amigo, e idade.Cr, camarada: elevar-se-Feliz estrela de almo dia;Do sono a Rssia acordarE na averso da autocraciaTeu nome e o meu escrever.
1818
1 Trata-se de P. Ia. Tchaadev (1794-1856), pensador russo, crtico da autocracia czarista, um dos amigos
mais velhos de Pchkin, que lhe dedicou ainda outras obras. ( N. T.)
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30 Eu, Rssia De transgurao 31
Fbrica
Alexander BlokTraduo de Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos
No prdio h janelas citrinasE noite quando cai a noite,Rangem aldravas pensativas,Homens aproximam-se afoitos.
E os portes fechados, severos;Do muro do alto do muro,Algum imvel, algum negroNumera os homens sem barulho.
Eu, dos meus cimos, tudo ouo:Ele os chama, com voz de ao,Costas curvas, sofrido esforo.O povo aglomerado em baixo.
Eles ho de entrar pora,Ho de pr s costas o fardo.Riso nas janelas citrinas:Tapearam os pobres-diabos.
1903
De transgurao
Siergui IessininTraduo de Augusto de Campos
Ei, russos!Pescadores do universo,Na rede da aurora colhendo o cu Troai as trompas!
Sob a charrua do raioRuge a terraRompe os penhascos a auridenteRelha.
Novo semeadorErra pelos campos.Novas sementesArroja aos sulcos.
Um hspede-luzVem num coche.Corre entre as nuvensUma gua.
Sela da gua Azul.Sinos da sela Estrelas.
1917
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32 Eu, Rssia De O presente: Vozes e cantos da rua 33
De O presente:Vozes e cantos da rua
Vielimir KhlbnikovTraduo de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman
Tzares, tzares tremiam,Tzares, tzares tremem!Para o Para o oco da foicePatres,Para o ,Para o ocoTzares,
O tzar,O tzar,O povo,O po,O povo,Ferreiro,Malha,Malhador.A rou,A roupaRapaDos patres,Para o , para o , os tzaresRapaE peO povo.Malha,Malhador,
Os tzaOs tzaresPara o ocoE que se daniFiquemNa Sib,Na Sibria l nos mon,Nos mont,Tculos brancos de neve.Patres, patres pePe, pe,
Povo,Pe,Pe,Povo,Pe o tzar branco,Pe o tzar branco!O tzar branco!O tzar branco! O tzar!E ns? E ns olhamos, e ns, ns olhamos!Tzares, tzares tremem!Eles tremem, tremem!
O gro duqueO qu? agora?
(Olha para o relgio)
Sim, est na hora!
1921
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34 Eu, Rssia Recusa 35
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
No ests mais entre os vivos.Da neve no podes erguer-te.Vinte e oito baionetadas.Cinco buracos de bala.
Amarga camisa novacosi para o meu amado.Esta terra russa gosta,gosta do gosto de sangue.
16 de agosto de 1921
Recusa
Vielimir KhlbnikovTraduo de Boris Schanaiderman
Agrada-me bem maisOlhar estrelasDo que assinar sentenasDe morte.Agrada-me bem mais ouvir a voz das oresQue, murmurando ele,Meneiam as corolasQuando o jardimDo que ver os escuros
Fuzis da guarda matarem quantos queremMatar-me Por isso no serei jamais um governante.
1922
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36 Eu, Rssia Vivemos sem sentir a Rssia embaixo, 37
A Era
ssip MandelstamTraduo de Haroldo de Campos
Minha era, minha fera, quem ousa,Olhando nos teus olhos, com sangue,Colar a coluna de tuas vrtebras?Com cimento de sangue dois sculos Que jorra da garganta das coisas?Treme o parasita, espinha langue,Filipenso ao umbral de horas novas.
Todo ser enquanto a vida avana
Deve suportar esta cadeiaOcultoa de vrtebras. Em tornoJubila uma onda. E a vida comoFrgil cartilagem de crianaParte seu pex: morte da ovelha,A idade da terra em sua infncia.
Junta as partes nodosas dos dias:Soa a auta, e o mundo est liberto,Soa a auta, e a vida se recria.Angstia! A onda do tempo oscilaBatida pelo vento do sculo.E a vbora na relva respiraoO ouro da idade, urea medida.
Vergnteas de nova primavera!Mas a espinha partiu-se da fera,Bela era lastimvel. Era,
Ex-pantera exvel, que volvePara trs, riso absurdo, e descobreDura e dcil, na meada dos rastros,As pegadas de seus prprios passos.
1923
ssip MandelstamTraduo de Boris Schnaiderman
Vivemos sem sentir a Rssia embaixo,no se ouvem nossas vozes a dez passos.
Mas onde houver meia conversa semprese h de lembrar o montanhs do Kremlin.
Seus grossos dedos so vermes obesos;e as palavras precisas como pesos.
Sorri largos bigodes de barata;e as longas botas brilham engraxadas.
Rodeiam-no cascudos mandachuvas;seu jogo: os meio-homens que subjuga.
Um assobia, um rosna, um outro mia,s ele quem aoita, quem atia
E prega-lhes decretos-ferradurasna testa ou no olho, na virilha ou nuca.
Degusta execues como quem provauma framboesa, o osseta de amplo trax.
1934
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38 Eu, Rssia Resposta tardia 39
De Primavera em Leningrado
Margarita AliguerTraduo de Haroldo de Campos
No curso daquele longo invernovoc repetia, voz serena,esmagando-lhe a treva de ferro:Resistiremos. Somos de pedra.
Estreitava-se o anel venenoso.O inimigo sempre mais chegado.Podamos v-lo rosto a rosto,feroz, como fazem os soldados.Leningrado sem luz e sem gua!Raes de po:cento e vinte gramas...Como animal ferido o cu gane,cu mortio, nuvens estagnadas.As pedras suspiram,
lajes ringem,e a gente encontra fora e vive.Os mortos se empilham, um a um,guerreiros numa cova comum.Anal cansou-se o prprio inverno.Os turvos horizontes se abriram.E surgem casas negras do infernodas bombas. Mortas. No resistiram.E vamos ns dois passando pontessob a asa triunfal de maio,voc se alegrava sem dar contado porqu desse sentir-se gaio.Uma nuvem mostrou-se no alto,uma brisa esfriou-nos os lbios.
Falvamos ambos num sussurrodo tempo passado e do futuro.Vadeamos uma longa treva,passamos pelas balas em crivo:Voc dizia: Somos de pedra. mais do que pedra.
Estamos vivos.
1942
Resposta tardia
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Minha negra princesa das brancas mos
Marina Tsvetieva
Invisvel, dbia, brincalhona,tu que te escondes nos negros arbustose te encolhes no abrigo do estorninho,tu que ressurges nas cruzes depredadase gritas do alto da torre Marinkina:Hoje estou voltando para casa.Estimai-me, campos meus natais,pelo que me aconteceu:o abismo engoliu os meus parentes,a casa de meu pai se arruinou.Juntas, hoje, ns vamos, Marina,Moscou afora, pela noite adentro.E como ns seguem-nos milhes,no mais silencioso dos cortejos,enquanto em volta tange o sino fnebree geme intenso o turbilho de neve,de nossos passos recobrindo a marca.
1940, Casa Fontn, Krsnaia Konitsa
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40 Eu, Rssia Terra natal 41
De O vento da guerra
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
3
O primeiro projtil de longo alcance atinge Leningrado
E o multicolorido rudo da multidocalou-se de repente.Mas no era um som tpico da cidade,e tampouco do campo,
esse longquo estrondo que mais pareciaser o irmo gmeo do trovo.Se bem que, no trovo, h a umidadedas nuvens, altas e frescas,e o desejo das campinasde que venha um alegre aguaceiro.Neste havia s um calor seco, escorchante;mas no quisemos acreditarnesse rumor que ouvamos porqueele crescia e aumentava e se expandia,e por causa da indiferenacom que trazia a morte a meu lho
setembro de 1941
Terra natal
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
No h no mundo seres to sem lgrimas nem
to simples e orgulhoso quanto ns
1922
No ao levamos no peito qual secreto escapulrionem cantamos em chorosos versos.Nossos amargos sonhos ela no chega a perturbarnem nos parece ser o paraso prometido.No a convertemos, bem no fundo da alma,em algo que se possa comprar ou vender.Nem mesmo quando enferma, no desastre ou emudecida,chegamos a nos lembrar dela.Sim, para ns ela no passa de lama nas galochas,sim, para ns ela no passa de poeira nos dentes.E a amassamos, moemos, trituramos,como se no nos misturssemos a seu p.Mas nela que nos deitaremos, nela nos converteremos,e por isso que to livremente a chamamos nossa.
1961, Leningrado,
no hospital perto do porto
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42 Eu, Rssia Orao 43
Rquiem: um ciclo de poemas
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Rquiem
No, no foi sob um cu estrangeiro,nem ao abrigo de asas estrangeiras eu estava bem no meio de meu povo,l onde o meu povo infelizmente estava
1961
Prlogo
V
H dezessete meses de choro,chamando-te de volta para casa.J me atirei aos ps de teu carrasco.s meu lho e meu terror.As coisas se confundem para sempree no consigo mais distinguir, agora,quem a fera, quem o homem,e quanto terei de esperar at a tua execuoS o que me resta so ores empoeiradase o tilintar do turbulo e pegadasque levam de lugar nenhum a parte alguma.E bem nos olhos me olha,com a ameaa de uma morte prxima,uma estrela enorme.
1939
Orao
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Manda-me amargos anos de doena,a febre, a insnia, a inquietao,leva de mim meu lho, meu amigoe o dom misterioso de cantar.Esta a minha orao durante a Tua Liturgia:aps as tormentas de to longos dias,que a nuvem que pesou sombria sobre a Rssiatransforme-se noutra nuvem, de gloriosos raios.
16 de maio, 1915, dia doEsprito Santo Petersburgo.
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O ser poeta inescapvel para aquele que o . Ele o
arauto das vozes annimas que, juntas, compem a sinfonia
truncada do mundo; o ventrloquo do que precisa ser dito,
mas no pode dizer-se a si mesmo. Nestes poemas, o poeta
reete sobre a sua ddiva, que tambm a sua maldio (a
mal-dico da verdade, que lhe ocupa incansavelmente).
O Poeta
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Pressgios 47
Pressgios
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Eu ia v-la, e profusoDe alegres sonhos me nascia; mo direita a lua ento,Ardente, a marcha me seguia.
Eu j voltava, a profusoEra diversa: eu suspirava... mo esquerda a lua ento,Tristonha, a marcha me observava.
Aos surtos da imaginao,Poetas, na calma, assim nos damos;Assim, da crendice os reclamosConvm ao nosso corao.
1829
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48 O Poeta O eco 49
A um poeta
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
No estimes, poeta, o amor da turbamulta.Passar o eco do exaltado louvor;Ouve o rir da alma fr ia e a mxima de estulta,Mas permanece rme e calmo e superior.
s rei: por livre estrada (a ser nenhum consulta)Vai ao m que a razo livre te faz propor;Frutos a aperfeioar da idia amada, exulta,Sem prmios exigir por proezas de valor.
Acha-os em ti. s teu supremo tribunal;Julga tua criao do modo mais cabal.Contente dela ests, autocrtico atuante?
Ests? Deves deixar que a chusma a ataque ento,Cuspa no altar de sobre o qual vem teu claroE a trpode te abale com pueril desplante.
1830
O eco
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Se na oresta fera urrar,Se guampa ouvir-se ou trovo soar,Se moa alm morro cantar,
A cada somTens ricochete no ermo ar,
Sbito e bom.
Ateno prestas ao fragor,De onda e procela ao estridor,
Aos gritos de um e outro pastor,O eco a atender;No h fugir... Poeta, cantor,
Tal teu ser.
1831
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50 O Poeta Para meus versos escritos num repente, 51
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Exegu monumentum.
Horcio( livroIII, ode XXX)
Um momento ergui a mim, obra extra-humana.Sua vereda o mato no h de ocultar.Eleva-se bem mais sua cpula ufana
Do que o alexandrino pilar.1
Todo no morrerei: a alma que pus na liraAs cinzas vencer, da morte h de escapar;
Fama no orbe terei que sob a lua giraEnquanto um poeta restar.
Ouvir sobre mim toda a Rssia grandiosa,Nela far o meu nome a cada lngua jus:O ns, o calmuco estpico, a orgulhosa
Que herdou o eslavo, e a do tungus.
E o povo me amar durante longa idade,Pois nobres propenses com a lira espertei,Pois num tempo cruel cantei a Liberdade
E pelos cados roguei.
Ao chamado maior, s, Musa, obediente,Sem ofensas temer, sem pedir galardo;Elogio e calnia acolhe, indiferente,
Nem ds ao paspalho ateno.
1836
1 Do que alexandrino pilar, ou mais precisamente, do que a coluna alexandrina. Referncia coluna
de granito vermelho escuro que o czar Nicolai I fez inaugurar, no dia 30 de agosto de 1834, em honra de
seu pai, o czar Alexandr I, que governava a Rssia em 1812 quando Napoleo Bonaparte a invadiu e foi
dela expulso graas a resistncia combinada do povo e do exrcito russo. O monumento, em cujo topo
acha-se um anjo segurando numa das mos uma cruz, escultura que se deve a Bris Orlvski, tem
47,5m de altura e se localiza n o Largo do Pao, em So Petesburgo. O projeto foi do arquiteto Auguste
Montferrand, as composies em relevo, de bronze, do pedestal foram executadas por Svintsov, Leppe
e Balin tomando por base desenhos de Montferrand e de Giovanni Batista Scotti. Pchkin presenciara
os trabalhos de instalao do monumento, mas no assistiu inaugurao, que se deu em meio a
desle de tropas ao som de msica militar. (N. T.)
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
Para meus versos escritos num repente,Quando eu nem sabia que era poeta,Jorrando como pingos de nascente,Como cintilas de um foguete,
Irrompendo como pequenos diabos,No santurio, onde h sono e incenso,Para meus versos de mocidade e de morte, Versos que ler ningum pensa!
Jogados em sebos poeirentos(Onde ningum os pega ou pegar)Para meus versos, como os vinhos raros,Chegar seu tempo.
1913, Koktebel
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52 O Poeta Hoje de novo sigo a senda 53
Eu
Vladmir MaiakvskiTraduo de Haroldo de Campos
Nas caladas pisadasde minha alma
passadas de loucos estalamcalcneos de frases speras
Ondeforcas
esganam cidadese em ns de nuvens coagulam
pescoo de torres
oblquasssoluando eu avano por vias que se encruzi
-lham vistade cruci-xos
polcias
1913
Vielimir KhlbnikovTraduo de Augusto de Campos
Hoje de novo sigo a sendaPara a vida, o varejo, a venda,E guio as hostes da poesiaContra a mar da mercancia.
1914
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54 O Poeta Poesia 55
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
Que vou fazer, cego e enteado,Num mundo em que cada um tem vista e pai,Onde entre antemas, como sobre aterros H paixes? onde o choroSe chama muco!
Que vou fazer com o osso e o ofcioDe cantora? Qual despedida! queimadura! Sibria!Entre meus delrios como por uma ponte!
Imponderveis,Num mundo de pesos.
Que vou fazer, cantor e primognito,Num mundo, onde o mais preto cinza!Onde guardam a inspirao numa garrafa trmica!Imensurvel,Num mundo de medidas?!
1923
Poesia
Boris PasternakTraduo de Haroldo de Campos
Poesia, minha voz, enrouqueceDe juras sobre ti: estertor,No pose melua de cantor.Vago de terceira no vero,Pareces. Subrbio e no refro.
Abafas como Iamskaia1: s maio,Chevardin2, o reduto noturno,Onde nuvens exalam seus guais
e se vo, cada qual por seu turno.
E em dobro, pela trama dos trilhos, Arrabaldes no so estribilhos, se rojam das estaes casa,No cantando, formas hebetadas.
Renovos que a chuva pe nos cachosAt de manh, num o contnuo,Pingam seus acrsticos do altoEnquanto lanam bolhas de rimas.
Poesia, quando sob a torneiraUm trusmo um balde de folhaVazio, mais o jato se despeja.Eis o branco da pgina: jorra!
1922
1 Em muitas cidades russas, havia um bairro chamado Iamskaia Sloboda (arrebelde dos cocheiros),
geralmente pobre e aba fado. (N. T.)2 Chevardin o nome da aldeia onde, em 24 de agosto de 1812, teve incio a batalha de Borodin,
decisiva para o desfecho da campanha de Napoleo contra a Rssia. (N. T.)
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56 O Poeta Pobre escrevinhador, tua 57
De V Internacional
Vladmir MaiakvskiTraduo de Augusto de Campos
Eu poesias permito uma forma:conciso,preciso das frmulasmatemticas.s parlengas poticas estou acostumado,eu ainda falo versos e no fatos.Porm
se eu faloAeste a uma trombeta-alarma para a Humanidade.Se eu faloB uma nova bomba na batalha do homem.
1922
Siergui IessininTraduo de Augusto de Campos
Pobre escrevinhador, tuaA sina de cantar a lua?H muito o meu olhar denhoNo amor, nas cartas e no vinho.
Ah, a lua entra pelas grades,A luz to forte corta os olhos.Eu joguei na dama de espadasE s me veio o s de ouros.
1925
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58 O Poeta
Boris PasternakTraduo de Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos
Ah, se eu antes soubera desta sina,Quando me preparava para a estreia,Que h morte nestas linhas, assassinas!,como um golpe de sangue na traqueia.
Os folguedos desta busca de avessosEu deixaria, inteis, de uma vezJ to remoto o esforo do comeo,To temeroso o primeiro interesse.
Mas a velhice Roma. No lhe peaQue venha com estrias de ninar.Ela exige do ator mais que uma pea,Uma entrega total, um naufragar.
Quando o verso um ditado do mais ntimo,Ele imola um escravo em cena aberta.E aqui termina a arte, o pano fecha,Ao respirar da terra e do destino.
1932
Um dos grandes inspiradores de toda uma gerao de
poetas, Alexandr Blok merece frequentes homenagens na
poesia russa. Ao lado de Pchkin e Maiakvski, constitui
uma espcie de santssima trindade na poesia sovitica, e
largamente visitado, da forma pura de um tributo invocao.
Versos a Blok
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Eu e a Rssia 61
Eu e a Rssia
Vielimir KhlbnikovTraduo de Marco Lucchesi
A Rssia libertou milhares e milharesUm gesto nobre! Um gesto inesquecvel!Mas eu tirei a camisae cada arranha-cu espelhado de meus cabelos,cada ranhurada cidade do corpoexps seus tapetes e tecidos de prpura.As cidadezinhas e os cidadosdo Estado Mim
juntavam-se s janelas dos cabelos.as olgas e os gores,no por imposiomas para saudar o Sol, atravs da pele.Caiu a priso da camisa!Nada mais z do que tir-la.Estava nu junto ao mar.Dei Sol aos povos de Mim!Assim eu libertavamilhares e milhares.
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62 Versos a Blok Eu visitei o poeta 63
Vielimir KhlbnikovTraduo de Marco Lucchesi
Meninas, aquelas que passamcalando botas de olhos negros,nas ores de meu corao.Meninas que pousam as lanasno lago de suas pupilasMeninas que lavam as pernasno lago de minhas palavras.
Eu visitei o poeta
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Para Aleksandr Blok
Eu visitei o poetaao meio-dia em ponto. Domingo.Quietude no amplo quartoe, fora das janelas, o frio
e um sol cor de amoras silvestres,envolto em nvoa hirsuta e azulada...
Com que olhar aguado o taciturnoantrio olhava para mim!
Tinha olhos daquele tipode que a gente nunca se esquece;melhor seria, cuidadosa,eu no devolver seu olhar.
Mas me lembrarei sempre da conversa,o meio-dia nevoento, domigo,naquela casa alta e cinzenta,junto aos portes do Nev para o mar.
janeiro de 1914
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Com toda a justia considerado o pai da literatura russa,
Alexander Pchkin inspira incontveis louvores e amplamente
referenciado. Na produo potica dos nomes que integram esta
antologia, selecionamos alguns textos que nos pareceram, unidos
pela remisso Pchkin, diversos, estilisticamente, entre si.
Versos a Pchkin
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Na mo um pssaro que cala, 67
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
Na mo um pssaro que cala,Teu nome pedra de gelo na fala.Um movimento de lbios, s.Teu nome quatro sons.Uma bola em voo apanhada,Um guizo na boca, de prata.
Um seixo, atirado num lago calmo,solua assim, como te aclamo.
Ao leve tropel do casco noturnoAlto teu nome responde.E o gatilho a estalar soturnoLembra-o, em nossa fonte.
Teu nome ah, no consigo!Teu nome um beijo no ouvido.No gelo terno de plpebras rgidas,Da neve o beijo no mundo. um gole de fonte, azul e fr gido.Em teu nome o sono profundo.
15 de abril de 1916
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68 Versos a Pchkin Os homens quando amam 69
cidade de Pchkin
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
E os dossis protetores de Tsrkoie Sel...
Pchkin
1Que posso fazer? Eles te destruram.Este encontro mais cruel que separar-se!Aqui havia um chafariz e as alamedase mais adiante verdejava o parque...A prpria aurora aqui era mais rubra.Em abril, sentia-se o aromada terra mida e do primeiro beijo...
8de novembro de 1945
Os homens quando amam
Vielemir KhlbnikovTraduo de Marco Lucchesi
Os homens, quando amam,Do longos olharesE longos suspiros.As feras, quando amam,Turvam os olhos,Dando mordidas de espuma.Os Sis, quando amam,Vestem a noite com tecidos de terra,E danam majestoso para a amada.
Os deuses, quando amam,prendem o frmito do cosmos,como Pchkin a chama de amor pela criada de Valknski.
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Maiakvski , sem dvida, o mais clebre entre todos
os poetas russos modernos. O episdio de seu suicdio,
em 1930, seguindo-se a outras mortes de prprio punho
(como do poeta Siergui Iessienin, em 1925), ao lado de
toda a sua impactante trajetria, fez de sua biografia
uma das principais portas de acesso sua obra. Polgrafo,
deu a ler, em sua poesia, faces vrias, mas sempre
com a particular ndole expressiva que o distingue.
Versos a Maiakvski
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A morte do poeta 73
A morte do poeta
Boris PasternakTraduo de Haroldo de Campos
No queramos crer delrio!Mas dois, trs, todos incessantes,O repetiam. Ajustados no trilhoDo instante, estacavam os domicliosDe burocratas e comerciantes.reas e rvores, e no alto sobre os galhosCorvos no fumo do sol fogoRalhavam com esposas-gralhas:Que no metssemos nariz no pecadoAs tolas! Todas ao diabo!
Mas nos rostos, um mido descompostoComo nas pregas de uma rede rota.
Um dia incuo, incuo, mais incuoQue uma dezena de teus dias passados.No vestbulo, a turba se colocaEm la, premida por um disparo.
Como um jorro de lcios e de bremasAchatados, cuspidos das maremasPelo estouro de um petardo entre canios,Como um suspiro de tiros no ctcios.
O leito armado sobre a maledicncia,Voc dormia, agora plcido, em paz.Vinte e dois anos, belo, e a pr-cinciaDe tudo isto em teu pomea quadriparte.
Voc dormia, rosto preso ao travesseiro,
Dormia, a plenas pernas, a plenos tornozelos,Penetrando de novo, de um s golpe,No fabulrio das legendas jovens.
E penetrando da maneira mais diretaPorque nele voc entrava de um salto.Teu disparo parecia um EtnaSobre as encostas de covardes e fracos.
1930
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74 Versos a Maiakvski
A Vladmir Maiakvski
Marina TsvetievaTraduo de Haroldo de Campos
Acima das cruzes e dos toposArcanjo slido, passo rme,Batizado a fumaa e a fogo Salve, pelos sculos, Vladmir!
Ele dois: a lei e a exceo,Ele dois: cavalo e cavaleiro.Toma flego, cospe nas mos:Resiste, triunfo carreteiro.
Escura altivez, soberba tosca,Tribuno dos prodgios da praa,Que tocou pela pedra mais foscaO diamante lavrado e sem jaa.
Sado-te, trovo pedregoso!Boceja, cumprimenta e ligeiroToma o timo, rema no teu voospero de arcanjo carreteiro.
1921
O que dizer dela? Ela o princpio da poesia. No em
determinismo causal (se vida, obra ...), relao especular
entre o biogrco e o potico. Mas como dom da existncia.
E o poema, como a continuidade orgnica do poeta.
Vida
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Vida, dom vo e fortuito, 77
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Vida, dom vo e fortuito,Por que foste dada mim?Ou com que secreto intuitoSentenciada a ter m?
Quem, com hostil prepotncia,Do nada me suscitou,Fez fogo a alma, e a intelignciaCom a objeo me agitou?
No vejo meta futura:A alma e a razo vo ao lu,E com o esplim me torturaDa vida o igual escarcu.
26de maio de1828
data em que Pchkin fez29 anos
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78 Vida vida 79
Elegia
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Dos anos loucos a alegria extinta,Ressaca vaga, faz que eu mal me sinta.Mas, como o vinho, o remorso meuQue mais forte cou, se envelheceu. triste minha estrada. E me anunciaO mar ruim do porvir dor e agonia.
Mas no desejo, amigos meus, morrer;Quero ser para pensar e sofrer.
E sei que h gozos para mim guardadosEntre aies, desgostos e cuidados:Inda a concrdia poderei cantar,Sobre prantos ngidos triunfar,E talvez com sorrir de despedidaBrilhe o amor no sol-pr de minha vida.
1830
vida
Marina TsvetievaTraduo de Haroldo de Campos
No roubars minha corVermelha, de rio que estua.Sou recusa: s caador.Persegues: eu sou fuga.
No dou minha alma cativa!Colhido em pleno disparo,Curva o pescoo o cavalorabe
E abre a veia da vida.
1924
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Universal e intemporal, a insnia , para o poeta, mais que
um estado. Ela , simbolicamente, uma condio, referindo-
se ao excesso de viglia de que padece; sua concentrao
potica, empenho constante, e a conscincia aguda daquilo
que o cerca. noite, sua hora natural, os trabalhos da insnia
fazem do poeta um indivduo que trafega no avesso da mquina
do mundo seu habitat onde pode alcanar a criao.
Insnia
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Versos compostos durante uma noite de insnia 83
Versos compostos durante uma noite de insnia
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Tudo sono e escurido;No h luz, nem meu ser dorme.Perto de mim, uniforme,S o som do carrilho,Da parca o senil gaguejo,Da noite dormente o adejo,Da vida de rato a ao...por que me inquietas, ento?Que expressas, rudo aborrido?
Repreenso? Ou gemido por todo meu dia vo?O que de mim ora exiges?Convocas-me?A logo predizes?Gostaria de captarTeu sentido, e o hei de achar.
1830
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84 Insnia Insnia! Amiga minha! 85
ssip MandelstamTraduo de Augusto de Campos
Insnia. Homero. Velas rijas. Naves:Contei a longa la at metade.Barcos em bando, revoada de avesQue se elevou outrora sobre a Hlade.
Uma cunha de grous cortando os cus -Sobre a fronte dos reis cai a espuma divina -Para onde seguis? No fosse por Helena,O que seria Tria para vs Aquiles?
O mar e Homero a tudo move o amora quem ouvir? Mas Homero est quietoE o mar escuro, declamando, com clamor,Ruge e estertora beira do meu leito.
1915
Marina TsvetaivaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
Insnia! Amiga minha!De novo tua moCom a taa estendidaEncontro na noiteTinindo sem som.
Encanta-te!Bebe!No ao alto,
Mas ao fundo Levarei...Com os lbio, lambe!Pombinha! Amiga!Bebe!Encanta-te!Bebe!Em cada paixo Firmeza.Em cada ocasio Certeza. Amiga minha! Concede.Os lbios descerra!Com a volpia dos lbiosA taa da borda bordadaAgarra Sorve,Traga: No seja! Amiga! No veja!Encanta-te!Bebe!De todas as paixes A mais forte, de todas as mortes A mais doce...Das duas palmasMinhas encanta-te! bebe!A paz sem novas se perdeu. No mundo
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86 Insnia
H margens rompidas... Bebe, passarinha! No fundoH gemas derretidas...
Bebes o marBebes a auroraCom qual amante a orgia vai ser?Com o meu Criana Vamos ver?
E se perguntarem, responde (eu te ensino!)Pois, como dizem, - um caco -Com a insnia me ano,Com a insnia me atraco...
maio de 1921
... o nmero do amor. Da encenao em que Eros toma parte.
O encontro romntico j o preldio do grande desencontro,
fatalidade predestinada. O instante fulgor em que o encontro
acontece tema destes exerccios. O enamoramento, experincia
do outro (ou da projeo de si), parte do contedo essencial
da vida, e um tema caro poesia desde as suas origens.
Dois
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O tu e o vs 89
O tu e o vs
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Ela o vs neutro, sem querer,Trocou no tu afetuoso;Fez-me de ventura nascerSonhos no esprito amoroso.Demoro, pensativo, ali:No mais t-la -me impensvel.E digo: Como sois amvel!Mas penso:Como quero a ti.
1828
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90 Dois Quando esse esbelto corpo teu 91
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Eu vos amei. Ainda talvez vivo,O amor no se apagou no peito meu;Mas no vos seja de aio motivo:Entristecer-vos no desejo eu.Eu vos amei, mudo, sem cor de espera,Ora acanhado, ora de cime a arder.Eu vos amei com ternura sincera,Deus queira amada assim venhais a ser.
1829
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Quando esse esbelto corpo teuEntre meus braos aprisiono,E s expresses deste amor meu,Arrebatado, me abandono,Das mos prementes, sem um som,O talhe airoso, sem detena,Livras e me respondes comSorriso de funda descrena.Lembrando com aplicao
Das mutaes minha a histria,Pes-te a escutar-me, merencria,Sem simpatia ou ateno.Maldigo as proezas astuciosasDe minha juventude atrozE as entrevistas amorosasNos jardins, nas noites sem voz.Maldigo do oaristo os cicios,Dos versos os encantos magos,Das virgens simples os afagos,O pranto e os queixumes tardios.
1830
7/28/2019 Poemasrussos Site
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92 Dois LLITCHKA! Em lugar de uma carta 93
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
De nobre espanhola dianteDois cavaleiros estoO olhar franco e petulanteDe um e do outro ao dela vo.Um belo, o outro formoso,E os dois ardem por igual.Cada um o poderosopunho pe no ao fatal.
Eles a amam mais que v ida,Como glria um e outro a quer,E ela a um s: de quem, rendida,Ela almeja ser mulher?Dize qual teu predileto,Ambos lhe falam entoCom f moa, e o olhar diretoDe um e o do outro ao dela vo.
1830
LLITCHKA!Em lugar de uma carta
Vladmir MaiakvskiTraduo de Augusto de Campos
Fumo de tabaco ri o ar.O quarto um captulo do inferno de Krutchnikh.1
Recorda atrs desta janelapela primeira vezapertei tuas mos, atnito.Hoje te sentas,
no corao ao.Um dia maise me expulsars,talvez, com zanga.No teu hall escuro longamente o brao,trmulo, se recusa a entrar na manga.Sairei correndo,lanarei meu corpo rua.Transtornado,tornadolouco pelo desespero.No o consintas,meu amor,meu bem,digamos at logo agora.De qualquer formao meu amor duro fardo por certo
pesar sobre tionde quer que te encontres.Deixa que o fel da mgoa ressentidanum ltimo grito estronde.Quando um boi est morto de trabalhoele se vaie se deita na gua fria.Afora o teu amor
1 Aluso ao poema Um j ogo no Inferno, de A. Krutchnikh e V. Khlbnikov.
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94 Dois Uma vez mais, uma vez mais 95
para mimno h mar,e a dor do teu amor nem a lgrima alivia.Quando o elefante cansado quer repousoele jaz como um rei na areia ardente.Afora o teu amorpara mimno h sol,e eu no sei onde ests e com quem.Se ela assim torturasse um poeta,eletrocaria sua amada por dinheiro e glria,mas a mimnenhum som me importaafora o som do teu nome que eu adoro.
E no me lanarei no abismo,e no beberei veneno,e no poderei apertar na tmpora o gatilho.Aforao teu olharnenhuma lmina me atrai com seu brilho.Amanh esquecersque eu te pus num pedestal,que incendiei de amor uma alma livre,e os dias vos rodopiante carnaval dispersaro as folhas dos meus livros...Acaso as folhas secas destes versosfar-te-o parar,respirao opressa?
Deixa-me ao menosarrelvar numa ltima carciateu passo que se apressa
26 de maio de 1916, Petrogrado2
2 um costume russo datar as cartas ao m.
Vielimir KhlbnikovTraduo de Augusto de Campos
Uma vez mais, uma vez maisSou para vocUma estrela.Ai do marujo que tomarO ngulo errado de marearPor uma estrela:Ele se despedaar nas rochas,Nos bancos sob o mar.Ai de voc, por tomar
O ngulo errado de amarComigo: vocVai se despedaar nas rochasE as rochas ho de rirPor mComo voc riuDe mim.
1919-1921
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96 Dois Fragmentos 97
Marina TsvetievaTraduo de Aurora Fornoni Bernardini
Num mundo, onde cada curvo e sebento,Conheo algumComo eu resistente.
Num mundo onde tantosTanto queremos,Conheo algumComo eu poderoso.
Num mundo onde todos Podrido e hera,Conheo algumComo eu verdadeiro
Tu.
3 de julho de 1924
Fragmentos
Vladmir MaiakvskiTraduo de Augusto de Campos
1
Me quer ? No me quer ? As mos torcidasos dedos
despedaados um a um extraioassim se tira a sorte enquanto
no ar de maiocaem as ptalas das margaridasQue a tesoura e a navalha revelem as cs eque a prata dos anos tinja seu perdo
pensoe espero que eu jamais alcancea impudente idade do bom senso
2
Passa da umavoc deve estar na cama
Voc talvezsinta o mesmo no seu quarto
No tenho pressaPara que acordar-te
com orelmpago
de mais um telegrama
3
O mar se vaio mar de sono se esvaiComo se diz: o caso est enterradoa canoa do amor se quebrou no quotidianoEstamos quitesIntil o apanhadoda mtua dor mtua quota de dano
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98 Dois De As roseiras silvestres orescem 99
4
Passa de uma voc deve estar na cama noite a Via Lctea um Oka3 de prataNo tenho pressa para que acordar-tecom relmpago de mais um telegramacomo se diz o caso est enterradoa canoa do amor se quebrou no quotidianoEstamos quites intil o apanhadoda mtua do mtua quota de danoV como tudo agora emudeceuQue tributo de estrelas a noite imps ao cuem horas como esta eu me ergo e conversocom os sculos a histria do universo
5
Sei o pulso das palavras a sirene das palavrasNo as que se aplaudem do alto dos teatrosMas as que arrancam caixes da trevae os pem a caminhar quadrpedes de cedros vezes as relegam inauditas inditasMas a palavra galopa com a cilha tensaressoa os sculos e os trens rastejampara lamber as mos calosas da poesiaSei o pulso das palavras Parecem fumaaPtalas cadas sob o calcanhar da danaMas o homem com lbios alma carcaa.
1928-1930
3 Rio da Sibria.
De As roseiras silvestres orescem
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
4
Primeira Cano
O mistrio de um no-encontrotem desolados triunfos:frases no-ditas,palavras silenciadas,
olhares que no se cruzaramnem souberam onde repousar s as lgrimas se alegrampor poderem livremente correr.Um roseiral perto de Moscou ai meu Deus! teve tanto a ver com tudo isso...E a tudo isso chamaremosde amor imortal.
1956
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100 Dois A auta vrtebra 101
A carta incinerada
Alexander PchkinTraduo de Jos Casado
Adeus, carta de amor, adeus; assim quis ela...Muito procrastinei, muito chama da velaMeu regozijo eu no me decidi a opor!Basta, o instante chegou: arde, carta de amor.Minha alma (pronto estou) outro ato no concebe.As pginas,voraz, o calor j recebe...Inamaram-se aps instante... e a fumaar,sobem, perdem-se com minhas splicas no ar.A esvair-se a impresso el do anel - sinete
- Providncia - , o lacre, em brasa j derrete...Cada folha se enrola, ento cor de carvo.Era fatal! Na cinza a oculta alma e expressoBranqueja...O peito meu contrai-se. Cinza amada,Refrigrio infeliz de sorte desgraada,Sers sempre sobre este aito corao.
1825
A auta vrtebra
PrlogoVladmir MaiakvskiTraduo de Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos
A todas vocs,que eu amei e que eu amo,cones guardados num corao-caverna,como quem num banquete ergue a taa e
[celebra,repleto de versos levanto meu crnio.
Penso, mais de uma vez:seria melhor talvezpr-me o ponto nal de um balao.Em todo casoeuhoje vou dar meu concerto de adeus.
Memria!Convoca aos sales do crebroum renque inumervel de amadas.Verte o riso de pupila em pupila,veste a noite de npcias passadas.De corpo a corpo verta a alegria.esta noite car na Histria.Hoje executarei meus versosna auta de minhas prprias vrtebras
1915
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Separao
A ruptura o momento desditoso que se segue s festas do amor.
So, portanto, quase indissociveis. Com esses temas, nos poemas
aqui eleitos, quase sempre a perda amorosa provocada por foras
alheias vontade dos amantes. Em outros poemas, a separao
pode soar como uma despedida da prpria vida, daqueles que
so essenciais para esse eu beira da morte, do suicdio. Alm
da separao, os poemas passam a tratar, tambm, da ausncia.
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At logo, at logo, companheiro, 105
Siergui IessininTraduo de Augusto de Campos
At logo, at logo, companheiro,guardo-te no meu peito e te asseguro:o nosso afastamento passageiro sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mos nem palavras.No faas um sobrolho pensativo.Se morrer, nesta vida, no novo,Tampouco h novidade em estar vivo.
1925
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106 Separao Raramente penso em ti. 107
Cano do ltimo encontro
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Eu me sentia fria e sem forasmas eram ligeiros meus passos.Cheguei a pr na mo direitaa luva da mo esquerda.
Pareciam tantos os degraus;mas eu sabia que eram apenas trs.Em meio aos pltanos, o outonomurmurava: Vem morrer comigo!
Fui enganado pelo meu destinofrgil, volvel, maligno.E respondi: Oh, meu querido,eu tambm... morro contigo.
Esta a cano do ltimo encontro.De novo olhei a casa sombria.No quarto apenas, brilhavam velascom um fogo amarelado e indiferente.
1911, Tsrkoie Sel
Anna AkhmtovaTraduo de Lauro Machado Coelho
Raramente penso em ti.
Teu destino pouco me interessa.Mas de minha alma ainda no se apagou
o brevssimo encontro que tivemos.
Evito, de propsito, tua casinha vermelha,tua casinha vermelha junto ao rio lamacento;
mas bem sei com que amarguraperturbo a tua ensolarada quietude.
Embora no te tenhas inclinado sobre mim
suplicando-me que te amasse,embora no tenhas imortalizado
o meu desejo em versos dourados,
secretamente lano encantamentos para o futuro,sempre que as noites so de um azul profundo,
e tenho a premonio de um segundo encontro,um inevitvel segundo encontro contigo.
1913
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Vanguarda
Os poemas includos nesta seo esto historicamente vinculados
verve vanguardista (inaugurada pelo movimento futurista, que
alcanou grande expresso na Rssia). De difcil seleo, por
serem muitos e muito diversos, dentro da particularidade de cada
poeta; e tambm por apresentarem diculdades para o trabalho
de edio, sobretudo aqueles com nfase na dimenso grca e
visual, como acontece com tantos de Maiakvski, alguns desses
textos so a vanguarda por seu experimentalismo radical e
pela respirao inquieta que caracteriza a atmosfera futurista.
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Usina cindida 111
Usina cindida
Alieksii KrutchnikhTraduo Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman
F Fbrica
pndulongulo de ao
metro e cu de gsregira o giroscpio
estralo... marcha... sncopesob o zeiss fustigam lminas de rdio,
sintrsis...alfa beta gama-raio...o cristal desliza pelas costelas da armao
...........................................................zarco...zr...zk....tchm...do zinco
zoeira... zigzag... zs-zurzir j j z z z !
a usina toda que zune!
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A Plenos Pulmes 115114 Vanguarda
Chego a vs,...... Comuna distante,no como Iessinin,.........................guitarriarcaico.Mas atravs..... dos sculos em arcosobre os poetas.....................e sobre os governantes.Meu verso chegar,................no como a setalrico-amvel,..............que persegue a caa.Nem como..........ao numismata............... a moeda gasta,
nem como a luz.....................das estrelas decrpitas.Meu verso..........com labor.............. rompe a mole dos anos,e assoma.....a olho nu,................ palpvel,......................bruto,como a nossos diaschega o aquedutolevantado.................por escravos romanos.No tmulo dos livros,.............. versos como ossos,se estas estrofes de aoacaso descobrirdes,vs as respeitareis,..........................como quem v destroos
de um arsenal antigo,................mas terrvel.Ao ouvido.........no diz................blandcias.........................minha voz;lbulos de donzelas..........de cachos e bandsno fao enrubescer
com lascivos ronds.
Desdobro minhas pginas tropas em parada,
e passo em revistao front das palavras.
Estrofes estacamchumbo-severas,
prontas para o triunfoou para a morte.
Poemas-canhes, rgida coorte,apontando
as maisculasabertas.
Ei-la,a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,alerta para a luta.
Rimas em riste,sofreando o entusiasmo,
eriasuas lanas agudas.
E todoeste exrcito aguerrido,
vinte anos de combates,no batido,
eu vos do,proletrios do planeta,
cada folhaat a ltima letra.
O inimigoda colossal
classe obreira, tambmmeu inimigo
gadal.Anos
de servido e de misriacomandavamnossa bandeira vermelha.
Ns abramos Marxvolume aps volume,
janelasde nossa casa
abertas amplamente,mas ainda sem ler
saberamos o rumo!
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A Plenos Pulmes 117116 Vanguarda
onde combater,
de que lado,em que frente.
Dialtica,no aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,quando,
sob o nosso projtil,debandava o burgus
que antes nos debandara.Que essa viva desolada,
glria se arraste
aps os gnios,merencria.
Morre,meu verso,
como um soldadoannimo
na lufada do assalto.Cuspo
sobre o bronze pesadssimo,cuspo
sobre o mrmore viscoso.Partilhemos a glria,
entre ns todos, o comum monumento:
o socialismo,forjado
na refregae no fogo.
Vindouros,varejai vossos lxicos:
do Letestuberculose,
bloqueio,meretrcio.
Por vs,gerao de saudveis,
um poeta,
com a lngua dos cartazes,
lambeuos escarros da tsis.
A cauda dos anosfaz-me agora
um monstro,
fossilcoleante.Camarada vida,
vamos,para diante,
galopemospelo quinqunio afora.
Os versospara mim
no deram rublos,nem moblias
de madeiras caras.Uma camisa
lavada e clara,e basta,
para mim tudo.Ao Comit Central
do futuroofuscante,
sobre a maltados vates
velhacos e falsrios,apresento
em lugardo registro partidrio
todosos cem tomos
dos meus livros militantes.
dezembro1929/ janeiro1930
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A Plenos Pulmes 119118 Vanguarda
Inverno
Alieksii KrutchnikhTraduo Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman
Revn...
Ivrn...Vnrr
Inverno!...Paredes
De geloRegelo...
Nevrio...Nevrio!Friez... Ventez...
V ven tul... Fri u ul...Gelrio... Gelrio!...
Incruento assassinato...O cu tifoso um piolho compacto!...
AgoraDe seu arco oblquo
Range uma rodaE cai
Tudo estremece Febre e fragor
Clamor de vida
ESCARRANDONAS TUNDRASO SANGUE
DAS FLORESAGUDAS...
Hu ah!... nasceu na granxa uma GARAA geada escarcha pach! pach!Zoam dentes zoentes...
Escava uma fossa na neve fofa Ah ahn ahn ahn!...Astracanh!...nh h h!
Tem pes tua...Amontanha se arrasta Zua zus zus zua...
Zumbe terra, zune terra...Zumbetrrea... zunetrrea...
Infanto-cachorril umbigo em tiple:U i i! U i i! i!...
Ces a trens se atarraxamAps mil ziabos sem oNa cerca uma bruzxa solucha:
ZA-KHA-KHA KHA! Ah-ah!Zu-khu-khu-khu! uh!PU-U-U-XA!!!Pu-u-u-xa!
Desembesta a tempesta... Zia a ventazia...Sobre a ossatura coriceaSalta o xam Xamai
Ai!A todos nevasca:Inv v-vGrr r-rVrn n-n
R-R-R-R!Raz...Trz...
Vzaz CACHORROS
VIRAMCARCAAS!
1926
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Apndice
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A traduo uma operao muito presente na construo da relao
entre o homem e o mundo, na medida em que, de uma forma ou de
outra, ocorre por meio de linguagem. Assim, entende-se por traduo a
transposio de uma lngua para outraque expressa de modo indireto;
imagem, reexo,4 bem como o ato de tornar claro o signicado de algo;
interpretao, explicao5. A traduo , pois, um processo que permeia
o interstcio entre a comunicao e a expresso.
Em face disso, traduzir um texto para outro idioma pode ser, num
primeiro momento, apenas a transposio desse escrito para um outra
lngua, visando, principalmente, comunicao. No entanto, ao conside-
rarmos um texto no apenas como a transmisso de um contedo, mas,
sobretudo, um trabalho com a linguagem visando produo de um sen-
tido, a traduo de um texto pode exigir no s a comunicao como m
ltimo: ela tambm pode congurar-se numa re-escrita do original. Essa
operao, assim como a escrita, traz consigo no s o labor da criao,
mas tambm os conitos que surgem no ato de escrever, uma vez que,
nele, nada mais fazemos que transmitir, por meio da palavra, o que car-
regamos em nosso esprito e pensamento.
Sabendo que a expresso da completude daquilo que abstrato
sempre esbarra na insucincia da palavra e do fazer-se em palavras,
4HOUAISS e VILLAR. Minidicionrio da lngua portuguesa, p. 734.5HOUAISS e VILLAR. Minidicionrio da lngua portuguesa, p. 73
Traduo potica: conscincia doimpossvel ou o esforo de recriar?
Mariana Pithon
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124 Apndice Traduo potica: conscincia do impossvel ou o esforo de recriar? 125
traduzir pode tornar-se, para alguns, um trabalho frustrante, pois o ori-
ginal nunca se manifestar tal e qualem outra lngua. J para outros,
pode ser um trabalho de constante recriao, da expresso individual e
da impregnao da lngua de chegada pela lngua de partida, por meio da
apropriao dos elementos que fazem da ltima instrumento de expres-
so de uma teoria ou de uma obra de arte.
A traduo potica o ponto chave dessa discusso. Maiakvski,
endossando aqueles que acreditam ser a poesia um gnero intraduzvel,
defendia que:
Traduzir poemas tarefa difcil, especialmente os meus.
Uma outra razo da diculdade da traduo de meus versos vemde que introduzo nos versos a linguagem cotidiana, falada...
Tais versos s so compreensveis e s tm graa se sente o sistemageral da lngua, e so quase intraduzveis, como jogos de palavras.6
Nessa mesma linha, Elsa Triolet justica seu trabalho com as tra-
dues de Maiakvski:
Quanto rima, abandonei toda a esperana de transp-la parao francs, salvo algumas excees: por assim dizer impossveltraduzir a vertiginosa virtuosidade das rimas de Maiakvski. Peopoi ao leitor que, nesse sentido, ele mesmo me retique e quejamais esquea que o orignal inteiramente ritmado e rimado7.
Em outra antologia, essa organizada por Lila Guerrero, a dicul-
dade em expressar a grandiosidade da poesia de Maiakvski para o espa-
nhol se manifesta da seguinte forma:
Alguns diro que em russo talvez seja um grande poeta. Sem dvidaque o . Mas os que nada encontrarem de admirvel nesta verso,
tampouco o encontraro em russo.8
No entanto, ser possvel considerar as lnguas sistemas to fecha-
dos a ponto de no conseguirem expressar a fora de um verso maiako-
vskiano ou a ousadia de seu trabalho com a liguagem? A poesia, ento,
por mais universal que seja em sua essncia dever se contentar com o
6MAIAKVSKI.Antologia potica, p. 95.7TRIOLET citada porGUERRA,Antologia potica, p. 958 GUERRERO citada por GUERRA,Antologia de Maiakvski, p. 183.
particular de seu original para ecoar no mundo? Em contrapartida a essa
impossibilidade, outra vertente considera a traduo no s uma opera-
o possvel, mas um ato de criao.
Assim como o escritor aquele que consegue exprimir em pala-
vras aquilo que, at ento, no se encontrava meios de designar, que no
se contenta em brincar com as palavras, mas, como escreve Todorov,
objetiva por meio da escrita uma maneira de se chegar verdade das
coisas, cabe ao tradutor promover o ressoar dessa verdade, sendo essa
harmonia somente alcanada atravs de um intenso trabalho com a ln-
gua de chegada, de modo fazer com que ela absorva as particularidades
da lngua de origem, esse todo que a faz sonora, ritmada e signifcativa.
Adepta dessa viso, Marina Tstevieva, poeta e escritora russa, em
carta para Paul Valry, escreve:
Dizem que Puchkn intraduzvel. Por que ser? Cada poema a traduo do espiritual em material, de sentimentos e pensa-mentos em palavras. Se foi possvel faz-lo uma vez, traduzindoo mundo interior em signos exteriores (o que beira o milagre!),por que no seria possvel transformar um sistema de signos emum outro? muito mais simples: na traduo de um lngua paraoutra, o material dado pelo imaterial, a palavra pela palavra, oque sempre possvel.8
Marina Tsvetieva reete acerca de uma prtica que, contrariando
qualquer conjectura a favor de seu fracasso, faz-se presente tanto como
forma de sobrevivncia dos tradutores, como dos prprios poetas. A
traduo, no caso de muitos poetas russos, assim como no de outros
artistas que, vtimas de sistemas totalitrios, no se dispunham a fazer
concesses a seus ideais, garantiu o sustento nanceiro, ainda que pre-
crio; o flego e a sobrevivncia da poesia cuja publicao foi restringida,
quando no vetada.
A prpria Tsvetieva, com alguma diculdade, foi capaz de con-
quistar um pequeno espao com sua poesia, mesmo residindo fora da
Rssia. De forma mais alardeada, Boris Pasternak conseguiu passar inc-
lume censura, dando nova vida s obras de Shakespeare e Goethe. No
seu caso, o que sua poesia tinha de abominvel na opinio do governo
stalinista possivelmente, a percepo do homem como sendo maior do
que um ser inuenciado pelas aes polticas das mquinas burocrticas
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126 Apndice
e das autoridades polticas foi muito bem recebido, obtendo como tra-
dutor um lugar junto ao cnone universal.
Anos mais tarde, graas ainda traduo, as vozes silenciadas des-
ses poetas ganham reconhecimento e preponderam sobre as atrocidades
da barbrie fantasiada de comunismo, a qual, como aponta Barthes,
confere palavra ordem um conhecimento extremamente repressivo, em
que nem o poeta nem a poesia so livres; nas palavras de Octvio Paz,
voz do povo, lngua dos escolhidos, palavra do solitrio.9
Referncias:MAIAKVSKI, Vladmir.Antologia potica. Traduo de Emilio Guerra. So Paulo: Max Limonad, 1987
MAIAKVSKI, Vladmir. Poemas. Traduo e Organizao de Augusto de Campos; Haroldo de
Campos; Boris Schnaiderman. 7. ed. So Paulo: Perspectiva, 2006.
PAZ, Octavio. El arco e la lira. Madrid: Fondo de Cultura, 1998. (Lengua y Estudios Literrios)
TSIVETIEVA, Marina. Vivendo sob o fogo. So Paulo: Martins Fontes, 2008.
9PAZ. O arco e a lira, p. 6.
Tenho a maior satisfao e sinto-me honrado de estar aqui, nesta confra-
ternizao entre nossas culturas, e tanto mais por se tratar de uma ver-
dadeira homenagem a meu amigo de muitos anos, Haroldo de Campos.
Aproveito a oportunidade para transmitir a vocs um pouco da minha
experincia como seu colaborador no campo da poesia russa moderna.
O seu trabalho O texto como produo (Maiakvski)10 um roteiro
comentado, com muita intensidade e vivncia, da traduo que realizou
de um dos poemas mais fortes de Maiakvski, A Siergui Iessinin,
sobre o suicdio desse poeta russo em 1925, mas tambm um depoi-
mento sobre como ele iniciou esses trabalhos.
Quando me dispus a traduzir um poema de Maiakvski, aps poucomais de trs meses de estudo do idioma russo, conhecia minhaslimitaes, mas tinha tambm presente o problema especco datraduo de poesia que , a meu ver, modalidade que se inclui nacategoria criao. Traduzir poesia h de ser criar, sob pena de es-terelizao e petricao, o que pior do que a alternativa de trair.
Mas no me propus uma tarefa absurda. Ezra Pound traduziu poemaschineses (Cathay) ns japoneses, numa poca em que no se tinhaainda iniciado no estudo do ideograma, ou em que estaria numafase rudimentarssima desse estudo, servindo-se do texto (verso)intermedirio do orientalista Ernest Fenollosa e iluminado por umaprodigiosa intuio potica. E os resultados, como poesia, excedemsem comparao ao do competente sinlogo e niposnitsa Arthur Waley,
10 CAMPOS.A operao do texto, p. 43-88.
Haroldo de Campos e atranscriao da Poesia Russa Moderna
Boris Schnaiderman
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128 Apndice Haroldo de Campos e a transcriao da Poesia Russa Moderna 129
e acabaram, inclusive, por instigar o teatro criativo de Yeats (At theHawks Well, 1916), alm dos nutrimentos que o prprio Pound tirouda experincia. Sem que se tenha a imodstia de pretender repetir,no campo da traduo da poesia, as faanhas poundianas, no hdvida de que deste caso-paradigma decorre toda uma didtica. 11
Depois, em vrias passagens, ele se refere leitura que z quando
o poema estava ainda em rascunho. O que o poeta no diz, porm, que
embora ele tivesse estudado at ento pouco mais de trs meses num
curso de iniciao lngua russa, pude dar apenas pouqussimas suges-
tes, tal era a qualidade de seu trabalho.
Da nasceu uma colaborao e convvio que se estenderam a seu irmo,
Augusto de Campos, outro grande tradutor de poesia para o portugus.
Parece-me s vezes incrvel que nosso trabalho de grupo se tenha
desenvolvido to harmoniosamente, sem atritos de espcie alguma. Acho
que na histria da traduo foram poucos os casos em que isto se tornou pos-
svel, pois quase sempre surgem questes pessoais, competio, rivalidades.
Quanto a ns, houve realmente uma complementariedade ope-
rativa, pudemos completar em grupo aquilo que nos faltava indvidual-
mente. E a amizade pessoal acompanhou de perto este tipo de reali-
zao. Depois, Haroldo teve outros calaboradores, ele tinha certamente
uma predisposio especial para o trabalho em equipe. E foi esse esprito
que o ajudou a realizar, com a colaborao do helenista Trajano Vieira, a
traduo da Ilada.
Compreende-se a atrao que Maiakvski exercia sobre Haroldo e
seus companheiros de gerao. Estvamos em 1961, quando o interesse
dos poetas do concretismo paulista pelo construtivismo, pelas manifesta-
es de um esprito geomtrico que aparece na arte moderna em formas
as mais variadas, foi acompanhado de uma identicao com as grandes
esperanas da esquerda da poca. Era o tempo em que Dcio Pignatari
falava no pulo conteudstico-semntico-participante da poesia concreta
e acrescentava: A ona vai dar o pulo12. Este esprito era evidente em
cada um dos poetas do grupo.
11CAMPOS.A operao do texto, p. 43-44.12PIGNATARI. Situao atual da poesia no Brasil.
Conforme Haroldo conta no trabalho que citei h pouco, ele cava
intrigado com a obra de Maiakvski: os seus escritos de potica, que ele
pudera ler em traduo, mostravam um criador bem cnscio de que a
poesia lida com linguagem concentrada ao mximo, de que o poeta deve
ser um construtor de linguagem. Mas quando ele passava a tradues
de seus poemas em lnguas ocidentais, aparecia em quase todas um
poeta de comcio, um emissor de slogans fceis e muitas vezes banais.
Tentando resolver o enigma e animado por umas pouqussimas tradues
ocidentais (no referido estudo, ele se refere particularmente ao tradutor
alemo Karl Dedecius), Haroldo se disps a estudar o russo, tendo como
objetivo principal a aproximao com a obra de Maiakvski.
Depois que ele me trouxe a sua traduo do poema sobre o suic-
dio de Iessinin, percebi que havia nele extremos de virtuosismo, com a
recriao de recursos sonoros do original. Este inicia-se assim:
Vi uchli,Kak govortsia,
v mir ini.Pustot...
Lettie,v zvizki vrizivaias.
Pois bem, na traduo de Haroldo isto aparece assim:
Voc partiu,como se diz,
para o outro mundo.Vcuo...
Voc sobe,entremeado s estrelas.
Os diversos passos do poema foram analisados por Maiakvski
em sua radiograa desse texto, o ensaio Como fazer versos?13. Este
ensaio permite compreender melhor o trabalho do poeta, mas, ao mesmo
tempo, d ao tradutor uma responsabilidade maior, torna-se imperativo
conseguir na lngua-alvo aquilo que se realizar na lngua de partida e
que estava to claramente exposto pelo artista criador. Foi este o desao
que o tradutor brasileiro aceitou. E depois de aceitar e vencer este desa-
o, exps o seu trabalho de poeta no estudo que citei h pouco. Sem
13MAIAKVSKI citado por SCHNAIDERMAN.A potica de Maiakvski atravs da sua prosa, p. 167-220.
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130 Apndice Haroldo de Campos e a transcriao da Poesia Russa Moderna 131
entrar em maiores detalhes, quero lembrar que aquele trecho do original,
v zvizki vrizivaias, acrescido ao incio forte e ao mesmo tempo em
tom coloquial, exigia algo correspondente na lngua de chegada e que
sem isto o poema se tornaria frouxo, pode-se dizer invertebrado. E foi o
que Haroldo conseguiu:
Voc partiu,como se diz,
para o outro mundo.Vcuo...
Voc sobe,entremeado s estrelas.
Lembro-me de que Roman Jakobson e sua mulher, Krystyna
Pomorska, quando estiveram conosco em So Paulo em 1968, falavam
do deslumbramento que lhes causara a revelao daquele texto em por-
tugus, e sobretudo a soluo entremeado s estrelas para v zvizki
vrizivaias. Na realidade, Haroldo conseguira fazer o portugus cantar
com sotaque russo, a ponto de um russo como Jakobson encontrar no
texto traduzido o som da lngua-me.
Anidade entre lnguas to diferentes? Sim, no h dvida, mas
esta anidade s pode ser desvendada pelos poetas, e, mesmo no sendo
religiosos, devemos agradecer aos cus quando isto acontece. Pois o
que mais se encontra a velha cantilena sobre o intraduzvel da poesia.
Assim, o norte-americano Samuel Charters num livro sobre Maiakvski14,
procura desculpar-se dos parcos resultados com suas tradues, ar-
mando: ...ingls e russo no so lnguas compatveis. Elas tm to
pouco vocabulrio e gramtica em comum que, se se tenta reproduzir
a rima e o ritmo do russo, o signicado distorcido, e se este trazido
literalmente, perde-se a forma potica. Ora, acaso o portugus e o russo
tm maiores anidades de vocabulrio e gramtica? Parece-me que
no. tudo um problema de realizao potica. Assim, na traduo de
um famoso slogan publicitrio de Maiakvski, Charters escreve, expli-
cativo: You need no more/than the mosselprom store. Mas, como soa
direta e incisiva, bem mais prxima do original, a traduo de Haroldo:
O bom? No Mosselprom!
14CHARTERS. I love - The story of Vladimir Maiakvski and Lili Brik.
Na minha estada em Moscou em 1972, encontrei-me com uma
especialista em literatura latino-americana, que estava empenhada em
estimular alguns poetas cubanos a repetir o que Haroldo e Augusto de
Campos haviam feito em portugus, com a minha colaborao. Pois bem,
os textos que ela me mostrou me pareceram bem fracos e, sobretudo,
muito presos potica tradicional. Quando observei isto, respondeu-me:
ora, um problema de lngua. O portugus se presta muito mais que o
espanhol para uma transposio criativa. Francamente, eu no acredito
nisso. H quem diga que a sonoridade do portugus aproxima-se bas-
tante do russo. Mas, em todos os idioma, uma questo de encontrar
o tom exato para a traduo potica e escolher no repertrio da lngua
aquilo que nos d o correspondente ao original que se estiver traduzindo.
A partir das tradues de Maiakvski, estendemos o leque para a
poesia russa moderna em geral. A nossa abordagem dessa poesia tinha
como eixo dorsal os textos de Khlbnikov e Maiakvski, cuja obra corres-
pondia mais de perto ao que buscvamos. Mas justamente o trabalho com
estes dois poetas facilitou a aproximao com outros bem diferentes deles,
o que permitiu construir uma antologia bastante abrangente. Assim, depois
de Poemas de Maiakvski15 publicamos a seis mos Poesia russa moderna16.
Trabalhvamos frequentemente num clima de grande entusiasmo.
Muitas solues eram discutidas pelo telefone, havia uma impregnao
constante pelo trabalho potico. Evidentemente, no d para acreditar
hoje em dia em inspirao, pelo menos no sentido que os romnticos
davam a esse termo. Mas, podemos falar com Jakobson em congurao
subliminar em poesia17.
Isto , o artista criador aritcula a seu modo as estruturas poti-
cas de sua lngua, e muitas das solues acabam surgindo inconsciente-
mente. E esta congurao subliminar opera verdadeiros milagres, algo
que chega a parecer sobrenatural.
Como exemplo, pode-se citar um acrscimo de Roman Jakobson
edio brasileira de seu estudo referido h pouco, onde ele chama a aten-
o para o fato de que, na traduo do poema O grilo de Klhbnikov,
15MAIAKVSKI. Poemas.16 CAMPOS. Poesia russa moderna: nova antologia.17 JAKOBSON. Lingustica e comunicao, p. 118-162.
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132 Apndice Haroldo de Campos e a transcriao da Poesia Russa Moderna 133
Augusto de Campos empregou, nos primeiros versos, os cinco eles do ori-
ginal, sem nenhum conhecimento, por decincias de comunicao entre
Brasil e a Rssia, dos comentrios que o poeta zera sobre a importncia
que eles tinham para o arcabouo do texto. V-se, pois, que um poeta
fala a outro sem necessidade da explicitao que se faz para o leitor.
No prefcio segunda edio de Poesia russa moderna, cito o caso
de um poemas de Siemin Gudzenko, includo no livro, e que fora defor-
mado pela censura sovitica, mas que Haroldo traduziu suprimindo aque-
las deformaes, sem saber nada desse problema editorial.
Nosso trabalho tinha s vezes muito de jbilo, de epifania.
Lembro-me agora da alegria com que Haroldo me telefonou para me
comunicar o nal que tinha conseguido para a traduo da Carta a
Tatiana Icovleva de Maiakvski, escrito em Paris e dirigido a uma russa
emigrada, e que ele concitava a regressar ptria. O poema magnco,
certamente um dos mais belos de Maiakvski, e tem um grand nale,
sem o qual todo ele caria desequilibrado. Depois de rabiscar inmeras
solues, Haroldo chegou ao seguinte resultado:
Voc no quer? Hiberne, ento, parte.(No rol dos vilipndios
marquemos:mais um X).
De qualquer modoum dia vou tomar-te
sozinhaou com a cidade de Paris.
No texto original, no aparece aqueleX, mas se Maiakvski escre-
vesse em portugus e trabalhasse como elementos grcos, fnicos e
semnticos de nossa lngua, certamente haveria de aproveitar aqueleX
to sonoro e gracamente to bonito na pgina.
Houve ocasies em que o verso traduzido soava mais forte que o
original, mas isto nos parece absolutamente indispensvel. Haroldo cos-
tumava falar em lei das compensaes em poesia. Quer dizer, se eu
no consigo reproduzir todos os processos construtivos de um poeta, em
todas as passagens em que eles apareceram, devo acrescentar em outras
passagens procedimentos que so inerentes ao trabalho criador no ori-
ginal. Um dos exemplos mais belos de que me lembro o verso A dor
do universo numa fava, que aparece na traduo de Haroldo do poema
de Pasternak, Denio de poesia. Pasternak nos diz ali que a poesia
est nos objetos, no mundo, e no s nas palavras. Da, aquele A dor do
universo numa fava. Mas o referido verso no tem no original a mesma
fora e grandeza, est mais ligado ao regional e descritivo; o achado de
Haroldo contribuiu para que o conjunto do poema tivesse aquela grandio-
sidade requintada que tpica de Pasternak.
Costuma-se dizer que a lngua portuguesa o tmulo do pensa-
mento, o que verdade, se pensamos nas diculdades que um texto
brasileiro encontra para circular fora do pas. Mas o simples fato de estar-
mos aqui, tratando da obra de um poeta brasileiro, mostra que esta ver-
dade bastante relativa, e isto foi rearmado pelo clima deste nosso
encontro e, particularmente, pelos que me precederam.
Posso ilustrar este fato com mais um passo de nossa atividade de
tradutores. Haroldo esteve na Tchecoslovquia em 1964, pouco antes do
golpe de estado no Brasil. Naquele pas teve oportunidade de conversar
com uma funcionria dos servios culturais soviticos, que, a propsito
de poesia de vanguarda, falou-lhe muito de um poeta russo praticamente
desconhecido na Unio Sovitica. Tratava-se de Guendi Aigui, tchuvache
de nascimento e que passara a escrever em russo (os tchuvaches so
um povo com cerca de um milho e meio de habitantes, estabelecido na
regio do Volga). Mas, prximo de Pasternak por ocasio do escndalo
do prmio Nobel, ele no conseguia publicar nada em russo. Os seus
versos eram muito conhecidos em traduo na Polnia, Tchecoslovquia,
Iugoslvia e Hungria, mas em Moscou, onde estava morando, era um
ilustre desconhecido e enfrentava grandes problemas para garantir a
sobrevivncia. Por outro lado, o Ocidente quase no tomara ainda conhe-
cimento dele.
Indo a Moscou em 1965, no o encontrei, pois estava de frias no
interior, mas deixei para ele uma carta em que manifestava interesse por
sua poesia. Em resposta, enviou-me inmeros materiais e muitos poe-
mas seus datilografados. Sua poesia nos impressionou desde o incio e
ele o poeta vivo que tem maior espao em nossa antologia.
Depois disso, enviamos cpias de seus poemas a vrios amigos