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Pedra & Cal n.º 35 Julho . Agosto . Setembro 2007 19

NOTAS HISTÓRICASTema de Capa

INTRODUÇÃOHá muito que a imagem tradicionaldos castelos portugueses é marcadapela simplicidade das suas formasconstruídas, pelo despojamento doseu espaço interior ou pela austeri-dade do seu aspecto exclusivamentepétreo. Para tal contribuiu, em boamedida, a ampla campanha deobras empreendida pela DGEMN,norteada sobretudo pelo princípioideológico de afirmar estas fortifi-cações como uma evocação dos tem-pos heróicos em que se forjava a na-cionalidade na luta contra caste-lhanos ou muçulmanos, num ambi-ente de severidade ascética. É aqueleúltimo arquétipo que aqui preten-demos abordar, não com o intuitode classificação ou estudo, mas tãosó reflectir sobre a cronologia de umtipo de revestimento que subsisteem alguns destes castelos.Efectivamente, sabemos que emmuitas daquelas intervenções foramremovidos revestimentos existentesnos panos de muralha, tidos comoresultantes da instalação de habita-ções no interior destes recintos, apósa perda da sua função militar inicial.Em certos casos, esta atribuição eracorrecta, observando-se diversas ca-madas originárias de uma urbaniza-ção mais ou menos contemporânea,mas noutros estar-se-ia antes a eli-minar componentes com origem nafundação ou, mais habitualmente,em reformas empreendidas nos fi-nais da Idade Média ou nos iníciosda Idade Moderna. Ressalve-se queeste tipo de "limpezas" teve continui-dade até praticamente aos nossosdias, só passando mais recentemente

Revestimentos em castelos portugueses

Séculos XV e XVI

Fig. 1 � Interior da alcáçova de Moura, vendo-se à direita da porta da vila o revestimento e à esquerda asua ausência, determinada por obras de restauro

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Fig. 2 � Torre sudeste do castelo de Portel coberta de revestimento, junto à torre de menagem (1966)

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a merecer outros cuidados, nomea-damente por via da arqueologia daarquitectura.

REVESTIMENTOS

EM CASTELOS PORTUGUESES

São numerosos os casos de fortifi-cações em que se observam vestí-gios, por vezes muito escassos e ero-didos, de um tipo de revestimentocomposto por camada de argamassacom grande percentagem de cal,deixando a descoberto motivo circu-lar ou quadrangular. Esta cobertura,habitualmente de cor branca, surgeainda com tom mais amarelado,provavelmente pela variação dascomponentes de fabrico da arga-massa, talvez também pelo grau de

exposição aos agentes erosivos. Tra-ta-se de um tipo de revestimentoque cobriu as superfícies exterior einterior das muralhas e torres de al-guns castelos, em determinado mo-mento da sua história, escondendopor isso a sua alvenaria constituti-va1. Desconhecendo-se a sua funcio-nalidade, foi atribuído, no caso deMoura, a uma decoração reveladorada influência da arquitectura militaritaliana em Portugal2. De facto, este é um dos melhoresexemplos de permanência deste tipode revestimento em monumentosmilitares portugueses, encontrando--se hoje nas duas torres quadran-gulares que limitam o muro divisorentre a alcáçova e a vila fortificada,

no segmento Sul deste muro e, a Esteda cerca da vila, na denominadatorre da Salúquia, de formato ultra--circular. Refira-se que, em 1938,este subsistia ainda em toda aquelamuralha e torres divisórias, bem co-mo noutra torre semi-circular a Su-deste, denominada Torre do Reló-gio; o seu desaparecimento relacio-na-se com o tipo de campanhas de"limpeza" a que fizemos referência,quando foram demolidas tambémmuitas habitações3. A datação desterevestimento é atribuída ao reinadode D. Manuel I, época da últimacampanha de obras neste espaço,mais precisamente aos trabalhosrealizados cerca de 1510 sob di-recção de Francisco de Arruda, mes-tre que se notabilizou na fortificaçãode Azamor em Marrocos, ou na Tor-re de Belém no Reino, expoentes daarquitectura militar deste período4.Nesta jornada foram igualmente in-tervencionados os castelos de Mou-rão e Portel, entregues na mesma em-preitada a Arruda, realizando-se en-tão obras em Mértola, Serpa e Nou-dar5. Preservam-se em alguns destescastelos vestígios deste mesmo re-vestimento: em Mourão, confinado afragmentos do pano de muralhamais abrigados dos agentes erosi-vos; em Portel, sobretudo na torreultra-semicircular sudeste do caste-lo, cobrindo a superfície externa; emSerpa na face exterior do lanço Esteda alcáçova. Com importante obrano reinado de D. João II, prolongan-do-se para o seu sucessor, cite-seainda o caso de Elvas, onde em 1941persistiam estes motivos na torre demenagem e outros sectores, restan-do hoje pequenos segmentos na faceinterior da muralha. Muitos outrosexemplos poderiam citar-se, aliástambém no Norte do país, defortificações que, fortemente inter-vencionadas nos finais de quatrocen-tos ou inícios da centúria seguinte,

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conservam este tipo de revestimen-to, indiciando-se assim uma dataçãoprovisória. A chave para a confir-mação da antiguidade deste ele-mento encontrar-se-á, porém, emMarrocos.

REVESTIMENTOS EMFORTIFICAÇÕES MARROQUINASO Norte de África foi o principalpalco da expansão portuguesa atéao reinado de D. Manuel I, o únicoonde participaram pessoalmente osmonarcas e a alta fidalguia e onde aCoroa empregou os maiores recur-sos. Tal facto, aliado a um perma-nente quotidiano de guerra e a umaconquista de cariz urbana e costeira,determinou que fosse esta a regiãoonde a realeza mais investiu em for-tificações. Assim, praticamente todasas povoações ocupadas pelos portu-gueses no Magreb conservam vastose complexos sistemas defensivos,desenvolvidos entre o século XV emeados do XVI. Tal é o caso de Ar-zila, onde sobretudo após o cerco dorei de Fez de 1508 se desenvolveuum amplo programa de renovação

das suas estruturas militares, sob omando do então mestre de obras doReino, o francês Diogo Boytac, autordo mosteiro dos Jerónimos em Lis-boa. Estas obras implicaram altera-ções muito significativas no disposi-tivo existente, tanto na cava e terrei-ro contíguo, como na cerca e casteloda vila6.Foi precisamente em Arzila que vie-mos a detectar vestígios do mesmotipo de revestimento que havíamosidentificado nos referidos castelosda fronteira portuguesa. Conservam--se trechos deste, formado por arga-massa de tom bege, por vezes escu-recida, com o mesmo motivo cir-cular, nas seguintes secções do pe-rímetro defensivo: torre quadrangu-lar a Noroeste do castelo, entre oFig. 3 � Torre de menagem do castelo de Elvas vista de Oeste, com escassos vestígios do revestimento (1941)

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Fig. 4 � Torre Noroestedo castelo de Arzila,entre o baluarte da Praiae a porta da Ribeira

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baluarte da Praia e a porta da Ri-beira; pano exterior Sul deste recin-to e da vila, entre os baluartes deSanta Cruz e da Vila; já muito erodi-do, no troço de muralha da vila en-tre os baluartes de Tambalalão eAntónio da Fonseca. Note-se que aaplicação deste revestimento subsis-te nas muralhas, tanto na zona supe-rior dos adarves, como na base emtalude, embora neste caso logica-mente mais desgastados.Não nos parece crível que este re-vestimento possa datar de época an-terior à campanha de 1508-09, nemmesmo às acções comprovadamentelevadas a cabo em Arzila em 1498,dada a amplitude dos trabalhos de-senvolvidos sob ordens de Boytac.Fica, pois, a hipótese deste ter sidoaplicado em época posterior, embo-ra no máximo até 1550, quando avila foi abandonada pelos portugue-ses, não sendo convincente que o te-nham feito na sua fugaz reocupaçãode 1576-89.Mas os exemplos marroquinos deutilização deste revestimento não seconfinaram a esta praça, embora só

finais do século XV e primeira me-tade da centúria seguinte, são o ele-mento fundamental de datação paraos castelos nacionais, dada a inques-tionável semelhança do revestimen-to aplicado.Assim, desejamos nesta breve notater dado algum contributo para re-pensar a imagem dos dispositivosmilitares portugueses desta época8,esperando que as futuras interven-ções de conservação tenham emconta e valorizem este elemento.

aqui seja possível observá-los niti-damente. O castelo e a couraça daarruinada Alcácer Ceguer, objectode significativa renovação manueli-na, mostram ainda ténues indícios.Os potentes baluartes de São Cristó-vão e do Raio em Azamor, obras dojá referido Francisco de Arruda e doseu irmão Diogo, desenvolvidas apartir de 1514, evidenciavam-no ain-da em fotografias recentes7, tendo oseu desaparecimento ficado a de-ver-se à cobertura completa com ar-gamassa, realizada recentemente.Em todo o caso, os elementos dispo-níveis apontam com solidez para acronologia anteriormente proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAISLonge de pretendermos apresentarteses sobre este tema, julgamos terreunido alguns elementos que pro-vam a antiguidade de um certo tipode revestimento em fortificaçõesportuguesas. As limitadas balizascronológicas de ocupação das men-cionadas praças marroquinas ondeeste foi aplicado, passíveis ainda deredução às obras aqui realizadas em

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) O revestimento de argamassa aqui descrito não seconfunde com o que foi detectado no paço fortifica-do de Evoramonte, e que justificou certamente orestauro dos anos 80, pois este era constituído poruma camada uniforme de cal cinzenta cimentícia,de características bem diferentes da que aqui abor-damos, não se verificando também o motivo circu-lar ou quadrangular referido (Evoramonte: a forta-leza, Lisboa, IPPC, 1989, p. 7).(2) MACIAS, Santiago (1993) � "Moura na BaixaIdade Média: Elementos para um estudo Históricoe Arqueológico", in Arqueologia Medieval, n.º 2. Mér-tola, Campo Arqueológico de Mértola / EdiçõesAfrontamento, p. 127-157.(3) Conforme os processos na DGEMN, DSID, 59-60e 129-132., o revestimento da torre de menagemparece resultar de um restauro contemporâneo.(4) MOREIRA, Rafael (1999) � "A época manuelina".In História das Fortificações Portuguesas no Mundo.Lisboa, Alfa, p. 91-142; DIAS, Pedro (1988) � Aarquitectura manuelina. Porto, Civilização, p. 234 e ss.(5) Vejam-se as cartas ao rei de Nuno Velho, encar-regue de visitar as obras da comarca do Alentejo, de20 de Fevereiro e 14 de Março de 1510, publicadasem VITERBO, Sousa (1988) � Dicionário Histórico eDocumental dos Arquitectos, Engenheiros e Cons-trutores Portugueses. Lisboa, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, vol. I, p. 55-58.(6) MOREIRA, Rafael (2001) � "História / Histoire".In Arzila Torre de Menagem / Le Donjon d'Asilah.Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.(7) MOREIRA, Rafael (1999) � "A época manuelina".In op. Cit., p. 135-36.(8) No que respeita ao Oriente fizemo-lo em "A fortifi-cação manuelina de Cananor". In Murphy. Revista deHistória e Teoria da Arquitectura e do Urbanismo, n.º 1.Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,Março 2006, p. 164-79, estando no prelo As PrimeirasFortalezas do Estado da Índia e a Arquitectura Militar noReinado de D. Manuel I. Lisboa, Centro de Históriade Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa.

ANDRÉ TEIXEIRA,Arqueólogo, CHAM � Centro de Históriade Além-MarUniversidade Nova de Lisboa

Fig. 5 � Muralha Sul do castelo e vila de Arzila, vendo-se à esquerda o baluarte da Vila

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