Post on 22-Jul-2015
Bate-Papo com a jornalista Gianni Paula – Continente Multicultural
Outubro de 2012
O que explica o fato de um país que é reconhecido pelo culto à bunda, com mulheres
seminuas aparecendo regularmente na tv e nudez mais evidente em capas de revistas
pornográficas possuir outra face tão moralista e inábil em lidar com a naturalidade do
corpo? Isto é um paradoxo ou há certa coerência? Por quê?
Para pensarmos sobre as atitudes diferentes e, algumas vezes, contraditórias em
relação ao corpo, devemos lembrar que a cultura inscreve-se no corpo a fim de
modelá-lo e socializá-lo com base em suas regras e suas normas. As atitudes
corporais que homens e mulheres adotam numa dada sociedade, ainda que possam
parecer espontâneas, são construções sociais. Os sentidos conferidos ao corpo
variam historicamente e são constituídos por múltiplas formas de poder. No caso
do Brasil, trazem as marcas de uma colonização católica, carregada de interditos
ao uso do corpo e, ao mesmo tempo, do desejo de dominação dos corpos de
índios/as e negros/as, para o trabalho e para o sexo.
Em relação aos demais países ocidentais, você acredita que no Brasil a questão do corpo
feminino é mais mal-resolvida que a média? Penso, por exemplo, na prática de topless
que já bem difundida na Europa, mas ainda controversa por aqui.
Acho que devemos fazer um recorte de classe social ao abordarmos esta temática.
As mulheres das camadas populares, normalmente, lidam melhor com o corpo.
São mulheres que mostram mais o corpo, com menos pudores e menos permeáveis
aos discursos de controle. De toda forma, gostaria de enfatizar que a “questão do
corpo”, a meu ver, não deve se restringir a exibição maior ou menor do corpo. Há
muitos outros índices sociais e culturais a serem levados em conta.
A figura da piriguete tem sido bem discutida, pois alguns a entendem como uma mulher
subjugada à cultura machista e outros entendem-na como alguém liberada sexualmente.
Como você percebe esta ambiguidade?
A ambigüidade da figura da “piriguete” reside na sua potência desestabilizadora
dos valores morais comumente atribuídos ao feminino. Ela desafia as classificações
e incomoda homens e mulheres. As chamadas piriguetes não escondem seu gosto
pelo sexo, mesmo que casual, sabem que seus corpos inspiram desejo e o usam
deliberadamente como armas de conquista. É difícil para homens e mulheres
inseridos numa sociedade ainda conservadora admitirem esse perfil. Não é à toa
que o termo piriguete tenha surgido para se referir às mulheres consideradas
“perigosas.” Provavelmente, muitas moças escolhem ser “piriguetes.” Reside aí a
questão: a liberdade de cada pessoa em poder escolher a maneira de viver seu
corpo e seus desejos. O que é fundamental neste debate é não perdermos de vista
os perigos que os rótulos comportam e as limitações identitárias que constroem.
E os episódios de mulheres expulsas de determinados locais por estarem amamentando,
seria o ponto máximo da nossa hipocrisia? Como você avalia estes episódios?
Parece-me uma punição ao direito da maternidade e do trânsito livre das mulheres
no espaço público. É um retrocesso sem tamanho. O espaço público é lugar das
diferenças, das disputas; Nós, mulheres, lutamos para conquistá-lo e ainda lutamos
para reiventá-lo. É um caso para pensarmos como o olhar não é um ato
estritamente físico, biológico, mas carregado de sentidos, de valores, a ponto de
discriminarmos um ser humano que alimenta outro.
Por fim: na tua opinião, há um esclarecimento maior por parte das mulheres para
lutarem contra o machismo ou, em geral, a maior parte da sociedade acredita nessa
falácia de que a igualdade de gêneros já foi conquistada? Você sente que a ideia de "ser
feminista" é vista com certo preconceito por muitos homens e mulheres?
Penso que há um longo caminho para conseguirmos igualdade de gênero,
sobretudo no campo das representações do feminino na mídia e na transformação
do espaço doméstico. Tanto homens quanto mulheres são aprisionados em teias
cruéis de representações nas novelas, na publicidade, etc. Tanto homens quanto
mulheres tornam-se ainda reféns dos papeis de esposa e marido, da divisão clássica
das atividades domésticas e do lugar de provedor. É um enorme desafio do
feminismo romper as imagens cristalizadas que ainda habitam os livros escolares,
as revistas nos consultórios médicos, as letras de músicas, etc. Acho que ainda há
muito o que se fazer no campo das políticas públicas de enfrentamento ao
preconceito de gênero, sobretudo no campo da qualificação dos agentes que atuam
nestes setores. Não resta dúvida que as ações devem ser integradas, mas, como
professora, acredito incansavelmente no poder da educação para construirmos um
mundo mais justo e livre de preconceitos. As pessoas tem, no geral, uma visão
caricaturada da feminista como a mulher séria, asséptica e nada erotizada. Sinto
ainda muito preconceito. Mas, acho instigante como as feministas contemporâneas
desnorteiam estas representações, militando e apresentam suas pautas de
reivindicações com irreverência, criatividade e sem abrir mão de suas escolhas de
modelo de vida familiar. No neofeminismo, lutamos pela liberdade, nossa pauta é
ampla, em prol de ambos os sexos e contra as barreiras discriminatórias de toda
espécie.