Post on 11-Nov-2018
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA
MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMTICA
LEONARDO BALBINOT TURMINA
O LIVRE-ARBTRIO NO PENSAMENTO DE TOMS DE AQUINO
Prof. Dr. Urbano Zilles
Orientador
Porto Alegre
2014
LEONARDO BALBINOT TURMINA
O LIVRE-ARBTRIO NO PENSAMENTO DE TOMS DE AQUINO
Dissertao apresentada Faculdade de Teologia
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para
obteno do grau de Mestre em Teologia, rea de
Concentrao em Teologia Sistemtica.
Orientador: Dr. Urbano Zilles
Porto Alegre
2014
Quem poder dizer que uma coisa se faa sem a ordem do Senhor?
(Lm 3:37)
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer primeiramente equipe do programa de Mestrado em Teologia
da PUCRS, em especial ao Dr. Leomar Brustolin, pela acolhida no curso. Alm disso, com
grande afinco que agradeo ao Programa CNPq pela bolsa concedida, que me possibilitou o
apoio financeiro sem o qual eu no conseguiria realizar o curso.
Tambm agradeo aos meus pais pelo apoio e incentivo que foram muito importantes
nesse perodo.
No poderia deixar de agradecer com alegria ao meu orientador, Dr. Urbano Zilles,
que sempre esteve ao meu dispor, pela pacincia e cooperao para realizar esta dissertao.
Por fim, agradeo com meu corao ao Amado Senhor, que me concedeu esta
realizao em minha vida.
RESUMO
A presente dissertao procura investigar os argumentos que o santo e doutor da Igreja
Catlica Apostlica Romana, Toms de Aquino, apresenta no seu pensamento referente ao
livre-arbtrio e como este encontra espao perante a Divina Providncia. Para tanto, analisa-se
o desenvolvimento dessas questes ao decorrer da patrstica, bem como as principais ideias de
alguns dos pensadores que foram pilares do pensamento do santo catlico. Tendo como
referncia sua obra mxima, a Suma Teolgica, a dissertao procura em diversas questes da
obra a dimenso do livre-arbtrio que o ser humano possui perante a vontade divina.
Palavras-chave: Livre-Arbtrio. Divina Providncia. Graa. Predestinao. Vontade.
ABSTRACT
This dissertation intends to investigates the arguments that the Saint and Doctor of the
Roman Catholic Church, Thomas Aquinas introduces in his thinking concerning of free will
and the way that he envisages the Divine Providence. It analyzes the development of these
issues over the course of patristic, as well as some of the main ideas of the thinkers who were
the pillars of the catholic saint. With reference to his magnum opus, the Summa Theologica,
this dissertation looks for the dimension of free will that humans have in front of the divine
will in many issues of his work.
Keywords: Free will, Divine Providence, Grace, Predestination, Will.
SUMRIO
INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8
1. PROVIDNCIA E O LIVRE-ARBTRIO NA FILOSOFIA CRIST ANTERIOR A
TOMS DE AQUINO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
1.1 Definio de conceitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10
1.2 Um pouco de desenvolvimento histrico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.3 Joo Damasceno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18
1.4 Bocio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20
1.5 Agostinho de Hipona . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.6 Toms de Aquino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2. A PROVIDNCIA SEGUNTO TOMS DE AQUINO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
2.1 Divina Prescincia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
2.2 Divina Providncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44
2.3 Graa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
2.4 Predestinao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
3. O LIVRE-ARBTRIO PERANTE A PROVIDNCIA DIVINA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3.1 A vontade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59
3.2 O livre-arbtrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
CONCLUSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .79
REFERNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .81
INTRODUO
Por que escrever mais um trabalho sobre livre-arbtrio? Conforme ver-se- no primeiro
captulo desse trabalho, o livre-arbtrio uma questo crucial j para os primeiros Padres do
cristianismo, sendo que esse conceito estava intimamente ligado aos seus sistemas de
pensamento. Afirmam esses pensadores que o livre-arbtrio que torna o homem responsvel
pelos seus atos, tornando-o assim sujeito ativo na obra divina. Porm, alvo desse trabalho
investigar at onde o ser humano pode agir livremente, pois existe algo que limita o seu livre-
arbtrio de forma significativa: a Providncia.
Poder-se-ia investigar essa questo em diversos nomes da teologia crist (seno at
mesmo em pensadores no-cristos). No entanto, devido a sua sistematicidade e importncia,
optou-se por Toms de Aquino, santo e doutor da Igreja Catlica Apostlica Romana. O
Aquinate expe em seu pensamento ambas questes: a Divina Providncia (e
consequentemente o Governo Divino) e o livre-arbtrio. Assim, surgiu a dvida de como pode
haver livre-arbtrio (e, se ele existe, qual a sua dimenso) numa ordem do Universo em que
parece estar tudo determinado, em que o Universo parece funcionar de acordo com uma
vontade maior.
O fato de existir uma Providncia Divina parece no causar maiores problemas na
Teologia. No entanto, o tamanho de sua abrangncia e a implicao que ela faz ao livre-
arbtrio foram discutidos amplamente ao decorrer dos tempos. Nessa dissertao, de acordo
com o pensamento de Toms de Aquino, parte-se da ideia de que Deus interage com Sua
criao do incio ao fim na existncia dela, e recusa-se a aceitar o conceito de que Ele teria
criado o mundo e aps o abandonado, deixando-o se desenvolver por si prprio.
De fato, existe uma sabedoria maior que rege o universo. Ela onisciente e
onipresente, abrangendo totalidade. Deus, atravs da Sabedoria, conhece a histria do
mundo do princpio ao fim. Ele conhece no s o que fazemos, mas tambm o que deixamos
de fazer. Em outras palavras, Deus tem a cincia no s do que resultar de um dado evento,
mas tambm do que resultaria se ocorressem as demais possibilidades desse evento. Enfim,
nada escapa Providncia, pois, como afirma o reformador Calvino: todo e qualquer evento
governado pelo conselho secreto de Deus1.
Com isso, h uma dualidade no agir do homem, sendo ele livre para interagir na obra
divina, mas, ao mesmo tempo, sendo governado por uma fora maior, a qual direciona seus
1 A Instituio da Religio Crist I, 16, 2.
passos. E assim, surge um questionamento, de certa forma normal a todo ser humano, sendo
que se Deus criou o mundo com um propsito, se Ele tem um plano de vida para todos ns,
onde fica o livre-arbtrio do ser humano? At aonde vai a influncia providencial e qual o
limite que temos para atuar na criao divina? Tais dvidas foram o que instigou a realizao
dessa dissertao.
Certamente, todas essas so questes que ao decorrer da histria perturbaram as
mentes mais brilhantes e que, obviamente, no sero respondidas em definitivo com essa
dissertao. O propsito maior das prximas pginas o de verificar como Toms de Aquino
interpretou e tentou resolver esse problema. Dessa forma, perante a Providncia que guia e
orienta o ser humano, o problema central desse trabalho est em averiguar a dimenso que o
livre-arbtrio possui no pensamento de Toms de Aquino. Para tanto, analisou-se de maneira
mais significativa sua principal obra, a Suma Teolgica, alm de tambm serem utilizadas
outras obras importantes desse pensador, como a Suma Contra os Gentios, o Compndio de
Teologia, o Comentrio s sentenas de Pedro Lombardo e as Questes Disputadas.
A dissertao foi redigida fazendo-se uso do mtodo descritivo, sendo organizada de
maneira em que as ideias dos pensadores estudados aparecem sob tpicos, ou melhor, na
forma de afirmaes. Optou-se por essa estrutura para que ficasse mais claro e visvel o que
cada um expe. Ela est dividida em trs captulos, sendo que no primeiro introduz-se o livre-
arbtrio, e tambm a Providncia, no incio da teologia crist, alm de enfatizar um pouco do
pensamento dos principais nomes desse perodo, como Joo Damasceno, seguidamente citado
na Suma Teolgica, Bocio e Agostinho de Hipona, o qual no poderia faltar num trabalho
dessa abrangncia. Nos captulos posteriores analisado o problema foco desse trabalho no
pensamento de Toms de Aquino. No segundo focaliza-se a atuao de Deus na criao
expondo-se a existncia de um Governo Divino que determina o fim do ser humano. Atravs
da Providncia e seus respectivos atributos, como a graa e a predestinao, adentra-se na
maneira que Toms de Aquino percebe o agir divino para que esse fim seja cumprido. Como
Toms de Aquino percebe o livre-arbtrio e, consequentemente, a vontade em meio a esse,
poderamos dizer, determinismo tratado no terceiro captulo, onde tenta-se compreender o
que fundamenta o livre-arbtrio no pensamento do santo dominicano, e assim busca-se a
resposta da dvida central dessa dissertao.
1. A PROVIDNCIA E O LIVRE-ARBTRIO NA FILOSOFIA CRIST ANTERIOR A
TOMS DE AQUINO
Antes de tratar diretamente sobre o pensamento de Toms de Aquino, introduzir-se-,
de forma sucinta, um pouco do desenvolvimento histrico das questes relevantes deste
trabalho. Notar-se- nesta introduo histrica certas ideias e conceitos que influenciaram o
pensamento do Aquinate, e que, de certa forma, estruturaram sua viso de mundo.
1.1 Definio de conceitos
A fim de melhorar a compreenso do assunto, explicitar-se- uma definio geral dos
principais conceitos que so abordados nesta dissertao.
1) Prescincia Divina
A Prescincia Divina implica na ideia de previso de Deus, ou seja, o conhecimento
que Deus tem do curso integral dos eventos que so futuros sob o ponto de vista humano. O
termo prescincia tambm usado num sentido de pr-oredenao. H dois enfoques
teolgicos referentes Prescincia Divina:
Prescincia Divina Absoluta
Neste enfoque, acredita-se que Deus tem total conhecimento de antemo de toda histria
(sob o ponto de vista humano) de Sua criao. A Prescincia Divina Absoluta divide-se em:
i) Causativa o pensamento teolgico que defende este enfoque afirma que todas as
coisas ocorrem pela vontade divina, eliminando assim o livre-arbtrio humano;
ii) No-causativa por outro lado, essa linha teolgica afirma que Deus tem o
conhecimento de todos os eventos futuros, no entanto sem tirar o livre-arbtrio do ser humano.
Prescincia Divina Relativa
O conceito teolgico de Prescincia Divina Relativa implica que Deus no conhece todas
as coisas absolutamente de antemo.
2) Divina Providncia
Compreende-se como Divina Providncia a atuao de Deus em Sua obra. Pode-se
afirmar, em outras palavras, que todo o Universo dirigido pelo Criador atravs da
Providncia, tendo assim controle completo sobre todas as coisas. Sejam as leis fsicas, como
as leis de ao e reao, ou seja o destino das criaturas, como as inter-relaes pessoais, tudo
est sob o domnio providencial. A Providncia pode ser comprovada por diversos textos
bblicos, como por exemplo nos livros sapienciais (Sl 103:19), nos Evangelhos (Jo 5:17) e nas
cartas paulinas (Gal 1:15).
3) Graa
A atuao da Providncia no aspecto moral do ser humano se d por meio da graa.
Na doutrina crist, o ser humano estava inicialmente num plano divino (o famoso Jardim do
den)2. Houve ento a queda do ser humano desse plano divino e, consecutivamente, o
afastamento do seu Criador. Com isso, o ser humano entregou-se ao pecado, deixando-se
dominar pelo vcio e pelos desejos exacerbados. Sendo assim, a graa um auxlio divino, ou
seja, uma medida da Providncia pela qual Deus redireciona o homem ao seu plano original,
pois sem a graa o ser humano no tem foras prprias para esse retorno.
4) Predestinao
Subentende-se como predestinado algo que est anteriormente determinado ao evento
em si. Na teologia, um predestinado implica em algum que j est salvo anteriormente ao seu
nascimento. Conforme ver-se- mais adiante, estar predestinado no implica em j nascer com
a graa, mas j nascer preparado para receber a graa.
2 No adentrar-se- no significado do termo Ado, se ele se refere a um homem em particular ou humanidade
em geral.
A doutrina da predestinao sustentada pela clebre passagem paulina:
Porque os que dantes conheceu tambm os predestinou para serem conformes
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primognito entre muitos irmos. E aos
que predestinou a estes tambm chamou; e aos que chamou a estes tambm justificou;
e aos que justificou a estes tambm glorificou.3
A maneira como Deus predestina compreendida sob duas ticas:
Predestinao pela Prescincia Divina
Nessa tica, Deus predestina queles que, atravs de Sua Prescincia, sabe da antemo
que sero pessoas piedosas, que correspondero ao Seu chamado. Com isso, Deus j os deixa
salvos antes mesmo de nascerem.
Predestinao por eleio
Como j diz o enunciado, nessa tica Deus elege, ou seja, escolhe certas pessoas para
serem salvas de antemo. No h um consenso, ou ainda, no sabido qual o critrio divino
para tal escolha. Obviamente, dessas duas ticas decorrem acirradas discusses teolgicas,
principalmente quando pensadas em funo do livre-arbtrio.
5) Livre-arbtrio
Por outro lado, existe a questo da liberdade e do livre-arbtrio. Estes conceitos foram
amplamente desenvolvidos por filsofos e telogos ao decorrer da histria. Por conta disso,
uma difcil misso explic-los sucintamente de uma forma geral, haja visto que, de forma
exagerada, cada pensador os v conforme seu gosto. No entanto, esforar-se- para defini-los
em geral.
Nesta dissertao, parte-se do pressuposto que liberdade e livre-arbtrio so conceitos
distintos. A liberdade um conceito amplo que, explicando de forma mais do que resumida,
implica um movimento (seja fsico ou inteligvel) sem nenhuma restrio; ao passo que o
3 Rom 8:29 e 30.
livre-arbtrio um conceito mais restrito que implica a escolha entre bem ou mal, o correto ou
o incorreto.
Tendo-se Kant como referncia, pode-se afirmar que, em termos fsicos no h
liberdade, pois esse universo funciona de forma mecnica. Sendo assim, o ser humano, bem
como os demais seres vivos, so regidos pelas leis fsicas e, portanto, ele completamente
determinado por estas. Com isso a liberdade, em suma, no , nem pode ser, uma questo
fsica; s e unicamente uma questo moral4.
O livre-arbtrio, segundo Ferrater Mora, pode ser definido como uma noo
meramente negativa, porquanto se a usa para designar somente a possibilidade de eleger ou
no eleger, ou a possibilidade de escolher entre dois termos de uma alternativa, sem se
proporcionarem os fundamentos ou razes para uma eleio definida5.
No concentrar-se- se de fato a liberdade existe ou, como afirma Kant, no existe.
Mas o que interessa nesta dissertao se para Toms de Aquino o livre-arbtrio existe e, caso
isso seja afirmativo, como ele possvel dentro da manipulao que Deus exerce em Sua
criao.
1.2 Um pouco de desenvolvimento histrico
Na cultura ocidental, a ideia de um Deus Providncia aparece em Plato6 na obra
Timeo, e ser desenvolvida amplamente pelos seguidores desse filsofo grego. Ao tratar de
influncias (ou at mesmo pilares) do pensamento cristo, no possvel escapar do
neoplatonismo e de Plotino. As Eneadas, de Plotino, por sua vez, representam praticamente
um ponto de partida para o pensamento filosfico cristo7. Plotino teve como mestre Amnio
de Sacas, um admirador do pensamento indiano. Alm do mais, Plotino foi muito
influenciado por Numnio de Apameia, pensador que estava repleto de ideias orientais. Visto
essas influncias indiretas, no a toa que mile Brchier acredita numa aproximao do
pensamento de Plotino com as Upanishads8.
No pensamento cristo, a preocupao com o livre-arbtrio j aparece no pensamento
de Irineu, Bispo de Lio. Segundo ele, as principais faculdades da alma so o intelecto e o
4 MORA, p. 413.
5 MORA, pp.42 e 43.
6 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 101.
7 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, pp. 123 e 124.
8 BRUN, p. 21.
livre-arbtrio9. Alm disso, um ser inteligente um ser livre
10. Irineu v o livre-arbtrio
como fundamento da responsabilidade moral e religiosa. No entanto, ele no identificou a
graa com o livre-arbtrio. Pois se (...) todo homem livre em seus juzos, todo homem
responsvel por eles11
. No entanto, o pecado diminui o livre-arbtrio. Irineu escreveu a fim
de contestar os gnsticos, que acreditavam numa salvao para um determinado grupo.
Os primrdios da filosofia crist sofrem algumas influncias distintas. Flon de
Alexandria uma das principais influncias dos primeiros pensadores cristos. A partir daqui,
seguem as ideias de alguns dos principais pensadores cristos. Note-se certa semelhana do
pensamento deles com as ideias gentis.
Para Orgenes, os espritos que povoam o universo afastaram-se de Deus por livre
vontade. Os diversos graus dessa queda estabeleceram a hierarquia do mundo: como anjos,
homens, etc. Assim, as almas humanas, apesar de serem espritos aprisionados em corpos,
podem, por esforo prprio, se libertar da sua priso e recuperar sua condio primeira. Alm
do mais, as almas humanas podem se degradar mais ainda e passarem para corpos de
animais12
. Assim, o livre-arbtrio a causa inicial da queda e o agente principal de
reabilitao. Sendo assim, incontestvel que o homem permanece um ser livre13
. Para
Orgenes, o indivduo (ou seja, o homem) a prpria causa de sua deciso. Ento, nesse
sistema, o mal surge primariamente por causa da liberdade, porm essa mesma liberdade
condio necessria para o bem. O ser tem a liberdade para escolher ou no a Deus. No
entanto, mesmo aprisionada num corpo, a alma no perdeu totalmente sua semelhana a Deus.
E atravs de um auto-conhecimento, auxiliada pela Graa, que ela recupera essa similitude.
Segundo Gregrio de Nissa, o homem capaz de escolher entre o bem e o mal, no
entanto optou pelo mal, ou melhor, o homem tornou-se o criador e o demiurgo do mal14
.
Assim, como consequncia do pecado, a imagem de Deus no homem cobriu-se com uma
espcie de ferrugem15
. Por conseguinte, consistindo o erro em preferir o sensvel ao divino,
o elemento sensvel que doravante predomina no homem16
. Gregrio de Nissa explica
como a matria pode vir de Deus sendo Ele imaterial e invisvel. Segundo esse pensador, as
9 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 36.
10 idem
11 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 37.
12 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 53.
13 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 54.
14 GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 71.
15 idem
16 idem
qualidades da matria (quantidade, qualidade, figura, limite, ...) no so mais que puras
noes. Ento, segundo E. Gilson, para Gregrio de Nissa:
A anlise da matria pelo pensamento resolve-a, assim, em elementos que, tomados
parte, so objetos de conhecimento inteligvel, mas cuja combinao ou mistura
produz a confuso a que chamamos matria17
.
Essa abordagem da matria, de certa forma, nos remete ao pensamento de algumas
doutrinas orientais (como o caso da Vedanta), para as quais a matria no possui realidade
inerente (em outras palavras, seria como uma iluso o famoso vu de maya), mas o que
existe uma experincia que ocorre unicamente na mente. Sendo assim, o processo de
criao, descrito no livro bblico Gnesis, teria sido escrito s pessoas comuns, i. e., os mais
simples; pois o inteligvel a prpria substncia de que a aparncia sensvel resulta. O que o
relato do Gnesis conta (...) a criao dos inteligveis, que so o prprio fundamento da
realidade18
.
Sinsio, discpulo da filsofa Hipatias, demonstra influncia de Plotino em toda sua
obra. Segundo Sinsio, de Deus que nascem os espritos. Tendo descido at a matria, cada
um deles deve esforar-se por desprender-se dela e remontar em direo sua fonte, onde ser
Deus em Deus19
.
Segundo o pensamento de Dionsio Aeropagita ou o pseudo-Dionsio temos que:
1) os seres vieram de Deus e a Ele retornaro (esse conceito, de cunho neoplatnico, muito
forte no pensamento medieval); 2) o universo a manifestao de Deus, por isso, tudo que
existe bom; 3) o mal no-ser, no tem substncia nem realidade; 4) Deus no causa o mal,
mas o tolera, porque Ele rege as naturezas e as liberdades sem violent-las; 5) Deus
perfeitamente bom pune os culpados, pois estes o so por sua prpria vontade. Segundo E.
Gilson, a doutrina de Dionsio exercer um verdadeiro fascnio sobre o pensamento da Idade
Mdia20
.
Para Mximo, o Confessor, a manifestao de Deus fora de si implica nos seres que
no so Deus. Pois tudo est combinado de antemo na sua prescincia, na vontade e no
poder infinito de Deus. Assim, enquanto objetos da prescincia e da vontade de Deus, esses
seres se chamam Ideias21
.
17
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 72. 18
idem 19
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 80. 20
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 90. 21
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 91.
Na criao, segundo Dionsio, as criaturas aparecem numa espcie de hierarquia:
cada uma no lugar que sua perfeio prpria lhe atribui22
. A maioria dos seres produzidos
s podem ser o que so e como so. Ao passo que outros podem alterar sua posio
hierrquica na criao: um desses seres o homem. Assim, o homem, por sua livre vontade,
pode crescer ou decrescer nessa hierarquia, ou seja, de ser mais ou menos semelhante a Deus.
Atravs do uso do conhecimento e da vontade se usados bem ou mal o homem pode tomar
o caminho da virtude ou do vcio, da recompensa ou do castigo. Ento, segundo E. Gilson:
De fato, todo crescimento voluntrio de participao na perfeio divina
acompanhado por um desfrute de Deus que sua prpria recompensa; toda no-
participao voluntria acarreta, ao contrrio, uma excluso dessa fruio que
comporta seu prprio castigo23
.
O homem move-se em direo a Deus atravs do conhecimento, pois o movimento de
um esprito consiste em conhecer24
. Assim, o movimento para Deus consiste em esforar-se
para conhec-Lo e, consecutivamente, assimilar-se a Ele. Ento, ao conhecer a Deus, o
homem comea a am-Lo. O mover-se em direo a Deus na verdade o movimento inverso
queda. Conquanto, para Mximo, cada homem verdadeiramente uma parte de Deus25
,
mas com a queda separou-se da causa divina de que depende. Porm, o homem retornar s
essncias eternas reencontrando seu lugar em Deus atravs do xtase, ou seja, ser puxado
fora de si () pela atrao do amor divino. Em outras palavras, o amor por Deus cria
uma nsia em que o homem no descansar at no satisfazer por completa essa nsia
repousando em Deus.
Alm de pensadores cristos gregos, relevante o pensamento dos cristos latinos.
Afirma E. Gilson que visivelmente, a apologtica latina sofreu certa indigncia de cultura
filosfica, a que a tradio romana sozinha no ofereceria nenhum remdio26
. Por sua vez,
Plato influenciou diretamente aos latinos que conheciam a lngua grega, como, por exemplo,
Lactncio.
No pensamento de Atengoras e Tertuliano, notvel a influncia do Corpus
Hermeticum, texto atribudo ao lendrio deus egpcio Toth, e que apresenta de maneira
considervel ideias platnicas e neoplatnicas. O Corpus Hermeticum foi um texto muito
comentado pelos pensadores latinos da Idade Mdia. Eis uma passagem em que tal texto trata
22
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 92. 23
idem 24
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 94. 25
idem 26
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 122.
sobre a Providncia: E tal o governo do Todo, governo dependente da natureza do Um e
que penetra por toda parte por intermdio nico do intelecto27
.
Ambrsio, bispo de Milo aquele que converteu Agostinho de Hipona ao
cristianismo, muito influenciado por Flon de Alexandria e Orgenes afirma que o fogo do
inferno a prpria tristeza que o pecado gera na alma do culpado; o verme roedor o
remorso, que de fato ri a conscincia do pecador e atormenta-o continuamente28
.
O sculo IV respira o platonismo atravs das obras O sonho de Cipio, de Macrbio,
e uma traduo do Timeu (obra de Plato) feita por Calcdio. Macrbio pe hierarquicamente
o Bem como causa primeira. Em seguida vem a Inteligncia, nascida de Deus e que contm as
Ideias. Enquanto se volta para o Bem, a Inteligncia permanece perfeitamente semelhante
sua origem, mas ao se voltar para si mesma, produz a Alma, que contm as almas. Essas
almas caem de sua origem e ficam presas em corpos. No entanto, por mais longe que esteja de
sua origem, a alma no est separada dela. Por causa da inteligncia e do raciocnio, a alma
mantm um conhecimento inato do divino, alm do meio de se unir a ele, a saber, pelo
exerccio das virtudes. Estas, conforme o pensamento de Plotino, vo de sua prpria fonte
divina para a alma. Assim, segundo E. Gilson, o comentrio de Macrbio uma das
inmeras influncias que imporo esses temas platnicos ao pensamento da Idade Mdia29
.
Calcdio contribui de forma mais relevante ainda. Este pensador atribui Deus como
Bem Soberano, que est alm de toda natureza, mas que objeto de desejo universal.
Seguindo a hierarquia estabelecida por Calcdio, depois de Deus vem a Providncia, e dela
depende o Destino (fatum), que a lei divina que rege todos os seres, cada um segundo sua
natureza prpria. No entanto, o Destino respeita as naturezas e as vontades. As demais foras,
como o Acaso e os Anjos, esto subordinados Providncia, e esto a seu servio, como por
exemplo escrutando os atos dos homens e pesando seus mritos. Assim, a Providncia (como
um segundo deus) legislador tanto da vida eterna quanto da temporal. Por fim, as almas
agem de acordo com a lei.
Portanto, no esprito do neoplatonismo que nasce o pensamento de Agostinho de
Hipona30
, e consecutivamente se estrutura a filosofia crist. Por sua vez, essas ideias tambm
se fazem presentes no pensamento de Toms de Aquino (sendo ele um dos maiores expoentes
do pensamento medieval e crticos do pensamento agostiniano), conforme tratar-se- nos
captulos posteriores. Porm, antes disso, analisar-se- nomes que influenciaram o santo
27
CH X, 23. 28
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 127. 29
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 132. 30
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 142.
dominicano, acima de tudo Agostinho. Joo Damasceno, embora no tenha influenciado to
marcadamente como Agostinho, citado com uma certa frequncia por Toms de Aquino na
Suma Teolgica, tambm recebe destaque neste captulo a fim de acentuar-se o estudo da
Providncia e do livre-arbtrio. Bocio, por sua vez, no poderia faltar num estudo sobre a
Providncia abrangendo o incio da filosofia crist.
1.3 Joo Damasceno
Joo Damasceno o ltimo grande nome da patrstica grega conhecida da Idade
Mdia31
. A sua obra mais popular De Fide Orthodoxa na verdade uma parte de sua
principal obra: A fonte do conhecimento. O De Fide Orthodoxa j se apresenta sob um
estilo quase escolstico, se constituindo como uma coletnea cmoda de noes filosficas
teis ao telogo32
.
importante ressaltar que as ideias de Joo Damasceno referentes vontade, ao
voluntrio, ao livre-arbtrio, etc., so de distinta influncia aristotlica, mas que,
provavelmente, ele as tenha recolhido de outros pensadores cristos, como Gregrio de Nissa
ou Nemsio33
. Afirma E. Gilson que Joo Damasceno um dos intermedirios mais
importantes entre a cultura dos Padres Gregos e a cultura latina dos telogos ocidentais da
Idade Mdia34
.
no De Fide Orthodoxa que Joo Damasceno expe suas noes acerca da
Providncia e do livre-arbtrio. Assim, prossegue-se com um estudo acerca dessas noes.
1) O ser humano tem aes voluntrias e involuntrias.
Joo Damasceno explica que tanto o ato voluntrio quanto o involuntrio implicam em
aes definidas. A ao, por sua vez, implica em energia racional, e sempre ser seguida de
alguma consequncia, como, por exemplo, elogio, culpa, prazer, dor, etc. As aes podem ser
desejadas ou evitadas. Assim, o santo de Damasco afirma que o ato voluntrio (...)
31
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 97. 32
idem 33
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 99. 34
idem
seguramente seguido por elogio ou culpa, ao passo que o involuntrio faz merecidos pena e
perdo35
.
O ato involuntrio pode ocorrer por uma causa/fora exterior ou ento por
ignorncia36
. Ento o ato voluntrio o contrrio de ambos37
, ou seja, o ato que tem sua
causa inicial no agente, o qual tem cincia de sua ao. Assim, mesmo as aes realizadas em
momentos de raiva ou em momentos de vida ou morte so voluntrias.
2) O homem dotado de livre-arbtrio.
Segundo Joo Damasceno, algumas coisas esto em nosso poder, pois dentre os
eventos naturais, alguns esto em nossas mos e outros no. Por conseguinte, temos livre
vontade para agir perante aos primeiros. Afirma o santo que rigorosamente, todos os atos
mentais e deliberativos esto em nossas mos38
. Dessa forma, o nosso agir guiado pelas
escolhas que a mente faz. No entanto, mesmo que esteja em nossas mos a escolha do que
queremos fazer, a ao em si nem sempre poder se concretizar, pois poder ser impedida
pela Providncia. Com isso segue o corolrio:
O livre-arbtrio limitado pela Providncia Divina.
Cabe Providncia Divina ordenar a necessidade natureza, por exemplo, o
nascimento, o crescimento, etc. Mas, o santo de Damasco tambm relaciona com a
Providncia o acaso, que relaciona-se com o que inesperado. Ento, o acaso a reunio e a
concordncia de duas causas39
. Assim, exemplifica o santo que algum esconde um tesouro,
mas que somente ele sabe o lugar que escondeu. Uma outra pessoa, sem ligao alguma com
o ocorrido, ao cavar naquele exato lugar encontra o tesouro. Isso seria o acaso, pois
35
DFO II, 24. 36
Segundo Joo Damasceno, o agir na ignorncia nem sempre um ato involuntrio. Por exemplo, algum que comete um crime durante o estado de embriaguez age por ignorncia, mas no involuntariamente. Pois a embriaguez de sua responsabilidade, portanto ele prprio responsvel pela causa de sua ignorncia. 37
importante salientar aqui que o ato voluntrio no pode ser impelido por nenhuma fora exterior ao agente. 38
DFO II, 26. 39
DFO II, 25.
aconteceu algo muito diferente do que ambos tinham em vista 40
. Por outro lado, o acidente
o que acontece com as coisas inanimadas ou irracionais.
Seguindo esse raciocnio, Joo Damasceno afirma que s aes do homem no se
relacionam com a necessidade, nem com o acaso, menos ainda com o acidente. Portanto,
conclui o santo que o homem o autor de suas prprias obras41
. E assim, caso no houvesse
o livre-arbtrio, tambm no haveria a deliberao. Pois se o homem delibera, delibera com
vista a ao.
O santo de Damasco define Providncia como o cuidado que Deus tem sobre as
coisas existentes42
. Tambm poder-se-ia dizer que a Providncia um ajuste que Deus
realiza em Sua obra. preciso dizer aqui tambm que a Providncia irresistvel, e que,
sendo assim, tudo ocorre segundo a vontade de Deus, pois Ele bom e sbio. Com isso, Joo
Damasceno explica que o sofrimento de um homem virtuoso existe para que virtude possa vir
tona e assim haver o conhecimento da glria divina.
Mesmo abordando o tema da Predestinao, Joo Damasceno no chega a se referir
nela como um destino. Por sua vez, embora Deus conhea todos os acontecimentos de
antemo pela Prescincia, Ele no pr-determina nada, apenas aquilo que no est ao alcance
dos seres humanos.
1.4 Bocio
Bocio pode ser considerado um intermedirio entre a filosofia grega e o mundo
cristo43
. O pensador teve a inteno de traduzir e tentar mostrar a concordncia entre Plato
e Aristteles. Embora no tenha conseguido seu objetivo, legou um pensamento muito rico
para sua posterioridade, contribuindo de forma significativa com a filosofia crist.
1) A providncia se relaciona com outras questes.44
40
idem 41
idem 42
DFO II, 29. 43
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 161. 44
A consolao da Filosofia V, 1, 2.
De fato, pois a Providncia a tudo abrange. Mas o que interessa neste momento sua
relao com o livre-arbtrio.
2) O acaso no existe.45
Pois, afirma Bocio que: do nada no sai nada46
; em outras palavras, nada ocorre
sem uma causa, portanto no existe o acaso. Esse pensador explica essa afirmao com o
seguinte exemplo: supondo que algum cave na terra com o objetivo de cultiv-la, e encontre
uma caixa cheia de moedas de outro; em primeiro momento, isso parece ser um acaso. Bocio
ento afirma que:
Porm isso no procede do nada, mas tem as suas causas. Porque se aquele que
trabalha no campo no houvesse removido a terra e o outro no houvesse enterrado ali
sua fortuna, nada se haveria encontrado.47
Pode-se dizer que nenhum dos dois teve a inteno de que o tesouro fosse encontrado.
No entanto, houve uma srie de causas para que isso acontecesse. Esse ocorrido, poder-se-ia
dizer que um acaso. Mas ele um acaso sob a tica do ser humano. Mas houve uma srie de
causas concorrentes que desencadearam o ocorrido perante um determinado plano. Sendo
assim,
A concorrncia das causas e sua mtua concatenao procedem da ordem inflexvel
do universo, que tendo sua origem na Providncia, determina o lugar e o tempo de
cada coisa.48
3) Existe o livre-arbtrio, pois ele imprescindvel a um ser dotado de razo.49
Segundo Bocio, se um ser dotado de razo, isso implica que esse ser dotado de
liberdade para querer ou no querer. Dessa forma, o indivduo busca o apetecvel e se afasta
do rejeitvel.50
45
A consolao da Filosofia V, 1, 8. 46
A consolao da Filosofia V, 1, 9. 47
A consolao da Filosofia V, 1, 14 e 15. 48
A consolao da Filosofia V, 1, 19. 49
A consolao da Filosofia V, 2, 3 e 4. 50
No seria isso natural?
No obstante, esse pensador coloca uma implicao a essa afirmao:
Nem todos tm o mesmo grau de liberdade.51
Esse corolrio remete influncia aristotlica sobre Bocio, pois o pensador o explica
afirmando uma hierarquia dos seres. Dessa forma, o grau de liberdade se reduz gradualmente
das substncias divinas s mais terrenas, sendo que estas ltimas esto no maior grau de
escravido, pois entregadas ao vcio, ficam destitudas da propriedade da razo.52
A
Providncia v a tudo isso; e, segundo Bocio, predestinou a cada um merecidamente.
4) Se Deus a tudo prev se errar, necessariamente deve ocorrer tudo o que a Providncia
previu.53
Com esta afirmao, Bocio confirma a Prescincia Divina, embora use o termo
Providncia. Segundo ele, os eventos no podem seguir um caminho diferente do previsto.
5) Se o previsto pela Prescincia ocorre, ou se Ela prev aquilo que h de acontecer, existe
necessidade em ambos os casos.54
Bocio deixa claro que para admitir-se os conceitos de Prescincia e Providncia,
deve-se admitir sem questionamento a necessidade dos eventos. No entanto, segundo o
pensador, no possvel afirmar que Deus prev os eventos futuros porque eles simplesmente
ocorrero. Isso equivale a supor que os eventos passados so a causa da suprema
Providncia55
. Para reforar a ideia de necessidade, Bocio argumenta:
(...) se eu sei com certeza que uma coisa existe, necessrio que exista; e igualmente
se com certeza sei que h de existir, necessariamente um dia ou outro existir: ou seja,
infalvel a realizao de uma coisa prevista.56
51
A consolao da Filosofia V, 2, 6. 52
A consolao da Filosofia V, 2, 7 ao 9. 53
A consolao da Filosofia V, 3, 4. 54
A consolao da Filosofia V, 3, 8 e 9. 55
A consolao da Filosofia V, 3, 16. 56
A consolao da Filosofia V, 3, 17.
Essa questo estaria de fato eliminando o livre-arbtrio, pois confirma que tudo ocorre
necessariamente. Por outro lado, Bocio afirma mais adiante que: a prescincia no cria
necessidade nos eventos futuros e, portanto, no se ope ao livre-arbtrio57
. Dessa forma, no
havendo prescincia, os atos da vontade no seriam impedidos por nenhuma necessidade. Pois
admitindo-se uma necessidade total dos eventos, eliminar-se-ia castigo e recompensa, a
orao; e, principalmente, a liberdade, pois at nossos prprios vcios teriam por princpio o
autor de todo o bem58
.
Mas se a prescincia no implica necessidade nos eventos futuros, isso no implica
que eles necessariamente se realizaro. Mesmo assim, se faz necessria a realizao dos
eventos futuros: porque o sinal indica que j existe, porm ainda no produzido59
. Portanto,
para afirmar-se a Prescincia, deve-se afirmar a necessidade.60
Porm, afirma Bocio que:
6) H eventos (...) cuja realizao est livre de toda necessidade.61
Esta afirmao aparentemente implica uma contradio. Ora, pode haver prescincia
de eventos no necessrios? Bocio coloca aqui um problema: por um lado a Prescincia
implica a necessidade e, assim, a no necessidade exclui a Prescincia. Por outro lado,
somente h conhecimento quando se trata de algo certo. Porm o conhecimento no se d em
funo da essncia do objeto, mas sim em funo do sujeito cognoscente.6263
O ser humano na sua finitude pensa que se os eventos no se cumprirem de maneira
certa e necessria, no podem ser previstos64
. Assim, no haveria prescincia. Portanto, para
que haja prescincia, tudo tem de suceder necessariamente. Mas, afirma Bocio que:
Elevemos, se nos possvel, nosso esprito aos auges daquela inteligncia suprema: ali
ver a razo que em si mesma no se pode perceber, e compreender como mesmo os
acontecimentos que no tm certa a sua realizao podem ser objeto da Divina
Prescincia, verdadeira e precisa, no sendo ela uma conjectura mas sim cincia
simplssima e absoluta.65
57
A consolao da Filosofia V, 4, 4. 58
A consolao da Filosofia V, 3, 32. 59
A consolao da Filosofia V, 4, 11. 60
A consolao da Filosofia V, 4, 12. 61
A consolao da Filosofia V, 4, 18. 62
A consolao da Filosofia V, 4, 25. 63
Desse ponto em diante, Bocio elabora um extenso argumento gnosiolgico para sustentar tal resposta. No se explicitar nesta dissertao esse argumento. 64
A consolao da Filosofia V, 5, 9. 65
A consolao da Filosofia V, 5, 12.
Ou seja, o ser humano, devido a sua finitude, no consegue compreender a Prescincia
Divina. Dessa forma, segundo o raciocnio do pensador, precisa-se conhecer a natureza divina
para ento ser possvel conhecer sua cincia. Para tanto, Bocio descreve trs atributos
divinos:
i) Deus eterno.
ii) O homem limitado pelo tempo, pois j viveu o passado e desconhece seu futuro.
Assim, s vive seu presente.
iii) Deus, em seu presente, rene a infinidade dos momentos do tempo que flui66
.
Desses trs atributos decorre que:
Assim, pois, como o juzo abarca o objeto conforme as leis da natureza cognoscente, e
Deus goza de um eterno presente, sua cincia, elevando-se acima de todo movimento
do tempo, conserva a simplicidade do estado presente; e abarcando o curso infinito do
passado e do futuro, considera todos os acontecimentos em seu conhecimento
simplssimo como se sucederam no presente. Pelo qual, no se pode pensar que esta
prescincia universal seja como a prescincia do futuro de que falam os mortais, sendo
que verdadeira e certssima a cincia de um presente sempre atual.67
7) Deus contempla as coisas como um dia elas sero no tempo.
O fato de Deus contemplar as coisas no as transforma, pois esta Prescincia Divina
no transforma nem a natureza nem as propriedades das coisas: estando presentes diante de
Deus, Ele as contempla como um dia sero no tempo68
. Bocio afirma ainda que:
Donde resulta que no conjectura seno conhecimento certo e verdadeiro que Deus
contenha um acontecimento que se faa no tempo, sabendo alm do mais que no
ocorre em virtude de necessidade alguma.69
Um evento previsto por Deus no pode no acontecer. No haveria necessidade nisso?
Sim, exatamente. No entanto, Bocio responde que:
Deves advertir, no obstante, que um mesmo evento futuro, referido cincia divina,
aparecer como necessrio, porm considerado em sua prpria natureza, ser
independente e livre.70
66
A consolao da Filosofia V, 6, 8. 67
A consolao da Filosofia V, 6, 15 e 16. 68
A consolao da Filosofia V, 6, 21. 69
A consolao da Filosofia V, 6, 24. 70
A consolao da Filosofia V, 6, 26.
8) H dois tipos de necessidade: absoluta e condicional.
A necessidade absoluta exemplifica-se com o fato de todos os homens serem mortais;
a condicional, por sua vez, Bocio exemplifica com o seguinte evento: um homem andando
sabe com certeza que est andando. Pois de um evento conhecido no se pode no sab-lo,
mas isto no implica necessidade absoluta de que o evento exista71
. Disso decorre que:
A necessidade no vem da natureza do evento, mas sim de uma condio ou
circunstncia que a ele se junta.72
Porque, segundo Bocio, nada obriga algum a caminhar quando isso feito de forma
voluntria. Mas, enquanto est caminhando, se verifica necessariamente o evento do
caminhar. A partir desse raciocnio, segue a prxima afirmao.
9) Se a Providncia v um evento no presente, necessariamente tal evento tem de ocorrer,
mesmo que sua natureza no implique nenhuma necessidade.73
Com esta afirmao, Bocio se encaminha para a resoluo do problema propondo
uma prescincia mediata, ou seja, atravs de um conhecimento contingente do futuro. Assim,
Deus v simultaneamente presentes os futuros livres; os quais, por conseguinte, com
relao viso divina so necessrios, por ser conhecidos pela cincia de Deus; porm
considerados em si mesmos, no perdem o carter de livres, prprio de sua natureza.74
E com isso o pensador encontra uma brecha para o livre-arbtrio perante a necessidade,
conforme segue a prxima afirmao.
10) Alguns futuros previstos por Deus procedem do livre-arbtrio.
71
A consolao da Filosofia V, 6, 28. 72
A consolao da Filosofia V, 6, 29. 73
A consolao da Filosofia V, 6, 30. 74
A consolao da Filosofia V, 6, 31.
Pois todos os futuros previstos por Deus so verificveis, mas isto no lhes tira o
carter de livres, pois antes de produzirem-se poderiam no terem-se produzidos75
.
11) Os eventos livres, referidos ao conhecimento divino, so necessrios; porm,
considerados em si mesmos, esto isentos de toda necessidade.76
Afirma Bocio que alguns eventos ocorrem por necessidade, enquanto que outros
ocorrem pela livre faculdade do agente. Para argumentar essa afirmao, o pensador cita uma
ocasio em que um homem caminha ao brilhar do sol. O evento do astro necessrio,
enquanto que o do homem voluntrio, pois no estava sujeito necessidade.
12) impossvel esquivar-se da Divina Prescincia.
Pois (admitindo-se que o ser humano seja livre) mesmo que algum mude de
propsito, Deus conhece como o indivduo far uso da sua liberdade. Dessa forma, a
Prescincia prev e abarca todas a mudanas possveis, sejam ou no voluntrias77
.
Mas isso no entra na questo de os eventos serem causa da Prescincia (conforme
dito acima)? Bocio responde a isso afirmando que:
E esta universal atualidade que tudo abarca e percebe se d em Deus no em virtude
do desenvolvimento dos eventos futuros, mas sim em virtude da suma simplicidade,
prpria de sua natureza.78
Por fim, Bocio conclui seu raciocnio afirmando que a Prescincia Divina
(...) to poderosa abrangendo tudo num conhecimento presente que por si mesma
impe as coisas sua maneira, sem que de nada dependam os eventos futuros.79
1.5 Agostinho de Hipona
75
A consolao da Filosofia V, 6, 32. 76
A consolao da Filosofia V, 6, 36. 77
A consolao da Filosofia V, 6, 40. 78
A consolao da Filosofia V, 6, 41. 79
A consolao da Filosofia V, 6, 43.
Agostinho o autor mais lido na Idade Mdia80
e um dos telogos mais influentes
da cristandade. As bases de seu pensamento provm do patrimnio neoplatnico
(principalmente de Plotino) e toda a sua tcnica filosfica provir dele81
. Para verificar mais
prximo isso, nota-se tal influncia quando o bispo de Hipona afirma que o homem uma
alma que se serve de um corpo82
. Consecutivamente, para Agostinho a alma est
hierarquicamente acima do corpo. Por isso, o corpo no influencia a alma, mas o que ocorre
justamente o contrrio, sendo que as sensaes nada mais so do que aes da alma83
.
Segundo Agostinho, o corpo no a priso da alma, mas tornou-se devido ao
pecado original. Sendo assim, o objetivo da vida moral se libertar dessa priso. Os atos
morais, por sua vez, so livres, pois dependem de um juzo da razo. Com isso, os erros
morais ocorrem por causa do mau uso do livre-arbtrio feito pelo homem. Conquanto, se por
um lado o livre-arbtrio pode no parecer um bem por permitir o pecado, por outro lado um
bem por possibilitar que o homem chegue beatitude. Dessa forma, o homem apenas ser
feliz (ou seja, alcanar a beatitude) se for livre84
.
No entanto, ao passo que o corpo domina a alma, surge o pecado a satisfao do
homem na matria. Assim, a alma se deixa dominar pela matria at ao ponto de no crer em
mais nada alm de que a matria a nica realidade; e, consequentemente, que ela mesma a
alma um corpo. Agostinho ento, aps anos de reflexo e disputas com pelagianos,
conclui que a alma no pode salvar-se com suas prprias foras: surge a necessidade da graa.
A graa, por sua vez, no tira o livre-arbtrio do homem, mas coopera com ele.
No resta dvida de que Agostinho influenciou o pensamento de Toms de Aquino,
sendo um dos seus pilares. Para compreender-se um pouco mais sobre essa influncia, segue o
pensamento referente ao foco desse trabalho que Agostinho apresenta primeiramente na obra
O livre arbtrio e, posteriormente, na obra A predestinao dos santos.
1) O homem possui livre arbtrio.
80
PONFERRADA, 1988, p. 10. 81
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 144. 82
GILSON, A filosofia na Idade Mdia, p. 146. 83
idem 84
Agostinho supera a ideia de que a beatitude alcanada pelo livre-arbtrio na obra A predestinao dos santos, conforme ser abordada adiante.
Pois, segundo Agostinho, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como
castigos aos maus85
. Se o homem no possusse livre arbtrio, seria injusto da parte de Deus
realizar tais atos, mas Deus justo (o que uma afirmao trivial). Assim, se o homem no
possusse livre-arbtrio, seria como o animal, um ser unicamente guiado por seus instintos e,
por isso, no pode ser julgado. Portanto, para que o homem possa ser julgado, necessrio
que ele seja dotado do livre-arbtrio. Mais adiante na obra O livre-arbtrio, Agostinho
discorre que o livre-arbtrio um bem, e todos os bens, sejam grandes ou pequenos, provm
de Deus86
.
2) O homem autor de suas aes.
Agostinho, quando trata sobre o mal que o homem faz, afirma que Deus no seu
autor, e como o mal no pode ser um poder independente (pois isso seria uma afirmao
maniquia), conclui que o homem mau seja a fonte de sua prpria iniquidade87
. Assim,
conforme a afirmao 1), se o homem dotado de livre arbtrio, ento ele o autor de suas
aes.
3) a Divina Providncia que dirige o Universo88
.
Pois, segundo Agostinho: todas as coisas so governadas por uma Providncia89
. E
isso se explica com as seguintes palavras deste pensador:
Ora, no mundo dos seres corpreos, desde a harmonia das constelaes siderais at ao
nmero de nossos cabelos, encontra-se a bondade e a perfeio de todas as coisas
ordenadas de modo to gradual e maravilhoso que seria grande ignorncia perguntar:
O que isto? Para que serve aquilo? Porque cada ser foi criado dentro de sua ordem
correspondente90
.
85
LA I, 1, 1. 86
LA II, 18,47. 87
EVANS, p. 170. 88
LA I, 1, 1. 89
LA II, 17, 45. 90
LA III 5, 16.
Alm do mais, afirma Agostinho que homem algum foi criado inutilmente, visto que
nenhuma folha de rvore tenha sido criada sem motivo91
. Sendo que todos os seres (da
criao) so mutveis e subsistem por causa de uma Perfeio imutvel, e, sem ela a
totalidade da criao no existiria. Conquanto, essa Perfeio imutvel a prpria
Providncia. Alm do mais, o santo de Hipona atribui ao Criador tudo o que acontece
necessariamente s criaturas92
. Segue como um corolrio que:
O mal no se distingue da Providncia.
Devido ao seu livre-arbtrio, o homem pode praticar o mal. Agostinho assim o afirma
na sua obra O livre-arbtrio. Porm, alm de praticar o mal, o homem ainda pode sofrer o mal.
Ento, quando nos referimos ao mal que um indivduo sofre, o santo de Hipona nos diz que
essa a ao da Providncia, pois esse segundo tipo de mal de autoria divina.
E o mal que o homem comete, distingue-se da Providncia? Foi visto anteriormente
que, segundo Agostinho, Deus dotou o ser humano com o livre-arbtrio93
. Assim, mesmo que
o homem use mal sua liberdade, a livre vontade deve ser considerada um bem94
. Ento, como
as aes do homem ocorrem devido ao livre-arbtrio, no possvel afirmar que o mal que o
homem comete distingue-se da Providncia95
.
4) A paixo o que domina as ms aes.
Pois, segundo Agostinho, quando o homem procede mal assim o faz impelido pela
paixo. O santo argumenta essa afirmao exemplificando o adultrio, sendo que o adultrio
91
LA III, 23, 66. 92
LA III, 5, 12. 93
LA II, 18,47. 94
Segundo Agostinho, os bens esto divididos em grandes, mdios e pequenos. Os grandes sempre so bem usados, ao passo que os outros podem ser tanto bem quanto mal usados. O livre-arbtrio no faz parte dos grandes bens, mas um bem mdio, por isso pode ter um mau uso (LA II, 19, 50). 95
Mas, segundo Agostinho, Deus no o autor do pecado. O fato de o homem ter livre vontade para pecar, no coloca a causa do pecado em Deus. O santo de Hipona confessa no saber explicar donde provm o desejo do homem de se afastar de Deus (ou seja, de pecar), mesmo afirmando que no pode existir realidade alguma que no venha de Deus (LA II, 20, 54). Talvez isso ele tenha afirmado para contrariar a doutrina maniquia das duas almas, sendo que segundo os maniqueus o homem possui uma alma boa que provm de Deus e da mesma substncia dEle, e ao mesmo tempo possui uma alma m que vem do demnio e que impele o homem concupiscncia (ROBERTO, COSTA, p. 102). Por outro lado, a doutrina maniquia no equivale explicao judaica, segundo a qual a alma provm de Deus, e ao entrar no ser humano se divide em duas: a) Sitra achra (o outro lado, que implica no egosmo, e b) Kelipot, o lado divino. Nesse contexto, Sitra Achra no tem origem demonaca, pelo contrrio, provm de Deus, e se faz necessria na Providncia.
por si s no representa um mal, mas o mal est na paixo envolvida no adultrio. Por isso,
no necessrio o ato para que haja o mal, mas apenas a inteno j o comete. A essa paixo,
Agostinho denomina concupiscncia.
No entanto, como ficaria o caso de um homicdio cometido por medo? Agostinho
responde a essa questo afirmando que correto que um homem deseje uma vida sem temor,
mas com a seguinte diferena:
Os bons o desejam renunciando ao amor daquelas coisas que no se podem possuir
sem perigo de perd-las. Os maus, ao contrrio, desejam uma vida sem temor, para
gozar plena e seguramente de tais coisas, e para isso esforam-se de qualquer modo
para afastar todos os obstculos que o impeam96
.
Portanto, a paixo, ou seja, a concupiscncia, um desejo culpvel.
5) O homem dotado de uma razo, a qual serve mente.
Segundo Agostinho, a razo o que distingue o homem dos animais. Sendo que,
embora os animais possam ser mais robustos fisicamente, o homem que os domina.
Portanto, o homem possui uma razo que, segundo Agostinho, reside na alma. No entanto,
alm dessa razo, Agostinho afirma existir uma mente, a qual ele supe ser distinta da razo e
que servida pela razo, conforme a passagem de sua obra O livre-arbtrio:
Ora, essa superioridade no a descobrimos nos corpos. Assim, como nos pareceu,
reside na alma. E no encontramos para ela outro nome mais adequado do que o de
razo. Ainda que a seguir ns nos lembramos de que ela tambm pode ser denominada
mente ou esprito. Mas se verdade que a mente uma coisa e a razo outra, em todo
caso certo que somente a mente pode se servir da razo. Donde a consequncia:
aquele que dotado de razo no pode estar privado da mente97
.
6) Deus no impele a mente humana a escravizar-se pelas paixes.
Pois segundo Agostinho, Deus, como um Ser Supremo, est acima da sabedoria da
mente humana e, portanto, no poderia de modo algum ser um Ser injusto98
. Afirma ainda o
96
LA I, 4, 10. 97
LA I, 9, 19. 98
LA I, 11a, 21b.
pensador de Hipona que, mesmo que Deus tivesse esse poder, no o faria. Portanto, Deus no
o responsvel pela submisso do homem s paixes.
7) O homem se submete s paixes porque dotado do livre-arbtrio.
Se Deus no a causa da inclinao que o homem tem s paixes, ento no h um
condicionamento e, portanto, essa inclinao s pode ser consequncia do livre-arbtrio que
possui o ser humano. Assim, se por um lado tudo o que igual ou superior mente virtuosa
controla as paixes e no se submete a elas, por outro lado tudo que lhe inferior pode estar
sujeito s paixes.
Agostinho define como sendo duas as fontes do pecado: a) o pensamento espontneo,
e b) a persuaso de outrem. Porm, em ambos os casos, o pecado voluntrio. Pois uma m
sugesto no pode ser consentida seno por vontade prpria; tal como um pensamento
espontneo no leva ningum ao pecado99
. Assim tudo se realiza de tal forma que sempre fica
intacta a vontade livre do pecador100. E conclui Agostinho que portanto, no h nenhuma
outra realidade que torne a mente cmplice da paixo a no ser a prpria vontade e o livre-
arbtrio101
.
Disso segue o seguinte corolrio:
O pecado existe em funo da livre vontade.
Se o pecado fosse inevitvel - em outras palavras, natural o dever do homem seria
pecar, e assim o pecado no seria punvel. No entanto, afirma Agostinho que ningum peca
necessariamente, nem ao menos obrigado a pecar por alguma natureza alheia102
, mas quem
peca o faz por vontade prpria. Na verdade, o pecado existe porque a vontade desregrada, e
esse desregramento, segundo Agostinho, condiz principalmente cobia, ou seja: que o
indivduo deseje mais do que lhe suficiente. Portanto, o pecado (que implica o mal) est
enraizado na e s existe por causa da vontade. Pois que, se a vontade motivada por algo
exterior a ela, ento no existiria pecado. Concluindo, o pecado, para Agostinho, quando
99
LA III, 10, 29. 100
LA III, 6, 18a. 101
LA I, 11a, 21c. 102
LA III, 16, 46.
pode-se escolher quanto a uma deciso para algo que sabe-se ser errado (o qual poderia ser
evitado), e decide-se a favor de realizar tal feito.
8) Todo homem deseja a felicidade, mas nem todos a obtm.
Segundo Agostinho, voluntariamente que o ser humano merea a felicidade, ou seja,
atravs da boa vontade. Por outro lado, tambm voluntariamente que os homens chegam a
uma vida de infortnios, a saber, atravs da concupiscncia (que o lado oposto da boa
vontade)103
. Segundo o santo de Hipona, a felicidade, que vem pela boa vontade, surge porque
os justos a querem com retitude, ao passo que os maus no a querem. Conclui Agostinho que
o merecimento est na vontade104
.
No que exista algum que no deseje a felicidade, mas isto depende da vontade. A
concupiscncia leva infelicidade voluntria, sendo que atravs dessa vontade (contrria
boa vontade), leva o homem a viver sem retido, levando-o, ento, desventura.
Conclui Agostinho que
prprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraar. E nada, a no ser a
vontade, poder destronar a alma das alturas de onde domina, e afast-la do caminho
reto105
.
9) No existe verdadeira liberdade a no ser entre pessoas felizes, as quais seguem a lei
eterna106
.
Pois livre, segundo Agostinho, quem no tem ningum como senhor. O santo de
Hipona aqui se refere aos bens materiais como os senhores, e no s coisas, mas as honras e
os louvores. O homem direcionado pela concupiscncia apega-se s coisas mutveis e
incertas, escravizando-se a elas, e com isso distancia-se da liberdade. Ao passo que o ser
humano de boa vontade, o justo, no se apega ao mundo, e por isso livre dos bens materiais.
Ento por que existe a concupiscncia? Conforme tratado anteriormente, a inclinao que o
103
LA I, 14, 30. 104
idem 105
LA I, 16, 34. 106
LA I, 15, 32.
homem tem s coisas mutveis no influenciada por Deus. Assim, segundo Agostinho, no
algo natural como o movimento da gravidade, mas voluntrio107
.
10) A prescincia de Deus no tira o livre-arbtrio do homem.
O fato de Deus prever as vontades futuras dos seres humanos no lhes interfere no
livre-arbtrio. Afirma Agostinho que quando o indivduo alcana a felicidade, no o faz contra
sua vontade, mas querendo livremente. Assim, prevendo Deus a felicidade do homem, nada
ocorrer seno quilo que Ele previu108
. O mesmo acontece vontade culpvel. Com isso o
santo de Hipona nega qualquer influncia divina sobre o nosso querer.
11) O mal (o pecado) necessrio.
Ao insensato, ou mesmo a algum de restrito conhecimento teolgico, essa afirmao
pode causar espanto. Como possvel um Ser de infinita bondade permitir (ou querer) que o
mal ocorra Sua criao? No entanto, como poderia o bem ser reconhecido sem a ausncia do
mal? sob essa tica que Agostinho diz que at os nossos prprios pecados so necessrios
perfeio do universo criado por Deus109
. Pois atravs do pecado as almas tornam-se
infelizes, e dessa forma abre-se uma brecha para que a Providncia possa atuar. Assim,
castigo e recompensa atuam harmoniosamente na criao, de forma que:
O pecado voluntrio leva a um estado acidental de desordem vergonhosa, ao qual se
segue o estado penal, precisamente para o colocar no lugar que lhe corresponde, para
no haver uma desordem dentro da ordem universal. Fora o castigo a harmonizar-se
o pecado com a ordem do universo. Assim, a pena do pecado vem a reparar a
ignomnia do mesmo110
.
E quando o mal ocorre aos bons? Tome-se como exemplo um homem justo que sofre
um acidente que o machuque ou, pior ainda, que o mutile. Agostinho diz que isso no deve
ser considerado como um castigo, mas como prova de fora e pacincia111
. Pois o acidente
107
LA III, 1, 2. 108
LA III, 3, 7. 109
LA III, 9, 26. 110
idem 111
LA III, 9, 28.
ir danificar o corpo (perecvel) dessa pessoa, mas no sua alma. Assim, o acidente exaltar
ainda mais sua virtuosidade.
12) Toda criatura justa ou pecadora contribui para a ordem universal112
.
Pois, segundo Agostinho, Deus o criador de todas as naturezas113
, e nessa
afirmao o santo de Hipona inclui tanto os perseverantes na justia e na virtude quanto os
pecadores, ambos com suas funes na obra divina. Embora esteja se referindo aos anjos, aqui
Agostinho transmite uma ideia de eleio (consequentemente tambm de predestinao), pois
considera que os anjos, sendo justos, ho de perseverar na virtude e na justia. Ento, isto nos
remete ao seguinte corolrio:
Deus criou seres corretos e perseverantes, e, por outro lado, tambm criou os
tendentes ao pecado.
Ao tratar desse assunto, Agostinho no utiliza os termos eleio e predestinao, mas
essa distino entre as criaturas perseverantes e as suscetveis ao pecado remete distino
que mais tarde Toms de Aquino denominar eleitos e reprovados114
. Note-se que,
segundo o santo de Hipona, os homens (tendentes ao pecado) no foram criados para pecar,
mas para que acrescentassem algo beleza do universo, quer consentindo, quer no ao
pecado115
.
E por que Deus no criou tambm os anjos suscetveis ao pecado? Agostinho explica
que poderia ocorrer que todos aderissem ao pecado e isso causaria um desequilbrio na
harmonia da criao.
13) Toda criao, seja corruptvel ou incorruptvel, boa.
112
Subttulo utilizado pelo tradutor (p. 186). 113
LA III, 11, 32. 114
No entanto, estes conceitos tm definies diferentes entre Toms e Agostinho. Como ser tratado no prximo captulo, para Toms de Aquino os (homens) predestinados, devido sua eleio, no esto sujeitos ao pecado, ao passo que, para Agostinho, segundo exposto na obra O livre-arbtrio, todo ser humano pode pecar. 115
idem
Pois tudo, seja corruptvel ou incorruptvel, provm de Deus. Ora, Deus
incomensurvel bondade, portanto tudo o que provm dEle bom. Quanto ao que
incorruptvel, no h o que se discutir que seja bom. Talvez haja dvidas se o corruptvel
possa ser bom. Para responder a essa questo, Agostinho afirma que a natureza corruptvel
sofre privao do bem. Em outras palavras, o mal no nada mais do que ausncia do bem.
Assim, ironicamente, o santo de Hipona diz que a natureza corruptvel pode ser corrompida
at um certo estado em que se torne incorruptvel, e a partir da no poder mais se
corromper116
, tornando assim incorruptvel e, portanto, boa. Isso se ilustra nas seguintes
palavras de Agostinho: Pois eis algo totalmente absurdo: uma natureza tornar-se
incorruptvel por sua prpria corrupo117
.
Seguem os corolrios:
A natureza corrompida pelo vcio.
Agostinho define o vcio como sendo o que contrrio natureza. Assim, nas palavras
do santo de Hipona, todo vcio, pelo fato mesmo de ser vcio, contrrio natureza, pois
se no prejudicar a natureza no ser tampouco vcio118
. Para Agostinho, a natureza digna
de louvores, e o vcio, como sendo contrrio natureza, deve ser censurado. O vcio, ento,
o que diminui a perfeio da natureza. Quanto maior o vcio, maior ser a corrupo da
natureza. Em outras palavras, o vcio o distanciamento de Deus, ou seja, o pecado.
O vcio voluntrio.
Como uma natureza no pode ser corrompida pelo vcio de outra natureza, resta que sua
corrupo provm do seu prprio vcio. Segundo Agostinho, uma natureza s pode ser
censurada por causa da corrupo de seu prprio vcio. Ento, dito que o vcio deve ser
censurado, e se ele censurado isso implica que voluntrio. Isso se comprova nas seguintes
palavras do santo de Hipona: Esse defeito (do desvio da ideia de Deus), entretanto, no seria
censurvel se no fosse voluntrio119
.
A partir daqui decorre o que Agostinho expe na obra A predestinao dos santos.
116
LA III, 13, 36b. 117
idem 118
LA III, 13, 38. 119
LA III, 15, 42.
14) A graa no concedida pela prescincia dos mritos, mas pela eleio.
Em obras anteriores, Agostinho defendera que a concesso da graa se fazia pela
prescincia dos mritos. Porm, em A predestinao dos santos, o santo de Hipona reconhece
o seu equvoco e corrige seu pensamento afirmando a doutrina da eleio, pois a doutrina da
prescincia dos mritos nada mais do que uma doutrina pelagiana, segundo a qual o homem
pode salvar-se por si prprio. Para tanto, afirma: Esta eleio , pois, obra da graa, e no
dos prprios mritos120
.
Agostinho ento conclui que a f consequncia da eleio, e no que a eleio ocorra
porque antes houve a f. Ele justifica esse conceito com a seguinte passagem bblica: No
fostes vs que me escolhestes, mas eu vos escolhi121
. Dessa forma, os eleitos so salvos
gratuitamente, ao passo que os no-eleitos, ou seja, os reprovados, permanecem no
endurecimento da cegueira.
E como ocorre a eleio? Ora, segue que:
Os predestinados foram eleitos antes da criao do mundo.
Para tanto, essa sentena se confirma na carta paulina: como tambm nos elegeu nele
antes da fundao do mundo122
. Embora Deus pudesse prever o desenvolvimento de Sua
criao atravs da prescincia, os predestinados, como dito acima, no foram eleitos por seus
futuros mritos, mas antes por pura eleio, de maneira que Agostinho com isso queria
combater a doutrina pelagiana, a qual afirma a salvao do ser humano por suas prprias
foras.
A predestinao uma preparao para receber a graa.
De acordo com o ponto de vista de Agostinho, ser predestinado no implica em nascer
j com a graa, mas a predestinao um agir bem que prepara o ser humana para receber a
graa. Ao passo que a graa efeito da mesma predestinao123
.
15) A f dom de Deus.
120
A predestinao dos santos VI, 8. 121
Jo 15:16 122
Ef 1:4. 123
A predestinao dos santos X, 19.
Agostinho contesta a afirmao de que a graa apenas melhora a f. Para ele, a f, por
si mesma, provm de Deus, e em nada parte do ser humano. Dessa forma, ningum consegue
comear ou aperfeioar a f por si prprio, mas isso unicamente provm de Deus. No entanto,
mesmo que Agostinho no diga explicitamente, segue o corolrio que:
Deus pode conceder a f como ato de misericrdia devido a algum mrito
precedente.
Verifica-se essa ideia nas seguintes palavras de Agostinho:
Ele [Deus] faz o bem quele de quem tem misericrdia e abandona no mal quele a
quem resiste. Porm, tanto aquela misericrdia se atribui ao mrito precedente da f
como este endurecimento precedente iniquidade. O qual indubitavelmente
verdadeiro124.
Ver-se- nos captulos posteriores que para Toms de Aquino essa concesso se aplica
aos no-eleitos.
16) As vontades humanas so predispostas pela graa divina.
Afirma Agostinho que a vontade humana preparada pelo Senhor nos eleitos125
;
sendo assim, a esfera da f reside na vontade. Disso segue o corolrio:
Deus dispe a vontade, mas o consentimento do homem.
Para Agostinho, Deus quem opera todas as coisas em todos. Isso no quer dizer que
as nossas aes so realizadas totalmente por Deus. Em outras palavras, o santo de Hipona
explica que o acreditar e o querer provm de Deus, porm so consentidos pelo livre-arbtrio.
17) O mrito dos eleitos a f, e no as obras.
124
A predestinao dos santos III, 7. 125
A predestinao dos santos V, 10.
Segundo Agostinho, isso ocorre para que o dom de Deus possa efetuar o bem; assim
como para os reprovados, a incredulidade e a impiedade so o princpio do merecimento do
castigo, visto que estes so os que fazem o mal126
. Disso decorre que:
Ningum por esforo prprio realiza uma boa obra.
Nos captulos posteriores ver-se- que Toms de Aquino divide as obras em universais
e particulares. As obras particulares so realizveis por qualquer ser humano, ao passo que as
universais somente se realizaro com o auxlio divino, ou seja, por meio da graa.
A f antecede as obras.
Pois, segundo Agostinho, a f o que justifica o homem, e no as obras; sendo que a f
concedida anteriormente e atravs dela o homem alcana os demais dons. O santo de Hipona
justifica essa afirmao citando a seguinte passagem bblica: Pergutaram-lhe, pois: Que
havemos de fazer para praticarmos as obras de Deus? Jesus lhes respondeu: A obra de Deus
esta: Que creiais naquele que ele enviou127
.
18) Ningum pode libertar-se seno pela justia divina.
Agostinho bate na tecla de que a mortificao da carne dom divino e no algo que o
ser humano realiza por si prprio tal como afirma a doutrina pelagiana. Isso se comprova
pelas palavras paulinas: se pelo Esprito mortificardes as obras da carne, vivereis128
.
Verifica-se assim que o libertar-se, ou seja, vencer a carne, que simboliza o pecado, ocorre
pela vontade divina.
19) A graa irresistvel.
126
A predestinao dos santos III, 7. 127
Jo 6:28 e 29. 128
Rom 8:13.
Pois afirma Agostinho que no h corao, por mais duro que seja, que a recuse129
,
haja visto que a graa amolece o corao endurecido. Para confirmar essa afirmao, o santo
de Hipona cita a seguinte passagem bblica: todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a
mim130
. Dessa forma, para Agostinho, no existe a possibilidade de que o indivduo
abenoado pela graa a recuse. Toms de Aquino, por sua vez, conforme ser tratado mais
adiante, dir que os no-eleitos que recebem a graa podem perd-la.
20) O mal tambm est sob o poderio de Deus.
Conforme afirmado no corolrio da sentena 3), o mal tambm pertence Providncia
Divina. Em A predestinao dos santos Agostinho afirma que o pecar dos maus no est em
sua potencialidade, mas em potncia de Deus, pois Ele divide as trevas e as ordena segundo
seus fins, para que mesmo que elas ajam contra a Vontade de Deus, se faa cumprir a Vontade
de Deus131
.
1.6 Toms de Aquino
Estruturou-se nesse captulo um corpo de ideias e conceitos que introduzem o
ambiente teolgico e filosfico em que Toms de Aquino conviveu. Levou-se em
considerao o pensamento pago de Aristteles, o qual no apresenta os conceitos de
Providncia e graa, mas que apresenta o homem como indivduo que escolhe livremente. Por
outro lado, Joo Damasceno demonstra-se como um cristo de influncias aristotlicas, sendo
ele um dos principais representantes da Patrstica grega. O santo de Damasco, por sua vez, j
introduz a ideia de Providncia crist. Em Agostinho, a doutrina crist atinge seu auge.
Destacam-se no seu pensamento os conceitos de Providncia e, principalmente, de graa e
predestinao, alm, claro, de vontade.
Visto essas questes, est preparado o campo para adentrar-se no pensamento tomista.
Conforme abordado at aqui, muitos pensadores cristos, por influncia platnica, fizeram
129
A predestinao dos santos VIII, 13. 130
Jo 6:45. 131
A predestinao dos santos XVI, 33.
distino dualista, sendo o mundo fsico, e consecutivamente o corpo, um aprisionamento
para a alma. Toms de Aquino, por sua vez, enxerga com bons olhos a natureza corporal.
Primeiramente, deve ser dito que o Aquinate tambm distingue alma de corpo, sendo
aquela incorruptvel, enquanto este, corruptvel. Por isso, a alma no afetada pelo corpo.
Pelo contrrio, se pudesse existir uma causa de corrupo para a alma, teria que ser buscada
nela mesma132
. Para Toms de Aquino, a alma (a qual impossvel de encontr-la) uma
forma, e portanto um ato de existir; ao passo que a matria uma potncia, e portanto uma
possibilidade de existncia. No entanto, um corpo no existe separado de sua forma.
A alma composta de potncia e ato, sendo assim diferente de Deus, que ato puro.
Por outro lado, a alma humana, enquanto alma em si, segue sendo uma forma intelectual
pura da mesma espcie que o anjo133
. Ento a distino entre alma humana e alma anglica
que, sendo a alma unvel a um corpo, segue que a alma humana encontra-se acidentalmente
unida a um corpo, enquanto que a alma anglica uma inteligncia pura.
Posto que Toms de Aquino distingue corpo de alma, tratar-se- agora da natureza
corporal. Em primeiro lugar, preciso afirmar que, para o Aquinate,
O corpo no deve ser concebido como mau em si (...). Porque se a matria fosse m
em si, no seria nada; se algo, porque na prpria medida em que , no m.
Como tudo o que cai dentro do domnio da criatura, a matria boa e foi criada por
Deus.134
Alm do mais, a matria no somente um bem em si, mas tambm uma fonte de bens
para as demais formas que podem unir-se a ela. Veja-se bem que, Toms de Aquino, nesse
aspecto, distancia-se bastante dos seus antecessores plantonistas, que enxergam com maus
olhos a matria. Dessa forma, o corpo no uma priso, mas um servidor, ou um instrumento,
disposto por Deus para servir a alma, de maneira que, com isso, a alma humana alcance sua
completa perfeio135
.
1) O menos perfeito se ordena ao mais perfeito, e este ao fim.
132
Gilson, El Tomismo, p. 267. 133
Gilson, El Tomismo, p. 268. 134
idem 135
Gilson, El Tomismo, p. 269.
Num ser corporal, cada rgo existe em razo de sua funo, como o olho para a vista.
Consecutivamente, cada rgo inferior existe em razo de algum rgo ou funo superior.
No seu conjunto, todos esses rgos e funes existem em razo da perfeio do todo. Essa
harmonizao ocorre de mesma forma entre os indivduos. Cada criatura existe por uma
razo. Assim, as menos nobres existem em razo das mais nobres; os indivduos existem em
razo da perfeio do universo, e o prprio universo em razo de Deus136
.
2) Quanto mais elevada espiritualmente uma natureza, mais autonomia ela tem.
Pois quanto mais se aproxima uma natureza da perfeio divina, mais claramente se
descobre nela a semelhana expressa do Deus Criador137
. Ora, Deus quem move, dirige e
inclina a tudo. No entanto, Ele faz isso sem ser movido, dirigido ou inclinado por alguma
outra causa. Ento, quanto mais prxima de Deus estiver uma natureza, menos determinada
por Ele, e, consecutivamente, mais capaz de determinar-se por si prpria estar. Dessa forma,
uma natureza insensvel, sendo por sua materialidade afastada infinitamente de Deus, ser
conduzida ao seu fim (de forma totalmente determinada) por uma inclinao; como por
exemplo um corpo inorgnico que, em queda livre, conduzido mecanicamente ao solo. Por
outro lado, uma natureza sensitiva est mais prxima do Criador. O que ocorro agora que a
natureza sensitiva inclinada por um objeto desejvel que ela apreende. A inclinao no se
encontra em poder dessa natureza, mas determinada pelo objeto. No caso da natureza
insensvel, sua inclinao se d de forma exterior, pois ela determinada pelas leis fsicas. Ao
passo que, a natureza sensitiva tem sua inclinao (que tambm determinada) dada por um
objeto interior138
.
Por isso, na criao, no h espao para o mal, porque tudo tem uma finalidade. E se
tudo tem uma finalidade, conclui-se que todas as coisas esto designadas para alguma funo.
Observe-se as leis das cadeias alimentares, ou ainda, a hierarquia de uma corporao. Numa
sociedade, o lixeiro tem tanta importncia quanto um mdico ou um professor. Da mesma
forma, poder-se-ia concluir que um assassino tem tanta importncia quanto um santo, pois
136
idem 137
GILSON, El Tomismo, p. 336. 138
dito que o objeto est no interior porque ele est na mente do sujeito. A gnosiologia segundo o pensamento de Toms de Aquino no abordada nesta dissertao, pois no est diretamente relacionada com o tema principal, e tambm devido ao curto tempo para sua realizao.
sem um, no haveria como ser o outro. Assim, tudo est sob o domnio providencial. Tudo
est ajustado conforme a Prescincia Divina.
2. A PROVIDNCIA SEGUNTO TOMS DE AQUINO
Ser visto nos captulos dois e trs a relao que existe no pensamento de Toms de
Aquino entre o determinismo do criador, no primeiro momento, e o livre-arbtrio da criao,
posteriormente. O determinismo exposto aqui como um plano que Deus tem para Sua
criao, a qual Ele rege atravs da Providncia, que abrange conceitos antes vistos como
predestinao e graa. J no captulo terceiro, abordada a questo da vontade e sua relao
com o livre-arbtrio.
O pensamento escolstico, ao qual Toms de Aquino um dos (seno o mais)
importantes expoentes, consta de uma sistematizao da Patrstica. Algumas obras desse
perodo, como por exemplo As quatro sentenas de Pedro Abelardo, faziam parte dos
currculos escolsticos. No obstante, acrescenta-se uma boa dose de filosofia grega, pois a
esse tempo as obras de Aristteles j circulavam entre os intelectuais. Toms de Aquino no
foge regra, sendo marcante a influncia aristotlica em seu pensamento. Por fim, no pode-
se deixar de mencionar que o santo dominicano seja, principalmente atravs de sua Suma
Teolgica, um dos maiores sistematizadores da Patrstica.
A importncia da doutrina da Providncia sofre um baque com o surgimento do
nominalismo139
. Os reformadores (Lutero e Calvino) enfatizaram o poder e as determinaes
de Deus perante a responsabilidade causal da natureza e o agente humano140
; sendo que,
como por exemplo para Calvino, a absoluta soberania da Providncia atua para que Deus e as
criaturas possam conjuntamente fazer o bem.
2.1 Divina Prescincia
Tal como exposto no primeiro captulo, Bocio j colocara o problema de que a
Divina Prescincia implica a necessidade (ou seja, o determinismo) no mundo. Toms de
Aquino no escapa a essa definio. O Aquinate tambm defende a pr-existncia do mundo,
como afirma na sentena: de tal modo a cincia de Deus est para as coisas criadas, como a
cincia do artista est para suas obras141
. Em outras palavras, um quadro j existe na mente
do artista anteriormente sua pintura. Dessa forma, como afirmado no primeiro captulo,
139
HOONHOUT, 2002, p. 2. 140
idem 141
STh. I, q. 14, a. 8.
Deus no prev os eventos porque eles existiram, mas eles ocorrero devido ao conhecimento
que Deus tem deles. Dessa forma, segue nos prximos subcaptulos de que forma Deus realiza
isso.
2.2 Divina Providncia
Para Toms de Aquino, cabe Providncia Divina que tudo seja conservado em sua
natureza, porque (...) a Providncia no corrompe a natureza, mas a salva142
. Toms de
Aquino, em sua Suma Teolgica, distingue Providncia de Governo Divino143
. No
compreenda-se aqui o termo governo por causa das ordens divinas (como, por exemplo,
quando Deus ordena a Moises que leve seu povo para fora do Egito), mas o resultado e a
realizao de uma ordem universal de Deus144
. Em outras palavras, o Governo Divino no
implica em aes particulares, mas em determinaes universais, como, por exemplo, que o
fim ltimo de todo ser humano seja atingir a beatitude. A Providncia, por sua vez, a meio
pelo qual o fim ser cumprido.
1) Em Deus existe uma Providncia.
Afirma Toms de Aquino que todas as coisas feitas por Deus foram predestinadas e
ordenadas, desde toda a eternidade, pela sabedoria divina145
, pois a ordem das coisas
causadas (...) procede da sabedoria divina146
. Segundo o santo dominicano, Deus opera pelo
intelecto e pela vontade, assim Ele rege e governa todas as coisas mediante o intelecto147
.
Portanto, Deus a causa dos seres pelo seu intelecto148
, por isso, a razo da ordem das
coisas preexiste na mente divina. Em outras palavras, no intelecto divino existe uma
Providncia. Alm do mais, Deus no conhece somente os bens, mas tambm os males,
inclusive o inferno e a perdio149
.
142
Com. d. 23, q. 1, a. 2. 143
HOONHOUT, 2002, p. 7. 144
HOONHOUT, 2002, p. 10. 145
SCG III, 163. 146
SCG III, 64. 147
idem 148
STh. I, q. 22, a. 1. 149
STh. I, q. 14, a. 10; Pr 15:11.
2) Deus governa o mundo pelo Providncia.
O santo dominicano explica que ns somos direcionados a um fim. Em outras
palavras, podemos dizer que Deus cuida das criaturas. A Suma Teolgica comprova a
Divina Providncia citando a seguinte passagem bblica: Mas s tu, Pai, que governas
todas as coisas pela Providncia150
. Para definir melhor o que Providncia, diz Toms de
Aquino que ela a razo de se ordenarem os seres para um fim151
. E esse fim ltimo
Deus, pois nada tem que se ordena a outro fim152
. Sendo assim, o santo dominicano explica
que ns somos direcionados a um fim pela Providncia.
Para o Aquinate, necessrio admitir a Providncia em Deus, pois o bem existente
nas coisas foi criado por Deus153
. Dessa forma, o bem existente nas coisas se ordena para o
fim ltimo, pois, o bem da ordem, existente nas criaturas, foi criado por Deus154
. Em outras
palavras, se conhecido que h um bem nas coisas e, portanto, nos seres criados por Deus,
certo que h uma Providncia.
Toms de Aquino exemplifica esse conceito como um exrcito que dirigido para a
vitria155
: o exrcito so os seres humanos, Deus o comandante e a vitria o fim desejvel
por Deus, a saber, a beatitude. Assim, todos esto debaixo do governo da Divina
Providncia156
.
Pode-se notar que Toms de Aquino tem uma viso de Deus como um comandante.
No por menos, pois o santo dominicano tem a ideia de que o que defectvel (e, portanto,
inferior) subordinado ao que invarivel (e, portanto, mais perfeito). Assim, como somente
Deus perfeito, Toms de Aquino conclui que, tudo por Ele dirigido157
.
3) A Providncia abrange a tudo.
150
Sab. 14:3. 151
STh. I, q. 22, a. 1. 152
idem 153
idem 154
idem 155
CdT, 123. 156
STh. I, q. 22, a. 2; CdT, 123. 157
CdT, 123.
Ao afirmar que: Deus cuida das criaturas, Toms de Aquino divide a Providncia
em duas partes: i) a razo da ordem das coisas destinadas a seu fim; e ii) a execuo dessa
ordem, que se chama governo158
. Pois, Deus tem no seu intelecto a razo de todos os