Post on 21-Jan-2016
Lilia Blima Schraiber
O médico e seu trabalho:
limites da liberdade
Editora Hucitec
São Paulo, 1993
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu
lá? O senhor mordeu aquilo? (...) O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou
contar.
Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja
que o senhor uma idéia se faça. (...) Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro
retentiva com espelho cem-dobro de lumes, graúdo e miúdo, guardo –
mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, (...)
O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e,
escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse
eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um
está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo:
o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia.
João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Sumário
Prefácio 13
1 Construindo um estudo – primeira considerações 21
2 O cotidiano profissional – a história em vidas de trabalho 41
Ser medido, fazer-se médico 49
Os referenciais da liberdade 79
A liberdade refeita 97
Sinal dos tempos 123
3 Profissão médica: incorporação de tecnologia
e a superação da medicina liberal no Brasil 131
4 Liberdade, o pressuposto do trabalho 147
A autonomia profissional 149
Autonomia: uma questão para os médicos 167
5 Representação e prática: a construção da autonomia 179
As bases da autonomia no modelo liberal 182
A medida tecnológica e a reconstituição da autonomia 195
A nova liberdade e o pensamento médico 212
6 Últimas reflexões 221
Bibliografia 223
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1993. 229 páginas.
Prefácio - 13 -
Prefácio
Apresentar um estudo pode parecer tarefa simples ou mesmo decorrência de
sua execução. Parece suficiente que se encontre uma vertente narrativa e se inicie
o relato. Todavia, demarcar um começo, escolhendo uma temática que aproxime
o leitor daquele que escreve não é tarefa fácil: quase sempre uma apresentação se
escreve ao final. Final duas vezes posto: o que conclui a construção do estudo
pretendido e o que, por sua vez, sistematiza em texto o estudo já concluído.
Assim, se a narrativa requer um ponto de partida, para o narrador ele já não é mai
o seu. O começo agora é o ponto a que chegou após toda a caminhada e, no
percurso, as travessias sempre transformam os começos.
Foi essa dificuldade que me levou a relatar, primeiro, os passos da
formulação deste estudo. A trajetória foi a de construção de uma pesquisa,
implicando cuidados ainda maiores nesta apresentação, pois a Ciência não
conforma um percurso “natural” de estudo, como faz crer a idéia de autonomia de
sua prática. Apenas aparentemente, uma vez escolhido seu objeto, o
conhecimento é produto exclusivo da capacidade laboriosa do cientista diante da
ciência disponível, capacidade de operá-la tecnicamente com base em seu próprio
domínio intelectual sobre o campo. A produção do conhecimento articula-se, na
realidade, com todos os outros componentes do trabalho científico, nas condições
concretas em que este se efetiva socialmente: os recursos materiais e humanos; a
facilidade de acesso aos objetos eleitos; a cooperação científica de outros
trabalhos complementares, e assim por diante. Além disso, o próprio controle na
dimensão intelectual é relativo. Quando se circunscreve um objeto de estudo, a
dinamicidade do real exige continuamente do pesquisador redefinições de rota:
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um problema parcialmente resolvido, já coloca outros novos em pauta; questões, a
cada questão tratada.
Em interação com seu objeto, as escolhas não revelam facilmente a linha de
percurso, pois muitas vezes os movimentos parecem apenas desvios. São desvios,
mas que tecem trajetórias, por questões postas, abandonadas, respostas, em
história de travessia. A travessia é por isso mesmo nessa história de sujeitos – no
limite, no recorte com que o pesquisador marca o real, em opções de
conhecimento.
Mas é também descaminho: na travessia a partida se enriquece, se torna mais
repleta de matizes, ganha novos e muitos mais sentidos. Problemáticas sempre re-
nascem.
Há, porém, dois percursos a relatar. Um primeiro, que se dá na aparência das
trajetórias; narra os caminhos adotados ao longo da pesquisa. O outro, que lha dá a
consciência das escolhas e restabelece os nexos entre as opções adotadas, por isso
conta e explica os recortes e os limites com que se constrói o objeto e seu estudo.
Mas este último, somente o texto em seu todo pode dar conta de historiar.
Iniciemos, pois, pelas trajetórias mais imediatamente evidenciáveis.
O presente estudo firmou-se em uma oportunidade de pesquisa junto a um
objeto amplo de trabalho, composto por uma investigação central e vário
subprojetos individuais, em seu todo disposto na forma de um estudo acerca das
relações entre a tecnologia e a organização social da prática médica no país. O
enfoque teórico-metodológico adotado viria permitir aos subprojetos
diversificações de temáticas empíricas, muito embora tivesse por tema aglutinador
uma aproximação da tecnologia por vias dos equipamentos e instrumentos em uso
nas instituições hospitalares do município de São Paulo. Os subprojetos
significaram, assim, ampliações em distintas direções complementares de estudo
acerca das questões tecnológicas. O meu próprio viria a se inscrever como uma
dessas modalidades específicas, fruto de interesse formado na trajetória pessoal de
trabalho e formação profissional: mestrado sobre educação médica,
especializações em administração de serviços de saúde e em planejamento, e
participação na elaboração e implantação de programas de prática sanitária, no
Centro de Saúde Escola “Samuel B. Pessoa” (convênio Secretaria de Estado da
Saúde/Universidades de São Paulo).
Foi justamente a diversidade desse conjunto de experiências que concorreu
para a proposição deste particular estudo acerca da tecnologia, mais
especificamente a proposição de abordar o trabalho médico enquanto
principalmente tecnologia. Da temática da Educação Médica surgiu seu interesse
pelo estudo desse trabalho, sobretudo relacionado à vertente da pro-
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dução/re-produção das concepções formuladas a seu próprio respeito.
Compreendi que por meio delas os médicos constroem um modo de pensar sua
prática clínica, projetando-a e buscando realizá-las sob determinadas forma de
atual. Seu estudo me permitiria, assim, alcançar não só o projeto tecnológico dos
médicos,senão também as bases de suas formulação. E este projeto aderiu de tal
modo à produção do cuidado autônomo e individualizado, que terminou por
mitificá-la como modalidade símbolo da boa e adequada assistência. Creio que a
expressão mais clara disso e o valor dado ao trabalho do consultório
particular,fazendo com que este modo de exercer a prática pareça ser, para a
medicina, a mais correta tecnologia de operação.
Ao mesmo tempo, através da participação em um serviço sanitário tal como
o Centro de Saúde-Escola, pude experimentar novas situações do trabalho em
saúde. Foram situações emergentes de uma prática clínica – com esta correlata
expectativa de ampla autonomia de cada médico individual – cujo
exercício,porém, se dava em um trabalho coletivo tão especificamente estruturado
como a prática dos programas de saúde, proposição de trabalho originária dos
serviços de assistência da rede institucional própria da Saúde Pública. E fosse por
minha formação acadêmica, fosse pela experiência profissional no trabalho
administrativo, não pude deixar de refletir sobre o significado desta nova vivência
para a organização dos serviços, reflexão cuja relevância se foi tornando cada vez
mais clara à medida que foi ocorrendo uma progressiva orientação dos
equipamentos particulares da saúde pública para prestarem também serviços de
assistência médica individual, o que introduziu a integração das ações e trabalhos
em saúde como um problemas concreto.
Evidenciou-se, então, um leque novo de questões vinculadas à
complementaridade do trabalho: a coordenação e composição do trabalho
coletivo, o gerenciamento de recursos e a integração das diversas práticas
parcelares. Simultaneamente essas são também questões da interdependência dos
trabalhadores, em que surgem problemáticas derivadas da adequação dos agentes
de trabalho à organização dos serviços e suas regras de desempenho produtivo. Da
perspectiva do trabalho clínico, por exemplo, as normas e regulamentações de
operações diagnósticas e terapêuticas da programação de saúde pública, ou ainda
as predefinições de inclusões e altas de pacientes em modalidade de cuidados
específicos, assumem para muitos o caráter de reguladores “externos”, mas
“interferentes” do que coadjuvantes. Nesse sentido, categorizações prévias que
delimitam no pacientes as condições de doença, cura e saúde, tal como as que se
encontram nos programas de saúde e nas quais o médico poderia apoiar-se,
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acabam por serem vistas como contrariando o princípio do exercício profissional
autônomo e independente. E isso levaria, como também pude constatar, a variadas
estratégias de recusa, sobretudo no “meio médico”,em se trabalhar com tais
princípios de organização dos serviços.
A coexistência, portanto, de um e de outro aspecto – o clínico e o
programático – nas atribuições assistenciais de serviços que buscam a integração
dos trabalhos não é simples, mas repleta de fatores em contraposição. E no interior
destes, instigava-me a resistência do profissional médico em aderir às normas de
desempenho requeridas por esta prática programáticas que se gestava na saúde
pública, ao mesmo tempo em que me perguntava como estaria respondendo este
mesmo profissional a outras tantas normas disciplinares que, afinal, já regulavam
o trabalho médico, não nesta forma de produção da assistência (a da saúde
pública), mas no trabalho coletivo que necessariamente advém da progressiva
especialização na medicina. Supus, portanto, que mesmo considerando só o
trabalho dos médicos, a composição em seu interior dos trabalhos parcelares em
um trabalho coletivo, conformando práticas interdependentes e solidárias, não
obstante especializadas, tampouco poderia constituir tarefa fácil., necessariamente
repercutindo nos cuidados médicos prestados.
Além disso, perpassando esse conjunto de questões, conseqüência dos
princípios que regem a organização do trabalho particularmente no Centro de
Saúde Escola considerado, envolvi-me com outra ordem de preocupações: uma
assistência que busca articular-se não apenas ao doente individualizado, mas ao
coletivo-social, por meio de uma intervenção sanitária formulada, portanto, de
uma perspectiva epidemiológica. Esta,por sua vez, objetiva refletir criticamente
sobre a própria epidemiologia como instrumento adequado para organizar os
serviços, buscando, assim, ao mesmo tempo, pesquisar novas formas de prática
programática e de organização do trabalho coletivo.
A vivência de toda a gama de questões acima arroladas vem sendo objeto de
reflexão do conjunto dos trabalhadores do Centro de Saúde Escola, como parte de
um cotidiano de trabalho e como trabalho coletivo de reflexão. Foi d força desse
coletivo de trabalhadores, constituído de agentes de várias qualificações técnicas,
como também foi da persistência com que esses agentes vêm tentando encontrar
formas de superação dos impasses no trabalho cooperativo, que nasceu o meu
interesse particular de examinar questões similares, ainda que para além do nosso
cotidiano comum e particularmente referidas á articulação entre a autonomia dos
médicos e o trabalho médico coletivizado.
Por isso construí um plano de pesquisa que, permitindo mina inserção
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no projeto global de estudo sobre a tecnologia e a organização social da medicina,
buscou articular o exercício profissional dos médicos com a tecnologia
contemporânea, relevando a dimensão material de equipamentos e instrumentos
vinculada è especialização do trabalho médico. Assim sendo, dirigi apesquisa para
o estudo específico das relações entre a autonomia profissional dos médicos e a
progressiva presença de uma prática tecnologizada, isto é, trabalho especializado e
incorporador de equipamentos materiais, a que designei por medicina tecnológica.
Cedo percebi que um estudo da autonomia profissional que permitisse
aquilatar melhor a força dessa expectativa para o trabalho até os dias atuais
exigiria um exame de suas origens: a busca dos nexos históricos de estruturação
da prática médica em que a autonomia emerge como forma de inserção peculiar e
adequada do médico em seu trabalho. Por isso estudei as características do
modelo liberal clássico da medicina e a transformação dessa prática na
constituição de uma “medicina tecnológica”, na qual aquela modalidade de
inserção do trabalhador se reconstrói.
Percorri esta passagem valendo-me da memória daqueles que a percorreram,
recuperando seus caminhos por depoimentos pessoais de médicos que viveram o
progressivo estabelecimento da prática tecnologizada e operaram em suas próprias
situações de trabalho reordenações do exercício autônomo-independente (liberal).
Não obstante trata-se de questões postas para um coletivo de trabalho e sobre
o trabalho coletivo, este estudo teria que ser,em grande medida, tarefa de um só: a
opção metodológica da investigação desses personagens funda-se em técnica de
difícil repartição entre muitos pesquisadores. Como trabalho de observação e
coleta de material empírico foi, pois, atividade individual. Porém, como trabalho
de reflexão, como questão de conhecimento, foi produto de todos os colegas de
trabalho. E ainda que também a tarefa da sistematização e construção do texto
siga sendo sempre solitária – sendo, portanto, de exclusiva responsabilidade de
quem o faz –, no plano das mediações da produção do trabalho científico, o
produto final derivou do trabalho de muitos. E a esses participantes todos, eu
quero agradecer:
- aos médicos entrevistados, que compreenderam a importância de suas
participações, e que me relataram com grande disposição suas próprias vidas,
fazendo, desta, a grata experiência de uma atividade de pesquisa tão viva e
humana quanto o vivido que escolhi para estudar;
- a meu pai, médico dos anos 40, que soube enfrentar a difícil tarefa de me
auxiliar neste estudo, explicando-me sua própria prática, sua história de trabalho e
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de vida, e seu tempo em transformação; à minha mãe e minha irmã, que foram
decididas companheiras de todas as horas;
- ao José Ricardo, amor,amigo e companheiro intelectual;
- à Maria Inês, “comadre”; à Márcia Nery e à Kátia M. silva;
- aos meus alunos, pelas sugestões em criteriosas leituras, e aos colegas de
trabalho do Centro de Saúde e do Departamento de Medicina preventiva da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em especial ao Professor
Guilherme Rodrigues da Silva;
- a Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, pela ampla e contínua contribuição ao
longo desses vários anos de convivência e trabalho conjunto;
- à Professora Maria Cecília Ferro Donnangelo, que me ensinou a olhar e
buscar formas de entender a medicina e os médicos;
- à Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP; à FINEP e ao CNPq pelos
recursos que me concederam.
Eu tive neste trabalho “braços direitos”, que foram mais importantes do que
imaginam; Ana Sílvia, Ângela, Arnaldo, Elen, Diane, Dulce, Marina e Mary. Tive
em particular uma “segunda mão direita”, mais que perfeita: jornalista por
profissão, transcritor, editor, datilógrafo, secretário, supervisor e revisor, por obra
do destino, da amizade e do seu grande companheirismo; “palpiteiro” por ofício,
persistente defensor da idéia de que eu deveria buscar “o terceiro sentido” da
linguagem, por onde tomei gosto de indagar sobre “o que estará por trás daquilo
que não está pela frente”, Carlos Augusto Luchesi, Guss, esse é meu
agradecimento especial pra você.
Uma última palavra para o leitor: como disse, o presente texto é produto de
uma pesquisa, cuja publicação original deu-se na forma de tese de doutoramento1.
E na qualidade de pesquisa, utilizei como forma mais adequada de aproximação
da autonomia profissional, uma abordagem teórico-metodológica e uma técnica
de investigação empírica que exigiam, ambas, clara explicitação das filiações
filosófico-epistemológicas que informavam quer a construção da autonomia como
questão para o conhecimento científico, que a modalidade metodológica em que
se pautava o trabalho de campo. Ocupei-me, pois, na referida publicação, em
detalhar razoavelmente tais abordagens, o que oferecia vantagens também pelo
fato de que tanto a aproximação eleita quanto a investigação empírica baseada
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em relatos por depoimentos pessoais eram pouco freqüentes na Saúde Coletiva e
na Medicina Social.
Isto significou uma ampla exposição, dos passos de formulação do estudo,
esclarecendo o sentido que atribuía a cada um deles na produção científica: da
escolha do problema à sua elaboração enquanto uma dada problemática,
explicitando-o e extraindo certas “hipóteses” de sua forma de existência no real,
com trabalho até certo ponto profundo de todo o referencial teórico na construção
do objeto de estudo. Ademais, todas estas explicitações demandavam referenciar
de modo claro minha posição política relativa às questões da Medicina e da Saúde
Coletiva como um campo de conhecimento, bem como relativa às minhas
decisões quanto ao modo apropriado de trabalhá-las cientificamente; ou, em
outros termos, tratava-se de esclarecer a perspectiva filosófica e o compromisso
político-ideológico embutidos na teoria e na linha metodológica do quadro
científico por mim adotado.
A edição da tese na forma de livro obriga a uma revisão do texto acadêmico,
por isso restringi certas formulações e busquei tornar mais claras algumas
proposições teóricas, cuja elaboração inicialmente muito sintética tornava o texto
de difícil leitura, o que é bastante comum de ocorrer com a linguagem mais
abstrata da teoria.
Não obstante, julguei que mutilaria substancialmente o texto se lhe retirasse
as reflexões introdutórias de natureza metodológica, assim como deixaria com
isso de explicitar também a própria composição do texto, que implica determinada
concepção entre o teórico e o empírico, o que considerei como “hipóteses” e
“prova” científicas.
Arrisco, assim, a que o leitor mais motivado para os fatos empíricos, que
usualmente sugerem reflexões bastante pragmáticas, possa achar cansativo o
trabalho de leitura nesses momentos iniciais e seja até tentado a abandoná-lo.
Nesse caso, sugiro que ao invés de desistir do livro, desista da introdução,
retomando-a ao final, com o que, talvez, à guisa de conclusão, possa tomar essas
primeiras considerações como reflexão que ilumine seu percurso anterior de
leitura, podendo assim oferecer subsídios para outra discussão, à qual remete
apenas de forma mediatizada: a relação entre a teoria e a prática.
1 Lilia B. Schraiber. Medicina liberal e incorporação de tecnologia: as
transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo,
São Paulo, FMUSP, 1988, 2 vols
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1
Construindo um estudo – primeiras considerações
A medicina é a matéria deste estudo e dela trataremos na dimensão em que é
processo de trabalho. Não um processo qualquer, mas referido, enquanto prática da
sociedade, a uma dada estrutura social e a uma formação social concreta. Neste caso,
equivale a circunscrever o estudo à prática médica tal como organizada na sociedade
brasileira.
Situar o estudo neste plano, por outro lado, significa que partindo de situações
críticas que devemos conhecer, iremos tomá-las simultaneamente enquanto situações
definidas e participantes de estruturação mais geral da sociedade, porque são situações
que antes de tudo pertencem a certo modo de vida.
Por isso, o que vemos ocorrer na medicina contemporânea será sempre
compreendido para além da aparência imediata dos acontecimentos, permitindo que se
veja através dos “fatos médicos” situações de vida social. Uma sociedade cuja vida se
constrói no modo capitalista de realizá-la e ademais um modo peculiar, em função da
inserção tardia da sociedade brasileira nesta mesma ordem internacional.
Assim, recordaremos da prática médica, individualizando, o problema eleito
para o estudo – o trabalhador médico e a posição que ocupa no processo de trabalho.
Este problema que examinaremos é sempre parte de um plural, de uma totalidade: não
se deve tomá-lo por situação única, independente ou autônoma. De outro lado, porém,
não se deve tampouco buscar nele somente o similar, o que contém, enquanto parte, de
generalizável, como se não fosse ao mesmo tempo realidade singular.
Toda dimensão, toda parte que separamos da totalidade do real
para conhecer é sempre determinada e determinante: situação definida por, e
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participante de, determinações “extremas” a ela e consubstanciais por referência a suas
propriedades “internas”. São, portanto, situações construídas pelo social e do qual
participam, construindo-o também.
Estas e outras tantas razões de ordem metodológica obrigaram-nos a optar por
uma forma de tratamento da medicina (trabalho médico) e da posição de autonomia do
médico no trabalho (objeto de estudo) que supõe uma dada concepção de realidade e
de conhecimento, em que repousa também o modo como dispusemos este estudo no
presente texto. Que não seja surpreendente, pois, não procedermos a uma descrição
“pura”, não trabalhada teoricamente”, da organização dos serviços médicos no Brasil,
para só então produzirmos sua análise.
É comum que a pesquisa científica se pretenda desta maneira e seja publicada
como busca inicial deste tipo de descrição, com a finalidade de destacar certo conjunto
de problemas, para “apenas em seguida” tratá-los sob a forma de uma hipótese
verificável mediante a investigação empírica. Caso assim o fizéssemos nossa
“hipótese”, termos não muito adequado a este estudo, seria a de que a dinâmica de
incorporação de tecnologia é uma dinâmica de preservação da autonomia dos médicos
no trabalho, autonomia essa que surge como característica principal de certa forma de
exercício da profissão, a medicina liberal.
Contudo, é evidente que esta afirmação é já resultado de algumas de nossas
reflexões e não seu ponto de partida. Ela resgata sentidos do empírico que não
transparecem imediatamente de sua aparência. O que afirmamos é que a incorporação
de tecnologia não é só o que vemos ser na primeira percepção, qual seja, a inovação de
técnicas ou a criação de equipamentos, mas, pelo menos da perspectiva de nossas
questões, é também um movimento de preservar o exercício autônomo da prática
médica. Também a autonomia não se reduz apenas à liberdade de prática, tal com
o parece ser, senão uma liberdade cujas especificações podem qualificá-la
sob diversos compromissos constrangedores e conformadores do desempenho
profissional.
Por isso, situar o estudo no plano do concreto irá significar para nós o
movimento intelectual que, baseado nessa percepção primeira (o imediato dado),
reconstrua-a reflexivamente em níveis cada vez mais abstratos, permitindo que
evidenciemos muitas outras conexões e significados da situação concreta, invisíveis ao
olhar inicial mas conhecidos pelo olhar informado por este concreto pensado1. Nosso
primeiro princípio, portanto, será o de que conhecer é ultrapassar o imediato dado.
Um segundo princípio que exatamente por decorrência do anterior nos rege é o
de que é sempre relativo o conhecimento que se produz. Relativo
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à opção de ultrapassar o imediato dado e relativo ao modo e direção pelos quais o
fazemos. Estas opções são a própria contextualização histórica e social do
conhecimento, e o conhecimento humano não tem significado fora dessa
contextualização: conhecer é um dos pressupostos necessários ao exercício da vida
coletiva, uma necessidade social, algo que se produz para ser socializado e ser forma
de socialização.
Por terceiro princípio, fruto dos anteriores, entendemos que conhecer é sempre
um movimento; um processo em que cada produto realizado é sempre conhecimento
transitório, um final temporário e um conteúdo temporariamente válido: conhecimento
verdadeiro e absoluto em certo sentido, não em outro, em que é relativo e como
absoluto, erro. Contextualizado, isto é, tomado em um sentido, nele é verdadeiro e
absoluto, até que outro sentido o desloque em direção ao pólo oposto.
Contextualizar o conhecimento é especificá-lo por referência ao sujeito social
nas condições concretas do trabalho científico e por referência às delimitações que o
tempo histórico marca, em termos de sua dada gama de possíveis. Assim sendo, se
temos concepções de mundo diversas, qualificamos a realidade diferentemente para o
conhecimento, pois as concepções informam percepções distintas sobre o real,
definindo quais delas são problemas e nossas opções por conhecê-los. Demarcam o
conhecimento a produzir e o sentido em que iremos produzi-lo2. Opções teóricas e
conceituais não são livres, mas conformadas em contextos de produção da ciência,
pois as escolhas epistemológicas se definem segundo a posição de seus produtores na
própria estrutura da prática científica enquanto trabalho social3. Em síntese, a
contextualização histórica do conhecimento impõe não apenas limitantes técnicos de
operação, mas no sentido da vida social global delimita para o conhecimento científico
quais as questões que são pertinentes. A cada época histórica o conhecimento
científico é limitado em medida e atributo: qual a questão e quanto dela se conhece;
mas à época o conhecimento tem “incontestável verdade relativa”4.
Sob que limites produziremos o conhecimento e referido a que sentidos da
realidade, são posições, portanto, que devemos explicitar.
Tomemos inicialmente o fato de que a realidade concreta suscita o
conhecimento apenas quando na aparência imediata dos fenômenos lhes conferimos
características de problema. E reconhecer um problema já significa um primeiro
processamento do empírico, seu primeiro entendimento, conhecendo aquela parte do
real (fenômeno ou coisa) como necessidade de conhecimento. Ao mesmo tempo a
reconhecemos como parte, isto é, fenômeno ou coisa que se pode destacar da
totalidade do real e ser apropriada reflexivamente.
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Nesta reflexão o primeiro movimento é a busca de captar a dinâmica do real que
constitui este seu segmento enquanto tal, parte singular. E conforme acima referimos,
trata-se da reflexão pela qual apreenderemos sua individualização como singularidade,
o que curiosamente se dá quando identificamos os diversos nexos que a articulam à
sua totalidade. Pelos sentidos das articulações, encontraremos seu significado próprio,
como parte.
Este proceder tem por produto a superação da aparência em nova estruturação de
objeto especificado: na aparência de um, vários sentidos marcados; na forma exterior
imediata, vários conteúdos internos de significação; na constituição individual,
singularidade de coletivo, particularização de todo. Nesse momento, objeto construído
, o concreto reaparece como unidade de múltiplas determinações.
Ao término deste movimento, isto é, ao explicitar o concreto como unidade de
múltiplas determinações, outro movimento reflexivo simultaneamente se fez:
rearticulamos o objeto à totalidade da qual, no início do processo de conhecimento,
nossa reflexão o separou – “(...) Para apreender o concreto é preciso passar pela
abstração. (...) Penetrar no real é superar o imediato – o sensível – a fim de atingir
conhecimentos mediatos, através da inteligência e da razão. (...) O ato do pensamento
destaca da totalidade do real, mediante um recorte real ou ‘ideal’ , aquilo que é
corretamente chamado de um ‘objeto de pensamento’. (...) O poder de destacar certos
objetos do mundo (...) e de imobilização, de determinar esses objetos, esse poder
define, como já sabemos, a inteligência ou o entendimento. (...) ... se a inteligência é
complementada pela razão, então a abstração se torna legítima. Torna-se uma etapa
para o concreto reencontrado, analisado, compreendido. (...) A razão restabelece as
relações, a unidade, isto é, o concreto”. 5
Contudo, para que não tomemos mecanicamente as considerações acima,
retirando do conhecimento sua essência de movimento, observemos que até este ponto
apenas procedemos à identificação da presença do todo na parte. Esta, porém, persiste
como objeto singular, realizando sua participação no todo na qualidade de singular.
Vale dizer que o modo pelo qual a parte que destacamos para estudo se encontra
articulada ao todo, dá-se em sua peculiar e criativa contribuição na reprodução desse
todo.
Assim sendo, relativamente ao trabalho médico, por exemplo, isto tudo
significa concebê-lo no social como estrutura estruturada e também estruturante
deste mesmo social. Conhecê-lo é, portanto, o movimento de buscar, nele,
enquanto médico, o trabalho social, e de buscar como este social é
reproduzido na qualidade de ser trabalho médico. O singular-médico, ao
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produzir-se enquanto re-produção do todo-social, cria novas estruturações do real que
significam repetição deste social tanto quanto uma inovação em movimento
simultâneo de adaptação e oposição ao conjunto, o que lhes dá movimento6. Não
obstante segue sendo singular, parte de uma totalidade (estrutura esta de qualidade
diversa da soma das partes), razão pela qual a criatividade, a inovação do singular
encontra seu limite no todo em que se inscreve.
A esse processo em que a parte afirma e ao mesmo tempo nega o todo a que
pertence chamaremos de cristalizações tencionadas, dinâmica em que se
estabelecem/re-estabelecem estruturas sempre instáveis, superação das contradições
em uma nova estruturação, igualmente instável e tensionada. Trata-se da mudança do
todo e das partes. Por isso, a noção de conhecimento como movimento representa, na
idéia processual, a capacidade de expressar em conceitos o próprio movimento do real.
Todavia, se o todo e a parte são estruturas de dinamicidade, esta não se processa
em ambos necessariamente em mesmo ritmo. Se as transformações da parte se dão
sob dinâmica subordinada à sua inserção no movimento global, ao engajar-se na
mesma direção que este enquanto transformação determinada, justamente por sua
singularidade enquanto parte, detém, em termos de seu movimento, autonomia relativa
por referência àquele global. Não se observará, obrigatoriamente com igual cronologia,
a mudança no trabalho médico (enquanto trabalho social) e no social (enquanto
também trabalho médico). Há uma história do social que conforma a história do
trabalho médico, delimitando-a enquanto parte da história dos modos de produção:
historicidade das relações sociais que os homens constroem entre si enquanto relações
de produção7. E reproduzindo as relações de produção é que o trabalho médico realiza,
em movimento relativamente próprio, sua história particular.
É deste modo que se o conhecer é um movimento, este movimento é
conhecimento de outros movimentos: “Todo pensamento é movimento. O
pensamento que estanca deixa produtos: obras, textos, resultados ideológicos,
verdades. Cessou de pensar. Veremos mais longe e cada vez melhor que não apenas
todo movimento ‘é’ um movimento de pensamento mas também que todo
pensamento verdadeiro é pensamento (conhecimento) de um movimento, de um
devir”8.
Até o momento o trabalho médico foi referido a uma totalidade: o social; é ele
também, porém, totalidade à qual estão referidas as diversas modalidades de produção
do cuidado médico. O trabalho médico possui, pois, divisão inferior em trabalhos
parcelares na forma de um singular movimento de transformação.
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1993. 229 páginas.
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Inserido na ordem social capitalista, o trabalho médico polariza-se
tendencialmente para a estruturação geral do trabalho social: se o capitalismo aparece
momo necessidade histórica de tornar social (socializado, coletivizado, repartido no
conjunto social) o processo de trabalho, a cooperação dentro do processo de trabalho é
a forma peculiar que aquele modo de produção necessita para a existência do capital9.
A cooperação significa para o capital a ampliação da força produtiva do trabalho,
maior lucro por meio das regras que impõe: divisão em trabalhos parcelares que
ampliam a escala do processo de trabalho, aumentando a produtividade e a quantidade
de mais-valia produzida, seja porque divide, seja porque aliena o trabalhador do
controle sobre o processo.
O trabalho médico, como veremos adiante, dirigido para a configuração de
trabalho coletivo, organiza de forma muito própria sua arquitetura de
interdependências e cooperação. Relembremos nesse sentido o fato de que a medicina
se constitui como trabalho social de marca capitalista sob a forma “artesanal” de
trabalho, ou ao menos na forma de atos individualizados de produção do cuidado
médico, tal como surge a prática liberal. Parece, pois, lícito supor não apenas que a
autonomia do médico, como forma específica de inserção deste agente, assuma o
sentido de peculiar na estruturação capitalista daquele trabalho, senão sobretudo supor
que, enquanto forma determinada socialmente, cristalize-se já tensionada pelo
movimento de especialização que simultaneamente também caracteriza a mesma
estruturação.
Como também veremos adiante, os médicos perceberão esta tensão, porém não
como uma contradição interna à própria prática, mas na qualidade de um “desvio da
ordem”, e vêm encontrando novas formas de estabilidades – instáveis, mediante as
quais têm logrado efetivar a prática médica ao mesmo tempo como prática
especializada e prática individualizada, reforçando a autonomia como representação
adequada do trabalho. Vivemos, hoje, sob o signo deste movimento.
As demarcações do conhecimento até aqui analisadas especificam-no enquanto
movimento de reflexão, em que se atinge o real concreto por operações de intelecto,
enfatizando-o como pensamento teórico. Mas guardando uma dada relação com o
empírico – relação em que não se anula diante dele -, este pensamento também não
anula diante da teoria: se o concreto é intelectualmente construído, o empírico é
sempre prova dessa construção10
. Assim, uma vez tendo alcançado a identificação do
nosso objeto, estaremos diante de um suposto conhecido, cuja validação
pressupõe o retorno à base empírica. Este exige que o pesquisador faça outra
construção, ou melhor, uma construção reflexiva de outra espécie: um
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projeto de apreensão do empírico de modo a cobrir, em resposta afirmativa ou
negativa, as hipóteses sobre o objeto. São respostas, portanto, produzidas pelo
cientista, com base nos métodos, nas técnicas e nos instrumentos de investigação, com
que capta a matéria da prova de que necessita. Capta no sentido de colocar em
evidência, posto que embora inscrita no real tal matéria não se dá a conhecer na
aparência. É preciso aqui a inventividade, a criatividade intelectual de construirmos um
esquema operatório pelo qual, com base na hipótese, produziremos a prova: domínio
do ardil do trabalho de campo.
De certa forma, este domínio já é dado no próprio conhecimento produzido
conforme vamos construindo o objeto (objetivação do real em sua tradução nas
explicações hipotéticas); todavia não completamente, posto que se trata da apreensão
do real que o mantém vivo nestes procedimentos. E nesse sentido o retorno ao
empírico é apenas dentro de certos limites previsível. O objeto, neste retorno, ganha
em profundidade, reaparece vivificado. Eis porque o empírico sem ser algo totalmente
novo a que se vai descobrir, não se reduz a um exemplo, mas surge renascido de certa
forma: “(...) [na investigação] não se chega a resultados que já não estivessem
parcialmente previstos desde o início. Não no sentido de que de admitiam estes,
aqueles, e aqueles outros resultados, e dentro deste rol cabem os encontrados. Mas
noutro sentido: é que os contornos gerais do objeto por conhecer já são mais ou menos
precisamente dados por anterioridade, o que se vai investigar é a natureza mais íntima
que a prática já mostrara, as relações entre seus diversos aspectos que conformam um
todo estruturado e vivo. Nesse trajeto encontram-se surpresas, muitas vezes, mas
apenas por referência a essas particularidades e a essa estruturação. (...) o passo
verdadeiramente criativo reside na elaboração das hipóteses de trabalho, e o que se
segue é menos uma descoberta, como supõe o leigo, do que a confirmação (detalhada,
corrigida, refinada) dessas hipóteses ou a sua informação. Não se pode colocar para
realidade perguntas teoricamente orientadas em uma certa direção e receber respostas
orientadas para outra. Para isso será sempre necessário recomeçar”11
.
Novamente cumpre observar que também para este retorno ao empírico, na
definição dos modos de investigar, das técnicas de observação e dos instrumentos de
coleta das informações no trabalho de campo, comparecem como fatores
determinantes não apenas a delimitação teórica anterior, senão também todas as
condições que tornam possível o exercício prático da pesquisa. Condições decorrentes
da posição específica do pesquisador na estrutura global da produção em Ciência, por
via da posição que ocupa particularmente em seu próprio campo científico de atuação.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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A prova, porém, não se esgota na investigação de campo. Vai mais além, pois
pressupõe novamente um trabalho reflexivo: os resultados da investigação de campo
serão processados em análises conclusivas de validação da hipótese. Análises cuja
construção igualmente se articula àqueles momentos iniciais do estudo: a validação da
hipótese é momento subordinado à sua construção.
Todas as considerações acima mostram que a construção da objetividade do real
no conhecimento funda-se, então, não apenas em seus momentos de investigação
direta do empírico e na operacionalização correta do método, mas também na prévia
escolha deste, bem como dos suportes teóricos, em articulação com a própria escolha
da base empírica, devendo, portanto, todas estas operações compor a comunicação
científica para a apreciação pública (social).
Com isso contextualizamos histórica e socialmente o conhecimento produzido,
desqualificando qualquer pretensão de isentar a prática científica de compromisso
político-ideológico. De outro lado, simultaneamente, fica tal compromisso processado
no interior das operações metodológicas através das quais o real em estudo, como
objeto de conhecimento, se transforma em real conhecido. Vale dizer que todas as
nossas opções e os juízos de valor correlatos restarão articulados, subordinadamente, a
essa re-construção do real em conhecimento objetivo, descartando qualquer
possibilidade de retirar do processo seu caráter científico.
Coerente com os princípios teórico-metodológicos acima nossa aproximação da
autonomia profissional dos médicos dá-se à proporção que operamos sua construção
na qualidade de “estruturação tensionada” na divisão do trabalho médico. Esta
construção demanda qualificar a autonomia como situação real de inserção do agente
no trabalho, isto –e, identificá-la como base técnica efetiva deste, estrutura necessária
ao esquema operatório socialmente validado para a prática médica.
Em segundo lugar, como um instrumento eficaz de trabalho, a
autonomia aparecerá no plano simbólico como representação prática.
A representação conforma, porém, um pensamento que traduz as bases do trabalho em
um discurso que ao mesmo tempo as enuncia e valoriza. Capta, por isso,
a realidade material em uma imagem conforme com o valor que porta,
tornando esta mesma imagem também uma justificação da existência social dessa
realidade. Cria, desta forma, um dever-ser, uma ordem ideal que aparece
como precedente às próprias bases materiais que originam a ima-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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gem. Consequentemente, esse pensamento especifica-se como capaz de conformar
comportamentos, já que os sujeitos-agentes do trabalho procurarão realizar em ações o
ideal contido na representação, retraduzindo o imaginário em realidade material de
trabalho. Devemos, pois, qualificar a autonomia também neste plano, inserindo a
análise do pensamento dos médicos sobre a profissão como parte do conhecimento
acerca das questões do trabalho médico. Até porque, como veremos, o dever-ser
perseguido é, no caso desse trabalho ferramenta tecnológica nada desprezível.
Em ração destas últimas ponderações, mas também pela presença viva e
marcante desse pensamento na sociedade contemporânea, optamos por incluí-lo
extensivamente no texto, mapeando suas características e o ideal de trabalho
formulado12
. Esse mapeamento ocupa todo o Capítulo 4, mas disposto de forma tal
que já se articule com uma segunda análise do pensamento médico: o de sua
construção como produto de uma base material historicamente dada de trabalho.
Trata-se de sua formulação como representações ideológicas referidas à
materialidade que delas faz ideais plausíveis e pertinentes à condição histórica objetiva
do trabalho, o que apresentaremos no capítulo subseqüente. Este último é
simultaneamente uma análise das diversas condições históricas pelas quais vem
realizando-se a medicina moderna; reflexão que busca também delimitar as questões
que as mudanças históricas configuram.
Examinaremos no quinto capítulo, portanto, a constituição da autonomia
profissional que ocorre no modelo liberal de organização dos serviços, bem como a
dinâmica da convivência da autonomia no trabalho médico com a progressiva
incorporação de tecnologia, no decorrer do movimento histórico em que é
estabelecida como uma cristalização tensionada na progressiva divisão deste trabalho.
Além disso também examinaremos, no processo de superação da medicina
liberal, quando esta modalidade de organização tecnológica do trabalho será
paulatinamente substituída pelo modelo que lhe sucede, como se produzem, no
período de transição histórica, situações que parecerão “defasadas”. São situações que
conservarão aspectos e componentes da prática liberal, mas em condição de
reorganização de suas conexões internas e externas, à proporção que são
incorporados novos elementos ao exercício profissional cotidiano. Tais situações,
portanto, representam defasagens apenas aparentes, pois são pertencentes à totalidade
do trabalho médico e já constituintes, então, da medicina tecnológica, designação que
damos à prática atual13
. Será sob estes princípios que examinaremos a transição da
medicina liberal para esta outra condição tecnológica geral.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Os Capítulos 2 e 3 trazem o empírico deste nosso estudo. O segundo capítulo
apresenta o material coletado em campo e mostra sua reflexão enquanto a autonomia
no trabalho médico, em estudo. Já no terceiro discorremos sobre a organização social
da prática médica brasileira, resgatando os aspectos relativos, de modo mais restrito, a
autonomia profissional, em diálogo com o anterior. A escolha da medicina brasileira
enquanto base empírica deste estudo advém fundamentalmente das vantagens que a
situação específica do trabalho médico no país oferece para o exame proposto acerca
do exercício autônomo da profissão, como esclareceremos a seguir.
Dadas as características particulares com que no processo brasile4iro realiza-se o
modo de produção capitalista, a configuração mais exata das profissões tradicionais,
entre as quais a de médico, ocorre apenas no fim do século XIX. Vivendo seu
momento maior até ao redor de 1930, quando então passará a conviver com as
condições sociais que imporão à medicina liberal um processo de perda progressiva de
seu predomínio, a profissão médica verá, já a partir dos anos 60, a superação deste
modelo de trabalho. A forma de produtor privado isolado e independente, tão
conhecida na figura do médico de prática liberal, substitui-se pela conformação da
prática médica em trabalhos especializados de produtores associados e de cooperação
obrigatória. É a medicina tecnológica emergindo como a modalidade preferencial de
organização do trabalho.
Ora, o tempo historicamente necessário para que a medicina se reorientasse
como trabalho social do capitalismo ocupou, para diversos países da Europa, o período
que vai do século XVII ao século XIX, e compreendeu uma série de transformações
necessárias para que a prática médica assumisse a qualidade de trabalho técnico de
marca intelectual, separando-se dos ofícios e dos negócios, também trabalhos
“técnicos”. Já sua consolidação enquanto medicina moderna, com a reprodução
ampliada das mudanças que ocorreram na produção do cuidado médico, nos países
europeus e nos Estados Unidos, ocupou o século XIX, iniciando-se na terceira década
do século XX a passagem da prática liberal para a coletivização do trabalho14
.
Assim sendo, no caso brasileiro, se contrastado com essas outras situações,
foi em espaço de tempo relativamente curto que se processaram as
transformações mais substantivas dessa passagem de um a outro modelo
de prática, razão pela qual pensamos em examiná-la pelo estudo do
exercício profissional de um mesmo agente do trabalho que tivesse sido
testemunha do processo todo. Desse modo, se tomássemos para investigação
aquelas práticas que foram vivenciadas no transcurso da superação da
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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medicina liberal desde seus momentos iniciais, e uma vez acompanhadas ao longo de
seus próprios tempos de existência social, estas práticas permitiriam observar tanto o
exercício da autonomia, quanto o impactos das mudanças tecnológicas nesse
exercício. Foi essa, então, nossa escolha da base empírica, apresentada no Capítulo 3,
e também a nossa opção para a investigação de campo, dirigida assim para os
exercícios profissionais que se iniciam no período de 1930 a 1960, analisados no
Capítulo 2.
O capítulo 3 traz, portanto, essa mudança da configuração geral na organização
da prática médica no Brasil, abordando-a como uma característica que é sem dúvida
marca da industrialização tardia da sociedade brasileira. Também é particular ao
processo brasileiro o modo pelo qual, no interior da mudança, o assalariamento
penetrou as relações de trabalho na medicina, assumindo, nas representações
profissionais, a qualidade de uma forma polar à autonomia15
. Por isso, mesmo que
sucintamente, este aspecto é igualmente examinado no referido capítulo.
É importante assinalar que pela magnitude do assalariamento verificado, assim
como pela relevância que adquiriu a inserção dos profissionais sob essa relação de
trabalho, para o caso brasileiro não poderíamos usar a expressão medicina liberal
senão entre aspas, pois as qualificações que permitem atribuir à produção do cuidado
médico como um todo este caráter de liberal existem apenas até os anos 30 do século
XX. Não obstante, em razão da proximidade do exercício profissional que se verifica
entre os anos 30 a 60 com a prática liberal, e a fim de apontar tanto sua origem quanto
seu movimento de mudança, foi ele designado por prática “liberal”.
Quanto à investigação de campo, para pesquisar vivências dos personagens
partícipes desse processo, duas seriam, em princípio, as metodologias possíveis: a
pesquisa bibliográfica, em que buscaríamos a informação já registrada sobre a prática
profissional de médicos cujas vidas de trabalho desenvolveram-se nos últimos
cinqüenta anos, ou então a produção do dado novo, por meio de entrevistas pessoais,
coletando narrativas dessas mesmas vidas de trabalho. Nossa escolha recaiu sobre esta
última pois a pesquisa bibliográfica, utilizada em caráter complementar após sua
avaliação, mostrou que nos escritos sobre o exercício da profissão há poucos que
fazem algum relato acerca do cotidiano de trabalho e seu transcorrer, tal como seria
necessário para a abordagem que pretendíamos da inserção do médico em sua prática.
O único texto encontrado no sentido do nosso estudo, é o de Eduardo Etzel16
.
A maioria dos escritos biográficos e de memórias escapa ao período e
à região considerados, ou são referências a “obras pessoais”, de grande
impacto público que tenham sido realizadas no interior dos or-
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ganismos governamentais ou da iniciativa privada, podendo ser obras beneméritas, ou
então, descobertas e contribuições científicas. Esses textos quase são enumerações de
“feitos meritórios”, e que, se podem indicar o grande valor dado ao desempenho
pessoal na interpretação da medicina e de sua história, base da autonomia profissional
como veremos, da perspectiva pretendida para o exame da prática profissional,
mostrou-se material insuficiente.
A entrevista, pelo contrário, é capaz de produzir, baseada nas questões sobre as
quais cada médico seja levado a refletir, um discurso que percorra a constituição de
seus trabalhos e que permita a abordagem pretendida para o exame da autonomia
profissional. Foram, então, obtidos depoimentos de profissionais formados entre 1930-
1955, por meio de entrevista gravada. Dentre as técnicas de entrevista17
, escolhemos
uma abordagem que, mesmo tendo por base um roteiro preliminar, buscou estimular
uma narrativa mais livre do entrevistado, e evitar ao máximo a interferência do
pesquisador, impondo contudo limites de temáticas, e ao mesmo tempo, tentando
supervisionar o recobrimento das questões estipuladas.
Mas centrar a investigação na produção de um pensamento sobre a experiência
vivida significa centrá-la nas representações dos sujeitos de3 prática, o que, de um
lado, nos permitiu também verificar o modo como esses sujeitos percebem, tomam e
elaboram a mencionada convivência de modelos tecnológicos, representando o seu
domínio consciente sobre o processo histórico. De outro lado, porém, essa
metodologia de observação quer pelo volume, quer pela natureza da informação que
permite coletar, exigiu que fosse limitado o número de observações registradas, bem
como dirigiu o tratamento analítico no sentido do trabalho qualitativo sobre o material
produzido.
Por decorrência, ao considerarmos o material empírico e sua análise, optamos
por uma apresentação já analiticamente dirigida das histórias singulares, ao invés de
publicarmos todo o relato contido nas narrativas, primeiro, e só então procedermos a
análise de suas informações18
.
Além disso, a opção de obter depoimentos pessoais, para deles extrair a história
social, implica estudarmos uma realidade coletiva por meio de sua observação em
vividos singulares19
. Vale dizer que não iremos tomar os depoimentos individuais
estritamente por suas singularidades, mas também pelo conjunto específico de
características transindividuais que apresentam, o que requer certos cuidados na
produção e na análise do material obtido. Assim sendo, devemos tecer algumas
considerações acerca dos princípios gerais que orientaram todo o trabalho com o
empírico: da produção das histórias de vida de trabalho à análise do relatado.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Em primeiro lugar observemos que as vivências singulares são para nós meios
de aproximação da totalidade em que se inscrevem, e assim representam o coletivo a
que pertencem. Essa possibilidade deriva do fato de que sendo cada relato a forma
pessoal de expressar o grupo ou o social, aquilo que cada um relata, e como relata, são
construções que se determinam na vida em sociedade, no pertencimento aos grupos.
Por ser um modo de contar e um modo de lembrar, a entrevista produz sempre
uma interpretação daquele que relata. Mas aquilo que se conta – o acontecido, o
vivido – e o significado que lhe confere o narrador, não é exatamente único, senão a
experiência pessoal no interior de possíveis históricos bem determinados, e que se dão
na forma pela qual aquele indivíduo está situado socialmente. Será com base nessa
posição que possui ele concepções que representam sua experiência e das quais
lançará mão para relatá-la20
.
Assim sendo, os médicos entrevistados falarão sobre a prática “liberal”, sobre os
tensionamentos ao longo do crescimento da medicina tecnológica, contarão sobre as
repercussões dessas tensões sobre os procedimentos técnicos de intervenção,
mostrarão as formas historicamente possíveis de convivência e de preservação do
exercício autônomo, bem como expressarão as concepções desse segmento de
trabalhadores acerca do movimento de mudanças que experimentaram, ao relatarem,
porém o individualmente vivido.
O relato, em segundo lugar, não se reduz a uma impressão subjetiva. Enquanto
relato fornecido ao pesquisador, é produto de elaboração intelectual específica do
entrevistado. Provém de um pensar que é trabalho e também, no caso, trabalho de
recordar. Por isso não é sentimento apenas, mas reconstrução da experiência vivida em
nova objetivação: a lembrança é trabalho da memória21
. O que foi experimentado e
guardado na memória, e mesmo aquilo que se concebe do presente, é externalizado
em um trabalho de reflexão próprio, no que difere da opinião de cotidiano, dos
comentários e juízos do dia-a-dia: o relato é um pensamento especialmente produzido.
A entrevista que suscita deve ser vista, portanto, como experiência particular, e
não como uma a mais do cotidiano. A entrevista recorta o cotidiano no objeto que
propõe à reflexão, e interrompe o cotidiano na reflexão que propõe: “É claro que os
informantes falam de coisas muito corriqueiras (...) mas que são aí tratadas como
coisas até certo ponto externas, como elementos dados para se pensar e falar sobre: ao
mesmo tempo, têm o trabalho de procurar na memória (...). É justamente nesta
procura, e não na articulação dos elementos encontrados, que se constrói
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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uma interpretação que é, em geral, uma ordenação original de coisas velhas, de
pedaços de imagens, experiências, opiniões, etc., que a memória guardou. Esta
interpretação, produto de um momento especial, apresenta-se como um discurso
organizado e é uma visão mais global do que a que se pode ter no cotidiano”22
.
A reflexão, neste nosso estudo, dá-se sobre a vida de homens-comuns, mais
propriamente sobre a prática profissional dos médicos comuns, cujo registro nem
sempre encontra possibilidades concretas na história que se publica acerca da
medicina, como antes evidenciamos. É por isso capaz de expressar as condições do
dia-a-dia das situações comuns de prática, a forma ampliada de re-produção de um
modelo realizado e projetado, e o modo de re-elaboração, em um cotidiano, dos
pressupostos e das expectativas que formula o pensamento médico dominante acerca
do trabalho ideal.
É também, ao mesmo tempo, recuperação de acontecimentos passados, mas que
se faz no presente, com as questões do presente. O entrevistado não só trabalha a
experiência vivida, mas experimentando no momento atual novas questões com as
quais se mesclam as já deslocadas pela história como momento do passado, é levado a
refletir sobre esse passado e a recuperar o processo desses deslocamentos pelas
questões do presente, e ainda pelas que o pesquisador lhe coloca.
Finalmente, nas lembranças individuais o relato segue sendo um modo de
reflexão, uma forma de contar e explicar, “um ponto de vista sobre a memória
coletiva”23
. A entrevista individualizada é uma experiência singular e os relatos
individualizados são por isso formas ricas na ampliação, na profundidade e na
diferenciação com que trabalham o coletivo. Cada momento de entrevista e cada relato
completado formam subtotalidades que se devem respeitar.
A constituição de um todo com base nos singulares, na reconstituição do
acontecimento social sob a investigação, deve partir do fato de que os depoimentos em
conjunto, e as próprias recordações do vivido pelo entrevistado, podem orientar-se em
direções diferentes e até contraditórias. Nada há que se estranhar, porém, nessa
autonomia relativa do singular, ela não só de fato ocorre, como também não é capaz,
por sua singularidade de anular o que é relatado sobre o coletivo, desde quando se
conceba este coletivo como produto de qualidade própria por referência a seus
constituintes particulares: o individual não precisa repetir tudo o que se passa no plano
do coletivo para que faça parte de sua constituição24
.
Todo esse conjunto de especificidades impõe que a produção e a análise do
material observem alguns procedimentos próprios. Definir quem, até
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quando e quantos indivíduos devíamos entrevistar são questões que logo se
estabeleceram*.
Selecionar entrevistados, em nosso caso, levou em consideração alguns
pressupostos: o de que fossem “médicos-comuns”, isto é, inseridos na produção de
serviços na forma predominante ou exclusivamente da medicina de mercado; que
tivessem participado do coletivo de agendes de trabalho “liberal” e que estivessem
inseridos em práticas de intervenção clínicas e cirúrgicas, em suas modalidades mais
gerais, para além dos critérios obrigatórios já considerados relativamente à história da
prática médica. Esses pressupostos são apenas indicativos de qual a posição que nossos
entrevistados ocupam na medicina: que conjunto de representações e que memória
grupal estará, portanto, por princípio, presente nas narrativas.
Constituem elas conjunto de nove depoimentos gravados e que resultou em total
de 38 horas de material registrado. Para chegarmos a esse número de situações,
seguimos o critério de “exaustão”, isto é, quando o pesquisador verifica a formação de
um todo e reconhece a constituição do modelo no conjunto do material25
. Esse não é,
de forma alguma, critério obrigatório; antes, foi no caso o critério que elegemos. Esse,
como vários outros princípios técnicos nesta metodologia, tem por base parâmetros
formulados muitas vezes ao longo do próprio desenvolvimento da investigação, e não
podem ser estipulados de modo fixo previamente.
O processo da entrevista foi, também desse ângulo, um processo de aprendizado
para o pesquisador, tendo em vista encontrar formas eficazes de participar, até certo
ponto, das concepções e do modo de pensar a realidade que o entrevistado possui,
sobre o presente e sobre o passado. A entrevista não é só uma forma de entender e
captar o outro, mas de se fazer entender; e tanto a história de vida como a posição
social e científica distinta do pesquisador relativamente ao entrevistado introduzem
linguagens divergentes.
Da perspectiva do tratamento analítico dos dados, uma vez que iríamos
abordá-los como conjunto mas levando em conta também o caráter
singular das histórias produzidas, o procedimento adotado fundou-se em
estudo cuidadoso de cada história individual, previamente ao seu exame compa-
rativo. O termo que usualmente aparece na bibliografia designando esse
* Dado o caráter de pesquisa científica deste estudo, essas questões foram amplamente
discutidas e analisadas na referida edição acadêmica, a fim de explicitar os critérios de investigação utilizados. A distinta natureza da atual publicação, contudo, nos fez optar por
sintetizá-las ao máximo.
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proceder é o da impregnação: o pesquisador lê, relê, examina, estuda tantas vezes o
mesmo relato, até o ponto em que domina o todo de uma mesma história para poder
confrontá-lo com outra, tomando-as cada qual por inteiro. O destaque a fragmentos,
que na comparação aparece, pressupõe que tenhamos apreendido o sentido próprio do
fragmento na totalidade do pensamento do qual o separamos.
Em segundo lugar as narrativas foram tomadas como instrumentos de
observação da prática, isto é, observação dos exercícios profissionais que realizam um
dado modelo de intervenção médica. É nesse sentido que, baseadas nas narrativas
enquanto falas mais descritivas ou mais opinativas, foram essas falas examinadas
como meios para se conhecer o trabalho realizado. Há assim duas questões que
recortam os relatos e que a eles perguntamos: qual o modo com que se constituiu o
exercício autônomo independente na prática de produção dos serviços médicos em
São Paulo, no período estudado? De que maneira a autonomia vem convivendo, nesse
segmento profissional, com as pressões da dinâmica de modificação do conjunto
original de características da prática médica?
Essas perguntas equivalem a indagar pelas formas de transformação da
autonomia para sua própria preservação, reconstruindo-se como dimensão objetiva da
prática. Desta maneira, o modo específico pelo qual trabalhamos com as
representações – as idéias, as noções, e as concepções do pensamento médico -, supôs
considerá-las como constituintes da prática do médico, articuladas ao exercício
profissional que dotam de significação. Por isso mesmo as narrativas que contam
também essas concepções, até por serem observações fundadas em representações, são
igualmente instrumentos de verificação do pensamento dos médicos, mas apenas
enquanto estando esse pensamento constituindo o exercício da prática, sendo este o
que fundamentalmente pretendíamos captar. As concepções dos médicos sobre suas
práticas e o reconhecimento do processo de mudança como um todo, como também o
de suas estratégicas de preservação, não foram nunca examinadas, pois, como
dimensão isolada.
Concluindo esse capitulo inicial, devemos ressalvar o caráter produtivo
de cada uma das partes do estudo. Elas correspondem aos momentos mediatizados do
processo de conhecimento e se dispõem em capítulos individualizados
no texto: apresentamos os dados empíricos em primeiro lugar e ao final
dispensamos o arrolar das conclusões. Nossa pretensão é a de que os
dados sejam tomados como o que se produz em certo momento
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e no entanto necessariamente têm seu sentido na articulação com os demais produtos.
Por isto, não apresentam o resultado (único) do estudo, mas devem ser tidos
como componentes do conjunto de resultados e conclusões cuja produção se apresenta
desde o início deste texto. Isto também equivale a dizer que desde o início a
sistematização do trabalho no texto foi decorrência da presença constante da base
empírica, que por meio das questões suscitadas constituiu interlocutor do trabalho
teórico: o material que as entrevistas conformam traz a realidade de uma prática, de um
trabalho e de uma história, que desde o princípio deste texto está sendo objeto de
reflexão.
1 As próximas reflexões, síntese dos pontos principais trabalhados na referida publicação
original do estudo com respeito ao referencial teórico-metodológico adotado, foram baseadas
nos textos de: Hector J. Apezechea – Problemas metodológicos da pequisa nas ciências da
saúde, in Nunes, E.D. (org.) – As ciências sociais em saúde na América Latina, Brasília,
Organização Panamericana da Saúde (OPAS), 1985, pp. 461-474; Paul de Bruyne, J. Herman,
e M. de Schoutheete – Dinâmica da pesquisa em ciências sociais, Rio de Janeiro, Francisco Alves Ed., 1977; Henri Lefebvre – Lógica formal/lógica dialética, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1975; Edson de O.Nunes (org.) – A aventura sociológica – objetividade, paixão,
improviso e método na pesquisa social, Zahar Ed., 1978; Marilena de S. Chauí – Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas, São Paulo, Ed. Moderna Ltda., 1981;
Ricardo B. M. Gonçalves – Tecnologia e organização social das práticas de saúde:
características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo, São Paulo, Faculdade de Medicina da USP, 1986 (tese de doutoramento); Eliseo
Verón – Ideologia, estrutura e comunicação, São Paulo, Cultrix, 1970; José A. Giannotti –
Trabalho e Reflexão – ensaios para uma dialética da sociabilidade, São Paulo, Brasiliense, 1983; Madel T. Luz – Natural, racional, social – razão médica e racionalidade científica
moderna, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988; Florestan Fernandes – Ensaios de sociologia
geral e aplicada, São Paulo, Pioneira, 1971; Lucien Goldman – Epistemologia e filosofia política, Lisboa, Ed. Presença, 1984; George Lukács – História y conciencia de clase, México,
Grijalbo, 1969. 2 Cf. Héctor J. Apezechea, op.cit., pp 463-465 (A questão da base empírica). 3 Constituem de fato escolhas político-ideológicas de sujeitos (trabalhadores) sociais, com
específicos efeitos de poder nas verdades que estabelecem: “Parece-me que o que se deve levar
em consideração no intelectual não é, portanto, ‘o portador de valores universais’; ele é alguém
que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do
dispositivo de verdade em nossas sociedades. (...) A ‘verdade’ está circularmente ligada a
sistemas de poder, que a reproduzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade (...)... regime político, econômico, institucional de produção
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de verdade.” Michel Foucault - Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1984, pp. 13-
14. 4 Henri Lefebvre, op.cit., pp. 98-99 5 Idem, pp. 112-115 (grifos do original). 6 Henri Fefebvre no exame que faz a propósito do modo pelo qual se reproduzem as relações de
produção social aponta na formulação sintética do “repetitivo que gera diferenças” – a re-produção – a dinamicidade do real. Henri Lefebvre. – A re-produção das relações de produção,
Porto, Publicações Escorpião, 1973. 7 G. Lukács – op.cit.pp. 50-54 8 Henri Lefebvre – Lógica formal/lógica dialética, op.cit., p.90 9 K. Marx – O Capital, livro I, vol.I, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p.384. 10 “O sistema teórico é hipotético; alguns de seus elementos são hipóteses, isto é, enunciados conjeturais que podem sempre ser contestados pelos fatos, assim, toda teoria científica deve ser
contestada em sua totalidade pelos fatos que ela investiga. A verificação, o teste empírico das
teorias é uma exigência primordial.” Paulo de Bruyne ET AL., op. Cit., p. 122. 11 Ricardo B.M.Gonçalves, op.citl, p. 62 12 Valemo-nos para essa caracterização do apoio bibliográfico dos textos: Maria Cecília F.
Donnangelo – Medicina e sociedade, São Paulo, Pioneira, 1975; Eliot Freidson – Profession of Medicine: a study of the Sociology of Applied Knowledge, New York, Dodd, Mead and Co
Incl, 1970; Eliot Freidson – Professional Dominance: the Social Structure of Medical Care,
New York, Atherton Press, Inc., 1970; Oracy Nogueira – Contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no Estado de São Paulo, Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas de Osasco (tese de livre-docência), 1967, 2 vols. 13 O termo medicina tecnológica, já referido no Prefácio deste texto, foi originalmente cunhado por Maria Cecília F. Donnangelo, em Saúde e Sociedade, São Paulo, Duas cidades, 1976. A
autora utilizou essa expressão para designar a prática que se realiza na forma da especialização
do trabalho e pretendeu por seu intermédio destacar o caráter tecnologizado desta prática, com a presença maciça dos equipamentos materiais, como ocorre com a especialização. Ao mesmo
tempo, a expressão também indica o caráter parcelar do trabalho especializado. Será com
ambas as conotações, igualmente, que utilizaremos a mesma expressão neste texto. 14 Ver Michel Foucault – O nascimento da clínica, Rio de Janeiro, Ed.Forense –Universitária,
1977; do mesmo autor – Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1982; Roberto P.
Nogueira – Medicina interna e cirurgia: a formação social, 1977 (dissertação de mestrado); Eliot Freidson – Profession of Medicine..., op.cit.; Oracy Nogueira – Contribuição ao estudo
das profissões..., op.cit. 15 Cf. Maria Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, São Paulo, Pioneira, 1975; José C.Braga e Sérgio G. de Paula – Saúde e Previdência – estudos de política social, São Paulo,
Cebes-Hucitec, 1981; Amélia Cohn – Previdência social e processo político no Brasil, São
Paulo, Ed. Moderna, 1980; Amélia Cohn e Maria Cecília F. Donnangelo – Condições do exercício profissional da medicina na área metropolitana de São Paulo, São Paulo, Faculdade
de Medicina – USP, 1983 (relatório de pesquisa – mimeo); Hésio de A. Cordeiro – As
empresas médicas: as transformações capitalistas da prática médica, Rio de Janeiro Graal, 1984.
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16 Eduardo Etzel – Um médico do século XX – vivendo transformações, São Paulo, Ed.
Nobel/EDUSP, 1987. 17 Ver Paul de Bruyne, J.Herman e M.de Schoutheete – op.cit.; e Peter H. Mann – Métodos de investigação sociológica, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1975; Maria Isaura P. de Queiroz –
Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”, op.cit.; Guy Michelat, Sobre a utilização da
entrevista não-diretiva em sociologia, in Tiollent, M. – Crítica metodológica, investigação social e enquete operária, São Paulo, Polis, 1981, pp. 191-211; Robert G. Burgess, The
Unstructured Interview as a Conversation in Burgess, R.G. – Field Research: a Sourceook and
Field Manual, London, George Allen and Unwin, 1982, pp. 107-110. 18 Na publicação original da tese de doutoramento, os relatos singulares foram integralmente
apresentados, constituindo um volume a parte e específico (volume II), editado como um
conjunto de histórias pessoais e na forma de livre narração de cada médico entrevistado. 19 Essa modalidade metodológica de investigação empírica é utilizada nas Ciências Humanas
(Antropologia, Sociologia, História e alguns ramos da Psicologia) através da história oral,
história de vida, depoimentos pessoais e biografias. Ver nesse sentido: Aspásia Camargo – Os usos da história oral e da história de vida: trabalhando com elites políticas, in DADOS –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol.27, no. 1, 1984, pp. 5-28; Aspásia Camargo et
al. – História de Vida na América Latina, in BIBI, Rio de Janeiro, no. 16, 1983, pp. 5-24; Eunice R.Durham – Cultura e ideologia, in DADOS – Revista de Ciências Sociais , Rio de
Janairo, vol.27, no. 1, 1984, pp. 71-89; Maria Isaura P. de Queiroz – Relatos orais: do
“indizível” ao “dizível”¸in Ciência e Cultura, São Paulo, vol.39, no. 3, pp. 272-286 e Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva, in TEXTOS, no. 4, São
Paulo, CERU e FFLCH/USP, 1983; D. Bertaux – Biography and Society. The Life-history
Approach in the Social Sciences, New York, Sage, 1981; Cahiers Internationaux de Sociologie, Paris, Presses Universitaires de France, vol. LXIX, 1980. Este ultimo traz
especificamente considerações sobre o tema “história de vida e vida social”, e o vol. 27, no. 1
da revista DADOS - Revista de Ciências Sociais, dedica-se ao tema “História oral e história de vida”. Em especial sobre a memória e o trabalho de recordar, para observações empíricas
fundadas em lembranças de indivíduos partícipes de um dado acontecimento em estudo, veja-
se Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, T.A. Queiroz, 1983. 20 Ver Paul Thompson – Des récits de vie a l’anályse Du changemente social, Cahiers
Internationaux de Sociologie, opcit., ppp.248-268; F.Ferraroti – Les biographies comme
instrument analytique ET interprétatif, Cahiers Internetionaux de Sociologie, op.cit., pp.227-248. 21 Ecléa Bosi, op.cit., em especial cap. I (Memória-sonho e memória-trabalho). 22 Teresa P. do R. Caldeira, A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos, São Paulo, Brasiliense, 1984, p.144. 23 Ecléa Bosi, op.cit., p. 335 24 Esta articulação todo-parte, da qual já nos ocupamos neste capítulo, é uma questão muito presente em todos os textos que citamos acerca do relato oral,
os quais situam principalmente na análise dos cuidados relativos à aproximação do material no
sentido de se captar o plano do coletivo. Ademais, por essa mesma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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razão, um suporte significativo para apreensão do social através dos relatos singulares, reside
em sua complementação com outras formas de investigação empírica, ou com dados de outra
natureza, produzidos em observações diretas ou como material já registrado. Ver a esse respeito, especificamente, Maria Isaura P. de Queiroz – Relatos orais: do “indizível” ao
“dizível”, op.cit., e Aspásia A. de Camargo – O ator, o pesquisador e a história. Impasses
metodológicos na implantação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, in Edson de O. Nunes (org.), op.cit., pp.276-304. 25 Veja-se Daniel Bertaux - L’approche biographique. As validité méthodologique, sés
potencialités, Cahiers Internationaux de Sociologie, op.cit. p 205.
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2
O cotidiano profissional – a história em vidas de trabalho
Doutora Emília, Doutor Fábio, Doutor Paulo, Doutor Maurício, Doutor
Silvio, Doutor Nélson, Doutor Antônio, Doutor Luís e Doutor Carlos1 contam a
história de uma mudança, a passagem de uma a outra “profissão” e de uma a outra
identidade profissional: eles fazem parte daquele coletivo quer testemunhou a criação
da medicina tecnológica.
Foram eles agentes da inovação, renovando a prática, incorporando a
especialização no trabalho e as tecnologias materiais, ao mesmo tempo em que
buscaram preservar aspectos e componentes que tinham caracterizado uma identidade
passada e da qual partiram no início da profissão. Identidade forjada no interior de uma
medicina homogeneamente exercida como prática liberal e com a qual eles não
conviveram exatamente, mas da qual tomaram a concepção de autonomia que
reconhecem como seu ideal de prática. E mesmo supondo que preservavam, por seus
procedimentos e ajustes, o caráter “universal” da prática, mantendo, através da
autonomia reconstruída, supostamente intacta a essência” daquela mesma identidade
primeira, constituíram-se de fato em sujeitos também da reconstrução das concepções
acerca do trabalho médico, a partir das quais outra e nova identidade passa a firmar-se.
Partiram eles do princípio de que a prática seria adequada e tecnicamente
bem qualificada quando se encontrassem condições nas quais a racionalidade
do ato médico, tanto seria progressivamente conformada pelo plano
científico-tecnológico, quanto se manteria assentada no julgamento e poder decisório
individual do médico. De certo modo essa conciliação tem por suposto
a possibilidade de se estabelecer, entre o plano científico-tecnológico
(configurado sobretudo no equipamento material, nesse período do
histórico de suas vivências profissionais) e o empenho ou a capacidade
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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de decisão pessoal de cada médico, as mesmas formas de articulação que
anteriormente se tinham estabelecido entre o médico liberal e o saber. Partiram nossos
médicos, portanto, do pressuposto da necessária preservação de um momento
essencial de autonomia no interior da prática, concebendo-o como fator que deveria
presidir o modelo operatório. Mas, ao buscarem objetivamente um modelo consistente
com esses princípios, transformaram o trabalho, nele recortando um conjunto
destacado de procedimentos, que individualizaram, isolando-os de outros
componentes do exercício profissional. Assim, tendo separado um pouco “o joio do
trigo”, prosseguiram aprofundando as cisões já dadas no trabalho liberal.
Seus movimentos significaram para eles a busca de uma independência de
ação e de julgamento. Busca que veio dar-se através da demarcação de um espaço de
trabalho que seria uma espécie de “território livre” e no qual reviveriam, de modo
análogo à medicina liberal, a plena autonomia de trabalho. Esse território onde o
desempenho poderia ser totalmente livre porque circunscrito ao âmbito pessoal do
médico, correspondeu ao consultório particular. Por isso, essa forma institucional de
organização da produção dos serviços viria assumir a qualidade de única forma capaz
de corporificar as condições necessárias e adequadas para o exercício autônomo.
Assim sendo, no mesmo sentido em que promoveram a reconstrução da autonomia,
iniciaram uma reorganização do consultório, como base institucional da produção dos
serviços. E uma vez reorientada sua prática, produziu-se um novo consultório privado
do médico, por conseqüência produzindo-se, a seu respeito, toda uma outra
conceituação.
A individualização do exercício profissional e a liberdade correlata,
concebidos como atributos necessários para a prática e para sua forma institucional
ideal de realização, constituíram, sem dúvida, as questões centrais com as quais
cotidianamente se defrontaram estes nossos entrevistados. É esta a razão pela qual a
interpretação que fizemos de suas vivências singulares, e que delas considerou alguns
pontos sem pretender constituir uma análise exaustiva, caminhou pelas narrativas
privilegiando essa mesma questão da individualização e da liberdade pessoal.
Buscamos, porém, cotejar a subjetividade e seu exercício
na prática profissional com os determinantes sociais que fazem, do
comportamento de cada um, um desempenho social. Também buscamos
contrastá-los com as condições históricas concretas que demarcaram os
espaços e as formas possíveis dessa atuação individual. E assim o fizemos porque foi
nossa pretensão resgatar o modus operandi construído por esse segmento
profissional, ao se articular ao modelo geral da medicina tecno-
lógica. Foi igualmente nosso propósito apontar para esta articulação. Aliás, deveríamos
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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observar, mais precisamente, que conhecendo o modelo de prática por eles produzido,
estávamos identificando suas relações com o conjunto da prática médica, ao mesmo
tempo que a reconhecíamos como prática social. Objetivávamos, assim, evidenciá-los
como parte de um sujeito coletivo, o médico, tanto quanto evidenciar a este como
sujeito social.
Evidências, no entanto, que nem sempre são conscientes. Poderíamos até
dizer que em função das concepções de vida e trabalho de que partiram, e em função
do modo com que lidaram com essas questões em suas vidas profissionais, esses
médicos não se reconheceram como constituindo as relações de produção mais gerais
da prática médica. Não se viram, portanto, como inseridos, desde o princípio de suas
vidas de trabalho, em processos de mudança. Antes supuseram o processo específico
do qual eles próprios participaram, como expressando uma espécie de movimento de
resistência. Uma estratégia de preservação por parte de um grupo de médicos que
ainda conseguiria manter a antiga identidade profissional: seriam eles os profissionais
liberais, distantes e diferentes dos demais, resguardando, pelo esforço pessoal, a
qualidade de assistência médica que derivaria de uma autonomia preservada. Por isso,
para eles, tudo se passa como se os novos tempos demarcassem a permanência de seus
exercícios profissionais em um modelo independente, um “outro tempo” no tempo
presente.
Doutora Emíllia nasceu no Estado de São Paulo, em 1902. Primeiro fez
odontologia e depois fez medicina, no interior da qual escolheu a Obstetrícia e
Ginecologia: Meu cartãozinho aqui... “Partos, operações, moléstias de senhoras.”
Filha de um “forte negociante” que faleceu aos 32 anos, a complementação da renda
familiar logo se tornou algo importante, muito embora com o segundo casamento de
sua mãe a família se tenha mantido em condições de renda estáveis. Não obstante, ser
independente e ter renda própria, que significava então ter uma profissão, era o lema
da casa, de modo que aos dezoito anos formou-se em odontologia. Não conheceu
médicos na família, e dos cinco irmãos nenhum outro fez medicina: apenas uma irmã
cursou também a Faculdade de Odontologia e outra, Fármacia e Filosofia; seu irmão é
advogado e as outras duas irmãs, pianistas. Exerceu a profissão de dentista por seis
anos, tempo em que ingressou como funcionária pública nos Correios e Telégrafos,
onde por dez anos trabalhou como tesoureira, por outros trinta anos, como médica.
Logo após formar-se em medicina trabalhou no ambulatório e hospital da
Cruz Azul, instituição de assistência aos integrantes da Força Pública e
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seus familiares, onde ficou por mais de trinta anos. Teve consultório privado durante
cerca de quarenta e cinco anos, e trabalhou em atividades hospitalares, como médica
contratada de hospital beneficente por trinta anos. Agora está aposentada.
Doutor Fábio é natural de Minas gerais, onde nasceu em 1910. Fez medicina
e trabalhou durante seus primeiros anos de formado só em Cirurgia Geral, depois disso
agregou à Cirurgia atividades clínicas (Clínica Geral e Pediatria). Trabalhou também
em Fisioterapia, como médico contratado em hospital privado por cerca de quinze
anos. Ao mesmo tempo, no consultório particular foi aos poucos delimitando seu
atendimento, da Clínica e Cirurgia Geral para a área de Ginecologia, à qual
posteriormente agregou a área de Obstetrícia, atividades que exerce até hoje e nas
quais trabalha já há cerca de 35 anos. Filho de comerciante e fazendeiro, conheceu
antes dele um tio médico na família e dois farmacêuticos. Tem vários outros primos
formados em medicina,, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, mas de seus onze
irmãos e irmãs nenhum outro é médico: (...) de profissão mesmo, apenas um irmão fez
direito (...). Na minha família não era importante fazer medicina! Não! Não havia
entusiasmo, não! O pessoal era mais fazendeiro (...) eram mais do comércio (...) isso
que era o forte lá no sul de Minas. Antes de formado não trabalhou. Já médico sempre
trabalhou em atividades hospitalares, como contratado de hospital privado, e hoje
ainda tem seu consultório situado dentro do hospital. Ficou alguns anos em Campinas
e depois fixou-se em São Paulo. Tem consultório privado há cerca de 48 anos, e nas
atividades hospitalares trabalha há mais tempo ainda.
Doutor Paulo nasceu em 1912, numa cidade do litoral de São Paulo,
mudando-se muito criança para a Capital. Da medicina logo escolheu e fixou-se na
Pediatria. Na família um tio foi médico, e seu pai, embora não o tivesse sido, queria
muito ter um filho trabalhando nessa profissão. Dos três irmãos, porém, só ele fez
medicina. Durante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico.
Em sua vida profissional localiza um corte, na viagem que fez para estudar Pediatria
fora do país: Quando voltei, aí tinha outras condições. Trabalha até hoje no seu
consultório, e mantém essa atividade de clínica privada há cerca de cinqüenta anos.
Também exerceu atividades hospitalares, como contratado por hospital beneficente, o
qual, após 35 anos de trabalho, afastou-se.
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Doutor Maurício é natural da Ucrânia, onde nasceu em 1916. Veio para o
Brasil com cinco anos de idade fixando residência primeiro no interior do Estado e
logo a seguir em São Paulo. Entre os familiares diretos um tio era médico, e entre os
mais distantes, dois outros parentes também, que o orientaram e auxiliaram a fazer
medicina. Ainda estudante ligou-se à área cirúrgica e ginecológica, através do que
também exercia por vezes atividades remuneradas, sobretudo nos três últimos anos de
estudante. Nos quase cinqüenta anos que tem de prática em consultório privado,
atividade em que se mantém até hoje, sempre se ateve mais à Ginecologia, clínica e
cirúrgica. Depois que se formou, trabalhou como voluntário em hospital beneficente e
foi médico contratado do Sindicato dos Condutores de Veículo e Anexos, onde fazia
ambulatório, e contratado do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados
em Transportes e Cargas (IAPETEC), respectivamente por dez anos e por mais de
trinta anos. Na Previdência, embora no início tenha exercido apenas atividades
hospitalares como plantonista, há cerca de sete anos passou a trabalhar só em
ambulatório, mantendo, porém, também a prática cirúrgica em hospitais da
Previdência para alguns casos. Mesmo aposentado pelo Instituto, além de seu
consultório, trabalha ainda nessa atividade ambulatorial: Até hoje nós sentimos uma
obrigação de fazer alguma coisa para essa área social. Sempre me perguntam: “Por
que você continua operando doente do INAMPS?”; respondo: “Porque me sinto
bem”.
Doutor Sílvio é nascido no interior do Estado de São Paulo, em 1915, e
ainda criança fixou-se na capital, no Brás. O pai sempre trabalhou no comércio e dos
três irmãos, ninguém fez medicina. Ele próprio oscilou na escolha entre medicina e
engenharia, profissão pela qual seus parentes próximos optaram: (...) sempre gostei
mais de clientes, de acudir as pessoas. (...) Foi mais por causa disso. Porque eu tenho
muita cabeça para raciocínio (...) eu deveria ir bem em engenharia. Sempre trabalhou
em Clínica Geral, primeiro em consultório privado, depois como proprietário de
hospital, exercendo atividades de enfermaria e ambulatório, por cerca de trinta anos e
quinze anos respectivamente. Trabalhou como médico perito da Previdência Social
por 35 anos. Não exerce atualmente a profissão.
Doutor Nélson sempre morou em São Paulo, onde nasceu no ano de 1912.
É filho de comerciante, sem ter na família outro médico. Começou a Faculdade de
Direito mas acabou desistindo e cursando medicina. Du-
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rante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico (...) a vida
sempre foi apertada para nós ... eu gostada de propaganda! Sabia falar, conversar,
discutir... Se o médico quisesse discutir, eu dizia... provava. Depois trabalhou também
como técnico de laboratório no Serviço Sanitário do Estado, ainda no tempo de
acadêmico. Durante toda sua vida profissional sempre trabalhou como clínico geral e
também na área de Moléstias Venéreas, através de atividades que exerceu por trinta
anos no Serviço Sanitário do Estado. Há cerca de 45 anos mantém sua atividade de
consultório privado, e mantém também um trabalho de médico plantonista em Pronto-
Socorro de hospital público, cargo que ocupa há já cerca de vinte anos. Por um período
mais curto, cerca de oito anos, foi médico contratado do setor público no Serviço de
Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU).
Doutor Antônio nasceu em 1917, em Portugal. Veio para o Brasil ainda
criança, fixando-se com sua família no Brás. Não é apenas o único médico da família
mas o único de seus seis irmãos que tem curso superior: (...) nós éramos e sempre
fomos absolutamente pobres. Este é um problema importante porque isto é que
norteou a minha vida: a pobreza! Seu pai foi gráfico. Desde menino já trabalhava no
comércio, iniciando-se na escolarização já na adolescência. Não tinha contato com
médicos exceto enquanto paciente. Fez curso trabalhando e continuou em atividades
não médicos por um certo período também após formado. Dentre as áreas da medicina
fixou-se logo na Pediatria, especialidade que exerce até hoje. Trabalhou como médico
contratado em hospital público e hospital privado por 35 anos e 25 anos
respectivamente. Mantém até hoje atividade em consultório privado, o que fez já cerca
de quarenta anos.
Doutor Luís é natural de São Paulo, onde nasceu em 1929. Filho de médico,
conviveu desde criança com a medicina, o hospital, os doentes e a vida de médico: (...)
eu me lembro muito de sair com papai, de lá para cá, atendendo chamado... Durante
o curso de medicina não trabalhou, e após formado fixou-se mais ou menos na mesma
área de atuação médica que seu pai: atividade hospitalar e clínica de consultório,
exercendo Cirurgia Geral e Ginecologia. Após formado trabalhou algum tempo como
voluntário em hospital público. Há mais de trinta anos exerce atividade de
consultório privado, e simultaneamente é empregado do setor público, traba-
lhando ainda também em ambulatório de fábrica como médico contra-
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tado do setor privado. Mantém também um vínculo de trabalho em atividade
hospitalar, com um hospital privado, onde também tem instalado seu consultório, e
com o qual também seu pai mantivera relações profissionais. Por cerca de 25 anos
trabalhou em ambulatório médico de uma sociedade mutualista, de um bairro da
região norte da cidade.
Doutor Carlos nasceu em 1927 e sempre morou em São Paulo. Seu pai foi
gerente de uma fábrica de cigarros e não existiam médicos em sua família. Mesmo
assim, porém, sempre conviveu muito com esses profissionais e outras pessoas de
prestígio. Desde o tempo de estudante de medicina já exercia atividades remuneradas
como estagiário em serviços da própria faculdade, tendo nessa ocasião trabalhado em
laboratório clínico durante quase quatro anos. Depois de formado exerceu sempre
Clínica, inicialmente em atividades de atendimento de emergência e de Clínica Geral,
quando trabalhou durante os primeiros anos de vida profissional no Pronto-Socorro
recém-criado de um hospital público e num Pronto-Socorro de que foi proprietário
junto com outros seis colegas, além do trabalho em consultório de outro médico mais
velho. Na primeira atividade ficou apenas dois anos, na atividade de consultório e
como proprietário do Pronto-Socorro por cerca de cinco anos. Este último teve que
fechar; Eu adorava! Adorava porque era minha característica. Como eu não paro,
então para mim era... (...) Mas o serviço não rendeu. Não rendeu porque era tudo
cientista, né? Só depois destas atividades profissionais é que iniciou seu consultório
privado, que mantém há cerca de trinta anos e onde foi delimitando seu exercício para
área de Cardiologia, na qual, hoje, se mantém predominantemente. Ao mesmo tempo,
trabalhou desde o início de sua vida profissional em duas outras atividades de emprego
público: como médico contratado em hospital público há quase trinta anos e em que
até hoje trabalha; como médico-perito do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Industriários (IAPI), em que trabalhou cerca de 25 anos.
Os depoimentos desses médicos revelam que eles próprios fazem do
início da vida profissional um marco, um corte que se separa e até certo ponto
opõe dois segmentos dessa vida: o começo e o restante. Em primeiro
lugar, procuramos respeitar essa divisão, buscando identificar as caracterís-
ticas dos dois momentos em si mesmos, para só depois considerarmos a
própria divisão como uma questão. O primeiro desses dois momentos
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corresponde ao período que se dá em torno de um começo da vida profissional, em
que esses médicos se profissionalizaram e estabelecem a primeira forma de
organização da prática, o que conforme veremos não se restringe necessariamente ao
período pós-formado. Ser médico, fazer-se médico e Os referenciais da liberdade são
as partes em que dividimos a análise relativa a esse primeiro momento. O segundo
momento corresponde às transformações que eles mesmos operam no modelo inicial,
estabelecendo as reconstruções necessárias à preservação de núcleos centrais de seu
modelo primeiro, à proporção que cada vez mais as condições objetivas do exercício
profissional se distanciam dos padrões identificados ao verdadeiro exercício
autônomo. A liberdade refeita é o título que demos à análise desse momento. Por
último quisemos conhecer as razões pelas quais esses médicos delimitam tais
momentos, o que fizemos analisando o modo pelo qual eles próprios vivenciam o fato
de serem sujeitos históricos, inseridos em processos de mudança, no movimento do
real de que são partícipes. Observamos, então, como eles refletem sobre a mudança e
reconhecem o Sinal dos tempos.
Antes, porém, de examinarmos as narrativas é preciso salientar dois aspectos
relativos às condições históricas de que são elas produto. O primeiro é dado pelo fato
de que a mudança que relatam corresponde a uma reconstrução da autonomia que
fornecerá a seus agentes uma espécie de progressivo “constrangimento” de um
exercício autônomo-independente. Constrangimento que se dá em razão da
redelimitação das bases mais pessoais e subjetivas, na conformação do ato técnico.
Trata-se do redirecionamento da autonomia para outros espaços, isto é, para
os domínios do especializado e do tecnológico. Isto parecerá “natural” a seus agentes,
razão pela qual não será tomado exatamente como alteração, mas apenas decorrência
necessária do desenvolvimento científico. Assim, o problemático constitui a perda que
ocorreria na antiga base de apoio mais subjetiva, a qual realmente se contrai, ao ganhar
o exercício da subjetividade novos padrões. E isso evidencia, de outro lado, o fato de
que concebem a mudança sobretudo reduzida àqueles sentidos da realidade aos quais
atribuem valor negativo.
Em segundo lugar está o fato de que todos estes médicos iniciam suas
práticas com a base do plano pessoal já “contraída” por referência à do ideal da
profissão, posto que começam suas vidas profissionais sob as determinações de uma
medicina que já não se dá como prática tipicamente liberal. Mas se este é o seu traço
comum, mesmo no interior desse agrupamento, as condições objetivas da prática
médica transformam-se o suficiente para produzir identidades profissionais
diferenciadas entre si.
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O cotidiano profissional - 49 -
É deste modo que, de um lado, eles participam do mercado de trabalho na
forma de uma inserção em que coexistem as situações de trabalho assalariado, de
emprego público ou privado, com a situação de trabalho “liberal” do consultório
particular, à qual identificam um padrão de prática “difuso e maleável”, próprio do
exercício de caráter “essencialmente” pessoal e que por isso assumem como a
principal atividade na profissão. De outro lado, ainda que para todos seja o consultório
o que de fato simboliza o trabalho profissional, o sentido que assume a convivência
com as atividades sob vínculos empregatícios não é exatamente o mesmo para o
conjunto dos entrevistados, parecendo mais lógico aos mais jovens dentre eles. Para
este parecerá bastante plausível a necessidade de um emprego como a forma primeira
e mais imediata da inserção no mercado de trabalho: Logo depois que eu me formei,
então, fui arrumar um emprego, dirá o doutor Luís.
Também de mesma forma a especialização, o equipamento material ou a
base hospitalar, são componentes da prática profissional muito mais naturais e
próximos do doutor Carlos do que da doutora Emília ou do doutor Fábio, enquanto
componentes básicos para se iniciar a prática. Assim, o contraste aparece quando a
doutora Emília, mesmo na situação de trabalho com vínculo empregatício, repousa sua
prática no parto domiciliar ou na absoluta simplicidade tecnológica do consultório,
enquanto que para o doutor Carlos, não será estranha a incorporação do
eletrocardiógrafo e do aparelho de radioscopia como parte dos instrumentais do
consultório, ou então a idéia de criar um serviço um pouco mais especializado, tal
como o seu Pronto-Socorro. Elas fazem parte já de seu cotidiano, situação incorporada
que ele reconhece como familiar.
Não obstante esta diferenciação interna, será o conjunto dessas vidas
profissionais que observaremos para as considerações que seguem, uma vez que as
condições mais atuais da medicina tecnológica, e nas quais têm todos elas amplo
período de vivência, estreita muito as distâncias que a descrita diferenciação
profissional, pela especialização da prática ou incorporação de equipamentos da época,
consegue estabelecer para aquelas vidas entre si.
SER MÉDICO, FAZER-SE MÉDICO
a) o espelho da profissão
A profissão representa para os indivíduos entrevistados a viabilização do
projeto de ascensão social que da um traz como expectativa de par-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 50 -
ticipação na sociedade, de modo a se reconhecerem, e serem reconhecidos, como
sujeitos sociais de prestígio e valor. Para alguns pode representar a simples
continuidade de uma posição social já conquistada pela família. Doutor Luís, por
exemplo, seguiu os passos de seu pai e esperou que o filho seguisse os seus. Para ele
tratava-se de um caminho natural:
A idéia de fazer medicina sempre existiu. Não sei se teria me passado pela
cabeça fazer outra coisa! (...) Então, você gostava de falar, de letras, de latim, ia fazer
direito; ou você era muito bom em física, matemática, gostava das coisas – vamos
dizer – de cálculo, ia ser engenheiro; ou você ia ser médico. Não tinha muitas... muitas
variações. Tenho impressão que mamãe talvez, tenha gostado de eu estudar medicina.
Papai, não sei! Evidentemente deve ter gostado. Trabalhei com ele a vida inteira,
depois, né? Mas... eu... não senti de ter sido forçado, nem induzido. De fato você
vivendo... mas isso não quer dizer nada! Você vivendo num ambiente que você pode
escolher outras coisas, né? Talvez eu tenha escolhido fazer o mesmo tipo de clínica,
isso sim. Tive a facilidade de ir lá, um consultório junto, igual, fazendo a mesma coisa.
Mas, meu filho, por exemplo, escolheu um negócio totalmente diferente. Ele andou
freqüentando cirurgia e acabou optando por ... por Psiquiatria, que não tem nada a
ver, né?
Para outros o caminho não e de continuidade, mas uma ruptura com a
dependência, na afirmação da capacidade individual de construir sua vida com base
nas condições que criará em seu trabalho. Doutor Fábio quase não foi médico porque
na família o importante era ser fazendeiro; doutora Emília buscava a independência
como mulher, na visão de futuro que a mãe sabiamente já elaborava:
“Para viverem, muitas filhas terão a fé, educação, instrução e mais auto-
suficiência na vida.” Sempre lembrava que tínhamos direito à vida, mas que tínhamos
também o dever nesta vida. Assim nos educou! Outrora a mulher cuidava da casa e
educava os filhos. O marido provia a casa (...) Todas as minhas irmãs também
estudaram curso superior. Eu tenho uma irmã pianista; outra também pianista e que
fez também a Escola “Alvares Penteado”; a outra irmã fez farmácia e filosofia; a
outra irmã fez odontologia; e meu irmão é advogado. E eu sou médica, consultora
hospitalar (...) porque mamãe queria que a gente tivesse assim uma profissão, né? e
ser auto-suficiente.
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O cotidiano profissional - 51 -
Para o doutor Maurício, como imigrante, ser médico significou a
possibilidade de um trabalho estabelecido que pudesse afirmá-lo como autoridade e
cidadão de valor na terra estranha e torná-lo por isso parte dela:
Meus dois irmãos, mais velhos, que já estavam no Brasil quando vim, e que
eram como pais para mim, tinham uma casa de móveis, em Santos. Mas, no espírito
de nosso povo, a melhor fortuna que se pode ter na família é cultura, fazer uma
carreira que dignifique, uma carreira humana, digna; isso concorreu para que eu
fizesse medicina. Outro aspecto é o sentido da vocação. Sempre tivemos vontade de
ser útil em alguma coisa, inclusive em outros trabalhos paralelos à medicina.
Para o doutor Antônio representa uma ruptura com os padrões de pobreza e
uma vida melhor:
E por aí na minha adolescência, eu resolvi estudar. Eu fui, voluntariamente,
me matricular no ginásio, trabalhava, pagava as minhas mensalidades e estudei! (...)
Inclusive eu me lembro de um médico que tinha um consultório na Rua Bresser – eu
morava ali perto – e quando eu ia consultá-lo, eu achava um encanto aquele negócio:
a casa do médico, com a plaquinha dele: “Doutor Fulano de Tal”. Então, ele tinha
consultório em casa. Uma realidade: eu também tive consultório em casa. Aqui! Eu
morava aqui em cima! Depois é que eu mudei. Bom!, então eu achava um encanto
aquele negócio: aquela casinha do médico, com a plaquinha, entrava\ lá, aquele
consultório e ele – não sei porque não me dava muita bola; porque eu era moleque à
toa – examinava, auscultava... Por sinal eu nunca gostei muito de médico. Lógico!,
porque eu não... não gostava de tomar injeção, nem não gostava de que ele
examinasse a minha garganta... Não gostava! Mas eu tinha uma atração por aquela
situação de médico! Mas ser médico é uma coisa notável! Então, isso já existia. Isto é
que.. constitui a minha motivação de ser médico! Me lembro perfeitamente quando eu
era muito adolescente ainda, eu fui consultar um médico na Rua Bresser. Ele se
chamava Souza Ramos. Então, ele morava naquela casa onde ele tinha também o
consultório, na sala da frente. A casa tinha um portãozinho com a plaquinha dele. E
eu entrei; achei encantadora. Mas eu já... desde menino, gostava muito dos médicos
em geral. Onde havia um consultório médico, eu sentia uma certa atração
pelo consultório médico. Era uma coisa invisível! Inclusive porque eu era um
menino pobre. Nunca imaginei ... rapazinho pobre que nunca imaginei
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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que fosse ser médico. Mas eu... eu tinha essa apreciação, essa.. Quer dizer, não era
um médico em particular. Eu citei esse em particular porque era um médico que eu fui
consultar... e que ele me examinou, etc. etc. etc. E me lembro que ele receitou... Era
um... um processo de vias aéreas superiores e ele me receitou umas inalações assim
desses ... dessas substâncias de anti-sépticos respiratórios que dissolvem na água
fervente, aspira aquele vapor... Que não adianta nada! É uma porcaria! Não serve
pra nada! Então por isso eu o citei, mas não é... Quer dizer, não foi ele em particular
que me influenciou. Quer dizer, no meu entender daquele adolescente pobre, o médico
era um indivíduo distinto na sociedade. Era um médico que tinha até um... um
indivíduo que tinha posição muito distinta na sociedade. E eu... hã... Os poucos
médicos que eu via ou que eu conhecia ... de vista, não de conhecimento pessoal, e
achava que eles tinham alguma coisa de especial. Então, eram indivíduos elegantes,
bem-falantes, conhecedores, humanos... Quer dizer, essas coisas todas! Então, esse
era um problema que eu sentia.
Para outros, como o doutor Silvio – Naquele tempo ele era doutor, o senhor
doutor – ser médico representa a autoridade. Além disso, representa a popularidade e o
reconhecimento, como figura magnânima e dedicada, que faz do médico pessoa
conhecida e querida, como aquela imagem do seu médico de infância, que o doutor
Carlos retém na memória:
(...) um médico que faleceu em 1941, doutor Nacarato. Eu tenho a
impressão que esse homem nunca cobrou uma consulta de ninguém! Ele era amigo
de todo mundo! Então, quem necessitasse, ia procurar o doutor Nacarato. E ele
estava sempre às ordens (...) É verdade que os médicos, nessa época eram pessoas,
assim, ilustres. Muito considerados! (...) Indiscutivelmente! Isso, todos os que eu
conheci! Todos! Alguns até me recordo que se a gente comparar com o conhecimento
que a gente tem hoje, eles eram ingênuos. Mas eram umas pessoas que tinham uma
influência importantíssima! Alguns eram conselheiros de família ... que a pessoa ia lá
no consultório dele pedir opiniões pra decisões e tudo. Até acerca... opinar sobre
casamento de filhos! Eram coisas desse tipo. Então o médico tinha uma influência
muito grande, mais do que as outras profissões, inegavelmente. Inegavelmente!
Para todos, porém ser médico significa a possibilidade de uma afirmação de
identidade social que em boa medida decorrerá de seus esforços e
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1993. 229 páginas.
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desempenhos pessoais, onde alcançar o sucesso, nesta profissão socialmente bem-
sucedida, ainda se encontra neste período de seus primeiros passos profissionais (1930-
1955), relativamente mais dependente desse plano pessoal. A relação entre instrução e
autosuficiência, como aponta doutora Emília, enquanto possibilidade concreta de se
instalar um padrão de prática de exercício autônomo-independente, evidencia o sentido
da escolarização e da qualificação universitária como recurso necessária e por si
mesmo suficiente para a profissão. Ressaltemos que para tanto é central o fato de que,
até esse momento, o saber ainda representa o principal meio de trabalho, e sua posse, o
recurso suficiente para que o médico se estabeleça na vida profissional. Ser médico
podia ser assim simples como fazer-se médico por seu próprio esforço. As barreiras
sociais representadas pela escolarização e a seguir pela instalação do consultório e a
captação da clientela, ainda são nessa época passíveis de uma margem grande de
transposição pelo esforço relativamente mais individual.
Não obstante, devemos relativizar um pouco essa última afirmativa, pois
este esforço é apenas parte dos requisitos para ser médico: a própria camada social de
origem dos entrevistados (na maioria filhos de comerciantes, fazendeiros, gerentes de
indústrias grandes, funcionários públicos graduados) e a pequena presença de
indivíduos originários de famílias de baixos recursos nas escolas médicas, tal como
eles mesmos relatam, mostra como era socialmente difícil chegar à qualificação
profissional. O curso era longo, exigia grande empenho e a escola ocupava o dia
inteiro. Essa era a preocupação do doutor Carlos, cuja situação familiar piora muito
quando o pai é demitido do emprego já aos cinqüenta anos:
Medicina era um curso muito difícil, que o sujeito precisava estudar o dia
inteiro, não podia sair de casa, tinha que... E aquela era uma preocupação muito
grande porque eu me preocupava com a possibilidade de ganhar alguma coisa pra
fazer o curso. Precisava melhorar de vida porque nessa ocasião, também, aconteceu
uma problemática muito grave com meu pai e quase que... implicou na interrupção do
estudo... Enfim... mas enfim deu pra ir continuando com muita limitação e muita
economia...
Doutor Fábio também enfatiza esse aspecto ao relatar, em situação pessoal
oposta, a vantagem que obteve ao ter podido estudar e até mesmo exercer a prática, em
seus primeiros anos de formado, recebendo dinheiro da família. Nesse ponto o velho
foi bacana, é o modo de reconhecer o mesmo fato para o doutor Silvio:
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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A faculdade pra mim foi uma delícia! Gostei dela. Eu tinha vários colegas
de turma mais modestos do que eu. Mas tinha vários bem dispostos, parentes do
presidente Pena. E tinha até um colega negro. Ele era pobre também. Ele lutou muito.
A faculdade era uma coisa muito gostosa, a gente estudava... Mas eu nunca precisei
trabalhar. Nesse ponto aí o velho sempre se matou, né? Dava duro o velho! Aliás, o
meu filho me traga agora de velho, como eu trato meu pai. O velho sempre me tratou
bem. Eu não tinha dinheiro demais, mas também não faltava. Eu tinha as coisas que
precisava fazer.
Contudo, a época ainda inscrevia a possibilidade de se fazer os estudos
médicos trabalhando, para os estudantes mais pobres:
O tempo de faculdade – de estudo na faculdade – para mim foi muito difícil.
Pela seguinte razão: eu era um indivíduo pobre, casado, com um filho. Eu tinha só
uma vantagem: eu não pagava aluguel! Porque morava numa casa... numa casinha
velha que era da minha sogra. Então, não pagava aluguel. Esta era a única vantagem
que eu tinha. Mas as aulas da faculdade ocupavam o dia todo – de manhã e de tarde.
Eu tinha aula desde as oito da manhã até meio dia, depois das duas às seis, e eu
morava no Brás. Agora, acontece que já durante o primeiro ano, no começo, foi uma
dificuldade. Uma dificuldade porque não dava para trabalhar. Mas acontece que o
Colégio Anglo-Latino, que na ocasião era o melhor colégio de São Paulo, ele resolveu
dar, a título de prêmio, aos três alunos que mais se distinguiram no Colégio, dar um
emprego de professor. E entre esses estava eu! Então fui eu, foi um... e foram mais
dois colegas meus. Nós três que éramos os primeiros do curso. Então fomos
nomeados professores de Ciências Físicas e Naturais. Isso tinha uma certa
compatibilidade porque eu escolhia os horários. De fim de manhã, de fim de tarde e
de noite. Então dava para eu assistir as aulas na faculdade, sair correndo, ir para o
ginásio, dar uma ou duas aulas no ginásio. À tarde a mesma coisa: saía da faculdade
correndo, dava pra dar umas duas aulas no ginásio e, à noite, era livre. Eu dava mais
aulas à noite.
(Doutor Antônio)
Todo o esforço, porém, valia, pois a medicina era encanto, esperança,
conquista. Uma dificuldade que se realizava e compensa a quem nela se arrisca, como
conclui doutor Maurício:
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1993. 229 páginas.
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Hoje mudou muito a visão filosófica da vocação médica! Bastante! Hoje,
infelizmente, o médico para poder atender um doente, pra ir à Santa Casa... pra ele já
onera, até o aprendizado fica um pouco mais difícil, porque a carreira médica é muito
onerosa para a classe social que não tem condições. São oito anos de... de vida. São
seis anos de curso; às vezes um, dois anos de pré-médico, são oito, e mais uns dois ou
três anos quando você quer sair da faculdade seguro do que você faz. Com esse
excesso de escolas médicas, esses rapazes têm que se jogar na vida de maneira muito
precoce, muito problemática. Não sei se é por vocação, por inclinação, por influência
dos pais, dos parentes, etc... É uma carreira sacrificada mas que realiza a gente.
A cada época evidenciam-se trabalhos correspondentes a essa representação:
a de serem formas de se colocar socialmente, de modo a obter prestígio, alta
remuneração e ascender no interior da estratificação social, situações que parecem
realizar-se na dependência do esforço de cada um, por meio da vontade, de
persistência em vencer dificuldades e da capacidade pessoal para fazê-lo. Nas
sociedades capitalistas e no interior dos trabalhos socialmente qualificados como
trabalhos “mais intelectuais”, essa imagem do empenho pessoal identifica-se à
escolarização, onde o sucesso parecerá derivar exclusivamente da persistência
laboriosa no estudo por parte do estudante.
A escolarização como promessa de “vencer na vida” e como produto de
disposições pessoais não é porém, apenas uma promessa falsa, uma imagem
totalmente enganosa da realidade. Ao contrário, a representação funda-se sobre a
realidade objetiva em que de certa forma e até certo ponto realiza-se a promessa, isto
é, confere-se crédito a uma imagem que dentro de determinadas proporções se efetiva.
Há portanto limites, há contenção dos espaços em que o concreto realiza a imagem.
Mas estes limites não estão reconhecidos na representação. Ao menos não na
representação construída pelo pensamento que é dominante, como veremos. E tal
como agora vemos, os limites tampouco perpassam a imagem que nossos
entrevistados trazem. No interior de seus discursos toda dificuldade parece esvanecer
ante a vontade individual, ainda que esta tenha que ser muito forte e verdadeira: uma
vocação.
Certamente poderemos encontrar nos dias de hoje, na sociedade dos anos
80, algum trabalho que se revista dessa qualificação de “profissão”. E com
certeza, dado o valor social do tecnológico atualmente, é provável que este
trabalho nem mesmo necessite deter o grau de “intelectualidade” que se
conferiu em outras épocas aos “trabalhos-profissões”. De qualquer
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 56 -
forma é possível identificá-lo: há trabalhos que ainda são representados, na ideologia
dominante, com esse caráter de trabalhos bem-sucedidos socialmente em razão de
qualidades pessoais de seus agentes. Vale dizer que, mesmo no mundo tecnológico ,
há trabalhos cujo êxito social parece vincular-se menos às tecnologias e mais aos
talentos, por serem êxitos em grande parte, embora não exclusivamente,
comprometidos com os esforços e desempenhos individuais. No período histórico que
examinamos, e que se passa em torno dos anos 40, são as “profissões liberais” e muito
acentuadamente a medicina que assim se apresenta na sociedade. Doutora Emília
evidencia esse aspecto já na decisão de fazer medicina e de optar pela especialidade,
parecendo que estudar, formar-se, definir um campo de trabalho é apenas questão de
decidir e fazer, ou então saber perceber seu próprio “dom” e realizá-lo, transpondo por
seu próprio empenho até as dificuldades dadas por sua condição de ser mulher.
Quando eu fiz odontologia, eu já queria ser médica. Mas eu fui fazer
primeiro aquilo que precisava, pra fazer frente às coisas da casa também, né? O
curso de odontologia era só dois anos. E eu clinicava no gabinete dentário das oito às
dez e das dezessete às vinte e uma horas. A profissão de dentista, naquela época, era
um trabalho de rotina e eu queria uma profissão que me desse algo mais. O de ser
médica a medicina. Seria médica de senhora: faltava mulher para atender a mulher.
Por pudor, as mulheres só procuravam o médico tardiamente, quando mais
acentuadamente estavam seus males. Comuniquei para mamãe a minha decisão e ela
disse: “É uma profissão para homens, minha filha! Precisa muito estudo e muita
coragem. E você é tão fraquinha.” “Bem – respondi – vou fazer meus preparatórios e
quando eu estiver pronta nós conversamos.” E como minha mãe era persistente, eu
também era! Puxei pela mãe (...) Eu fui escolhendo essa área mais por uma coisa.
Primeiro, por questão do meu temperamento. Eu tinha saúde, tenho raciocínio pronto,
tenho uma determinação imediata e a especialidade exige raciocínio, exige saúde.
Porque fazer Obstetrícia naquele tempo... Porque hoje já é um pouco diferente.
Naquele tempo precisava ter saúde, né? Levantar de noite, fazer um parto, por
exemplo, que a gente fica... De maneira que era questão de saúde e a minha
disposição dinâmica fez com que eu fizesse essa especialidade. Ao correr do curso eu
vi que... por exemplo, eu não seria uma mulher pra fazer – vamos dizer – pesquisa,
fazer... outros trabalhos que demandassem mais paciência, mais tempo, em virtude do
meu temperamento. Eu quis fazer medicina por pendor, por vocação! Não tinha
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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nenhum médico na minha família! A profissão médica... não é uma profissão! É uma
vocação! Naquele tempo era uma vocação!
Não obstante, é no interior desse mesmo depoimento que a relativização
desse “poder pessoal” em ultrapassar os obstáculos da vida social transparece:
delimitação já dada, de modo introjetado, consciente ou não, das próprias escolhas que
se concebem como exclusivamente definidas pelo esforço pessoal, o qual, porém, já
conhece de antemão os limites dos espaços em que poderá realmente vir a se
desenvolver:
Pra começar, médica – mesmo clínica geral – não examinava homem, né?
Aliás, acho que nem precisa. Hoje... tem quem trate de homem, né? Eu acho! Homem
é sempre homem e mulher é sempre mulher e sempre... Não dá certo! Em geral, as
médicas da minha época elas faziam Pediatria ou Clínica Geral, né? Mas aí, mais
ligado a parte de senhoras mesmo. Não me lembro de ninguém fazer... clínica de
homens, assim. Só atendiam mesmo senhoras, né? , vias urinárias só senhoras
mesmo. Mas hoje, a gente vê aquela doutora famosa aí que faz muito bem moléstias
ano-retais, né? Ela faz muito bem e faz Procto mesmo... Então, desde o quarto ano
que a gente se inclinava pra dentro das especialidades. Continuava com as suas
matperias básicas... mas já se inclinava, mais ou menos, naquilo que queria seguir. E
eu achei por exemplo, que a Clínica Geral era uma ... uma bela especialidade, mas
não se adaptava muito ao meu temperamento de imediatista, prática e objetiva. Então
eu achei que era difícil ser um bom clínico. E o bom clínico é o grande médico de
hoje, né? E o bom... o bom clínico é o grande médico de amanhã e sempre. Era difícil
ser um bom clínico. Porque... depende de muito estudo. Precisava estudar muito e
naquele tempo os recursos eram muito pequenos e os resultados não eram palpáveis,
por assim dizer. A área cirúrgica era mais... era mais objetiva, né? Era uma área mais
prática, mais objetiva, resultados imediatos! O cidadão... ficava bom ou ia... mas já
tinha resultado imediato só da... era mais útil a uma primeira vista, né? E eu fazia
toda essa parte como voluntária. Quer dizer, já ia me dirigindo mais pr’aquilo que
queria, mas ia fazendo voluntariamente. Tudo voluntário.
(doutora Emília)
Eduardo Etzel2 mostra como, simultaneamente ao fato de que era possível
fazer-se médico com grande dose de empenho pessoal, também de
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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outro lado o desempenho encontra limites nas condições concretas da vida social,
mesmo no interior da profissão: O médico após a formatura, para alcançar as
culminâncias do saber, tem que fazer um grande esforço com dedicação plena e
continuada por vários anos. São tempos difíceis em que vencerá quem for mais
persistente... (...)... na profissão somos o que somos não porque idealmente assim o
quisemos, mas apenas porque aquilo que as circunstâncias permitiam.
A busca de uma área definida de atuação no interior do campo profissional
permite, portanto, apreender bem essa articulação entre o plano das interferências
pessoais possíveis no social e o determinismo relativo desse social nas escolhas
pessoais. Observemos,nesse sentido, que mesmo no interior da escola médica, o
estudante parece dispor de um grande espaço para a opção pessoal, já permitindo
representar tudo o que diga respeito à profissão por meio da noção da liberdade – da
livre escolha, do livre arbítrio. Essa noção não mais deixará de acompanhá-lo como
referencial de pressuposto adequado e qualificador de seu trabalho.
Lá pelo meio do currículo escolar, o estudante já constrói no interior do
currículo formal o “currículo pessoal”, aquele que lhe permitirá alcançar qualificações
específicas, maior adestramento e experiência clínica, e que o diferenciará na profissão,
por algum domínio da arte clínica ou da técnica cirúrgica. Como diz doutor Nélson:
Dos colegas de faculdade, nem todos faziam Clínica. Variava muito! A
turma, do quarto ano em diante, já começa a desviar. Já fazia Ortopedia, já fazia
olhos, já fazia Dermatologia, já fazia Cardiologia, já faziam outras coisas...
Psiquiatria, tinha os neurologistas... Do quarto ano em diante eles já se dividiam. E
eu, já do quarto ano em diante, já fiquei na Clínica lá; fiquei lá na Clínica. Mudei de
enfermaria, para aquela do Celestino Bourroul. Eu gostava muito! Sexta, Medicina de
Homens.
Doutor Carlos lembrava, por exemplo, dessa autonomia de ação (naquela
época a gente tinha liberdade de expansão) derivada da combinação entre seu trabalho
no laboratório clínico e o currículo formal do estudo nas enfermarias do hospital:
E eu consegui arrumar uma vaga, por intermédio daquele colega
de turma, no laboratório central do Hospital São Paulo, que dava atendimento
a tudo, tanto aos indigentes – quer dizer, às enfermarias – como aos
pensionistas. Então eu comecei a aprender a colher sangue...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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A gente, naquela época, fazia contagem de glóbulos picando a ponta do dedo, colhia
com pipeta, preparava as diluições, punha no microscópio... uma habilidade, um
aprendizado que só vinha com o tempo! Fazia-se uma série de asneiras e tal, até
aprender! Então a gente aprendeu; trabalhava. No fim de alguns meses eu... eu e esse
rapaz\ ficamos...hã... mais diferenciados e eu... como tinha muito interesse em
Bioquímica... aos poucos, eu fui ficando especializado em execução de provas de
função renal, função hepática, padronizava, fazia novas técnicas. Então, eu me
recordo, por exemplo, que eu fui um dos primeiros, no Brasil, a ter feito... a fazer
volume de sangue circulante, com corante chamado Azul de Evans, T-1822. Eu
trabalhava em contato com o laboratório de hemodinâmica da Clínica Propedêutica
e aproveitava os cateterismos intracardíacos que estavam sendo iniciados na época –
que eu ajudava, também – e eu aproveitava, puncionava a artéria funeral do paciente
com uma agulha especial, injetava o contraste, depois colhia amostra arterial e media
no fotocolorímetro. Na época, o mais sofisticado era o “Coleman Júnior”, que hoje é
coisa de museu. E eu consegui fazer umas duzentas determinações! (...) O que
acontecia naquela época, é que os estudantes, alguns... Por exemplo, lá na escola,
cirurgia era muito limitada. Então, quem queria cirurgia já sabia que ou ele tinha que
se submeter a uma série de coisinhas e ficar muito restrito lá, ou então ele ia embora.
Então, frequentemente, havia muito colega meu que trabalhava tanto na clínica como
na cirurgia da Santa Casa. A Santa Casa, naquela época, tinha sido com a fundação...
com a inauguração do Hospital das Clínicas, a parte clínica e cirúrgica da Faculdade
de Medicina da USP, saiu da Santa Casa e foi pro Hospital das Clínicas. E a Santa
Casa ficou... um hospital de caridade simples. Mas com uma ampla possibilidade de
aprendizado. Então, muita gente se dirigia pra lá pra aprender. Então, Ortopedia,
Cirurgia e mesmo setores de Clínica. Então, o pessoal que não ficava naqueles
grupos, eles migravam para esse serviço. Ou hospitais particulares. Então muita
gente aprendeu assim. O aluno fazia o seu programinha, assistia as aulas e ia embora
trabalhar num outro lugar! O indivíduo tinha obrigação de responder a chamada, de
assistir as aulas obrigatórias, freqüentar os seus grupinhos, e tal, mas aquilo tudo era
muito limitado. Ou era muito... muito restrito, vamos dizer assim.
Doutor Antônio sente-se “exagerado” nas possibilidades de uso dessa
liberdade de escolha e de ação:
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O cotidiano profissional - 60 -
(...) já no primeiro ano eu optei para uma especialidade. O que é, no meu
entender, um absurdo, mas no meu ponto de vista eu estava decidido e a decisão era
visível. Por que eu estava optando já no primeiro ano para... por fazer Pediatria!
Porque eu já tinha um filho que tinha nascido naquele momento. Então essa criança
pequenina, recém-nascida, já despertou em mim apreciação, um amor assim
característico pela Pediatria. Tanto que, antes de eu conhecer pessoalmente... No
primeiro, segundo ano, quando eu andava pelos corredores da faculdade, eu parava
diante de um quadro de formatura, o único... o primeiro indivíduo que eu procurava
no quadro de professores era o velho Pedro de Alcântara Marcondes Machado, que
era o professor de Pediatria. E eu adorava aquele indivíduo! Então, eu optei pela
Pediatria já no primeiro ano. Quer dizer, a partir do primeiro ano eu já sabia que eu
deveria ser Pediatra. E, realmente, já no quinto ano médico eu já entrei no berçário
da Clínica Obstétrica, trabalhando com permissão do professor Raul Briquet... O
Briquet é um homem maravilhoso, um homem... maravilhoso no sentido de... estrutura
humana que esse homem... Ele era um grande obstetra! (...) Bom, e nós fizemos todos
os nossos anos – do primeiro ao sexto – exatamente com esse objetivo, de tal maneira
que no quinto ano eu já tinha entrado para a Obstetrícia, trabalhando no berçário por
indicação do professor Raul Briquet. Fiquei todo o quinto ano, todo o sexto ano lá
dentro do berçário. Mas, para estar lá, eu não tinha dispensa de nenhuma cadeira,
tinha de atender todas as aulas. E na minha turma, até aquela época, no sexto ano nós
tínhamos aula! Aulas teóricas e práticas. Inclusive na minha turma as aulas da
Psiquiatria... Ainda não estava funcionando o Instituto de Psiquiatria. Então, as aulas
de Psiquiatria eram dadas na Brigadeiro Luis Antônio, onde é hoje a “Cruzada Pró-
Infância”. É ... é naquele local! Era obrigado assistir aulas teóricas todos os dias;
aulas práticas todos os dias. Agora, nas horas de folga, eu estava lá dentro do
berçário, de dia ou de noite.
Essa introdução de um currículo informal e simultâneo é, para os futuros
clínicos, a forma de se iniciarem na complicada arte clínica, adquirindo um pouco da
experiência clínica pessoal tão necessária para o exercício da profissão.
Os futuros cirurgiões, de outro lado, buscavam maior habilidade
técnica, fixando-se logo nas enfermarias de doentes cirúrgicos e partici-
pando em cirurgias como assistentes ou instrumentadores do professor. Alguns
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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o fariam na própria escola, enquanto que outros, como o doutor Luís, podiam dispor de
uma forma de aprendizado totalmente independente:
Você se encaixa num campo; enquanto estudante mesmo já se escolhia uma
enfermaria... Bom, tinha o currículo escolar normal, né?, você passava por tudo. Além
disso, você se encaixava naquilo que você queria fazer, aí passava o dia na faculdade,
né? Chegava sete e meia, sete horas, sete e meia, oito horas, ficava até às seis, sete
horas da noite, né? Mas eu freqüentava o hospital. Durante a faculdade deu pra
freqüentar muito pouco porque não tinha hora vaga, né? Então... freqüentava nas
férias. Em geral, nas férias, eu ia de manhã com papai. Eu ia com ele e ficava lá no
hospital. Então freqüentava cirurgia – assistia, ajudava – e depois passava... ficava lá,
às vezes, espiando a Radiologia. Tinha um colega na Radiologia que era muito...
Sempre tem um colega que polariza os outros, né? Um colega que tomava conta da
Radiologia lá... É falecido há tempo também. Tem um filho que é... agora é... criador
de cavalo árabe, está rico! Mas ele... o cafezinho era tomado na sala dele. Eles
ficavam lá! Conversa de médico; já viu, né? Era só discutir: “Olha, eu vi esse caso,
não sei o que, não sei o que...” Se aprende muito em... em hospital, fuçando o hospital,
né? Às vezes aparecia um lá: “Eu preciso fazer... Você está livre? Pode ajudar a fazer
isso?” “Pois não doutor!” Ajudava a fazer gesso, ajudar ...Aprender um pouco de
cada coisa, né?
A importância dessa liberdade para a formação individual, como estímulo à
iniciativa pessoal, é o que relata também doutor Maurício, o que no seu caso significou
até a escolha de outra cidade, deixando o local em que morava, para cursar a faculdade
de medicina:
Comecei a trabalhar como voluntário, para aprendizagem , no segundo ano
da faculdade, em Urologia. A partir do quarto ano comecei a trabalhar de forma
remunerada. (...) Naquela ocasião não era como hoje, a medicina em São Paulo.
Hoje temos a USP, depois a Paulista. O Rio também oferecia maior
oportunidade hospitalar, mais oportunidade de ter local para trabalho.
Naquela época se falava muito que São Paulo era um ambiente um pouco fechado.
Um calouro, que está começando a pensar em medicina e ouvido esses
diálogos, chega à conclusão que já que o material humano e o ambiente
hospitalar são maiores ... por que não? Então fui ao Rio e assim começamos. Em São
Paulo era difícil que o estudante pudesse praticar a medicina, praticar
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 62 -
no hospital, nos grandes serviços. Para poder trabalhar naquela ocasião tinha que
obter uma amizade, alguém que me encaminhasse, e como eu não tinha
propriamente, então achei por bem... No Rio, realmente, o estudante tinha melhores
condições de trabalho que o paulista; isso confirmamos durante o nosso curso de
medicina. Desde o primeiro ano de medicina comecei a trabalhar numa enfermaria
aprendendo como se põe a mesa, como se cobre a mesa, como se dispõe o material
cirúrgico, o nome das pinças, que você lê nos livros de Anatomia, mas na prática você
não se sabe. Comecei a aprender a fazer injeções intravenosas. Trabalhei na Liga
Brasileira Contra Tuberculose, onde comecei a fazer infecções de cálcio na veia,
aprendi a olhar os pneumotóraxes. Então eu comecei lá na Tuberculose, depois um
emprego na cooperativa de manhã, naturalmente, na Santa Casa, e à noite no serviço
de Urologia. A escola só começava a parte prática do quinto ano em diante, então o
estudante tinha que procurar os serviços por autodeterminação. Ele ia fuçar os
serviços para ver se se identificava com o serviço. Eu fui procurar especialmente os
serviços cirúrgicos ginecológicos. Eu gostava de fazer cirurgia, gostava de viver
dentro de hospital”. Tinha a frequencia digamos religiosa, às vezes até ao sábados.
Acabamos percebendo que nós não sabíamos fazer outra coisa.
Ao mesmo tempo esses médicos convivem, nessa época da formação
escolar, com regras bem-definidas e bastante inflexíveis de comportamento: a
severidade enquanto base para a aculturação em um desempenho pessoal no qual, para
poder ser livre, deve-se ter comprometimento responsável e dedicação plena. A vida
marca-se nesse período pelo respeito que deriva do reconhecimento das autoridades,
fundadas num saber que não é só técnico ou científico, mas o da experiência pessoal
pregressa: o professor e o pai; a mãe; os mais velhos e experientes, todos são severos.
O médico mais antigo, a quem o recém-formado pode se “associar”, também priva
dessa qualidade em que severidade e sabedoria estão mescladas. Todos contam em
suas histórias de infância esse traço característico de uma dada moral de conduta de
estreitos limites para opções individuais. E sem querermos introduzir uma discussão
sobre o sentido da cultura e da moral na sociedade dos anos 40, não resta dúvida, por
todos os relatos, quão presente está no interior da escola médica essa identificação
entre a sabedoria e a severidade, na figura da conduta austera e rigorosa daquele que
sabe: ter autoridade e saber significará ter desenvolvido uma moral de férrea disciplina
pessoal. Seus referenciais podem ser verificados nas práticas de ensino através da
célebre aula inaugural do curso médico que trata
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 63 -
do respeito ao cadáver, como nos conta doutor Luís, ou do rigor do ensino com suas
provas públicas e “duríssimas”, como nos conta o doutor Antonio:
A entrada na faculdade foi muito dura por várias razões. Primeiro porque
só existiam duas faculdades. Então era muito duro! Poucas vagas e o número de
candidatos era em torno de oitocentos. Quer dizer, era dez pra um, mais ou menos,
como é talvez, ainda hoje; não sei. Porque hoje o vestibular é muito diferente... Bom, e
o vestibular era muito duro! Muito duro por quê? Porque o vestibular era feito na
própria faculdade. As matérias eram três; eram Biologia, Física e Química. Só! Eram
três matérias para o vestibular. E o exame era escrito e prático-oral. Quer dizer, cada
matéria tinha exame escrito e prático-oral. Eu me lembro até das questões que caíram
no exame... Então, a gente fazia prova escrita – todas as provas escritas – e, depois,
fazia as provas prático-orais. Então, a... a banca era constituída por três ou mais
professores, mas quem examinava era... na Biologia era o Joaquim Lacaz Neto. E o
aluno, na frente do indivíduo, então ele fazia todas as perguntas que ele queria e,
depois, ia para a prática. Pega o microscópio: “O que está vendo aí? E isto aqui, o
que é?” O negócio... era muito duro! Então o exame vestibular era um exame duro,
minha filha, duro! E eu passei – veja bem! – a minha média foi 7,3 e minha
classificação foi 63 lugar! Com esta média – 7,3 – 63 lugar! Era realmente muito
difícil, extremamente difícil.
(doutor Antônio)
Da faculdade, eu me lembro da primeira aula de Anatomia! Não sei se
continua assim! Foi uma aula que o Lochi deu. Naquele tempo era assim e ele... fazia
esta aula de propósito. Não sei se o pessoal mantém ainda esta tradição, mas era uma
tradição válida. Tenho a impressão que a minha filha teve ainda no... na Escola
Paulista uma aula assim. Ele só falava de Anatomia, do cadáver, do respeito ao
cadáver, papa-papá, depois ele tinha um cadáver assim, que estava na mesa. Depois
então, ele descobria o cadáver e dava aula. Um negócio, vamos dizer assim, bem...
Quer dizer, essa aula marcou muito.
(doutor Luís)
Há ainda o caso extremado que relata doutor Carlos:
Bom, a enfermaria era rigorosíssima! Porque o professor ia diariamente à
enfermaria e os assistentes tinham um pavor dele tremendo! E a
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 64 -
gente, consequentemente, por tabela, também! E o doente, internava, fosse a que hora
fosse, a gente tinha vinte e quatro horas de prazo pra fazer o exame completo, uma
anamnese completíssima com exame físico. Que era corrigido pelo assistente. Então,
nos mínimos detalhes. E... e eu me recordo, por exemplo, que num domingo... –
portanto, eu estava no quinto ano, eu já era interno da enfermaria – um domingo de
manhã, um sol bonito, um dia espetacular, tinha entrado, na sexta-feira de noite, no
sábado de manhã, um paciente novo e eu estava fazendo a evolução... nós estávamos
fazendo a evolução dos internos quando o professor entrou – ele era uma figura
imponente, alta, muito elegantemente vestido – ele entrou e pegou aquela papelada e
viu que não estava pronta. E ele perguntou quem era o assistente. E esse assistente
tinha ido para Santos, passar o fim de semana lá. Pegou o ônibus Cometa nessa
época, não tinha nem carro, e foi pra Santos. O professor mandou localizá-lo, ficou
esperando ele voltar de Santos, para confeccionar a anamnese do paciente que não
tinha sido feita. Então ele era desse rigor terrível! Brigava com todo mundo... Então, a
enfermaria dele funcionava de uma maneira rigorosa! E a gente aprendia
violentamente! Aprendia muito...
Essas são situações que dão conta de evidenciar o traço típico de uma época
em que à exaltação da iniciativa individual combina-se rígida moral de
comportamento. Assim sendo, mesmo no âmbito desse plano do desempenho
individual como referência para ação social, a liberdade de ação terá que se articular a
regras de contenção dadas pelas disciplinas de atuação pessoal: a liberdade encontrará
na severidade, e em sua correlata responsabilidade para com a ação proposta, os
limites que conformarão o comportamento do livre-arbítrio. Essa mesma moral de
conduta aparecerá também na forma de um comportamento de plena dedicação, posto
que, de um lado, a liberdade expressa o padrão de base mais pessoal, de outro lado esse
mesmo padrão implica contínua vigilância, de caráter pessoal e pessoalmente exercida,
no sentido de controlar o resultado, os efeitos da escolha e da ação realizada.
Responsabilidade e dedicação, portanto, são as contrapartidas que parece exigir essa
liberdade maior de comportamento expressa no “poder pessoal”.
b) a matéria da profissão
Uma outra situação na qual se observa essa livre iniciativa, e que por isso
parecerá produto exclusivo do desempenho pessoal, é aquela em que
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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se dá a instalação do consultório e a captação da clientela. Como já dissemos, ser
médico parecerá por referência a essas situações coisa tão simples como fazer-se
médico, desde que se queira e se esforce individualmente nesse sentido. São decisões
livres, cuja realização significa empreendimentos que implicam, porém, dedicação e
responsabilidade. E do mesmo modo que Etzel3, nossos entrevistados referem que a
paciência nesse campo viria a ser a porta do êxito futuro.
Em Água Rasa, a minha clientela começou, o início do movimento...
Naquela ocasião, lá onde eu estava, próximo, alguns quarteirões antes, estava o
doutor Arnon, na Quarta Parada. Ele era médico de uma grande indústria de tecidos
ali da região. E ele havia clinicado neste local em que eu fui consultar, fui trabalhar,
montei consultório, no início. Então montei o consultório lá. Eu cheguei lá e montei a
minha tenda. Hoje não teve cliente, outro dia não teve, foi vindo um, outro, foi
aumentando, e eu fiquei com uma clínica muito boa... E constância, a persistência, a
constância, o modo de atendimento...
(doutor Paulo)
A ausência da persistência pode ser, ao contrário, fatal, como lastima doutor
Nélson:
Quer dizer, eu acho que a clínica daria mais. Se fosse... se eu tivesse mais
tempo pra ficar no consultório ou ficar à disposição... Talvez isso! Eu ficava no
consultório à tarde e trabalhava de manhã no centro de saúde! Em Santana! E,
depois, no centro de saúde de Santa Cecília. Então... Mas é aquele negócio! Quando
você queria trabalhar de manhã, de repente te jogavam pra tarde. Então, era da uma
às quatro. Você já perdia a parte da tarde – umas horinhas – e de manhã já ficava
livre. Então, era aquela confusão! Entendeu? Eu achei que devia me dedicar mais.
Hoje em dia eu penso que eu devia – talvez, talvez – ter arriscado ser um franco-
atirador. Penso eu! Porque, naquele tempo, ainda se podia fazer alguma coisa. Você
ser livre! Ficar só no consultório! Sem interrupção! Trabalhar por conta do
consultório. Santana, Bom Retiro, Lapa, Belenzinho... Ficar lá! O dia inteiro! Consul-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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tório! Ou então, freqüentar... uma enfermaria, que eu gostava de Clínica. Ir lá
apalpar, percutir, ver casos novos, discutir... Aquela coisa que você sabe, que você
conhece! E de fazer a tarde toda livre lá, atendendo o pessoal! Entendeu? Mas...
Outra coisa! Eu não gostava de pedir favor. Pro farmacêutico encaminhar doente...
Eu nunca gostei. Eu queria fazer medicina pura! Como faziam esses medalhões, não
é? E isso aí – você sabe! – hoje precisa ter uma engrenagem.
O consultório aparece, portanto, como a principal e primeira atividade a ser
iniciada logo após formado. Um dos entrevistados conta que ao perguntar para seu
professor de Clínica quando deveria montar seu consultório, o professor devolveu-lhe
a pergunta: Quando o senhor se formou? Há quinze dias, professor – responde-lhe o
entrevistado. Então o senhor já perdeu quinze dias! Esse pequeno depoimento e o que
se depreende das narrativas de todos aponta para a possibilidade de uma inserção no
mercado de trabalho que ao menos parcialmente, já que esta é na maioria das vezes
apenas uma das situações de trabalho do médico, encontra-se comprometida em
grande parte com o empenho pessoal. Isto é relevante no caso da medicina, sobretudo
porque o consultório particular é que será a situação de trabalho que irá conferir maior
renda e prestígio, reiterando para o trabalho médico a concepção da promoção social
como produto do esforço de cada um.
Um outro exemplo está na própria instalação do consultório que parecerá
derivar tão-somente de se escolher um local, fixar-se e aguardar a clientela. A vontade
individual é que comandaria a efetivação do serviço médico, até porque os recursos
necessários para estabelecer o consultório são poucos, em especial do ponto de vista
dos equipamentos materiais. Assim, a qualificação escolar e certas virtudes pessoais,
com a disposição, a paciência e a atenção, em conjunto com o acertado desempenho
terapêutico, é que surgem enquanto os recursos suficientes para captar e garantir uma
clientela.
... quando eu montei o consultório, naquele tempo tudo era simples. Só tinha
que ter o sofá, uma mesa cirúrgica pras coisas simples, pras pequenas cirurgias,
equipamento de esterilização e tinha minha escrivaninha. Era simples, simples!
Não tinha nada demais. Era mais pra Clínica mesmo. Não tinha nada demais.
Eu não chegava a fazer eletro, por exemplo. Naquele tempo começou a
ser feito eletro, né? O Zé Ramos começava a fazer, tudo. Mas eram só três
derivações, muito raro. De modo que era muito precário, ainda. Quer dizer, era muito
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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mais ausculta mesmo no estetoscópio. Nesse tempo aí eu fui chamado pra atender um
cliente de vinte e poucos anos. Ele estava com dor precordial. Ele brigou com a
patroa e dormiu na rua! Aí, de manhã ele saiu e foi jogar bola. E teve infarto. Então
me chamaram. Quer dizer, tem muita coisa em jogo aí, né? Parte psíquica, briga, isso,
aquilo... Muita coisa em jogo! Mas pode ser, pode não ser, mas em todo caso vamos
esperar. Deixei ele em repouso. No dia seguinte chego lá, a pressão – pfss! – estava lá
embaixo. Aí saí correndo! Era infarto! O diagnóstico se fazia, assim, pela história, e
também porque caiu a pressão... Era assim naquele tempo. Mas isso não era difícil. É
como a história da pleuris que eu contei. “Mas o senhor não precisa fazer exame?”
Nesse caso desse rapaz, eu encaminhei ele pras Clínicas. Não ficou em casa, não.
Mas quando eu montei o consultório, o equipamento não era muito caro. Não era
barato também, mas não era caro demais. Dava pr’um médico recém-formado
montar porque não tinha nada de especial. Tinha a sua cabeça e o resto era coisinha
simples.
(doutor Sílvio)
Os depoimentos também mostram que alguma aparelhagem já se
incorporava à prática, contudo eram equipamentos de manejo mais simples, podendo
inserir-se como componentes próprios do consultório. Essa aparelhagem, além disso,
aparece também como recurso de fácil aquisição e instalação.
Eu tinha também uns aparelhos. Lá no Sanatório Esperança eu tinha uns
aparelhos que eram do hospital, mas tinha alguns que eram meus. Por exemplo,
ultravioleta, infravermelho, onda curta, eram meus. Eu tinha, né? Eu trouxe pro
consultório. Eu fazia também as aplicações no consultório. (...) O uso desses
aparelhos lá era mais a parte ginecológica e a parte de otite pra criança, para
adulto... Sinusite, caso de sinusite. Agente mandava fazer raio X. E dando diagnóstico
de sinusite, a gente fazia aplicações de ondas curtas. Fiz tratamentos de vacinas e
antibiótico também. Naquele tempo já tinha sulfa. Ou, então, pra reumatismo, não é?,
dores articulares, nos joelhos, assim, outras articulações... A gente fazia sessões. Aí,
dez, quinze, vinte aplicações, uma por dia, e vinte, trinta minutos de aplicação. Fora
esses equipamentos, no consultório tinha material para pequenas cirurgias. Tinha
todos, né? Assim pra abscesso ou pra fimose. É só isso que eu tinha. Eu mesmo fui
comprando esses aparelhos. Todo consultório tinha. Todo consultório
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 68 -
tinha esses aparelhos. Esse número de bisturis, pinças, tinha muita gaze, tinha
algodão... Todo consultório tinha. Você podia resolver os problemas no consultório,
de imediato. Isso sempre lá tinha. Tínhamos umas estufazinhas, mandava esterilizar o
material – enfermeira fazia isso pra mim – gaze, bisturi... Era fácil de comprar!
Acessível! A gente comprava nas farmácias maiores ou tinha mesmo depósitos no
centro da cidade – que não me recordo como é que era. A gente telefonava e eles
mandavam: gaze, algodão... Pacotes, né? Sempre tinha um estoquezinho. Muito
anestésico pra anestesia local. Quem abria o consultório, já abria com este tipo de
equipamento. Já abria. E não era caro. Mais caros eram os aparelhos, mas os
aparelhos eu já havia adquirido há muito tempo. Então, eram baratos, relativamente.
(doutor Fábio).
Eu montei meu consultório com meu próprio recurso e tal. Agora, essa
coisa, esse negócio de caro... Todo tempo foi um tempo! A coisa varia de acordo com
a época. Mas deu pra montar um consultório modesto. Não era luxuoso. Ele era como
esse aqui. Como aqui, ele tinha uma mesa ginecológica... eu tinha um aparelho
ultravioleta... Então eu fazia algumas aplicações. Ainda tem aí. E tinha uma mesa, e
tinha as cadeiras na sala... A sala era grande. Eu dividi e fiz uma saleta de espera.
Tinha... aquele esterilizador... Aparelhagem era aquilo! Era... do clínico mesmo!
Estetoscópio e aparelho de pressão. Não tinha mais nada! Material descartável tinha,
naturalmente, pra alguma peça, pra cirurgia, bisturi, uma pinça... Tinha alguma coisa
nesse sentido, material de pequena cirurgia. Eu fazia as pequenas cirurgias. Nem
parto no consultório nunca foi feito!
(doutor Nélson)
Esses depoimentos apontam para a característica de uma fase transitória
entre a prática calcado no uso do saber como único meio de trabalho e a
medicina tecnológica, evidenciando essas vivências profissionais como
vivências de um específico momento histórico: o momento da passagem, da transição,
no qual já há certa fragmentação do trabalho, já determinados
instrumentos e equipamentos materiais, diagnósticos ou terapêuticos. Mas ao mesmo
tempo, cada médico individualmente, para a situação de trabalho no
consultório privado, ainda é capaz de amplamente concentrar a apropriação e o
uso do saber e dos equipamentos, manter-se proprietário exclusivo dos
meios de trabalho e captar de modo difuso a clientela. Assim
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 69 -
sendo, embora possamos verificar a presença inicial de instrumentos materiais já
incorporados, e certo grau de especialização no trabalho, o médico ainda busca
produzir o serviço de modo mais autônomo e independente, subordinando-o à
dimensão mais pessoal que envolve a prática: os recursos diagnósticos ainda são de
muito menos uso e valor que a anamnese ou o exame físico:
Também a clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de
tanta coisa, nem se pedia tantos exames, como eu nem peço até hoje. O professor
Jairo Ramos... Só quem o conheceu... É muito difícil a gente traduzir em palavras o
que ele era! (...) ele exigia, o exame do paciente previamente a qualquer exame. A
pessoa que fosse pedir exame deveria justificar porquê. “Por que você está pedindo
exame tipo I?” Eu me recordo que ele ficava possesso, ele tinha crises, quando
alguém dizia que era... pedia um exame de urina simplesmente por rotina.
(doutor Carlos)
Da mesma forma os recursos terapêuticos ainda se dispõem sob o estatuto da
regra pessoal e individualmente estabelecida. Nos primeiros anos do período que
estamos examinando, encontramos a terapêutica por formulação enquanto a
modalidade terapêutica ainda privilegiada. O formulário clínico convive com os
primeiros fármacos industrializados (a sulfa e a penicilina), e até o final do período
estará superado. Assim, para o doutor Nélson, a formulação é uma ferramenta
terapêutica importante, enquanto que para nosso entrevistado mais jovem, o doutor
Carlos já nos anos 50 o mesmo recurso é uma medida do passado:
Dos meus casos, aqueles que eu resolvia, o que mais aparecia eram adultos,
homens e mulheres. Velho também, coisa de Geriatria.... Naquele tempo era “pessoa
de idade”. Pelo menos até... esse fricote de Geriatria, não é? Neurologia! Casos de
Neurologia, também. Muitos casos! Paralisia facial, periférica, muita... muito caso de
paralisia nervosa... É essa coisa toda! A gente fazia tudo! Era... é bonito clinicar por
causa disso! Por isso que eu sempre gostei! Por causa... por causa do raciocínio!
Então raciocinava e bastava! Procurava dar o que havia de melhor! E formulava se
fosse preciso! A fórmula! (...) Na faculdade se usava muito fórmula e se ensinava a
formular. E já se ensinava também o uso de medicamentos (...) A coisa foi assim! Que
a gente foi obrigado... foi obrigado praticamente a largar a formulação. Porque o
sujeito... Olha! Como passa essa parte! Nessa passagem da formula-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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ção pros medicamentos o doente sentia... sente diferença, sim! O doente é um
termômetro que... Se você faz a fórmula direitinho pro doente, mas certo mesmo, um
negócio que você... bota aquela dosagem que você acha que é bom pra idade dele, pro
tipo constitucional, tudo, ele sente. Sente mesmo! Porque, às vezes, você escreve o
remédio pronto – da Bayer mesmo ou de outro bom laboratório. Tanto que é muito
melhor formular! Porque, com a formulação você dá o que quer!
(doutor Nélson)
Aliás, havia um conflito muito sério porque a Terapêutica Clínica era
Clínica, também (...) E... havia um conflito muito sério porque nós já tínhamos
aprendido uma porção de coisas – inclusive na prática- no terceiro e no quarto ano, e
a Terapêutica Clínica era no quinto ano. Então nós já entrávamos, no quinto ano não
só com a formação de Propedêutica, já de Clínica Médica, inclusive de terapêutica.
Já tinha receitado, já tinha feito uma porção de coisa. O que ele fazia. Então ele dava
Arte de Formular. E, pra nós, aquilo não entrava na cabeça, fazer uma fórmula.
Porque já tinha recitado lá o diurético, o digitálico, o remédio pra úlcera... e ele vinha
lá com a receitinha, não sei o que, tantos por cento, não sei o quê, mande dez... Quer
dizer, era tudo... era a Arte de Formular. (...) Houve uma época na medicina aqui que
todos formulavam. Todos formulavam. Eu me recordo de farmácias pequenas, perto
da minha casa, no tempo de... de moleque, lá na Bela Vista... em que havia inclusive
uma farmácia chamada “Ribeiro”, que ficava entre o Viaduto Major Quedinho e hoje
o Viaduto Maria Paula, em frente a esse flat-service que está sendo construído ali! (...)
Tudo era formulado! Aos poucos, muito lentamente, foi-se infiltrando a medicação
preparada. Quando me formei nós tínhamos, praticamente, tudo já pronto! Claro que
nem comparação com o que se faz hoje porque... Por exemplo, diurético – só pra
lembrar a importância do diurético – eu sou da época do diurético mercurial!
(doutor Carlos)
A articulação de cada médico individual com outros serviços
complementares dá-se pela regra da relação interpessoal, onde a vinculação
deriva do conhecimento e da confiança pessoalmente estabelecidos, mantendo
cada médico, portanto, o controle total sobre cada caso particular: será o
seu paciente que encaminha a laboratório ou clínica radiológica de seu
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conhecimento. Estes últimos serviços, por sua vez, também só se reportam
diretamente ao médico que os indica, que dessa forma representa o “proprietário” do
caso, pois é o único agente de prática e seu único responsável. Uma igual relação se
estabelece na articulação entre os diversos serviços médicos: será o médico do caso (de
quem é o caso) o solicitante e supervisor da presença do especialista, na famosa “junta”
ou “conferência médica”, sempre que se fizer necessária a presença de uma outra
assistência médica complementar. O resultado dessa forma de articulação entre
serviços parcelares será a manutenção do controle da prática, e do controle sobre os
efeitos desta, sob o monopólio de cada médico individual, configurando um trabalho
profissional próximo da representação do exercício autônomo-independente que
corresponde à figura tradicional do médico. É a esta figura, então, que Doutora Emília,
ginecologista e obstetra – e portanto já uma “especialista” – se refere quando relata seu
relacionamento com outras atuações complementares, até confundindo, hoje, os
termos médico-clínico ou médico-geral, com o termo médico simplesmente:
No caso de precisar outro especialista, na época já... havia especialistas...
Porque antigamente, havia, por exemplo, conferências médicas – que hoje não há
mais, né? Então o caso era mais obscuro, chamava o professor pra dar parecer e
resolver alguns casos mais obscuros, outros casos que... mais delicados, né? Que,
hoje, quase não se vê mais, senão... senão excepcionalmente, né? Nesse caso de
conferência, o professor que era um cidadão que da dava orientação e ... e deixava o
caso para a gente ou a gente passava o caso para ele, dependendo das circunstâncias.
E tinha conferência médica com outros especialistas também. Por exemplo, um
cardiologista, né? Hoje se faz até com o endocrinologista nos casos de...
hipotireoidismo, hipertireoidismo... Se faz de rotina isso, né? Mas, geralmente, eu não
chamava muito, não! A gente fazia essa medicação médica! Nós éramos médicos! E
especialistas! Mas éramos, primeiro médicos, né! Hoje a gente deve ser mais médicos
ainda do que são os especialistas, né? E os casos ligeiros a gente mesmo tratava.
Poucos casos de medicina, propriamente, eu tinha no consultório, poucos casos. Mas
tinha essas doenças de rotina, né? (...) Porque,sempre, a gente chamava uma figura...
Um especialista, mesmo! E sempre de conhecimento, assim, pessoal.
Geralmente eram os professores da escola mesmo que eu chamava. E a
gente se comunicava diretamente. Não havia... tinha que ter entrosamento entre o
especialista que era chamado por qualquer coisa e o médico obstetra
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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que estava tratando da paciente, né? Quer dizer que as medicações... não tivessem...
fossem bem vistas, né? essas coisas.
(doutora Emília)
Mas a relação era mais pessoal também com os laboratórios, por exemplo.
Era muito comum o laboratório telefonar pra você quando aparecia – vamos dizer –
uma glicemia de 400. A pessoa que foi lá só pra colher sangue, certamente o cara
telefonaria pedindo pra você reencaminhar o doente, você confirmar o exame, pra
você... Esses cuidados que hoje você não tem! Pelo contrário! Hoje você pode receber
uma glicemia de 4.000 e aí telefonar pro doutor: “Olha, doutor! Quatro mil aqui!
Não deve ser, né?” “Ah, então vem aqui. Deve ter sido engano, a vírgula que ficou
fora do lugar, é 40, ou é 45, é...” Sei lá! Enfim... isso acontece hoje com freqüência,
não aconteceria. Porque a coisa automatizou muito, o sujeito entra numa bateria de
computador. É a tal história: ele não ta fazendo a glicemia do seu Fulano, cliente do
doutor Fulano. Ele está com a bateria de tubos na frente que estão... num sistema
automático, então ... (...) Antes o médico que fazia o laboratório, ele mesmo olhava os
casos e, às vezes sugeria um ou outro exame. Quer dizer... Era menos gente; era
menos população... Ele deveria fazer cinqüenta exames numa manhã ele fazia dez ou
vinte. Então ele tinha tempo de ver o pedido, ver quem era, tinha o seu pedido na
mão... Se achasse qualquer coisa esquisita, ele ia ter o cuidado de telefonar. E a outra
coisa que está mudando muito é dos relatórios de radiologia que eram muito
detalhados. Vinham com verdadeiras aulas de diagnóstico! Era uma maneira dele...
do colega... do radiologista mostrar erudição... e te orientava, né? Não a descrição da
imagem. Hoje o pessoal – você vê – a grande maioria deles se restringe à descrição
da imagem. Só! Às vezes até nem isso vem descrito. Isso... até o cliente sente isso.
(doutor Luís)
Não serão, pois, apenas os aspectos relacionais entre médico e paciente, mas
a face mais técnica na produção do cuidado, o que ainda será identificado a uma
sabedoria individualizada do médico, reforçando a tradicional noção da
experiência clínica pessoal como base do saber, e assim reiterando a
construção de representações em que o trabalho profissional dar-se-ia,
principalmente, com base nesse comportamento pessoal. A raiz, portanto,
de ambos os aspectos da prática – o do esforço pessoal em
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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fazer-se médico e o do desempenho profissional em que se torna reconhecido como
médico – repousa sobre a base objetiva da estruturação desse trabalho em que é ainda
o uso pessoal do saber seu meio principal. Assim sendo, uma vez de posse desse,
através da escolarização, nada há o que aguardar para estabelecer-se profissionalmente:
eis porque para iniciar a prática clínica é suficiente diplomar-se; tudo o mais parece
tão-só depender de uma vontade pessoal.
Essa forma de pensar a prática permanecerá válida mesmo considerando a
área cirúrgica de atuação, posto que a terapêutica cirúrgica é ainda de indicação
cautelosa, pelo menos até próximo aos anos 50. Veja-se que, desse ponto de vista, o
ato operatório e o pós-operatório são situações de extremo risco: a ampliação do tempo
e o conforto no ato cirúrgico, bem como as possibilidades de serem evitadas ou
combatidas as infecções e ainda as possibilidades de ser mantido o equilíbrio
hidroeletrolítico do paciente no pós-operatório, são conquistas incorporadas à prática
médica posteriores aos anos 40, no Brasil4. Até essa época não existia o emprego
intravenoso das soluções de soro glicofisiológico, e a anestesia residia no uso do
clorofórmio ou do éter, nas famosas máscaras abertas, através das quais, como conta
doutor Silvio, logo se identificava quem era, dentre os médicos, um cirurgião:
Antigamente, quem fazia anestesia ficava mais doente d que o paciente. Era
aquela máscara de éter. Então, tinha que enfiar aquilo na cara do cliente, brigar com
o sujeito, porque ele não queria. O anestesista respirava mais éter do que o doente.
Então você via lá: “Você não está com hepatite?” “Não! Eu sou cirurgião!” Ele
estava todo amarelo!
O recém-criado uso de anestésico local é que presidia certas cirurgias mais
comuns, como as que se realizavam no tratamento da tuberculose e das úlceras, sob
condições rigorosamente problemáticas: Era uma luta amarga e clínica entre o
cirurgião que dizia para ter paciência, que era apenas sensação de tato e não de dor,
e o pobre infeliz que gemia com toda a razão do mundo. Caricaturando, seria como
dizer ao paciente “você pensa que dói, nas não dói”. Mas a operação tinha que ser
feita, pois a anestesia geral pelo éter, em caso de doença pulmonar, estava fora de
cogitação. Era operar e tentar a cura ou deixar morrer pela progressão da doença5.
A garantia contra a infecção residia apenas na assepsia e na esterilização,
nem sempre muito eficazes. Uma vez instalado o processo infeccioso, as
medidas terapêuticas subseqüentes eram de fato de resultados bastante
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 74 -
duvidosos, pois os primeiros quimioterápicos, como a sulfa, e o primeiro antibiótico, a
penicilina, apareceram no pós-guerra (1945), dispondo-se no mercado de forma nem
sempre suficiente para consumo ampliado:
Foi em 44, que a penicilina entrou a todo vapor. Porque foi mais ou menos
em 39 que fizeram as primeiras observações. E até tinha pouca penicilina. A gente
começava o tratamento e não tinha penicilina pra continuar.
(doutora Emília)
Naquele tempo, a Cruz Azul foi a primeira organização que teve assistência
ao parto domiciliar pago pela instituição. Os partos eram feitos a domicílio por
comadronas – gente mais ou menos ajustada,né? Não tinha muita gente formada
porque foi a Maternidade São Paulo quem fez a escola de parteiras, lá por volta de
1913. De maneira que eram umas pessoas adaptadas – por assim dizer – ao serviço, e
controladas até um certo ponto por médicos. Mas não eram pessoas formadas. Mas aí
a Cruz Azul teve o parto domiciliar, que foi a primeira organização que teve parto a
domicílio por parteiras. Então, a parteira chamava a gente por alguma coisa e a
gente se atrevia, naquele tempo, a fazer algumas intervenções em casa! Já viu isto? E
não tínhamos infecções! Por exemplo, a parteira chamava numa hora. Depois o parto
se modificava. E quando chegava a hora, as condições eram diferentes. Então a gente
resolvia a coisa com algumas pequenas intervenções que eram feitas a domicílio. E se
tivesse uma intervenção maior, então as pacientes seriam removidas pro hospital.
Porque as próprias pacientes não queriam ir pro hospital. Porque as próprias
pacientes não queriam ir pro hospital. No parto, não! Ninguém queria hospital de
medo das infecções!
Mesmo na área de atuação clínica, o eletrocardiógrafo, por exemplo,
hoje instrumento tão simples, se já faz parte da noção de equipamento necessário
para o doutor Carlos nos anos 50, não representa algo tão comum, quase um
recurso geral para qualquer prática, como nos dias atuais. O fato é que poucos
sabiam usá-lo de modo preciso e muito menos interpretar o traçado
gráfico. A eletrocardiografia, cujo uso clínico em São Paulo dá-se no
início dos anos 30, só após 1940 começou a ser uma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 75 -
técnica um pouco mais disseminada, através da Sociedade Brasileira de Cardiologia
(1943)6.
Nas décadas de 30 e 40, portanto, o desempenho profissional podia ainda
caracterizar-se como ato de discernimento e intervenção simultaneamente apoiado no
conhecimento, na intuição e na criatividade. Tudo isso para que o médico pudesse
decidir entre a cautela ou a ousadia, que o obrigava a pautar-se em uma observação
clínica atenta e paciente. A medicina seria, então, ainda um desempenho dependente
da arte, com base na qual se poderiam orientar diagnósticos e definir medicas
terapêuticas, como por exemplo a observação expectante da “crise do sétimo dia” da
pneumonia; ou as engenhosas tentativas de combate à infecção; ou a assistência
persistente e paciente que acompanhava o parto normal; ou ainda, as medidas heróicas
e súbitas do “desespero salvador”7:
Quando ainda não tínhamos os antibióticos e mesmo as sulfas, os quadros
abdominais, posteriores a todo tipo de intervenções, eram paralisias intestinais, era
um quadro mórbido, pós-operatório. Então veio a sulfa, o anasseptil peritoneal, e veio
o anasseptil em líquido. Naquele tempo a alta não era assim, dois dias depois da
operação vai embora, e tal. Não! Esperava-se seis, sete dias. E eu me lembro, eu era
interna no hospital e quando fui dar alta passei e vi uma mulher que tinha o sono da
doença meningeana: “Puxa! Essa mulher está com alta?!?” Entrei, pus o
termômetro, estava com 40 de temperatura. Naturalmente, naquele tempo, não tinha
os agentes que nós temos hoje e eu sentei lá na cama, peguei uma agulha e puncionei
a raque, deu um líquido opalescente, eu já injetei duas ampolas de anasseptil – que eu
nunca tinha usado – dentro da veia. Os dedos dela ficaram escuros – sabe? -, ela teve
uma reação muito grande! Mas eu já tinha tirado o líquido pra mandar fazer exame e
deu meningite pneumocócica. Porque ela tinha tido pneumonia. E essa mulher ficou
boa.
(doutora Emília)
Naquele começo do meu consultório, o impacto desses remédios, da
penicilina e da sulfa, foi uma coisa boa pra mim! Tratar uma
pneumonia, antigamente, era difícil. Era difícil! Eram sete dias! No sétimo
dia se rezava pra tudo quanto é santo pra ir tudo bem porque o
sétimo dia era perigoso. Então, depois veio a sulfa, em dois, três tias,
tirava tudo. Quer dizer, continuava o processo de dentro, interior. Mas o
sujeito saía sem febre, saía sem nada (...) Naquele tempo se demorava sete
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 76 -
dias pra tratar pneumonia e eu ia acompanhar o doente todos os dias, os sete dias eu
ia visitar. Dava mais trabalho. Era difícil! Não era fácil! No sétimo dia acontecia a
“resolução”! Porque, às vezes, nessa resolução – eu não sei porquê – o organismo ou
reagia demais, ou reagia de menos. Às vezes o paciente não agüentava a reação e ele
morria. (...) Eu tinha bom sucesso no diagnóstico e na terapêutica. Eu perdi pouca
gente. É difícil eu perder gente. No caso da pneumonia, eu sabia se o paciente tinha
curado pelos sinais clínicos. Primeiro tinha que bater o pulmão, ver se desapareceu a
macicez. Tinha os sopros, aquele sopro cavernoso, desaparecia também. A parte de
roncar, desaparecia também o frêmito. Então você fazia o diagnóstico. E depois tem a
expectoração, sumia a expectoração. Quer dizer, eram sinais de exame clínico. Eu
não chegava a pedir raio X pra ver se tinha passado o processo. Era difícil. Porque,
geralmente, eles não eram gente de muito dinheiro. Então fazia diagnóstico mais pela
ausculta, pelo estado geral, tudo. Acompanhava tudo! (...) Eu tive sempre na vida um
bom diagnóstico, sempre fiz bons diagnósticos, tudo. Porque sempre, sempre
procurei! Quer dizer, sempre fui procurar pra achar. Porque tem pessoas que
atendem, só pelo aspecto assim já fazer... O Zé Ramos nos orientava pra fazer tudo!
(doutor Sílvio)
Eu fazia clínica no INPS e o pessoal gostava muito de mim. A maioria me
procurava, queria consultar comigo. Clínica Médica. Então, cheguei a atender um
número enorme de pessoas por dia! Porque eles gostavam de mim. “Eu quero ir com
aquele lá! Aquele!” Indicavam lá pra atendente. E eu era obrigado a correr um
pouco. E eu não gostava. Eu gostava mais de ficar com o sujeito, ele contando a
história dele... Aquela história que você sabe! Como ele começou, como acabou, e tal,
ia indo até chegar o finzinho, o fio da meada. Então eu raciocinava, pedia um exame
subsidiário feito em laboratório de confiança – uma radiografia, uma coisa qualquer
– pra chegar à conclusão da doença do cara. E fazia bons diagnósticos!
Encaminhava ao cirurgião... Às vezes, diagnósticos excelentes! Que eles até me
davam os parabéns. “Como é que você chegou a essa conclusão?” “Vocês vão abrir
pra ver na laparotonomia”, eu disse. Bom aí eu cheguei por causa de raciocinar. (...)
Fazer diagnóstico não era tão difícil, não! Não era! Eu gostava mais! Intuição talvez!
É o que eu digo pra você: intuição!
(doutor Nélson)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 77 -
Todos entrevistados têm para relatar um caso “heróico” ou um diagnóstico
“fantástico” – um feito pessoal. Nesse período inicial de suas vidas, encontram na
presença da arte médica uma dimensão ainda muito relevante para o ato técnico. A
forte presença dessa arte evidencia-se no uso desse olhar científico que procura até
então pouco armado pelo equipamento, e que primeiro indaga, pra “ver” através do
sintoma, da queixa, da fala e da superfície do corpo. Por isso também esse período
pareceu representar da perspectiva da posição social do médico individualmente , um
“tempo melhor”, seja pelo domínio mais amplo que pessoalmente exerceu sobre seu
doente, seja porque consequentemente a essa dedicação, a esse bom discernimento e
por vezes ousadia, foi também para cada médico individualmente que se dirigiu o
valor e o prestígio da profissão. A confiança e o crédito não se destinavam apenas à
medicina, ao saber científico-tecnológico, mas à pessoa do médico, na figura daquele
individuo particular:
Naquele tempo, tudo era melhor porque... veja bem: em primeiro lugar,
você não tinha muitos recursos em termos de hospitais. Por exemplo, os recursos
hospitalares eram poucos! Havia alguns hospitais antigos como o Santa Catarina, o
Hospital Matarazzo... Eram hospitais aonde a gente podia internar nossos doentes.
Mas havia pouquíssimos hospitais! E pouco equipamento. Então, o que acontece? O
médico tinha um poder de discernimento, tinha conhecimentos tais que ele fazia
diagnósticos, independentemente de exames complementares. Os exames
complementares eram raros! Não se pedia com a freqüência que se pede hoje, como
raio X. O médico fazia um diagnóstico de pneumonia ou de broncopneumonia pela
percussão, pela ausculta, assim por diante. Não precisava de raio X. Quer dizer, não
como hoje em que um médico ouve a queixa o paciente e, imediatamente, pede
exames complementares antes de examinar o paciente. Isso é o que se verifica hoje.
Então, a medicina era melhor! O médico, ele tinha... estava muito mais ligado ao seu
paciente! Ele entendia o paciente, ele convivia com o paciente, sentia todos os
problemas o paciente... Às vezes, ia à casa do paciente sem ser chamado, por livre e
espontânea vontade dele, para verificar a situação do seu paciente. Então, era uma
medicina melhor! In-dis-cu-ti-vel-men-te!
(doutor Antônio)
A medicina que eu praticava no começo, na relação com os
pacientes, isso mudou. Eu freqüentava muito a casa das pessoas,
conhecia todo mundo... A gente não vai mais à casa do cliente, muito poucos ...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 78 -
daqueles clientes antigos que me dou, assim, mais, ou que eu freqüento a casa (...)
Hoje é diferente! Bem diferente! Hoje em dia os clientes são mais de consultório. Você
atende o cliente no consultório, o atendimento que eu dou sempre, mas parece que há
um hiatozinho aí entre o cliente e o médico, né? Então, eles vê procurar você no
consultório para atender a queixa, só aquilo que está necessitando. Mas não tem mais
aquela intimidade, não. Não dá mais pra fazer. (...) Sinto falta disso. Sinto! Um
agradecimento do doente é muito gostoso. Então você se adapta a ele e naturalmente
o relacionamento que você tem é grande, afetividade... Então, um agradecimento de
um doente te emociona. É muito gostoso! Me recordo muito disso. E hoje já é mais
distante. Bem mais distante.
(doutor Fábio)
Todavia, é preciso considerar que as mesmas condições objetivas que
possibilitaram a presença de uma ampla liberdade de decisões e desempenhos
concretos,circunscreveriam simultaneamente – para além dos valores de
responsabilidade e dedicação conformando a liberdade – os momentos, os espaços e
os modos socialmente viáveis de realização desse desempenho pessoal. Vale dizer que
é a organização social da produção de serviços médicos historicamente dada, que
determina quando, onde e como se poderá efetivar o “poder pessoal”. Tome-se por
exemplo, nesse sentido, o fato de que todos os entrevistados localizam o momento do
início de suas vidas profissionais como uma lembrança do tempo em que era possível
ser autônomo-independente, ser “livre”; era possível fazer uma “medicina pura”, sem
engrenagens comerciais na captação e fixação da clientela. A todos eles, pareceu que
poderiam ter feito apenas a clínica de consultório, embora de fato não tenham se
restringido a ela; como também pareceu que simplesmente “montaram suas tendas” e
aguardaram a demanda espontânea dos pacientes, o que tampouco foi exatamente o
que fizeram. Efetivamente essas possibilidades mais livres seriam mais próximas da
realidade concreta de uns e não de outros, diferenciados os médicos entre si, tanto da
perspectiva diacrônica quanto considerando os formados à mesma época.
Mesmo no interior do padrão relativamente mais homogêneo de
prática desse período, em contraste com o padrão tecnológico atual, são
criadas modalidades diferentes, técnica e socialmente, de exercício profissional. Por
outro lado, se a base material da prática possibilitava então esta apreensão
ideológica da clínica de consultório como uma estrutura bem sucedida
por meio da vontade e do empenho pessoal, as opções pessoais
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 79 -
significaram, de fato, atos socialmente definidos: comportamentos individuais em que
a forma social de organização do trabalho determina certo proceder, para que a prática
se realize como ação de base pessoal em seu caráter de prática “liberal”. Só uma
engrenagem social, mas que se realiza sobre ampla base de ação pessoal e que pode
passar a ser entendida, na aparência primeira, enquanto opção essencialmente pessoal,
é capaz de tornar bem-sucedida a forma historicamente possível, nesse momento, de
médico pequeno produtor privado e isolado de serviços.
OS REFERENCIAIS DA LIBERDADE
Pode-se dizer que há dois tipos de fatores limitantes para essa autonomia
individual. Eles, porém, não se apresentam de modo igual, porque apenas um deles
mostra ser mais evidentemente um obstáculo para a liberdade de ação. O primeiro tipo
é constituído por elementos estruturadores do desempenho pessoal, que
homogeneízam os procedimentos e aproximam os médicos de uma mesma identidade
profissional. Por isso mesmo, uma vez estruturando socialmente os comportamentos
pessoais, não parecem impedi-los, e ao uniformizá-los, não parecerão sequer seus
conformadores. A segunda ordem de fatores limitantes já diferencia e distribui os
médicos técnica e socialmente em situações de prática profissional bem diversas entre
si. Evidenciam-se de imediato, por isso, enquanto condições sociais limitadoras do
“poder pessoal”. Examinemos cada um deles.
a) a uniformidade
Podemos chamar o primeiro conjunto de fatores mencionado de
“estruturador do informal”, pois estes fatores, derivados da socialidade do
comportamento individual, dizem respeito a uma ordenação da prática clínica em
consultório privado, mediante a qual suas qualidades informais, na captação da
clientela ou no desempenho profissional do médico, ganham forma e sentido na
sociedade. Graças a essa ordenação é que o médico conseguirá implantar sua prática
com independência relativamente ampla dos aspectos mais diretamente econômicos,
políticos e sociais que se articulam à profissão, isto é, estabelecerá engrenagem de
razoável autonomia na produção de seu serviço, por referência às condições da vida
social em geral. Por isso parecerá muito mais ampla a liberdade no desempenho
pessoal, e o êxito da prática parecerá ancorado num esforço pessoal. Por
isso mesmo também será a prática de consultório identificada à própria
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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profissão: ser médico será fazer o consultório, isto é seguir estabelecer uma clientela
sua (do médico), e trabalhar “livre” , “solto”.
Como diz Doutor Carlos, ao relatar sua decisão de desistir de trabalhar em
sociedade com outros colegas como proprietário de um pronto-socorro: Então, eu vou
trabalhar sozinho pra mim! Foi o que eu decidi. Eu comecei a minha vida em 1960.
Comecei a trabalhar sozinho. Em março... maio de 60 montei o meu consultório. (...)
Então eu comecei o consultório, fiquei disperso...
Trata-se contudo de uma “dispersão” que se organiza em determinados
mecanismos sistemáticos de existência. Veja-se por exemplo o fato de que o local, a
forma, o anúncio e o horário da prática de consultório foram sendo consagrados por
uma dinâmica de captação da clientela que, de modo reiterado, “obrigará” a
disposições e procedimentos sempre assemelhados. São regras e normas apropriadas
de organização do trabalho sob determinadas maneiras de demarcar o espaço, o tempo,
a identificação do médico na constituição da prática profissional, e que se articulam à
própria medicina de consultório privado.
E depois fiquei só mesmo na Obstetrícia e na Ginecologia. E na parte
cirúrgica, por causa da especialidade. Esta escolha foi porque eu sempre gostei muito
de doenças de senhoras. Naquele tempo era “doenças de senhoras”. Até na placa
tina: “doenças de senhoras”. Nem era Ginecologista, nem Obstetrícia; era “doenças
de senhoras”. Ou colocava parteiro, de uma vez, ou então era “médico de senhoras”.
E eu gostava mais mesmo de lidar com o sexo feminino, certo? Não sei... A simpatia, a
própria especialidade me chamou mais atenção. A parte de Obstetrícia, então, achava
muito interessante, não é? E foi indo e fiquei só com as duas especialidades. No
começo, a placa que eu coloquei lá não fazia referência dessas especialidades. Foi
bem depois. No início era clínico geral de adulto e crianças. Hoje em dia não se faz
mais isso, né? colocar placa. Era uma placa maior e tinha uma placa menor na
entrada da porta, com o nome, a especialidade... “clínico geral”, “doenças de
senhoras”, às vezes colocava “parto”, ou então “doenças de crianças”, e
ficava nisto aí. Ah, e era iluminado! Esse detalhe era importante! Era
iluminado. À noite ficava acesa. E tinha uma de metal, pequenininha, na
porta. Essa maior era iluminada. Chegava seis horas, sete horas, acendia a
luzinha lá e aí iluminava. O meu consultório era em frente a um largo grande,
então o pessoal via de longe o anúncio, né? Esse era o jeito como as pessoas sabiam
que ali tinha um consultório. Era um local muito bom porque era uma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 81 -
praça e, em cima de uma padaria. Em geral os consultórios ou eram em cima da
padaria, ou em cima de farmácia. Antigamente os médicos gostavam muito mais em
cima de farmácia e os farmacêuticos davam uma mãozinha. Quando alguém chevava
e comprava qualquer espécie de produto lá, o farmacêutico dizia: “Não. }Tem doutor
aqui em cima, vai atender melhor, tudo, orientar melhor a compra do produto..” Ou,
então, em cima de padarias. Antigamente as padarias eram assim em prédio grande, e
eu tinha lá diversas salas. Então, ajudava bastante por causa do ponto. Sempre
escolhia-se um ponto também. E eu achava interessante que sempre eu via se colocar
um consultório ao lado, perto de outros médicos. Nunca ficar isolado. Eu tinha a
impressão que, isolado, ninguém dava muita atenção. Eu não sei porquê, qual o
motivo. Mas, outros médicos estando próximos, então as pessoas vinham justamente
onde tinha dois, três, quatro médicos.
(doutor Fábio)
A placa – a pequena, de metal, na porta; a maior, que se acendia à noite ou
ficava em destaque -; a proximidade da padaria ou da farmácia; uma praça ou os
prédios e locais “de médicos”; o discreto anúncio ocasional em jornal (médico), o
horário “nobre” que estabelece para o atendimento da clientela do consultório, são
formas de organizar a prática e de orientar a clientela. A placa, sobretudo, parece ser a
publicidade que médicos e pacientes aceitam e reconhecem:
O consultório, a vida clínica privada, vamos dizer, eu comecei
imediatamente após o término do curso, que foi mais ou menos em janeiro... Eu
terminei em dezembro e em janeiro eu comecei a minha atividade médica privada em
consultório. Então eu montei um consultório inicialmente no bairro onde eu morava,
que era o Brás. E fiquei lá durante quase um ano. O meu consultório era um
consultório de frente assim na Avenida Celso Garcia, com duas salas... E os primeiros
clientes – como tinha placa fora – os primeiros clientes foram aparecendo, de
passagem, foram aparecendo... devagarinho conseguindo a clínica privada.
(doutor Antônio)
Os pacientes vinham do próprio bairro. Eu tinha uma placa “Dr. Maurício.
Ginecologia e Obstetrícia”. “Doenças de Senhoras” eu punha, né? Então os
pacientes iam pingando.
(doutor Maurício)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 82 -
Os primeiros clientes foram os amigos, foram eles que começaram a vir.
Aqueles que me conheciam começaram a vir lá, apareciam. Depois deles é que
começou. Aí, depois, foi aumentando. Um avisava o outro, então ia... Nunca fiz
anúncio. Só tinha uma placa! Placa tinha, né? Placa lá no consultório tinha. Mas
anúncio eu nunca fiz, nunca fiz nada. A placa era só minha. Era minha, só! A placa
tinha o meu nome, o andar, a sala e o telefone. Eu não punha que era clínico geral.
Era só “médico”. E aí lá aparecia de tudo. Criança, adulto, homem, mulher...
(doutor Sílvio)
A clínica foi devagar, mas pouco devagar. Pouco! Menos devagar do que
seria se eu tivesse começado, talvez, como o rapaz que começa, né? Ainda com o
Salles Gomes, a clientela foi chegando porque eu tinha um anúncio no jornal.
Antigamente tinha a “Gazeta”. Eu anunciei na “Gazeta”. E eu continuei anunciando
na “Gazeta” muito tempo, na especialidade mesmo. E foi aparecendo devagar, sem
grandes dificuldades, sabe?
(doutora Emília)
Nesse tempo da “concorrência discreta” pela clientela, qualquer atitude que
assuma o caráter explícito de propaganda de massa será condenada:
Nós estávamos em outro mundo! Tudo era diferente! Tudo, tudo, tudo!
Impressionante! Não há possibilidade de agente imaginar o que era a vida naquela
época. Era simples, tranqüila, a cidade era pequena, tudo muito limitado... Eu tenho a
impressão que, inclusive, as complicações eram muito menores. Havia um único...
dois prontos-socorros em São Paulo: o Pronto-Socorro Municipal, que era
assistência pública, e um pronto-socorro particular que era famoso 7-7777. O telefone
era prefixo 7 seguido de quatro setes. Pertencia a um médico que fora amigo de meu
pai também, remador de um clube esportivo que existiu até há pouco tempo lá na
beirada do Tietê, que chamava Associação Atlética São Paulo. Ele era
remador. Chamava-se doutor Mário Tobrini Costa. Ele faleceu há pouco
tempo. Ele era um grande cirurgião e sempre foi muito mal contado no
meio mais elevado, mais acadêmico. E esse doutor Mário Tobrini Costa
teve o lampejo de criar o primeiro pronto-socorro particular de São Paulo.
Pronto-Socorro “Santa Inês”, se chamava. Mas como ele era um sujeito muito arro-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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jado, fazia coisas... que transpiravam facilmente, e aquilo... naquele ambiente
provinciano, repercutia malíssimo, né?, porque as pessoas eram muito empertigadas,
muito importantes. A moral era muito diferente do que é hoje. Muito diferente! Porque
ele anunciava até no rádio. O que era um escândalo! Então, tocava uma sirene e aí
vinha o anúncio: “7-7777! Pronto-Socorro ‘Santa Inês’...” Olha!... ele fazia uma
propaganda bombástica!
(doutor Carlos)
Conforme dissemos antes, quando tratamos no capítulo inicial do trabalho
com a memória, as recordações se articulam ao que o pensamento apreende hoje da
realidade, e é com base nessas questões do presente que se faz o trabalho de reflexão, a
recuperação do passado. A lembrança dessa “sirene no rádio” que marcou doutor
Carlos, contrasta de fato com aquela situação; não contrasta com o monumento atual,
em que a cada instante, entre os anúncios comerciais de televisão, aparecem os
anúncios de propaganda de tal ou qual serviço-médico ou seguro-saúde. É isso, porém,
que chama a atenção para o “escândalo” do procedimento que aparece no relato acima.
Veja-se o depoimento do doutor Nélson, por exemplo:
Sempre insisti! Sempre fui perseverante, paciente! Mas sem propaganda,
sem nada! E eu confiava nos clientes, que um indicasse o outro. Coisa que hoje já não
existe mais! Hoje é... precisa... a luta é na propaganda do serviço! Precisa fazer
propaganda! Como faz vários medalhões aí no jornal! A gente está a par disso.
Muitos medalhões, colegas, que fazem propaganda no jornal. Prometendo... fazendo
até... propaganda de curas difíceis mesmo, problemáticas... Mas fazem, né? Então, aí
é que está! Eu nunca fiz propaganda, praticamente nunca fiz. Esperando sempre da...
do cliente. E o cliente, infelizmente, nem todos são... são sinceros e bondosos. E muitos
são até... prejudicam a gente, passam o calote. Em todo caso, é água passada.
Por essa razão é importante situar o procedimento do anúncio “discreto”
como fator constituinte das condições objetivas da totalidade de que faz parte. Tal qual
relata doutor Antônio, aquilo que não se mostrava necessário, como o anúncio do
rádio, é taxado de “ato de exagero” e marginalizado pelos padrões dominantes. Estes
últimos pautam-se na base objetiva que subjaz à “discrição comercial”, porque esta é
necessária já pela própria quantidade limitada de oferta de serviços.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 84 -
A medicina era, como fonte de manutenção financeira, muito boa. Por uma
razão muito simples: porque não havia assistência médica especial, nem do INPS e
nem das sociedades de medicina em grupo. Então, o que acontece? O médico saía da
faculdade no dia seguinte montava o seu consultório – na sua casa ou em qualquer
outro lugar – um consultório mais rico ou menos rico ou mais pobre e já começava...
os clientes começavam a aparecer. E o indivíduo podia viver perfeitamente sem
nenhum emprego, só com a renda do consultório. Tanto que, na ocasião, até esta
época... de maneira geral, quase todos os médicos mais.... vamos dizer assim..., mais
atualizados... trabalhavam na Santa Casa pela manhã e no Hospital das Clínicas,
depois que foram estabelecidas as Clínicas. O Hospital das Clínicas foi inaugurado
em 1944. Antes disso, quem abrigava... todas as clínicas universitárias era a Santa
Casa. Então, os médicos – quase todos, pelo menos os melhores – eles prestavam
serviços, pela manhã, na Santa Casa, graciosamente. Ninguém tinha salário. E, à
tarde, das duas em diante, trabalhava no seu consultório, atendendo um número
razoável de clientes, e visitas domiciliares, etc. De modo que, até aquela ocasião, a
medicina poderia ser desenvolvida como profissão garantindo para o médico um
nível econômico e social muito bom.
(doutor Antônio)
Doutor Antônio relata aqui uma outra importante regra da profissão: a
repartição do tempo de trabalho. O “tempo da manhã” é reservado ao aprimoramento
da experiência clínica individual do médico, razão e viabilidade da filantropia, das
Santas Casas, dos serviços gratuitos. Esse “tempo da manhã” viria a ser
paulatinamente substituído pelo “tempo do emprego” q̧uando a própria instituição
filantrópica ou setor público passou a assalariar os médicos.
Logo que eu me formei eu fui trabalhar naquela Igreja da Avenida Rangel
Pestana, quinto andar. E eu ia atender de manhã lá na Igreja da Freguesia do Ó duas
vezes por semana e, à tarde, eu ia pro meu consultório. E ficava a tarde toda no
consultório.
(doutor Silvio)
De manhã, fui trabalhar em Ginecologia na Santa Casa, com uma
carta de recomendação trazida do Rio. Eu trabalhei durante quinze
anos, a manhã toda na Santa Casa. Era uma medicina social,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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que a gente fazia, não tinha INPS. Logo que me formei consegui um lugar no
Sindicato dos Condutores de Veículos e Anexos, na Praça João Mendes. Fiquei lá um
tempo também, à noite. De manhã eu fazia a Santa Casa, no almoço eu fazia
consultório em casa, à tarde fazia na Marques de Itu e à noite ia ao Sindicato... uma
sequência de atendimentos. Mas logo após saí do Sindicato e fui pro Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Transportes de Cargas, Rua Nove de Julho. Depois
houve a unificação da Previdência, em sessenta e pouco, e nessa unificação nós
passamos a pertencer ao INPS, atual INAMPS. Aí nós fizemos plantão de Obstetrícia
na Maternidade Matarazzo, depois no próprio hospital IAPETEC, no Ipiranga, e
também no Hospital Brigadeiro, na chefia da Obstetrícia, uma vez por semana. E
naquela sequência de vida normal de consultório, de manhã a Santa Casa, de tarde o
consultório, à noite os plantões, ficamos durante alguns anos.
(doutor Maurício)
O “tempo da tarde” é o tempo nobre da atividade de consultório,
provavelmente por sua possibilidade de prolongar a jornada do médico, o que se dá
com base em critério pessoal de ampliação ou restrição, conforme o necessário, do
horário de trabalho. E isso reflete a disponibilidade ampla que deve ter o médico para
dedicar-se a seus clientes, posto que a jornada “ilimitada” faz parte das regras da
liberdade. Assim também se apresenta a fácil localização do médico, e à qualquer
hora, o que tem a ver com a fixação do consultório como parte da casa, ou então morar
muito próximo dele:
Quando eu me casei, fui morar na Rua Oriente. Duas esquinas para lá era a
Rua Marcolina. Eu morava na Rua Oriente, então ia a pé pra lá. Era pertinho.
(doutor Silvio)
Mas eu sou desse tempo. Eu me formei, eu terminei o meu curso, montei
um consultório no bairro onde eu morava e abri meu consultório logo – um
consultório pobre, naturalmente, porque eu não tinha possibilidade – e
comecei a trabalhar. E fiquei neste bairro durante... creio que um ano mais ou
menos, um ano, um ano e pouco e, depois, mudei pra cá, onde estou. E até hoje eu
estou aqui. Eu me mudei com a família porque esse local era muito favorável
para mim. Todo esse pavimento superior aqui desse sobrado era minha
residência. Então, tinha aqui em cima o quarto dos meus filhos, mais para adiante era
o meu quarto, mais para adiante tinha uma sala e aqui – isto aqui – era
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 86 -
uma cozinha. E o meu consultório era este aqui, mais este corredor e mais a sala, da
frente. Então, eu já vim pra cá e trabalhava aqui. Das duas em diante estava aberto o
meu consultório. Nada mais.
(doutor Antônio)
Há ainda um outro tempo que compõe o tempo de trabalho, não tão bem
localizado nas partes do dia ou da noite, ainda que tenha seu predomínio no período
noturno ou nos horários vagos da semana, como aos sábados ou aos domingos. É o
“tempo do chamado”, do atendimento na casa do doente, em uma medicina que se
apóia ainda em grande parte no domicílio. Esse tempo pode ser o da urgência, do
atendimento agudo e rápido na situação de emergência, e que por isso pode transpassar
os outros. Assim posto é o paradigma da disponibilidade plena do médico por
referência ao seu cliente, sobretudo nesse modelo em que não há quase formas
alternativas de outros tipos institucionais de assistência, tal qual ocorrerá quando da
constituição de forma ampliada dos serviços de pronto-socorro. Por essa razão a
prática de consultório é ainda a medicina dos “chamados”:
Nunca levantei, por exemplo, de noite, quando me chamavam de
madrugada: “Ai! Estou cansada! Ai!Ai! Que preguiça!” Tocava o telefone e eu já,
automaticamente, estava com os olhos acordados, o rosto acordado, já pulava da
cama, e já ia saindo. De maneira que eu estava ajustada dentro do meu trabalho. Isso
é uma grande coisa: a gente ter uma profissão que a gente sabe o que faz. E eu
gostava de fazer o meu trabalho! E, por exemplo, não era assalariada! Isso é uma
grande coisa! Nunca fiz a profissão pelo... salário. Porque o cidadão vai atender um
doente: “Ai, que coisa, né? estou cansado hoje. Ai, que coisa! Que chateação! Agora
vou sair” Isso eu nunca tive na minha vida. Eu sempre trabalhei contente. Tem um
chamado e é isto que eu quero! Um chamado! Então, eu vou contente! De maneira
que eu sempre estive ajustada no meu serviço.
(doutora Emília)
No início da minha prática a gente atendia chamados. Eu tinha consultório
na Água Rasa e morava na Água Rasa. À noite eu levantava, às vezes duas, três vezes.
Casos diferentes! Então pr’um... abdômen agudo, ou por um caso de parto, ou por um
caso de uma infecção, temperatura alta em algum doente... chamavam mesmo! E eu
saía. Naquela ocasião não havia problema algum, a gente saía de casa...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 87 -
Eu tinha telefone mas, em geral, os clientes não tinham na casa deles, então eles
vinham me chamar. Mas eles me chamavam, iam embora, voltavam, e eu, então, ia a
pé. Andava a pé lá uns poucos quilômetros, uns quarteirões. E eu ia a pé, sem
problema algum, à noite; duas, três, quatro, cinco horas da manhã, sem nunca ter tido
problema nenhum conforme a hora, não tinha farmácia aberta, eles ficavam
esperando em casa ou, às vezes, trazia os doentes para o consultório, dava uma
olhadinha lá nas amostras, ou dava um produto particular indicado, até aguardar a
manhã seguinte, né:, no caso que comportava. Eu ajudava bastante. Isto mudou ao
longo do tempo. Não tem mais chamado! Longe que me procuram pra um chamado!
Hoje em dia procuram mais os prontos-socorros. A própria clientela já vai direto.
Depois que passa pelo pronto-socorro, então, no dia seguinte, às vezes, vem me
procurar.
(doutor Fábio)
A medicina do domicílio correspondeu a uma alternativa para a internação
não necessariamente quanto à urgência, mas também quanto à gravidade do caso. O
uso da hospitalização como meio terapêutico não foi inicialmente um fator que
uniformizasse a prática, sendo, ao contrário, diferenciador dos atos clínicos,
característica que se transforma quando ambas as formas de intervenção, a clínica e a
cirúrgica, encontraram no uso do hospital que se verifica na medicina tecnológica um
dos padrões de prática que as aproximará. No início da vida profissional dos nossos
entrevistados, porém, é uma forte presença do atendimento no domicílio que
caracteriza a medicina.
Até mesmo quando o doutor Carlos montou seu pronto-socorro, a
assistência prestada correspondia ao pronto-atendimento no domicílio:
Já existiam aqui em São Paulo, alguns prontos-socorros gerais. Existia já o
“Santa Inês”, famosíssimo, que era o 7-7777. Foi o primeiro pronto-socorro
particular de São Paulo, que era do doutor Mário Tobrini Costa e, depois,
criou-se o Pronto-Socorro “Santa Lúcia”. Esses dois continuaram em plena
vigência. E já existia, na época, também, o que hoje é o Hospital “Santa Paula”,
que começou como sendo um pronto-socorro: Pronto-Socorro “Santa Paula”. Então
achamos que... E já havia um pronto-socorro de Pediatria, na Angélica.
Era o Pronto-Socorro Infantil Angélica. Então nós achamos que o interessante,
talvez, fosse fazer um pronto-socorro especializado, de ser só Cardiologia.
Eu tenho a impressão que o que predominou foi porque a maio-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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ria de nós fazia mais medicina interna em Cardiologia, Pneumologia... Então ficou
assim. A gente atendia, muito frequentemente, Cardiolgia. Mas se atendia de tudo! (...)
A gente atendia, ia com uma mala enorme, que tinha tudo dentro. Nós levávamos
oxigênio, levávamos o eletrocardiógrafo e fazíamos o atendimento em domicílio e já,
ali, resolvia o problema. Agora, era muito cansativo! Nós tínhamos muito serviço! Era
uma responsabilidade muito grande! E era sozinho! Tinha que resolver! Era o
motorista, o plantonista... Tinha, também, um outro plantonista. Nós éramos em dois
em determinadas circunstâncias mas, à noite, ficava um só. E não tinha jeito!
Esse “tempo de chamado”, atualmente desaparecido – o chamado
domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – era uma característica
importante do trabalho médico, e que viabilizava a identificação desse trabalho à
imagem do sacerdócio, de um servir desinteressado e de dedicação total. A esta
imagem, uma outra viria acoplar-se, a de transcendência relativamente à técnica,
fundada nos feitos heróicos mencionados. É tão relevante a medicina do domicílio,
que é eleita para simbolizar a “alma essencial” dessa profissão: Doutor, aqui está o seu
chapéu é o título-tema do discurso de formatura, como confidencia um dos
entrevistados. Evidencia-se, através dessa referência ao “chamado” e que assim o
homenageia no ritual de iniciação à vida profissional – as cerimônias de conclusão de
curso -, a exortação ao valor, máximo, concebido para esse trabalho. Nesta fala, que é a
da despedida do chamado, o personagem a quem o doente, agradecendo, prestativo e
gentil restitui o chapéu, não pode ser representado somente como mais uma dentre as
várias espécies de trabalhadores na sociedade. Por isso mesmo o “chamado”, tão
estreitamente vinculado à pessoa do médico, não apenas personaliza a medicina, senão
que também ao mesmo tempo a faz transcender o humano:
A consulta era feita da seguinte maneira. Raras pessoas tinha carro, mesmo
entre os médicos. Então, ao ser chamado um médico, ele ia atender a domicílio – o
chamado domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – ela ia de táxi, o táxi
esperava, e por mais incrível que pareça, a família, além de... de depois servir um
porção de coisas pro médico, ele recebia a sua consulta, na hora, e, além do mais, o
chefe da família ou alguém ia até o motorista de táxi e pagava a viagem de ida e volta.
Então ele... o médico era uma pessoa aureolada, muito diferenciada.
(doutor Carlos)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 89 -
Na medicina tecnológica a prática perderá progressivamente essas
dimensões de personalização e de sacralização, à proporção que a medicina se
estrutura progressivamente sobre as bases impessoais e objetivas da tecnologia
material Por conseqüência, terá uma forma de organização social cuja demarcação dos
lugares e dos períodos já é mais típica do trabalho cooperativo da produção capitalista,
e com as separações que lhe são peculiares: tempo e espaço da vida pessoal, em
contraste com o do trabalho. O ponto de clivagem dá-se agora entre o individual-
privado e o trabalho coletivizado, fazendo divergir essas duas dimensões da vida
social. O espaço que cada um verá como o seu, tanto quanto o tempo que cada um
conceberá como dedicado a si mesmo – e são estes que, atualmente, as pessoas
concebem como valor positivo para se estar vivendo -, não é o do trabalho, mas o
outro.
A separação e oposição entre os momentos de trabalho e os outros (de não-
trabalho), bem como apenas a identificação deste último aos momentos de viver, tem
por raiz a própria alienação do trabalhador no trabalho, em que o produtor direto se vê
marginalizado da concepção de seu trabalho e não reconhece aquela atividade como
compondo também sua vida pessoal. Ao contrário, é a parte da vida que sente
apropriada por outros (o patrão, o empregador) e alienada de si próprio. Essas divisões
no viver e as representações correlatas têm por base as condições objetivas do trabalho,
quer através do horário fixo, quer através do local de trabalho separado dos lugares que
o trabalhador reconhece como seus, e sem qualquer identidade possível com os mais
pessoais, como seria o caso do domicílio, por exemplo. Essa forma de espacializar a
vida, ordenando seu tempo, não existe no modo artesanal de trabalho e são originadas
na forma capitalista de conceber e realizar a produção8.
A medicina de consultório que se encontra nas narrativas dos entrevistados,
ao compor com suas respectivas situações de trabalho assalariado, realiza-se em um
tempo de transição histórica, como vimos. E no emprego público ou privado, o médico
encontrará demarcações fixas de seus tempos e já independentes da atividade de
consultório. Assim sendo, dessa perspectiva a prática do consultório tem seus limites
impostos “de fora”, por aquelas outras situações de trabalho. Não obstante, ainda será
possível reconhecer nesta prática da “transição”, uma medicina “pessoal” e de grande
dedicação, seja pelos “chamados” que nos momentos iniciais dessa prática são ainda
freqüentes, seja pela forma concreta de configurar os espaços da prática e um “tempo
de liberdade”:
Quando eu abri consultório pela primeira vez em Água Rasa, eu ficava lá
no período da tarde e de manhã no hospital. Pela manhã, sete e
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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meia, oito horas, eu ia pro hospital, ficava lá até meio-dia, almoçava no hospital, e
depois ia para o bairro novamente, onde eu tinha o consultório e onde eu morava. E
lá dava consulta e ia até oito, nove, dez horas da noite. Enfim, a hora que parar! E
dormia lá; morava lá.
(doutor Fábio)
Por isso pode-se dizer que, na transição para a medicina tecnológica,
também o “tempo de trabalho” neste caso se reparte, quando a atividade do consultório
( o tempo de consultório) é o que sobretudo significa o tempo da profissão. Eis porque
a prática de consultório deve ser iniciada precocemente, e porque é seu início a marca
do próprio início da vida profissional, tal qual reflete doutor Carlos, para quem
começar “tardiamente” o consultório, após alguns anos de formado, significou ter
atrasado o começo da vida.
A escolha do local e as formas mais ou menos isoladas de se instalar o
consultório também obedecem ao critério que permite combinar, de um lado, o fácil
acesso e sua rápida identificação, o que ocorre por meio do estabelecimento do
consultório em espaços já comercialmente bem caracterizados, como a praça do
comércio, a padaria ou a farmácia, inserindo o consumo do serviço médico entre
outras situações de consumo e até certo ponto aproximando o trabalho do médico de
“algo comercializável”. De outro lado, porém, também é mister diferenciar-se e
separar-se de um comércio “comum”, de um consumo qualquer, buscando formar
conglomerados próprios ou “espaços privativos”, na identificação de um local
exclusivamente apropriado para tais serviços, sempre contudo mantendo o caráter de
individualidade dos consultórios: estabelecem-se os “territórios médicos”, mas não
“sociedades médicas” – são consultórios próximos, ou na mesma instalação predial,
porém o importante aqui, ainda, é “trabalhar sozinho”.
Acontecia com outros e acontecia comigo também, não é? De forma que
isso era muito comum: os médicos não se importavam de estar perto assim de outros
médicos. Não! Não tinha essa vaidade, não! Eu gostava. Sempre ficava mais... De
fato, tinha mis dois colegas, próximos, bem perto. Nunca fiquei isolado, não! Mas o
consultório era só meu. Só meu.
(doutor Fábio)
Além da Cruz Azul, assim que me formei, eu logo abri o meu consultório,
também. Eu me formei e fui procurar um consultório pra dar
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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consulta. E, naturalmente, não podia gastar muito. E o Sales Gomes disse: “Olha, eu
tenho um consultório aí. Se quiser vir, você aluga a sala.” Então eu fiquei no
consultório como Sales Gomes. Mas, aí, mais ou menos uns dois anos depois, eu
transferi pro meu consultório, na Senador Feijó. Mas lá no consultório dele eu tinha
uma sala onde u dava as minhas consultas. Quer dizer, ele dividia só o espaço, ele me
alugava essa sala. Mas eu não tinha nada a ver com o serviço dele. Quer dizer que os
dois primeiros consultórios eu alugava. O terceiro consultório eu alugava também,
mas depois foi vendido pra quem estivesse lá, né? pros inquilinos próprios
comprarem. E u comprei o consultório. E eu fiquei sempre sozinha! Sempre sozinha!
Algumas vezes tinha algum colega novo, que queria começar a clínica, então queria
alugar, por uns tempos, um consultório ao lado que não era o meu, e ele ficava.
(doutora Emília)
Essas formas comuns com que os médicos organizavam o trabalho no
consultório apontam para o homogêneo, para a existência de uma só identificação,
quer no modo de anunciar-se para o público, quer na escolha do local, ou ainda na
demarcação do horário de trabalho. Contudo, tais uniformidades estão subordinadas a
elementos diferenciadores da prática desses médicos e desses trabalhadores entre si,
compondo aquele segundo conjunto de fatores mencionado que irá distribuí-los em
distintas posições na organização técnica e social da produção dos serviços.
b) a diferenciação
A possibilidade maior ou menor que cada médico pessoalmente poderia
encontrar para delimitar um campo mais restrito de atuação, uma prática mais
especializada, ou para demarcar um horário mais fixo e limitado no consultório, ou
então para usar dispositivos mais ou menos comerciais situando seus serviços no
mercado, são gamas de variações possíveis dentro de um mesmo modelo. Elas
distinguem os médicos entre si pela produção de serviços mais identificados ao
popular, ou mais às elites.
Um dos elementos nesse sentido nos conduz à localização do cônsul-
tório, no interior de uma territorialização do urbano em que o centro da
cidade corresponde ao espaço das elites e das camadas mais ricas da população,
e a periferia da cidade, ao espaço de moradia, circulação e consumo dos
mais pobres: os operários, os chacareiros, os pequenos comerciantes.
Morar no centro ou na periferia especifica socialmente o cidadão;
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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ser médico do centrou ou médico de bairro separa e distingue a medicina dos mais
ricos, da medicina dos mais pobres; e o médico elitizado e prestigiado, daquele “mais
comum”.
Dois aspectos chamam muito a atenção por referência a esse modo de
diferenciar a prática profissional. O primeiro deles diz respeito ao fato de se constituir
essa geografia social em elemento nuclear da diferenciação. Tendo em vista as formas
mais atuais de diferenciação dos serviços, em estreita articulação com as modalidades
de organização institucional do trabalho, não deixa de ser contrastante a referência a
médico de bairro, médico de centro, que os entrevistados fazem, com esta pela qual é
substituída na medicina tecnológica mais adiantada: médico de convênio, médico de
hospital particular, médico do INSPS, e assim por diante. Essa transformação que viria
ocorrer no modo de designar a situação profissional, podemos sentir já na nomeação
de “médico de instituto” que começa a surgir nas falas dos próprios entrevistados,
convivendo com as formas anteriores.
A disposição geográfica como discriminador da posição social do médico
significa que o lugar em que este instalou seu consultório tornou-se o correspondente
simbólico de um conjunto maior de atributos da prática, como, por exemplo, a
qualificação técnica do trabalho, as características sociais da clientela e mesmo a forma
global de organizar a produção, individual dos serviços. Assim, os entrevistados, ao se
identificarem como médicos “de centro” ou “de bairro”, já supunham ter expressado
tudo a seu próprio respeito, ao a respeito dos outros:
Aí, então, trabalhei na perícia médica desde fevereiro, que eu fiz o estágio. A
partir de março eu fiquei credenciado, eu recebia por uma verba que ninguém
entendia! Pelo Ministério do Trabalho. Eu fiquei até... 1963. Mas o que aconteceu de
interessante foi que, quando eu cheguei lá, encontrei um monte de colegas – colega de
turma, de época, daqui... Bom, falei¨”Poxa! Mas é... é o ... Era o ambiente melhor
possível!” E o chefe do negócio simpatizou muito comigo, e eu com ele, morava na
Aclimação... E ficamos muito amigos! Inclusive ele gostava muito de
eletrocardiografia. Ele vivia lá ensaiando aprender eletrocardiografia e eu comecei a
mostrar pra ele, levava os gráficos, tudo isso, e tal... Ele simpatizou muito comigo e ele
me ajudou muito! E ele é uma pessoa muito boa, formado em... 39, por aí. Ele é um
clínico-cirurgião-de-bairro, um sujeito muito bom, humano!
(doutor Carlos)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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Era só Clínica pura, e pequenos abscessos, e curativos... Essa coisa aí!
Alguma massagem... massagem na próstata de alguém, devido a uma gonococcia.
Pois é! Eram essas coisas mesmo! Coisinha de bairro. E como eu fazia Clínica Geral,
de queixa aparecia tudo! Clínica Geral, era tudo! Era clínica... Até Pediatria! Era
obrigado a fazer tudo! Tanto que muita gente gostava também que tratasse das
crianças – e havia pediatra já em Pinheiros – mas eles vinham comigo. Então, muitas
vezes eu dizia: “Vai no pediatra pra ele encaminhar melhor, fazer regime e tudo.” E
também Ginecologia. Aparecia bastante.
(doutor Nélson)
O segundo aspecto que chama a atenção está no fato de que esse símbolo de
identificação do trabalho profissional assume tal relevância que é através dele que, em
primeiro lugar e espontaneamente, os entrevistados discorrem sobre suas vidas de
trabalho: por meio do relato da sucessão de ruas, bairros u locais da cidade onde
fixaram seus consultórios é que esses médicos encontram o modo adequado – e
suficientemente explícito, segundo o específico entendimento que têm acerca do viver
– para qualificarem suas próprias vidas profissionais.
Começamos nossa clínica particular. Meu consultório foi na Conselheiro
Crispiniano, perto do consultório do Schor. Naquele tempo ainda havia condições de
fazer medicina privativa como não se tem mais hoje. Foi lá que começamos.
Depois, em 1947, achei por bem arranjar uma namorada. Nos conhecemos no
casamento de um amigo, de um ex-colega lá no Rio, que trabalhava conosco na
Santa Casa, faleceu há pouco tempo. E, então, resolvemos alugar uma casa e, aí,
começamos nova clínica. Fazia a clínica na Conselheiro e em casa, na Rua
Anhaia, esquina com Sólon. E lá nós começamos os primeiros anos de casamento.
Depois acabei mudando para um apartamento que eu comprei e passei com a família
para a Rua Sólon, e fiz consultório lá em casa também. Eu já tinha mudado o
consultório da cidade para a Rua Marquês de Itu. Depois com o tempo, nós fomos nos
limitando e passamos a ficar fixados ao consultório do bairro. Aí mudamos para a
Rua Três Rios, fiquei médico de bairro. Foi então que tive a ocasião de conviver com
vários colegas, tinha um... que fumava muito... faleceu de tanto fumar... fomos medi-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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cos de bairro, no Bom Retiro. Nós nos tornamos um centro médico, um agrupamento
médico... sentimos que o ambiente médico estava lá mais ou menos no mesmo nível
que o do centro. Trabalhei trinta anos como médico de bairro, no Bom Retiro, que se
tornou, digamos, um centro médico diferenciado. Naquela ocasião alguns colegas que
estavam lá no Bom Retiro, estavam preocupados com a chegada de maior número de
médicos. Eu dizia o contrário: quanto mais médico chegasse melhor, mais
diferenciada a medicina se tornaria. E realmente foi o que aconteceu. O Bom Retiro
se tornou um centro médico de diferenciação mais ou menos no nível do centro.
(doutor Maurício)
Entre a “clínica de bairro” e a “clínica do centro”, pelo menos duas
medicinas se realizavam. A de bairro, pela própria escassez de médicos, tinha que ser
uma prática não especializada, com parcimônia no uso dos recursos materiais e
serviços complementares de diagnóstico ou terapêutica então existentes. Por isso
mesmo, também correspondia às possibilidades de um início mais rápido de obtenção
de renda pessoal na profissão, para os médicos que dispunham de poucos recursos.
Destinava-se sobretudo, então, aos que encontravam dificuldades, seja para
combinarem atividades remuneradas com aquela voluntária nas Santas Casas ou
instituições similares, para um maior aprimoramento técnico ou para especialização,
seja para selecionarem clientela na observância a uma atuação mais especializada. A
“clínica de centro”, ao contrário, permitia maior independência de uma “propaganda”
pessoal, já por estar situada na “área dos especialistas, dos professores e da clientela
diferenciada”:
Naquela época a gente costumava dizer que ficava caçando mosquinha;
ficava estudando e, enquanto isso, iam chegando os pacientes. Então, assim, fomos
criando a nossa clínica... recomendados por um colega ou outros... e assim fomos...
No centro era diferente. Os pacientes vinham de outros bairros procurar os
consultórios médicos pela lista telefônica ou por indicação, recomendação. A maioria
dos consultórios ficava no centro. Os consultórios considerados diferenciados eram
sempre na Rua Marconi, na Conselheiro Crispiniano, Xavier de Toledo, aquelas
bandas lá do centro; as pessoas mais ricas eram atendidas aí.
(doutor Maurício)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O consultório só teve alguma clientela para sobrevivência depois que eu
vim da América. Antes, não. Eu não cheguei a fazer propaganda do consultório nesse
começo, antes de ira pra América. Isso eu nunca fiz, nem faço hoje, e nem pretendo
fazer, viu? Montar consultório naquela época não era tão difícil, mas ter clientela era.
Ninguém procura um médico recém-formado. Procura por indicação um médico que
tenha experiência, que já tenha alguma fama, mais conhecido, não é? Médico recém-
formado tem algo contra ele, que é a suposta falta de experiência. Mas, aí, quando eu
vim da América aí as coisas mudaram. Aí as coisas mudaram porque aí eu era o tal,
né? As pessoas ficaram sabendo porque eu... Um falava pro outro e indicavam. Os
próprios colegas indicavam. Eu tive consultório em bairro por pouco tempo. Inclusive
tive um colega que tinha consultório lá no Bom Retiro e ele me cedeu umas horas lá
de manhã e eu fui lá uns tempos. E também no Brás eu tive, mas também não fiz muito
progresso lá. Eu só fiz clientela particular lá mesmo, como eu disse, depois que eu
voltei da América, depois da bolsa de estudo, viu? Clínica aqui no centro, clínica de
gente mais qualificada. Aí é uma clínica diferente, naturalmente. Porque é uma
clientela mais exigente, clientela mais esclarecida, que aos primeiros sintomas ou
sinais de qualquer coisa já procura o médico. E não como os outros que deixam a
doença evoluir, vão tentando com os antitérmicos ou remédios caseiros, e só depois
que a doença evolui bem, aí que procuram o médico. A diferença é essa, né?
(doutor Paulo)
A clínica de centro, porém, ao contrário da do bairro, para o recém-formado,
como profissional ainda de pouca autoridade técnica em razão da pouca experiência
clínica pessoal, quase significava a necessidade de iniciar-se na profissão de forma
associada a um colega mais velho, mais experiente, mais renomado, e não de forma
independente:
A clientela... nesse começo, não era minha... eu pegava o que chegava, né?,
porque... primeiro a gente... não era muito moda, naquele tempo, porque não era
muito ético, você fazer grandes propagandas, né? Depois praticamente todo mundo
começava assim. Quer dizer, você ou ia pr’um hospital, ou ia pr’um bairro, alugava
uma sala, punha uma placa na porta e ficava esperando alguém entrar. Você não
tinha assim um... Evidentemente, tinha encaminhamento de algum colega, ou
você se juntava a um colega mais idoso, ou um parente, ou uma instituição, um
hospital, qualquer coisa, e... e ia cobrindo as horas do outro que
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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estava, vamos dizer, tentando fazer horário mais lógico. Então eu passei a atender
mais chamados, visita mais fora de hora papai me mandava, ele não ia... Quer dizer,
você ia fazendo uma... você ia funcionando mais ou menos. Você começava quase
sempre... mais ou menos como assistente de alguém. A não ser que tivesse – vamos
dizer – ir pr’um lugar mais longe onde não tivesse um outro médico. Praticamente
não existiam convênios, nem credenciados. Você já tinha INPS, mas você não tinha...
que eu lembre, nenhum seguro saúde. Nem mesmo, que lembre, nenhuma medicina de
grupo funcionando. Então, a pessoa ou era do INPS, ou era... hã... clínica privada.
(doutor Luís)
Além desse há outros elementos que diferenciam os serviços médicos entre
si. De um lado, a experiência pessoal, de outro, as especificidades da qualificação
técnica, que no início do período considerado ainda se resume à formação escolar em
geral, como conta doutor Paulo à propósito de sua viagem aos Estados Unidos ou
como aponta Eduardo Etzel: Foi a época em que os médicos tinham em seu
receituário e nos anúncios a sugestiva e convidativa frase “dos hospitais de Paris,
Londres e Berlim”, sem especificação alguma por possível falta de títulos, mas que
impressionava e atraía clientes.9
Será mais ao final do período considerado (ao final dos anos 50), que ser
especialista e incorporar mais tecnologia material ao cuidado médico surgirá como
importante elemento para distinguir a prática profissional. Esse fato aponta para as
transformações da medicina em que progressivamente tanto os equipamentos quanto a
organização institucional correlata da produção de serviços, virão substituir, como
valor maior na qualificação da prática, a experiência clínica pessoal ou o local de
fixação do consultório. Com isso se deslocam para os especialistas, para os médicos
novos e atualizados, para os técnicos antes mais hábeis que observadores pacientes,
para o hospital e todos os seus equipamentos, e para a empresa médica e todas as suas
“facilidades”, os fatores que comporão o critério principal na diferenciação dos
serviços. As pessoas cedem lugar ao instrumental é às engrenagens, pois como diz
doutora Emília, heróicos, agora, serão a penicilina e a sulfa.
Todos os médicos entrevistados reformularam suas práticas nesse
sentido da medicina tecnológica, desenvolvendo-a por estratégias às
vezes mais próximas entre si, às vezes mais particulares, em função das
peculiaridades de cada situação de trabalho já constituída. Diante desta, nem
todos os aspectos que de fato se transformam serão exatamente percebidos
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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como alterações ou como se a prática tivesse substantivamente mudado, ao passo que
outros logo serão compreendidos como visivelmente diversos. Na totalidade do
exercício profissional, porém, todos sabem que refizeram os espaços, os momentos e
as formas de realização da liberdade de ação pessoal, liberdade que lhes caracteriza as
b ases de sua autonomia enquanto profissionais.
A LIBERDADE REFEITA
a) a atualização necessária
Esse problema é – se a gente quiser – um problema de evolução. Problemas
de evolução são todos iguais, né? Quer dizer, num determinado momento um
aparelho é aperfeiçoado para tal coisa e nós, que temos esse aparelho, vemos o
aperfeiçoamento e adquirimos aquele outro. Uma determinada técnica... Então, tudo
isso são coisas que vão surgindo e a gente vai incluindo na nossa evolução. Quer
dizer, nós sempre fomos... permeáveis a toas idéias justas, modernas, boas... Sempre
fomos! Há, evidentemente, conquistas que são gerais, que todo mundo... Porque você
sabe, naquela época não havia nenhum antimicrobiano. O primeiro que apareceu foi
as sulfas, os derivados da sulfona. Então, todo mundo usava sulfa em qualquer
doença infecciosa. Depois que surgiu a penicilina, foi absorvida por todo mundo. A
estreptomicina aí vem... Depois veio a tetraciclina; idem. E, evidentemente, essas
novas drogas foram... produzindo mudanças no panorama clínico. Claro!
Antigamente, naquela época, a gente há sessenta, setenta anos atrás, como é que a
gente tratava pneumonia lobar? Era com cataplasma de linhaça! Hoje não se
conhece; nem se chega a ver. Então estas coisas produziram modificações grandes.
Isso aí era... era normal! Na medida que nós dispúnhamos de uma conquista, ela era
usada, a gente verificava que havia melhora, as coisas corriam melhor... Isso... não
tem nada, não há nada que possa espantar a gente, não há nada de espantar. Parece
que tudo é uma rotina que vem caminhando, né? caminhando normalmente. Então,
quando surgiram aqueles monitores, a gente colocava o monitor e achava muito
interessante que você podia ver a pressão arterial do indivíduo sem medir,
sem nada. Tudo isso eram conquistas que a gente gostava de ter porque
isso dava imediatamente uma série de informações para a gente, né? Mas isso...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 98 -
isso produziu as modificações que eram possíveis; que eram possíveis na... na época,
né?
(doutor Antônio)
À proporção que os novos recursos tecnológicos foram aparecendo, como
também à proporção que correlatamente se foram estabelecendo as especialidades
médicas, ambos foram incorporados à prática profissional. Ocorre uma polarização
positiva por referência a essas características em função do próprio conceito de
“inovação”. Inovar é entendido como sinônimo de estar mais atualizado relativamente
ao desenvolvimento científico-tecnológico, absorvendo os avanços diagnósticos e
terapêuticos. A atualização é tão importante para qualificar o desempenho do médico
que parecerá igualar, pela inserção na medicina tecnológica, práticas antes
diferenciadas:
Eu trabalho hoje num bairro; o hospital fica num bairro. Eu não diria que
faço medicina de bairro. Talvez, não. Porque nós temos todo conforto, nós temos toda
a atualização médica no hospital... Então, não vejo. Acho que é a mesma medicinal
Tanto faz o hospital do Brás, como o “Santa Catarina”, como outro hospital assim
deste tipo. Podia-se tirar uns dois ou três hospitais de São Paulo, esses que estão mais
bem aparelhados. Aí, sim! Mas, em geral, não. São a mesma coisa.
(doutor Fábio)
A incorporação de tecnologia pode significar uma circunscrição da atuação
clínica a áreas mais específicas da medicina e aprofundar os conhecimentos científicos
correspondentes. Atualizar-se seria, dessa perspectiva, para os que ainda não eram
especialistas como clínicos ou cirurgiões de bairro, efetivamente se aproximarem da
especialização. Isso representará uma forma de melhorar seu desempenho e, por
conseqüência, captar e manter a clientela, sendo a ausência de movimento na direção
da especialização conotada de forte sentido negativo:
No comecinho do consultório eu fazia também pequenas cirurgias. Um
pouquinho de abscesso, fimose, sempre fazia no consultório. Mas todas as cirurgias
um pouquinho maiores eu mandava para o hospital do Brás, onde o Arion me dava
uma mãozinha lá. E depois é que eu fui me habituando e estudando um pouco mais e
entrei na Ginecologia e Obstetrícia. Aí comecei a fazer as duas especialidades e fui
deixando a Clínica – Clínica Médica, propriamente dita – e me dedicando mais
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 99 -
na parte ginecológica e obstetra. Eu atendia criança, também, Pediatria, naquele
começo. Porque a gente lá atendia tudo! Consultório de bairro, né?, a gente atendia
tudo: Pediatria, Clínica, Ginecologia, Obstetrícia... Naquele tempo, apesar de não
fazer as especialidades, a gente sempre aceitava os casos e tentava resolver, não é?
Resolvendo da melhor maneira possível, me interessando mais pela parte
ginecológica/obstétrica e fui deixando a Pediatria que, de fato, abandonei logo, já que
não era pediatra mesmo – apesar de gostar muito de criança. Talvez se eu fizessse
Pediatria eu faria bem, mas, passou, deixei. E fui deixando os adultos e até hoje –
apesar de já ter deixado há muito tempo – tenho clientes do início do meu trabalho
que procuram ainda na parte clínica.
(doutor Fábio)
Assim, a especialização que aparece no início de suas práticas com uma
relativa importância para qualificar o desempenho pessoal, a partir da plena
configuração da medicina tecnológica, principalmente como decorrência da presença
do equipamento, mostra-se como única via que o médico tem para firmar-se
profissionalmente, deslocando definitivamente o não-especialista do mercado. E como
bem descreve doutor Nélson, esse deslocamento é também, simultaneamente, uma
revisão do valor do consultório, perante o hospital:
Eu, por exemplo, tinha muito chamado domiciliar. Coisa que hoje é muito
raro! Muito raro por causa desses prontos-socorros. Porque eles telefonam, vem a
ambulância, e o sujeito já é visto lá... A equipe é boa. Hoje as equipes médicas estão
bem formadas! Porque, no meu tempo, se o sujeito me chamava, eu ia na casa dele
com o esteto e com o aparelho de pressão. Só com isso eu vou, se me chamar agora!
Com o abaixador de língua e uma lâmpada para ver a garganta. E o resto é na
percussão que você aprendeu, e tudo na ausculta, e tudo direitinho...
Agora, naturalmente, hoje a turma chama o pronto-socorro. É melhor!
Eles já chegam na tua casa com a ambulância, chega um colega junto... E é
interessante! Quando precisar, chama! Como eu já chamei! E chega o sujeito
com toda a ... eles vêm com um laboratório inteiro lá dentro. Vem com uma coisa...
Parafernália! Tiram a pressão, tiram... fazem eletro, fazem ecocardiografia...
Fazem tudo! Inclusive a medicação! Já vem com uma bateria de remédios,
injeção de todo jeito... Quer dizer, é muito mais interessante do que você chegar lá, um
médico simples, chega a pé porque é perto do consultório... Você vai
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ver lá: “Como é que é? O que é?” “Pois não! Vamos entrar.” E a família... fica lá
arrumando depressa a cama, tal, e coisa... No meu tempo a gente freqüentava a casa
do paciente, ficava o médico da família... E geralmente a pessoa dizia: “Não! O
senhor venha conversar. Pode voltar quando quiser.” E isso era interessante porque a
gente tinha uma idéia do doente, da evolução dele... A passagem, assim, pro pronto-
socorro já mudou essa relação. Eu acho que mudou. Eles preferem o pronto-socorro
porque porque o pronto-socorro chega, já dá o remédio, já faz o que precisa, remove
pro hospital... Se a pessoa perguntar: “O senhor indica algum hospital?” “ Eu
indico.” “Qual é que é o melhor nesse caso pra levar meu pai?” “Pra mim, eu acho
que o Hospital X!” “Por que o senhor acha?” “Ah, porque é um hospital que tem
cinco mil médicos e (uma hipótese) um aparelhamento ultra-moderno.” Pronto!
Basta falar isso que a pessoa fia impressionada! Aparelhagem ultramoderna! Os
hospitais chamam mais a atenção por serem mais aparelhados. Agora não tem mais
aquilo do camarada chamar a gente em casa, ficar mais a domicílio... Acabou! Hoje
só tem conveniados! Eles já tem os seus hospitais e os seus prontos-socorros! Acabou
a clientela! Porque hoje em dia o pessoal já está mais esclarecido. A não ser na...
acredito que na periferia. O pessoal está esclarecido hoje. Porque eles raciocinam
assim: “O que que adianta eu chamar esse médico? Eu vou chamar o doutor Nélson
pra vir aqui, ele não é cardiologista, ele é clínico geral. O caso de papai me parece
coração porque ele já teve um infarto... Ah! Vamos chamar já o pronto-socorro
cardiológico!” O sujeito já parte desse princípio. “Se tiver que pagar o doutor Nélson,
eu prefiro pagar o pronto-socorro cardiológico, que já vem com a bateria de
remédios aí. E já remove pro hospital também!” Entendeu como é? Pra nós, clínicos
velhos, piorou muito! E pr’um médico que saiu agora da faculdade vai ser a mesma
coisa. Agora é tudo na base da especialidade. Você não pode ser clínico sozinho. Hoje
você tem que fazer especialidade se você pretende viver da medicina. E nessa
especialidade se puder, pegar um hospital. Fica num hospital lá, de plantonista! Por
exemplo, você é parteiro. Fica no hospital lá, no teu plantão. Caso de parto que
aparecer você pega no teu plantão!
Eu acho que a medicina hoje está assim! Quando eu me formei
não era assim, não se fazia tanta especialidade! Aqui no bairro eram
poucos os especialistas, tinha o parteiro, tinha o ginecologista... E as pessoas
vinham primeiro pro meu consultório. Quer dizer, a gente era o “ai,
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Jesus”! Tinha placa assim, era o meu nome, Clínica Geral, né?, só! Mais nada! E
vinha moléstia de senhora, vinha de tudo... “Então eu vi a placa aí, gostei, estava
passando de bonde...” Eu passei aí e vi o senhor... O senhor entende de criança?”
“Entendo. Vamos ver.” “Chegava outro aí: “O senhor entende de pele?” Eu não era
dermatologista, mas eu era obrigado a entender. “Então deixa eu ver isso aí! Isso
eczema, uma micose... passa isso aqui!” Era assim! Estava muito melhor! Naquele
tempo havia médico! Naquele tempo era mais difícil ser especialista porque clínico
resolvia muita coisa. Isso começou a fiar assim agora, todo mundo especialista.
Embora reconhecendo a importância da especialização para caminhar para
se manter atualizado, esta nem sempre será alternativa compatível com o exercício
profissional já estabelecido. Assim sendo, a forma de atualizar a prática
preferencialmente adotada dar-se-á através da introdução do uso mais sistemático dos
equipamentos diagnósticos – representado pelo uso direto dos aparelhos ou pelo uso
dos recursos de serviços de terceiros (laboratórios clínicos, os serviços radiológicos), e
também através da introdução do uso de instrumentos terapêuticos novos, sejam eles
equipamentos, fármacos industrializados ou mesmo o hospital. Este último deslocará o
consultório e o domicílio definitivamente, como forma mais apropriada de espaço
terapêutico.
Hoje você não faz uma consulta de Gineco que o cliente saia satisfeito se
você não pedir, pelo menos, um ultra-som, uma colpocospia e um papanicolau. Quer
dizer, isso... você tem que pedir... não que você... a não ser que você acha
absolutamente que não precisa e se o cliente concordar com a sua idéia de que ele
não precisa. Se não você vai ter que pedir isso.
(doutor Luís)
Na área de medicamentos, ou na área de exames diagnósticos, recurso
diagnóstico, quando aparece uma inovação eu gosto de incorporar, desde que ofereça
vantagem. Sem dúvida nenhuma! Estou pronto a incorporá-la, viu? Desde que haja
necessidade, que haja vantagem, seja do meio diagnóstico e ajude o
diagnóstico correto e uma terapêutica mais adequada, né? Naturalmente,
nessa parte, por exemplo, de tomografia – tomografias computadorizadas –
isso contribui muito para melhorar o diagnóstico. Não só melhorar o diagnóstico
como também diminuir a exposição do paciente a raio X. Eu senti isso
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na minha clínica pediátrica. Eu uso bastante. Em termos de medicamento, quando
surgiram os antibióticos, mudou radicalmente a terapêutica. Nós, antigamente,
quando me formei, a gente tratava broncopneumonia com injeção de óleo canforado.
Ou então, ainda se usava o abscesso de fixação, coisa desse tipo. Então estávamos
praticamente desarmados. Depois surgiram as sulfas. Foi um progresso grande! E
depois vieram os antibióticos.
(doutor Paulo)
Naquele tempo os clientes não aceitavam muito os exames de laboratório.
Precisava insistir muito, sabe? Não sei se pesava um pouquinho assim na parte
financeira, mas a gente tinha um olho clínico maior do que o atual. Eu sempre ia bem!
E fazia os diagnósticos com a Clínica. Só com a Clínica, viu? Não tínhamos assim
muitos recursos como a penicilina, sulfa, mas mesmo assim a gente conseguia
resultados bons. Quando era necessário, a gente pedia exames laboratoriais, raios X...
Não os mais sofisticados, mas os mais comuns, mais de rotina, que a gente fazia
quando pedia os exames de laboratório. E existiam laboratórios no Brás. Por lá na
Água Rasa, Avenida Celso Garcia. Laboratórios que para exames de rotina, simples,
resolvia. Eu tive resultados bons. Era mais freqüente eu pedir exames de fezes,
principalmente; urina... E raio X – estômago, parte renal, vesícula - ... Eu ficava por
aí! Já era raio X contrastado. Não tínhamos ultra-som, não tínhamos endoscopia –
não existia ainda, não é? Hoje em dia nós estamos aí com toda essa maravilha.
(doutor Fábio)
Inovar, simultaneamente, resultou em dar novas diretrizes ao trabalho do
consultório, que ultrapassam os limites “internos” a esse trabalho e sobretudo alteram
as regras das relações com seu “exterior”. Assim, a inovação será também outro modo
de articular-se com os outros serviços e com a clientela. Este aspecto, contudo, já não
receberá a mesma valorização positiva, isto é, será tomado como o lado mais
“negativo” das transformações na prática. A qualidade negativa, no caso, significa a
necessária reordenação do que é “interno” e sob seu controle pessoal, em razão do que
é o novo “externo”, dizendo respeito, pois, diretamente à posição de autonomia
profissional: às bases mais pessoais de organização da prática e à auto-suficiência já
construída do exercício profissional.
Essa necessária alteração das relações entre o trabalho do consultório
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1993. 229 páginas.
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privado e outros serviços, ou entre o trabalho do consultório privado e a clientela, dá-se
por razões de ordens diversas, alguns das quais serão concebidas como produtos mais
próximos da incorporação da tecnologia material; outras, pelo contrário, parecerão
injunções exteriores à medicina. Ambas, porém, apresentam-se como impondo uma
redefinição da capacidade resolutiva do ato isolado de cada médico individual, que
escapará ao controle pessoal daquele médico. Valer-se mais dos especialistas ou pedir
mais exames é depender mais de serviços de terceiros e onerar mais a clientela,
embora vá ao encontro das novas exigências técnicas, qualificando melhor o
desempenho do médico e sobretudo vá também ao encontro das próprias expectativas
do paciente, que agora se manifesta ativa diretamente sobre a conduta médica:
E esse exame, comecei a fazer, assim, de rotina, desde que... acho que desde
formado! Já era moda! Já se usava papanicolau. Só que agora ele ficou bem rotina!
Então você pode... frequentemente... Isso é outra coisa! É a tal história: do progresso
da atenção à saúde e das campanhas que se faz, às vezes. Frequentemente passa
cliente de convênio. Às vezes: “Ah, faz um ano que eu fiz papanicolau. Então eu vim
pro senhor examinar e pedir o exame.” Isso já entrou na cabeça da maioria das
pessoas que em cada ano, ano e meio, o pessoal vai pedir o exame. “Ah! Esqueci de
pedir! Não fiz o ano passado, mas precisa fazer!” Precisa mesmo, né? Então isso
entrou direito... Então eu mano colher. Porque eu mando pro laboratório! Eu nem
olho! Prefiro mandar pro laboratório fazer tudo. Quer dizer, não tenho aparelhos
instalados no consultório. Não tenho nada! Não tenho! Só faço o pedido e encaminho.
Bom, tem colegas que preferem eles colherem. Isso varia. Às vezes você manda pra
um laboratório... sério, um laboratório de confiança, já fica tudo por conta do
laboratório. Aquela história de vai, o laboratório acha que você colheu mal, ou então
fica na dúvida, se acontece qualquer coisa você que deu... culpado... Então, acho que
se dá responsabilidade toda pro laboratório. Eu acho mais prático. Têm colegas que
preferem eles colherem. Isso eu acho que ou você pode e faz, ou você deixa outros
colherem porque se não é a mesma coisa que você vai inventar de ficar colhendo
sangue pra saber que colheu na hora certa ou do jeito que ele queria, né? (...)
Na minha opinião a novidade é a ultra-sonografia também, e a endoscopia.
As endoscopias, de maneira geral. Eu acho que foi um progresso muito
grande, indiscutivelmente! A endoscopia ficou para mim como uma espécie de
substituição do raio X contrastado. Mais frequentemente. Hoje eu peço
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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muito raramente raio X contrastado. Só se doente for muito medroso de... endoscopia.
Mas a grande maioria das pessoas aceita. É outra coisa que está mais ou menos
popularizada. Você nem precisa explicar muito. Acho que já todo mundo já tem
alguém que já fez e que já não se queixou muito. Então... hã... o pessoal aceita... Vem...
quando já não vem com o pedido: “Não é bom fazer uma endoscopia?”.
(doutor Luis)
Para o doutor Fábio a atualização significou incorporar diretamente os
equipamentos e para tanto também transformou sua prática, relativamente isolada e
independente, em trabalho coletivizado, dividindo suas atribuições pessoais com
outros dois colegas mais jovens e inserindo seu próprio consultório no interior do
hospital:
Em termos de aparelhagem, teve diferença ter mudado para dentro do
hospital. De fato teve porque no hospital tinha raio X, tinha laboratório, tinha todos os
especialistas que, naturalmente, se houvesse necessidade, encaminhava. Então,
facilitou muito para chegar ao diagnóstico, claro. E com esses aparelhos de outros
colegas, também. Porque em meu consultório sempre foram mais ou menos os
mesmos, lá. Depois que nós viemos para o hospital – mudamos – ficamos com a parte
de G.O., com esses dois colegas. Aí mudou porque nós conseguimos diversos
aparelhos da especialidade, né? Mas até então, não! Tinha consultório, mas um
consultório simples. Não tinha muito aparelho, não. Quando tiveram esses dois
colegas, eu incorporei o colposcópio, ultra-som, sonares... São mais ou menos esses aí
que o nosso consultório incorporou. O trabalho com dois colegas e a incorporação
desses novos aparelhos aconteceram juntos. Então nós adquirimos, fizemos a junção,
fizemos um conveniozinho aí, uma clínica. Eles queriam usar os aparelhos todos e
ficamos com o consultório montado para atender a especialidade. A minha decisão de
compartilhar com eles minha clientela pesou na incorporação da aparelhagem. Se eu
continuasse sozinho, provavelmente eu teria melhorado também. Porque eu
freqüentei um pouquinho a Maternal lá no Brás e a Maternal tinha mais recurso. E a
gente então ia se entrosando, e eu iria adquirir alguma coisa. Mas a presença
deles facilitou porque eles eram formados mais recentemente e eu estava
mais afeto ao consultório. Eu não freqüentava hospital nenhum. Estudava,
claro! Mas eu tinha assim um meio melhor para atualização e
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eles já vieram atualizados, de freqüência em hospitais, de plantonistas lá da
Maternal. Então, já vieram com uma formação mais... Não digo mais adiantada, mas
mais aprimorada, a respeito do uso da aparelhagem. Então, nós conversamos e
resolvemos comprar esses aparelhos que nós temos.
(doutor Fábio)
Contudo, mesmo sendo mais problemáticas que apenas o especializar-se, as
associações entre colegas ou a necessidade de usar mais intensivamente serviços
complementares, enquanto medidas de maior dependência do “exterior” por parte de
cada médico isolado, foram recebidas como problemas ainda menores e muito menos
graves que o redimensionamento daquilo que consideravam como o âmbito “interno”
à prática de consultório. Trata-se, este último, do aparecimento das novas situações de
trabalho, novas modalidades de captação da clientela e novos padrões de organizar a
produção dos serviços, que constituem formas, sob vários aspectos, socialmente mais
viáveis e alternativas reais ao consultório mais tradicional. E se as primeiras alterações
foram tomadas como mudanças que derivaram da incorporação tecnológica, a
diversificação institucional que se estabelece já não é tomada tão consensualmente
como produto direto da tecnologia, mas, de modo mais freqüente, como uma forma
“exterior” de tratá-la. Assim, se a inovação tecnológica é tida como parte da medicina
e a atualização de suas práticas como necessidade técnica de mesma espécie, o mesmo
não ocorre com a nova organização social da produção dos serviços.
Mas não foi o equipamento! A distorção foi na evolução da política,
econômica e científica do país. O equipamento é uma conquista moderna que a
gente... que todos têm que aceitar. Porque, você sabe muito bem, que existem...
lugares, serviços médicos, que têm um equipamento. Não usam o equipamento e o
equipamento se estraga e se perde. Mas realmente, não é o equipamento. Não são os
exames que vieram contribuir... Não! O que contribui para isso foi a evolução!
(doutor Antônio)
Esta nova organização produz a diversidade de formas institucionais
da produção dos serviços, no que diz respeito tanto à qualidade técnica dos
padrões de serviços produzidos, quanto à inserção dos médicos no merca-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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do de trabalho e de organização formal da clientela. A diversidade significará uma
necessária mudança nas regras das relações entre o médico e seu paciente e também
entre os serviços, pois a produção destes agora se dá organizada sobre bases mais
formais e menos pessoais:
(...) eu atendi um camarada, mas eu mano chamar o pronto-socorro pra
remover lá pro hospital. Então não indicando ninguém, vai pro hospital que eles
escolhem. Mas eu dizia: “Vai pro Hospital Samaritano, vai pro Hospital Sírio-
Libanês, vai...” “Esse é caro!” “Vai pro Albert Einstein´”. “Também é caro!” “Mas
lá tem gente boa.” “O senhor indica alguém lá?” “Não! Não precisa indicar. Lá tem
gente muito boa. Tanto clínico, como pediatra, tanto como otorrino... Tudo
direitinho!” Quer dizer, eu não... eu não sei direitinho quem são os especialistas
desses hospitais, mas eu não vou ter tempo de ligar pro “Albert Einstein” e perguntar:
“Faz favor! Quem é o otorrino que vocês chamam no caso de otite pergurada?”. (...)
No começo da minha clínica era mais fácil pedir exames. Muito mais fácil!
Porque os colegas... eles eram... eles se abriam com a gente. “Não! Se o sujeito não
puder pagar o exame de fezes que eu cobro, eu faço o preço que você mandar fazer.
Eu faço! Se você pedir pra eu fazer por 59, eu faço!” Quer dizer , havia esta
facilidade! Hoje já não tem isso aí! Hoje já... Eu já paguei médico pra minha senhora,
já paguei ecocardiografia e eletrocardiograma. Paguei! E é um dinheirão. E sem
abatimento nenhum! Quer dizer, antes tinha mais assim relacionamento com os
colegas, antigamente tinha muito. Mais camaradagem! Agora, eu, por exemplo,
telefonava pr’um colega e dizia: “Olha, eu vou te mandar um caso cirúrgico, um
apêndice, mas você, faz favor, é gente de família pobre. Vê se você interna num
hospital mais ou menos de preço acessível e, faz obséquio, não sei quanto você cobra,
mas faz um preço bom na sua cirurgia. E fala pro anestesista também.” Quer dizer,
essa coisa havia muito mais... entrelaçamento! Hoje é difícil encontrar um
“gentleman”, verdadeiros “gentlemen”. Era gente que te tratava com... uma gentileza
fantástica! A gente ficava até encabulado com tanta delicadeza.
(doutor Nelson)
Tem uma série de coisas que hoje a gente não faz mais, né? Não
faz mais uma versão, não faz... Essas coisas não faz mais, né? De maneira
que o desenvolvimento que deu a segurança no nosso trabalho, foi
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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dando uma... uma ligeireza do doutor nas coisas, mas não no seu doente, né? Não sei
se eu me expresso bem. Quer dizer, assim: ao mesmo tempo contribui, mas, ao mesmo
tempo, tem uma série de outras desvantagens. Desvantagens pequenas que o médico
quase não se apercebe. Mas, sem querer, ele vai ficando mecanizado no seu trabalho
porque tem quem está trabalhando no outro pedaço. Então ele está fazendo o seu. De
maneira que dá uma segurança pra ele e ele trabalha mais tecnicamente mesmo, né?
Pro paciente isso representou a perda do contato médico e doente, que é tão
contagiosa! E a gente vê, às vezes, dizer isso, que os médicos confundem os pacientes,
não prestam atenção direito ao caso e até trocam o tratamento. Às vezes, pode-se
fazer o exagero de umas... chacotas nessas coisas... que, às vezes, acontecem mesmo e,
infelizmente, a gente tem tido essas coisas aí nos jornais, né? Porque já não tem... o
médico já não tem aquele aprimoramento de crer no pessoal. “Eu sou eu, eu vou fazer
eu, e vou ver eu, eu vejo o sangue, eu ponho a chapa lá, eu estou vendo ela, vou ver o
que faço...” Não! “Qual é? É esta aqui, sim senhor! É isso, né? Pronto! Então está
bom!” Então é mais... ficou um pouco mais prático, um pouco mais mecanizado, um
pouco mais habilidoso na sua técnica, mas deixou um pouco do médico, né?
(doutora Emília)
A própria doutora Emília, por exemplo, aponta o mesmo aspecto no
aparecimento progressivo do pronto-socorro como forma alternativa ao chamado
médico, até mais adequada aos tempos modernos e mais confortável mesmo para o
médico, porém mais despersonificador da prática profissional:
Então essas coisas foram mudando também. O médico já não foi atendendo
os chamados longe, né? Fica mesmo pras ambulâncias e os prontos-socorros e – que
são múltiplos e que não justificam mais o médico sair de noite. A gente chama o
pronto-socorro e o pronto-socorro vai... levando o paciente. E, depois, o médico vai
onde o paciente foi, né? Já não existe aquele... Isso despersonificou o médico! Ele vai
no hospital e aceita o médico que está de plantão! O que ele não aceitava no meu
tempo! No meu tempo, se a gente perdesse o parto - a gente ficava escravo, mesmo! –
porque se a gente perdesse a hora do parto, a paciente que não fosse atendida... Ah!
Aquilo era uma coisa séria! O paciente fazia a sua propaganda!
(doutora Emília)
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Entendendo esse processo de reestruturação global da organização da
assistência médica como derivado sobretudo da forma pela qual o Estado resolveu o
problema do custo relativo ao consumo dos serviços na medicina tecnológica, esses
médicos viram na participação do Estado, por via da Previdência Social, o fator
“externo” interferente nas regras que definem o acesso da clientela aos diversos
serviços e mesmo ao consultório privado, ou nas regras da articulação entre os vários
serviços médicos.10
A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (1966), simboliza o
auge de uma reorientação, desvirtuando o processo “natural e correto” dos jovens
recém-formados de participação na vida profissional, qual seja, o de se estabelecer no
mercado por via do esforço e desempenho pessoais do médico na “prática liberal” do
consultório privado. Ao oferecer a facilidade de remuneração fixa e garantida, mesmo
que menor do que a obtida na situação de trabalho no consultório particular, a condição
de emprego aparece como alternativa complementar à difícil situação de clínica
privada, para depois assumir proporções e aceitações muito maiores:
Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante, particularizada;
quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico mão tem chefe, não tem patrão,
ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos! Os empregos
surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! Fantástica! E, depois, a
formação da medicina de grupo.
(doutor Antônio)
Quando eu me formei não tinha muito... muito emprego médico, não. Mas
havia já uma certa... uma certa inclinação pro cidadão arranjar emprego. Pelo menos
um emprego para garantir o... o mínimo indispensável pra ele viver. Então ele já
procurava um encosto. É muito razoável isso. Não tem problema! Então você sai da
escola agora, por exemplo, e aparece uma oportunidade de ser assistente do professor
lá, tal. Então, você... “É agora!” Você ganha lá um ordenado que dá pra você se
defender, solteiro... Você pega o emprego! Mas não fica... fica só pensando naquilo! É
assim o médico! Eu aceitava aquilo, aquelas duas, três horas, ver aquela meia dúzia
de sujeitos que você lá... outra coisa qualquer. E depois o sujeito ia pro consultório
dele receber os seus clientes. Agora, ser franco-atirador é o que seria o ideal pro
médico! Mas era difícil! Agora, piorou, né? Naquele tempo já era difícil!
(doutor Nélson)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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De outro lado, a criação do INPS teria desvirtuado as regras do exercício
autônomo-independente e, portanto, também sua qualidade, ao abir formas alternativas
de acesso a serviços médicos de baixo custo para a clientela, com as quais o trabalho
do consultório privado é obrigado a compor:
Eu peguei, talvez, o finzinho da clínica particular... em que você ainda
conseguia formar uma clínica particular. Eu não cheguei a... vamos dizer, a minha
clínica aumentou durante um certo período e, agora, ela tem diminuído. Tem
diminuído pra todo mundo. A clínica privada pura, né?, que a gente vai lá, paga a
consulta, e se precisar uma cirurgia, vai, paga a cirurgia, paga o hospital. Ou seja...
um ou outro de clínica particular. Em geral, os serviços mais caros a pessoa não tem
condição de fazer. Então acaba indo pro INPS, e acaba voltando. Então o que você
faz é diagnóstico, indicação terapêutica, ele vai fazer a terapêutica- se é cirúrgica –
fora, e depois volta pra você fazer, vamos dizer, pós-operatório e continuar
orientando. Isso é relativamente comum hoje, pelo menos comigo. Então, alguém que
chega... vamos dizer, com uma úlcera de estômago, você trata, não melhora, precisa
operar. “Tudo bem! Quanto vai ficar?” “É tanto. Vai gastar mais ou menos isso.” “É
muito. O que eu faço?” “Procura um... o INPS.” Leva... faz uma cartinha qualquer
encaminhando, leva os exames, ele vai, opera, depois volta, e você acaba controlando
depois, dieta... É alguma coisa que está acontecendo com bastante freqüência agora.
Tenho impressão que no nosso esquema a clínica privada praticamente vai
desaparecer porque a medicina está ficando um pouco cara. Então o cliente vai ter
condições de pagar a consulta, vai ter muito pouco condições de pagar exames mais
sofisticados e condições nenhuma de enfrentar cirurgia, ou UTIs, ou coisa desse tipo.
Antigamente não, o cliente fazia tudo com a gente... mas a gente também fazia mais...
(doutor Luís)
Além disso, sendo também por meio da Previdência Social que inicialmente
passam a se estabelecer as medicinas de grupo e as empresas médicas, as
transformações na organização social da produção de serviços significaram uma perda
efetiva da clientela tradicional, isto é, captada pelos antigos mecanismos difusos, o que
obrigou esses médicos à adoção de medidas que romperam com seus isolamentos:
alguns, como já vimos, inseriram ou consolidaram o consultório dentro do hospital,
onde a captação da clientela garante-se pelos mecanismos e atrativos do próprio hos-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 110 -
pital, e outros vincularam-se aos mecanismos formais dos convênios e
credenciamentos. Mas para todos a nova forma de organização social da produção dos
serviços significou a perda da clientela própria e exclusiva:
No meu tempo era mais fácil ser médico de consultório. Eu comecei a
trabalhar numa época em que começou a socialização da medicina. Então começou a
aparecer esses negócios que o Getúlio Vargas inventou. Quer dizer, socializar às
custas do médico. Ele começou a fazer todo o benefício pro povo, mas às custas do
médico. Antigamente o médico atendia de graça na Santa Casa, mas depois tinha o
consultório dele que contava como renda, né? Depois quando chegou o INPS, então
aí é de graça quase o dia inteiro. Porque, daí, as pessoas já pagavam o INPS e não
pagavam nenhumm outro médico. Então começou a degringolar tudo. Foi a
socialização da medicina às custas do médico! E no meu consultório isso deu um
impacto forte, também. Diminuiu bem o número de clientes. Quando eu fechei o
consultório em 65 já estava com uma clientela diminuída. Porque aí só que pode, né?
Ou então, quem queria saber o diagnóstico mais certo. Porque tem isso: esse negócio
do doente chagar lá no INAMPS, o médico só olha e, às vezes, faz o diagnóstico de
olhar. Não dá, né? Então, às vezes, o doente quer saber um diagnóstico melhor, quer
saber mais um pouco, ser bem atendido, então ele vai no consultório particular, vai
pagar, né? Muitos colegas fizeram convênio no próprio consultório. Eu nunca tive! Aí
precisava ter mais um ou dois colegas junto, né? Nesse caso é mais difícil trabalhar
sozinho. Então, dois ou três, faz o convênio, abre uma empresa... Aí precisa atender o
dia inteiro. É difícil sozinho.
(doutor Silvio)
Então, o INPS tinha um determinado número de hospitais que não dava pra
atender todo o pessoal. Então, o pessoal de medicina de grupo começou a montar
hospitais nos bairros e fazer convênio com o INPS, vivendo à custa do INPS. E hoje
todos os hospitais de São Paulo, com duas ou três exceções, vivem à custa do INPS.
Bom, então o que acontece é o seguinte: que em função do crescimento do INPS e do
crescimento das empresas de medicina de grupo, das sociedades de pré-pagamento,
como é o caso do Hospital São Luís, não sei o quê, que o indivíduo compra o título e
ele... então recebe assistência grátis, tudo isso, é claro que a clínica privada começou
a sofrer, começou a diminuir. E vem diminuindo gradativamente até hoje, em que a
clínica privada hoje está praticamente abandonada. É essa a situação que nós
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vivemos hoje! Em termos de medicina capitalista ou de medicinal... vamos dizer, de
autônomo, é isto! Quer dizer, os médicos de mais idade já, aposentados, etc., não têm
mais clínica suficiente para mantê-lo. Absolutamente não! E os novos, também não
têm! Porque não sobra cliente do INPS, das sociedades de grupo; não sobra clientes
para manter o... o consultório de um indivíduo... de um indivíduo autônomo. E isto
está acontecendo com outras áreas paramédicas: isto vai acontecer com os dentistas,
com... com todos... todos eles, né?
(doutor Antônio)
Uma outra repercussão das alterações efetuadas significou discriminar
dimensões “exteriores” ao exercício profissional também por referência a aspectos
ligados à pessoa do paciente. Portanto, igualmente aparece como efeito desse processo
de atualização da prática profissional a retirada para o exterior do ato técnico dos
aspectos sociais da vida pessoal do doente, mesmo os que se relacionam mais
diretamente ao cuidado médico. Estes eram anteriormente objeto do controle técnico
do médico, uma vez que ele tomava a si a responsabilidade sobre todos os aspectos da
assistência. Essa total responsabilidade significava assumir o controle das formas
concretas de viabilizar a conduta técnica, ou seja, o médico tomava a si, sob seu
cuidado pessoal, também a resolução das dificuldades sociais na consecução das
medidas terapêuticas preconizadas. A perda do controle pessoal sobre essa dimensão
do paciente virá se agregar aos demais fatores de transformação já referidos da relação
médico-paciente.
Como você não tinha muita previdência funcionando, no fim todo mundo
fazia previdência. Então se... vamos ver: chegava lá, chegava lá, sábado à tarde, uma
apendicite aguda, tem que operar. Você faz o quê? “Ah! Não tenho! Porque eu faço...
eu trabalho na feira, mas não sou o dono da barraca, sou empregado. “O dono foi
que... que levou junto... Então você fazia aquela história: o hospital fazia um desconto,
a gente cobrava pouco... Você chegava a meio termo razoável. A gente vamos dizer, a
própria estrutura de atendimento da medicina privada dava uma cobertura. Às vezes
chegava alguém... entrava um pobre qualquer com criança com dor de barriga, você
acabava dando o remédio mesmo. Ia lá pra ver e... ia buscar a irmã da farmácia,
abria a farmácia, vê se lá tinha amostra, pegava um remédio e dava. Então você fazia
desde a assistência gratuita até a assistência bem remunerada, dependendo da pessoa
que você atendesse. Era o que você tinha que fazer! Não tinha outro esquema, né? Se
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você não atendesse, não tinha ninguém mais pra atender! Se o hospital não facilitasse
um remédio qualquer pra você dar, a pessoa não ia ter o remédio e não ia ter o
dinheiro pra comprar, também. Então você fazia uma assistência que, hoje, o Estado
teoricamente faz, né? Com isso também você tinha uma clientela diversificada...
(doutor Luís)
Então, naquela época, o médico não tinha emprego. Então, ele trabalhava
durante... a manhã nos serviços universitários para manter o seu aperfeiçoamento. E
à tarde, depois do almoço, no seu consultório, das duas ou da uma até às oito, nove ou
dez horas da noite, atendendo os seus pacientes e, depois, ainda visitava os pacientes
em casa, tudo isso. Então, era uma aproximação muito unida. Um paciente não tinha
– como hoje – o convênio donde ele trabalha, a sociedade de medicina da qual ele
comprou o título de pré-pagamento... Não havia nada disso! Então, ele tinha que se
servir do médico particular. E o médico particular era um indivíduo liberalíssimo!
Quantos médicos atendiam os seus pacientes de graça no consultório! Iam até visitá-
los em casa, de graça, e não cobravam um vintém do indivíduo. Ih! Era um número
muito grande! Porque o médico, vivendo esse relacionamento razoavelmente estreito
com o paciente, ele podia se dar a esta característica de favorecer o paciente... Então,
quantos pacientes eram atendidos graciosamente? Muitos! E esta forma de relacionar
era importante!
(doutor Antônio)
Até onde e como o serviço centrado no consultório seria capaz de cobrir
satisfatoriamente a demanda do paciente eram atribuições pessoais do médico e que
passam agora a se definir pela tecnologia e pelas formas de acesso do doente aos vários
serviços. Assim sendo, muda o caráter da dependência do paciente relativamente ao
médico, pois o paciente agora pode, por si só, sugerir ou encontrar as soluções
concretas do encaminhamento da conduta formulada pelo médico. A forma de
utilização dos serviços de pronto-socorro, por exemplo, quando contrastada à medicina
“dos chamados” mostra bem a autonomia que o paciente adquire, de um lado, e, de
outro, a necessária adaptação do médico a essa interrupção de seu controle.
Ou então, como relata doutor Luís, sobre o consumo de medicamentos:
Agora, alguns remédios... foram ótimos, importantes. Chegavam
a mudar completamente a terapêutica, né? Algumas doenças deixaram de
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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ser problema sério. Igual a gonorréia, né? Acabou... praticamente acabou a Urologia
até começar aqueles doentes de cirurgia de rim de novo, né?, porque... noventa por
cento das uretites gonocócicas iam pra estenose e, então o sujeito ficava tratando
daquela uretite o resto da vida com dilatação de uretra, com não sei o quê, lavagem...
Apareceu a penicilina, acabou, né? Ou seja, nem vai no médico. Ele já vai direto na
farmácia e compra... nem pergunta pro farmacêutico!
A medicina do servir, do assistir, do aconselhar ou orientar o paciente parece,
pois, ter cedido definitivamente seu lugar a uma medicina em que tratar, medicar, curar
ou recuperar, sob qualquer base de intervenção, isto é, seja ela associada ou não a uma
assistência “global” destinada ao doente, são os novos referenciais de valor. E com tais
paradigmas parece não haver mais espaço na prática para que o cuidado relativo aos
sentimentos pessoais – da alegria ao sofrimento – siga pertencendo à totalidade do
assistir.
A prática que se está construindo parece implicar a presença de outro tipo de
interesses e envolvimentos pessoais, de ambos os lados.
b) conservando o essencial
A maior utilização dos recursos diagnósticos, a utilização dos medicamentos
industrializados, a hospitalização, a utilização dos especialistas ou outros serviços
médicos e os demais procedimentos adotados para atualização da prática profissional
relativamente à medicina tecnológica, são todos eles, então, uma readaptação do ato
técnico, obrigando a uma redefinição dos referenciais do plano mais pessoal. Mas uma
redefinição que a incorporação de tecnologia será sempre perpassada pelas decisões e
procedimentos que buscam preservar aqueles espaços nos quais a base mais pessoal
pode ser ainda mantida.
Se, por exemplo, a presença de novos equipamentos diagnósticos é ampliada
por referência à prática anterior, tanto essa presença deve manter-se dentro dos limites,
evitando os “exageros”, quando deve manter a característica de apresentar-se como
sento ainda disciplinada pela anamnese e pelo exame físico. Importará, por
conseqüência, a preservação do espaço da anamneses, pois esta aparece como o
símbolo da personalização da prática. O sinal que basicamente a identifica – o tempo
de conversa na consulta ou o próprio tempo de consulta – logo aparece, portanto,
como o “ponto de honra” da busca em se preservar uma autonomia de prática no
exercício profissional.
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E tem outra, hoje ninguém mais tem tempo. Por exemplo, a consulta desde o
meu início de prática, sempre foi uma consulta, assim, muito demorada. No doente
novo, nunca menos de uma hora. A primeira vez que... que eu entro em contato com
ele, nunca menos de uma hora. O paciente que eu já... mais antigo, aí a coisa é mais
simples porque eu já tenho uma visão boa do indivíduo e, além disso, eu me considero
privilegiado porque eu tenho uma memória muito boa – ainda tenho! – então eu
conheço todos os doentes.
(doutor Carlos)
A duração da consulta é muito importante. É muito importante porque,
desde o início, eu nunca fiz questão de tempo. Como eu já disse, eu fui sempre muito
afetivo, muito... Eu nunca me preocupei com o tempo. E minhas consultas, desde as
primeiras, sempre foram consultas completas. Se um cliente queixava da parte
ginecológica, eu fazia em “check-up” geral. Não uma coisa profunda, mais fazia um
“check-up” geral, me aprofundando mais na queixa. Eu tenho notícias de que o
doente se queixa, hoje em dia, de um sintoma e o colega só verifica essa parte, pronto,
vai embora. Eu não! Eu fazia “check-up”: tirava a pressão, olhava a garganta,
ouvido, tudo! Eu fazia um “check-up” geral, me aprofundando mais na queixa do
doente. E não tinha isto do tempo” Isto era dez, quinze, meia hora, quarenta minutos.
O tempo, pra mim, não era importante. Eu tenho a impressão que com isso eu mesmo
criava mais, ficava mais a par da queixa do doente, do passado, me orientava melhor.
Mantendo essa estrutura até hoje!
(doutor Fábio)
Eu ainda acho que, se examinar com calma, se tirar uma história um pouco
sossegado... Não precisa ser consulta de uma hora! Você dirigindo bem dez, quinze
minutos, depois que dá pra fazer bem o exame e tendo certeza que o cliente volta...
(doutor Luís)
É importante observar que o tempo de consulta é mais do que mero aspecto
da consulta, pois ele e a conversa simbolizam não apenas a essência de uma liberdade
de ação da prática liberal, mas a própria essência de sua possibilidade técnica, em que
se articulam a atenção, a observação paciente do caso e o instrumento maior que é a
anamnese, no período em que o saber foi o principal meio de trabalho. A ausência de
recursos materiais que prolongassem os sentidos humanos e pudessem poupar a
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história e o exame clínico, diminuindo a conversa e o tempo de consulta, obrigou a
uma ampliada anamnese. Na ausência do raio X, uma pneumonia é a tosse com o
catarro cor de ferrugem quando se tem febre, e que dói a dor que “tem” posição, o que
pode diferenciar da dor enjoada e “sem” posição da cólica renal. Por isso cada sintoma
relatado ou sinal observado é preciso circunstanciar, qualificar e explorar. A medicina
tecnológica ao mesmo tempo que prolonga o “tempo tecnológico”, como por exemplo
o do ato cirúrgico, encurta o tempo desarmado: tempo mais simples tecnologicamente,
mais barato e mais pessoal; tempo da conversa e da consulta, que restrito, permite
maior produtividade do médico.
Por outro lado, para o paciente a conversa simboliza a possibilidade de uma
participação que, se na prática liberal restringe-se ao relato, na medicina tecnológica
poderá abranger um envolvimento com a própria formulação da conduta, já que o
doente por meio da tecnologia também pode objetivamente ter acesso aos dados dos
exames. Esse envolvimento seria agora possível, não fosse o fato de que exatamente
pela presença da tecnologia material objetivadora, a conversa termina por se encurtar.
O tempo dedicado ao doente na consulta e sobretudo o tempo da conversa são,
portanto, as características que esses médicos buscam preservar, representando, por seu
intermédio, a permanência da “essência” do caráter liberal de suas práticas.
De mesma forma salientam os médicos o fato de que a tecnologia deve,
mesmo que presente rotineiramente, encontrar no raciocínio proveniente da anamnese
e do exame físico, bem como encontrar no saber clínico operante que pessoalmente
desenvolve o médico, suas justificativas. Assim, o limite ao “exagero”, ao possível
abuso que vêem na medicina tecnológica, parece reger-se pelos mesmos princípios
que marcaram suas atuações iniciais: o mesmo raciocínio e ainda, até certo ponto, a
mesma experiência clínica pessoal, é o que deve nortear o momento, a forma e a
intensidade do uso da tecnologia:
É verdade que a medicina hoje é sofisticada! As ultra-sonografias, as
tomografias, as ressonâncias magnéticas, a ecografia... Mas tudo isso tem que ser
complemento, não primeiro passo. Eu mantendo a minha forma de clínica
como sempre fiz. Quando eu vejo um paciente, faço acompanhamento pré-natal,
muitas vezes ela diz: “Como é? O senhor não vai fazer ultra-sonografia?” Eu digo:
“Não. No momento, não. Só vou fazer quando o caso é necessário.” E tem
muitos colegas que pedem cinco ou dez ultra-sonografias durante a gestação.
Eu acho importante quando você, clinicamente, sente que a gravidez não está
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evoluindo normalmente, que o útero não está crescendo de acordo com a evolução
normal, ou está havendo algum outro problema. Os exames que eu mais peço são os
pré-operatórios: hemograma, coagulograma, urina, fezes... Quando é o caso, peço
também dosagens hormonais. Mas não sou de pedir muito exame, não. É verdade que
exame de laboratório, pedindo amplamente, impressiona bem o paciente. Mas às
vezes se gasta mais dinheiro com exames do que seria necessário. Ainda me preocupo
com a parte econômica do paciente... Com a evolução da medicina, nós usamos
alguns recursos sofisticados. Temos a ultra-sonografia, por exemplo. Quando é
necessário não há dúvidas que pedimos, mas procuramos evitar o excesso, e também
encaminhar para serviços que não onerem muito o paciente. Na Previdência, às
vezes, recebe pacientes encaminhadas de colegas da especialidade, jovens
naturalmente, com pedidos de exames que eu, muitas vezes, só com o exame clínico
resolvo. Muitas vezes eu não peço exames se eles não tem razão de ser, mesmo para a
Previdência, oneram inutilmente a Previdência. Às vezes um fibroma... então pediram
uma tomografia... quer dizer, é tão oneroso que eu acho que não tem razão de ser. Às
vezes dosagens hormonais de alta sofisticação sem maior indicação. Acho que é uma
questão de foro íntimo. O instrumento mais valioso para o diagnóstico é a anamnese,
aquela conversa em que você gasta mais uns dois, três minutos com o paciente, que às
vezes penetra um pouquinho mais na intimidade... e, naturalmente, certos exames
complementares, quando bem indicados, um exame mais aprofundado.
(doutor Maurício)
Nessa mesma direção, como aponta doutor Maurício, o tecnológico de sua
prática não substitui a característica permanente do aconselhamento:
Uma marca da minha clínica de consultório, ao longo desses anos é o
aconselhamento, três, cinco minutos de conversa já são muito importantes. Eu tenho
tido diversos casos que mostram isso. A paciente diz: “Olha, doutor, eu já fiz vários
exames, mas às vezes nem me examinavam e já me davam a receita. O senhor foi o
único que conversou comigo e me ensinou uma porção de coisas”.
Da mesma forma com o que ocorre na incorporação dos recursos
diagnósticos, o uso de instrumentos terapêuticos mais atualizados também
deve reger-se pela cautela e pela parcimônia. Deve-se considerar, dentro
de novos limites, as possibilidades efetivas da realização pelo paciente da
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terapêutica proposta, por referência aos custos envolvidos ou a dificuldades de outras
ordens. Manter-se dentro desses princípios de uso do instrumento terapêutico aparece
também como procedimento da preservação das dimensões mais pessoais de atuação
da prática profissional.
Eu costumo dizer pro cliente que não se afobe com remédio porque remédio
só fez bem pro dono do laboratório. Pra eles sempre fez bem! Pro paciente, às vezes
ajuda. Por isso é importante sentir o paciente. Isto sempre foi feito!
(doutor Carlos)
Eu procurava não fazer uma farmácia, dar uma receita muito grande, não
é? Ficava mais ligado ao exame com o doente para ver se conseguia dar menos
remédio possível, menos produtos possível. Eu não gostava de dar muito, quatro,
cinco, seis produtos numa receita só. Quer dizer, fazer um cerco, vamos dizer assim,
como existe e acontece, né?
(doutor Fábio)
A formulação de uma terapêutica ainda, em parte, personaliza, aparece
também como a mesma tentativa de preservar as bases mais pessoais da ação. Assim,
doutor Carlos, por exemplo, faz questão de frisar seu uso de fórmulas sempre
individualizadas de certas medidas terapêuticas como as de dietética, em combinação
com os fármacos industrializados.
O doutor Nélson, por sua vez, ainda guarda consigo as orientações do
formulário clínico e quando julga necessário não hesita em fazer uso prioritário desse
procedimento:
Eu, frequentemente, eu reviso. Então, um hiperglicêmico, um diabético e, às
vezes, um obeso – que é muito freqüente também eu atender – e que está
correlacionado com algum fator cardiovascular, eu... insisto pra que ele... que ele
faça... um determinado regime. E eu vou... vou fazer o regime personificado pra ele.
Eu digo: “Olha, não é um... um impresso simplesmente, não; que a gente podia tirar
um xerox e te entregar. Eu estou montando um regime de acordo com as
suas características. O senhor vai perder peso... vai voltar aqui daqui quinze
dias pra pesar. Isso aí não é consulta nova. O senhor vem aqui simplesmente,
entra num determinado horário, pesa, a gente verifica, conversa...” E
assim por diante. Eu sempre gostei muito de nutrição. E... e tenho... tudo o
que sai publicado, tudo o que eu encontro, eu guardo. E teve...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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até em... em revista feminina. Tudo isso eu anoto, vejo, curiosidades... Tenho vários
tratados, alguns já não tão recentes, mas coisas muito interessantes. Então eu monto o
esquema pra pessoa.
(doutor Carlos)
Mas eu estava falando que gostava mais de formular, que era mais
interessante. Era mais interessante porque formulando – quando a farmácia era
direita – eu tinha certeza que aquela dose.... o sujeito ia tomar aquela dose. Ao passo
que o remédio pronto, às vezes o laboratório não... não coloca a quantia certa. A não
ser grandes laboratórios honestos, certo? Mas também existe m.. Eu vou contar outra
história. Eu recitava muito produto de um laboratório suíço. Era umas gotinhas pra...
Codeínado, pra tosse, tudo. Numa ocasião fui ver um velhinho, e vi tudo aquilo lá, tal,
o velhinho tinha medo de injeção, eu receitei tudo por boca, inclusive este produto
deste laboratório suíço. E o velhinho... foi embora. Eu recebi e ele foi embora.
Passaram uns três dias e o filho dele me chamou outra vez. “A tosse de papai não
passa, uns acessos muito fortes”. Bom, voltei lá, olhei outra vez, percuti, auscultei.
“Tem que continuar isso aqui. Não posso modificar esse remédio codeinado.
Continua dando isso e mais aqueles outros que estão lá.” Mas continuava se
queixando de acessos fortes. Então precisava dar um negócio pro acesso. Foi embora
outra vez. Me chamou, depois, a terceira vez. Ah!, então eu perdi a paciência!
Formulei! Diolina – lembro como se fosse hoje – água de louro – cereja. “Manda
fazer no Veado d´Ouro, na cidade, lá na São Bento.” Foi fazer essa poção, esse
remedinho, gotinha, começou a tomar diolina, passou os acessos.
(doutor Nélson)
A preservação do interesse e da dedicação por referência ao passado, ou a
extensão de um mesmo comportamento pessoal a quaisquer tipos de clientela são
alternativas também apontadas em direção da manutenção dos procedimentos
“nobres” da profissão:
Quer dizer, lá no meu consultório, eu trabalho com os clientes com o mesmo
interesse, a mesma dedicação. Seja ele um modesto funcionário do Banco do Brasil
ou da Sul da América – que de vez em quando me aparece um ali – ou um ... da
CETESB, por exemplo, que... que de vez... ou da COMGÁS, por exemplo, o chefe
médico era o meu companheiro, me inscreveu lá. Então, de vez em quando, vem assim
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uma meia dúzia de casos por ano. A mesma coisa, o mesmo interesse que eu tenho
por eles, o mesmo horário... Não tem discriminação nenhuma. Ele é atendido, eu
marco horário, ele é atendido no mesmo horário, se tiver uma consulta particular vai
ser atendido no horário seguinte... Não tem problema nenhum! Ele não é abandonado
simplesmente porque passou uma particular e... então ele é substituído pelo... Não! De
jeito nenhum! Ele é atendido dentro da cronologia das possibilidades. Se tiver que
ficar duas horas com ele, fico duas horas.
(doutor Carlos)
Quando a perda da forma tradicional de captar a clientela é inevitável,
também na opção pelo credenciamento ou convênios adotados para o consultório
busca-se privilegiar mecanismos mais próximos ao tradicional para a vinculação da
clientela. Como diz doutor Carlos, mesmo que o contrato entre o médico e o paciente
não se paute mais pela relação interpessoal por referência à remuneração do médico ou
ao conjunto de procedimentos possíveis, os convênios que permitem a “livre-escolha”
são os únicos que podem interessá-lo:
Alguns pacientes meus são de credenciamento. Hoje ninguém pode
sobreviver se não tiver. A não ser raros indivíduos na clínica particular. Eu tinha uns
clientes, que moravam perto da minha casa, e que eram funcionários do Banco do
Brasil, que eu os atendia. Então, um dia, um deles chegou pra mim e me disse: “Olha,
o Banco do Brasil vai abrir o credenciamento e se não houver nenhum... nenhuma
contra-indicação eu vou colocar o seu nome lá como credenciamento.” Falei: “Ah,
pra mim, tanto faz!” Então ele me colocou. E eles mesmos começaram a divulgar o
meu nome lá dentro: “Vai, tal, é um clínico, tal... E eu comecei a formar uma clínica.
Então, isto começou em 1970 ou 71. Foi o primeiro credenciamento. Depois, um ou
outro, e tal... E o da Sul América, que eu me... que não era Sul América na época, era
uma... uma outra entidade, não me recordo exatamente o nome. Eu entrei porque eu
queria ver como é que funcionava um serviço de livre escolha, assim de caráter... de
caráter... de credenciamento, né? mas com livre escolha.
A incorporação da tecnologia, portanto, residiu em um comportamento
no qual se combinaram a ousadia e a cautela. De um lado, a cautela diante
do novo, mostrando a decisão de se tentar manter a prática profissional
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dentro de parâmetros de ação e de efeitos já conhecidos, além do quê, sob controle do
médico. De outro lado, a ousadia do desconhecido e o entusiasmo pelo novo
mostrando a decisão de se buscar inovar a prática profissional, colocando-a nos marcos
da atualização diagnóstica e terapêutica. Alguns depoimentos mostram o duplo
referencial na incorporação tecnológica com muita clareza:
Agora, eu devo confessar que.. que sou... muito tradicionalista em termos de
medicação. Por exemplo, eu nunca uso o último antibiótico que entra no mercado.
Nunca! Só depois de algum tempo da existência dele ou, então, quando há uma
indicação precisa, muito específica... Mas, de maneira geral, eu, por exemplo, sou, até
certo ponto, um tradicionalista, um indivíduo cauteloso. O meu comportamento
terapêutico é muito limitado. Eu não uso muito medicamento assim livremente.
(doutor Antônio)
Quando aparecia assim uma novidade, sempre não fosse raio X, eu não me
incomodava de ver. Uma vez que o custo, também, para o doente não
sobrecarregasse. Naturalmente ela ia ter restrições de uma medicação porque tem
que fazer um exame que podia ser dispensado. Fazer os exames sempre que
necessário, né? E, sem dúvida nenhuma esses exames são progresso e tiram muita
morbidade e mortalidade do feto e materno mesmo. Porque não tem mais... tem umas
deformações, essas coisas, que são previstas, vistas com antecedência, não? A
penicilina é um antibiótico que sempre se usou sem medo. E a restrição dele foi em
virtude dos choques. Porque a penicilina foi a grande medicação, né?, que não tinha
conseqüências para o feto, e tal. Mas, depois, os outros antibióticos são.. dão
coloração nos dentes, dão depósito de cálcio nos ossos, essas coisas. De maneira que
a gente era parcimonioso. E ainda a hidroestreptomicina que se usou no início,
quando entrou esse antibiótico, que também foi deixada de lado porque era mais
alergizante do que a própria penicilina. Quer dizer, eu também tive muito cuidado no
uso desses outros antibióticos. Porque quando entraram os antibióticos,
sistematicamente – por assim dizer – dá à luz, toma antibiótico! Era a garantia! Era o
pavor! Porque só quem viu, como nós vimos mulheres jovens no primeiro filho
morrerem de infecção puerperal, é que ficava apavorado num negócio desse. E a
gente sabia das novidades, das mudanças, porque a gente vai em
congressos está sempre atualizado, vai sempre em congresso lá no estran-
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geiro ou aqui mesmo, pela leitura... De maneira que a gente está sempre na ordem do
ia, né?
(doutora Emília)
Permeadas pela simultaneidade desses procedimentos polares na atualização
do exercício profissional, as práticas são reconstruídas. Assim, a conversa, a dedicação,
a disponibilidade, a anamnese ou o exame clínico, articulados agora com novos
elementos de consulta, e fora dela, já não se podem dispor do mesmo modo que se
colocavam na ausência relativa da tecnologia material: a atenção, a conversa, ou
qualquer outro elemento de caráter mais pessoal e subjetivo, refazem seu espaço e seu
momento e consideram outras formas de obter dados ou informações dos quais não se
podem abstrair enquanto constituintes de sua própria dimensão particular. Além disso,
a prática profissional trata agora de novas realidades clínicas, realidades que a própria
tecnologia material faz aparecer, alterando radicalmente o tempo, a forma e o espaço
das manifestações do sofrimento do doente.
Contudo, essa prática profissional reconstruída, ao mesmo tempo em que se
insere na medicina tecnológica, permite a seu agente, exatamente pela coexistência dos
procedimentos polares relativamente à incorporação do novo, concebê-la como tendo
preservado “em essência” a mesma qualidade do exercício autônomo anterior. A
prática médica muda, mas a clínica e o seu objeto de prática parecem permanecer:
Algumas coisas ficaram muito mais fáceis de fazer diagnóstico, né? Tipo
prenhez ectópica, por exemplo, diagnóstico ginecológico perdeu a graça hoje... Você
tinha que usar mão e cabeça. Hoje se usa uma maquininha que você passa na barriga
do doente pra gente fazer o diagnóstico, né? Algumas coisas mudaram muito!
Esse é um exemplo dentro da minha área. Recursos terapêuticos, tenho a impressão
que na área que eu estou o que mudou muito foi a anestesia. Você passa a ter
uma anestesia... você faz uma cirurgia mais sossegado! Eu cheguei a pegar um
pouco de cirurgia ainda feita ou com anestesia local – que você não tinha
confiança nas outras anestesias – ou com máscara aberta, né? Você nem sabe o que
é, hoje. Você tem uma... ocultando o nariz... é tipo... anestesia de seqüestro, né? um
algodão praticamente no nariz do camarada com... e ficar gotejando éter ou
cloreto de etila ou as misturas dos dois, ou umas misturas já prefabri-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 122 -
cadas... Então você sabe como é que era. Anestesia era melhor você fazer com
anestesia local, né? Isso mudou também! Brutalmente! O grande progresso da
cirurgia acho que se deve muito mais à anestesia em si do que à técnica cirúrgica
mesmo. Tirando a cirurgia cardíaca – que também se faz porque você tem recursos
para deixar o sujeito vivo enquanto você corta e costura o coração. O “corta e
costura” não mudou muito. Mudou o resto. Também a patologia, eu acho que não
mudou muito. Tenho a impressão que não. A cirurgia ginecológica, as mesmas coisas
de agora, né? Fibromas, cistos de ovário... Você tem umas coisas que ficam moda e,
depois, saem de moda.
(doutor Luís)
Eu tenho uma rotina que sigo há muitos anos. Por exemplo meus
procedimentos clínicos são os mesmos de há... há... 40 anos atrás. Talvez um ou outro
sinal... Porque não há... não houve mudança nenhuma. Em termos de laboratório,
sim; porque os laboratórios foram criando novas... Por exemplo, até há uns trinta ou
quarenta anos atrás nós não fazíamos determinação de “T-3”, “T-4”, “TSH”, tudo
isso, para insuficiência tiroideana ou de... de pituitária, né? Não fazíamos. Agora a
gente faz quando há suspeita de hipotireoidismo ou hipertireoidismo. Mas, em termos
de laboratório, existem exames... hã... mais modernos que foram sendo introduzidos. É
o caso, por exemplo, da tomografia computadorizada que nós não usávamos antes; é
o caso da ecografia, que também nós antes não usávamos, e assim por diante. Quer
dizer, em termos de laboratório, existem algumas coisas, algumas conquistas que
foram incorporadas, né? Mas em termos clínicos, não! A medicina do consultório é
mais clínica. Depende muito mais do exame e da anamnese. Veja bem, por exemplo, o
exame clínico,em tudo ele é importante, desde a postura do paciente, a medida da
pressão arterial, até o exame do olho, até o exame de tudo. A inspecção do paciente é
importante. Então, o exame todo – todos eles são iguais. Agora, a anamnese está
muito relacionada com uma doença, né? Por exemplo, vamos supor, chega uma
criança aqui com... por exemplo, com um pouquinho de febre, um pouquinho pálida, a
mãe diz que está urinando escuro... Então isso começa a levar a gente para um
caminho de uma possível hepatite. Então aí você vai fazer as perguntas que podem
levar a esse resultado. Perguntar se as fezes delas são coradas, se ela teve contato
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 123 -
com alguma criança com hepatite – isso noventa dias – e assim por diante. Quer
dizer, está muito relacionado ao tipo de patologia, né? Mas também na anamnese não
existem procedimentos especiais! São todos iguais! A anamnese você vai perguntar
para a mãe, você vai fazer todas as perguntas. Então... tudo é importante. Se você não
souber a idade, a procedência, tudo isso é importante, né? E isso é assim há... um
século, não mudou nada.
(doutor Antônio)
Mudar sem mudar essencialmente, constituir um movimento de
transformação mas buscando fixar padrões de atuação e fixar identidades: assim é
pretendida a atualização dessa prática profissional por seus agentes. Seu princípio
transformador parece reger-se pela busca de re-produzir o mais próximo possível a
identidade inicial de suas vidas profissionais. Esses médicos, no entanto, por meio do
conjunto de procedimentos acima examinados de fato refazem suas “liberdades”,
reorientando seu exercício. Todavia, o que percebem da mudança, o que entendem
eles do movimento particular que promovem e da história da medicina que, por meio
desse movimento, são eles também criadores, é a reconstrução de suas “liberdades”
pessoais de atuação como um movimento de continuidade, em razão do caráter
“liberal” de seus trabalhos de consultório privado que segundo suas avaliações teriam
conseguido manter.
Não obstante, seguem também percebendo de modo bastante claro que no
conjunto da prática médica eles constituem apenas um segmento, e de peso muito
relativo. Por isso é que, considerando a própria identidade profissional que buscam
preservar, esta forma de participar do conjunto da prática, e então constituir com todos
os demais a totalidade da medicina, lhes parecerá não uma inserção mas um
deslocamento, uma situação até “estranha” à medicina contemporânea. Será dessa
percepção e deste modo particular com que tomam o histórico que trataremos a seguir.
SINAL DOS TEMPOS
“Curiosa é a expressão meu tempo usada pelos que recordam. Qual é o meu
tempo, se ainda estou vivo e não tomei emprestada minha época a ninguém, pois ela
me pertence tanto quanto a outros meus coetâneos?”11
. De mesmo modo, poderíamos
também em nosso estudo indagar sobre o sentido dessa expressão “meu tempo”,
“minha época” que aparece nas narrativas.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 124 -
Aprender o tempo e identificar-se com esse tempo requer, antes de tudo, que
se marque seus limites. Para o doutor Nélson: todo tempo oi um tempo! E para todos
os entrevistados há o “naquele tempo”, em que nada ou quase nada é como hoje, “esse
tempo”. Os limites que circunscrevem cada um dos tempos não são, para cada pessoa,
necessariamente precisos ou exatamente iguais, mas há ao longo de suas experiências
pessoais de vida os marcos que a ordem social, através de seu tempo, articula aos
vividos singulares. Assim, se individualizam certos momentos vividos como um
tempo: o tempo do chapéu ou o tempo do automóvel; o tempo da “medicina do
chamado” e o tempo do pronto-socorro; o tempo antes e depois da penicilina.
No movimento do social, que continuamente fornece e fornecerá o novo,
forma-se, de um lado, a percepção clara de movimento, processo irreversível. Ao
mesmo tempo há, de outro lado, uma percepção que corta e estanca o movimento,
uma percepção estática, da estrutura, que fixa momentos de vida. Trata-se de uma
percepção que identifica determinados conteúdos por meio do repetitivo, do
acontecimento cíclico que reitera a experiência, cristalizando e individualizando
identidades de vividos12
. O tempo é, portanto, algo concreto e social cujo conteúdo se
dá através da vida socialmente experimentada. O que marca o centro desse conteúdo
ou como se dá a percepção das passagens de um a outro conteúdo ao longo do tempo
que flui, ou ainda como se singularizam “tempos” no vivido, são criações sociais
correlatas ao modo de se estruturar a vida em sociedade. Uma estruturação que
permitirá e definirá afinal, uma e não outra concepção do objeto de trabalho e
consequentemente da modalidade de intervenção médica; ou então, uma e não outra
identidade da profissão e do que significa ser médico:
No meu tempo não se tinha essa visão tão material, assim, do corpo, da
intervenção, quer dizer, de abrir, de mexer... Hoje por exemplo, o cidadão abre uma
barriga. Um tumor “tomado”. Eu já vi, né? Abria e, no final, a gente fechava. E
deixava o cidadão viver sem saber. Hoje não! O cidadão vai, tira tudo, leva um tumor
bonito pra casa. De maneira que se pensava muito nisso, sabe? Se pensava muito
nisso. De maneira que essas coisas todas modificaram muito as condutas médicas e o
coração do médico mesmo, o indivíduo médico.
(doutora Emília)
Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante,
particularizada; quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico não tem
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 125 -
chefe, não tem patrão, ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos!
Os empregos surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! (...) Então, eu
não vejo nenhuma possibilidade de voltar ao passado mas, se houvesse essa
possibilidade, eu acho que o paciente ganharia muito. Eu sou desse tempo!
(doutor Antônio)
Porque recém-formado, a gente tinha receio... o curso médico, hoje, está
muito diferente do que foi na minha época (...) Hoje, o aluno de segundo ano, a gente
encontra dando plantão por aí. Então o Fulano, já dá palpite... Quer dizer, nós
nunca... tivemos coragem de fazer uma coisa dessas! Nunca! Nunca! Também a
clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de tanta coisa, nem se pedia
tantos exames, como eu nem peço até hoje.
(doutor Carlos)
Na sociedade capitalista moderna o trabalho é reconhecido como referência
para a notação do tempo, e por isso mesmo, como já examinamos, é capaz de separar e
individualizar no cotidiano vários tempos: a vida passa a ser concebida como
composta do tempo de trabalho e de tempos que são o seu outro.
Também por isso o trabalho individualiza na vida de cada pessoa o que está
antes ou depois, dentro ou fora da vida de trabalho, passando cada um dos conteúdos
singularizados a ser reconhecido como distintas identidades de vividos, “tempos”
diversos. A passagem, por exemplo, da identidade social de “dependente” para
cidadão “produtivo eficaz” tem um forte sentido na sociedade contemporânea, e
sinaliza para todas as pessoas uma ruptura, no tempo da vida, que marca
profundamente. No presente caso essa passagem corresponde ao início da vida
profissional do médico, corresponde aos momentos em que essas pessoas concebem e
executam seu projeto particular: o de serem médicos.
No planto formal, o momento da formatura escolar na faculdade materializa
esse trânsito para a nova identidade. Contudo, não será somente a partir daí que se
constrói o significado desta outra situação social, a de ser médico. E porque em sua
identificação reside a notação de um tempo, para conhecê-lo e apreender seu sentido,
não poderíamos marcá-lo de modo assim tão pontual. Por isso dissemos que, dentro
dos referenciais do tempo histórico, o tempo cronológico que corresponde a esse
período da vida não tem limites precisos ou iguais para todas as pessoas, mas
tem para todas elas a mesma identidade: o tempo em que são médicos. Tam-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 126 -
bém por isso incluímos como fazendo parte do “ser médico” as experiências
correspondentes à própria escolha da profissão e à formação escolar, já que estas são
constituintes da passagem para a identidade de trabalhador. Movimentos, portanto, do
mesmo empreendimento.
É preciso considerar, ainda, que exercer a medicina é desenvolver uma
prática que se transforma continuamente. É claro que cada indivíduo exercerá a
profissão por tempo variável, ao longo do qual poderá assumir – como o faz, de fato –
várias identidades de profissão.
Trata-se, como vimos, de uma variabilidade decorrente da criação e re-
constituição das características dessa prática no transcurso da sua própria história.
Assim sendo, mesmo que possamos individualizar momentos na dinâmica de
transformação dada, aquele indivíduo continua sendo, em todos os momentos, médico,
exercendo a profissão.
No entanto, na passagem para a constituição do que se apresenta como algo
radicalmente novo e desconhecido, isto é, o ser da profissão, é o empreendimento
primeiro e sua correlata identidade que parecem cristalizar as concepções e as noções
que a partir dali, deste momento inicial, servirão de referência como algo então
conhecido, mesmo que esse empreendimento inicial vá se realizar, de fato, apenas
dentro de certos limites e tão-somente de certo modo. Vale dizer que, fazendo-se
médico, as transformações que se sucedem passam a ser contrastadas e comparadas a
uma particular identidade: a identidade que se forma nos momentos iniciais em que o
indivíduo constitui a situação do “ser médico”.
De um lado, é a noção contemporânea de que a “vida passa”, ou seja, que o
tempo flui de modo progressivo – “que não se repete, algo como um rio”13
– o que faz
das primeiras experiências uma figura mítica, um símbolo que cristaliza o ideal. De
outro lado, a própria concepção do caráter universal da medicina, tal como é a noção
dominante acerca dessa prática, faz com que o ideal estatuído assuma a qualidade de
ideal ontológico atemporal. Será por isso também que a concepção referida à
universalidade, de movimento do real como transformação em continuidade e
evolução, engendra a imagem de que apenas os momentos iniciais sejam algo
“original”, sem passado, sem raízes históricas e primeiro. Algo a que tudo o mais
sucederia, aprimorando-o em certo sentido, mas também fazendo-o perder qualidade,
ao desestruturar e substituir aquilo que em sua criação mostrou-se, do ponto de vista
daquele indivíduo e de seu específico coletivo-social, vantajoso e adequado
socialmente. A ambivalência demonstrada, por exemplo, diante das inovações e das
mudanças é significativa neste sentido.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 127 -
A expressão naquele tempo corresponde, pois àquele algo e seu momento, o
“primeiro”, o do “início”. Também é o momento no qual cada um se dedica
plenamente ao empreendimento, apropriando-se desse tempo, que assa a ser “seu”. É
meu tempo porque é também o tempo da plena esperança, da coragem total no
empreendimento. Força que cada indivíduo retira do entendimento dessa situação,
porque o início é a situação em que ele se reconhece sujeito pleno. Ali é senhor da
história, até porque este é exatamente o momento no qual se dá a constituição do
domínio de um saber-fazer que permitirá ao médico o exercício pleno da
subjetividade.
É o momento em que, com toda força, se apresenta sua utopia, seu ideal: o
projeto que concebe e acredita poder realizar totalmente14
, mas que o transcurso da
história terminará por re-situar, no plano da materialidade da prática e no plano do
próprio ideal. Por isso, o tempo restante por referência ao do início da profissão, tempo
que progressivamente evidenciará e fará com que ele, até certo ponto, reconheça o
determinismo social relativo que conforma seu desempenho pessoal, passa a significar
uma espécie de oposição ao tempo que é “seu”. Constitui um tempo no qual ele não
mais se reconhece, não lhe pertencendo porque não mais pertence a ele. Não é mais o
“meu tempo”, porque agora as concepções e os empreendimentos está já re-feitos,
tensionando a utopia e fragilizando a esperança.
Eu não sei, exatamente porque eu digo assim, no meu tempo... Acho que
quando eu falo, eu me reporto ao tempo em que eu entrei na faculdade. Aquilo foi
para mim, uma grande mudança porque – sei lá! – a gente era muito ingênuo, muito
ingênuo! E quando eu entrei na faculdade mudou muito... Abriu a cortina e eu pude
ver as coisas de um outro jeito, ter outros horizontes... sei lá... é como se tivessem
descoberto, levantado o pano... sobre o mundo. Quando termina eu não sei, eu ainda
estou aqui, né? Não sei... mas acho que quando falo é dos médicos daquela época...
eram diferentes... Tudo era diferente.... Diferentes no trajar... na postura... os
professores... Esses eram inatingíveis, você vê como eram os anfiteatros?
Eles perderam aquela aura, eram cultos, musicistas, filósofos, sabiam muito...
Hoje, não! Se rebaixaram, o que é que eles estudam hoje? Isso aí, que
todo mundo sabe... Mas acho que é tudo assim, está tudo diferente... Não
há dúvidas! Hoje sabe-se muito mais... Ah, não sei... não sei... Sabe,
quando a gente é moço, acha que a medicina vai fazer
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 128 -
tudo, que a gente vai salvar, vai ajudar, vai... A gente é muito ingênuo... Você vê, até
ontem eu assisti um programa na televisão em que o sujeito se disse materialista! Que
nada! Espera só ter uma dor de barriga... Eu não sei... Eu acredito em Deus, eu não
sou essas coisas... materialista... Mas eu não consigo me conformar com a morte, com
o sofrimento do paciente até a morte. Você vê, eu tive um caso de um paciente que
ficou anos e anos na cama só mexendo os olhinhos... Isso aí não pode, eu não aceito.
Você vê, a medicina aí não faz nada, não consegue nada com o canceroso, com a
arteriosclerose... Agora tem a AIDS... A medicina ainda é muito frágil nisso, não tem
nada pra fazer aí, está muito no início, mal conseguiu controlar as doenças
infecciosas... Está muito no começo. Ainda vai se desenvolver muito... Eu acho que ela
ainda vai conseguir atuar... Deverá ocorrer isso, as doenças degenerativas, quando a
medicina descobrir... quando sua etiologia for descoberta, a medicina deverá
melhorar muito as coisas... é... mas também não vai adiantar muito, não vai resolver
nada... Porque de alguma coisa se morre, né?...
(doutor Carlos)
Liberdade plena mas transitória; sujeitos temporariamente plenos e então
agentes temporariamente sujeitos: esta é a imagem dominante que detêm esses
profissionais de sua relação com a história. Alienados da relativização do técnico
diante do social posto sua absoluta socialidade enquanto ser, assim é que nós os
encontramos.
É preciso considerar, todavia, que não é de modo homogêneo que todas as
pessoas se apropriam dessas concepções sobre o tempo. E muito embora estas sejam
as concepções dominantes, nem todas as pessoas a elas aderem. A própria situação
concreta de vida congrega-se de dimensionar o grau de proximidade ou
distanciamento entre o momento original e os outros, ou entre os ideais que são
reconstruídos.
Além disso, há sempre aquelas pessoas para as quais os vários tempos são
também continuamente “seus”, já que se reconhecem como permanentemente
sujeitos: ao invés de tomarem certas transformações como um a história da qual
independeriam, vêem a mudança como história que se faz exatamente por suas
presenças, reconhecendo a si mesmos na contínua reconstituição do social. E através
desta noção de que são “permanentes”, reconhecem o tempo como sempre lhes
pertencendo. Porque, afinal, sendo História, são também e sempre movimento.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 129 -
1 Conforme os critérios de editoração e publicação das narrativas os nomes dos entrevistados
são fictícios, assim como evitamos identificar precisamente situações em que pudessem vir a
ser reconhecidos. Veja-se Lilia B. Schraiber – Medicina liberal e incorporação de
tecnologia..., op.cit., pp.1 a 4 do volume II. 2 Eudardo Etzel, op.cit., p. 111 e pp. 129-130 3 Eduardo Etzel, op.cit., p. 118 4 E. Etzel, op.cit., cap. III – Vida de medico: cirurgia na década de 30, pp. 113-120. 5 Idem, idem, p.127 6 Cf. Cid de A. Leme – A história da eletrocardiografia no Brasil, in Revista Paulista de
Medicina, 99 – Suplemento Cultural no. 11, São Paulo, jan.-fev. 1982; e Stans Murad Netto – Evolução e avanços em cardiologia, in J.Bras. Med. (JBM), vol.46, no. 3, 1984, pp.70-89 7 Cf. também Eduardo Etzel, op.cit., pp. 126-127 8 P. Thompson – Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism, in Past and Present, no. 38, dez. 1967, pp. 56-97; Teresa P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., pp. 114-119, que
analisa a noção de tempo de o cotidiano entre moradores de um bairro da periferia de São
Paulo, no estudo que faz sobre o cotidiano e as representações acerca da política. 9 Eduardo Etzel, op.cit., p. 172. 10 A importância que assume a presença do Estado na assistência médica como fator
interferente evidencia-se também na temática que aparece trabalhada nos “textos de época”
(textos sobre a profissão), conforme apurado no levantamento que realizamos, no já referido
Capítulo 1. A pesquisa bibliográfica acerca das publicações de 1930 e 1955 mostra 27 das 66
publicações coletadas tratando especificamente da socialização da medicina, na forma de opiniões favoráveis ou desfavoráveis. A questão da interferência do Estado estabelece-se,
portanto, como tema de debate importante para o período, ainda mais se considerarmos que será após 1955 que o impacto dessa interferência se fará sentir mais intensamente. 11 Ecléa Bosi, op.cit., p. 342 (grifos no original). 12 Determinadas práticas na sociedade colaboram significativamente nesse sentido. São vivências socialmente dirigidas para marcar a passagem de um a outro “estágio” social e
conhecidas como os “ritos de passagem”. O modo de se marcar o tempo e as representações
sobre o tempo, com base nessas práticas sociais conceituadas como “ritos de passagem”, são
objeto de consideração em E.R. Leach – Two Essays Concerning the Symbolic Representation
of Time, in Rethinking Antropology, Londres, University of London, The Athlone Press, 1963,
pp.124-137. Veja-se também sobre as formas de notação do tempo socialmente adotadas e determinadas, Paul Thompson, Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism..., op.cit. 13 Thereza P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., p. 117. 14 “Guardar intacta no plano da ação essa esperança, que um exame crítico mostra ser quase
sem fundamento, aí está, para Simone Weil, a própria essência da coragem.” Ecléa Bosi, op. Cit., p. 344.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 131 -
3
Profissão médica: incorporação de tecnologia
e a superação da medicina liberal no Brasil
As transformações da organização do trabalho médico ocorrendo no interior
de uma sociedade concreta adquirem conotações particulares, mas os processos pelos
quais se firmam são, enquanto característica mais geral, processos de diferenciação e
extensão dos serviços.
De modo resumido,consideremos que do ponto de vista da organização dos
serviços, de um lado, o conteúdo técnico do trabalho individual diferencia-se e
multiplica-se nas especialidade médicas. De outro lado, transforma-se a base do
trabalho: de princípio estruturador apoiado no exercício isolado de consultório, para
unidades de serviço fundadas no trabalho hospitalar ou em clínicas ambulatoriais,
tendo por conformação típica o trabalho coletivo. Trabalho, cuja composição
qualitativa e quantitativa diferencia-se em padrões diversos na dependência da
organização empresarial das instituições.
Essa progressiva transformação dos serviços introduz problemas referentes
aos custos da produção da assistência médica. A estes poderíamos agregar questões
relativas: ao grau de especialização da assistência prestada; à eficácia de cada ato
médico individualizado; à capacidade de todo o sistema de realizar igualitariamente a
demanda por consumo; e também às formas e à velocidade das transformações no
interior dessa nova estruturação.
Esse processo representa, na articulação da produção de serviços
médicos com os demais setores de produção na sociedade, uma significativa
alteração da autonomia da prática médica para estabelecer seus próprios
padrões de produção: verifica-se uma imediata vinculação do modelo
organizativo às políticas públicas e, ao mesmo tempo, estreitando-se as ar-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 132 -
ticulações da produção dos serviços médicos com os ramos industriais produtores de
tecnologia material – de que a indústria de equipamentos e instrumentos e a indústria
de medicamentos são exemplos clássicos – as políticas industriais de obsolescência
programada dos produtos passam também a interferir no processo. Isto sem falar na
presença já bem especificada de bancos e outras instituições financeiras, intermediando
seguros-saúde1.
Para a população, por sua vez, o processo todo traduz-se numa tendencial
universalização da cobertura para o consumo de serviços, recobrindo as questões do
direito à saúde e ao mesmo tempo respondendo às necessidades econômicas de
manutenção/recuperação da força de trabalho, enquanto segue sendo processo de
medicalização do social ampliador dos domínios da ordem médica. À proporção que
se estendem os serviços, porém, seus diversos tipos institucionais já se dispõem
diferencialmente para os distintos segmentos sociais da população, o que ocorre não
apenas em função da distribuição desigual da renda, mas também como produto da
mencionada articulação da prática médica com outros setores da produção social, na
conformação de um complexo médico-institucional empresarial2.
Finalmente para o médico, o impacto das transformações, em termos gerais,
está na superação da medicina liberal por formas de organização dos serviços que se
apresentam como alternativas mais adequadas, até mesmo para a própria incorporação
das novas tecnologias que a categoria profissional demanda. Como decorrência esta
verá desaparecer seu monopólio na definição dos serviços, ao passo que para o
produtor individual, ainda quando siga produzindo seu trabalho por meio de uma
prática de consultório, o efeito mais significativo está na perda de seu controle sobre
importantes constituintes da produção: seus instrumentos, a clientela e o preço da
remuneração do trabalho.
Esse processo todo por que passa o trabalho médico, ainda constitui também
o movimento pelo qual esse trabalho se fraciona em práticas político-administrativas
de gerência, supervisão e controle de serviços, e práticas diretamente ligadas à
atividade de prestação do cuidado. Estas últimas, redistribuídas nos trabalhos mais ou
menos especializados, serão recobertas por processos de valorização/desvalorização
social, nos quais se instalam diferenciações do caráter mais ou menos rotineiro do
trabalho, intensificação maior ou menor de sua jornada e desigualdade das formas e
valor de sua remuneração.
Com isso se estabelecem diferenciais de renda significativos entre os
médicos. Também o vínculo e a permanência de cada médico individual
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 133 -
relativamente a uma mesma situação de trabalho e a uma mesma clientela
transformam-se em padrões diversos. Por conseqüência alteram-se a quantidade e a
gama de situações de trabalho que cada médico individualmente enfrenta.
Será, pois, até certo ponto esperado, e historicamente inevitável, que a partir
de tamanha diversidade de situações de trabalho, ocorra uma profunda diferenciação
das propostas acerca das formas de conservação do ideal comum de profissão, fazendo
com que se estabeleçam, entre os médicos, correntes de pensamento com estratégias
políticas diferentes e mesmo opostas entre si.
Todos os aspectos acima arrolados serão, nos capítulos futuros, objeto de
reflexão enquanto processo geral da prática médica, ora interessando seu sentido
particular à sociedade brasileira. Este se apresenta como uma capitalização desse setor
social amplamente subsidiada pelo Estado, o que se verifica notadamente a partir dos
anos 60. A década de 60 virá marcar, desse modo, o deslocamento definitivo do
modelo liberal de prática.
O processo representa a passagem para um novo modelo: a medicina
tecnológica e empresarial. Esta, porém, foi em grande escala ancorada em estruturas
estatais reguladoras da prestação de serviços médicos existentes desde os anos 30, e
que corresponderam às formas de acesso à assistência médica dos trabalhadores
urbanos. Há, no processo, uma reconstituição dessas estruturas, não obstante ser
evidente que sua existência histórica anterior vem facilitar a implantação do novo
modelo de prática. Implantação que se dá sob determinada forma de produção social
dos serviços, sobretudo no que se refere ao estabelecimento da “medicina lucrativa”
das empresas tipicamente capitalistas do setor, as “medicinas de grupo”.
O que há de peculiar na participação direta e ampla do Estado na produção
dos serviços médicos, nesse caso, deriva não apenas do fato de que, enquanto Estado
nacional, viesse toma a si a tarefa de prover mecanismos reguladores dos processos
relacionados à formação e reprodução da força de trabalho. Vale dizer, viesse fazer da
assistência médica uma questão social, como parte da questão da saúde. Antes, é o
momento e a forma histórica sob a qual se realiza a intervenção do Estado que faz com
que, no modelo próprio à sociedade brasileira, essa participação se dê já desde os
momentos iniciais da industrialização capitalista do país, e de modo a assumir, como
produtor direto, práticas de intervenção pertencentes, em outros países, às iniciativas
das classes sociais.
De modo geral podemos verificar a intervenção reguladora dos Estados
Nacionais na assistência à saúde sob a forma de duas dimensões específi-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 134 -
cas de atuação. A primeira delas corresponde a medicas que visam mais propriamente
ao coletivo-social, por meio de ações de caráter basicamente epidemiológico. A
segunda preocupa-se mais diretamente com as pressões econômicas e políticas por
garantias de acesso aos serviços médicos, pressões de um operariado urbano já
formado e organizado em torno da concepção do direito à saúde. As ações que daí
derivam dizem respeito à assistência médica individual e estruturam-se nos conhecidos
seguros-sociais ou previdências sociais, onde o cuidado médico é parte de um conjunto
assistencial maior de vários benefícios pecuniários e de outros serviços de assistência
social.
O primeiro tipo de atuação verifica-se no Brasil com as políticas de
saneamento, quando a saúde aparece como questão social articulada ao
desenvolvimento agrário-exportador. É da segunda modalidade em especial, porém,
que ora tratamos no texto e suas primeiras medidas aparecem relacionadas às
regulamentações legislativas das Caixas de Aposentadorias e Pensões nos anos 20. Isto
virá representar, no futuro, uma articulação tal entre o Estado e o capital privado que o
primeiro, em grande parte, fornece a acumulação prévia de capital necessária à
implantação das empresas médicas, ao repassar recursos acumulados por meio dos
seguros sociais da previdência pública. O Estado, assim, financia sob formas
facilitadores o empreendimento de capitalização da produção.
De outro lado, porém, esse modelo de intervenção implica também, pelas
possibilidades peculiares de realização do consumo social diante da própria dinâmica
da distribuição de renda, uma ampla dificuldade do complexo empresarial da
assistência médica em se libertar da intervenção constante do Estado, como regulador
e produtor direto de serviços. Pode-se então dizer que a medicina liberal desde cedo, na
sociedade brasileira, convive com formas institucionalizadas pelo Estado de organizar
a produção dos serviços médicos. O Estado, portanto, toma a si grande parcela do que
seria um mercado consumidor potencial dos serviços, com base no qual, também, se
dará a superação da medicina liberal como forma dominante de organização daquela
produção.
É próprio da específica condição de formação do Estado brasileiro e
de sua inserção tardia na ordem capitalista que o assentamento da profissão em
bases modernas tenha enfrentado desde sempre problemas derivados da
origem de país-colônia e da industrialização em moldes de capitalismo
dependente. Isso sem dúvida terá contribuído, com base na forma encontrada
por suas elites de acumulação da riqueza, para a capacidade restrita de
distribuí-la, dificultando a formação de um mercado consumidor que fosse
capaz de viabilizar a produção em escala social dos serviços médicos
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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caracteristicamente de base liberal3. É expressivo, nesse sentido, o fato de que já nos
anos 30 o estado intervenha na assistência médica como produtor direto4, exatamente
quando, com o surto industrial verificado, ocorreria para o exercício das profissões
uma ampla expansão das condições sociais necessárias à sua consolidação. Isso
porque as profissões, como forma histórica de trabalho da sociedade moderna,
requerem o modo de vida da formação dos espaços urbanos e do crescimento
populacional, na típica constituição do amplo mercado consumidor de bens e serviços
das sociedades capitalistas.
Como vimos no capítulo anterior, configuram-se no mercado posições
aparentemente idênticas às da “medicina liberal”, isto é serviços médicos de clientela
própria, captada por processos informais, com a qual o médico estabelece diretamente
as condições de tratamento e da remuneração de seus serviços. Ou ainda, serviços
médicos nos quais os instrumentos de trabalho são propriedade dos agentes e o acesso
a equipamento alheios se dá como uma espécie de prolongamento do seu próprio
dispositivo de trabalho. Assim sendo, um padrão muito próximo ao modelo liberal de
fato se implanta e até se consolida como ideal de padrão desejável.
Mas, dadas as próprias bases sociais de sustentação desse modelo, com ele
logo passam a conviver, sistematicamente, outras formas de organização da produção.
E não se trata apenas da “filantropia”, cuja convivência com o trabalho isolado do
consultório privado não altera as bases deste e, em realidade, compõe com ele o
modelo da medicina liberal do século XIX: o modelo clássico, puro. Tampouco, se
trata, para além da “filantropia”, das clientelas organizadas na forma das associações
de auxílio mútuo, ou do modelo inicial de seguro-social na Previdência constituída
pelas Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) dos anos 20.
Todas as situações acima mencionadas não são organizações contrapostas à
forma liberal de estruturação dos serviços. São, ao contrário, mecanismos de uma
“medicina para os pobres”, destinados a segmentos sociais evidentemente excluídos
do mercado e da compra dos serviços privados, que, consequentemente, convivem
com uma “medicina privada e liberal para os ricos”, fortalecendo-lhe as bases. Porque,
deixando de lado as sociedades mutualistas cujo propósito não foi o de produzir
serviços alternativos à medicina liberal no mercado, mas o de comprá-los, a assistência
médica das Caixas como produtores diretos não assume proporções de modo a afetar
como um todo o modelo liberal.
Todavia, pelo segmento populacional a que se dirige e pelo
sentido da presença reguladora do Estado, essa assistência constitui forma antecipa
tória daquele seguro-social da previdência pública que viria, de fato, no-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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toriamente a partir dos anos 40, afetar a modalidade até então predominantemente de
organização da produção social dos serviços médicos. Assim sendo, é para esta última
que queremos apontar como forma de organização dos serviços que tensionará a
hegemonia da medicina liberal. Mas para que tudo isso fique mais claro, recordemos,
de modo sucinto, seu transcurso histórico no país.
A primeira especificidade da medicina brasileira está em ter encontrado
bases de desenvolvimento, sob características modernas, já próximo do século XX,
mais precisamente nas últimas décadas do século anterior. Até este período o país
sempre conviveu com quantidade muito reduzida de médicos, valendo-se a população
do exercício de técnicas terapêuticas desenvolvidas a partir de “práticos” locais ou no
máximo de cirurgiões-barbeiros e boticários, pelo menos com certeza até quase
meados do século XIX. Data apenas daí o reconhecimento social da profissão quanto a
prestígio e status no interior da elite dominante, quando estão os médicos passam
também a se inscrever entre os governantes e literatos locais.
Há, ao que indicam os estudos a respeito5, entre tal reconhecimento e as
condições reais de revertê-lo direta e imediatamente em benefícios materiais de vida
para os próprios médicos, uma distância muito grande ao longo do século XIX, o que é
modificado ao final do século. Será, pois, do final do século XIX até os anos 20 do
presente século, com a expansão da produção cafeeira e a industrialização inicial do
país, que o desenvolvimento dos núcleos urbanos, principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo, dará à profissão seu primeiro impulso: em 1920, a população urbana que
trabalha por conta própria ou recebe salários por trabalho não-operário e que abrange
pequenos empresários, comerciantes, funcionários públicos, empregados no comércio
e profissionais liberais – que podem compor com as elites o consumo individualizado
dos serviços na modalidade liberal – constitui uma parcela ponderável da população
naqueles centros. E estes somam, nesse ano de 1920, 54% da população concentra nas
capitais dos Estados6.
Essas indicações vão no sentido de caracterizar a constituição de um
mercado consumidor potencial, sendo, além disso, nesse período que se vê triplicar o
número de escolas médicas: de três escolas em 1900, para dez, até 19297.
A assistência médica até 1920 está ancorada na medicina liberal,
na medicina filantrópica e nas eventuais formas de sociedade de auxílio
mútuo. Estas últimas são estabelecidas entre os trabalhadores e
organizam-se principalmente por meio das associações de bairro. Por vezes são
encontradas formas de serviços próprios que algumas empresas montam, mas
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que são de caráter limitado em número e tipo de assistência prestada: um socorro
imediato e só destinado ao trabalhador, na maioria dos casos.
A presença direta do Estado, no período, só ocorre no âmbito interno da
assistência aos militares e aos servidores públicos. O conjunto todo, portanto, compõe
no sentido reforçador da forma liberal de produção de serviços.
O aparecimento das Caixas de Aposentadoria e Pensões, em 1923, insere-se
nesse panorama, introduzindo, porém, novas e fundamentais especificações. A partir
daí torna-se obrigatória nas empresas a presença de Serviços de Assistência Social ao
trabalhador urbano, entre os quais se incluem os serviços médicos para o trabalhador e
para seus familiares. Mas, ao mesmo tempo, mantendo-se o Estado apenas como
regulador dessa assistência, ao restringir sua presença ao plano da legislação, esses
serviços, localizados no âmbito individual das empresas, ficam dependendo das
negociações diretas entre seus financiadores (patrões e empregados).
Assim sendo, com a assistência médica a partir do aparecimento das Caixas,
novos aspectos se inscrevem na medicina do período, e mesmo que em seu conjunto
eles não constituam uma contraposição à medicina liberal, aparentemente vindo
também fortalecê-la através da compra de seus serviços, representam formas
precursoras das possibilidades de abertura, por meio dos serviços próprios das
empresas ou do seguro-social que sucede às Caixas, de um mercado de trabalho
assalariado para os médicos no setor privado ou público.
Por outro lado, essas serão mudanças que futuramente passam a se inscrever
de modo bastante diverso nos mercados regionais de trabalho no país, o que se dá em
função da forma diferencial de organização da produção dos serviços de assistência
médica a partir do processo de sua extensão à população após os anos 30, produto do
próprio modelo de desenvolvimento social e econômico que então se adota. Vale dizer
que a prática da medicina liberal virá sofrer os impactos dessas alterações mais precoce
e intensamente sobretudo em São Paulo, pois o período subseqüente a 1930 irá
significar a afirmação de São Paulo como pólo concentrador da industrialização e
urbanização do país8
Consideremos, então, algumas indicações das transformações econômico-
sociais ocorridas, salientando especialmente a situação paulista, em que estão inseridas
as práticas que examinamos no capítulo anterior.
O período histórico ao redor de 1930 representa uma ruptura do
modelo da economia agroexportadora em direção à acelerada industrialização,
cujo efeito urbanizador consiste na introdução de uma radical mudança no perfil
geral dos núcleos urbanos, mudança que se dá como produto da própria
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disposição geográfica das indústrias. Começa a ocorrer amplo redimensionamento do
contingente de população urbana vinculado à implantação dos parques industriais,
como também se transforma a composição dos segmentos de trabalhadores.
O que se verifica é o crescimento do trabalho industrial e a diversificação de
trabalhos e serviços complementares, além da ampliação e diferenciação dos espaços e
formas de ocupação das cidades. Mas o processo produz efeitos de graus muito
diversos relativamente às regiões do país, localizando-se sobretudo na Região Sudeste
os maiores impactos da alteração do urbano e da retenção de rendas crescentes.
Assim sendo, se o momento representa a expansão da produção industrial
(que em 1935 é 90% maior que em 1925 e que cresce 683% entre 1930 a 1861), como
também representa substancial elevação da renda nacional (o Produto Bruto brasileiro
cresce, de 1840 a 1961, 232%, e o Produto Interno Bruto per capta 86%)9, a
distribuição desse crescimento pelas regiões do país, e suas próprias taxas internas de
industrialização são extremamente desiguais10
. O impacto da desigualdade logo se faz
sentir no crescimento populacional e nas taxas de urbanização, pois enquanto a
população brasileira cresce, entre 1920 e 1940, as taxas de 1,5% ao ano, a cidade de
São Paulo apresenta taxas de 4,4% ao ano no mesmo período11
.
De outro lado, porém, ao mesmo tempo que ocorre a implantação da
economia de mercado, o crescimento deste não é continuo não é contínuo sequer para
seus pólos maiores. Além disso, e principalmente, o processo não se dá de modo a
introduzir nessa economia, de mesma forma e com acesso mais equânime aos bens e
serviços, os vários segmentos sociais, posto que o modelo da acumulação de capital e
crescimento econômico adotada é profundamente concentrador de renda: em 1960, os
50% de renda mais baixo da população do país detinham apenas 17,7% da renda
nacional total, ao passo os 5% mais ricos já detinham 27,3% do total, e esta
concentração torna a se acentuar no período 1960-7012
.
Para São Paulo é significativo o fato de que mesmo retendo o Estado uma
alta taxa de acumulação de capital nas indústrias da região13
, os salários e os custos
crescentes com os aluguéis e as moradias fazem com que passe a ocorrer na cidade, a
partir dos anos 40, processos de periferização progressiva da população de
trabalhadores industriais14
. Não se invalida, porém, certo crescimento absoluto e
relativo dos segmentos de população inseridos nas camadas médias de renda15
.
Assim sendo, o desenvolvimento social do capitalismo em
sociedade de economia dependente, como a brasileira, tem-se caracterizado por
acentuar as heterogeneidades de todo tipo. É dessa forma que é bem verdade
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 139 -
que há no Brasil uma conformação do urbano e de seu modo de vida em moldes
capitalistas, com o correlato estabelecimento de padrões de produção e consumo de
bens e serviços para o mercado interno. Mas também é verdade que esse
desenvolvimento assume peculiaridades em que o resultado então obtido muito
distancia o caso brasileiro das “possibilidades” de distribuição desses bens e serviços
para consumo mais ampliado no conjunto da população, da forma como se verifica
nas formações sociais pertencentes ao pólo dominante da economia capitalista
internacional.
A caracterização de “desenvolvimento desigual e combinada”, com a
instalação de desigualdades articuladas em uma mesma totalidade, produziu o que já
se reconhece tipicamente como perfil nacional: a disparidade das situações
econômico-sociais do urbano e do rural e a disparidade entre as diversas situações
regionais do país; a metropolização de alguns centros urbanos apenas; a diferenciação
intra-urbana polarizada em áreas centrais e periféricas, com um perverso contraste nas
situações de vida social; o crescimento da população econômica com a concentração
brutal da renda; e a convivência de tipos polares de organização da produção (do
empresarial-capitalista ao “artesanal”), se comparados os vários setores da economia.
Desse modo, e não por outra razão, o mesmo pólo urbano que mais produz
possibilidades de constituir um mercado interno ampliado também engendra, em um
mesmo processo, restrições para a ampliação do consumo ao diferentes segmentos
populacionais.
Isso irá significar, nesse período após 1930, mais especificamente quando, a
partir de 1945, o custo da assistência médica inicia rápida e progressiva elevação, uma
expansão das alternativas à tradicional modalidade liberal de produção dos serviços. A
resposta do Estado à questão social da assistência médica aos trabalhadores faz-se na
forma de um seguro-social em que ele toma a si o controle geral da produção.
Primeiro, expandindo com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs)
sua cobertura à população de trabalhadores urbanos, e optando pela compra de
serviços de terceiros, transforma-se no único comprador de dimensões consideráveis
no mercado; e em segundo lugar, dadas as relações entre o Estado e a sociedade civil
do período 1945-60 no pacto populista, amplia sua rede própria de serviços, muito
embora o faça de modo mais intenso na esfera restrita da consulta ambulatorial.
Se a essas novas especificidades na organização dos serviços de
agregarem outras provenientes das novas necessidades internas de sua produção,
como por exemplo sua transformação para a base hospitalar dissociada
do antigo consultório e da sua transformação para a produção
individualizada dos serviços complementares de diagnóstico e terapêutica,
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não será difícil perceber que a resposta encontrada para a questão assistencial pela
política social do governo após 1930, ao mesmo tempo em que tendeu à progressiva
extensão da assistência através do sistema previdenciário, pôde sustentar, ampliando, a
produção privada dos serviços, como também permitiu que o processo
sobrevalorizasse a assistência hospitalar e a dos serviços especializados.
É preciso, contudo, observar que tais respostas não se deram em um
processo progressivo linear. A própria questão da assistência médica, e de sua
ampliação no interior do conjunto dos benefícios previdenciários, foi objeto de
posições divergentes na política social, assim como foi de modo e em graus diversos
que se deu a sua efetiva incorporação pelos Institutos. Basta tomar, nesse sentido, o
fato de que o Instituto dos Industriários (IAPI) apenas o fez a partir da década de 50.
Além disso, no amplo período que vi de 1940 aos anos 60, as políticas de organização
administrativa e gerencial dos Institutos também sofreram transformações, a ponto de
que o incremento maior de serviços próprios de assistência médica, embora estes
fossem já possíveis na organização prevista desde o início, só após 1945 foi mais
observado.
Todavia, da perspectiva do modelo liberal na produção de serviços, a
mudança da previdência social desde os anos 30, com a incorporação crescente de
segurados e a participação direta do Estado controlando a estrutura assistencial, é
bastante significativa. Veja-se, nesse sentido, que, enquanto mecanismo de extensão de
cobertura e caracterização de importante regulador no mercado consumidor dos
serviços médicos, o número de Institutos e Caixas, quem somam 24 em 1923, em
1930 passam a 27, ampliando o número de segurados que representa em 1964 já 22%
da população brasileira16
. É uma presença que, expandindo o acesso aos serviços,
sobretudo permite a privatização da assistência hospitalar: em 1967, dos 2.800
hospitais do país, 2300 estavam contratados pela previdência pública, tendo no período
50-60 aumentado muito a desproporção já existente entre leitos de propriedade
particular e de hospitais públicos, a favor dos primeiros (de 53,9% em 1950 para
62,1% em 1960)17
.
Os hospitais próprios, por sua vez, que até 1948 somam cinco, em 1950
passam a nove e em 1966 a 28 hospitais18
, indicando que será no sistema ambulatorial
que o próprio da previdência mais se expressa (até 1970, 83,4% das consultas
ambulatoriais são prestadas através desses serviços)19
.
Da perspectiva do mercado de trabalho médico registremos que
seja através da compra de serviços privados20
e também por meio da ampliação
de sua rede própria, mesmo que esse segundo aspecto represente impacto
menos sobre o mercado consumidor, por ambas as formas de participação
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 141 -
na prestação de serviços o Estado promove um processo de esvaziamento da
autonomia do produtor isolado na medicina liberal, ao mesmo tempo em que
promove e sustenta o caráter privado da produção de serviços.
São, portanto, relevantes nesse período as medidas da política social na
constituição da tendência que viria sobretudo marcar o pós-66, quando a unificação
dos Institutos com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)
constitui base para a mudança qualitativa desse processo, dada a abrangência e o poder
político que a uniformização e a centralização das decisões e ações apresentam. Assim,
é a partir de 1960 que se supera definitivamente o modelo da medida liberal, ao
reorganizar-se o produtor privado de serviços em moldes mais tipicamente
empresariais.
Teremos, de um lado, a ampliação na oferta de empregos no setor público,
que vai desde a perícia médica para a concessão de benefícios até o cuidado médico
direto. Isso implica o assalariamento como modalidade crescente de inserção no
mercado de trabalho. No setor privado, por sua vez, abre-se a possibilidade de criação
de novas unidades hospitalares privadas, que se especificam desde seu início enquanto
“medicina lucrativa”, com base no consumo certo e garantido pelo sistema
previdenciário. Ao mesmo tempo também se multiplicam as unidades
individualizadas de produção de serviços complementares (diagnósticos/terapêuticos),
operando-se ainda rápida transformação da própria rede de instituições filantrópicas,
que substituem seu caráter beneficente com o objetivo de constituírem também
modalidades lucrativas.
Em um primeiro momento, o setor privado viu nesta injeção de recursos a
possibilidade de manter formas de autonomia no trabalho médico. Mas à proporção
que esse processo foi-se ampliando através da incorporação de tecnologias e da
especialização do trabalho, e à proporção que a isso se somou o aumento considerável
do número de médicos no mercado de trabalho21
, os recursos crescentemente
injetados mostraram-se, como vimos, capazes de viabilizar a implantação, o
crescimento e uma certa aceitação da forma assalariada do trabalho, forma estendida
ao próprio setor privado22
.
Além disso, diante dos custos da assistência médica que se
mantêm em crescimento, o mercado verá surgir um novo tipo de consumidor:
aquele que, para ainda conseguir caracteriza-se como consumidor individual
e direto dos serviços, passa a ter duplo comportamento. Qual seja, a
convivência de uma orientação para o consumo de serviços ambulatoriais
(consultas) nos consultórios privados de médicos aparentemente autônomos,
ao lado de uma orientação para o consumo de serviços hospitalares (interna
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Profissão médica - 142 -
ções) e de exames complementares ou de procedimentos terapêuticos ultra-
especializados, na modalidade de acesso garantida pela previdência pública, tal qual
nos atestam os relatos obtidos.
Isto também representa, em um primeiro momento, a garantia, ao menos
provisória, de sobrevivência do consultório médico individualizado do produtor
isolado. Este, porém, ao longo do tempo verá agregada a essa já importante
repercussão sobre sua autonomia, a completa impossibilidade de persistir alheio a
mecanismos formais e portanto mais seguros de captar a clientela. Isso porque a partir
dos anos 70 desencadeiam-se outros novos focos de contraposição ao consultório
tradicional: a ampliação das novas “medicinas de grupo”; a criação do Plano de
Pronta-Ação (PPA) pela previdência pública, desenvolvendo e estimulando uma
forma de assistência intermediária entre a urgência e a consulta médica tradicional
(promovendo a superação desta pela assistência “de episódios” em consultas “de
ocasião”); e, ainda, o crescimento do seguro-saúde privado, constituindo clientelas
formalmente organizadas também nas camadas médias e altas de renda.
Em outras palavras, o trabalhador médico de consultório privado e produtor
isolado, teve que enfrentar, com a produção de um atendimento ambulatorial que lhe é
alternativo e com a concorrência das formas de organização da clientela no sistema de
pré-pagamento, pressões a que não pôde fazer frente, exceto, tal qual de fato ocorreu,
reordenando-se também no mesmo sentido. Só então preservou para si próprio,
médico individualizado, uma prática de consultório privado.
Transformando-se, esse pequeno produtor pôde, então, modificar e ampliar
seus serviços, o que lhe permitiu equiparar seus preços de consulta aos da medicina
tecnologizada, incorporando também ao seu processo de trabalho, tecnologias novas.
Simultaneamente, no sentido de viabilizar uma necessária atualização de seus
equipamentos, em razão das inovações científicas e até como forma de garantir a
aderência da clientela, o produtor isolado se viu pressionado, também por aí, pelos
custos crescentes. Sua alternativa, além da contratação da clientela, foi diminuir os
custos da produção da assistência. Para tanto, coletivizou, na forma cooperativa com
outros colegas, o financiamento dos instrumentos, locais e outros equipamentos de
trabalho, evitando, porém, que isso implicasse necessariamente a cooperação técnica
para a produção do serviço, como vimos.
Os efeitos de todos esses tensionamentos sobre a situação típica
da prática liberal da medicina, como modalidade de inserção do médico no
mercado de trabalho, se fazem sentir progressivamente a partir dos anos
50: em 1950, no Brasil, se comparado o exercício liberal da medicina com
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Profissão médica - 143 -
o dos advogados, por exemplo, enquanto estes últimos exercem a profissão na
condição de liberais em 75,1% dos casos, dentre os médicos apenas 51,9%
apresentam-se exclusivamente como profissionais liberais, sendo 41,1% ligados, em
suas atividades profissionais, à “assistência social” e à administração pública, o que
para o mercado de trabalho médico no Estado de São Paulo não se altera em grandes
proporções, com 58,9% de seus médicos na situação liberal 23
. E o movimento de
declínio da situação de trabalho liberal é de ordem tal que, já nos anos 70, essa
modalidade de prática mo situação de trabalho exclusiva do médico corresponde, na
Grande São Paulo24
, apenas 8,4% das formas de inserção do médico no mercado do
trabalho, chegando a 5,6% em 1980.
Nesse movimento de retração das situações de prática “liberal” no mercado,
ocorre uma reordenação da autonomia. Constroem-se agora autonomias “relativas”
em que o médico individual detém controle parcial dos meios de trabalho e/ou da
clientela, imprimindo ao trabalho uma organização que o estrutura com o fito de
preservar uma atuação assemelhada o mais possível à da forma liberal de produção
dos serviços e que busca reter elementos da situação de trabalho tradicional. Essa
“autonomia contemporânea”, que tanto se dá no consultório privado, quase
empresarial como nas clínicas cooperativas, ou ainda através da inserção da consulta
no espaço hospitalar, criando o consultório do hospital, vem de fato constituir uma
alternativa. Pois mesmo assim transformadas, essas situações de autonomia de maior
ou menor extensão e qualidade, seguem sendo situações de maior renda e maior
prestígio profissional, daí que persistam enquanto ideal de trabalho.
Todavia, se essa configuração mais contemporânea da produção dos
serviços pode assumir, como ocorre para os médicos mais jovens e recém-chegados ao
mercado, o sentido de uma real e possível identificação da autonomia,
correspondendo-lhes à prática de maior valor, para os que se integraram ao mercado
na forma “liberal” e por meio dela construíram sua vida profissional, todas essas
mudanças significam complexas alterações em um padrão de assistência já
constituído. Por isso, tal qual pudemos observar, este padrão é reconhecido como um
passado, cujo valor parece-lhes muito difícil de se reencontrar.
Foi dessa parcela de médicos que tratamos anteriormente, buscando as
alterações de seus exercícios profissionais e as diversas dificuldades que
as suscitaram no cotidiano de um trabalho. Nossa perspectiva foi a de
apreender a vivência de uma “prática tensionada”, tal como definimos
esta situação já às primeiras reflexões deste estudo. Vimos também como
baseadas nessa vivência, por meio das tecnologias de trabalho que esses
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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médicos concretamente realizam, são experimentadas formas de compatibilização
entre um ideal e a mudança das condições de sua viabilização.
Enfrentamos, agora, a tarefa de compreender as razões desses
comportamentos profissionais: porque tentam tal compatibilização e porque, afinal, a
crêem tão imprescindível.
1 A dinâmica do processo de organização social da prática médica no Brasil é analisada nos
estudos já citados à nota 15 do Capítulo 1, que mostram especificamente a presença do Estado
brasileiro nesse processo. Ver também os estudos de Regina M. Giffone - Assistência médica e
relações de trabalho na empresa: o modelo de convênios com a previdência social, São Paulo,
FFLCH-USP, 1981 (mestrado); Cristina A. Possas – Saúde e trabalho: a crise da previdência
social, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1981; e Jayme A. de A. Oliveira e Sonia M. F. Teixeira –
(Im)previdência social – 60 anos de história da previdência no Brasil, Rio de Janeiro, Vozes/ABRASCO, 1986 2 A noção de “complexo” aqui se aplica pela multiplicidade de situações institucionais da produção de serviços de que se compõe o conjunto da prática médica, cada uma delas tendo
distinta definição de clientela e caráter empresarial na organização do trabalho coletivo. É o
que esta designação pretendeu mais ressaltar. Portanto o complexo médico-institucional empresarial significa um macroagregado que se compõe das empresas médicas de “medicina
de grupo”, com a modalidade de organização institucional mais tipicamente capitalista, e de
outras modalidades tais como as cooperativas médicas, hospitais lucrativos ou “filantrópicos”,
a que se vinculam as “medicinas de grupo”. Todo esse conjunto institucional do setor privado
mantém relações com o conjunto estatal de instituições produtoras de serviços de saúde. 3 Para considerações sobre as peculiaridades da constituição do mercado interno no desenvolvimento urbano-industrial do Brasil utilizamos os textos de: Francisco de Oliveira – A
economia da dependência imperfeita, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1977, e a economia brasileira:
crítica à razão dualista, in Estudos CEBRAP, no.2, São Paulo, CEBRAP, 1972, pp. 3 a 82; Luis Pereira – Trabalho e desenvolvimento no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do livro, 1965;
São Paulo – 1975 crescimento e pobreza, São Paulo, Ed. Loyola, 1976 (diversos autores);
Boris Fausto – A revolução de 1930 – historiografia e história, São Paulo, Brasiliense, 1972; F. H. Cardoso – Condições e fatores sociais da industrialização em São Paulo, in Ver. Bras. De
Estudos Político, no. 11, 1961, pp. 148-163. 4 Conforme os vários estudos citados, as bases da intervenção do Estado como produtor direto aparecem através da criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que se dá em
1933, para os marítimos; em 1934, para os comerciários e bancários; em 1936 – instalado em
1938 – para os industriários; e em 1938 para os trabalhadores de transportes e cargas. A presença da assistência médica é contudo de caráter variável entre os institutos, qualitativa e
quantitativamente, intensificando-se sobretudo após 1945.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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5 Veja-se Oracy Nogueira, op.cit. vol. I; e Lycurgo Santos Filho - História Geral da medicina
brasileira, São Pauo, HUCITEC/EDUSP, 1977 6 Cf. Boris Fausto, op.cit., pp.54-44. Veja-se que o Distrito Federal apresenta em 1920 população urbana de 1.157.873 habitantes, e a cidade de São Paulo, 579.033 habitantes. As
outras capitais de maior contingente de população nessa época são, na sequência, São Salvador
(283.422 habitantes); Recife (238.843); e Belém (236.402), já com um total de habitantes bem abaixo da cidade de São Paulo, e mesmo assim quase o dobro relativamente à outras capitais
do país. 7 Cf. Oracy Nogueira, op.cit., p. 296, vol I. 8 Cf. Aldaiza de O. Sposati (coord) - A Secretaria de Higiene e Saúde da Cidade de São Paulo
– história e memórias - Documento Comemorativo do Quadragésimo Aniversário, São Paulo,
Prefeitura do Município de São Paulo, Secretaria Municipal de Higiene/Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 (Série Registros 6). Sobre São Paulo,
ver também Richard M. Morse – Formação histórica de São Paulo (de comunidade a
metrópole), São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970; Caio Prado Júnior – A cidade de São Paulo – geografia e história, São Paulo, Brasiliense, 1983 (Coleção “Tudo é História”); Teresa
P. do R. Caldeira – A política dos outros..., op.cit.; e (diversos autores) – São Paulo 1975 –
crescimento e pobreza, op.cit. 9 Cf. Luiz C. B. Pereira – Desenvolvimento e crise no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp.
55-56. 10 Cf. Francisco de Oliveira – A economia da dependência imperfeita, op.cit., pp. 43-54. O autor mostra que enquanto o Norte e o Nordeste diminuem, no período de 1947-68, a
participação na renda industrial, a Região Sudeste aumenta sua participação, evidenciando,
ademais que, em termos de renda interna a cada região, o pólo Sudeste apresenta um aumento de 60% na renda gerada pela indústria internamente. A região é, portanto, a que tem maior
parque industrial e mantém seu ritmo de crescimento sempre maior que as demais regiões. 11 Cf. Caio Prado Júnior, op.cit., p. 60. A concentração da população nas cidades é, no Estado de São Paulo, de 44% já em 1940. 12 Cf. (vários autores) – São Paulo 1975 – crescimento e pobreza, op.cit., p. 66. 13 Idem, p. 15 14 Cf. Teresa P. R. Caldeira, op.cit., p.13. 15 Cf. (vários autores) - São Paulo 1975 – crescimento e pobreza, op. Cit., p. 66. 16 Cf. Jaime A. de Oliveira e Sonia M. F. Teixeira, op.cit., p. 184 17 Cf. Maria Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., p. 37; e J. C. de Braga e S.
G. de Paula, op. Cit., pp. 73 e 75. 18 Cf. Jaime A. de A. Oliveira e Sonia M. Teixeira, op. cit.,p. 184. 19 Cf. J. C. Braga e S. G. de Paula, op. Cit., p. 116 20 Observe-se que a forma de compra dos serviços tanto se dá na modalidade de pagamento dos
serviços já realizados, em preços pré-estipulados por tipo e unidades de serviços padronizados, quanto na forma de pré-pagamentos globais, tal como ocorre nos convênios das empresas da
produção com grupos médicos, que estabelecem empresas de serviços (as “medicinas de
grupo”) com recursos repassados tanto da Previdência como da empresa contratante. Essa modalidade de compra de serviço expande-se sobretudo após 1970, e iniciando-se no âmbito
do ramo industrial, alcança vários ramos da produção logo a seguir, como o comércio, o setor
bancário e outros.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Profissão médica - 146 -
21 O número de médicos passou de 21.446 em 1958 para 43.500 em 1966, chegando as 72.500
em 1975. Cf. Paul Singer, G. Campos e E. Oliveira – Previnir e curar – o controle social
através dos serviços de saúde, Rio de Janeiro, Forense Univ., 1978. O Estado de São Paulo possuía, em 1953, uma relação de médico para cada 1.649 habitantes, ao passo que outros
Estados, exceto o Rio de Janeiro apresentavam relações de um médico para cada 3.000 e mais
habitantes cf. dados de Oracy Nogueira, op. cit., vol. I, p. 296. Considerando os dados do senso de 80, André C. Médici – Estrutura e dinâmica da força de trabalho médico no Brasil na década
de 70, in Médici, A. C. (org.) - Textos de apoio, Planejamento I – Recursos humanos em saúde,
ABRASCO/PEC/ENSP, Rio de Janeiro, 1988) mostra a relação médico/habitante de 1/1.170 para o Brasil, e particularmente para o Estado de São Paulo 1/1.158 (p.97) 22 Em 1971, 50,8% das situações de trabalho na forma assalariada, segundo pesquisa sobre as
condições do trabalho médico na Grande São Paulo (M.C.F. Donnangelo, Medicina e sociedade, op. cit.), davam-se exclusivamente no setor público, contra 8,3% exclusivamente no
setor privado. Essa situação na década de 80 (A. Cohn e M.C. F Donnangelo, op.cit.) muda
consideravelmente, com o setor privado absorvendo 38,7% das situações de assalariamento, enquanto situações que se dão exclusivamente nesse setor. 23 Cf. Oracy Nogueira, op.cit., vol II, pp. 254-257. O autor baseia-se em dados censitários de
1950 citados por Américo B. de Oliveira e José Z. S. Carvalho em A formação do pessoal de nível superior e desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro, CAPES, 1960. Comentando esses
dados, o autor aponta para o fato de que as atividades sociais pelas quais os médicos exercem a
profissão correspondem predominantemente à assistência médica prestada através dos órgãos da Previdência, o que constitui 36,5% das 41,1% situações de emprego público acima referidas
no texto, sendo que as demais 4,6% ligam-se à administração pública. As restantes situações de
trabalho que se completam às formas “liberais” e “emprego público” (7% dos casos) não se encontram especificadas no mencionado censo. 24 Amélia Cohn e M. C. F. Donnagelo, op.cit., p. 71. O estudo aponta para o fato de que
embora venha declinando como forma exclusiva, a situação de trabalho liberal tem sido ainda a busca preferencial de inserção, mesmo que combinada a outras modalidades de situação de
trabalho, representando, sob a forma composta, 27,8% das formas de inserção, no mercado de
trabalho.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 147 -
4
Liberdade, o pressuposto do trabalho
São os médicos Agrupamento profissional homogêneo? Têm todos eles
uma mesma autoridade na prática médica? Conseguem idêntico reconhecimento por
seu trabalho e conseguem situações próximas quanto a renda ou status social?
Resguardadas as especificidades técnicas e abstraídos alguns comportamentos
desviantes, mantêm eles desempenho profissional sempre de mesma qualidade?
As perguntas percorrem os atributos e autoridade, prestígio, responsabilidade
e dedicação, que enquadram o trabalho médico em uma imagem, um ideal de prática.
São categorias representantes de um saber legitimado cientificamente, valorizado
socialmente, e conformado a uma moral de conduta ética do desempenho pessoal a ser
corretamente exercitado pelo medico.
Ninguém hoje recusaria a evidência da estratificação técnica e social no
interior do trabalho médico, diferenciando agentes de mesma qualificação profissional
em posições técnicas socialmente situadas em tão distintos e variados lugares na
estrutura social, a ponto de se argüir em certas situações, ou para certos ramos de
atuação, da pertinência de uma mesma designação profissional. Esse é o caso, por
exemplo, do médico de laboratório ou de outras práticas exclusivamente de
diagnóstico e terapêutica, ou até mesmo dos que se dedicam à Saúde Pública. A
ausência de uma imediata identificação desses trabalhos com a profissão médica dá-se
por suas distâncias com a prática clínica. Por isso, são compreendidos como um outro,
por referência ao saber diretamente exercitado sobre os doentes, não sendo lembrados
como parcelamentos que se individualizaram do trabalho em saúde, tal qual tantas
outras práticas especializadas1.
No entanto, o que se dirá da própria prática clínica que guarda em seu
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 148 -
interior tão variados desempenhos, tão diversos comportamentos em relação à atenção
ao paciente ou à disposição em tratá-lo, assistindo-o e responsabilizando-se por opções
diagnósticas e terapêuticas? Correspondem as diferentes formas de atuação pessoal às
diferenciações técnicas da profissão? Pode-se correlacionar tais dimensões e admitir
que as divisões técnicas supõem diversificação não apenas social, mas ética?
Certamente para essas últimas questões as respostas já não se apresentam
facilmente, ou mesmo dentro de um padrão unívoco. E há não obstante profundas
gradações e distinções de comportamento. Da intervenção técnica às práticas de
convencimento e de subordinação do doente à intervenção, passa-se pelos modos
distintos através dos quais esses dois planos se realizam na relação médico-paciente, o
que é da ordem da moral, no confronto de dois sujeitos sociais. Diferenciação que
também ocorre em outras relações de que participa o médico, como as que se realizam
entre colegas e entre os constituintes das equipes de trabalho. Esses são
comportamentos que já não se podem ser atribuídos a uns poucos desviantes: não há
de ser por características pessoais que tantos matizes aparecem, senão por
características do trabalho, garantias de espaço, instrumentos e processos estruturados
em práticas de diferenciação global dos desempenhos médicos2.
Houve tempo, porém, em que o termo médico qualificava práticas
aparentemente mais próximas, atos de conformações mais homogêneas e
imediatamente identificados como uma mesma profissão. A tal ponto que forneceram
uma imagem de ato único, uniforme para quaisquer conjuntos técnicos de
procedimento, os quais se podia individualizar sob a noção de consulta médica,
identidade social comum. Suas diversificações técnicas (especialidades) eram poucas e
nem sempre exercidas de modo exclusivo, situações em que o atributo de trabalho
médico apagava as diferenças, por garantir princípios equivalentes de prática na
relação entre médicos e doentes: garantia de reconhecimento social do trabalho do
médico e garantia da qualidade da assistência para o paciente.
Também é verdade que nesse tempo tudo foi, até certo ponto, mais
homogêneo e, de certo ponto de vista, mais igual, mais simples: o modo e os tipos de
trabalhos existentes, a forma de constituir e realizar a família, a escolarização e a
profissionalização, as formas de lazer e os dispositivos de uma comodidade de vida em
casa, no trabalho, de casa ao trabalho. Uma existência social, enfim, mais “comedida”,
em que as diferenças de padrões então reinantes de vida social, que existiam até
bastante polarizados, pareciam mais “simples” pela própria contenção da vida nos
limites postos, em simplicidades impostos pelas dificuldades da mudança, de gran-
des transformações. A industrialização e a urbanização correlata, com a
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 149 -
produção em escala de bens e serviços, na diferenciação destes, na repartição do
trabalho e especialização de qualificações escolares, alterou os padrões de vida e suas
polaridades. Criou novos estratos sociais, originou o consumo de massa e alterou as
possibilidades de transformar a vida, tornando a vida mais repleta e o viver mais difícil.
A medicina fez-se profissão na transição entre os tempos; e desenvolvendo-se,
diversificou, transformou e mudou de tal modo a configuração da prática que, para
muitos, perdeu-se” nesta complexidade.
Passando a compor-se de trabalhos estruturados como práticas muito
diversas, a medicina viria transformar também o plano de sua aparência mais imediata,
eliminando concretamente a possibilidade de que aquela mesma concepção de
homogêneo fosse mantida sobre a prática profissional. Mas tentando resguardar a
identidade social anteriormente conquistada, o pensamento médico buscou formular
uma representação do trabalho através da qual reconstruísse o homogêneo. Esse
processo correspondeu à elaboração de um núcleo essencial da prática técnica, cuja
estrutura, articulada organicamente às características “naturais e intrínsecas” de seu
objeto – o corpo doente – foi tida como capaz de fazer decorrer de si mesma uma
organização do exercício profissional idêntica em seus termos substantivos para o
conjunto dos trabalho médicos, apenas diferenciando-se nos aspectos “secundários” e
“externos” relativamente àquela “essência” que formulou.
Será sobre todos estes movimentos que doravante nos debruçaremos, pois,
para compreender a medicina buscaremos sua história; essa mesma história que a faz
tão dividida e tão coesa; diversamente praticada e, não obstante, reunida em um ideal
comum. Por meio de sua trajetória veremos como e porque foi possível dotar a prática
de amplas liberdades de exercício, construindo-se um trabalho que, no plano das
representações, encontrou na plena autonomia de seus agentes a única condição
adequada de realizar-se historicamente, dado, é claro, o projeto de vida social que
pretendia seu sujeito, o médico.
A AUTONOMIA PROFISSIONAL
Os requisitos que se apresentam, talvez para muitos de nós, como os mais
típicos do trabalho dos médicos são os de um trabalho que se assenta em bases técnicas
e éticas, simultaneamente.
A técnica, de um lado, significa seu grande alcance como intervenção
reparadora ou mesmo mantenedora de condições vitais amplamente dese-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 150 -
jadas. Trata, assim, da capacidade transformadora desse trabalho e por isso relaciona-
se à sua dimensão operante, de ação manual direta ou instrumentalizada, mas que
sempre se refere a um fazer. E para tanto será requisitada a presença de um saber: a
técnica vincula-se à ciência, a um domínio da biologia e saberes afins, o que, então, a
situa na esfera do “mundo natural” e das questões a ela referidas. Se essa é a grande
característica do lado técnico do trabalho médico, embora não seja a única, o valor
social que a ela se dá termina por recobrir toda a compreensão usualmente tecida para
a própria técnica, cuja concepção dominante apresenta-a como evento apenas derivado
do conhecimento da natureza, restando liberto de outras “interferências”
(determinações). Será por essa razão que muitos, quando verificam que isso assim não
ocorre, isto é, quando se expõe declaradamente a historicidade da técnica e portanto
sua politização, interpretam habitualmente o observado como um desvio que deveria
ter sido, um dever-ser contrariado.
O lado ético do trabalho dos médicos, por sua vez, diz respeito à intervenção
de um sobre outro homem, remetendo diretamente ao aspecto relacional desse
trabalho, que é um momento particular de realizar a vida em sociedade, isto é, as
relações sociais. Significa, assim, os cuidados de um comportamento criterioso, já que
se está diante de uma “invasão”, ainda que permitida, do outro: interferência sobre as
vidas, as privacidades e as paixões das pessoas. Além disso, o fato de realizar-se
enquanto relação interindividual parece comprometer ainda mais esse trabalho com as
“questões do relacionamento humano”, de que são parte o respeito, o afeto, a
dedicação, a sensibilidade, a fraternidade e tantas outras substâncias da esfera do
pessoal. E se um primeiro entendimento, a ética não é percebida como atinente e
subordinada ao social, por realizar neste trabalho as relações sociais e suas regras de
reprodução da vida em sociedade (sendo pois também valor político e ideológico),
certamente ela é concebida como pertencendo ao domínio do subjetivo, em contraste
com a objetividade que se usa atribuir ao “mundo natural”. Sem dúvida, porém, esta
dimensão do trabalho jamais é tomada em uma totalidade que faz destes dois mundos
um só, permitindo compreender o que concretamente se verifica no trabalho médico: a
ética como pertencendo à substância técnica desse trabalho e a técnica como
movimento imediatamente ético.
A coexistência dessas duas qualificações da medicina, como fazes de uma
mesma moeda, não pode portanto, ser algo muito simples ou muito fácil. Dire-
mos, em princípio, que tal qual irmãs, filhas da mesma criação moder-
na das práticas sociais, elas disputam entre si a prerrogativa na prática mé-
dica, sempre, contudo, sem poder abandonar uma à outra. Hoje em
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 151 -
dia não resta dúvida que a face técnica é extremamente evidenciada, fazendo com que
imaginemos até sua independência relativamente a ética. Na realidade, quase as vemos
como momentos separados. Todavia, a articulação de suas expressões concretas, no
modo como se apresentou a consubstancialidade da técnica com a ética, nem sempre
permitiu essa imagem.
Por isso se recuperarmos as características centrais sob as quais se estruturou
o trabalho médico contemporâneo, compreenderemos a complexidade da imagem e
das expectativas que dele se criou. Esta recuperação remete-nos para o momento
histórico da constituição da medicina moderna, quando, com todas as transformações
que se vão operando nas práticas da sociedade, a prática médica se estabelecerá como
uma profissão. E qualificar-se como profissão significa uma intervenção técnica
nuclearmente apoiada na atuação de seu agente para a produção do trabalho.
Por esse motivo a profissão é um trabalho que nasce como – e assim será
definido desse momento em diante – atividade que se dá fundamentalmente pelas
características vinculadas ao profissional: “Em sentido amplo, o conceito de profissão
médica compreende os principais atributos apontados nos estudos sobre as profissões
nobres ou tradicionais: o monopólio de uma área específica de atividade a partir de
prolongada formação intelectual; um sistema particular de valores que legitima e
sustenta padrões de comportamento profissional, e em cujo núcleo se encontram o
ideal de serviço e o ideal de autonomia”3.
A separação que ocorre ao longo do século XIX, entre ofício – identificado
como ação técnica que não envolve necessariamente uma dimensão científica, própria
e profunda – e profissão - com requisitos científicos e sobretudo éticos - intermediados
pela ocupação, é assim tratada por O. Nogueira: “ O mundo das ‘profissões’ pode ser
representado por um círculo em cujo centro estão as ‘profissões típicas’ – o direito e a
medicina – e, em diferentes pontos, ao longo dos raios, outras ocupações (...) os
praticantes de ambas, através de uma formação intelectual prolongada e especializada,
dominaram uma técnica que os capacitou a prestar um serviço específico à
comunidade. (...) Desenvolveram um sentimento de responsabilidade pela sua técnica,
que manifestam por uma preocupação pela competência e pela honradez dos
militantes como um todo (...) Outro aspecto significativo da técnica profissional é a
responsabilidade que envolve: quanto mais o seu exercício implicar num sentimento
de responsabilidade, mais próxima do centro estará a ocupação. (...) Quando a
ocupação implica numa técnica intelectual altamente especializada, fatalmente dá
origem a uma nova profissão; quando se trata de técnica generalizada,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 152 -
como frequentemente ocorre com as atividades comerciais, o aparecimento da
profissão depende do ‘desenvolvimento de um senso de responsabilidade comum
capaz de estreitar o fraco laço criado pela posse de uma técnica comum, porém mal
definida’.”4 Essa desproporção no valor dado ao ético e ao técnico igualmente se
observa através da distinta conceituação formada em torno de intervenções
tecnicamente próximas, cuja base em relação à outra: “(...) mesmo em 1878 o British
Journal declarava ser a medicina uma profissão e a odontologia (‘dentistry’),
predominantemente, um negócio. (...) O farmacêutico continuou um simples
comerciante mesmo depois de fundada em 1841 a Pharmaceutical Society, até que os
Pharmacy Acts de 1851 e 1868 criaram pela primeira vez uma profissão de pessoas
formadas e qualificadas e vedaram a venda de tóxicos por estranhos à mesma mesa.
(...) Os óticos continuaram a ser homens de negócios até a década de 30”5.
Estamos, portanto, no caso da medicina diante de um trabalho no interior do
qual assume relevância a qualificação técnico-científica de seus agentes; mas
sobretudo importam seus códigos de ética específicos, fazendo com que a profissão se
caracterize como trabalho de uma ampla autonomia de desempenho e de um profundo
caráter intelectual. Em razão disso sua qualidade tecnológica de ser ação de
intervenção manual será concebida como radicalmente distinta de outras similares,
quanto a este seu caráter de manipulação direta dos objetos de trabalho. A profissão
médica separa-se dos demais trabalhos técnicos não só porque designa ações que
demandam qualificações específicas e especiais, ou porque o conhecimento envolvido
(a Ciência) seja complexo e extenso, ou mesmo porque tenha regras próprias de
exercício, mas porque lhe são dadas normas de conduta bem estabelecidas, definindo
uma moral de prática e implicando uma sabedoria acerca do uso de ambos –
conhecimentos e valores éticos.
Esse conjunto de atributos acaba por permitir que se afaste da prática a idéia
de trabalho e que se a requalifique como ação genérica, sob a noção de profissão. Isto
conferirá a seus agentes, no conjunto dos trabalhos sociais, imediata identidade,
circunscrita e protegida em claros e estreitos limites de acesso. A intervenção manual,
neste caso, transcenderia seu caráter operativo, no sentido de manipulação pura e
simples de um objeto de prática, para significar um ato moral, em que a manipulação
apenas se dá fundada em, e na dependência de, éticas de interação médico-doente.
Podemos conceituá-la, pois, como técnica moral-dependente.
Não há dúvida de que esse modo de interpretar a profissão médica,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 153 -
desde sua gênese na sociedade capitalista, produz na escala de valor, mediante a qual
são apreciadas as ações sociais e são valorizados seus sujeitos, uma distinção e
elitização do trabalho dos médicos ante os demais. Mas para a própria sociedade
parecerá tanto mais importante que assim o seja, posto que se trata de intervenção
sobre pessoas. Por isso, o “bom” uso da ética, a capacidade pessoal do médico em
comportar-se de modo moralmente adequado, é o que se elege como principal
qualificação para esse trabalho. A profissão não demandaria pois apenas práticas
peculiares, senão fundamentalmente pessoas peculiares, “homens de dom”. Não é de
se estranhar, portanto, que as questões de aptidão e vocação, quase sempre dominem
sobre os interesses, gostos pessoais ou relevância social, como justificativas na escolha
da profissão, e mesmo em seu interior frequentemente são apresentadas como a razão
maior da escolha entre seus vários ramos.
A noção de profissão, no sentido acima, qualifica a prática dos médicos de
“talentosa”, misto de arte e técnica: técnica na arte, supremacia criativa de um proceder
técnico eticamente adequado. A arte reside, pois, nessa capacidade de aplicar o
técnico-científico sob preceitos “corretos” de comportamento pessoal. É um ouvir, um
receber, um interessar, um confortar, um orientar, em que se dispõem as ações técnicas
derivadas da ciência.
Poderíamos dizer que essa capacidade do médico está em elaborar uma
tecnologia do “afetivo” no técnico. Assim, mão é tão curioso que se tome a arte por
“humanismo” e que se atribua a tal capacidade elementos alheios à competência
técnica (estrito senso). A noção de dom ultrapassa conquistas escolares de qualificação,
para mesclar com esta, em certa dominância, elementos não materialmente
identificáveis, de caráter transcendental, metafísico. O dom, neste sentido ou a aptidão,
não se adquire: “tem-se” na própria natureza, seria natural; não, porém, para toda a
espécie humana, mas como rara propriedade (inexplicável) de alguns6.
Antes de prosseguirmos devemos observar que essas considerações
visam expor o ideário referido à noção de profissão médica. Não
constituem, enquanto tal e nessa medida, explicações que endossamos. Por
essa razão quando acima usamos o termo afetivo, para referir a presença da
subjetividade do agente do trabalho no técnico, o que fizemos foi nos valer do
simbólico próprio da ideologia do pensamento médico, embora sabendo que
muito além de afeto esta presença significa o julgamento do médico para operar
intervenções. De outro lado, tentamos salientar, por via do contraste afetivo/técnico,
uma dimensão da realidade – todavia não menos real – não equivalente a coisas, com
o que usualmente identificamos de imediato a noção de técnica.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 154 -
A desqualificação da presença da subjetividade em questões técnico-
científicas, procedimento próprio da racionalidade científica moderna, é que torna
estranha a convivência de valores e coisas no real, reduzindo a técnica a desempenhos
derivados exclusivamente das propriedades naturais dos objetos e desprovidos de
apreciações valorativas por parte dos sujeitos. O recurso ideológico ao dom ou
vocação, neste caso, representa o apelo ao transcendente para recompor esta radical
separação que o próprio pensamento médico faz ao adotar aquela racionalidade
científica, entre o sujeito e as “coisas da natureza”, produzindo a curiosa simbiose de
um “natural” nada natural constituindo o dom para a profissão.
O interessante é aqui notarmos o duplo tratamento conceitual, de ciência e de
arte, que no interior desse ideário foi sendo cunhado para a prática médica. Podemos
compreender a possibilidade concreta desse tratamento como decorrendo da
peculiaridade do trabalho dos médicos, em razão sobretudo do especialíssimo objeto
de que se ocupam: coincidindo o corpo-objeto do trabalho médico (quando então
significa doença) e o corpo-objeto do trabalho médico (quando então significa doente
a ser transformado), é possível tomar-se como equivalentes a terapêutica do doente –
que se dá como arte (de curar) - , e modo de curar doenças – que se dá como ciência,
conhecimento das doenças -, confundindo-os na noção de medicina – arte e ciência de
curar7 . A questão ora apontada é central em nossas reflexões, posto que as passagens
de uma a outra identidade - doente/doença – são processos importantes de elaboração
reflexiva para a problemática da autonomia no trabalho que queremos estudar.
Voltaremos, por isso mesmo, a examinar o tema mais detidamente adiante. Não
obstante, retenhamos, por enquanto, o fato de que os médicos conseguiram estruturar
seu trabalho nesta conjugação de arte com ciência, e têm sido bastante bem-sucedidos
em fazer com que as práticas que eles mesmos concebem como opostas – a artística e
a científica – convivam, como também se verá, tão solidárias em seu processo de
trabalho. E nisto certamente reside uma grande arte!
Será através de todo esse conjunto de formulações que o ideal de profissão
fia na dependência de seu agente ou, no máximo, de uma posição deste no processo de
trabalho tal que (adequada a) permita o “pleno” desempenho pessoal. Ideal de
profissão, desse modo, vinculado diretamente e subordinado a esse plano do pessoal.
Eis porque a autonomia aparece tão aderida ao ideal de profissão. Eis porque também
o profissional não se identifica a um trabalhador, no sentido de que o agente seria
apenas um dos componentes do processo de trabalho, como outro qualquer. Na
profissão, o agente quase é o próprio processo, posto que é seu componente
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 155 -
nuclear, ao qual os demais se subordinam, má que para estes não haveria sentido fora
daquele que lhes demarca o médico no ato da prática. Na noção de profissão, portanto,
a concepção do processo de trabalho o reduz quase totalmente às dimensões do agente,
dada a dominância dessas no controle do trabalho.
Talvez, principalmente para o leitor médico, essas identificações pareçam
óbvias demais. Entretanto, há algumas conseqüências dessa representação que já não
são tão imediatamente visíveis assim. Tomemos o fato de que, diferentemente da
maior parte dos demais trabalhadores (entre os quais estão incluídos outros
trabalhadores intelectuais, tais como engenheiros ou administradores, cujo “talento”
pessoal é relativizado no trabalho) a qualidade do trabalho médico, isto é, o “bom
cuidado médico” articula-se diretamente à qualidade da figura pessoal desse agente.
Tudo se passa como se o trabalho dependesse exatamente da sua conformação moral e
técnica. Não por acaso, assim, muitas das questões referentes às condições de trabalho
ficam reduzidas a problemáticas da formação do agente: questões da qualidade do
ensino médico. Esse deslocamento também decorre do fato de que a qualificação
escolar teria esta função de conferir conhecimentos e adestramento em habilidades
técnicas, além de desenvolver atitudes morais/consciências, mediante as quais o
médico passa a ser o principal elemento de ajuste, de correção ou manutenção da
qualidade da prática. É por isso que, por uma concepção de autonomia da educação
relativamente ao trabalho, em que este se renovaria por reformas da primeira, inúmeras
propostas de reorganização do trabalho costumam resumir-se a projetos de
reorganização do ensino u da escola médica8.
Outras vezes, no entanto, as questões do trabalho são remetidas para a esfera
da formação moral privada do médico, razão pela qual sua origem – a família de que
provém, suas condições de vida, seu back-ground cultural e religioso – credita-se
positivamente na avaliação das potencialidades de sua prática. Também é por essa via
que se envolve, nesse julgamento, uma espécie de “hereditariedade”: ser filho de
médico, ou de parentesco próximo, conta pontos favoráveis, por exemplo, em sua
escolha pela clientela.
Todavia, são necessários alguns cuidados nessas considerações, posto que
uma distância tão absoluta entre as representações acerca do trabalho e
fatores extrapessoais do médico (tais como equipamentos e instrumentos de
trabalho, o local, a clientela etc.) já não preside a totalidade das imagens e
pressupostos de “boas” práticas. Alguns já identificaram com clareza a relati-
vidade do agente no processo de trabalho. Na realidade, a recusa em
aceitar essa formulação atém-se a alguns segmentos que, no
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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pensamento médico da atualidade, estão voltados para a defesa dos valores
tradicionais. Mais importantes que estes últimos e atuando enquanto intelectuais
orgânicos da categoria, estão aqueles que re-elaboram as concepções mais antigas nas
atuais, mantendo-as ao transformá-las. Esse processo, mediante o qual os médicos
reconstroem ideais de prática e de profissão, podemos designar por modernização dos
intelectuais tradicionais, e surge como necessidade de formular um ideário que
corresponda às mudanças efetivadas na organização de prática. Como veremos, com a
especialização, uma nova concepção de serviço médico e de articulação entre os
trabalhos se impõe, ao mesmo tempo em que se mantém a defesa de alguns dos
antigos valores que tal transformação pode modificar, porém não anular9.
Para aquilatarmos melhor essas re-elaborações será necessário que
identifiquemos outros sentidos para o desempenho pessoal, tal como foi ele
originalmente constituído na construção da profissão médica.
Reduzida a essência da estruturação do trabalho para o plano pessoal dos
agentes, o ato médico passa a significar ação desencadeada pela vontade do sujeito,
isto é, dependente do médico, de sua disposição pessoal. Aparecem, a partir daí,
enquanto qualidades necessárias ao desempenho da prática as características de
responsabilidade e dedicação. Estas, se podem ser desenvolvidas por meio de longo
treinamento escolar, sobretudo na forma do desenvolvimento do respeito moral pelo
paciente em razão do tipo de conhecimento que envolve, não podem, por esta última
característica mesma, exercer-se senão como disposição pessoal, até porque a prática é
uma relação pessoal e direta do médico com o cliente10
. Trata-se pois de qualidades
que parecem pedir principalmente por vocação, posto que seu exercício, se bem que se
opere graças a disposições de coletivo, qual seja, a partir da normatividade social, não
se mostra de imediato produto deste social. Revela-se, antes de tudo, enquanto
disposição pessoal do médico em servir ao doente, por meio do qual serve ao coletivo-
social. E nesse plano do social, em contrapartida, deverá ser-lhe reconhecido um dado
prestígio: valor que se lhe atribui na escolha social mas que lhe permite obter uma
satisfação pessoal no exercício da profissão.
Reconhecer o valor do trabalho profissional também se pauta
em ação individual, pois se apresenta como reconhecimento pessoal por
parte do cliente (doente individual), quando este procura o médico
espontâneamente, ao selecioná-lo entre os demais e ao aceitá-lo como sujeito absoluto
na relação médico-paciente. Sujeito pleno de saberes e poderes a quem
deve o doente, como homem-comum, submeter-se: ao conhecimento geral (a
medicina) que o médico representa; e ao conhecimento particular (sobre
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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o doente) que o médico exerce quando dispõe e aplica a medicina de uma dada forma.
Em síntese, trata-se da confiança pessoal, que sustenta a livre-escolha do médico, por
meio da qual se evidencia não apenas o valor da categoria profissional, senão daquele
médico especialmente: “(...) uma ideologia bastante difundida, segundo a qual a
dignidade profissional, a motivação para o trabalho, a preservação dos princípios éticos
e a própria qualidade da atividade médica podem ser significativamente elevador a
partir do momento em que se assegure ao médico a possibilidade de ser livremente
escolhido pelo paciente e de determinar seus próprios padrões gerais de
relacionamento com ele.”11
Há, portanto, de um lado, um movimento que se percebe como demanda
voluntária do serviço, uma procura ativa e pessoal do paciente, mediante o que a
profissão caracteriza como consultante, assistência que se daria por solicitação externa
e apenas se produziria onde e quando esta emergisse: “(...) the survival of medical
practice depends upon the coice of laymen to consult it. Choice to consult connot be
forced; it must be ttracted”12
.
É claro que a conformação desse voluntarismo há que ser compreendida
como dada no plano coletivo, no plano social. O que ora destacamos reside
exatamente nesta aparência de demanda espontânea, pessoal, voluntária pelo paciente,
de que advém, por outro lado, a representação do ato médico como relação que se
deva passar neste plano apenas do interpessoal. Não somente um serviço como outro
qualquer, nem tampouco mera aplicação técnica de conhecimentos científicos; esta
relação é antes um cuidado, uma assistência, em que a intervenção se caracteriza pela
manipulação direta e também, principalmente, pela orientação e pelo conselho. E
porque adentre os componentes pessoais, os acontecimentos privados do doente, a
privacidade da própria relação é base necessária ao componente ético que deve
perpassar o plano técnico do diagnóstico e da terapêutica. Eis o fundamento do
segredo profissional, cuja sustentação objetiva não pode ser, portanto, outra a não ser a
de uma relação que é também exclusiva: “(...) o ato médico é um colóquio singular,
isto é, uma espécie de duo que não comporta no silêncio do consultório senão dois
personagens: o médico e o doente. É um ato fechado no espaço e no tempo, que inicia
por uma confissão, continua por um exame e termina por uma prescrição. Há aí uma
unidade de tempo, lugar e ação. Esse encontro, bem o sabemos, é aquele de uma
técnica científica e de um corpo, mas prefere-se acreditar que são essencialmente duas
almas (...)13
.
Essa atenção para com a individualidade no ato privado e exclusivo
revela fundamentalmente uma conduta moral, modo pelo qual se deva
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1993. 229 páginas.
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cuidar da liberdade do sujeito-paciente, que por ser livre para demandar assistência,
será livre para expor seu sofrimento. E o ato médico requer essa conduta para que o
paciente possa apresentar-se sem constrangimento no exercício de sua subjetividade, e
sentir-se livre para expressar o domínio que tem da doença enquanto parte de si
mesmo. Porém, é uma atenção que também impõem limites à livre presença do
paciente, posto que esta se defronta com a liberdade do médico em observar, compor,
elaborar e atuar sobre aquele domínio que o paciente tem da doença, no exercício do
seu próprio, enquanto médico. Em outros termos, a privacidade da prática é a via pela
qual, de um lado, o paciente realiza-se como sujeito, que todavia se reduz a portador da
doença, e de outro, realiza-se o médico, como sujeito pleno, sujeito que sabe.
Examinemos isso mais de perto.
Primeiramente observemos a demanda espontânea e voluntária do paciente
também é concebida pelo pensamento médico como exercício de uma moral. O
comportamento demandante supõe não apenas o reconhecimento da ordem médica
pelo sujeito que se percebe doente, mas se constitui em ideal de comportamento diante
da doença por referência à ordem social, em que o doente além de reconhecer certos
estados vitais como necessidades de intervenção médica, submete-se sem restrições a
essa intervenção. Em resumo, aceita que seja o médico o sujeito do saber, aceita-se
passar a exercer sua própria subjetividade na qualidade de aprendiz, daí que também
para o paciente o ato médico seria uma assistência, que trata, mas sobretudo orienta,
aconselha, ensina: “When the societal reaction sends the lyman into Professional
consultation, it hás moved him into a different domain that of the profession. Some of
the force of societal reaction must be lost at He door. At the point of entrance into
consultation lay conceptions of illness no longer stand by themselves”14
. Esta mesma
atitude do doente traduz na vontade pessoal individualmente realizada um
condicionante social, posto tartar-se de ação estruturada na organização social global.
A racionalidade que a justifica no plano do pensamento médico, porém dela faz
representação que vê nesse movimento um ato de comportamento livre,
essencialmente dado pela moral do demandar-se responsável à qual adere o paciente,
como contrapartida ética do servir-responsável que o médico oferece à sociedade.
Na esfera do paciente, contudo, trata-se de uma responsabilidade referida
não exatamente ao médico e à sua ordem, mas ao social. Será por referência à
manutenção da ordem social (qualidade valorizada positivamente do
funcionamento regular, usual e normal do corpo como expressão de saúde,
tal qual se apresenta nas funções condições cotidianas de vida)
que se pauta o doente quando vai em busca da assistência que poderá restituí-lo
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 159 -
à sua situação anterior. E o fato de que seja na livre iniciativa individual que todos
esperem a reparação mantenedora do coletivo-social, tanto deriva da concepção da
doença como moralmente indesejável (na qualidade de comportamento social) mas
concebível e moralmente aceitável (no indivíduo), quanto deriva do ideal de alcançar o
social por meio exclusivo das atividades pessoais. A doença no coletivo controlar-se-ia
por meio da assistência individual, fundada no comportamento ético de cada
indivíduo, pessoalmente, e no exercício do livre-arbítrio da demanda por cuidado
médico.
Historicamente, a preocupação em demarcar um coletivo-social para o
âmbito da ação médica, conferindo-se à medicina alcance coletivo e objetivando a
doença em um social cada vez mais controlado pela medicina, correspondeu ao
próprio processo mediante o qual esta prática vai, conjuntamente com as demais
práticas da sociedade, assumindo características da forma capitalista de viver em
sociedade. O traço peculiar da medicina está em tê-lo feito na constituição de uma
intervenção individualizada, como forma histórica adequada. A emergência da Clínica
como meio de trabalho propício à medicina do capital, que é essencialmente
individualizante ao mesmo tempo em que se propõe a um controle da doença no
social, evidencia bem a equivalência que a medicina formular entre o social e o
individual15
, o que também ocorrerá no âmbito de todas as outras práticas sociais.
Assim, tudo se passa como se, da disposição pessoal do doente em procurar
a assistência do médico e de sua presteza nessa direção, decorresse tanto a colaboração
com a eficácia diagnóstica e terapêutica do ato realizado, quanto a validação da própria
ordem médica.
Será em reconhecimento a essa atitude que a sociedade validará a presença
do paciente em seu interior, implicando toda uma reorientação da ordem social de
direitos e deveres, através de uma peculiar, mas legítima, forma de exercício de
cidadania: mesmo existindo o ajuizamento negativo da doença para o conjunto social,
a valorização do doente reside em isentá-lo de culpa; não há responsabilidade pessoal
nesse comportamento social (de doente). Apenas a doença é julgável, não o doente,
posto que a primeira não é produto da ação intencional deste, mas acontecimento
possível, ainda quando ocorram gradações no trato social que se dará ao doente, em
razão da modalidade no adoecer por atitudes “condenáveis” por parte do doente.
Conforme se trate de doença aguda ou crônica, infecciosa ou não, leve ou
severa, serão todos esses estados concebidos de modo diverso enquanto
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evento casual, e serão então também legitimados de modo diverso quanto à isenção
dos compromissos ou à ampliação dos privilégios sociais de seus portadores. Todavia
enquanto doença social, comportamento de doente na sociedade, a situação aponta, no
geral, para o permitido, com o desenvolvimento de práticas sociais de acolhimento do
doente e não de punição16
.
O fato de que as doenças crônicas ou infecciosas em participação direta
imediata do doente, e mesmo casos graves, recebem distintos tratamentos sociais
quanto ao papel do doente, em comparação com os casos agudos ou leves (tais como
resfriados ou distúrbios digestivos rápidos), ou em comparação com casos infecciosos
(a doença venérea, por exemplo), embora isto não anule a conduta geral de validação
daquele papel, denota ao mesmo tempo uma absolvição da incapacidade, e contudo,
uma isenção apenas relativa das obrigações normais, indicando também relativizações
nas responsabilidades que possam ser imputadas17
.
É desse modo que o sentido para o doente da posição que ocupa na relação
médico-paciente combina uma aceitação de conhecimento limitado com uma atitude
moral adequada, o que termina por caracterizar a presença ou participação do doente
nesta relação enquanto possibilidade muito específica de realizar sua subjetividade,
expressando seus desejos, expectativas ou receios pessoais. Para o médico, por sua
vez, a mesma combinação entre o aspecto técnico e o aspecto ético da relação assume
o sentido oposto. A concepção que se formula no ideal de prática é clara: define na
autonomia a posição necessária e adequada para a boa consecução de todas as
demarcações apontadas, sejam elas técnicas ou de ordem ética. Examinemos melhor
suas razões.
Observemos que apenas aparentemente a delimitação do domínio médico
dita-se direta e totalmente com base no conhecimento científico, pois seu monopólio
confere aos médicos a legitimidade de sujeitos que sabem sobre as doenças, mas já
sobre os doentes a sabedoria se funda em substrato de outra espécie, o da experiência
clínica. Assim, somente a Completar em dois níveis: o técnico e o ético; ou melhor,
oferecer conhecimentos na arte de combiná-los. E considere-se que ora discriminamos
duas dimensões que apenas podemos separar analiticamente, a da ação propriamente
técnica do diagnóstico/terapêutica e a da inter-relação pessoal entre médico e o
paciente.
Em ambas dá-se a combinação técnico-ético, posto que, de um lado, ao
médico cabe saber o modo de desvelar a doença no que lhe traz o doente.
Isto é, desvendar os planos pessoal (subjetivo) e corpóreo (objetivo), iso-
lando-os, re-classificando-os com base na realidade que lhe apresenta o
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doente e na qual eles se encontram consubstanciados. De outro lado, o médico
também deverá ter a sabedoria da forma exata de fazê-lo, de modo que o doente lhe
confie toda sua pessoalidade, com exatidão e em completa entrega de sua
subjetividade. Os termos meu médico/meu paciente dão bem conta de situar essa
relação.
É sabedoria, portanto, de bem exercer este seu monopólio de saber
científico, saber que a prolongada e complexa qualificação escolar lhe confere. E ainda
que desta também resulte, por meio dos casos que vê na orientação escolar, uma
iniciação na sabedoria da profissão, é um aprendizado insuficiente a que há de agregar
o vivido da prática.
Onde reside a insuficiência? Por que a ciência não é capaz de suprir toda
essa complexidade? Novamente, aqui, uma clara resposta por meio de uma das mais
respeitáveis máximas da medicina: porque cada caso é um caso. Ou, o seu equivalente
no apelo à “soberania da Clínica”, isto é, da experiência profissional, sempre que o
pensamento clínico entra em disputa com quaisquer outros dados, ainda que mais
objetivos, do ato médico.
O sentido da forte presença da subjetividade do médico, e de seu progressivo
fortalecimento ao longo da experiência acumulada no múltiplos casos que vivencia, é
o que nos traz essa proposição, expressando a crença no único aprendizado que seria
eficaz para a profissão: descobrir as melhores formas de exercer a plenitude de sujeito,
demarcando na prática clínica o modo operatório adequado à realização de seus
monopólios de saber e praticar. Trata-se, desse modo, da peculiaridade da prática em
que o aspecto técnico, usualmente significando a aplicação da ciência, requer nesta
aplicação um domínio especial de uma arte, o que também devemos examinar
melhor.
A medicina é antes de tudo intervenção, prática técnica, daí que o
pensamento médico conceba a técnica enquanto essencialmente ação transformadora,
quando então o conhecimento científico adquire seu estatuto de máxima eficácia e
validação. Desse modo, se é verdade que pelo seu caráter científico é a prática médica
concebida como segura, em certo sentido é também pela praticidade que o
conhecimento médico se mostra eficaz: conhecer as doenças, ser capaz de diagnósticos
são precondições para a terapêutica; mas ser conhecimento terapêutico importa
mais do que ser conhecimento verdadeiro: “(...) the aim of the practitioner
is not knowledge but action. Sucessfull action is prefered, but action with
very little chance for sucess is to be prefered over no action at all. There is a
assumption that doing something is better than doing nothing”18
. Além
disso, como este mesmo autor aponta, por referência ao paciente que pro-
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1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 162 -
cura o médico: “The request is ‘Doctor, do something’, not ‘Doctor, tell me IF this is
true or not’.”19
É evidente que se requer muito cuidado no tratamento analítico dessas
questões, posto que envolve componentes substantivos da prática e de sua
representação como atividade técnico-científica. Temos aqui nada menos que as
relações entre a Ciência e a Técnica, e as relações destas com a Verdade, todas elas
símbolos da qualidade superior da vida moderna. Ademais, temos estas relações em
articulações tais que conferem à medicina contemporânea sua credibilidade.
Com a devida precaução, portanto, de não construir apenas uma análise de
aparências reduzida ao mero proselitismo ideológico, considere-se que ora efetuamos
uma dada identificação das construções de ideais no pensamento médico. Partamos,
então, da presença efetiva da Ciência nessa prática técnica: a medicina de fato aplica o
conhecimento sobre as doenças. Não se quis jamais afirmar a ausência do caráter
científico como seu fundamento.
Todavia, ao indicar a precedência da ação, do prático relativamente ao
conhecer, buscou-se evidenciar o modo peculiar pelo qual o caráter científico se
inscreve nessa prática. Observemos, nesse sentido, a dualidade doentes-doenças, que,
como muito bem demonstrou Canguilhem20
, está presente como movimento
substantivo do julgamento no, e do, ato de prática: é o doente que busca cuidado; mas
é a doença que o médico diagnostica. É com base nesta que o médico projeta uma
terapêutica, a qual, em retorno ao doente, deve ser-lhe pertinente e eficaz; qualidades
que deverão aplicar-se não apenas à dimensão em que a doença domina, isto é, no
plano do corpo, senão à totalidade do doente. E na esfera deste último, à objetividade
do corpo se superpõe, com precedência de valor de vida, o plano em que é pessoa-
social, singular de coletivo, subjetivo de objetividade.
Dito talvez de modo mais claro, em relação ao doente uma intervenção só é
pertinente e eficaz se lhe é possível, isto é, se concretamente lhe corresponde para ser
realizada, e se lhe traz como resultado o retorno ao modo de seguir vivendo nas
condições em que isto se dava antes do seu adoecimento.
De um primeiro ponto de vista, portanto, o doente apresentar-se-ia na
qualidade de situação particular para o conhecimento geral dado a partir da Patologia.
Caso toda a questão da prática a isso se resumisse, se lhe retiraria toda a arte,
restando a medicina como a “ciência de curar”, mediante o que se reduziria
também sua máxima clínica de todo caso é um caso para “todo caso é
caso”, geral repetido em particular. Ocorre, porém,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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que é duplo o modo pelo qual a individualidade deve ser apropriada pelo médico no
ato de trabalho: singular relativo ao geral, mas também simultaneamente singular
absoluto, no profundo entrelaçamento de dimensões naturais e não naturais (afetivo,
psicológico, pessoal, social), tal como se postula para o ato adequado conforme já
consideramos anteriormente.
Exige-se tecnicamente, portanto, que a aplicação da patologia efetive-se
mediatizada pela Clínica, conhecimento de caráter mais prático, por meio do qual a
técnica aplica o conhecimento da Ciência. Trata-se do diagnóstico clínico, que
parecerá, pois, fundado na Patologia, mas o será somente por intermédio da Clínica,
que articula a Patologia a conhecimentos da ordem do subjetivo dos doentes, e assim
comparece na forma de um saber interconectante deste último plano com o plano
objetivo das alterações anatomofisiológicas do corpo. Veja-se que na Clínica estão
presentes várias dimensões de subjetividade: sintomas; reações psicológicas à doença,
ao sofrimento, e à própria terapêutica; situações de vida condicionantes dos distúrbios
objetivos do corpo, e assim por diante. Essas dimensões, porém, comparecem no saber
desqualificadas como subjetividades, conforme se pode ver nos textos de Clínica que
apresentam os conhecimentos operantes também estruturados em moldes da
Patologia, qual seja, como saber geral e positivo do comportamento das doenças dos
doentes.
Se isto serve ao saber clínico de amparo legitimador de cientificidade, de
outro lado, como para a Ciência, este saber impessoal sobre pessoalidades implica
medicações de esquema operatório, em razão da incapacidade de qualquer
generalização recobrir total e satisfatoriamente o já mencionado duplo sentido da
singularidade. Se é mister, pois, dominar o conhecimento científico, importa sobretudo
dominar a arte de aplicá-lo, sabedoria do exercício concreto que apenas no exercício
acumulado, por meio da experiência prática da clínica, se pode aprender.
Trata-se de uma sabedoria ímpar do médico este lidar com individualidades,
ao mesmo tempo conhecendo-as, descobrindo-lhes as verdades, e controlando-as na
articulação que deve fazer ao conectar o geral/abstrato da doença a este
particular/concreto do doente. Tudo isso de modo tal que também signifique oferecer
soluções aceitáveis ao doente, no domínio de um ensinar. E porque, enfim, toda essa
sabedoria diz sempre respeito a relações entre duas individualidades, como emergem
médico e paciente na relação interpessoal de consulta, não apenas se torna tão-só
parcialmente repassável esse aprendizado a outros, como também a si próprio lhe
parece sempre apenas parcialmente conhecida a arte com que domina.
Também para o médico cada situação apresenta-se até certo ponto
como novidade: todo diagnóstico é simultaneamente aplicação, em um sem-
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tido, descoberta, em outro. É conhecer, tal qual a prática científica, produzindo
verdades, valendo-se dos conhecimentos anteriores, mas com uma relativa
independência. E o fato de que sejam verdades singulares, específicas ao caso, não lhes
tira o mérito de verdadeiras. Ao contrário, é nessa peculiaridade da realidade médica
que reside sua virtude. De outro lado, porém, não deixa de ser prática técnica,
aplicação quer da Clínica mais imediatamente, quer da Patologia mais mediatamente.
Curiosa conjugação de significados, ambivalências de sentidos bem
evidenciada por todos seus termos-mestres, na ambigüidade das designações em que
medicina ou clínica querem dizer bem mais do que seus significados parcelares de
aplicação e de descoberta; e querem dizer, ainda, bem mais que as meras justaposições
desses dois significados. Nesse sentido, o termo arte lhes é muito mais favorável.
Novamente cumpre lembrar que se no cotidiano a arte não é assim tão
pródiga em matéria de criatividade pessoal, no plano do ideal esta prática se faz
representar pela qualidade de ato sempre “único”, o que concorre para tornar a relação
médico-paciente uma relevante questão diante da rotinização do trabalho para o
médico e diante do valor da doença para o doente, enquanto sua realidade pessoal e
singular.
Estas últimas considerações apontam aparentemente para uma “distância
entre intenção e gesto”; ou seja, fariam supor um ideal sem suporte de ação. A questão
é em realidade um pouco mais complexa: se para o paciente cada episódio mórbido é
único, para o médico a doença é supostamente conhecida na apropriação do saber. O
que será único é todo o ato de clínica, isto é, o modo pelo qual o doente e doença se
“conectam”. E seria único porque o médico desconhece as particularidades de cada
doente, a pessoa “na doença”. Porém, essa separação entre doente/doença só existe na
construção reflexiva que o médico faz da realidade, e o difícil será exatamente
processar com êxito a situação ao mesmo tempo já conhecida, mas ao mesmo tempo
não conhecida, uma vez que também o médico se dá conta de, e sabe que deve levar
em conta, a totalidade singular do doente.
É por isso que importa assinalar essa exigência da prática, aparentemente
paradoxal, de ter que sempre responder à demanda com uma intervenção que deve
utilizar-se da Ciência, mas também criar o novo e formular descobertas já
imediatamente eficazes e pertinentes, ainda quando o faça sem as mesmas
possibilidades que detém a Ciência de configurar sua criação como conhecimento
seguro, ou em situações que, valendo-se da Ciência Estatística, a Ciência Natural pode
conhecer até a medida e a extensão da segurança.
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 165 -
Eis a razão porque a prática médica é concebida como prática que implica
julgamentos complexos, riscos e algum grau de incerteza nas decisões diagnósticas e
terapêuticas21
. No entanto, ela é ao mesmo tempo uma prática socialmente ofertada e
demandada como intervenção segura, indicando concretamente uma superação da
imagem anterior, ou pelo menos uma resolução antecipada da questão das incertezas:
um “bom” julgamento complexo dissiparia a insegurança, como que anulando o risco.
Esta última imagem funda-se na concepção de que os riscos decorreriam mais da
natureza da organização social do trabalho médico do que de uma inadequação técnica
por insuficiência do conhecimento científico relativamente às situações concretas de
prática. Este aspecto apenas reforça a necessidade de se compreender a superação das
incertezas como decorrendo de outros postulados que regem a medicina para além de
seu fundamento na ciência: o pragmatismo e a crença do médico em sue própria
capacidade.
A prática médica é representada, pois, também por esta via, como
intervenção fundada na competência pessoal do médico. Esta o fará desenvolver o
senso de particularização e o fará bem exercitar sua subjetividade, estabelecendo
também as próprias regras de decisão e os limites de sua intervenção. Em outros
termos, o médico deverá desenvolver os critérios e os mecanismos da sua auto-
regulação.
Para um exercício dessa natureza, carregado de tantos e tão complexos
requerimentos, não poderia ser outra a forma de desempenho que não aquela realizado
por meio de sua inserção no trabalho com ampla autonomia, quanto então disporá o
médico de condições de adquirir e exercer sua experiência clínica individual. É assim
que o ideal de prática articula-se a um ideal de produzi-la na sociedade na forma de
atos individualizados e tão diretamente dependentes da pessoa do médico: ato de
relação interpessoal e sempre individualizada; ato de competência pessoal, por
vocação, por formação familiar e por qualificação escolar, meios através dos quais
pode o médico pessoalmente desenvolver a qualidade central da profissão – a arte com
que usará seus conhecimentos científicos.
Mas o que viria a ser esta arte senão a independência do médico
relativamente a todos os componentes de seu trabalho “externos” à demanda que lhe
apresenta seu paciente, para que nada o perturbe ou influencie no julgamento
complexo e arriscado que fará? O que pode diminuir a incerteza senão o isolamento no
momento criador, em que o médico encontrará o diagnóstico já como parte
indissociável daquele doente singular, a doença como realidade individual e subjetiva?
Isolando-se mantendo-se independente de outras dimensões da reali-
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dade da prática que compões o ato profissional, pode o médico exercitar, “puro”, o seu
saber: imparcial e neutro por referência a ordens “exteriores” que assim devem ser
mantidas; e pleno por referência a outras ordens constitutivas da “essência” do ato
médico. Os componentes da vida social concreta, e que também perpassam o trabalho
profissional, não deveria perturbar sua “atenção absoluta”: sua remuneração, as
condições materiais de exercício de seu trabalho, as formas pelas quais o cliente
chegou a buscá-lo ou irá pagar por seus serviços, o que de fato ocorrerá com o doente
depois da assistência que prestou, ou, ainda, sua própria condição de um possível igual
ao outro, um doente virtual.
É nesse sentido que o isolamento fornecido pela consulta, como prática
interindividual e exclusiva, veio a se constituir na forma material imprescindível para
este desempenho. Conforme já referido, essa espécie de dueto não comporta no
silêncio do consultório senão dois personagens...22
Também é significativa essa referência ao silêncio no encontro constitui o
consultório, ou o hospital, uma separação entre as dimensões “externas” e “internas”
ao ato, demarcando bem um ambiente de prática que dela exclui a participação da vida
cotidiana, exceto a pedido do médico por uma necessidade técnica “interna” ao ato23
.
O momento do diagnóstico e da projeção terapêutica demarca no ato
profissional, portanto, planos de relevância distinta: o de “dentro e o “de fora” da
prática técnica. E se a independência referente ao que lhe é “exterior” definiria a
neutralidade médica diante dos outros elementos de realidade que ali se inscrevem,
uma outra independência se requer no plano “interno” do ato, para que, em sentido
oposto ao daquela mesma neutralidade, possa ele manter uma dada autonomia por
referência à objetividade absoluta da doença no plano de seu saber científico. Só assim
poderá efetivar a inevitável e necessária inclusão do social e da subjetividade com que
lhe é apresentada a realidade “da doença no doente”.
A inclusão do social e do subjetivo implica a exclusão dessa mesma
dimensão no diagnóstico, que remete á doença universal, para sua posterior re-
integração na terapêutica concreta. O que significam estes movimentos; o que se
comunica ao doente e à sociedade exatamente através destes processamentos; e o que
significa captar o social por meio do subjetivo individual, todos eles são elementos da
prática que devemos examinar em maior profundidade. Por ora retenha-se tão somente
essa dupla conotação da autonomia: independência em relação a valores, de um lado,
demarcando uma “essência” técnica e neutra do ato médico; de outro, no
momento de realização desta “essência”, uma independência inversa em
relação ao técnico científico. Será por meio destas especificidades que a
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autonomia do médico representa, ao mesmo tempo, o desempenho adequado às
necessidades éticas e às necessidades técnicas da profissão, assim se tornando o modo
ideal de exercê-la.
AUTONOMIA: UMA QUESTÃO PARA OS MÉDICOS
Pode parecer que insistimos demasiado nestas especificidades que e
atribuímos à prática até aqui; também se pode argüir da ausência de referências mais
explícitas ao social, ao econômico, ou ao político-ideológico no pensamento médico.
O fato é que essas referências não são verificadas quando se trata do conteúdo
substantivo de seu trabalho, exceto no âmbito dessa conexão técnica-ética. Já
mencionamos que os médicos não concebem sua prática exatamente como um
trabalho, senão que a destacam relativamente às demais práticas sociais que entendem
como trabalhos. Até porque, segundo eles, dada a complexa natureza do ser humano, a
prática sobre esse objeto de intervenção muito se aproximaria da noção de uma técnica
a serviço de um sacerdócio, no sentido de ação gratificante, e não propriamente um
“serviço remunerado qualquer”; imagem que persiste mesmo quando atenuada pela
forte presença do plano material de equipamentos e instrumentos na medicina
especializada.
Advogam os médicos, com base nessas concepções, tanto o necessário
prestígio e o valor social de sua prática, quanto a validade de sua forma monopolizada
de exercer vários domínios: o do saber, o da prática, o da ciência e o do ensino.
Ademais conseguiram nesses domínios reservar para si mesmos a avaliação e a
regulação de seus desempenhos: controle sobre outros e autocontrole é a fórmula
bem-sucedida de prática e que representa o seu ideal. Esta é a forma de relação que os
médicos pressupõem por referência aos demais agentes sociais, tanto quanto na
articulação entre seus próprios trabalhos. Definindo as ordens de vida e de saúde,
definindo as transgressões dessas ordens e definindo suas re-normarlizações, em atos
que também só essa categoria profissional efetiva, como gerentes e juízes de si
próprios, os médicos demarcam uma profissão que parece decorrer exclusivamente da
conquista de uma autonomia de amplos domínios.
Para isso concorreu o fato histórico de se ter estruturado a prática médica, em
seus momentos iniciais de reorientação como intervenção moderna, na forma
de um trabalho projetado basicamente às custas do saber, pois nasceu como
exercício quase que exclusivamente fundado no raciocínio, operacio-
nalização reflexiva de conhecimentos científicos de caráter teórico, havendo
apenas parcos recursos instrumentais materiais. Uma técnica,
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 168 -
portanto, cujo principal substrato tecnológico tinha caráter de tecnologia não material.
Por essa razão, também, pôde esse serviço ser socialmente produzido na condição de
“profissão liberal” de “prática autônoma”. Dessa configuração lhe adveio a
possibilidade, até mesmo, de ser desqualificado, no plano das idéias, como trabalho
social igual ao outros. Pelo contrário, pôde ele ser compreendido como prática cuja
essência e natureza própria exclui elementos de realidade mais imediatamente
característicos do social. Mas não obstantes retirados da representação do núcleo
essencial da prática, esses elementos permanecem subjacentes a ele, como se fossem
as “agruras” da profissão. Assim, se as realidades do cotidiano social podem “estar
fora” do momento nuclear da prática – ato técnico diagnóstico e terapêutico -, restam
todavia, como coadjuvantes inexoráveis de seu exercício, seja por intermédio do
doente, sujeito social/agente de produção, seja por intermédio do médico, igualmente
sujeito social/agente de produção.
Poderíamos então dizer que no âmbito mais inclusivo da prática, em suas
relações totalizantes, o ato não consegue totalmente libertar-se de influências sociais e
subjetivas, estruturando-se sob padrões técnicos de obrigatória polarização por
referência a juízos e valores. E isso ocorre porque ao qualificar-e como profissão,
desqualificando-se como trabalho, a prática médica pagou o tributo de construir-se em
atos individualizados de relação interpessoal. Estruturou-se socialmente por causa
disso como a prática do pequeno produtor privado e isolado, a que chamamos de
medicina liberal. Esta, porém, ao longo da história do trabalho médico, em seu
desdobramento nos trabalhos parcelares e especializados, e apenas depois disso,
mostrou-se tão-só uma particular modalidade de produção dos serviços, além do que
modalidade transitória.
Este fato irá necessariamente operar, por meio da diferenciação nas formas
de exercer a medicina que mais recentemente se instaura, uma relativização na
imagem original desta prática: veremos mais adiante que da autonomia do ato técnico
à autonomia na produção do serviço, que de início significava apenas um e o mesmo –
a autonomia da profissão – e apresentava-se como um todo indiviso, emergirão
conteúdos, como os da etapa diagnóstica por exemplo, que serão considerados
substantivos, dos quais outros serão afastados enquanto secundários, como as questões
político-administrativas da produção do trabalho médico. O próprio pensamento
médico, pois, operará uma cisão no que originalmente parecera aos médicos um
conjunto indissociável, qual seja, a prática técnica e a forma de sua produção em escala
social. Essa, porém, é a própria história em que a autonomia surge como campo de
problematização, passando a constituir uma questão, além do que vital, para esses
profissionais.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 169 -
Ela será, já vimos, um problema experimentado na vivência cotidiana do
trabalho. Alçada a problemática central relativamente à qualidade do desempenho na
profissão, constituirá objeto privilegiado do pensamento dos médicos acerca de sua
prática. Neste, porém, a referida demarcação dos âmbitos “externo” e “interno” à
prática proclamará apenas o lado técnico, representado pelo momento da consulta ao
médico, como aquele circunscrevendo em seu âmbito os problemas que serão
considerados como questão para os médicos.
Mas conforme dissemos, ao menos pela via do subjetivo-pessoal, o social
adentra o “interno” da prática. Ao fazê-lo por essa via, contudo, passa a ser recoberto
pela própria técnica, isto é, passa a ser subsumido no técnico. É nesse sentido que
embora a prática objetivamente lide com o social, este lidar não é reconhecido como
tal.
Ao contrário, vivenciando através da singularidade do doente e tomado
sempre na particularidade do caso, os elementos da vida social serão drasticamente
reduzidos para o plano da essência natural e biológica do doente. Os fatos e problemas
do social serão deslocados de sua qualidade de constituintes da vida consubstanciais
com o natural, para a qualidade de circunstâncias exteriores a este último:
conformariam o meio - conjunto de fatores de existência anterior e independente do
doente; ou no máximo conformariam, no que diz respeito a dimensões propriamente
humanas do mundo natural” dos planos do corpo mais visíveis e materializáveis que a
mente.
Ora, repousando várias necessidades técnicas do ato médico, entre elas a
autonomia como instrumento do trabalho, exatamente nesse plano do componente
subjetivo-pessoal da prática, será de certa forma até contraditório que as problemáticas
relativas a este plano (e então relativas de modo imediato ao social) sejam as que
assumam o papel de principal fonte geradora de questões. Não obstante, essa
contradição não será captada pelo pensamento médico, pois as questões implicadas
serão circunscritas e abordadas estritamente do ângulo da técnica, fazendo com que a
autonomia no trabalho pareça reduzir-se apenas a um imperativo de ordem técnica.
Dessa perspectiva e do ponto de vista histórico, as transformações
do trabalho médico serão tomadas como se fossem apenas seu desenvolvi-
mento científico-tecnológico, não afetando quer a relação médico-paciente
quer a autonomia do primeiro diante do segundo, posto que esta posição desigual
seria uma necessidade derivada das características “naturais” do
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 170 -
paciente e um imperativo técnico, portanto, da prática. Decorre daí a noção de que, por
“ser” a medicina desde sempre uma intervenção sobre pessoas doentes, tal como se
revela na aparência formal do ato, o que viria qualificá-la de moderna seria uma
inserção na racionalidade da ciência e da técnica cientificamente fundada.
A esta racionalidade, também, crê impor o seu estilo ontológico, isto é, “ser”
não só uma relação interpessoal, senão já imediatamente uma relação desigual, ao
invés de entender que procedeu a adapatações radicalmente novas – mudando a
natureza da relação médico-paciente e criando a autonomia - , pra vir a ser aplicação
científica. Assim, embora seja a prática contemporânea dos médicos um outro
proceder diante das intervenções anteriores ( o que autorizaria vê-los como fenômeno
de existência nova e recente), pelo fato de não terem sido os médicos criados pela
Ciência moderna, mais parecendo “atingidos” por ela, as transformações modernas
não serão vistas como uma ruptura com a ordem anterior: trata-se, desde sempre, de
uma só e mesma medicina, dirá o pensamento médico sobre essa prática, embora não
mais empiricista e sim científica24
.
Nos traços “essenciais” de constituição de seu trabalho, como o da
autonomia profissional, por exemplo, supõem os médicos uma continuidade histórica
necessária. Acreditarão serem eles próprios agentes e intelectuais independentes de
qualquer outra racionalidade que não a que atribuem ao núcleo essencial da prática,
vendo a si mesmos, portanto, como necessariamente (no sentido técnico que se
estende a todos os outros planos) livres para definir sua atuação: “Diferentemente de
outras práticas sociais, cuja origem é coincidente com a própria emergência ou com o
desenvolvimento da sociedade capitalista, a medicina tende a revestir-se mais
facilmente de um caráter de neutralidade face às determinações específicas que
adquire na sociedade de classes. (...) Tal concepção, que se elabora e reelabora,
também por referência às demais práticas técnicas, no conjunto de relações sociais
próprias a essa sociedade, encontra, ainda, na marcada continuidade histórica da
medicina, um de seus principais suportes. A prática médica e seus agentes não foram
instituídos no interior do modo de produção capitalista. Justamente por se sentirem
entre as antigas formas de intervenção técnica é que eles podem também aparecer mais
facilmente investidos do caráter de autonomia, como ocorre com outras categorias e
práticas e agentes que, preexistindo a um novo modo de produção parecem
preservados de revestir novas formas correspondentes a articulações inteiramente
distintas com as estruturas econômica e político-ideológica que o compõem”25
.
A própria presença da transformação implica tentativas de fixar o tra-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 171 -
dicional, a ordem de práticas e de valores já consagrados. Um retorno ao passado, em
busca da manutenção do adequado, ou uma modernização com cautela, são presenças
constantes no pensamento médico: uma das primeiras reações a dificuldades da
prática, que são havidas como “desajustes” em um dever-ser, é a que reforça a
tradição; quando não, são manifestações que buscam formas conciliatórias com o
objetivo de re-produzir o tradicional. E dado que a re-adequação histórica da medicina
em sua modernização ocorreu por meio da constituição da produção de serviços na
modalidade da prática liberal, a marca do tradicional viria a instaurar como questões
para o pensamento médico os problemas referidos à organização da produção dos
serviços na sociedade. Em outras termos, tendo a autonomia profissional se
constituído através de uma assistência médica organizada na forma de pequenos
produtores isolados e independentes, a própria autonomia do médico passou a
vincular-se às características dessa forma de produção, a que se associou a concepção
de trabalho livre (liberal): ausência de conexões formais entre produtores; propriedade
pelos médicos individualmente dos meios de produção da assistência; laços informais
com a clientela; e ausência de obrigações produtivas exceto as geradas pela procura da
consulta e definidas pelo tipo técnico de demanda, com base na qual se definiria para
os serviços uma remuneração imprecisa, informal e flutuante.
Se isto significa, conforme já dissemos, a superposição do ideal técnico a
uma forma ideal de organizar os serviços, sobretudo significa, da perspectiva do
tratamento da questão da autonomia enquanto “essência” técnica própria ao trabalho
médico, o deslocamento dessa questão para um plano que em princípio lhe é tido por
exterior, o plano do social. Assim, passam a ser condicionantes da autonomia do
médico (que então se determinaria não mais à custa exclusivamente das
especificidades do plano pessoal na produção do cuidado médico) as condições de
trabalho em seu conjunto. Paradoxalmente, pois, o pensamento médico participará,
como forma de manifestação em prol da autonomia técnica, das formulações políticas
de saúde26
.
Será por via da problematização acerca do mercado de trabalho para o
médico; ou acerca da constituição de novas modalidades de produção de serviços
(tais como empresas médicas, por exemplo); ou ainda acerca da articulação
dos produtores entre si (como na formação de conglomerados empresarias)
e da participação do Estado na qualidade de regulador da produção, o modo
pelo qual prioritariamente se constituirá a problemática referida à autonomia
técnica, quando esta começa a ser tensionada ao se superar, com o
desenvolvimento histórico das forças produtivas do traba-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 172 -
lho médico, sua organização social na modalidade liberal de prestações de serviços.
Trata-se, portanto, de um questionamento que não se dirige para as questões que dizem
respeito à rearticulação dessa autonomia na esfera reconhecidamente técnica do
trabalho médico, como as referidas aos trabalhos parcelares, quando da divisão técnica
do trabalho médico em práticas especializadas.
Não se depreenda daí, contudo que para o pensamento médico a
especialização não se mostre vinculada ao estabelecimento de “efeitos pensamento.
Ocorre, porém, nesse reconhecimento, a negativa em tomar a especialização pelo seu
aspecto de forma técnica correlata a um processo de trabalho parcelar que
necessariamente implica, como modo de organizar a produção dos serviços, a
interdependência (ao invés da independência) e a cooperação (em substituição ao
produtor isolado). O “efeito indesejável” toma-se na verdade por resultado da forma
socialmente encontrada, no plano de decisões políticas e sociais “exteriores” à prática
médica, para efetivar a complementaridade e a cooperação dos trabalhos, a qual seria,k
do ponto de vista dos médicos, uma forma tecnicamente inadequada. Assim sendo,
estes apenas percebem a questão no plano das configurações formais de seus trabalhos
e se abstêm de examiná-la no âmbito de seu conteúdo mais inclusivo, o ato técnico.
Tal abstenção revela, em realidade, a vontade político-ideológica de não expor esse
âmbito a questionamento, porque nele está, exatamente, a dimensão em que a
autonomia deveria ser sempre preservada: enquanto forma independente, isolada e
individual com que os médicos se articulam ao seu meio de trabalho principal, o saber.
Em outros termos, evita-se problematizar as relações entre os médicos e o saber (no
plano da aplicação prática do conhecimento) foram construídas com a Ciência
Moderna.
Ora, esta relação entre o médico e o saber constitui, como vimos, a
substância da autonomia, embora não seja seu único componente. Assim sendo,
resguardá-la de questionamentos, mesmo que no plano das representações, faz parte
dos procedimentos que buscam manter uma dada liberdade de desempenho
profissional para o médico, isto é, uma autonomia de prática ainda que restrita a esse
plano. E isto implica sentidos necessários para a concepção de trabalho especializado,
pois o ideal de especialização que se constrói terá que reelaborar, atualizando, o
próprio ideal de autonomia, agora reduzida a uma forma de prática técnica27
.
Mas se o movimento executado pelos médicos nessa direção pode ser
visto como tentativa de manter a ferramenta de trabalho que é a autonomia,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 173 -
não há dúvida de que ele tem outros significados: também espelha a busca de manter o
monopólio sobre o saber e a prática, pois tensionada a autonomia no transcurso das
mudanças na medicina, vê-se igualmente tensionado aquele monopólio, cuja
justificativa residia exatamente na necessidade técnica do exercício autônomo. Nesse
sentido, a expectativa dos médicos é a de manter para a profissão o que lograram
conquistar seus antecessores, ou seja, o controle total sobre o processo de trabalho. Eis
a razão pela qual a preservação da autonomia é um movimento que se reveste do
caráter de estratégia fundamental de preservação do monopólio da prática para os
médicos. Conscientes até certo ponto deste extremo valor político da autonomia, e
mais evidentemente conhecedores de suas vantagens técnicas, os médicos traçaram
caminhos de construção de sua profissão cujo objetivo foi manter a autonomia (como
sinônimo, contudo, quer da técnica, quer do valor político e seus subseqüentes efeitos
sociais) a qualquer custo. E estes tornaram-se progressivamente maiores e mais
complexos, à proporção que a medicina moderna foi amadurecendo.
A necessidade, pois, de conferir harmonia de composição a situações
relativamente contraditórias de prática – autonomia e especialização – tendo ademais
que encontrar idênticas justificativas técnico-científicas para manter a mesma base
social de validação do monopólio da prática, revestirá este processo, como veremos a
seguir, de extrema complexidade, seja no plano material, seja em sua representação.
Antes, porém, de prosseguirmos é preciso um pequeno parêntese. Quando
acima afirmamos significar a autonomia uma estratégia de poder, não estamos
querendo apontar para um sentido moral e maniqueísta de uma ação pessoal. Longe de
atribuirmos boa ou má intenção para as ações deste, daquele ou daqueloutro médico,
tal como se tenderia a tomá-las no plano estritamente pessoal e como fruto de decisões
individuais completamente livres, estamos buscando o plano em que as opções são
socialmente determinadas e socialmente significativas. E desse ângulo, elas se dão pela
realidade objetiva da vida social em sua estruturação de coletivo, antes que pela
vontade de cada um: se a ação é movimento de um indivíduo particular, nem é ela
parte exclusivamente dele, nem é ele sujeito independente do histórico e do social.
Não se trata exatamente de um plano consciente a que se possa
simplesmente adjetivar com um bom ou mau sentido. Todavia, em certo sentido
e até certo ponto, é consciente, isto é, a medicina de fato se constrói pelas
opções de seus sujeitos-agentes sociais. São, desse ponto de vista, opções de
conjunto realizadas individualmente. Assim sendo, ao contrário da
precedência da dimensão pessoal, tomamos esta pessoalidade de forma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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tal que não será possível, direta e principalmente, imputar a cada indivíduo
responsabilidade absoluta pelas ações de que é sujeito. Os médicos não são, na pessoa
deste ou daquele, imediata e absolutamente responsáveis, sem que contudo a categoria
profissional deixe de sê-lo; mas também não de modo uniforme. Há grande distância
entre os médicos-comuns e os intelectuais na participação política e ideológica para a
formulação do projeto de organização da medicina.
Em conformidade, porém, com os valores que professam, qual seja, a
supremacia da dimensão técnica e pessoal nas explicações que eles mesmos tecem
sobre suas práticas, os médicos atribuem a cada um dos seus uma potência decisória
muito ampla, do que deriva o princípio de um compromisso essencialmente pessoal
com a ação. Esta, por sua vez, lhes parece ser de base totalmente individual.
O médico pretende a si próprio e se reconhece sujeito livre, isto é, sem
constrangimentos de ordem “extratécnica” em seus julgamentos, suas decisões ou sua
ação, quando de fato os médicos agem socialmente posto que as dimensões em que a
ação concreta se efetiva ultrapassam aquela em que se dá seu reconhecimento na
reflexão. Ou, como diz Maria Cecília F. Donnangelo: “É essa dimensão extracientífica
da norma e do corpo normal que a medicina enfrenta em sua prática concreta,
reconheça-o ou não no plano das formalizações teóricas que orientam essa
interferência. (...) No plano dessa atuação, a prática médica manipula o caráter
histórico de seu objeto, sem necessariamente conceptualizá-lo.”28
.
Os médicos estão, pois, alienados de partes também componentes e mesmo
determinantes de suas práticas, ao desqualificarem o conhecimento do social e o
reconhecimento de sua existência material enquanto componente imediato e
consubstancial com a técnica. Ficam por conseqüência, impossibilitados de se
apropriarem do social e incluí-lo na concepção do projeto de ação: perdem eles a
possibilidade de um controle consciente sobre o modo pelo qual aquele social vem a
compor a prática técnica, ao menos do ângulo da tomada de um social não reduzido ou
transformado, tal como ocorre. É esta alienação que, ao nosso ver, impede que os
médicos operem de fato, e não apenas discursivamente (como intenção jamais
concretizada) uma autonomia técnica; com o que reestruturariam a relação médico-
paciente em uma relação mais igual, com a presença mais efetiva do doente no
processo decisório que antecede a operação do trabalho.
Isto posto, mesmo quando não sejam apontadas explicitamente neste
texto as opções de que tenham derivado as mudanças ocorridas na prática
médica, essas mudanças estão sendo compreendidas como produto de opção
social de sues agentes. De outro lado, ao serem escolhidas entre um
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 175 -
leque de trajetos historicamente possíveis a cada momento da história, são elas
também delimitadoras já de opções futuras, pois baseadas na ação adotada
obrigatoriamente se demarca para o futuro tal ou qual nova gama de possíveis. Nesse
sentido, conflitos que se venham a evidenciar em decorrência de mudanças no real,
não configurarão “efeitos indesejáveis”, da forma como os explica o pensamento
médico. Em vez disso o aparecimento desses conflitos, cujo significado prende-se, de
fato, ao desenvolvimento de um real contraditório, resulta de escolhas anteriores, que
todavia pareceram os médicos adequadas e necessárias quando foram feitas.
A impossibilidade de previsão dessas contradições futuras decorre em parte
da própria decisão dos médicos de abstrair dimensões de sua realidade de prática e
assim desconhecerem suas presenças e influências na medicina, ainda que esta seja
apenas uma das decorrências desta decisão. Pois, ao contrário da independência que
atribuem ao seu trabalho, este é prática social, onde as possibilidades de ação técnica
dependem de sua articulação com os demais trabalhos sociais, sendo as características
de cada trabalho definidas no existo com que se dá a articulação.
Parece claro, portanto, que devemos relativizar a aparente liberdade absoluta
de opção, desde a concepção até a concretização de ações sociais. Mas dado que esta
relativização não faz parte do pensamento médico sobre a profissão, o que vemos é
uma autonomia que se problematiza deslocada de suas articulações sociais, porque
deslocada da vontade política dos sujeitos que a constroem.
Feitas essas considerações, podemos retomar nosso exame sobre a prática
médica e agora observá-la para compreender quais as razões que permitiram,
objetivamente, não só a construção de uma liberdade de ação no trabalho (que se não
foi total, com certeza foi ampla), como sobretudo permitiram que dela se estabelecesse
uma imagem do absoluto.
1 Eliot, Freidson, citando um estudo sobre as perspectivas estudantis (em Howard S. Becker et
al - Boys in White, Chicago, University of Chicago Press, 1961), mostra que, como valores
dominantes na orientação do aprendizado e da escolha de carreiras por alunos de medicina,
aparecem os valores que marcam tradicionalmente a profissão: responsabilidade – correlata à
noção de poder sobre a vida ou a morte – e a experiência clínica, enquanto substrato de apoio
àquele poder. Por isso escolhem como especialidades mais importantes as que acumulam ambas as qualificações, na maior medida possível - Freidson, E. – Professional Dominance...,
op. cit., pp. 84-87. Achado similar, aliado a uma incapacidade de
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1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 176 -
definir especialidades como Medicina Preventiva ou Saúde Pública, resultou de pesquisa sobre
o “Perfil do estudante de medicina” realizada com primeiro-anistas da Faculdade de Medicina
da USP, entre 1985 e 1989, pelos professores do curso de graduação do Departamento de Medicina Preventiva (mimeo). 2 Raros são os estudos que mostram este comportamento diferencial dos médicos no exercício
da profissão. Dentre eles cabe destacar o de Ana C. S. L. Sucupira – Relações médico-paciente nas instituições de saúde brasileiras, São Paulo, FMUSP, 1981 (dissertação de mestrado), que
demarca especificidades da relação médico-paciente referidas à prática pediátrica tais como
verificada em distintos tipos institucionais de serviço. 3 M. Cecília F. Donnangelo, Medicina e sociedade, op.cit., p.126 4 Oracy Nogueira, op.cit., vol. I, pp. 27, 28-29, 30 e 33 (aspas no original). Embora não
trabalhemos, como o texto citado, com o deslocamento da categoria trabalho social para profissão/ocupação, esse autor explicita bem, dentro dos estudos das profissões – dos quais
procede a extensa revisão – as qualificações atribuídas ao conceito de profissão. 5 Lewis, R. and Maud, A. – Professional Peoples, Londres, Phoenix House, 1952, apud O. Nogueira, op.cit., vol I, p. 26 e p. 127. 6 Para maior compreensão e aprofundamento de tais considerações veja-se N. Bisseret – A
ideologia das aptidões naturais, in Durand, J.C. G. (org.) – Educação e hegemonia de classe, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979, pp. 31-67 7 Ricardo Bruno M. Gonçalves – Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico, São
Paulo, FMUSP (dissertação de Mestrado), 1979, pp. 19-53 8 Lilia B. Schraiber – Educação médica e capitalismo: um estudo das relações educação e
prática medica na ordem social capitalista, São Paulo, HUCITEC, 1989. 9 Estas re-elaborações, em especial para o caso brasileiro, são mostradas por M. Cecília F. Donnangelo, op.cit.; e por Gastão W. de S. Campos – Os médicos e a política de saúde, São
Paulo, HUCITEC, 1988. 10 Eliot Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p.161-165 11 M. Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., p 129 (grifos no original). 12 E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p.21 13 Peguinot, H. – Medecine et monde moderne, Paris, Minuit, 1953, p.7, apud M. Cecília F.
Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., p.128. 14 E.Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p. 300 15 Ver nesse sentido Maria Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., em especial capítulos I e II; Ricardo B. M. Gonçalves – Medicina e história, op.cit., capítulo 2; e sobre a
constituição Clínica enquanto reorientação epistemológica da Medicina, M. Foucault – O
nascimento da clínica, op.cit. 16 E. Freidson – Profession Fo Medicine, op. cit, pp 152-53 17 Idem, idem, pp. 224-243 18 E. Freidson – Profession of Medicine, op.citg., p.168 19 Idem, p.22 20 G. Ganguilhem – O normal e o patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982.
21 E. Freidson – Profession Dominance..., op. cit., p. 97 22 Ver nota 13, supra 23 O hospital como espaço apropriado para individualizar a doença e naturalizar
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 177 -
o social aparece discutido em M. Foucault - O nascimento da clínica, op.cit.; do mesmo autor -
“O nascimento do Hospital”, capítulo VI de Microfísica do poder, op.cit. Nesse mesmo
sentido, o hospital como apropriado à redução das diferenciações do social ao homogêneo das estruturas biológicas do corpo, foi objeto de considerações em L.B. Schraiber - Educação
médica..., op.cit., em especial o capítulo 2, item I, O hospital na rearticulação da prática
médica. 24 É exemplar neste sentido a interpretação das transformações da prática como decorrência
direta e exclusiva das descobertas científicas e da criação tecnológica. A história da medicina
seria suficientemente apreendida, segundo essa interpretação, pela história dos equipamentos, dos instrumentos materiais e das técnicas de manejo correspondentes. Aperfeiçoamento dos
meios e objetivos imutáveis é a imagem da medicina construída nesta história. A esse respeito
veja-se Laura Conti, Estrutura social y medicina, in Medicina y sociedad (colet.), Barcelona, Ed. Fontenela, 1972, pp. 287-310 25 M. Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., p. 29 26 Veja-se, no caso brasileiro, Gastão W. de S. Campos – Os médicos e a política de saúde, op.cit. e Professional Dominance, op. cit. 27 A permanência da autonomia como ideal de trabalho também na medicina especializada é
objeto dos vários estudos já citados. Assim, E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit. , em especial o capítulo 2 (Political Organization and Professional Autonomy), identifica tal
permanência em modelos de organização de serviços bem distintos entre si, tais como os que
ocorrem nos Estados Unidos, na Inglaterra, na União Soviética. Maria Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., aponta a mesma presença no caso brasileiro, ainda que restrita a
um núcleo essencial, quando passa a ser re-produzida na modalidade de pensamento que mais
se reveste de caráter empresarial. Ademais, como aponta Roberto P. Nogueira (A ideologia médica neoliberal, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, CEBES, no. 14/16, fev. 84, pp. 44-47) a
presença da autonomia aparece recentemente reavivada na Declaração dos Direitos do Doente,
produzida pela Assembléia da Associação Médica Mundial em 1981, o que o autor vem designar por modelo neobliberal de medicina (p. 47). 28 Maria Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., pp. 24-25.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 179 -
5
Representações e prática:
a construção da autonomia
De modo geral é possível dizer que desde o momento em que a medicina se
inscreve na ordem técnico-científica moderna, desenvolveram-se dois modos de
estruturação da prática. O primeiro ocupou todo o século XIX até aproximadamente
aos anos 30 do século XX, começando o segundo a configurar-se no período de 1930-
50, a partir do que implanta-se de forma generalizada. Essa periodização corresponde
ao que ocorreu nos países que iniciaram a reestruturação da vida social conforme o
modo capitalista de produção, e só mais tardiamente se estabeleceu na sociedade
brasileira1.
A marca mais característica do primeiro é a proximidade com o trabalho
artesanal, designação aqui usada apenas no sentido ilustrativo do termo, dado que
curiosamente é sob esta modalidade que a prática médica adentra a produção social no
modo capitalista de realizá-la. Este traço, aparentemente curioso mas mais exatamente
tradução da peculiaridade do trabalho médico, chama a atenção pelo contraste com os
demais trabalhos na sociedade, pois a medicina manter-se-á “artesanal” por quase um
século e meio, tempo em que a dinâmica das forças produtivas dos outros trabalhos
sociais já terão de muito ultrapassado até mesmo as formas mais simples de trabalho
cooperativo.
Nesse sentido há um contraste que se instala entre as estruturações do
todo e de uma de suas partes: a cooperação é necessidade histórica
peculiar ao capitalismo, ao passo que, para a medicina do capitalismo, a
autonomia no trabalho individualizado é que parece ter sido sua necessidade
histórica particular. A presença de padrões de produção social assentados
em trabalhos de conformação análoga àquela prévia ao capitalismo não é
realidade social estranha a este modo de produção. Em verdade, constitui
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 180 -
um não-capitalismo necessário e articulado subordinadamente ao capitalismo, como
produto e condição da própria acumulação do capital2.
Menos estranha parecerá a presença da prática individualizada da medicina,
se for examinado o processo pelo qual isso aconteceu. Mesmo que resumidamente,
então, relembremos o fato de que a orientação das práticas sociais em direção ao
capitalismo correspondeu ao processo pelo qual as práticas são reconstituídas sob a
forma de coletivização do processo de trabalho. Para tanto, um outro movimento foi
lhe precedente: o processo pelo qual várias práticas afins, ou que se tornariam afins ao
longo do processo histórico que gestou o capitalismo, homogeneizaram-se, fundindo-
se em uma única forma social de realização. Vale dizer que a constituição de trabalhos
parcelares é antecedida por um movimento de unificação e uniformização dos
trabalhos de mesma finalidade social, processo em que se destrói a arte de ofício do
artesão.
Fato similar dá-se na medicina, ao haver a adoção de uma prática técnica
única ( a prática médica); conferida sempre a um mesmo trabalhador (o médico);
regulamentada subordinadamente a uma só forma de saber (a ciência das doenças);
conferida por uma única via de qualificação profissional (a escola médica); e por todo
esse conjunto, validada socialmente como a única forma legítima de serviço. Para que
a prática médica moderna se constitua plenamente, ocorre, portanto, uma
uniformização e unificação de todas as práticas “curadoras” que existiam até o final do
século XVIII. Também se constrói um exclusivo saber a fundamentá-la: o
conhecimento médico sobre o corpo doente; conhecimento que à mesma época já se
havia reorientado na direção de único saber sobre as doenças.
Todavia, os movimentos de unificação e uniformização de saberes e
práticas, sob os quais se padronizam procedimentos técnicos, não seguem passos
idênticos em diferentes trabalhos sociais. É relevante considerar que é grande a
diferença entre a medicina e outros trabalhos manuais diretos, já que a medicina
unificará práticas de ofício com intervenções de caráter oposto ao técnico. Reunindo-se
as ações que os médicos – chamados “físicos” – desenvolviam na medicina da
sociedade feudal relativamente às doenças internas, com as ações sobre os danos do
corpo, exercida por outro tipo de trabalhador social que não o médico, o que se fez foi
unificar a prática essencialmente não interventora dos primeiros com a ação manual
direta destes últimos3. E isto implicou, por referência ao movimento unificador
mencionado, operações muito distintas das que se processaram em outros trabalho.
Para o trabalho manual em geral, à padronização do processo de traba
lho seguiu-se a alienação do trabalhador direto do controle sobre aquele
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 181 -
processo, quer na divisão deste em operações parcelares, erigidas em novos trabalhos e
atribuídas a outros tantos trabalhadores diretos, quer na desapropriação desse
trabalhador direto do conhecimento particular e próprio em que se fundava o trabalho.
Dupla ordem, pois, de alienação do trabalhador. No progressivo desdobramento de
partes de um mesmo processo de trabalho em outros trabalhos, perde o trabalhador,
que antes dominara o conjunto, a possibilidade de controle sobre o projeto de produção
do produto final,isto é, o domínio sobre a execução dos trabalhos. Esta passa a ser
propriedade de um outro trabalhador, um agente da produção que se estabelece
exatamente por causa das necessidades criadas pela progressiva segmentação do
trabalho. Trata-se do comando, da coordenação do gerente e administrador4. De outro
lado, simultaneamente, em um mesmo movimento que esse da divisão do trabalho, o
trabalhador direto perde também o controle sobre o saber que fundamenta seu
trabalho, objeto de seu monopólio anterior. Esse saber será ampliado, desenvolvido e
construído com outra qualidade. Trata-se da constituição do conhecimento científico
sobre os objetos de trabalho. E nesta qualidade de única detentora dos conhecimentos
sobre a natureza e sobre o mundo real, a Ciência será situada enquanto saber e não
mais um saber-fazer, passando a ser produção exclusiva dos trabalhadores intelectuais,
os que não mais operam diretamente as técnicas de transformação daqueles mesmos
objetos. Do artesanato à indústria capitalista, portanto, o trabalhador direto é alienado
de seu saber de ofício e desapropriado do domínio de sua arte.
Ora, a dinâmica particular da medicina constituiu-a com qualidades
bem diversas. Se o monopólio da prática técnica assentou-se na unificação
e uniformização dos procedimentos de intervenção, a esse monopólio
combinou-se aquele sobre o saber: os médicos são produtores diretos de um serviço e
simultaneamente intelectuais. Ademais, porque na medicina também o saber
separou-se de um saber-fazer, constituindo na Anatomia, na Fisiologia, na
Patologia etc... o conhecimento científico (ciências médicas) que rege a prática,
aquela combinação de monopólios viria configurar a medicina pelo
consagrado e curioso “sincretismo” que marca seu exercício, na noção de
ciência e arte de curar. Evidencia-se, pois, que o longo período em que a prática
médica “resistiu” a divisões progressivas do trabalho, e que se instalará de fato no
processo ulterior de especialização médica, foi o tempo histórico necessário para a
construção e consolidação social de sua própria marca peculiar, mediante a qual, ao
contrário da alienação do trabalhador direto em relação a seu trabalho, foi a prática
técnica que se revestiu da qualidade de trabalho intelectual. E com isso
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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os médicos garantiram que a mencionada combinação de monopólios ficasse mantida
no nível da prática técnica, no interior do ato médico, mediante o que garantiram para
si próprios constituírem-se em produtores diretos dos quais não seria possível alienar a
concepção e o controle dos processos de trabalho – quer no conjunto destes, quer em
cada ato individualmente. Desnecessário será dizer do prestígio e do valor social,
conseqüentes ao poder de autoridade intelectual e técnica, que os médicos então
conquistaram.
Examinemos os significados dessa condição de trabalho para a autonomia
de seu agente.
AS BASES DA AUTONOMIA NO MODELO LIBERAL
Os processos históricos e objetivos através dos quais os médicos
terminariam por ocupar posições privilegiadas na estrutura social foram objeto dos
diversos estudos já mencionados. A esse respeito não caberia neste texto exame
similar. Importa, porém, destacar o fato de que se o movimento de reorientação da
medicina implicou reconstituir em uma só prática formas de intervenção muito
diversas, desta diversidade decorreu também o fato de que uma parcela de seus
agentes ocupava, previamente às mudanças que ocorreriam com o capitalismo,
posições sociais de autoridade e poder. Pertenciam já à camada dos intelectuais
dominantes na sociedade feudal5. Além disso, ao se implantarem os Estados
Nacionais, a emergência do valor conferido ao controle sobre o coletivo-social resultou
na participação permanente de médicos nas questões do Estado, controlando quer o
meio ambiente e as cidades , quer o coletivo dos cidadãos, sem esquecer a manutenção
da força física dos exércitos. Os médicos, portanto, participaram diretamente da
construção das estruturas de poder que consolidaram o capitalismo, formulando e
implantando estratégias de construção da nova forma de vida social.
Provavelmente e até certo ponto, estas condições objetivas viriam facilitar a
aceitação das novas formulações dos médicos, assim propiciando uma reconstrução de
seus trabalhos que simultaneamente lhes garantisse as posições privilegiadas na
sociedade. É evidente que suportes mais substantivos decorreram da importância que a
medicina foi adquirindo como prática bem-sucedida, ao lidar efetivamente com a força
de trabalho em escala social, tanto através da reparação da capacidade produtiva das
pessoas, como também ao atuar sobre suas consciências, quando então
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Representações e prática - 183 -
adquire importância como prática produtora da coesão social, por instaurar disciplinas
normalizadoras da vida na sociedade6.
Fosse mais por um, ou por todos os motivos, o fato é que os médicos se
mantiveram em posições de destaque na sociedade enquanto operavam suas práticas
como “artesãos”, uma vez que conservaram o domínio e a apropriação individual de
um saber-fazer, bem como o monopólio da prática. Assim, desde a tomada de seu
objeto até a transformação completa deste em produto acabado, mesmo como
trabalhadores diretos, conseguiram manter-se no controle sobre seu processo de
trabalho. Controle que se estende até a seu objeto potencial, pois a posse deste, como
vimos, dá-se quando o paciente, ao demandar espontânea e livremente pelo serviço
profissional, aceita submeter-se totalmente ao ato criador do médico.
Logo, será com base nessas características objetivas que se constrói a
representação sobre o trabalho como “prática liberal”: livre, no sentido de ação de
homem livre. Imagem possível, sobretudo, pela forma objetivamente dada com que
este trabalhador comercializa seu serviço no mercado. Neste, submetido a relações
mercantis simples, o médico é produtor e também vendedor direto. Se dessa última
característica decorre, por exemplo, o fato de que seja o próprio médico a determinar
diretamente a remuneração de seu trabalho (preço com que comercializa seu serviço),
decorre também outra marca pela qual o trabalho aparecerá como “prática liberal”:
dispõe-se no mercado em regime de livre concorrência, pois pelo traço objetivo de ser
ato apenas concretizado após a escolha “livre” do paciente, constitui-se produção
individualizada de profissão consultante.
Todavia, trata-se de uma liberdade no trabalho e de uma livre concorrência
no mercado que apresentam características restritivas peculiares. Parecendo produzir-
se posteriormente a demandas e como que em resposta a uma solicitação, o cuidado
médico pareceria ainda mais livre em seu ato singular, não fosse o fato de que a hora e
a vez da produção seja definida pela própria medicina, uma vez que opções em
contrário estão socialmente fora de cogitação: “(...) deixa-se a cada um a ‘liberdade’ de
recusar a medicina e o médico, mas com o risco de cometer um suicídio ou um crime.
Derrisão da fórmula: ‘ a liberdade ou a morte’. Quem manteria sua provocação perante
a Ordem Médica? Seria loucura. E a loucura, ela também, está confiada aos médicos e
votada a ser ‘curada’,”7.
O consumo determina-se, portanto, no ritmo, na qualidade, na quantidade e
sob direção da estrutura assistencial que a ordem média impõe à clientela potencial,
mas que certamente não parece imposto por este ou aquele médico isolado e a quem,
individualmente, o paciente demanda.
Além disso, há uma outra restrição no significado de ato livre que a
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constituição “artesanal” do trabalho apresenta, tanto para o produtor quanto para o
consumidor da assistência média a qualificação específica que se atribui a cada um dos
vários serviços produzidos. Vale dizer, a maneira pela qual médico e paciente passam
a diferenciar os serviços, de tal modo que possa haver, de um lado, a concorrência, e de
outro, critérios de distinção para a escolha.
Relembremos que a questão da escolha ficará já posta, de saída, somente
para o interior dos serviços médicos, desde quando outras formas de prática “curadora”
foram progressivamente marginalizadas. Assim sendo, não há para o paciente acesso
possível a uma intervenção cientificamente fundada fora da “porta de entrada”
constituída pelo consultório médico. E, por conseqüência, a escolha do paciente, bem
como a diferenciação na oferta de serviços, se inscreve de imediato no âmbito de uma
complexa distinção ente iguais.
Ao mesmo tempo, reforçando a busca de descaracterizar-se enquanto
produtores “comerciais” de serviços, os médicos condenaram o uso de quaisquer
meios de promoção de venda ou indução de consumo. Austeridade e despojamento
nos atrativos exteriores à ação técnica, portanto, é o que marcará a apresentação do
serviço médico na sociedade, neste seu primeiro momento como prática moderna.
Partindo dessas referências, há a constituição de uma medicina que se
afigura também liberal na captação difusa da clientela, o que, por outro lado, não
significa ausência de fatores conformadores da diferenciação das práticas profissionais.
Estes fatores, contudo, deverão estar contidos na ação técnica, e apenas evidenciados
como parte necessariamente integrante desta, tornando a diferenciação do cuidado
médico e sua escolha um procedimento bastante crítico. É indicativo, nesse sentido, a
delicada questão ética (esteio, afinal, da igualação dos serviços) da qualidade de cada
cuidado produzido, pois o que terá que distinguir os atos médicos não será apenas seu
campo técnico de jurisdição, isto é, a especialidade médica a que se aplica, senão
atributos que permitem a escolha diferencial até mesmo no interior de uma só área
especializada da medicina: os médicos deverão ter, portanto, elementos que
diferenciarão seus atos sem perturbar a uniformidade da prática. Para captar essa
qualificação da medicina, detalhemos um pouco mais seu processo de trabalho.
Relembremos que no período históricos que vimos examinando,
essa uniformidade nos padrões com que se organizam os serviços, e que
dá a típica configuração homogênea da prática na medicina liberal, tem como
base a condição objetiva de ser o trabalho produzido quase que exclusiva
mente na dependência do saber, pois seu conjunto de instrumentos mate
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Representações e prática - 185 -
riais é ainda muito reduzido. Assim sendo, o ato médico funda-se sobretudo na
aplicação concreta que o médico fará do conhecimento científico, nisto elaborando um
saber clínico operante: o saber-fazer de seu trabalho.
Mas buscar compreender essa atuação, remete-nos para a discussão da
articulação entre a ciência e o trabalho na medicina. Esta não é uma discussão muito
simples, e um bom exemplo disso está na própria ambivalência do termo “medicina”
que recobre uma prática técnica (trabalho) e/ou um saber científico. Ocorre, porém,
que do plano da técnica, no âmbito do trabalho, ao do saber científico, o pensamento
médico realiza operações em que se vão abstraindo determinantes e componentes
importantes da realidade do primeiro à proporção este é processado no segundo. E isto
significa acarretar uma grande complexidade para o ato técnico.
Esse ato é produzido tendo por base meios que delimitam e transformam o
corpo doente com base em um conhecimento sobre doenças. Ora, essa passagem para
o plano do conhecimento teórico, em que a realidade do doente passa a explicar-se
como doença, implica operações de entendimento do real nas quais o modo de ser da
vida social deverá ser explicado e orientado por normas biológicas, apreendidas e
definidas pela ordem científica. Com isto se introduz na explicação científica uma
redução das múltiplas determinações sociais a uma razão natural, que omite as
diferenças e particularidades das situações sociais. No plano do trabalho médico, então,
como decorrência, produzem-se intrincadas questões por serem realizadas
intervenções no social com base no conhecimento do natural. Examinemos este
aspecto do processo de trabalho, considerando preliminarmente a própria construção
da ciência, isto é, as relações entre as concepções do saber científico e a base objetiva a
que se refere.
A ciência é um conhecimento sempre suscitado por uma demanda social,
pois, como nos diz Canguilhem, são os problemas da vida os incitantes do
conhecimento: “Ser doente é realmente, para o homem, viver uma vida diferente,
mesmo no sentido biológico do termo (...) a medicina existe porque há homens que se
sentem doentes, e não porque existem médicos que os informam de suas doenças. (...)
São os insucessos da vida que chamam – e sempre chamaram – a atenção para a vida.
Todo conhecimento tem origem na reflexão sobre um insucesso da vida. Isto não
significa que a ciência seja uma receita dos processos de ação, mas ao contrário, que o
progresso da ciência supõe um obstáculo à ação. É a própria vida, (...) que introduz na
consciência humana as categorias de saúde e de doença. Essas categorias são
biologicamente técnicas e subjetivas e não biologicamente científicas e objetivas”8.
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Representações e prática - 186 -
Mas se para o conhecimento tornam-se questões apenas as situações
socialmente reconhecidas como obstáculo ao viver, e portanto como necessidade de
intervenção, o que se espera desta apropriação é que a ciência tanto informe e funde a
intervenção, quanto supere o obstáculo na forma de uma resolução parcialmente já
dada nesse seu reconhecimento como um problema. Isso significa que o sofrimento do
doente suscita uma intervenção desde quando seja o adoecer um problema para a vida
em sociedade, tornando a situação quase lhe antecedeu um carecimento social. Para
satisfazê-lo, serão necessários conhecimentos e ações restauradoras, isto é, que possam
reinserir o doente em seu modo usual de vida. Pelas duas pontas do processo em que
se inscreve a ciência, portanto, é ela tensionada pelo social. E se pode distanciar-se
dele, resguardada como saber independente, tal como o faz, é porque esta sua
articulação com a realidade se dá intermediada pela intervenção propriamente dita, o
trabalho, do qual encontrou formas, ainda que sob autonomia apenas relativa de
separar-se.
Nas ciências médicas as doenças são categorias nosológicas representantes
dos diversos tipos de irregularidades anatômicas e funcionais do corpo, e foi por meio
delas que, às situações postas pelos doentes como impedimentos ao viver cotidiano, a
Patologia fez corresponder os elementos explicativos daquele viver impedido. Assim,
a ciência da medicina reconstruiu na doença a problemática do doente, operando uma
articulação entre a vida real e a ciência tal que os sofrimentos experimentados pelos
sujeitos sociais, e que na medicina estão presentes como subjetividades singulares,
encontraram nas estruturas do corpo humano as formas de sua objetivação e
generalização. Estas são, sobretudo, formas capazes de “naturalizar” esse objeto social,
apagando nesse plano as diferenças relativas às diversas situações do constituir-se
doente no conjunto da sociedade. Baseada em problemáticas sociais distintas, portanto,
a ciência vem formulando no conhecimento das doenças, um saber atinente a
quaisquer doentes. Universalizada, a prática médica transforma os doentes, nesta
dimensão em que os afasta do social concreto, em indivíduos socialmente iguais.
Além disso, com a ciência legitimou-se o conhecimento das doenças como a única
explicação para a realidade do doente, então invalidando socialmente outras formas de
explicação, as quais caracterizou como acientíficas, subjetivas e não-neutras,
exatamente porque não referidas de modo exclusivo ao natural.
A realidade do doente enquanto carecimento social “naturaliza-se”,
pois, como objeto do conhecimento: o sofrimento se reconstrói no corpo
doente ou corpo patológico. Será através dessa forma de apropriação na
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Representações e prática - 187 -
ordem científica e de sua função operativa posterior no processo de trabalho, que se
legitima socialmente a identificação do sofrimento do doente à noção de corpo doente
do doente. A partir daí, caberá fundamentalmente ao processo de trabalho conseguir
formas de resolução da realidade do doente em uma intervenção que se dê sobre o
corpo, com o que validará, em um só movimento, a si mesmo enquanto aplicação da
ciência e à ciência enquanto conhecimento verdadeiro e, por isso, exclusivo do real.
Será o médico, mentor e intelectual do trabalho, quem, portanto, deverá encontrar o
modo adequado de articular a normatividade social que determina a situação para a
qual irá restituir o corpo a ser recuperado, com a normatividade biológica que rege esta
recuperação.
A fim de que isto se realize, constitui base objetiva a peculiaridade o objeto
do trabalho médico. Diríamos mesmo que foi com base nas características desse
objeto, conjugado com a finalidade desse trabalho, que seus agentes lograram construir
uma tal ciência e de tal forma vinculada ao ato técnico que terminou por caracterizá-lo
como essa espécie de intervenção vista como um trabalho essencialmente intelectual,
mesmo quando viesse a desenvolver atividades manuais tão importantes.
O fato particular de que materialmente seja o mesmo, no corpo doente, tanto
o que se apresenta enquanto necessidade social para o trabalho médico, quanto o que
configura o objeto do conhecimento, e ainda o que é objeto sobre o qual se operará a
intervenção, faz parecer que sejam idênticas as diferentes demandas inseridas nas
situações de corpo doente do doente, corpo doente do médico e doente sujeito social.
Será também este mesmo fato particular que possibilitará ao agente, no processo de
trabalho, atuar respondendo simultaneamente à ciência e ao social. Vejamos como
tudo isso se coloca neste plano de trabalho.
Respondendo à necessidade de especificar sua ação como técnico-científica,
o médico “processará” o doente que lhe chega por meio de uma aproximação que o
transforma numa estrutura objetivamente patológica, o corpo patológico. Os meios
para consegui-lo o médico os encontrará nos instrumentos de anamnese, exame físico,
recursos complementares diagnósticos e terapêuticos, os quais se dispõem como
instrumentos universais. Disso decorre o padrão uniforme do ato médico, o que, é
claro, diz respeito aos passos metódicos de elaborar o diagnóstico e projetar a
terapêutica, cujos conteúdos específicos variam, tecnicamente, em função das
modalidades patológicas.
O aspecto mais relevante dessa uniformidade está no fato de que, na
conformação aparente da técnica, os serviços parecerão absolutamente iguais,
com o que a prática médica irá corresponder a seus determinantes
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 188 -
sociais: igualitariamente, em certo sentido, operar os objetos de intervenção, tal como
definido na ordem capitalista9. De outro lado, porém, há que, ao mesmo tempo,
responder a esses mesmos determinantes, diferenciando os objetos entre si, ao operá-
los. Trata-se da re-produção que também se exige das ações sociais no capitalismo: a
contínua reposição do desigual, reposição das disposições diferenciadas dos
trabalhadores na produção social, reproduzindo as classes10
. Se são diferentes as
situações sociais de vida que produzem os indivíduos doentes concretos, será às
necessidades de mesma forma diversificadas, em substância porque em origem, que a
medicina deverá responder. Os médicos, portanto, simultaneamente deverão operar no
objeto, a desigualdade e a igualdade.
Da perspectiva dos procedimentos técnicos, essa simultaneidade irá
significar, de um lado, o doente”naturalizado”, processo que se opera pelos
mencionados meios de trabalho, culminando com a classificação diagnóstica e com a
correspondência a um plano terapêutico derivado dessa mesma classificação. Nestes
procedimentos, como dissemos, a Clínica ocupa posição de relevo.
De outro lado, contudo, há que se produzir um cuidado médico adequado ao
sentido concreto da demanda do doente, como que construindo nos mesmos
movimentos de elaboração reflexiva a inserção social do objeto de prática já no objeto
“naturalizado”. Para tanto, as normas biológicas que definem os limites do normal e do
patológico serão tomadas pelos médicos já dispostas e conformadas socialmente,
quando formulam no dia-a-dia de sua prática um diagnóstico e uma terapêutica
concretos: “(...) o corpo como objeto da prática médica não se esgota em sua dimensão
anátomo-fisiológica. (...) É no conjunto complexo de relações que mantém com
elementos externos a ele que o corpo se elabora e reelabora, de maneira tal a só
realizar-se, mesmo como estrutura anatômica e fisiológica, através das qualificações
ou determinações que adquire no plano da exist~encia material e social. É inicialmente
neste sentido que a medicina não se dirige a um objeto permanentemente homogêneo,
embora apreenda essa diversificação e atue sobre ela ao nível da espacialidade de cada
corpo individual.”11
A capacidade da medicina de reunir em só ato técnico esses dois
planos de determinação, e que lhe valeu historicamente a trajetória bem
sucedida com a qual se reordenou no capitalismo, correspondeu à recons
tituição dos meios de trabalho do médico. Nesse sentido, é relevante o fato
de que por referência à delimitação e tomada do vivido singular do doente,
o médico já dispunha, enquanto realidade objetiva prévia a medicina mo
derna, dos meios técnicos competentes: o instrumento da anamnese. Como
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 189 -
confissão e relato de história de vida, esse instrumento de comunicação na relação
médico-paciente recobria as situações sociais de vida do doente mesmo antes da
reorientação da prática. Esta, porém, virá produzir outra concepção de social, de
história pessoal de vida e até de confissão. Aliás, pela qualidade diversa que então
adquirem tais termos não poderíamos, a rigor, tomar como um igual instrumento
técnico a anaminese da medicina moderna e quaisquer outras, aparentemente
similares, de existência histórica anterior.
O estabelecimento da clínica como método de investigação da doença no
doente faz necessariamente da anamnese um instrumento mais ativo, no sentido
positivo da investigação, e recoloca seus procedimentos técnicos para a localização da
lesão, como fonte de construção da irregularidade do corpo doente no diagnóstico da
doença. Essa reordenação, que se inicia na anatomoclínica, como mostra Foucault,
altera completamente os conteúdos e sentidos de falas prévias: “O aparecimento da
clínica como fato histórico, deve ser identificado com o sistema destas reorganizações.
Esta nova estrutura se revela, mas certamente não se esgota na mudança íntima e
decisiva que substitui a pergunta ‘O que é que você tem?’ , por onde começava no
século XVIII o diálogo entre o médico e o doente, com sua gramática e estilos
próprios, por esta outra em que reconhecemos o jogo da clínica e o princípio de todo
seu discurso: ‘onde lhe dói?’.”12
Além disso, à busca da localização topográfica da lesão no corpo sucede
uma orientação preponderantemente processual, em busca da irregularidades
fisiopatológicas, e a esta, uma busca de causas, na etiopatologia do processo mórbido,
de modo que ao início do século XX a três vertentes de explicação da doença se
apresentam no método clínico13
e irão conferir outra complexidade à anamnese. Mas
apesar de todas as alterações, enquanto forma geral dialogada de obter ou prestar
depoimento, a anamnese segue sendo instrumento útil.
Em razão deste aspecto aparente de permanência histórica de certos
elementos tão fundamentais para o médico, como no caso da anamnese, muitos
cientistas e historiadores da medicina irão interpretá-la como prática anistórica por
referência à história social. Longe de aderir a essa concepção, o que queremos salientar
apenas consiste no fato de que para a situação específica da medicina a antiga prática
da anamnese (confissão) viria facilitar a tarefa de apropriação e controle do social, ao
permitir a subsunção deste no natural exatamente por seu intermédio, agora
transformada em inquérito.
Para tanto, a revolução da medicina moderna, por meio da clínica ana-
tomopatológica, comporá elementos de natureza técnica com a prática da
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Representações e prática - 190 -
confissão pessoal. Nesta nova abordagem do doente aparecerão como fatores
dominantes quer o exame físico do corpo, quer, na anamnese, o interrogatório. Assim
serão articulados aos componentes da vida social os da ordem natura. Estes últimos
“naturalizam” os demais, servindo enquanto referências objetivantes do sofrimento do
doente. Assim sendo, será através dessa reconstrução do subjetivo no objetivo que as
informações adquirirão estatuto científico. Serão consideradas, então, dados empíricos
observados cientificamente, e não mais apenas “sensações pessoais”. Tem-se nesses
procedimentos, menos os sofrimentos dos doentes que fatos patológicos: “(...não são
mais a dor ou a incapacidade funcional ou o distúrbio fisiológico. (...) Não é mais pela
dor que a doença é definida, é como doença que a dor é apresentada.”14
Não se pode desconsiderar, ademais, que como parte da mesma realidade
histórica encontram-se articuladas às reordenações “internas” do saber médico,
transformações mais gerais, as quais servem, ao mesmo tempo, de fundamento e
legitimação social dessa nova forma com que a clínica anatomopatológica se aproxima
do doente. Trata-se da possibilidade aberta pela razão positiva de se interpretar a vida e
o normal pela doença, pela morte e pelo patológico; como também, sobretudo, de se
interpretar a vida social pelas experiências singulares, mediante o que a medicina
poderá passar a normalizar o social com base no que conhece enquanto ocorrências
individuais, e a disciplinar a vida com base em um saber sobre as doenças.
Este são processos intelectuais constituintes do amplo e complexo
movimento de construção de uma nova epistemologia, no qual se encontra a produção
do conhecimento médico e através do qual também o viver e o sofrer humanos
encontram uma razão e um método que viriam a ser, no sentido de constituir parte da
ciência moderna, o seu específico modo adequado de produção de verdades. Não é
pertinente no presente contexto examinarmos o estabelecimento da racionalidade
científica moderna. Contudo, há no movimento que encerra tal construção, por
referência à seleção e apropriação reflexiva de dimensões do real, alguns aspectos
relevantes na direção da qualificação/desqualificação do social e do subjetivo singular,
no que portanto se vincula às questões ora consideradas acerca da prática médica.
Devemos, então, ainda que sumariamente registrá-los15
.
O modo pelo qual o conhecimento médico chegou a estruturar-se em
uma explicação de qualidades tais como: explicação que evidencia a lei
geral; que parte do fato objetivo individual; que se expressa quantitativa
mente; e que progride ao longo do tempo – mediante o que adquiriu as
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Representações e prática - 191 -
características de razão positiva –, dá se no mesmo movimento pelo qual a razão na era
moderna buscou ordens de sentido, explicações sobre a vida, que historicamente se
articulam com uma emergente questão social: o progressivo domínio e intervenção do
homem sobre o mundo real. E a lembrança dessa inserção, ora pertinente na
perspectiva da medicina, reside na importância de situar a raiz e o tempo históricos de
alguns de seus parâmetros explicativos. Este é o caso do fato de que as noções e
conceitos presentes no saber médico antes do século XIX são as de racional, natural,
social, vida, saúde e doença, sendo apenas a partir desse século que as noções de
normalidade, patologia, equilíbrio e desvio se estabelecem. A articulação desse
processo com o pelo qual passa a prática técnica evidencia-se no dado histórico de que
a transformação completa da medicina em uma prática derivada da disciplina das
doenças não se verifica senão já em pleno século XIX.
Em outros termos, do indivíduo ao organismo patológico, enquanto forma
objetivante de aproximação de uma necessidade social dada (o sofrimento), decorre
prolongado período de amplas transformações e que se desdobrará em outras tantas, ao
longo do século XX, até chegar ao nível do celular e deste ao molecular, tal como se
verifica na explicação científica dos tempos atuais. Além disso, a lembrança dessa
inserção da medicina no processo geral formador do pensamento científico deriva do
fato de que a medicina participa, e mesmo com contribuições relevantes, do
deslocamento que muda da ordem divina para a ordem natural o núcleo imperativo
que confere sentidos e significados à realidade.
Esse deslocamento, nada simples, implicou, para a dessacralização da
natureza, um momento intermediário de centralização no humano: na progressiva
desqualificação do divino, o pensamento científico desloca-se do valor dado ao
transcendente para o valor dado ao homem, e, deste para o valor dado ao natural. E se
a individualização do homem por referência ao divino significou uma cisão da
totalidade até então concebida (Deus-homem-natureza), no posterior processo de
ruptura, entre a natureza e o homem, viria a racionalidade moderna segmentar a
própria totalidade do homem, “separando” e “purificando” a razão de outras formas de
exercício da subjetividade, como os sentidos, os sentimentos e as paixões:
“A racionalidade moderna pode, assim, ser vista como tentativa de instaurar
um pan-racionalismo, tanto na ordem do objetivo (‘Natureza”, ‘mundo’,
‘coisas’) como na ordem do sujeito (‘homem’). Do ponto de vista
do sujeito, entretanto, esta tentativa terá como efeito histórico a ruptura
mais significativa da racionalidade moderna: a ruptura do próprio sujeito de
conhecimento, seu estilhaçamento em compartimentos: razão, paixões, sentidos e
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Representações e prática - 192 -
vontade. Ruptura que não é apenas epistemológica, mas social e psicológica, na
medida em que instituiu instâncias socialmente exclusivas para o exercício de cada um
desses compartimentos: a produção de verdades para a razão (ciência); as paixões para
a política e para a moral (ética); os sentimentos e os sentidos para as artes (estética).
Esta compartimentação terá o efeito de ‘negar’ socialmente o sujeito humano e
‘neutralizá-lo epistemologicamente, criando condições históricas para torná-lo, como a
Natureza, objeto e ciência...”16
.
É nesse processo que a doença foi o objeto de conhecimento que se fez, no
saber, o equivalente do sofrimento humano enquanto problema da vida social,
encontrando este sofrimento socialmente dado, na figura do doente individual, sua
determinação como necessidade social colocada (e já reposta) para o trabalho médico.
Da perspectiva da delimitação e construção da necessidade como objeto de trabalho, a
anamnese e o exame físico, assim como os equipamentos e aparelhos médicos que
adiante surgirão, são os meios depuradores da a paixão e dos sentimentos, e que
armam os sentidos para transformá-los em instrumentos de observação objetiva e
“científica” do que a sensação perceptiva primeira. No interior desse conjunto, porém,
se o exame físico e os equipamentos diagnósticos são nítidos balizadores da ordem do
natural, a anamnese assume um sentido mais complexo. Isso porque ela é o
instrumento por meio do qual se introduzem experiências vividas, situações de vida
social, por meio do discurso vivo do doente. E mesmo que seja instrumento de
transformação desse discurso, mobilizando-o e reorientando-o ao requalificar ou
redispor seu conteúdo em busca dos signos da doença, a anamnese concretamente
opera a própria “licença” técnica da “invasão” do social no ato médico.
Assim sendo, se a “naturalização” do social no corpo doente significou
a conquista da razão moderna na tomada do sofrimento humano enquanto
problemática, também determinou o fato de que o trabalho médico fosse
estruturado como relação interindividual, evidenciando que este movimento
progressivamente individualizante de apropriação do real é parte do mesmo processo
de sua objetivação científica. Na medicina isso representa não apenas o deslocamento
do sofrimento do doente para o corpo patológico e não apenas, no mesmo
procedimento, aplicar-se sempre a indivíduos singulares, senão aplicar-se
progressivamente a segmentos cada vez mais restritos da totalidade orgânica. A
relação interindividual, que já pertencia à prática sobre doentes na sociedade feudal,
deverá manter-se, portanto, na medicina moderna: ao mesmo tempo transformada, da
confissão para a investigação positiva, como vimos; ao mesmo tempo preservada,
nesta qualidade mais geral de relação exclusiva e privada entre dois per-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 193 -
sonagens. E se esta “exigência” da racionalidade moderna seria mais facilmente
satisfeita pelas características históricas da prática dos médicos, para eles esta
preservação da consulta como unidade de produção do trabalho representou outras
duas conquistas fundamentais antes mencionadas; responder às novas exigências da
ordem social, na reprodução da igualdade tendencial e desigualdade efetiva das classes
sociais, e simultaneamente manter-se na categoria de trabalhador essencialmente
intelectual na sociedade.
Relativamente à técnica, isto equivale a dizer que se faz necessário, por
referência a uma ordem histórica e socialmente dada, que o médico, como mentor do
processo de trabalho, dispusesse de uma forma de aplicação do saber clínico científico
tal que pudesse reconstruí-lo em uma “clínica social”, e, assim, constituir um saber
operante carregado de todas aquelas “exigências”. Sem dúvida, a inserção do médico
no processo de trabalho que lhe permite esta maleabilidade, isto é, ter relativa
autonomia técnica prática, encontra na autonomia do mesmo médico, por referência ao
mercado de trabalho, sua forma de organização social adequada: enquanto autônomo,
fazendo coincidir no agente do trabalho, trabalhador direto, o produtor e o
“comerciante” pôde o médico concretamente exercitar a capacidade de processar
tecnicamente seus doentes, diferenciando-os entre si através de atos desiguais, mas
conformados a uma mesma maneira aparente de proceder, estabelecendo-a, ainda,
como competência exclusiva e pessoal, o que lhe garante o monopólio de saber e de
prática.
Eis aqui como historicamente se conectam os aspectos de prática liberal com
os de técnica moderna, e porque a medicina que assim se constrói deve constituir-se
nessa forma “artesanal” da produção dos serviços. Nisso se apóia a criatividade
singular que esse trabalhador desenvolve por meio da experiência clínica concreta e
individual, enquanto saber clínico de base social. Trata-se, nesse sentido, de ato
criador; uma arte que não se ensina, e sobretudo, não se reparte, porque não terá
jamais, e por essência técnica, caráter universal. Assim sendo, não é por sua ciência,
mas por sua arte, que os médicos se tornam produtores distintos entre si, embora
devamos lembrar sempre que essa dissociação entre momentos de ciência e de arte é
apenas nosso recurso analítico, pois são eles, como vimos, aspectos interligados na
prática concreta, mesmo sendo polares.
É com base na singularidade da arte que os médicos podem
apresentar-se como oferecendo serviços de mesma eficácia científica, mas
constituindo eficácias operatórias concretas diversas. E será por meio dessa
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 194 -
qualidade que também os doentes formularão critérios de escolha, aprendendo a
diferenciar no concreto o que no pensamento se faz representar como uma prática
sempre igual, isto é, desempenhos qualitativamente iguais. A esse respeito, aliás, há
que se ponderar duas questões. Do ponto de vista da ciência, a situação singular de
doente individualizado supõe a particularização de um geral, de forma que na
aplicação técnica se possa conceber inalterada – e portanto sempre igual – sua eficácia
de ação. Em outros termos, a adaptação da ciência à prática implicaria a manutenção
da eficácia científica e contornar os impasses que surgem nesse plano do concreto
aparece como uma das principais tarefas do médico. É desse modo que as falhas
terapêuticas poderão parecer independentes da eficácia científica, que então será
preservada, e dirão respeito àquela dimensão de “adaptação”, daí que a capacidade
individual em fazê-lo passe a atingir, tornando desiguais, os médicos, não a medicina.
É claro que isso também se articula à existência de meios mais ou menos objetivos de
avaliação de eficácia. Aponta-se aqui para o fato de que a presença da arte de certa
forma e até certa medida preserva, na representação ideológica, a autoridade do saber
médico, do que decorrem possibilidades de insucessos sem que isso necessariamente
abale a competência da ordem médica, e até mesmo a competência do próprio médico.
A base fundamental de coerência dessa representação está dada na
concepção de “arte” e “ciência” como realidades em si mesmas distintas, autônomas
entre si e que seriam compostas no trabalho pelo médico. Um primeiro efeito dessa
ideologia, como se viu logo acima, é o de preservar as ciências médicas de todo
questionamento vinculado à sua aplicação, já que esta só seria possível através do
imponderável dote artístico pessoal do médico. A segunda observação a fazer tem
sentido de certa forma oposto e complementar: preservada por sua relativa autonomia
por referência à arte dos questionamentos que pudessem atingi-la, ignorando essa sua
peculiaridade de não ser uma arte qualquer, mas uma “arte científica”.
Sintetizando esse conjunto de considerações acerca da construção
da autonomia, podemos dizer que a autonomia profissional dos médicos foi
a forma historicamente necessária para a constituição da prática médica na
sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, a forma socialmente adequada
para a reprodução da situação de seus agentes na posição de destaque
que ocupam nessa mesma sociedade. Ao ser tensionada por movimentos
que impliquem novas contradições, como quando da especialização do
trabalho, a autonomia virá configurar-se sempre como problema vital para a
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Representações e prática - 195 -
profissão, seja na perspectiva de ser mantida com todas as suas qualidades de origem,
seja ao ser reordenada para o controle sobre o processo de trabalho, sendo virtualmente
retirada, então, do controle sobre a forma de organizar socialmente a produção dos
serviços.
A MEDICINA TECNOLÓGICA E A RECONSTITUIÇÃO DA AUTONOMIA.
Cabe aqui demarcar mais precisamente o processo pelo qual passa o
trabalho médico que designamos especialização. O termo usualmente nomeia tanto a
repartição do conhecimento em ramos parcelares do saber quanto o processo de
divisão técnica do trabalho, posto que o pensamento médico toma a segunda condição
como produto da primeira. Neste estudo tomaremos privilegiadamente o âmbito do
trabalho como significativo na constituição do saber e da prática especializados. Além
disso, tomaremos o processo enquanto consistindo de transformações referidas à
constituição de trabalhos parcelares e à presença maciça de tecnologia material,
dimensões articuladas e simultâneas, cuja análise inicial, individualizando-as, busca
apenas desfazer a separação artificial que o próprio pensamento médico realiza entre
ambas.
Consideremos, em segundo lugar, que a especialização é um processo no
qual além das duas dimensões acima referidas participam todas as demais articulações
sociais do trabalho médico, algumas das quais poderíamos talvez evidenciar melhor a
partir de outros ângulos de aproximação. Contudo, a escolha da divisão do trabalho e
da “tecnologização” da prática permite-nos trabalhar exatamente o tensionamento da
posição de autonomia e sua reconstrução da perspectiva “interna” do ato técnico, ao
ato enquanto processo de trabalho. Trabalhá-los, então, como resultado e movimento
conexo à reorientação da apreensão do doente, ao se redimensioná-lo como objeto de
trabalho. A especialização significa-nos, portanto, antes de tudo nova delimitação do
objeto de intervenção do médico.
Em terceiro lugar, observemos que a homogeneidade da categoria
profissional perde-se, relativamente, com a especialização, pois alteram-se as
posições na estrutura social dos diversos agentes de trabalho, ao dividir-se este
trabalho e assim gerar posições mais ou menos intelectuais. Essa redistribuição
implicará necessariamente perda de parcelas de poder, isto é, possibilidades
distintas de participação: os médicos irão dividir-se em agentes mais
ou menos mentores da modalidade de desenvolvimento das forças produtivas
de seu trabalho, uma vez que essa participação escapa
progressivamente ao âmbito do plano pessoal, passando para os planos
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 196 -
tidos como exteriores ao núcleo técnico de suas práticas. Basta, por exemplo,
tomarmos as políticas empresariais de inovação de tecnologia material no nível das
indústrias de equipamentos ou da indústria química farmacêutica. O fato de que restem
ainda sob a guarda do monopólio médico as posições de comando nos centros de
pesquisa industrial já não tem mais o mesmo sentido do monopólio configurado em
domínios individuais dos médicos. A relação entre a ordem médica e o conjunto de
seus agentes tem agora qualidade muito diversa da que antes examinamos.
Por conseqüência, de um lado, o domínio e, de outro, a responsabilidade
sobre as possibilidades concretas de demarcação pessoal da autonomia profissional
também se dispõem diferencialmente para os distintos tipos de inserção do médico no
processo de trabalho. Isso produz uma tomada de consciência diversa entre os médicos
acerca dessa história da especialização: para alguns, são eles tão “perdedores” quanto
os doentes, por comparação com a ordem anterior, assim como não se sentem
criadores ou responsáveis pela mudança*. Ao contrário como vimos nos depoimentos,
representam a si próprios como sofrendo os efeitos de alterações “impostas”, ao menos
no que diga respeito ao conjunto todo de repercussões no trabalho médico que se
articula ao desenvolvimento científico-tecnológico. Essas repercussões configuram um
outro modo de organização da medicina moderna, que se aproxima mais das
características do trabalho empresarial.
Difícil será dizer sucintamente o que muda neste outro trabalho médico, uma
vez que todos os elementos que o compõe se reconstituem em novas estruturações,
ainda quando algumas das formas de produção dos serviços continuem apresentando
expressão mais imediata próxima à configuração anterior. Assim, por exemplo,
aparentemente persistirá a modalidade de “pequeno produtor individualizado”17
,
como é o trabalho do consultório privado; ou, então, no mesmo sentido parece
persistir a configuração do ato médico sob a forma da mesma relação
interindividual, através da permanência formal da consulta médica como
unidade de produção. Dadas as mudanças nas relações de trabalho do médico,
porém, nem a “medicina de consultório” terá o mesmo significado da antiga
prática isolada, independente e liberal, como tampouco terá o mesmo sentido a nova
consulta. São outras, agora, as formas de propriedade dos meios de produção. A
* Evidências dessas considerações situam-se na própria disposição diferencial dos médicos
relativamente aos valores mais tradicionais do ideal de trabalho e aos valores mais modernos,
no que se distribuem em distintas correntes de pensamento médico por referência à definição
de um ideal de autonomia.
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Representações e prática - 197 -
posse dos instrumentos materiais, quando se der o aumento e a diversificação desses,
não poderá ser totalmente mantida; mudarão também as condições de propriedade e
demarcação dos espaços físicos, que já não serão só os do consultório, mas também o
do hospital, que sendo cada vez mais importante para a prática, deixará de se dispor
apenas como prolongamento do primeiro18
, mudará a qualificação técnica do médico,
diversificando-se em tipo, abrangência e profundidade; mudarão os modos pelos quais
o paciente integra esse processo para constituir o objeto do trabalho. Este conjunto não
pode senão constituir distintas formas de articulação entre os componentes do processo
de trabalho, implicando mudanças na ação, no volume de produção e no tempo gasto
por unidade de trabalho realizada, não sendo, certamente, nenhuma das modalidades
obtidas identificáveis à mesma consulta do modelo tecnológico anterior.
Da perspectiva das relações entre produtores e consumidores de serviços,
por sua vez, constituem-se novas formas de inserção do médico e da clientela: nem
sempre a produção desses serviços estará na dependência direta e exclusiva do médico
e a atração da clientela institucionaliza-se sob formas distintas de captação, redefinindo
tipo, volume e aderência dos pacientes aos médicos individuais e reorientando em
vários sentidos a relação médico-paciente.
É evidente que através dessas mudanças também o modo de inter-
relacionamento dos profissionais viria a ser profundamente alterado. Já não se verá
uma “cooperação entre iguais”, como a que se dá entre aqueles produtores isolados e
independentes no modelo anterior, cuja designação melhor seria a de “colaboração”,
dado o sentido mais orientador, assessor ou de aconselhamento que se inscrevia nas
formas de combinação de trabalhos parcelares para a produção de um mesmo cuidado.
A “junta médica”, que vimos, não configurava ações necessariamente
complementares e dependentes, o que será típico da medicina tecnológica.
Nesta tratar-se-á, de um lado, com base na divisão progressiva do trabalho,
de uma cooperação obrigatória e, de outro lado, uma cooperação entre desiguais, seja
em conseqüência da divisão do trabalho que separou certas partes daquilo que só o
médico realizava e constitui “profissões” subordinadas ao trabalho médico, tal como a
enfermagem; seja na repartição entre trabalhos médicos mais e menos especializados,
dado que nessa repartição se criam autoridades e distintas de saber, valorizadas técnica
e socialmente de modo diverso.
O estabelecimento desse modelo representa, portanto, alterações na prá-
tica médica tanto do ângulo da técnica quanto do ângulo da organização
da produção e da distribuição dos serviços na sociedade. Desta última
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Representações e prática - 198 -
perspectiva, significou aumento e diversificação da produção, em um movimento que
também é de extensão de cobertura à população.
Através da crescente incorporação de equipamentos materiais à prática
médica, também se verificou uma diferenciação do padrão financeiro necessário à
constituição de unidades de produção. Assim, surgem graus diversos de concentração
dos recursos financeiros, demarcando unidades mais ou menos amplas de produção. À
proporção que a nova tecnologia exige tendencialmente cada vez mais recursos, o
produtor de consultório privado não consegue manter-se mais de forma independente
e isolada dos mecanismos sociais que virão dar conta dos custos crescentes. Essa
medicina tecnológica, portanto, também representará a penetração do capital privado
para nela ingressar, da mesma forma como ocorre com a capitalização de outros ramos
da produção, haverá, nas distintas formações sociais, modos particulares de realização
do capital: maior ou menor presença do Estado como produtor direto e/ou como
financiador de produtores e consumidores; maior ou menor viabilização de pequenos
produtores privados, constituindo empresas médicas, independentes ou sob a
intermediação de seguros-saúde privados.
Isto tudo irá significar para o médico produtor direto, em sua relação com a
clientela, a presença de intermediários: o Estado, a empresa médica, o seguro-saúde.
Assim sendo, também o pequeno produtor do consultório vincula-se aos mecanismos
institucionalizados de captação da clientela, através dos chamados credenciamentos ou
convênios com aqueles intermediários mercantis. O médico não só perde o controle
sobre a clientela, mas se envolve com duas outras alterações relevantes: primeiro, uma
subordinação da remuneração do trabalho às condições concretas com que o
comercializa, as quais são mutáveis para cada situação estabelecida, havendo, pois,
diferenciação no tipo e valor de remuneração do trabalho e sobre a qual o médico não
necessariamente opina; em segundo lugar, separação desse médico produtor direto de
seus meios materiais de trabalho, separação que será variável, com possibilidades de
perda total ou parcial da posse dos instrumentos, para a instituição que organiza a
produção de seu trabalho.
A capitalização terá por efeito, assim, diferenciar as instituições produ-
toras de serviços dentro de certos limites tecnicamente demarcados, e va-
riáveis, obedecendo à lógica de suas próprias necessidades de acumulação,
com o que afasta o médico do controle total da produção do trabalho. De
modo distinto, mas podendo responder a critérios gerenciais análogos de
otimização de recursos ou a critérios diretamente político-sociais, a esta-
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Representações e prática - 199 -
tização igualmente disporá a organização social da produção da assistência médica em
padrões que escapam do controle do produtor direto. Com isso, capital privado,
empresa pública e políticas de saúde regulamentarão a inserção do profissional no
mercado de trabalho, quer através das práticas especializada concretamente absorvida,
quer através do tipo de vínculo estabelecido entre o médico e a instituição.
A polarização tendencial entre as especialidades gerais e as áreas de
subespecialidade, da mesma forma como a polarização entre assalariamento e
propriedade, permeia-se de uma gama variada de situações nas quais o médico
produtor direto detém, individualmente, graus diversos de efetivo controle sobre sua
técnica. Em seu conjunto, de outro lado, também a categoria profissional se encontrará
desigualmente presente na formulação das políticas de saúde, das políticas públicas de
administração institucional ou das políticas empresariais do capital privado, embora a
elas devam adequar-se todos os médicos produtores diretos.
É desse modo que em contraste com o modelo anterior o peculiar do atual
não está só em ter mudado o padrão da prática, mas em tê-lo feito por meio da
institucionalização das diferenças e das desigualdades, formalizando os mecanismos
de diversificação da produção dos serviços e legitimando a constituição de práticas
distintas. Se há, portanto, uma característica uniformemente presente nesse modelo, ela
reside na profunda heterogeneidade que se instala na medicina, relativamente à
produção institucional dos serviços e à dimensão técnica da prática. Mas essa
diferenciação técnica interna não se dá, como supõe o pensamento médico, enquanto
decorrência exclusiva de uma “inserção” diferencial das práticas profissionais em
instituições diversas. E embora decorra da atual diversificação técnica do saber e dos
instrumentos materiais, também não resulta exclusivamente disso. As transformações
dos serviços expressam, na realidade, um conjunto articulado de mudanças, “internas”
e também “externas” à técnica, muito mais complexo.
O trabalho especializado tem no objeto de intervenção que toma –
enquanto parcela da totalidade orgânica individual para uns, e enquanto
nova totalidade orgânica para outros – um outro objeto, relativamente ao anterior, e
que já não é um único para o conjunto da prática médica. Em outros termos, se é bem
verdade que na aparência primeira é apenas o acúmulo de tecnologias materiais que
chama a atenção para esta nova medicina, manter ao nível dessa característica a
representação das transformações havidas faz obscurecer o reconhecimento de
outras transformações correlatas: a redefinição do processo de intervenção, que
leva à superação da clínica como meio básico de trabalho; e o redimensiona-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 200 -
mento da consulta como unidade de produção. Assim, sem querer negar a importância
primordial na determinação do processo histórico configurada nos instrumentos de
trabalho, o que nela se verifica será expressão de um só e mesmo processo, em que os
instrumentos se articulam com outras ordens de realidade, à quais ao mesmo tempo
correspondem e às quais também explicam.
Consideremos o que representa, nesse sentido, a presença da tecnologia
material. Essa tecnologia produziu transformação radical no processo de trabalho em
três direções complementares e parcialmente superpostas: em primeiro lugar, os
efeitos sobre as relações sociais dos agentes de trabalho, que se transformam à
proporção que os custos desses equipamentos modificam suas possibilidades de
apropriar-se deles, como ocorre por exemplo no assalariamento enquanto relação de
trabalho; em segundo lugar, devemos considerar que o desenvolvimento de
equipamentos estende e leva às últimas conseqüências, de modo coerente, a
racionalidade clínica, antes sustentada quase exclusivamente no saber, radicalizando a
medicina como trabalho ultratécnico e tendencialmente impessoal; em terceiro lugar,
devemos enfatizar que essa autocorroboração da racionalidade clínica sob formas
progressivamente “mais objetivas”, multiplica seu poder correlato de re-produzir, para
o espaço da sociedade, as ideologias que apreendem e explicam a saúde e a doença
como fenômenos individuais e naturais, por exemplo induzindo a noção de saúde
como questão essencialmente de consumo, de bens e de serviços.
Introduzindo por meio da clínica anatomopatológica, o caráter científico da
intervenção funda-se desde o começo na busca de modos progressivamente mais
objetivadores do processo de trabalho. Ora, se de início, dada a escassez de recursos
materiais, a racionalidade que regia a aplicação do conhecimento científico apoiava-se
fundamentalmente no exercício pessoal do médico, é óbvio que os instrumentos
criados funcionaram como fiadores de graus maiores de objetividade, por não
dependerem aparentemente do sujeito. Isso foi entendido como se apenas agora a
medicina se tornasse científica, quando no fundo, como já discutido em outro
momento, a racionalidade é exatamente a mesma, de fato variando a “produtividade”
de sua aplicação.
Esta qualidade de pertencerem à ciência moderna tanto a medicina
liberal quanto a medicina tecnológica não é algo, porém, facilmente reconhecido.
Isso porque, de um lado, é bem verdade que exatamente em ração desse
fundamento na ciência moderna constituiu-se tão pleno o exercício da
subjetividade do médico no modelo liberal, e a ação técnica ficou estabelecida
– como projeto e execução – tão sob o controle de cada
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Representações e prática - 201 -
médico individual. Afinal isso possibilitou a reconstrução da ciência geral na situação
particular de cada caso. Mas também é verdade, por outro lado, que este modo de
realizar a razão médica, por implicar uma aproximação do doente assentada neste
plano pessoal e mais subjetivo, implicou regular a prática por critérios de avaliação
igualmente subjetivos e pessoais, restando para a medicina a desconfortante situação
de apresentar-se como prática técnico-científica controlada por critérios muito pouco
objetivos, como demandaria aquela mesma racionalidade da ciência. E a avaliação de
base subjetiva estava presente desde a demanda pelo cuidado médico, no julgamento
do doente que reconhece seu sofrimento ou desconforto como necessidade a ser posta
para o trabalho médico, até a finalização da prática, quando significava na avaliação
pessoal do doente o desaparecimento do que sentia.
Cabe aqui um parêntese, pois tanto a dimensão subjetiva quanto a
individualização que envolvem o ato médico, mesmo que a primeira venha a ser
atenuada pela presença da tecnologia material, produzem uma forma muito específica
de avaliação desse trabalho. A “incerteza” que envolveria a intervenção, como a
qualifica o próprio pensamento médico, também implica a inviabilidade de critérios de
base estritamente objetivo-científica como avaliadores exclusivos. E isso vale não só
para o efeito terapêutico, em que participa ademais o próprio doente, mas até para o
diagnóstico. A necessidade de manter julgamentos subjetivos está dada na
característica da prática de ser sobretudo uma intervenção “particularizante” e não
universalizante (tendente ao científico)19
. Cria-se, desse modo, esta espécie de “ciência
particular” e pessoal que a clínica adota – a da experiência individual pregressa sobre
casos singulares absolutos -, que não será comprometida pela ampliação das bases
mais impessoais com a “tecnologização” do ato médico. Isso porque, conforme os
médicos, ela não se situaria no raciocínio que elabora o diagnóstico e a prescrição da
terapêutica, mas sim compondo a técnica como um aposto a este raciocínio e, portanto,
no seu “exterior”, isto é, nos critérios de avaliação da eficácia global e particular do
cuidado produzido. Por causa disso, a manutenção da forma individualizada do
trabalho, na consulta médica, mesmo com a maciça presença da tecnologia material,
far4á com que as aplicações científicas padronizadas tenham sempre que sofrer
adaptações de caráter particularizantes, preservando a margem de subjetividade na
avaliação, por suas relações com a re-produção da autonomia profissional.
Este aspecto de vulnerabilidade dado pela falta de regras inteiramente
objetivas de avaliação, e o aspecto de onipotência dado pela autonomia,
evidencia-se nas atitudes ambivalentes que o médico adota ao julgar seu
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 202 -
trabalho: “On the one side He hás a more than ordinary sense of uncertainty (...) on the
other He hás a sense of virtue and pride, IF not superiority. This ambivalence is
expressed by sensitivity to criticism by others. (…) While self-criticism is acceptable,
criticism by others is not”20
. Além disso, essa questão do efeito eficaz da prática é
extremamente peculiar e vem tornar ainda mais difícil uma avaliação cuja objetividade
esteja menos envolvida em juízos pessoais, dado que a prática clínica conta com o
próprio efeito desse subjetivo pessoal na eficácia terapêutica. É o que se passa nas
afirmações dos médicos de que boa parte do resultado satisfatório reside na confiança
que tem o paciente no médico, do que deriva a reação favorável do primeiro à
terapêutica, desde que seu médico se mostre confiante, ele próprio, no acerto da
conduta. E tal reação subjetiva do paciente seria por si só terapêutica.
Não obstante a subjetividade necessária, reconhecer a mesma cientificidade
para modelos tão distintos de intervenção não será simples. Relembremos, a seu favor,
que se no momento de sua constituição moderna a prática clínica constrói-se por meio
de uma técnica amplamente dominada por essa dimensão subjetiva, desde sua base na
anatomopatologia já trazia o propósito de transformar tal situação, admitindo que uma
progressiva redução da “pessoalidade” em prol de uma clínica armada, reduziria a
“subjetividade” no ato técnico. A reorientação da anamnese para buscar os signos da
doença e a introdução de apurado exame físico, conferindo aos sentidos pessoais do
médico a capacidade de ver a doença no corpo doente, demonstrava desde ali, em sua
origem, a disposição de imprimir o desenvolvimento de um instrumental
progressivamente ampliador desse olhar, cada vez mais impessoal e menos
“subjetivo”. E à proporção que foram sendo efetivadas: cresceu a objetivação do
sofrimento na doença; cresceu também a objetividade do processo intelectual de
elaboração desta no ato clínico.
Como dado histórico podemos registrar que a ampliação do olhar direto na
busca de sinais físicos da doença inicia seu maior desenvolvimento
a partir de 1850. Ora, se isso representou um período grande de poucos recursos
materiais, assim que se iniciou o desenvolvimento desses, rapidamente caminhou-se
nesta direção. E em seu interior, para planos cada vez mais profundos e particulares de
reconhecimento da doença, até a possibilidade de encontrá-la ali onde ela ainda
não se permite ver: “vision directa de las lesiones ocultas. Este supremo ‘desideratum’
de La mentalidad anatomoclínica – temprana y significativamente expresado
por el nombre mismo del ‘estetoscopio’ – há sido alcanzado mediante la endos-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 203 -
copia, los rayos X y lãs investigaciones quirúrgicas exploractorias. Desde El
oftalmoscópio de Helmholtz (1851) y el laringoscópio de M.Garcia (1895), hasta el
cistoscopio de M. Nitze (1879) y los broncoscopios de A Kirstein y G. Killian (1859 e
1898), el desarrollo de lãs técnicas endoscópicas há sido rápido y fecundo. Más aún
cabe afirmar esto, a partir Del descubrimiento de los rayos X (Roentgen, 1895) (...)”21
.
A criação desses primeiros equipamentos correspondeu à busca das lesões
da anatomoclínica e sustentava-se nessa concepção sobre o processo mórbido. Das
concepções da fisiopatologia e da etiopatologia, que, como mencionado antes, viriam
na sequência da anatomoclínica, também derivaram formas de ampliação do olhar. A
primeira delas veio gerar: os traçados gráficos (esfigmógrafos de K. Vierordet – 1855;
flebógrafo e polígrafo de Mackenzie – 1853/1925; e o eletrocariógrafo de Einthoven –
(1903); a mensuração da febre (1868) e do metabolismo basal (1893); e também as
“provas funcionais” como as dosagens químicas das doenças renais, ou de depósito
(gota) ou metabólicas (diabetes). É assim que, se a anatomoclínica permite a visão
direta da lesão (doença), a fisiopatologia faz ver também os sintomas, na produção de
um novo sentido para o sinal físico. A mentalidade etiológica, por sua vez, iniciada
com a teoria dos germes (Pasteur, 1878) e a enunciação das “regras de Koch” sobre as
infecções (1882), produziu o caminho para a microbiologia e a imunologia, as quais,
constituídas a partir dos primeiros anos do século XX (auxiliadas pelo microscópio, de
uso corrente a partir de 1850) criaram as raízes das vindouras noções de prevenção22
.
E nestas, para além de “ver” os sintomas, buscando alterações onde nem sequer está
ainda a lesão, o olhar médico amplia-se para “ver” o risco, antevendo no silêncio a
lesão futura.
A presença crescentemente objetivadora da tecnologia material, porém,
ampliou a capacidade do olhar de todos, e não apenas do médico. Assim sendo, o
paciente e todos os outros agentes do trabalho médico que se envolvem direta ou
indiretamente com o ato do médico individual – sejam tais agentes médicos também,
ou não - , passam a ter acesso ao processo que se mantinha antes apropriado
exclusivamente pelo produtor direto, e podem passar a exercer algum
tipo de regulação sobre a prática. Logo, a perda do controle sobre o processo de
trabalho não se manteve apenas no plano da perda da propriedade dos
recursos tecnológicos, mas a própria presença dos equipamentos, para além da
execução, alterou a possibilidade de manter, para cada médico isoladamente,
o mesmo grau de controle que ocorria na medicina liberal sobre o projeto de seu
trabalho e sobre a avaliação da eficácia. Com isso também dois outros
deslocamentos ocorrem na regulação da prática: nem só a sintomatologia pode
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 204 -
ser critério de conclusão do trabalho e alta do paciente, como tampouco a demanda
pelo cuidado restará na iniciativa deste último. Vale dizer que a partir da medicina
tecnológica moderna, a apreensão da doença também se faz ali onde o indivíduo mão
se percebe ou se sente doente.
Essa radical mudança significará uma outra construção da abordagem do
doente: o saber científico passará a ter outra forma de articulação, mediada pelo saber
operatório, com a demanda social, redispondo-se, então, as posições e proporções
relativas dos planos objetivo-científico e subjetivo-social, por referência à construção
operatória anterior. A manutenção da mesma designação – a clínica – que certamente
quer fazer referência à cientificidade, oculta a grande transformação da técnica que se
opera nesse processo histórico. A anamnese muda inteiramente de significação, por
passar a realizar-se sincrônica com os exames diagnósticos ou o exame físico, e até
mesmo por sua supressão: “El examen ya no se interesa por relacionar la superfície
Del cuerpo, ES decir, lãs potencias palpables, com los elementos reveladores Del mal.
Habiendo traspasado la frontera donde lindaba desde siempre el testimonio mórbido,
este busca ahora la esencia de la lesión em lãs cavidades de los órganos (endoscópio) o
em la organización histológica (anatomo-patologia). A la autopsia verificadora,
lógicamente contemporânea de la muerte, Le sucede el rapto de sustância viva de la
biopsia. (...) El viejo signo patológico de certeza parece anacrônico desde el punto de
vista de este extremo acercamiento causal. (...) Lo que el investigador descubre a través
Del microscópio, invalidade la rica lexiografia de signos que oculta la clínica (...)”23
.
Devemos observar que os exames diagnósticos possuíam originalmente
duplo sentido: o de objetivação da doença, na reclassificação do diagnóstico hipotético
em doença confirmada, e o de uma espécie de “prova” do próprio raciocínio de
construção da hipótese diagnóstica. Daí que no método clínico tais recursos
ocupassem a condição de subordinados à anamnese, cuja obtenção era
caracteristicamente o primeiro procedimento técnico. Contudo, o desenvolvimento que
no método clínico subverte a posição relativa dos exames diagnósticos, tem seus
fundamentos científicos na busca das irregularidades patológicas prévias ao
sintoma (diagnóstico precoce), ou na busca de condições vitais potencialmente
patológicas, ou ainda na busca das causas antecedentes mediatas previamente à
causação imediata final. E assim, por ancorar-se na mesma ordem científica
valida-se esta subversão, o que permitirá o exercício de uma prática com
a ausência, tendencialmente, da participação do doente como sujeito. Essa
participação se vê reduzida aos momentos iniciais de aproximação, mas já
quase sem significado propriamente anamnéstico: se os recursos diagnós-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 205 -
ticos objetivadores da estrutura do corpo permitiam anteriormente depurar os
acontecimentos da vida social do doente para a produção de fatos patológicos, agora
podem produzir diretamente estes dados, sem o testemunho do doente. Pois, mesmo
não compondo um conjunto lógico encadeado com base em uma demanda, uma
quantidade progressivamente maior desses dados encontram sua justificativa no
rastreamento preventivo, e podem construir cadeias lógicas (explicação científica)
baseados exclusivamente em si mesmos.
Todavia, não nos esqueçamos, de outro lado, que a presença da história de
vida, na anamnese, constituía a contribuição específica do doente, daí que assumisse o
caráter de componente importante da eficácia técnica concreta, seja porque por meio
dessa participação o médico viria apropriar-se da vida social concreta do doente para
reelaborá-la na terapêutica (arte de curar), seja porque nesse modo de exercício da
subjetividade originava-se o substrato básico da confiança e da aceitação, por parte do
doente, do domínio pleno do médico, elementos então tidos por essenciais para a
garantia dos efeitos eficazes do ato clínico.
A incorporação da tecnologia material parece reduzir os e espaços de
realização da subjetividade e de tomada do social, para ampliar os das operações
científicas e objetivas em técnicas que se supõe depuradas de juízos de valor. O que
ocorre, porém, é um deslocamento desses planos, posto que se o paciente tem sua
presença, como sujeito, diminuída nos momentos da demanda – desde a procura por
um serviço até a expressão de sua história mórbida -, vê um espaço ampliado para essa
mesma presença no interior do próprio núcleo técnico (diagnóstico-terapêutica) da
prática, que antes forma monopólio do médico, por causa da maior transparência dos
instrumentos materiais, tal como já se apontou.
O médico, por sua vez, já poderá prescindir da velha forma de apreensão da
dimensão concreta da realidade da vida do doente, pois simultaneamente à
incorporação da tecnologia material que vai tornando ociosa a anmnese, outra
forma de aproximação do doente, como sujeito social, se estabelece. Falamos aqui do
fato de que à proporção que se estendeu a produção do cuidado médico
para contingentes crescentes da população, houve efetivas repartições da clientela,
segundo uma dada estratificação social, pelos diferentes tipos de institucionalização da
assistência médica. O médico que necessitava do relato vivo do doente, e de cada um
deles para apropriar-se tecnicamente de suas condições concretas de vida, pode
fazê-lo agora através do reconhecimento do tipo de clientela captado por sua inserção
institucional: o médico, baseado já em sua própria localização, enquanto trabalhador
inserido em tal ou qual instituição, pode supor (e de fato o faz) as
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 206 -
características sociais do doente que o demanda, daí as denominações “doente de
consultório”, “doente de seguro estatal” etc., que expressam, de outro modo, a
apreensão da concretude da vida do paciente.
Menos individualizada e mais generalizante, estruturando-se pelos grupos
sociais, esta aproximação pode facilmente perder-se em estereótipos, distanciando-se
muito das histórias de vida singulares. Não obstante, o que mais nos importa nesse
novo procedimento é o fato de que o que antes se apreendia como “vida individual
pessoal”, reduzindo o social a esse nível de expressão, agora se aprenderá como “vida
coletiva de pessoas iguais”, produzindo uma evidente ampliação da noção de social
presente à prática médica, ainda que este resultado não tenha sido explicitamente
buscado pelos médicos, ou mesmo desejado. A representação que o médico faz sobre
a posse de eu objeto de prática passa de uma relação direta pessoal para relação
mediada pela instituição, e o que era o meu paciente, será o paciente de, e essa
passagem irá operar como mecanismo despersonificador da relação, pelos vínculos
impessoais que produz. Isso implica – e traduz, por outro lado – exatamente a
capacidade de ter critérios mais “objetivos” de apreciação acerca das características do
doente como sujeito social, mas também torna evidente a presença desse social na
prática médica, mostrando que a mesma possibilidade que resulta na apreensão mais
impessoal do social, resulta numa apreensão de fato mais substantiva desse mesmo
social.
Tudo isso, em síntese, irá abalar os próprios fundamentos originais da
relação médico-paciente como relação interindividual, subvertendo-a enquanto
expectativa de ideal de prática, como também enquanto espaço da participação do
doente na consulta. Concluindo, podemos dizer que por meio da incorporação de
tecnologia material, recontextualiza-se a posição relativa dos sujeitos sociais
envolvidos na prática médica, quer no plano da organização da produção dos serviços,
quer no plano do processo de trabalho.
Até aqui examinamos o que a medicina tecnológica altera do proceder
diagnóstico, e devemos prosseguir considerando que essas mudanças vêm também
alterar no mesmo sentido o ato terapêutico, cirúrgico ou clínico. Este último, em
especial, verá surgir nos medicamentos industrializados e produzidos em grande
escala, o redimensionamento do caráter científico desse momento: a maior objetivação
correlata ao fármaco industrial, de composição química predefinida ao ato médico, faz
deslocar para as fórmulas gerais e universais tanto a terapêutica não medicamentosa,
quanto o antigo formulário clínico, ajuste individualizante da conduta medicamentosa.
Constituindo o objetivo principal da prática, a terapêutica figura no
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 207 -
âmbito do saber científico enquanto produto derivado do diagnóstico, e então com
importância subordinada a este. Mas no âmbito do trabalho não é o diagnóstico, e sim
a terapêutica, que assume maior relevância. A medicina como arte de curar é a
máxima presente no próprio pensamento médico e que traduz de forma clara essa
concepção: “El arte de curar – finalidade esencial del médico – es la consecuencia
inmediata de dos procesos fundamentales: el diagnóstico y el tratamiento de la
enfermedad. (...) Poco vale la precisión Del diagnóstico, si luego no sigue a este la
terapêutica apropriada. De aqui que se hay dicho com razón: El verdadero médico ES
aquél que cura”24
.
Observemos que no período histórico correspondente à emergência da
Clínica, a terapêutica referia-se a um conjunto de medidas que orientavam a
intervenção para o plano da totalidade individual do doente, cuja execução apenas em
parte subordinava-se ao domínio pessoal desse. Até aproximadamente 1940, o termo
remédio não era necessariamente sinônimo de medicamento e este não se apresentava
como composto químico qualitativa e quantitativamente definido fora do ato
terapêutico.
A singularidade da terapêutica pressupunha a prescrição de um conjunto de
medidas destinadas ao viver cotidiano, ajustadas ao plano de cada indivíduo em
particular, como a este também se ajustavam os medicamentos enquanto parte apenas
daquelas medidas, no formulário clínico. A terapêutica, por seu lado, como a arte de
formular dá bem conta dessa qualidade de personalização do medicamento; ajustes de
doses, combinação dos fármacos, duração e intervalo de uso, são, como vimos,
aspectos articulados à idade, intensidade do quadro mórbido, condições concretas de
efetivar a terapêutica, entre outros. Ainda que as drogas já seja concretas não se
reduzem a aplicações imediatas, dada a peculiaridade da doença em cada doente
individual: “Deve dar-se do remédio a quantidade necessária e suficiente. Nem mais,
nem menos. Mas, como fixá-la? A este propósito vem a pêlo transcrever estes lanços
de Schergf̈ ’(...) verifica-se que pacientes do mesmo peso, com igual cardiopatia e com
o mesmo grau de descompensações precisam de doses mui diversas de digital para
obter a compensação.’ (...) Em nossa prática, nestes casos iniciais de insuficiência
cardíaca, temos adotado, para os adultos de cerca de 60 quilos de peso, o esquema
seguinte: 7 gotas de solução milesimal de digitalina, ou 3 comprimidos de Digifortis
(...) ou 20 gotas de Digipuratum em uma só vez por dia durante 10 dias seguidos. (...)
Mas não passa de um esquema que pode e deve ser modificado, se for necessário, para
mais ou para menos, conforme o caso (...)”25
.
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Representações e prática - 208 -
Com a intensa transformação dessa terapêutica para a terapêutica moderna,
nucleada na presença maciça dos medicamentos industrializados deu-se também a
supremacia do fármaco como meio de cura. E à proporção que o medicamento foi
deslocado da doença para os diferentes sintomas ou sinais – já permitindo a passagem
direta do plano pessoal do sofrimento para a terapêutica, como o tratamento
sintomático -, os recursos terapêuticos, combinando-se aos novos instrumentos
diagnósticos, também produziram a superação da clínica como meio adequado de
trabalho, tensionando o monopólio médico na concepção, execução e avaliação
terapêutica. A maior objetividade científica da farmacologia moderna, portanto, faz
com que a construção da terapêutica possa até prescindir de um diagnóstico de doença
e romper a exclusividade do médico nesse âmbito. Podem fazê-lo outros agentes e
mesmo o próprio paciente, desde que se aproprie dessas construções terapêuticas, já
objetivadas em “bulas” farmacêuticas dos produtos industriais.
De outro lado, contudo, a partir da presença progressiva da tecnologia
material tornam-se mais complexas certas medidas, deslocando sua efetivação do
domínio de uma ação tecnologicamente simples e passível de realização por
indivíduos quaisquer, como o próprio paciente, para constituir nova unidade de
produção e modalidade de serviço, o que dirá respeito à repartição do trabalho médico
em novos trabalhos parcelares.
Será no plano exato em que a presença da tecnologia material se articula à
divisão técnica do trabalho, que se verificará a reconstrução da autonomia profissional
sob uma nova concepção de necessidade técnica: o monopólio do saber e da prática
que fundamentará essa autonomia reconstruída já não se justificará pelo ângulo da
anterior necessidade de transformação do social em natural, no que isso implicava a
apropriação de subjetividades sociais singulares – daí configurando no pensamento
médico a “arte” da profissão. De agora em diante se justificará pelo acúmulo e
intensidade da cientificidade que a tecnologia material implica, a qual já por si mesma
representa a “naturalização” tecnicamente necessária de dimensão social do objeto do
trabalho médico.
Em outras palavras, a autonomia ganha suporte nas exigências impostas
pela dificuldade instrumental, no lidar manual e intelectual com o científico,
lidar progressivamente mais complexo. Isso porque, já em razão do modo
pelo qual é construído e apropriado o conhecimento científico, a
complexidade em processá-lo reside, e progride proporcionalmente,
na sua fragmentação. Assim sendo, legitima-se a persistência do amplo domínio
do médico já que se apresenta como o único capaz de entendimento
(apropriação intelectual) da complexidade da situação do doente que o deman-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 209 -
da, complexidade adensada pelo tipo de conhecimento científico que a estabelece
como tal. A autonomia mantém-se como ferramenta necessária, mas o atual modelo
implicará sua reconstrução: ela se constituirá nuclearmente, agora, “purificada” ao
redor do momento de manipulação técnico-científica do trabalho, não dependendo
mais do estabelecimento de relações interpessoais adequadas.
Considerando, por sua vez, a divisão técnica do trabalho médico, veremos
que a constituição dos trabalhos parcelares se dará em dois planos. Estes não cindirão
momentos quaisquer do trabalho, como tampouco implicarão modalidades de
organização da produção da assistência que subverta a forma individualizada e privada
de realização do cuidado, isto é, cada processo de trabalho como relação singular,
intersubjetiva e exclusiva entre duas individualidades – o médico e o paciente. De um
lado, serão primeiro os momentos “mais manuais” do trabalho médico os que passarão
de operações parciais de um mesmo processo de trabalho para a constituição de novos
trabalhos parcelares ou unidades novas de produção. Assim, o manuseio direto do
doente, seja diagnóstico ou terapêutico, constituirá outros trabalhos de agentes não-
médicos no trabalho médico, como é o caso do trabalho de enfermagem ou o de
operação dos equipamentos. Esse caráter de fragmentação do trabalho que um mesmo
médico realizava originalmente é mais evidente para os serviços apontados; dos
enfermeiros e seus auxiliares ou do auxiliar técnico de diagnóstico ou terapêutica.
Todavia, há que se lembrar o fato de que a especialização desses atos diagnósticos e
terapêuticos terminou igualmente por constituir trabalhos parcelares também de
médicos.
A rigor poderíamos repensar esta última fragmentação como um pouco mais
complexa. Porém, seu sentido geral continua válido, à proporção que tais trabalhos
venham articular-se aos dos clínicos – cirurgiões ou de clínica médica – de modo
também peculiar. É conhecido o fato de que embora alguns dos serviços diagnósticos
e terapêuticos se produzem na qualidade de “trabalho de médico”, enquanto partes
referidas a um outro trabalho de médico (o clínico), apresentam-se subordinados a esse
último, quanto à formulação intelectual do projeto global da intervenção. O domínio
dessa formulação subsiste, por ora, portanto, como algo ainda próprio ao trabalho do
clínico, ainda que já apresente formas tensionantes da autonomia de seu agente e da
apropriação exclusiva deste sobre o controle de todo o processo.
Estes novos trabalhos parcelares podem ser organizados em produção
de serviços pertencentes a instituições diversas, ou compondo-se em uma
mesma instituição, e o fato de estarem dispostos socialmente de um ou
outro modo apenas implica mecanismos distintos, mais ou menos complexos,
de articulação, que vão desde o estabelecimento de apurados registros
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 210 -
documentais até a vinculação interinstitucional formalizada. Esse aspecto deve ser
assinalado, pois desajustes efetivos desses mecanismos de articulação podem passar a
ser concebidos como determinantes – ao invés de derivados – dos impactos da
fragmentação do trabalho médico na autonomia profissional.
Assim, as reorientações do desempenho pessoal do médico no seu ato de
trabalho passam a ser entendidas como se fossem repercussões dos ajustes socialmente
necessários à forma de organização institucional, e não como decorrendo do caráter de
seu próprio trabalho enquanto intervenção parcial e dependente de outros trabalhos.
Este último aspecto vale como observação até mais pertinente para a segunda
modalidade de fragmentação do trabalho – aquela entre iguais, aparentemente -, já que
a composição do trabalho médico parece ser dada mais facilmente entre nítidos
desiguais, em que há a soberania do médico no processo. O que chamamos de
trabalhos parcelares de “iguais” é a divisão horizontal do trabalho na constituição das
especialidades médicas, as quais, embora conformem trabalhos valorizados
distintamente, representam articulações entre trabalhos de caráter intelectual similar,
relativamente aos desempenhados por outros profissionais que não o médico.
Esta especialização médica traz a cisão da totalidade individual do doente,
fragmentando-se o todo orgânico na apropriação isolada de suas partes como objetos
independentes de trabalho. Para que isso não implicasse a perda do controle intelectual
do processo de intervenção, a parcelarização deu-se na forma de construção de
processos de trabalho relativamente independentes entre si. Portanto, se
declaradamente não é sobre a totalidade orgânica individual que o cuidado se aplica, a
presença do doente, individual e total, permite as idéias de interdependência e
complementaridade dos trabalhos parcelares como possíveis resultantes das
construções individualizadas e exclusivas de cada médico particular.
Ademais, há que se evidenciar o fato de que os recursos tecnológicos
materiais, se já subvertiam o método clínico, levando à perda do sentido de sua
sequência metódica original, possibilitam a repartição da totalidade orgânica em partes
independentes, cuja composição, dada tal independência pressuposta, desde que se a
faça de algum modo, não requer exatamente uma única sequência. Não resta
também dúvida, por outro lado, que o sofrimento do doente ainda segue
sendo a situação real que demarca a necessidade do trabalho do médico, como
também o doente segue sendo totalidade orgânica cujo sentido se dá, no seu plano
individual, no nível da subjetividade singular que constitui. Essa subjetividade, porém,
tampouco se orienta para a noção de “todo orgânico individual”
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 211 -
captando – conforme lhe ensina a medicina – seu sofrimento no nível das estruturas e
funções do corpo. E isso também concorre para que a reposição do todo orgânico-
psico-social do paciente fique cada vez mais distante do objetivo imediatamente
perseguido pelo médico individual a cada intervenção.
Mas não foi este distanciamento e sim a proximidade ao todo individual, que
fez da consulta interpessoal, exclusiva e privada, construção bem-sucedida técnica e
socialmente. Desqualificada essa especificidade na presente organização da prática, a
fragmentação, ainda que deva manter o trabalho assentado na consulta individualizada,
termina por tensionar essa individualização, por meio da perda parcial da capacidade
do trabalho especializado de apropriar-se do subjetivo-social do doente. É oportuno
observar que a isto se vincula uma alteração no modo pelo qual a moral de conduta
pessoal do médico irá articular-se com seus procedimentos, no interior do ato técnico.
Relembremos que a inclusão daquela moral, enquanto elemento constitutivo
do proceder eficaz do médico, compunha seu modelo de ação e representava, para o
doente, a base de apoio de seu juízo acerca do ato médico. E nesse sentido, isto é,
como ferramenta técnica, a ética tem modificado seu espaço e representação. Neste
novo significado técnico da prática, como acabamos de ver, será fundamentalmente na
tecnologia material e na especialização do saber que se encontram suas novas bases de
constituição. Na identificação do núcleo técnico essencial, à proporção que esse núcleo
seja delimitado por qualificações mais impessoais, os termos originais de “dedicação”
e “responsabilidade” passam a servir de nomeação para outras e novas realidades,
além de dividirem o valor que detinham, por referência ao ideal de trabalho, com os
novos preceitos que advêm dessa prática cada vez mais identificada à pura aplicação
da ciência.
O conjunto dessas alterações significará para os médicos seu avanço na
direção pretendida, a da cientificidade na medicina. Porém, representará,
simultaneamente, seu igual avanço em uma direção não exatamente desejada, a da
perda dos espaços de atuação cujo domínio lhes fornecera, anteriormente, a própria
identidade profissional, que se traduz por nada mais nada menos que o monopólio
sobre o caráter da prática. E uma vez que a reconstrução desse monopólio nos termos
tecnológicos atuais torna inviável sua continuidade material nos termos do
anteriormente exercido, será para o resgate da identidade profissional, buscando
estabelecer no plano das representações uma continuidade de valores e ideais na
medicina, que se voltará a categoria profissional.
Examinemos, pois, o que ocorre com as concepções dos médicos acer-
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Representações e prática - 212 -
ca do trabalho, ao longo desse processo de mudanças. Afinal será por meio delas que
seus intelectuais buscarão manter a coesão interna da profissão. Coesão que é de
natureza política, pois é da identidade profissional comum que os médicos extraem a
força para preservarem o estatuto social já adquirido; e coesão que também é
tecnológica, pois o modo pelo qual os médicos concebem sua prática, enquanto
modelo apropriado de ação, efetivamente comporá a tecnologia de trabalho na qual o
ato médico se realiza.
A NOVA LIBERDADE E O PENSAMENTO MÉDICO
A passagem da medicina liberal para a medicina especializada representou
uma nova forma de captar o sofrimento do doente. A relação entre seu agente e o
paciente passou a ser uma relação que se estabelece entre o saber médico
(conhecimento geral) e os pacientes (coletivo-impessoal), representados na consulta,
respectivamente, pelo médico e pelo doente.
Mas os médicos não compreenderam este novo objeto como algo de
qualidade diversa do anterior, ainda quando se mantivessem os princípios gerais de sua
construção dada a persistência da mesma base científica. No que diz respeito ao objeto,
a medicina lhes parece sempre a mesma intervenção sobre o sofrimento, não
importando a total e completa variação de significados que historicamente adquiram
esses termos. Ao mesmo tempo, por referência à base científica, ao contrário, a nova
forma de objetivação será concebida como uma outra cientificidade, simbolizada pela
tecnologia material: a prática da medicina especializada é representada como uma
prática “mais científica”. A redelimitação do objeto da prática nada mais seria que um
desvelamento acurado do sempre mesmo objeto, como se ocorresse uma mais ampla e
aprimorada visualização do natural do doente, a qual teria sido antes obstaculizada pela
ausência da tecnologia material e pela forte presença da subjetividade, representada
pelas bases mais pessoais de realização da prática.
O pensamento médico reconstitui, portanto, o passado em uma nova
história: a medicina liberal passa a ser concebida como tendo sido uma
“medicina tecnológica imperfeita” e não uma forma historicamente perfeita
(adequada e necessária), por meio da qual a medicina encontrou, igualmente,
modos apropriados de apreender (“visualizar”) o natural. O pensamento médico
supõe, assim, que a dinâmica da prática progressivamente liberta a medicina
do social, ao mesmo tempo em que, até pelo contrário, os deslocamentos
das bases mais pessoais para bases mais impessoais da
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Representações e prática - 213 -
prática, concreta o tomam mais evidentemente presente: quanto mais se crê livre, tanto
mais a medicina se vê “invadida” pelo social.
Todavia não se trata exatamente de uma invasão, posto que as contradições
que explicitam a dimensão social dessa prática, longe de se criarem após as
transformações da medicina resultantes dos deslocamentos de seu objeto, como se
expressassem efeitos contingenciais desses deslocamentos, traduzem ordens de
determinação estrutural já inscritas desde sempre (e apenas problematizadas de forma
diferente) em cada um dos momentos nos quais se re-estrutura a medicina moderna.
Daí ter sido esta prática do ponto de vista histórico, em cada época e a seu modo,
igualmente perfeita.
Foi esse seu sentido estrutural que quisemos evidenciar, ao recuperarmos as
raízes históricas dos diversos constituintes do trabalho médico. De outro lado, também
quisemos identificar o fato de que no movimento do real, se o novo que se instaura
possui já, de certo modo, um passado, aquela realidade que no passado se estabeleceu,
não permanece imutável, mas transforma-se, no processo histórico que faz o
conhecido e o velho re-viverem de modo novo.
Podemos tomar, por exemplo, a mudança no modo pelo qual se dá a
aceitação social da ordem médica. Se a examinarmos por meio da submissão do
paciente ao médico, como ocorre em cada um dos dois modelos de estruturação da
prática aqui considerados, só aparentemente teremos sempre uma mesma relação
médico-paciente. Pois, para se tornar apenas um de seus traços como ilustração, as
possibilidades ampliadas no domínio do orgânico, por parte do médico, estabelecem-
se na mesma proporção em que o médico “perde”, para o paciente, as amplas
possibilidades que antes dispunha de controle sobre a subjetividade deste. E esta perda
significa que mesmo no âmbito da dimensão técnica da prática, não mais haverá
submissão pessoal do paciente ao médico, mas a subordinação impessoal dos
pacientes ao saber científico da medicina. Como contraponto, a perspectiva do
paciente, esta ampliação do domínio de si, enquanto doente-sujeito social, também o
distancia de uma possível apropriação do conhecimento médico, pois este é agora
saber especializado e repleto de complexos procedimentos instrumentais: quanto mais
se aproxima, por meio de um maior domínio de si, da viabilidade potencial de um
autocuidado, portanto, mais o paciente se afasta da viabilidade concreta de realizá-lo.
Assim sendo, na medicina moderna, do modelo liberal ao modelo
“tecnologizado” e especializado, haverá uma efetiva transformação da relação
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 214 -
médico-paciente, ocorrendo uma redefinição das inserções de ambos, médico e
paciente, no processo de trabalho.
Contudo, o pensamento médico seguirá mantendo as mesmas desiginações,
com o uso de termos únicos, como vimos, para situações tão díspares, como que
desconhecendo a total requalificação das realidades que nomeia. Assim ocorre com a
relação médico-paciente e sobretudo com a autonomia profissional, objeto de nosso
estudo. O pensamento médico deixará de considerar, dada a sua recusa de princípio, o
fato de que os elementos que constituem a posição de autonomia mudam no modelo
de prática atual, denotando-lhe outro sentido técnico, por referência à medicina liberal.
Desse modo, diante da mudança concreta dos modelos de trabalho, o pensamento
médico tentará buscar, na produção de um discurso geral e universalizante, a
permanência da autonomia enquanto representação, concepção esta que, deslocada
das condições que pretende representar, transforma-se em um símbolo mítico do ideal
de prática26
. Como isto se dá e qual seu efeito sobre a prática como um todo, é o que
iremos considerar27
.
Em parte já observamos que o dever-ser no qual o pensamento médico
projeta a prática caracteriza-se pelo esforço de conciliar o contraditório e pelo esforço
de identificar a continuidade. O suposto de continuidade em oposição às rupturas
históricas, como juízo de valor sobre os processos de transformação, é que faz
construir sobre o trabalho médico conceitos absolutos. Essa racionalidade não requer
que se elabore a noção da autonomia adjetivada, isto é, qualificada pelas específicas
particularidades que a configuram nas diferentes situações de trabalho profissional, o
que seria o mesmo que contextualizá-la histórica e socialmente.
Ao contrário, o pensamento médico funda-se em noções universais que
passam a ter, na ausência dessas relativizações, a possibilidade de assumir qualquer um
dos significados já produzidos historicamente, sem assumi-los, exatamente, a cada um
por completo, com o que passa a ser simultaneamente representação e norma.
Da perspectiva da representação, o conceito assim formulado dará
equivalência a realidades diversas, construindo identidades entre dimensões diferentes
do real. Com isso, naquele sentido com que se fez absoluto, permite pensar
independências entre partes do real, que não só são dependentes umas das outras, mas
hierarquicamente dependentes e complementares entre si. Geral, o conceito cabe
sempre a quaisquer das situações particulares concretas, ao mesmo tempo que,
incompetente para recobri-las por inteiro (nos sentidos que lhe faltam), restará sempre
também impreciso: ora arte, ora técnica científica; ora razão de base subjetiva
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 215 -
pessoal, ora de base impessoal e objetiva. Correspondendo a todos eles, a autonomia e
mesmo a própria técnica se dispõem como termos absolutos de discursos
universalizantes, que então são passíveis de ser apropriados como de fato o são, como
saber único e sempre coerente acerca de condições muito diversas, tal qual a
autonomia da prática liberal e a da medicina tecnológica. Por isso, este pensamento
médico é um discurso lacunar e por isso, também, produzirá, como específico efeito da
racionalidade que o concede, um modo próprio de deslocar a apreensão do real,
confundindo o que pretenderia, ao contrário, explicitar.
No que tem de lacunas e naquilo que oculta reside o poder desse
pensamento de seguir representando o real no curso da história. Será um saber que não
se desfaz em confronto com as contradições, ainda que aí encontre seu limite e seja
obrigado a reconstruções periódicas. Outra vez da perspectiva da autonomia, o
discurso universalizante que a elabora, ao negá-la como posição relativa e desigual
para o conjunto dos médicos (o que é de fato a forma concreta de sua existência
social), tanto absolutiza o pólo técnico no trabalho médico, quanto desqualifica, por
deslocamentos – ao estabelecer a autonomia como ideal de prática comum, mantendo
a “profissão” como único conceito representativo de todas as situações de trabalho – as
profundas distinções das posições técnicas e sociais dos médicos em seu conjunto.
Além disso, quando generalizou a concepção da autonomia, o pensamento
médico separou a organização institucional da produção dos serviços de sua dimensão
operatória como processo de trabalho, e tomou-as na qualidade de componentes
independentes no interior da prática, podendo responsabilizar pelos fatores limitantes
da autonomia a um social – que identificou ao primeiro componente – desajustado ao
técnico – a que restringiu o segundo. E se com isto também pode remeter a
problemática da autonomia para uma “inadequação” independente de seus agentes
(com o que exerce o poder de eximi-los aparentemente de participação no social
através do trabalho), ao mesmo tempo encontrou nessa problemática os próprios
limites, passando a ter que se recompor em um discurso cada vez mais obrigado a
dirigir-se como pensamento de profissão para questões político-sociais.
Não obstante essas características, o efeito desse pensamento não resulta
apenas de seu discurso lacunar, senão também do fato de que ao constituir
uma razão atemporal, elabora simultaneamente as representações em normas,
fixando-as como devir. Em outras palavras, este pensamento assume a dupla
pretensão de constituir um saber que explique o real e também se desdobre
em normas de conduta para a ação. Dessa última pers-
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Representações e prática - 216 -
pectiva, o discurso que tem origem no social deve passar a um discurso sobre o social,
isto é, um discurso que antecede normativamente o social, por meio da formulação que
retira a raiz histórica da coisa que representa. Um discurso sobre as coisas passa a
coincidir com as próprias coisas: o conceito não representa mais o real, como produto
de uma dada elaboração reflexiva, mas é suposto como o próprio real desvelado.
Trata-se, pois, da produção de um discurso impessoal (sem sujeitos), em que
desaparecem as condições sociais objetivas e históricas da produção desta ou daquela
forma de comunicação e de construção das representações e do saber. ]Fica aqui
oculto o caráter social do conhecimento e das formulações de concepções sobre o real,
porque, de outro lado, não se toma o real como produzido sistematicamente com base
nas condições sociais: o que nasce nas relações sociais entre os homens, e por causa
delas, passa a ser considerado como originado fora delas, enquanto propriedade
intrínseca de outro componente do real – a natureza, que seria parte isolada do social e
que, ao contrário, presidiria as relações sociais, devendo estas fundar-se nas
“necessidades” do mundo natural.
O pensamento que assim se constrói, imobilizando o real, é produto do
recurso de seus sujeitos contra a impossibilidade de se manterem fixas, ao longo da
história, as posições que ocupam na sociedade. Dessa perspectiva, a história, a
mudança, parecerá sempre como um dever-ser contrariado, cuja ordem busca-se
manter, recuperando-a como se fosse uma crise que a todos ameaçaria, e não somente
aos que de fato têm mudadas suas posições pregressas. E isso parecerá no discurso
universal sempre possível, reforçando-se continuamente o próprio pensamento que o
formula. Assim sendo, relativamente ao trabalho médico, a posição de seu agente
(autonomia) deixa de ser produto das condições históricas das relações entre o médico
e o paciente e dos médicos entre si, na estruturação de determinada prática de
intervenção social no social, para constituir-se no pressuposto desta. De aspecto
constitutivo do trabalho, que se explica pelas respostas que a prática médica assim
organizada (e por assim se organizar) consegue oferecer às necessidades que lhe são
postas, e que se criam como problemas sociais historicamente dados, a autonomia do
trabalhador no processo de trabalho passa a constituir-se em uma imagem que
representa o processo inteiro, explicando-o ademais: de elemento originário do
processo de trabalho a princípio fundador desse processo; de elemento determinado a
fator que o preside. Graças à operação intelectual que cinde a autonomia como
realidade técnica e social, e então a estatui na qualidade de uma ordem técnica
permanente, o pensamento médico irá conceber a realidade da nova autonomia como
se tratando da sempre mesma autonomia profissional.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Representações e prática - 217 -
Além disso, a noção de autonomia na qualidade de concepção possível e
adequada do trabalho é, tal como qualquer outra representação, domínio do
pensamento conceitual: pensamento que, no movimento reflexivo de apropriação do
mundo real, separa, ou é capaz de separar, a coisa física de sua imagem, e através da
nomeação fazê-la presente na comunicação mesmo em sua ausência material. E se
a partir daí, de um lado, as representações encontram na linguagem suas
cristalizações – o que significa, da perspectiva do trabalho médico, a possibilidade da
permanência da autonomia enquanto representação já por estar na forma discursiva –
de outro lado, isto significa a possibilidade efetiva da aculturação: orientação ativa da
vida prática, coletivamente, conforme essas mesmas representações.
Por conseqüência, haverá a reprodução de forma ampliada e permanente,
das mesmas representações no conjunto de todas as situações de prática. Vale dizer,
estabelecida como norma de conduta para a ação, as concepções sobre o trabalho
conformam o comportamento efetivo dos sujeitos na ação social, e o pressuposto da
autonomia constituirá também o projeto de ação, isto é, figurará no esquema
operatório do trabalho enquanto realidade constitutiva do modelo tecnológico. Terá
por efeito, portanto, conformar no processo concreto de trabalho um dado proceder
que, a fim de ser eficaz, significará para seu agente a busca sistemática de realização
dessa mesma autonomia.
Será, todavia, necessário sempre lembrar que, estabelecida enquanto ideal
comum e na qualidade de um discurso, a autonomia não pode prescindir de legitimar-
se em um âmbito prático, realizar-se. Isto certamente demarcará os espaços e definirá
as formas de sua convivência, como ideal e pressuposto operatório, com as realidades
que lhe são opostas, nas modalidades particulares de organização do trabalho, com
suas heterogeneidades de desempenhos profissionais.
Foi nessa forma de re-produção ampliada, tomando os discursos que os
médicos-comuns produziram sobre suas práticas no exercício profissional cotidiano,
que conhecemos tanto o modelo específico de medicina tecnologizada e especializada
que concretamente se constitui na sociedade brasileira, quanto o que dele pensam e o
que de suas histórias pessoais percebem os agentes desse trabalho.
Na própria re-produção das novas condições de trabalho, em sua
diversidade, vimos acontecer variados graus de “desajustes” – situações nas
quais os agentes pareceram, em alguns casos mais e noutros menos,
desadaptados às condições concretas de seus trabalhos. Igualmente, na re-
produção das concepções sobre o trabalho médico, vimos produzir-se, por
meio das representações que cada trabalhador faz de sua singular vivência
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Representações e prática - 218 -
desse processo, discursos repletos de formulações ambivalentes, re-criando o conceito
universal em seus vários sentidos concretos.
A tentativa sistemática de conciliar o ideal com as condições objetivas do
trabalho, contudo, em um esforço por preservar dimensões de autonomia, ainda que
transformando o exercício profissional, foi para totós o valor e a prática comuns.
1 Cf. Oracy Nogueira, op.cit.; M.Cecília F. Donnagelo – Medicina e sociedade, op.cit.; e José
Carlos de S.Braga e Sérgio G. de Paula – Saúde e previdência..., op.cit. 2 A nomeação de neocapitalismo a tais modalidades de configuração de trabalhos deve ser
tomada com o cuidado preciso de apontar uma dinâmica própria pelo fato de possuírem esses
trabalhos uma autonomia mínima de conformação, embora secundária à dinâmica da produção capitalista. Já examinamos esta questão no Capítulo 1, quando definimos no conceito de re-
produção, a peculiar forma com que um trabalho particular dá conta das determinações gerais
do totalidade em que se inscreve. Veja-se a este respeito também Luiz Pereira – Capitalismo e saúde, apêndice in M. Cecília F. Donnangelo, Saúde e sociedade, op.cit. pp. 97 a 124 em
especial itens VIII e IX, pp. 117-123. 3 Veja-se Roberto P. Nogueira, Medicina interna e cirurgia, op.cit. 4 Ver Stephen Marglin e outros – Divisão social do trabalho, ciência e técnica e modo de
produção capitalista, Porto, Publicações Escorpião, 1974; e Harry Braverman – Trabalho e capital monopolista – a degradação do trabalho no século XX, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1977 5 Cf. Roberto P. Nogueira, Medicina interna e cirurgia..., op.cit. É claro que esta observação
não significa um continuísmo histórico, mas apenas aponta o fato de que, com a mudança da sociedade, o médico TAM a preservar esta situação de intelectual dominante, o que sem dúvida
repercutirá tanto nas transformações que o capitalismo demanda de seu trabalho, quanto nas
disputas internas entre seus partícipes diante das novas necessidades sociais. 6 Ver Michel Foucault – Microfísica do poder, op.cit., Jean Clavreul, A ordem médica, São
Paulo, Brasiliense, 1983; Jean Claude Polack, La medicina Del capital, Madrid, Ed.
Fundamentos, 1971; Georges Ganguilhem, O normal e o patológico, op.cit. Aplicados a temas ou situações sociais específicas, estudos sobre a ordem médica aparecem em H. Maria Dutilh
Novaes – A puericultura em questão, São Paulo, Faculdade de Medicina USP, 1979
(dissertação de mestrado); Madel T. Luz – As instituições médicas no Brasil: instituições e estratégias de hegemonia, Rio de Janeiro, Graal, 1979, e Medicina e ordem política brasileira,
Rio de Janeiro, El. Graal, 1982. 7 Jean Clavreul, op.cit., p.31 (aspas originais). Ver também E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit., capítulo 13 (The Lay Construction of Illness); e do mesmo autor –
Professional Dominance, op.cit., capítulo 4 e capítulo 5 (The
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Structural Solution to He Problem of Professional Authority; Professional Dominance and the
Ordering of Health Services) 8 G. Ganguilhem, op.cit., pp. 64, 69 e 182. 9 Um dos ângulo que tem sido privilegiado em estudos que examinam a prática médica
enquanto prática socialmente determinada é aquele através do qual se evidencia a diferenciação
da prática conforme se destine às diferentes classes e camadas sociais, apontando-se nisto a característica estruturalmente dada de reprodução, na medicina, da desigualdade social – base
sobre a qual se constitui a sociedade capitalista. Ocorre que o capitalismo, ao emergir como
estruturação concebida enquanto modelo tendencialmente capaz de superar a desigualdade social, terá que efetivamente também conter processos sociais que promovam, de certo modo e
em certo sentido, em limites não negadores da ordem social, a igualdade em caráter
complementar e contraditório à desigualdade social. É este aspecto que queremos apontar, quando nos referimos ao caráter também igualitário das situações da prática na medicina. A
este respeito veja-se Maria Cecília F. Donnangelo, Saúde e sociedade, op.cit, capítulo II
(Medicina na sociedade de classes). 10 “O trabalho médico deve discriminar, também, na força de trabalho, a marca que lhe é dada
por sua situação na estrutura produtiva (...) a medicina deve dar conta dessa diversidade atravé
de um cuidado necessariamente diverso, qualitativamente” – Ricardo B. M. Gonçalves – Medicina e história, op.cit., p. 42-43. 11 M. Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., p. 23 e p. 25. 12 MichelFoucault, O nascimento da clínica, op.cit., Prefácio p. XVIII 13 Pedro Lain Entralgo – História de la medicina, Barcelona, Salvat Ed. S.A., 1978, pp. 464-
518 14 G. Ganguilhem, opl cit., p. 68 e 71; ou, como aponta M. Foucault: “O objeto do discurso também pode ser um sujeito, sem que as figuras da objetivada sejam pó isso alteradas. Foi esta
reorganização forma e em profundidade (...) que criou a possibilidade de uma experiência
clínica: ela levantou a velha proibição aristotélica; poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica.” Michel Foucault – O nascimento da clínica,
op.cit., Prefácio, p. XIII (grifos originais). 15 As observações que seguem fundamentam-se em Madel T. Luz – Natural, racional, social,
op.cit. Também como fonte histórica utiliza-se o texto de Pedro L. Entralgo – História de la
medicina, op.cit. 16 Madel T. Luz – Natural, racional, social, op.cit., p. 26 17 “Medicinal practice is still characteristically and anachronistically practiced in a small, often
one-men unit” – E. Freidson – Professional Dominance, op. cit., p. 20 18 Maria Cecília F. Donnangelo, Medicina e sociedade, op.cit., p. 70. 19 E. Freidson – Profession of Medicine, op. cit., pp 171-173. Veja-se também a propósito das
discussões subjetivas inscritas no diagnóstico e questões correlatas para a sua padronização
como processo de construção/identificação da doença em H. Maria D. Novaes – Diagnosticar e classificar: o limite do olhar, São Paulo, FMUSP, 1987 (tese de doutoramento), pp. 57-66. 20 E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit., pp. 178-179 21 Pero L. Entralgo, op. cit., p. 471. 22 Idem, pp. 476-490. 23 Jean-Claude Polack, op.cit., pp. 26-27.
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24 Alfredo José Bandoni – Terapéutica clínica, Buenos Aires, Librería Y Editorial El Ateneo,
1941, vol. I (El arte de formular), pp. 35-37 25 Vieira Romeiro – Terapêutica clínica, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, Waissman, Koogan Ltda., 1943, pp. 36-37 (grifos no original), Veja-se também do autor – Formulário clínico do
médico prático, Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1943; e A. J. Bandoni, op.ciy. 26 Veja-se o artigo de Ralph R. e Daryl Evans –The Deprofessionalization of Medicine, JAMA, vol 258, no. 12, 1987, o qual é duplamente oportuno, pois ilustra a permanência do ideal da
autonomia no pensamento médico até os dias de hoje e, de outro lado, produz um discurso de
conciliação entre esse ideal de autonomia e o complexo médico-empresarial, com base da proposição de se concentrarem a gerência e a propriedade das empresas médicas sob a tutela
dos médicos, exclusivamente. 27 O que segue apóia-se nos textos de: Marilena de S. Chauí, Cultura e democracia, op.cit., e O que é ideologia, São Paulo, Brasiliense, 1982; Eliséo Verón, op.cit.; e José A. Giannotti, op.cit.
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Ultimas reflexões - 221 -
6
Últimas reflexões
Neste trabalho, por seu próprio movimento, são identificáveis pontos de
partida e conclusões em todos os momentos nos quais dividimos o processo da sua
construção.
Lendo as narrativas singulares, pode-se ver nelas, de certa forma, as
características da constituição da prática tecnologizada especializada que identificamos
na análise mais abstrata da medicina. O pressuposto para o empírico, que fez produzi-
lo, encontra nas características concretas da prática médica em São Paulo sua re-
produção. Mais ricas, mais tematizadas, essas características podem servir de novos
pontos de partida, servir de princípio gerador de novas construções, às quais se
prestarão como guia de formulação e interpretação. Por isso mesmo, ambas as
dimensões, concreta e abstrata, completam-se e constituem-se em pontos de partida e
conclusões. Há apenas a se considerar o recorte: o limite que o autor apõe ao
movimento da realidade que estuda e a ordenação para a travessia do processo cíclico
de conhecer, pois desse modo fixa e cristaliza, no discurso que produz, a realidade que
pretendeu tomar em movimento.
Será sempre possível, nesse sentido, ampliar ou restringir o âmbito da
problemática para o conhecimento; será sempre possível tomar das narrativas outras
falas, e outras tantas questões que foram conscientemente abandonadas.
Não decorra dessa observação, porém, a noção de que, lendo as narrativas
singulares, se encontrará o “fato empírico” bruto, não trabalhado, cuja ordenação se
possa fazer só depois de ter sido suficientemente elaborado um “quadro teórico de
referência”.
Não foi esse o movimento que efetivamente ocorreu.
Ao nos aproximarmos da base empírica, trazíamos um conjunto relati-
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Ultimas reflexões - 222 -
vamente abstrato de “hipóteses” iniciais, que se constituiu precisamente no motor
primeiro de uma capacidade, só então efetivada, de iniciar a produção dos dados
empíricos. Essa produção, por sua vez, resultado da reflexão conjunta com os
entrevistados, obrigou ao ajustamento constante daquelas hipóteses teóricas iniciais,
em um movimento permanente de aproximação mútua entre o teórico e o empírico.
Movimento buscado de tal forma que, interrompido no momento desta redação final
do trabalho, nem por isso encontra aqui, nesta formalização provisória, o seu fim real
enquanto movimento.
Não encontra esse fim, em primeiro lugar, porque uma aproximação ainda
mais totalizante entre o real e o conhecimento sempre poderia ser alcançada; mas não
encontra a completação ainda, em segundo lugar, porque o trabalho de conhecer é,
também ele, trabalho social, que prosseguirá agora, para fora do âmbito em que foi
gerado, instrumentalizando novas reflexões e novas práticas.
Assim, é perfeitamente possível retomar o movimento de constituição da
medicina tecnológica pra refletir sobre outras dimensões, em novos movimentos do
conhecer. No recorte proposto, contudo, consideramos “concluído” o conhecimento
pretendido; este trabalho, por meio do estudo da medicina através da história e
enquanto história, encerra seu próprio ciclo. Produzido, imobilizado, o conhecimento
repõe questões, repondo o movimento. Superadas, as problemáticas sempre re-
nascem.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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