Post on 08-Jan-2017
ISSN:2011799x
O descentramento das identidades e o outro diferente:
reflexões pós-modernas sobre a tradução inevitável
Emílio Soares Ribeiro Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
Mossoró-RN
emilioribeiro@uern.br
Lauro Maia Amorim Universidade Estadual Paulista (UNESP)
São José do Rio Preto -SP
lauromar@ibilce.unesp.br
Resumo: Na tradição moderna, o polo hegemônico estabelece um padrão como normal, dita um
modo de hierarquização. Enquanto parte desse grupo privilegiado, os textos considerados originais
e seus autores recebem um valor positivo, enquanto à tradução, o outro diferente, é exigida a não
mediação, a transparência. As reflexões pós-modernas acerca da representação do outro no texto
traduzido suscitaram movimentos que questionam esse processo de polarização. Destacamos as
ideias de Derrida (1973, 1978 e 1995) sobre a ausência de significado transcendental; a discussão de Berman (2012) acerca da relação entre identidade e tradução; e a proposta tradutória queerizante
de Von Flotow (2013), a partir da qual a tradução, com seu poder performativo, pode atuar em
prol de movimentos feministas. Relacionando e contrapondo pontos de vista, o trabalho considera
a diferença um aspecto inerente à tradução e discute o caráter ideológico exercido pelo ato
tradutório na construção de identidades e/ou fortalecimento de diferenças na reflexão pós-
moderna. Além disso, o trabalho analisa a proposta de dupla tradução para o português, realizada por Maurício Mendonça Cardozo, da novela alemã Der Shimmelreiter (1888), de Theodor Storm, e
o modo com que ela dialoga diretamente com a questão da identidade da tradução e de sua relação
com a diferença.
Palavras-chave: tradução, identidade, diferença.
El descentramiento de las identidades y el otro diferente: reflexiones postmodernas sobre la
traducción inevitable
Resumen: En la tradición moderna, el polo hegemónico establece un patrón normal, dicta un modo
jerárquico. Como parte de este grupo privilegiado, el texto supuestamente ―original‖ y su autor
reciben un valor positivo, mientras que la traducción, el otro diferente, permanece en su cualidad
de transparente. Las reflexiones posmodernas sobre las representaciones del otro en el texto
traducido influenciaron movimientos que iban en contra de esta forma de imposición de patrones.
En este trabajo, destacamos las obras de Derrida (1971, 1973 y 1978) en la ausencia de un
significado trascendental; la discusión de Berman (2012) acerca de la relación entre identidad y
traducción y la propuesta traductiva queer de Von Flotow (2013), con su poder performativo puede
actuar en nombre del movimiento feminista. Al relacionar y contrastar puntos de vista, este
artículo considera la diferencia como un aspecto inherente de la traducción. Adicionalmente habla
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Literatura italiana traducida en Brasil Mutatis Mutandis. Vol. 9, No.1. 2016, pp.95-122
del poder ideológico que ejerce la actividad traductiva en la construcción de identidades y la
consolidación de diferencias en la reflexión posmoderna. Además, el artículo analiza la propuesta
de la doble traducción al portugués hecha por Maurício Mendonça Cardozo de la novela alemana Der Shimmelreiter (1888) de Theodor Storm, y la forma en la que ésta dialoga con el tema de la
identidad de la traducción y su relación con la diferencia.
Palabras clave: Traducción, identidad, diferencia.
The De-Centering of Identities and the Other: Postmodern Reflections on the Inevitable
Translation
Abstract:
In modern tradition, the hegemonic pole sets a normal pattern, dictates a hierarchical mode. As
part of this privileged group, texts deemed as original and their authors receive a positive value,
while non-mediation and transparency are required for translation, as the other. Postmodern
reflections on the representation of the other in translated texts influenced movements that have
questioned such process of polarization. In this work, we highlight the ideas of Derrida (1973, 1978
e 1995) on the absence of transcendental meaning; the discussion by Berman (2012) of the
relationship between identity and translation; and Von Flotow‘s Queerying translational proposal
(2013), in which translation, with its performative power, may act on behalf of feminist
movements. Relating and contrasting points of view, the current article considers difference as an
inherent aspect of translation, and discusses the ideological power that is exerted by the translation
act in the construction of identities and/or consolidation of differences in postmodern thought. In
addition, the paper analyzes the proposal of double translation, into Portuguese, made by Maurício Mendonça Cardozo, of the German novel Der Shimmelreiter (1888), by Theodor Storm, and the
way it relates to the issue regarding the identity of translation and its relationship with difference.
Keywords: translation, identity, difference.
Le décentrement des identités et l’autre différent : des réflexions postmodernes sur la traduction
inévitable
Résumé:
Dans la tradition moderne, le pôle hégémonique établit un modèle normal et impose une
hiérarchie. En faisant partie du groupe dominant, le texte de départ (« l‘original ») et son auteur
sont perçus d‘une manière positive, tandis que la traduction, l‘autre différent, maintient son
caractère transparent. Les réflexions postmodernes sur les représentations de l‘autre dans le texte
traduit ont influencé des courants théoriques qui s‘opposaient à cette manière d‘imposition de
modèles. Dans cette article, nous mettons en évidence le travail de Derrida (1971, 1973 et 1978) en
ce qui concerne l‘absence du signifié transcendantal ; les idées de Berman (2012) sur la relation
entre identité et traduction; et l‘approche queer à la traduction de Von Flotow (2013), dans laquelle
la traduction et son pouvoir performatif peuvent avoir un impact au nom des mouvements
féministes. En mettant en rapport et en comparant des points de vue différents, cet article considère
la différence comme un aspect inhérent à la traduction et explique le caractère idéologique exercé
par l‘activité traductive dans la construction des identités et la consolidation des différences dans la
réflexion postmoderne. En outre, l‘article analyse le projet de la double traduction en portugais fait
par Maurício Mendonça Cardozo du roman allemand Der Shimmelreiter (1888) de Theodor Storm,
et comment celui-ci établit un rapport avec le sujet de l‘identité de la traduction et son rapport avec
la différence.
Mots clés: traduction, identité, différence.
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1. Introdução
Na modernidade, em cada grupo social, cultural ou étnico, os seres humanos compartilham características comuns, o que os torna semelhantes e permite que se
reconheçam uns aos outros como membros daquele grupo. A língua que cada grupo compartilha para representar o outro seria um exemplo disso. Ao localizar e definir o
sujeito no interior das sociedades, o pensamento moderno se desenvolveu com base em dicotomias, entre as quais está o mesmo (ou o próprio) e o outro (o diferente). Nessas
dicotomias, o polo mais privilegiado, o mesmo (homem, branco, rico, texto original,
etc.), tenta apreender o real do modo mais ―fiel‖ possível por meio das representações, ditando assim um modo privilegiado de hierarquização; e o menos privilegiado, o
outro (mulher, negro, pobre, tradução, etc.), deve se curvar ao seu precursor patriarcal, traduzindo-o sem qualquer interferência, invisivelmente.
Esses corpos que caracterizam as minorias constituem uma ameaça por sua diferença. Resta-lhes a supressão e o apagamento, de modo que os limites do sujeito hegemônico
moderno possam ser mantidos. Assim é com a tradução, cuja transgressão lhe confere, no contexto da reflexão moderna, um lugar fora das fronteiras.
A partir das reflexões oriundas da pós-modernidade, ao contrário, o que se
desenvolveu foi uma desconfiança de qualquer discurso totalizante, conduzindo-se, assim, a um questionamento das linhas demarcatórias, supostamente definitivas, entre diferentes instâncias. Rompe-se então com a ideia de origem pura do
significado e com a consequente busca pelo centro estrutural das coisas, e passa-se a entender que os signos não surgem ex nihilo:
Na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso [...], isto é, sistema no qual o
significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um
sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e
o jogo da significação (Derrida, 1995: 232).
Desse modo, no mundo heterogêneo em que vivemos, é o encontro com o outro,
com o diferente, com a tradução inevitável, que desloca o sentido dos signos, entendidos como movimento e transformação: ―O centro, a ausência de jogo e de
diferença, não será o outro nome da morte?‖ (Derrida, 1995: 77). Assim, entende-se que estabelecer um padrão que seja o bom absoluto seria abster-se do encontro
entre o mesmo e o outro, e dos efeitos que isso acarreta para os limites que separam esse bom absoluto do que lhe seria exterior.
Para o pensamento pós-moderno, a repressão histórica dos grupos minoritários deve, então, dar lugar a movimentos que, ignorando a existência de um suposto centro
original e legítimo que exclui o diferente e o torna anormal, rebelam-se contra a imposição de um modelo considerado absoluto. Entre eles estão os movimentos
feministas e raciais, a reinvindicação de direitos particularistas e o uso da tradução como modo de valorização e fortalecimento de minorias.
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Entre os movimentos que criticam qualquer discurso totalitário e almejam pôr fim a essas relações de dominação está o pós-estruturalismo, segundo Arrojo (1996: 60), ―a
vertente mais direta e explicitamente relacionada aos estudos da linguagem‖. Questionando o pensamento metafísico tradicional, essa ―anterioridade simples da
ideia ou do ‗desígnir interior‘‖ [sic] (Derrida, 1995: 25) e consequentemente qualquer definição de tradução como fixação ou manutenção de significados, o pós-
estruturalismo propõe o fim do culto ao autor e o fim da valorização da transparência.
―Tanto autores quanto tradutores são descentrados, e o texto, quer original ou
tradução, emerge como uma tensão inquieta de elementos heterogêneos que Roland Barthes descreve como ‗morte do autor‘‖ (Venuti, 1986: 196)1 2. Isso não quer dizer que o nome do autor e a aura que lhe é atribuída não deixarão de exercer sua força de
atração discursiva e, até certo ponto, de limitação a certos significados e interpretações em determinados momentos históricos, como bem salienta Foucault (1992). No
entanto, por mais que o escritor, por exemplo, deseje que os personagens, cenários e enredos por ele recriados permaneçam significando aquilo que ele inicialmente
almejou, eles serão inevitavelmente inscritos em novas possibilidades interpretativas, no encontro com cada leitor, eles deixam de pertencer ao autor no instante em que ganham as prateleiras das livrarias e passam a dialogar com o universo a sua volta.
Nesse sentido, considerando que as identidades são descentradas e que a representação
do outro em um texto traduzido nunca é transparente, abordamos, no presente trabalho, a diferença enquanto aspecto inerente a toda representação e a reflexão que
subjaz a tradução do outro diferente na pós-modernidade. Na primeira parte (subitens 2 e 3), trataremos de como as identidades se deslocam por ocasião do encontro com o diferente, discutindo o caráter ideológico e político que exerce uma tradução na
construção de identidades e/ou fortalecimento de diferenças na reflexão pós-moderna. Na parte final (subitem 4), analisaremos a proposta de dupla tradução para o
português, realizada por Maurício Mendonça Cardozo, da novela alemã Der
Shimmelreiter (1888), de Theodor Storm, e o modo com que ela dialoga diretamente
com a questão da identidade da tradução e de sua relação com a diferença.
2. Identidade e diferença
As relações entre identidade e diferença em uma sociedade influenciam as concepções sobre tradução e, consequentemente, a própria prática tradutória e as práticas linguísticas e sociais.
1 As traduções para o português de textos escritos em língua estrangeira foram por nós realizadas. 2 ―Both author and translator are decentered, and the text, whether original or translation, emerges as
the uneasy tension of heterogeneous elements that Roland Barthes describes as ‗death of the author‘‖
(Venuti, 1986: 196).
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Enquanto integrantes do mundo cultural e social, a identidade e a diferença são
necessariamente fabricadas por nós, em nossas relações culturais e sociais do dia-a-dia. Em sua arbitrariedade, a própria língua por nós utilizada, como conjunto de signos
linguísticos, apresenta um caráter de sistema de diferenças, em que cada elemento apenas faz sentido em uma cadeia infinita de conceitos necessariamente diferentes. Visto que a linguagem é uma estrutura que encerra uma instabilidade, os signos que a
compõem trazem em si o mal-estar que sempre acompanhou a reflexão sobre o significado e a tradução: o signo é, ao mesmo tempo, identidade e diferença.
Essa ambivalência nasce na fratura original da presença: o signo remete ao que está
ausente. Ao fazer uso do mito de Édipo para discutir a propriedade que a linguagem tem de ser fraturada, Agamben (2007) pensa em uma nova relação com o significar e assim critica o modo de pensar do Ocidente. Na lenda grega de Édipo, o próprio Édipo
seria o sujeito que, desejando enxergar-se inteiro e sem fratura, procura a transparência, não aceitando o indecifrável do enigma que lhe é apresentado pela
esfinge em Tebas. Ao decifrar o enigma, Édipo dá uma resposta simplória e geral, o
homem, sem perceber a obscuridade que o enigma guardava em si: o próprio nome
Édipo (oidipus = pés inchados; ou oi-dipus = aquele que tem dois pés) apresenta um
jogo que remete tanto ao fato de ter ficado com os pés inchados enquanto criança,
quanto ao próprio ser humano, criatura bípede. Ao entender o enigma com relação à sua generalização (aquele que tem dois pés), e não em relação a si mesmo enquanto homem, o herói não contempla toda a significação.
Para Hall (2001: 38), essa fratura ou divisão do sujeito se inicia com suas primeiras
impressões sobre si mesmo (a negação de sua parte masculina ou feminina, o sentimento dividido de amor e ódio pelo pai, entre outros) e o acompanha durante
toda a vida. Apesar de se constituir de um ser eminentemente dividido, ―ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e resolvida, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma pessoa unificada que
ele formou na fase do espelho‖.
Dessa mesma forma, a natureza da linguagem é tal que temos a ilusão de ver o signo como uma presença (a metafísica da presença de Derrida), apesar da coisa não estar no
signo. O enigma da esfinge é um jogo de questionamentos acerca do sentido, nunca totalitário, e do signo, algo que guarda em si ―não apenas o traço daquilo que ele
substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da diferença‖, como nos aponta Silva (2012: 79). Assim, a existência do signo e sua dinâmica se caracterizam pela différance3, termo criado por Jacques Derrida para
designar o jogo de remissões e diferenças em que se encontra qualquer linguagem: os
3 Homófono à palavra francesa différence, o termo différance encerra um jogo de linguagem: différer pode
significar tanto adiar quanto diferenciar. Sendo recorrente em vários de seus trabalhos, surge pela primeira
vez no artigo Cogito et histoire de la folie (1963). Utilizamos a tradução em inglês Cogito and the History of
Madness, integrante do volume Writing and difference, traduzida por Alan Bass e publicada em 1978 pela
Chicago University Press.
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signos não se referem a si mesmos, sempre representam algo diferente, em outra
circunstância temporal. Cada signo se constitui a partir de um ―rastro‖ (trace) que o
conecta a outros elementos na cadeia infinita de signos (semiose infinita)4.
É nesse jogo da différance e, consequentemente, na falta de transparência entre os
signos do mundo e aquilo que eles representam (a fratura da linguagem), que reside a relação de interdependência entre identidade e diferença. Montes (1996: 57) nos mostra que ao criarmos determinada identidade, é inevitável que reconheçamos a
alteridade, ou seja, a existência do diferente, a partir do qual afirmamos nossa
própria identidade. E, por se constituírem em relações sociais, essas duas entidades
estão sujeitas às forças que regem a sociedade em geral, isto é, as relações de poder, motivo pelo qual elas não são inocentes. Discursos e declarações sobre
pertencimento e/ou inclusão, por exemplo, passam necessariamente pelo campo da relação entre identidade e diferença, visto que implicam em uma determinada hierarquização. ―Em uma posição binária, um dos termos é sempre privilegiado,
recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa‖ (Silva, 2012: 83). Ao estabelecer uma identidade como aceitável, natural, normal ou
desejável, o grupo dominante (brancos, ricos, homens, etc.) dita um modo privilegiado de hierarquização tanto das identidades, quanto das diferenças. Esses
modos de imposição de padrões nascem no estabelecimento de uma língua, de símbolos nacionais ou de mitos fundadores. Mesmo os critérios considerados naturais ou biológicos, como os utilizados para eleger a mulher como ser mais fraco
historicamente, por exemplo, são sempre culturais.
Há também o movimento que opera em sentido inverso, tentando subverter as identidades e mostrar a sua precariedade, entre os quais estão os processos de
hibridismo, sincretismo e crioulização, processos que inevitavelmente transformam as identidades supostamente originais.
Nesse duplo movimento que caracteriza as instâncias sociais, os seres humanos buscam estabelecer padrões e apreender o real do modo mais fiel possível por meio das
representações. Todavia, como, ao significarmos, também atribuímos sentido, representar não denota a presença do real. É aí que tal dinâmica das relações entre
identidade e diferença se associa ao processo tradutório, pois ele também é um modo de representação, e, como tal, está necessariamente associado a relações de poder. A identidade e a diferença ganham sentido por meio das representações, incluindo as
traduções, que definem ou reforçam as identidades.
Como movimento e transformação, a identidade tem seu sentido deslocado pelo encontro com o outro, com o diferente, com a tradução inevitável, no mundo
4 Na tradução brasileira de Gramatologia, Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro justificam, em
nota de rodapé (p. 22), a opção pelo termo rastro para se referir à denominação trace, alegando que ―o
substantivo francês trace não deve ser confundido nem com trait (traço) nem com tracé (traçado), pois se
refere a marcas deixadas por uma ação ou pela passagem de um ser ou objeto‖.
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heterogêneo em que vivemos. Como consequência, temos identidades cada vez
mais descentradas, expressadas de formas variadas em cada tradução. Esse deslocamento das identidades modernas, que Hall (2001: 7) chama de ―crise de
identidade‖, é fruto das mudanças estruturais e institucionais e das incertezas e dúvidas acerca daquilo que se pensava ser estável. Para o autor, ―à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis‖ (Hall, 2001: 13), o que altera fortemente a ideia individualista que temos
de nós próprios enquanto integrantes de uma classe, de uma etnia, de um gênero ou
de uma nacionalidade, como instâncias bem demarcadas.
Essa mudança constante que caracteriza as sociedades modernas, incluindo o que Giddens (1990: 17) intitula ―desalojamento do sistema social‖ (disembedding of social
systems), são marcas da modernidade tardia e da globalização. A existência de vários
centros de poder, sem um princípio controlador único, faz com que pensemos essas
sociedades enquanto caracterizadas pela diferença, e as relações entre elas como articuladas. Esse questionamento da autoridade centralizadora tem grandes
implicações para os Estudos de Tradução.
A tendência natural das culturas nacionais em tentar restaurar uma identidade passada e as chamadas ―comunidades imaginadas‖ (Hall, 2001), algo enraizado nas tradições, nos fazem compreender o ilusório ideal da tradução logocêntrica: o consequente medo
da perda das origens dos mitos com o passar do tempo é análogo ao temor que envolve a dessacralização do suposto original. Considerando que as identidades nacionais não
são tão homogêneas como descritas por suas representações e que essas identidades não estão impressas em nossos genes, elas podem ser transformadas pelas
representações, incluindo as traduções, tornando as origens inalcançáveis. Essa consciência da diferença, em oposição a conceitos tradicionais como literalidade e leitura objetiva e fechada, influencia de forma considerável a consolidação de noções
pós-modernas de tradução, segundo as quais as influências que uma obra sofre ao ser traduzida nunca serão diretas e facilmente palpáveis, pois dependem do trânsito
contínuo que a envolve, incluindo, por exemplo, a recriação de identidades homoafetivas, feministas e raciais por experiências históricas locais.
3. A tradução e o outro diferente na pós-modernidade No mundo globalizado, as traduções representam seus objetos em novas combinações
temporais e espaciais, sem estabelecer um sistema social bem delimitado:
Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ―identidades
partilhadas‖ – como consumidores para os mesmos bens, ―clientes‖ para os mesmos serviços,
―públicos‖ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas
das outras no espaço e no tempo (Hall, 2001: 74).
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Essa exposição às influências externas a que todas as culturas estão sujeitas é um dos
motivos pelos quais as identidades, na pós-modernidade, não se restringem, de modo definitivo, a lugares pré-determinados, e, de forma análoga, motivo pelo qual os
sentidos não estão presos a origens pré-estabelecidas. Indivíduos dos lugares mais remotos do mundo podem receber imagens, mensagens e produtos das culturas mais hegemônicas. Não se pode pensar em vestuário, comida ou música africana apenas
como algo que habita a África, o que denota um desalojamento das identidades.
Aquilo que o próprio Hall (2001: 75) chama de ―supermercado de estilos‖ faz com que
―as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade‖ se
transformassem em uma espécie de mercado global, em que as várias tradições e identidades podem e devem ser traduzidas. O autor propõe uma articulação entre o global e o local, a partir da qual a globalização produzirá novas identidades que não
são etnicamente puras, mas cuja alteridade passa a ser valorizada. Desse modo, a tradução representa essas formas de valorização e fortalecimento das identidades
locais. Assim como a globalização tem um poder pluralizante e politizador sobre as identidades, dotando-as de novas possibilidades, as traduções adquirem características
trans-históricas, pois se constituem em produtos que, de alguma forma, materializam as contradições oriundas do processo globalizador.
Sem serem neutras ou destituídas de uma perspectiva interpretativa, as traduções são regidas por forças religiosas, étnicas, sexuais, sociais ou culturais. O fato de
existirmos imersos em um conjunto de informações e identidades disponíveis em um suposto supermercado global não torna as escolhas que fazemos, incluindo
aquelas durante o processo tradutório, neutras ou livres. Assim, em vez de pensarmos em cultura enquanto produtos expostos em vitrines e disponíveis aos interessados, autores como Mathews (2002: 37) nos convidam a pensar em um ―eu
pós-moderno não limitado por nenhuma cultura específica‖, um ser fluido e multifacetado, mas que convive com pressões exercidas pelo mundo social à nossa
volta. Nessa perspectiva, todo tradutor seria reflexo de uma formação cultural
contínua e vivenciaria o mundo de forma particular, estando subjugado às forças de
produção que interferem na elaboração do novo. A maneira como o tradutor vai se relacionar com o seu texto e a maneira como esse texto se relaciona com o contexto de produção da tradução (língua, identidade do tradutor, editoração etc.) definem,
em grande parte, as estratégias tradutórias de que ele faz uso.
A força do antagonismo entre duas classes, como a classe média norte-americana e o negro pobre americano, para citar um caso, influenciará o grau em que as formas de
língua usadas pelos dois grupos (no caso, o inglês padrão americano e o chamado African American English Vernacular, AAEV, conhecido popularmente como Black
English) diferem entre si. Porém, como ―as línguas vivem em constante contato uma
com a outra e se contaminam mutuamente‖ e, como ―a construção de identidades é uma operação totalmente ideológica‖ (Rajagopalan, 1998: 39 e 42), tais variantes, em
contato umas com as outras, podem gerar formas híbridas imprevisíveis, que,
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inclusive, podem revisar as variantes linguísticas menos privilegiadas e
consequentemente a noção de pureza das línguas.
A discussão que Berman (2012: 21) faz sobre a tradução da letra, ―uma atenção voltada para o jogo dos significantes‖, e a tradução palavra por palavra ―servil‖, o leva a outro debate muito relevante para a compreensão do modo como essas
relações identitárias se relacionam ao processo tradutório, o debate acerca do etnocentrismo e da hipertextualidade. Ao considerar que ―a captação do sentido
afirma sempre a primazia de uma língua‖ (p. 45), Berman define a tradução
etnocêntrica como aquela que, considerando a língua fonte como algo superior e
intocável, só poderia perturbá-la. Assim, em uma linha mais filosófica, o autor ressalta a importância de se conferir voz ao outro, considerando a possibilidade de enriquecimento da cultura desse outro. Mas, diferentemente, em obra póstuma, ao
analisar uma tradução-adaptação de um poema de John Donne, feita Otavio Paz, Berman (1995) reconhece que certas estratégias de leitura, como a própria
adaptação (que ele tanto criticara em obras anteriores), não seriam necessariamente redutoras ou totalmente etnocêntricas, a depender do projeto estético proposto pelo
tradutor, o que demonstra, portanto, que não haveria uma relação necessária ou intrínseca entre etnocentrismo e certas práticas ou estratégias tradutórias.
Esse reconhecimento de que, ao tomar decisões durante o ato tradutório, o tradutor nunca é invisível, mas reflete tanto acerca das relações entre as línguas como acerca
das culturas envolvidas, é prova de que as teorias foram evoluindo ―de expectativas tradicionais do mesmo e da fidelidade para uma contemplação mais complexa da
diferença, da ação do tradutor e da subjetividade, e do papel desempenhado pelo tradutor nas relações culturais‖ (Van Wyke, 2010: 114)5. À medida que consideramos o papel da tradução enquanto modeladora das culturas, das civilizações e de sua
história, tornamo-nos mais críticos com relação às implicações que esses novos textos exercem na definição das relações sociais em geral.
Em seu estudo sobre a representação da figura histórica irlandesa de Cú Chulainn,
Tymoczko (1999), por exemplo, valorizou a reinvenção de tradições a partir do contato com outras referências culturais. Em sua tradução da obra Táin Bó Cúailnge,
em 1969, o poeta e tradutor Thomas Kinsella mostra um Cú Chulainn em toda a sua
grosseria e monstruosidade. Por outro lado, Tymoczko (1999) mostra que traduções da obra feitas com o intuito de legitimar a Irlanda enquanto possuidora de uma
identidade heroica apresentam Cú Chulainn como um autêntico herói, omitindo do
texto aquelas características que o tornam vilão. Trata-se de uma representação que
5 ―[…] there is more and more interest throughout the field in rethinking ethics in a way that moves
away from traditional expectations of sameness and fidelity towards a more complex contemplation of
difference, the translator‘s agency and subjectivity, and the role translator‘s play in cultural relations‖
(Van Wyke, 2010: 114).
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―glorificou o individualismo e a ação do indivíduo em nome de sua tribo‖ (Tymoczko,
1999: 79)6. Aqui a história é modificada por força da ideologia que subjaz à tradução.
Uma outra influência exercida pela tradução, na visão de Venuti (2002: 130), é ―na construção de representações de culturas estrangeiras‖. No entender do autor, aquilo que ele chama de ―tradução domesticadora‖ é uma forma de dominação
sociocultural e manutenção da hegemonia, visto que, ao apagar a diferença dos textos estrangeiros, a tradução almeja ―promover ou reprimir a heterogeneidade na
cultura doméstica‖, ou seja, a cultura que realiza a tradução (p. 132). Como
exemplo, o teórico cita os romances japoneses que, não integrando o cânone
literário após a Guerra Fria devido a sua comicidade, para citar um motivo, não eram traduzidos em inglês, e, quando eram, ficavam à margem da literatura e sofriam restrição de distribuição. Outro exemplo seria a tradição anglo-americana
de traduções fluentes e ―transparentes‖, visando a um apagamento do outro e ao estabelecimento ou manutenção de cânones literários.
Opondo-se a essa tradição tradutória doméstica e etnocêntrica em relação à cultura
estrangeira, Venuti (2002: 155) propõe então a ―estrangeirização‖, em uma descentralização que forçaria ―a língua e a cultura domésticas a registrarem a estrangeiridade do texto estrangeiro‖. Dessa forma, a transmissão dessa alteridade e da
diferença dela oriunda promoveria uma opacidade, e não uma transparência, ou seja, o novo texto seria lido como uma tradução de fato, e as marcas da cultura traduzida
deixadas na cultura tradutora integrariam um ―projeto de tradução minorizante‖. Ao fazer uso de textos estrangeiros que apresentam ―status de minoridade em suas
culturas, uma posição marginal em seus cânones nativos – ou que, em tradução, possam ser úteis na minorização do dialeto-padrão e das formas culturais dominantes no inglês‖, Venuti (2002: 26) propõe assim enfatizar as diferenças do texto primeiro e
sua alteridade, ao invés de domesticá-las. Tais estratégias minorizantes seriam influenciadas tanto por aspectos como o público leitor e o gênero, como pela
interpretação que o próprio tradutor faz do texto em língua estrangeira.
No caso de algumas traduções realizadas no Brasil, autores como Rodrigues (2008: 23) entendem que essa ―prática tradutória de resistência, estrangeirizadora‖ não seria adequada, uma vez que, em termos gerais, não ocuparmos ―a mesma posição política
e econômica que os Estados Unidos‖, e já conferimos muita voz ao outro hegemônico. A própria prática da domesticação, condenada por Venuti, seria uma forma de
resistência ao estrangeiro para o tradutor brasileiro, no entender da autora. Desse modo, a análise de uma tradução deveria ir além da investigação das trocas globais de
poder entre as línguas e culturas envolvidas, mas precisaria levar em consideração ―as implicações das escolhas dos tradutores e as relações de poder, ou de resistência, envolvidas no processo‖ (Rodrigues, 2008: 24). A análise da tradução dependerá, entre
outras coisas, do polo em que o investigador está situado.
6 ―[…] that glorified both individualism and action on behalf of the tribe‖ (Tymoczko, 1999: 79).
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Assim, pode-se, entrever, por exemplo, situações em que a própria noção de
domesticação poderá servir a propósitos que, a depender do ponto de vista, seriam norteados pelo desejo de se buscarem formas de representação menos assimétricas e
mais éticas. Em Translation and the Manipulation of Difference: Arabic Literature in
Nineteenth-Century England, Shamma (2009) mostra que até uma tradução caracterizada
como domesticadora pode ser considerada ética, em comparação a outros tipos de tradução tidas como estrangeirizadoras à época, por exemplo, do imperialismo britânico. Entre essas estaria a tradução, para a língua inglesa, da obra Mil e uma noites,
realizada pelo poeta inglês Wilfrid Scawen Blunt no século XIX. Para Shamma (2009),
a tradução estrangeirizadora feita por Richard Burton teria conferido um caráter
exótico ao mundo árabe para atender às expectativas do público ocidental, transformando os atos mais comuns em gestos exóticos que despertam a curiosidade
dos ocidentais. Ao contrário, a tradução de Blunt se voltou para uma poética que envolveria a identificação na domesticação, por meio da qual foi produzida uma forma de resistência à estereotipagem e à política de exoticidade do colonialismo britânico.
Enquanto crítico ferrenho do imperialismo inglês, Blunt estava entre os participantes do Irish Literary Revival, movimento que almejava traduzir obras do irlandês arcaico
para o irlandês moderno e para o inglês, como modo de imposição de uma resistência ao domínio britânico sobre a Irlanda. O nome de Blunt era associado ao espírito da
antiga nobiliarquia inglesa, oposta aos valores imperialistas e burgueses. E, como nos diz Shamma (2009), o poeta advinha de uma família da pequena nobreza, cujos altos códigos nobres restringiam-se ao passado. Os textos de Blunt revelam os dias de glória
da cavalaria e do cavalheirismo, características que foram projetadas em outras culturas, principalmente entre os árabes e muçulmanos. Na tradução por ele realizada,
percebe-se nitidamente uma tentativa de conferir ao texto um toque cavalheiresco, haja vista a predominância de palavras e termos que remetem a tal estilo, como knight
(cavaleiro), noble (nobre), honor (honra), lineage (linhagem), maiden (donzela) e woo
(cortejar). Na análise de Shamma (2009), ao domesticar o texto, apostando na
identificação dos árabes com a tradição nobiliárquica da Europa, Blunt, de certo modo, aproximou os valores árabes dos europeus, ao invés de afastá-los por meio de uma estrangeirização que os exotizaria, como teria feito Burton em sua tradução.
Conforme a posição social, cultural, sexual ou étnica que assume o tradutor, e sua
relação com o texto com o qual se depara, a época e as forças editoriais, o processo tradutório pode operar como um poderoso motivo em prol dos movimentos de grupos
minorizantes. Von Flotow (2013: 171), por exemplo, mostra que ―muitos trabalhos acadêmicos resultaram do poder da tradução, das mulheres tradutoras e sua influência nos textos, e das teorias de tradução que desenvolveram uma visão poderosa sobre o
suposto lado feminino do fenômeno da tradução‖.
Von Flotow cita La Bible 2001, tradução do livro cristão que, ao considerar versões
antigas das escrituras sagradas, as mudanças sofridas pela língua francesa e as novas
concepções sobre a posição da mulher na sociedade, foi produzida com propósitos feministas. Durante o trabalho de tradução, observou-se a inexistência, nos textos do
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Novo Testamento, do termo virgem como referência à Maria. A virginização daquela
que teria sido caracterizada como la jeune fille ou la jeune femme nas primeiras bíblias
ocorrera como forma de ―aterrorizar mulheres reais e depreciar e macular sua
sexualidade humana‖ (Von Flotow, 2013: 174).
Opressões como essa são oriundas de categorias de identidades fixadas, os vários binarismos que ainda dominam nossa sociedade em diferentes níveis e que são questionados pelas teorias queer desde o final do século XX. A proposta tradutória
queerizante de Von Flotow (2013) nasce da ideia do poder performativo que a tradução
pode adquirir. Ao serem politicamente ativos, aspectos performativos como a
identidade de gênero ou a identidade racial permitem ao tradutor atuar com mais liberdade na confecção de um texto que possa ―refletir e chamar a atenção aos aspectos
[...] que são novos, ou inovadores, ou considerados úteis para o novo público leitor‖ (p. 180). Enquanto ativista social, o tradutor seria parte da ―constante luta sobre fazer coisas com palavras‖, permitindo diferentes ―transformances‖ (tradução +
performances) de um texto (Von Flotow, 2013: 181-182), o que inclui, por exemplo, um manuseio feminino desse texto, como nos fala Martín (2005: 34) ao utilizar a
expressão womanhandling the text.
Assim, em vez de adquirir um status análogo ao da mulher ao longo da história, vista apenas em sua função reprodutiva, desvalorizada e cuja voz é negligenciada, a
tradução, na medida em que ―implica uma negociação cultural complexa e uma presença produtiva ativa por parte dos tradutores que excede largamente o seu papel tradicional invisível‖ (Martín, 2005: 29)7, é agente desmistificador não apenas
do papel subserviente da mulher, mas das minorias esquecidas e das variedades ilegítimas da nossa sociedade.
Sobre essa relação entre a tradução e a figura da mulher, em uma visão pós-moderna,
destaco ainda duas reflexões. Uma é a ideia de tradução como atividade metramórfica, de Bracha Ettinger (1993)8, um processo que provocaria mudanças e consequentemente alteraria os significados. Enquanto união entre o prefixo metra (do
grego, mãe, útero – de onde provém palavras como endométrio e metrópole) e a palavra Morpheus (o deus grego dos sono e dos sonhos, que podia assumir qualquer
forma), o neologismo Metramorfose traz um jogo entre as designações gregas meta
(enquanto mudança de lugar ou de condição), mater (mãe) e morphe (forma). Opondo-
se a ―um axioma de equivalência‖, ao qual estamos presos e em que ―o Falo é o legado de um significante a outro, cada qual, acima de tudo, anafórico ao significante de uma
unidade perdida‖, Ettinger (1993: 50-51) pensa em um Simbólico feminino, que, sendo
7 ―Translations […] entail a complex cultural negotiation and an active, productive presence on the part
of translators largely exceeding their traditional invisible role‖ (Martín, 2005: 29). 8 Além de Ettinger (1993), ler Von Flotow (2013: 186-189).
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―maior que o Falo‖9, não apaga nem substitui a diferença, mas a acolhe. A autora,
então, refere-se à tradução enquanto um processo de trocas e transformações em que o significado, ao invés de morrer, é gerado.
Recusando a noção de tradução enquanto um processo metamórfico, uma
transformação em que a forma preliminar seria substituída e obscurecida pela segunda
manifestação, o projeto de Ettinger vai além das associações entre tradução e metáfora ou metonímia. Enquanto a noção de metamorfose aponta para uma transformação
completa, a ideia de metramorfose indicaria um desenvolvimento: ao invés de
sobrepor ou abolir os signos anteriores, a tradução expande-os, por meio da interação,
e mantém aquela suposta fonte em si. É pensando na tradução enquanto fruto da negociação tanto das diferenças, quanto das semelhanças, que Ettinger tenta superar as barreiras historicamente construídas entre o texto primeiro e sua tradução, e questiona
a relação binária presença/ausência, normalmente tomada como o maior parâmetro para a análise dos processos de significação.
Ao refletir sobre a importância de reconhecimento da diferença e de sua legitimação
como um outro que não deve ser apagado ou apropriado na tradução, Shread (2007) enfatiza a metáfora do útero materno de Ettinger (1994). Enquanto espaço de intercâmbio e de transformação, e não de deslocamento e rejeição, a tradução (assim
como o útero) envolve um processo gerador a partir do qual há a produção de significados. A figura do útero não como ―um receptáculo passivo‖, mas como ―um
liminar ativo que é transformado por um eu que ressurge e um não-eu desconhecido‖ aponta para uma nova abordagem que ―renova a nossa visão dos processos de troca ou
de tradução‖ (Shread, 2007: 221)10. Trata-se da ideia de tradução enquanto um processo que depende de seu contexto e que também tem influências sobre ele, enquanto espaço ativo, o que subentende uma noção de identidade como algo que não
é estático. Ao ocupar seu espaço em determinada cultura, a tradução mantém uma relação com o texto que a precedeu e a quem deve a existência, mas, ao mesmo tempo,
apresenta as marcas da alteridade inscritas pelo tradutor. São essas novas identidades,
oriundas das modificações que o texto inevitavelmente sofre na viagem que faz
durante as várias traduções por que passa ao longo do tempo, que caracterizam a ideia de tradução como diáspora discutida por Amorim (2014), com base no conceito de
diáspora de Stuart Hall. A desterritorialização de qualquer identidade, isto é, a
9 ―We are caught in an axiom of equivalence. The Phallus is the value inherited from one
signifier to another, each, on top of that, anaphorical to the signifier of a lost unity. So the
magic circle is complete. So the Phallus appropriates all.
But the Symbolic is larger than the Phallus!
- Add metramorphoses to metaphors and metonymies.
- Open up a space between Symbol and Phallus (in a psychoanalytic sense). Matrix is in
this space: Symbol minus (-) Phallus‖ (Ettinger, 1993: 50-51). 10 ―A matrixial spatial configuration renews our visions of exchange—or translation—processes. Ettinger‘s
use of the term ―matrix‖ shifts its associations from the womb as passive receptacle to that of an active
borderspace that is transformed by a co-emerging I and an unknown non-I‖ (Shread, 2007: 221).
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incapacidade de identificação da origem das culturas e de suas indenidades frente à
globalização, o que remete diretamente à noção derridiana de differánce, é o que
embasa essa concepção de diáspora não como uma ideia dicotômica e naturalmente
excludente de diferença, mas como uma característica que é própria do deslizamento de significados, a semiose infinita da linguagem.
Essas transformações ocorridas por meio do caráter de diáspora que os tradutores imprimem aos textos também se fazem visíveis no
Entrelaçamento híbrido das vozes dos poetas negros, tradutores e editores na reconstrução
poética e doméstica do estrangeiro a partir das possibilidades de expressão que a literatura
afro-americana adquire em face das expectativas de leitura subjacentes à recepção literária no
Brasil (Amorim, 2014: 173).
Considerando que as traduções de poesia negra são inevitavelmente influenciadas
pelas concepções que os tradutores têm dos conflitos raciais, Amorim (2014), ao tratar das antologias brasileiras da poesia afro-americana, mostra dois pontos de vista
opostos por meio dos quais podemos analisar o papel que a tradução do outro/diferente exerce. Em uma perspectiva, as traduções dos poemas traduzidos no
Brasil e sua seleção poderiam ser influenciadas pela cultura racial brasileira baseada na ideia de miscigenação, o que levaria os tradutores a suavizar, de certa forma, os aspectos raciais da poesia afro-americana que poderiam gerar conflitos no Brasil, em
uma espécie de assimilação do outro. Outra perspectiva nos permitiria ver essa mesma mestiçagem presente nessas traduções como ―um processo de mutação constitutivo da
interpretação do outro‖ (p. 175), algo que corroboraria a ideia de que as mudanças geradas a partir de uma tradução cultural são inevitáveis.
Os vários exemplos apresentados nos mostram que o fim das metáforas polarizadoras que sempre envolveram a tradução (tradução como uma bela infiel ou como tráfico,
por exemplo) e que a conferem uma posição de desprestígio, e a legitimidade das classes minoritárias passam necessariamente por uma mudança de abordagem em que:
A atenção deixa de ser direcionada para a análise crítica de um código linguístico singular (Inglês,
Francês), voltando-se para os termos conceituais que regulam a intervenção de assuntos
individuais e coletivos dentro do discurso e da escrita (Simons, 1996: 8)11.
Assim, traduzir implica mais do que produzir uma tradução per se, envolve práticas
interculturais que não fogem às tensões e ideologias de qualquer modo de representação. Ao dizer algo, o tradutor produz identidades. Ao estarem necessariamente associadas à atribuição de valores e aos interesses que envolvem
tal atribuição, a identidade e a diferença são recriadas a todo instante por meio dessa performatividade que envolve a representação. E, visto que o mundo
11 ―Attention has shifted from critical analysis of a single linguistic code (English, French) to the
conceptual terms regulating the intervention of individual and collective subjects within speech and
writing‖ (Simons, 1996: 8).
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heterogêneo em que vivemos promove a todo instante ―o encontro com o outro ,
com o estranho, com o diferente‖ (Silva, 2012: 97), representar compreende expressar-se por meio de diferentes dimensões.
4. A diferença na construção da identidade da tradução: a tradução
“convencional” e a “não convencional” da novela Der Schimmelreiter, de
Theodor Storm, realizadas por Maurício Cardozo
As relações entre identidade e diferença podem proporcionar um quadro instigante
para o desenvolvimento de pesquisas nos Estudos da Tradução. O tema da
identidade tanto pode lançar luz sobre questionamentos que promovam uma reflexão no campo epistemológico da tradução, como pode proporcionar a abertura para um campo vasto de pesquisas de natureza empírica, como apontamos no
decorrer do artigo. Assim, a identidade e sua relação com a diferença permitem fundamentar questões mais amplas acerca da natureza da tradução, como, por
exemplo, a sua relação com outras formas de reescrita, tais como as adaptações fílmicas (Amorim, 2005) ou mesmo as traduções ―não convencionais‖ (Storm,
2006a e 2006b), como veremos a seguir. Até onde se pode deslocar o espaço demarcatório da identidade tradutória? Quais são os limites impostos à prática da tradução e de que modo esses mesmos limites definem o que é uma tradução, em
determinada época, cultura ou comunidade? O que torna a identidade da tradução suscetível a transformações em vista das circunstâncias interpretativas, ideológicas
ou mesmo mercadológicas que delimitam o seu fazer? De que modo a escrita da tradução ou da adaptação tem implicações para a própria afirmação da identidade
daquele que traduz ou adapta? Estratégias menos convencionais de se traduzir poderiam ser consideradas formas legítimas de tradução, ainda que mais experimentais? Poderá a experimentação ser parte integral da identidade da
tradução mesmo que isso implique reconsiderar (e ampliar) seus limites tradicionalmente aceitos? Isso implica algum perigo? E para quem? Essas são
questões polêmicas e atuais que tocam à tradução, ao seu reconhecimento como reescrita do outro e à sua própria identidade.
Um caso interessante que nos instiga a refletir sobre essas questões é o da dupla tradução, realizada por Maurício Mendonça Cardozo, da novela alemã Der
Shimmelreiter (1888), de Theodor Storm, publicada em 2006 pela editora da
Universidade Federal do Paraná. Presente na tradução A assombrosa história do homem
do cavalo branco (doravante A assombrosa...), há um posfácio que oferece uma descrição
biográfica de Theodor Storm, bem como uma apresentação sucinta das características
estéticas do autor e de sua obra. Nele, Paulo Astor Soethe assim resume a obra:
Trata-se na novela do percurso de Hauke Haien, enquanto cidadão em ascendência social e em
busca da consolidação de sua vida afetiva e familiar; mais ainda, porém, trata-se do percurso da
comunidade que ele lidera, em uma luta coletiva por terra utilizável para fins econômicos. Situada
na paisagem plana do Norte alemão, com as terras ao nível do mar e sujeitas, na costa, aos sabores
das marés, toda a ação na novela encontra seu fim último na construção e manutenção de diques.
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Os diques são a arma do homem contra o mar. E é a concepção e construção de um dique
tecnicamente melhor que notabiliza a figura de Hauke Haien. Sua família e ele mesmo sucumbem,
ao final (Storm, 2006a: 157).
A novela nos revela, assim, a existência de uma comunidade caracterizada pela luta
contra a força do mar, com a construção de diques que permitem o avanço de casas e terras cultiváveis sobre a área inundada, à semelhança da vizinha Holanda. Essa
comunidade também é marcada pela existência de uma relação hierárquica entre aquele que é o morador mais poderoso, o senhor-dos-diques, não só por administrar a construção e a manutenção das estruturas de contenção de água, mas, também, e,
especialmente, por ser o maior proprietário de terras cultiváveis, o que lhe confere, portanto, o poder central e financeiro da comunidade. A história em si é fruto de
vários pontos de vista, já que o narrador que abre a novela anuncia ter lido, pelo intermédio da avó, a trama em um livro que na realidade se perdera, não podendo,
assim, garantir a ―veracidade‖ da história que será narrada. Em seguida, passa-se a narrar a chegada, por volta da década de 1830, de um forasteiro que ao adentrar uma vila, a cavalo, circundando o caminho dos diques sob frio intenso e um forte temporal,
depara-se, na estrada, com a estranha figura de um homem de feições atordoadas e fantasmagóricas, montado em um cavalo branco, os quais, mais adiante, desaparecem
sem deixar pistas. Assustado com a imagem que presenciara, o forasteiro se aproxima de uma casa, onde encontra um grupo de moradores reunidos. Tendo sido bem
recebido, o homem conta o que vira, e passa a ouvir, do mestre-dos-diques (especialista na construção de diques, mas que responde ao senhor-dos-diques), a narrativa acerca do protagonista da novela, Hauke Haien, que, tendo saído de uma
família modesta, chegará à condição de senhor-dos-diques, não apenas em virtude de seu conhecimento técnico e dedicação, mas também por seu casamento com
Elke Volkerts, a filha do então senhor-dos-diques. A despeito de sua visão ambiciosa, que o levará a conceber e a concretizar a construção de um dique de
proporções muito maiores para a comunidade, Hauke Haien será surpreendido, nos momentos finais da novela, com o rompimento das construções, observando, incrédulo, o seu trágico afogamento e o de sua própria família: a esposa e a filha. O
leitor acaba por associar Hauke Haien à figura fantasmática do homem do cavalo branco, que parece nunca mais ter deixado de assombrar a região, possivelmente
inconformado com o fim trágico que o destino lhe reservara.
No website da editora, lê-se o seguinte texto de divulgação da obra:
A Editora UFPR traz para o mercado brasileiro um livro que provocará discussões sobre os
conceitos e funções da literatura, de originalidade, de intertextualidade e de tradução. A novela
clássica do alemão Theodor Storm ganha uma inusitada recriação de Mauricio Mendonça
Cardozo, de tal forma que o volume único original aparece, no Brasil, em dois volumes,
acondicionados em uma caixa. Num deles, temos uma tradução cuidada, que se poderia chamar
de convencional, com o título de A assombrosa história do homem do cavalo branco. No outro, O
centauro Bronco, por meio de um processo que o tradutor chama de reencenação, transpõe-se a
história original do cenário frio e úmido do norte da Alemanha para o quente e seco sertão
brasileiro, num movimento de intertextualidade inédito. Contudo, mais do que o ambiente e os
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Literatura italiana traducida en Brasil Mutatis Mutandis. Vol. 9, No.1. 2016, pp.95-122
personagens de Storm, Cardozo recria a própria linguagem, tendo sempre em vista quatro pontos
cardeais: O Sertanejo, de José de Alencar, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, e sobretudo Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa (Negritos nossos) 12 13.
O tradutor, Maurício Mendonça Cardozo, professor da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), apresenta um posfácio, que foi incluso na versão que a editora classifica como ―não convencional‖, intitulada O centauro bronco. Nele, Cardozo se
dedica a explicar sua concepção de tradução e a sua proposta de dupla tradução da obra de Theodor Storm. Vejamos um trecho de seu posfácio:
Assim, enquanto A assombrosa história do homem do cavalo branco reencena a novela de Stom num
espaço ficcional que faz referência ao universo frísio – assumindo o desafio de inventar esse universo
em língua portuguesa –, o Centauro Bronco surge como proposta de reencenação da novela de Storm
no espaço do sertão ficcional da literatura brasileira. Ainda que de modo pouco convencional, O Centauro Bronco faz isso simplesmente com o intuito de ensaiar uma outra possibilidade – e são
sempre inúmeras as possibilidades – de equacionar a relação entre a obra em alemão e a obra em
português. Mesmo levando o leitor por paragens tão distantes, a viagem se oferece como
possibilidade de provar de uma experiência que é inevitavelmente outra, ainda que seja
humanamente tão semelhante. Nesse sentido, o que aparentemente pode ser visto como estratégia
radical de assimilação do outro, revela-se, na intimidade, como uma defesa às avessas da alteridade –
de uma alteridade que não se contenta em reduzir o outro à estranheza (Storm, 2006b: 159).
Cardozo salienta que a tradução se fundamenta, primordialmente, numa relação, em
um modo de se relacionar com o outro. Para o tradutor e teórico da tradução, a pressuposição, pelo leitor, da existência de uma relação entre dois textos é mais
relevante para a leitura da tradução enquanto tradução do que pelo modo específico como essa relação se daria. Nesse sentido, Cardozo considera que as noções de
proximidade e de distanciamento não seriam necessariamente cruciais para o entendimento do seu projeto como um ato de tradução:
12 Disponível em: http://www.editora.ufpr.br/portal/livros/a-assombrosa-historia-do-homem-do-
cavalo-branco-isbn-8573351691-o-centauro-bronco/ 13 Ressalta-se que os referidos livros publicados pela editora UFPR recebem, em suas respectivas capas,
o rótulo de ―tradução‖, e não de ―tradução convencional‖ e ―não convencional‖. A expressão
―convencional‖ aparece, como exibido acima, apenas no texto de divulgação das duas versões no site de
vendas da editora, e a expressão ―não convencional‖ pode ser atribuída, de forma pressuposta, à versão A assombrosa história do homem do homem do cavalo branco. A qualificação de ―não convencional‖ não é
explicitamente utilizada pela editora, ainda que o tradutor Maurício Cardozo considere, em seu
posfácio, que a reencenação da novela no espaço ficcional do sertão seja algo ―pouco convencional‖
(Storm, 2006b: 159). No que diz respeito à apresentação imediata, aos leitores, dos livros propriamente ditos, pode-se notar que O centauro bronco é uma versão diferente, não apenas pelo título (que se
contrasta com o do outro), mas, também, porque na quarta capa de O centauro bronco, encontra-se a
seguinte informação (ausente na quarta capa de A assombrosa...): ―Toda tradução, mesmo sem querer, é
uma recriação. E esta, querendo mesmo, é uma ampla recriação. Aqui, o cenário frio e úmido da Frísia
se converte no quente e no seco do sertão. A luta contra a natureza também se transforma: lá são águas
que insistem em invadir as terras férteis, aqui é o sol que chupa as águas e esteriliza o solo. A língua
tinha que acompanhar esse movimento: inspirado por Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, e
imerso em Guimarães Rosa, o texto inventa um espaço onde a Alemanha e o Brasil podem fazer
fronteira.‖ (Storm, 2006b, quarta capa).
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Não é apenas algo como a modalidade da relação – nem a eventual impressão de distância ou de
proximidade entre dois textos, construída a partir do modo como essa relação se equaciona – que
determina o que seja ou não uma tradução, mas sim, a relevância que tal relação teve para a
produção e pode ter para a leitura do texto traduzido. (Storm, 2006b: 155-156)
Mesmo quando se refere à tradução ―convencional‖, A assombrosa..., Cardozo faz
questão de salientar que ela também não deixa de ser uma forma de reencenação que cumprirá o papel de dar um passo além da busca pela precisão terminológica,
especialmente ao traduzir vocábulos culturalmente e tecnicamente específicos à região da frísia alemã. É o caso, por exemplo, dos termos, em português, ―varga‖, ―vargem‖,
―vargens‖ e ―vargeado‖, com os quais o tradutor teve, por intuito, ―compensar algo da opacidade de referências tão específicas através do valor de suas relações no curso da narrativa.‖ (Storm, 2006b: 158).
No caso de O centauro bronco, Cardozo estabelece uma relação profícua entre o universo
social e imagético da trama de Der Shimmelreiter e o mapa geográfico e humano do sertão brasileiro, tradicionalmente retratado em obras literárias de grande envergadura,
como Grande Sertão: Veredas, do aclamado escritor Guimarães Rosa, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Essa relação se dá com base em pelo menos dois aspectos, um relativo à dimensão cenográfica, e, outro, relacionado à dimensão humana.
No que se refere ao espaço cenográfico, destacam-se duas caracterizações: a) a luta
contra as duras condições impostas pela natureza (tanto no Norte da Alemanha, com o frio intenso, e condições climáticas adversas destemperando o mar arredio que acentua
o perigo iminente de inundações com o rompimento dos diques; quanto no Sertão do Nordeste brasileiro, com os prolongados períodos de seca que assolam a vida dos camponeses do bioma caatinga, destruindo ou impedindo a produção de lavouras,
com a consequente morte do gado e a proliferação de uma pobreza acentuada e renitente, absolutamente dependente de açudes). b) Ressalta-se, ainda, o famoso mote
nordestino ou ―profecia‖: o ―sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão‖, atribuída à figura ascética do líder religioso Antônio Conselheiro, conhecido pelo seu papel de
liderança das massas empobrecidas do Nordeste, na Guerra de Canudos (1896-1897) contra o governo central, e retratado no romance Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra que também exerce uma influência na tradução de Cardozo. Esse mote,
difundindo até na música popular14, parece encontrar respaldo na atualidade: está, em processo, a desertificação do sertão nordestino (com o desaparecimento de açudes e
rios) e, também, a possível submersão de cidades ribeirinhas, à margem do rio São Francisco, em virtude do aquecimento global, e de sua proximidade com o oceano
Atlântico15. Esse mote permite criar, segundo o tradutor, a possibilidade de traduzir ―a
14 A submersão de algumas cidades ocorreu, em décadas passadas, com a construção de usinas
hidrelétricas ao longo do rio São Francisco. Esse tema é abordado na música ―Sobradinho‖ (uma usina),
de Sá e Guarabira: https://www.youtube.com/watch?v=WUi38wsiAdQ 15 Essa informação pode ser corroborada na seguinte matéria:
http://www.infonet.com.br/marcoscardoso/ler.asp?id=57269&titulo=marcoscardoso
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imensidão vasta e aberta das costas do Mar do Norte pela imensidão densa, estorcida e
fechada da caatinga‖ (Storm, 2006: 160).
Quanto à dimensão humana, nota-se que as duas sociedades são regidas por uma rigorosa estrutura hierárquica de poder: no caso da ficção alemã, observa-se a existência de uma sociedade comandada por uma espécie de ―coronel‖, à
semelhança do que tradicionalmente ocorre no Nordeste brasileiro, o ―senhor -dos-diques‖, de modo que se pode entrever, como aponta o tradutor, em ambos os
espaços cenográficos, ―conflitos entre pequenos e grandes proprietários, na
convivência de religião e superstição, no confronto das forças da inovação e da
tradição, nos impasses do esforço individual ante o esforço coletivo‖ (Storm, 2006: 160). É interessante observar, por exemplo, como a superstição demarca claramente as duas sociedades, já que em ambas ocorre uma tradicional proliferação de
―causos‖ e histórias sobre ocorrências sobrenaturais.
Há, ainda, um segundo elemento, tão importante quanto os anteriores, que compõe a proposta da tradução ―não convencional‖: a criação daquilo que o tradutor denomina
de uma linguagem ―pastiche‖ que busca recriar o modo de expressão de Guimarães Rosa, especialmente celebrado na obra Grande Sertão: Veredas. Segundo Cardozo,
O procedimento do pastiche, como forma de citação, foi levado aqui às últimas consequências.
Mas se, por um lado, fazer uso do pastiche é ―reproduzir o estilo de um autor‖ – pastiche, por
definição -, por outro, procuro não fazê-lo mecanicamente. Tomando como exemplo a matriz do Grande sertão: veredas, entendo o texto roseano como um grande improviso – o que não me parece
assim tão imponderável se considerarmos que essa forma musical tem muitas das características da
oralidade. Ao invés de transcrever esse improviso, ensaiá-lo e re-executá-lo como uma peça
fechada, o procedimento adotado aqui procura identificar princípios ativos desse ―grande
improviso‖ e improvisar o texto de Storm, fazendo ecoar nele, também, uma voz de timbre
roseano (Storm, 2006b: 162-163)16.
É assim que, em O centauro bronco, o senhor-dos-diques, Hauke Haien, torna-se o coronel, Naldo Mendes, e a construção de um enorme dique, liberando terras
inundadas para a agricultura e a edificação de casas, dá lugar à construção de uma grande represa que visa ao fornecimento de água para irrigação diante da trágica seca
da região. Pode-se observar, abaixo, o contraste entre trechos da ―tradução convencional‖, A assombrosa..., e os trechos correspondentes na tradução ―não
convencional‖ O centauro bronco. Selecionou-se a passagem em que o jovem Hauke Haien/Naldo Mendes, retornando do trabalho, e trazendo consigo uma ave que caçara no caminho, é atacado por um gato angorá, pertencente a uma senhora chamada Trin‘
Jans/Catarina Flores. Obviamente, os trechos abaixo estão integrados em um só parágrafo em suas respectivas traduções. Foram alocados em tabela para que o leitor
pudesse associar as passagens. Destacaram-se alguns dos trechos abaixo com as cores
16 Pode-se observar, no endereço eletrônico a seguir, como forma de contraste, trechos da obra Grande
sertão: veredas, de Guimarães Rosa: http://stoa.usp.br/carloshgn/files/-
1/20292/GrandeSertoVeredasGuimaresRosa.pdf
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tradução inevitável
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azul, vermelho e com negrito para que se possa localizar melhor a correspondência
entre eles, já que, diferentemente dos demais trechos, esses foram deslocados no interior do parágrafo, ou sofreram transformações mais visíveis:
Tradução “convencional” Tradução “não convencional”
A assombrosa história do homem do
cavalo branco
O centauro bronco
Certo dia, casaco no ombro, a caminho
de casa, trazia consigo o resultado
módico de sua caça: um pássaro apenas, cujo nome desconhecia, de
plumagem semelhante ao colorido mais vido da seda e do cobre.
Dia um desses, voltava o caminho de
casa, abreviando aperreios do
apoucado de caça. Um bicho a penas, só um só: ave de traço branco no
orlado das asas. Nem nens de passopreto, o já longe na distância
arribaçã.
Ao vê-lo aproximar-se da choupana, o
gato, como sempre, disparou a miar.
O gato, no perceber da aproximação,
desatou um mio, de fito no pego.
Dessa vez, porém, Hauke não
pretendia abrir mão de sua presa –
provavelmente uma alcião, espécie de
martim-pescador – e não acedeu à
cobiça do animal.
Mas no entanto, no aferro da vez
essa, será Naldo desfaria o via de
regra, num de exceção?
– Espere a sua vez! – gritou. – Hoje é
dia do caçador. Amanhã, quem sabe.
Isso aqui não é comida de gato!
Ou será faria o de sempre, o mão
aberta, assaz? Ainda que do somenos
de sua presa–
o em viço dum jacaçu, no tudo indica
do parecer.
– Péra! Cada um na vez! – Naldo, à
berra. – Hoje o meu, manhã o quem
sabe. Isso lá é pra teu bico? –
– Mas o felino foi se aproximando lenta e cuidadosamente. Hauke parou, voltou-se para trás e, segurando firme o
pássaro, olhou bem dentro nos olhos do gato.
Mas o tinhoso vinha no se achegando lento, de sorrateiramente. Naldo, ave na mão, estacou o passo. Virou-se,
olhou no dentro do gato.
O animal estacou o passo e mostrou-lhe as garras. O rapaz parecia não
conhecer assim tão bem o seu amigo.
O bicho parou de um tudo. Mostrou o afinado das garras, esse. O quê: o
rapaz desentendia o conhecer do amigo.
No que deu as costas e quis seguir adiante, sentiu, num puxão intenso,
Num deu de costas, vupt: que trefe. Sentiu no pulso o rebate da presa, as
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tradução inevitável
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arrebatarem-lhe a presa; no mesmo
instante, as garras afiadas do animal rasgaram-lhe fundo a carne.
garras fundo no braço. Era o só que
carecia.
Um furo de predador ferveu-lhe o sangue por todo o corpo.
Num desmenso átimo, o sangue ferveu de um todo, aflorando o predador no
bicho do homem, esse um.
Virou-se de pronto e apanhou o gatuno
pelo cangote. Com o pulso firme, ergueu o potentado diante de si e
estrangulou-o até que, do meio do pelo surrado, os olhos lhe saltassem das órbitas.–
De pronto, cangoteou o larápio. No
renhido do pulso, garroteou o cujo no ar. O angorá espirrou o fora dos olhos
Tomado de tamanha ira, nem
percebera que as garras poderosas das patas traseiras dilaceravam-lhe o braço.
Furioso, o rapaz dessentia o
dilacerado da carne, do próprio em sanguentado.
Ah é? – esbravejou, intensificando ainda mais o arrocho de seus dedos. – Vamos ver quem de nós aguenta mais!
(Storm, 2006a: 22)
– Hem! – Naldo, os grunhidos, forçando o ainda mais do garrote. – Vamo ver o mais quem guenta!
(Storm, 2006b: 24-25)
Reencena-se, em O centauro bronco, uma linguagem que funde certa oralidade regional
com construções linguísticas menos comuns, justamente porque emulam, de maneira singular e diferenciada, a criatividade linguística característica do processo
neologístico e da sintaxe particular de Guimarães Rosa. Nota-se a substituição de
uma ave de hábitos marinhos (alcião) por uma ave nativa da América do Sul
(jacaçu), no trecho em negrito. Contrastando as duas cenas em vermelho, observa-se o seguinte: na cena de A assombrosa..., o movimento narrativo se concentra na
elaboração de um efeito de surpresa assertiva (Hauke não dá a presa, mas o gato, repentinamente, a ataca), já em O centauro bronco, o tradutor construiu um efeito de
surpresa que se dá com um movimento de suspense, traduzido com o
questionamento duplicado (já que também o fizera no trecho anterior), de natureza mais oralizada, em ―Ou será faria o de sempre, o mão aberta, assaz?‖.
Como bem salienta Paulo Henriques Britto (2012: 63), parece haver uma grande probabilidade de que a maioria dos leitores identifique O centauro bronco não como
tradução, mas como uma forma de ―adaptação criativa‖, sobretudo porque o habitus tradutório com qual os leitores se acostumaram é aquele que registra certa
―aderência sintático-semântica‖ em relação aos textos originais, o que não implica, naturalmente, que essa aderência seja destituída de um ponto de vista, isto é, de
uma perspectiva interpretativa que assina a tradução como um evento singular, em uma circunstância histórica particular.
O que chama mais a atenção, porém, em relação à proposta de Cardozo, é a sua reflexão, aliada a uma práxis textual, que sugere uma intervenção no espaço conceitual
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da identidade convencional da tradução, ainda que seja uma práxis, salvo engano,
relativamente incomum nos dias atuais. Sem dúvida, a recriação em O centauro bronco é
mais notável não pelas adequações culturais ao Sertão nordestino, mas pelo emprego
de uma linguagem que emula, na diferença, a tradição literária roseana que, por si só, é uma tradução singular da experiência humana e mística no Sertão. Assim, embora não deixe de ser uma empresa tradutória diferenciada e inovadora, a grande inovação
proposta por Cardozo está, justamente, na possiblidade de entrever sua reencenação literária como forma legítima de tradução, ainda que, para isso, a editora tenha a
classificado como ―não convencional‖.
Há várias questões a serem observadas aqui. Se a versão de O centauro bronco tivesse
sido publicada em volume único, sem qualquer acompanhamento de outra versão
(no caso, dita ―convencional‖), talvez sua proposta de ser vista como tradução, mesmo que não convencional, encontraria mais obstáculos, em vista do senso comum que demarca as expectativas dos leitores quanto ao que imaginam e esperam
que seja uma tradução. Mais relevante ainda é o fato de que Theodor Storm não é um autor que tenha sido difundido, de maneira ampla, em solo brasileiro,
anteriormente ao lançamento dos dois volumes traduzidos, não tendo alcançado a visibilidade que outros autores alemães alcançaram aqui. Ou seja, pouquíssimos
leitores teriam sido expostos à sua obra para que, em seguida, pudessem ter um interesse renovado em conhecer uma tradução ―não convencional‖ que, muito provavelmente, seria vista, no final das contas, apenas como uma recriação estilística
da obra de um autor em grande medida desconhecido. Assim, a possível publicação de O centauro bronco como volume único surtiria um efeito mais reduzido em deslocar
certa convencionalidade acerca da tradução.
Vale destacar o fato de que as duas traduções foram publicadas por uma editora não comercial, como a da UFPR, de natureza mais acadêmica e diretamente ligada a uma universidade pública. Não que uma editora comercial não pudesse se interessar pela
empresa tradutória experimental de Cardozo, mas, certamente, seria um investimento arriscado do ponto de vista comercial, justamente porque ela é um convite a um
questionamento acerca da aceitabilidade dos limites da tradução, isto é, um convite que talvez muitos leitores não estejam dispostos a tentar compreender, especialmente
quando se trata da obra de um autor pouco conhecido do público em geral. Nesse sentido, o efeito de questionamento, proposto por Cardozo, acerca da restrição da identidade da tradução a certa convencionalidade, não seria o mesmo sem o apoio
institucional de sua editora.
E se o volume O centauro bronco tivesse sido publicado como ―adaptação‖? Que efeito
isso teria? Entendemos que haveria uma diferença, embora não necessariamente
sistemática e de efeitos sempre previsíveis, entre o emprego de práticas possivelmente reconhecidas como estratégias de adaptação, mas no espaço discursivo e textual
ofertado, ao público, como ―tradução‖, e o uso do rótulo ―adaptação‖ nas capas de obras oferecidas como tais. No primeiro caso, tem-se, por exemplo, a reescrita feita por
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Ana Maria Machado, da obra Alice in Wonderland, de Lewis Carroll (1997), publicada
pela editora Ática como ―tradução‖. Nela observam-se estratégias de tradução/adaptação de poemas e canções com base no cancioneiro popular brasileiro,
além de outras estratégias que tradutores e leitores poderiam talvez identificar como formas de adaptação. No entanto, depreende-se, da leitura do posfácio da tradutora, que suas opções são formas legítimas de tradução, as quais, segundo ela, não se
confundiriam com as adaptações literárias tipicamente voltadas para o público infantojuvenil, em que se operam reduções da trama, bem como uma simplificação da
linguagem. Ainda que sua tradução seja voltada para o público jovem, é visível o
desejo tanto da editora Ática, quanto da tradutora, de que essa tradução não seja
entendida como ―adaptação‖, até porque não é uma adaptação tipicamente condensada. Esta se refere, em grande medida, ao segundo caso apontado acima: obras literárias publicadas com o rótulo de ―adaptação‖ tendem a ser identificadas,
pelos leitores, em vista de convenções mais ou menos consolidadas, como versões geralmente ―simplificadas‖ de obras literárias, primeiramente escritas em outra língua
ou na própria língua portuguesa, para atender especificamente ao público infantojuvenil. Nesse sentido, a publicação de O centauro bronco como adaptação,
traria, para si, uma forma de identificação muito possivelmente indesejável, já que não é uma versão reduzida ou simplificada da obra original, além de não ter por objetivo
alcançar um público específico, como o infantojuvenil, por exemplo. Embora seja possível argumentar que a reencenação em O centauro bronco lance mão de
estratégias que poderiam ser vistas como formas de adaptação, já que o cenário ficcional é ―transplantado‖ para o Nordeste, com referências culturais e geográficas
brasileiras, incluindo nomes tipicamente brasileiros para renomear os personagens, nos parece que o rótulo de ―adaptação‖, tal como vislumbrado nas práticas editoriais
correntes, além de pressupor, na grande maioria das vezes, a possibilidade de simplificação da linguagem, não sugere uma relação de reciprocidade, baseada em uma
analogia estética, cultural e ideológica entre o contexto ficcional de partida e o contexto ficcional de chegada, o que justamente Cardozo se propõe a fazer com a publicação de O centauro bronco como ―tradução‖ (ainda que ―não convencional‖),
fundamentando-se nos saberes inspirados pela literatura sertanista de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e Graciliano Ramos.
Em outras palavras, a ―adaptação‖, que serve como rótulo na maioria das versões
literárias publicadas no Brasil, tende, até o momento, a dar ensejo a uma necessidade de alcançar um público que busca obras mais acessíveis que tornem sua leitura mais inteligível, palatável e, sobretudo, atraente, especialmente para crianças e jovens. Não
é o que parece acontecer com a tradução ―não convencional‖ de Cardozo: o tradutor não está em busca dessa inteligibilidade em particular, nem, ao que parece, pretendeu
adaptar a realidade do Norte alemão, para a realidade nordestina, para atrair, em primeiro lugar, um público em particular, ou tornar sua versão mais vendável. É
possível entrever, assim, a busca de uma reciprocidade estética entre Der Shimmelreiter e
O centauro bronco, mesmo que pautada em opções que poderiam ser associadas à
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adaptação, como estratégia tradutória, mas que não justificaria, necessariamente, a
sua classificação editorial, obrigatória e inequívoca, sob o rótulo de ―adaptação‖, especialmente nos moldes em que essa classificação tem sido empregada, até agora,
pelo mercado editorial brasileiro. Isso não quer dizer que estejamos ―essencializando‖ o rótulo de adaptação, em oposição, ao de tradução, mas reconhecendo, ao contrário, que são as convenções – e os possíveis conflitos,
contradições e inovações que nelas emergem –, e não supostas ―essências‖, que delimitam, bem como deslocam, historicamente, as fronteiras da identidade
tradutória e de sua relação com a adaptação e outras formas de reescrita.
Nesse ponto, vale ressaltar a dupla relação de identidade que a editora abraçou como possibilidade de divulgação do projeto: tanto o tradutor, quanto a editora, se valem de uma concepção mais convencional de tradução para que seja oferecida uma versão não
convencional. Tanto uma quanto a outra se refratam e se refletem numa relação de espelhamento, para dizer que são ―a mesma coisa‖, que retém uma mesma identidade,
como versões de um mesmo texto original, porém, ao mesmo tempo, sendo identidades diferentes. A versão convencional parece assegurar, perante o público
leitor, a legitimidade da versão não convencional como forma de tradução. Na primeira, o leitor brasileiro pode conhecer melhor o espaço ficcional que circunstancia a trama no Norte da Alemanha (tradução essa que se vale, porém, de referências
linguísticas aclimatadas à língua portuguesa); na segunda versão, entretanto, o brasileiro é convidado a ler essa mesma trama, como objeto de uma experiência
profundamente universal, mas, também, profundamente local, que traduz o outro na relação íntima com o ―mesmo‖ doméstico, numa relação, portanto, de reciprocidade,
mas de hibridismo temático tanto quanto linguageiro. A questão é que, por mais irônico que possa parecer, Cardozo se valeu,
estrategicamente, da própria concepção convencional de tradução, para inscrever, nessa visão, um deslocamento operacional e conceitual que permitiu a ele e à editora
fundamentarem uma leitura mais inovadora de tradução, reinscrevendo, na
―identidade convencional‖, a possibilidade de sua face ―não convencional‖, sem que
isso representasse um gesto necessariamente transgressivo (no sentido de uma ruptura ou absoluta descontinuidade). O tradutor, nesse caso, não se opôs ao imaginário social que circunscreve a identidade da tradução à sua imagem mais
convencional, aparentemente mais ―segura‖ e compatível com as expectativas de muitos leitores, tendo, porém, recorrido a um espaço de reflexão teórico-prática que
permitiu inseminar o inesperado no esperado, o não convencional no convencionado, a diferença na identidade.
5. Considerações finais
Ao considerarmos a diferença como um outro, e a sua complexa existência tanto no processo de sua apropriação/assimilação quanto na busca de uma preservação que, porém, é inevitavelmente transformadora (em variados graus), estamos ressaltando o
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poder que a tradução exerce na formação das relações sociais e culturais e no
fortalecimento de movimentos contrários à concepção de uma verdade que precede as representações. A multiplicidade de identidades com a qual lidamos atualmente
aponta para o questionamento das categorizações definitivas, que alocam indivíduos em grupos demarcados (etnias, gêneros, classes sociais etc.), sem a devida reflexão sobre como essas categorias são construídas e validadas. Tal deslocamento identitário
surgido na pós-modernidade nos permite pensar na sociedade enquanto uma instância marcada pela diferença construída, e, assim, observar criticamente polarizações que
induzem à essencialização das identidades.
Entendemos que a contribuição das traduções de Cardozo para a reflexão sobre a identidade da tradução, não deve ser compreendida como uma forma de ampliação conceitual que autorizaria qualquer tradução, dita ―convencional‖ (e é preciso que se
lembre que até mesmo as traduções ―convencionais‖ operam seus deslocamentos), a ser produzida em condições e características semelhantes. Sua proposta sugere uma
perspectiva interpretativa atenta e criteriosa, que se fundamenta em uma leitura específica de uma obra em particular, o que não necessariamente nos conduz a uma
aplicação generalizada, e sem fundamentação, de suas estratégias a qualquer texto literário. Sua grande contribuição, portanto, é mostrar que a tradução poderia atuar de modo diferente de sua prática mais convencional, dentro de certos critérios, e de
acordo, também, com certas ―regras do jogo‖.
O deslocamento das fronteiras que demarcam as identidades não deve implicar o perigo do relativismo de um ―vale-tudo‖, até porque, para se mudarem as regras do
jogo, é preciso reconhecer que elas existem. Tal ―vale-tudo‖ sequer poderia inspirar uma reflexão crítica, minimamente responsável, sobre a possibilidade de se questionar ou mesmo renovar nossas convenções. Mais significativamente ainda, refletir sobre a
identidade e o amplo espectro de relações que ela estabelece com a tradução não significa romper, necessariamente, com as regras do jogo, mas, fundamentalmente,
saber jogar de uma maneira diferente.
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