Post on 23-Mar-2016
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georges stobbaerts
tenchi tessen arte e movimento
georges stobbaerts
arte e movimentotenchi tessen
Tradução: Ana Oliveira
Miguel Raposo
Organização e fixação de texto: Sebastiana Fadda
Fátima Patriarca
Fotografias: Claude Demoustier
Gonçalo Martins
[pp. 10, 22, 26, 61, 71, 76, 95]
Cristóvão
[p. 56]
Ilustrações: Sílvia Suñe
Projecto Gráfico: Alexandra Paulino
Coordenação de Produção: Vera Bettencourt
Triacção, Publicidade, Arquitectura
e Promoções, Lda.
Impressão: Guide, Artes Gráficas, Lda.
TENCHI TESSEN, ARTE E MOVIMENTO
© Georges Stobbaerts, 2000
Edição com o apoio de:
Ten Chi International
Associação Portuguesa de Tenchi Tessen
Contactos:
Honbu Dojo Ten Chi
Rua Moinho do Gato - Várzea de Sintra - 2710-661 Sintra
Tel: 219 233 827 - E-mail: budokanportugal@mail.telepac.pt
1ª Edição — Janeiro de 2002
Lisboa — Portugal
Depósito Legal
ISBN 972-95475-3-X
2
Aos meus Mestres
Aos meus filhos Magali e Eric
A todos os meus
Aos meus alunos
3
Agradeço a Ana Oliveira, Miguel Raposo, Maria Manuel Al bu -
querque, Silvia Suñe, Sebastiana Fadda, Fátima Patriarca, Vera
Bettencourt e Claude Demoustier, a ajuda e conforto que, inces -
santemente, me ofereceram. E a Maria Augusta de Vasconcellos o
sorriso nos momentos difíceis. Todos compreenderam que o movi -
mento contém a essência da Arte e que, no gesto de segurar o tessen
(leque), seguimos o princípio wu wei (da não-afirmação).
O leque move-se e imobiliza-se, em função da acção e da não
acção. É colhendo a essência das dez mil coisas, como dizem os
mestres orientais, é conhecendo a natureza e as suas transformações,
é sabendo que o imutável está sempre em movimento, que a beleza
do gesto se forma. As artes do movimento são místicas e subtis,
baseiam-se na fusão espiritual e não no esforço artificial. Todos
compreenderam também que a serenidade interior constitui o guia
do Tenchi Tessen.
Georges Stobbaerts
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Prefácio
Introdução
primeira parte
ALGUMAS RECORDAÇÕES
i Um olhar sobre o passado
ii A ponte e a Via
iii Para onde foram os samurais
segunda parte
CRIAÇÃO DO TENCHI TESSEN
i O que é o Tenchi Tessen
ii Dojo — local de prática
iii Segurar o Tessen
terceira parte
TENCHI TESSEN — PRÁTICA
i A preparação psíco-física
ii Os educativos
iii Os temas e a reflexão simbólica
Glossário
Bibliografia
apêndices
i O leque — resumo histórico
ii O leque no Japão
iii Tenchi Tessen — Ilustrações
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índice
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O grande mestre de Artes Marciais Georges Stobbaerts, que
durante anos transmitiu fielmente a técnica e o espírito do Aikido
de Mestre Ueshiba, é em si mesmo um cadinho em que se cruzam
fortes influências orientais e ocidentais: Artes marciais do Kerala, na
Índia do Sul, sufis marroquinos e andaluzes, feérico flamengo espanhol,
rigor e riqueza das danças hindus, despojamento espi ritual das disci -
plinas japonesas. Neste Athanor, foi sendo elabo rada, pouco a pouco,
uma quinta-essência do Zen, do Yoga e do espírito do Budo, uma
arte do movimento altamente simbólica onde o le que substituiu o
sabre: o Tenchi Tessen.
Em japonês, Ten Chi signi fica o par primordial Céu-Terra, entre
os quais se ergue o homem, separando-os e unindo-os, simultanea -
mente, pela sua verticalida de e a sua posição central. Tessen significa
leque, e re pre senta o sopro de vida, que anima e cria harmonia. É ao
mesmo tempo o instrumento humano por excelência, que quando
se abre exibe a multiplicidade dos possíveis, e quando se fecha os
reconduz à unidade.
Esta dança hierática é uma arte do movimento que se situa no
instante presente. Não aspira a ser um espectáculo para outros, mas
uma prática para si. É também uma coreografia colectiva em que se
manifestam pólos opostos como a criatividade e a recep tividade, a
firmeza e a doçura, a tenra fragilidade do bambu e o relâmpago ful -
gu rante do gesto perfeito. É com admiração e rego zijo que assistimos
ao nascimento desta nova arte tradicional que sugere tantas figuras
emblemáticas. Ela unifica, de forma feliz e com igual lealdade, o
Corpo e a Consciência.
Tara Michael
Investigadora do Centre National de Recherche Scientifique, França
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prefácio
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Tenchi Tessen
E uma manhã levanta-se o vento
O grande vento, o vento do largo
Que quebra todas as nuvens,
Que limpa a atmosfera
E que torna tudo mais luminoso.
Então encontra-se a coragem, a esperança.
Várzea de Sintra, 1997
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Criei o Tenchi Tessen baseando-me nas Artes Marciais. Fruto
de uma longa gestação, foi inspirado pela prática das Artes do Bu -
do japonês no seu sentido clássico, em particular pelo Iai-do e pelo
Aikido, mas também pelo Yoga e pelo Zen, que foram o suporte
primordial.
O Tenchi Tessen é uma arte do movimento, em contínua
formação. Como qualquer outra arte do mesmo género, que apela
à liberdade e mantém uma procura permanente, não pode fixar -se
num quadro rígido. O Tenchi Tessen pode ser também uma pro pos -
ta de arte da vida dentro do verdadeiro espírito de A-himsa, de não
violência. A não violência implica o conceito de não discri minação.
O grupo de praticantes desta arte junta pessoas de vários horizontes,
desde conceituados professores do Budo a homens e mulheres de
todas as origens e profissões.
Nos seus pressupostos teóricos, o Tenchi Tessen resulta do
estudo de vários aspectos da filosofia e da cultura orientais e oci -
dentais, pois ele aspira a ser como que uma ponte entre o Oriente e
o Ocidente. Fundada em valores espirituais de tradição universal,
nasceu uma nova abordagem corporal que permite aumentar a
flexibilidade do corpo, desenvolvendo e fazendo circular as ener gias
em completa harmonia.
O aspecto que nos leva a considerar esta disciplina como uma
arte de viver é, em primeiro lugar, o conhecimento de si-próprio e a
comunicação com os outros e com o mundo que nos ro deia. A própria
definição, formada por três étimos japoneses, aponta para o equilí -
brio, a compreensão, a disponibilidade e a abertura:
Ten: Céu Chi: Terra Tessen: Leque
Antes de falar sobre o aspecto técnico do Tenchi Tessen, é
necessário conhecer um dos princípios fundamentais da cultura
oriental.
Para o Oriente, o universo é bipolar. É constituído por duas
enti dades que se opõem e interpenetram, que estão em constante
equilíbrio dinâmico; uma não existe sem a outra, permanecendo
equivalentes. Estes dois pólos são representados pelo Yin e pelo Yang,
cuja grafia pode ser Yin /Yang. O Yang, a polaridade activa, simboliza
o princípio masculino, ou seja o Céu, o Sol, o Homem, a Mente; o
Yin, a polaridade receptiva, simboliza a polaridade femi nina, ou seja
a Terra, a Lua, a Mulher, o Corpo.
O Tenchi Tessen, na sua prática, procura a união e harmonia
destes dois elementos por meio do não conflito e do diálogo. Não
há combate, existe pergunta/resposta, daí o aspecto comunicativo
desta arte do movimento.
Através das técnicas, o praticante procura a harmonia e a união
do corpo e do espírito, tentando tornar-se por meio do Le que, que
representa a simbólica do sopro da vida, a ligação entre a Terra e o
Céu. O praticante está à escuta do seu corpo e, liberto de todas as
tensões, apaziguando o espírito, dá livre curso ao movimento que
harmoniza as energias, sendo solicitado a co mu nicar com o outro
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introdução
e é essencial para a descoberta e o apazi gua mento das flutuações
mentais. Ela vai permitir receber o movi mento sem apreensão, pois
existindo comunicação pode-se, em seguida, oferecer a resposta com
autenticidade e sinceridade.
O objectivo dos movimentos é criar, a dois, uma técnica que,
por meio da prática constante, se torne cada vez mais harmoniosa
e bela, à semelhança da patine que o tempo deposita num objecto
antigo, conferindo-lhe um estado de alma. É aquilo a que os japo -
neses chamam de Ki mochi.
O Tenchi Tessen convida o praticante a habitar um espaço
preciso e a descobrir o seu esquema corporal, ensinando-o a sentir
o mundo que o rodeia, sem perder a consciência da presença dos
outros praticantes. Então, o praticante torna-se UM com tudo o que
o rodeia, num estado de união e fusão.
As formas desta arte, apesar da dificuldade de execução, são
propositadamente despojadas, a fim de se alcançar a quintessência
do gesto. As várias maneiras de se deslocar, de andar, fazem parte
da técnica do Tenchi Tessen. Como em todos os movimentos, as ancas,
koshi, por estarem localizadas na região do Seika Tanden, lugar que
é o centro de gravidade, são continuamente solicitadas e é a partir
deste ponto que tudo se articula. Associados ao relaxa mento mus -
cular, os movimentos tornam-se, ao mesmo tempo, fluídos e dinâ -
micos, permitindo trabalhar segundo vários ritmos, jo, ha, ku, ou seja,
respectivamente, lento, médio e rápido.
Os educativos são exercícios preliminares que vão educar o
corpo, de forma a que as ancas se tornem mais móveis e fortes,
ajudando o praticante a descobrir e a reforçar o seu centro de gravi -
dade, de modo a assegurar a sua postura, permitindo-lhe deslo car-
-se livremente no espaço combinando velocidade e estabilida de,
à semelhança dos derviches rodopiadores.
segundo o princípio bipolar, e a estar à escu ta do corpo do outro.
Durante a prática e segundo o princípio da pergunta/respos -
ta, um dos parceiros é Yang e o outro é Yin, estado que se modifi ca
no instante seguinte através da alternância no movimento. Vai criar-
-se assim um equilíbrio dinâmico entre os dois parceiros, à imagem
do equilíbrio cósmico. A respiração é um elo importante entre eles,
introdução
A dança
dos derviches
rodopiadores
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Embora o Tenchi Tessen seja mais uma arte de viver do que
uma Arte Marcial propriamente dita, guarda certas características
desta última. O praticante não se focaliza no combate, mas man tém
algumas atitudes inerentes a este: o espírito de vigilância, Zanshin,
e, principalmente, o empenho que esta arte exige, de modo a alcançar
a intensidade e o nível de prática requeridos. Um dos primeiros
objectivos é atingido quando se aprende a executar o movimento
sem pensar.
Da mesma maneira que o artista, confiante na sua intuição,
sempre procura a beleza, a harmonia e a fluidez dos seus movi men -
tos, o praticante de Tenchi Tessen tem a preocupação cons tante de
progredir. É por isso que ele necessita, primeiro, de domi nar os prin -
cípios e as técnicas de base, antes de se entregar à ins piração e à
improvisação. É aqui que a Arte Marcial tem um grande interesse,
pois exige rigor na sua prática. À semelhança do calígra fo ou do
pintor que exercita a mão para encontrar a unidade com o seu pin -
cel, à semelhança do actor que trabalha a sua voz e o seu gesto, o
praticante do Tenchi Tessen deve educar o seu corpo e o seu sopro.
Uma vez o corpo educado, é importante mantê-lo relaxado, de modo
a permitir a livre circulação das energias, forma de encontrar a
inspiração que consentirá a evolução do movimen to. Tudo isto é
conseguido por uma repetição incansável, tal como o músico repete
a mesma partitura.
O Tenchi Tessen desenvolve a concentração do gesto, a no ção
de espaço, e leva a uma espontaneidade e liberdade de expres são
que desenvolvem a flexibilidade e abertura de espírito no praticante.
O resultado é semelhante ao proporcionado pela filosofia do Ten-
Chi-Jin, baseada na união Céu-Terra-Homem, ou então, pela noção
de Katsujinnoken, ou seja, dar a vida com o sabre, embora aqui o
sabre seja substituído pelo leque.
Quando se fala da beleza do movimento, fala-se daquela beleza
que dá acesso a um mundo novo, beleza infinita que se exprime em
todo o Universo. Os mestres do movimento dizem que a verdadeira
essência da beleza é a alegria de em tudo a descobrir. A beleza do
Tenchi Tessen é alegria, e é na prática que acedemos a essa alegria
inefável da beleza cósmica.
A procura da beleza nos movimentos do Tenchi Tessen é um
pouco a que Zeami Motokiyo definiu como a procura da flor1. Ela
passa pelo corpo, mas também ultrapassa o próprio corpo. A metáfo -
ra deste poeta do movimento toca o absoluto quando afir ma: esta
flor é por vezes “insólita” ou “fascinante”, logo, se estiole ou murche2.
Dito por outras palavras, a arte do movimento é a expressão
simbólica da vida pelo movimento rítmico do corpo e repousa so bre
o postulado de que a vida se estiola progressivamente, com o correr
do tempo, mas, mesmo sabendo que as formas desapare cem, a vida
continua. Era a isto que Zeami se referia quando dizia: Antes de mais,
que fique bem claro que o hara, a flor do Nô, flo resce no decor rer das
atitudes e movimentos mutáveis3. Zeami fala do corpo como de uma
flor efémera, um obstáculo a transpor antes que possa desa brochar
a imortal flor da beleza do movimen to. Esta seria a perpétua renovação
que constitui a própria vida da beleza do movimento, a sua flor
imperecível.
O movimento belo é uma flor que mal desabrocha, murcha,
renasce sem cessar e vive eternamente. O mesmo espírito anima o
Tenchi Tessen: o gesto cria-se e destrói-se incessantemente, o
movimento encerra a procura, a procura é o caminho.
Outro poeta, não do movimento, mas da arte da vida, conse -
guiu formular uma metáfora significativa acerca da procura e da Via.
Trata-se de Khalil Gibran, que descreve o processo e o percurso da
seguinte maneira:
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introdução
1 Zeami Motokiyo, cit in Amien Godel, Le Maître No, Paris, ed. Albin Michel, CollectionQuestion de, 1989, cap. Fushikaden: La transmission de la fleur, p. 84.
2 Ibid, cap. Kakyo: Le miroir de la fleur, pp. 90/91.
3 Ibid, cap. Shikado: La voie qui mène à la fleur, p. 93.
4 Khalil Gibran, Le Fou, Paris, ed. Asfar, Coll Littérature, 1987, pp. 48-49
A minha alma e eu fomos banhar-nos no mar largo. Chegados
à praia, pusemo-nos à procura de um lugar escondido e isolado. Mas
no nosso caminho vimos um homem sentado numa rocha cinzenta,
segurando um saco e deitando pitadas de sal no mar.
— É o pessimista — disse a minha alma — deixemos este lugar;
não nos podemos banhar aqui.
Continuámos a andar até que encontrámos um braço de mar.
Aí vimos, de pé numa rocha branca, um homem que segurava uma
caixa facetada da qual tirava açúcar que deitava ao mar.
— Este é o optimista — disse a minha alma — e ele também não
de ve ver os nossos corpos nus.
Continuámos o nosso caminho; numa praia vimos um homem
a apanhar os peixes mortos e a devolvê-los, com ternura, ao mar.
— Não podemos tomar banho ao pé dele — disse a minha alma
— é o filantropo cheio de humanidade.
E continuámos o nosso caminho. Chegámos a um lugar onde
um homem desenhava a sua sombra na areia. As ondas vinham e
apagavam-na. Mas ele redesenhava-a sempre.
— É o místico — disse a minha alma — deixemo-lo.
E continuámos o nosso caminho até uma baía tranquila; vimos
um homem a apanhar a espuma com uma concha e a deitá-la num
vaso de alabastro.
— É o idealista — disse a minha alma — ele não merece ver a
nossa nudez.
E continuámos a andar. De repente ouvimos uma voz a gritar:
— É o mar, o mar profundo; o mar imenso e poderoso.
Chegados ao sítio de onde vinha a voz, vimos um homem, de
costas para o mar e com uma concha encostada ao ouvido para
escutar o murmúrio do mar.
E a minha alma disse: — Continuemos o nosso caminho; é o
realista que volta as costas a tudo o que não pode abarcar e que se
preocupa com detalhes.
Continuámos então. No meio das rochas, num sítio cheio de
ervas daninhas, vimos um homem com a cabeça enterrada na areia.
Então eu disse à minha alma: — Podemos tomar banho aqui;
ele não nos pode ver.
— Não — respondeu a minha alma — é o pior de todos. É um
puritano. Uma grande tristeza invadiu o rosto da minha alma e
impregnou a sua voz.
— Vamo-nos embora — disse ela — pois não há lugar escondido
e isolado onde nos possamos banhar. Não deixarei o vento levantar
os meus cabelos dourados, nem o ar pôr a nu o meu peito branco,
nem a luz desvendar a minha nudez sagrada.
E, posto isto, deixámos este mar e partimos à procura de um
outro ainda maior.4
introdução
14
primeira parte
algumas recordações
16
Como um grande fluxo de mar vindo do oceano infinito para
as margens do nosso mundo finito, há lugares que gozam de uma
poderosa capacidade de invocação, de um poder que faz sonhar com
paisagens impossíveis e estranhas sociedades. Eles falam à nossa
imaginação e convidam-nos à viagem.
De pai belga e mãe espanhola, nasci na África do Norte, terra
ao mesmo tempo África e Oriente, que foi para mim um lugar mágico,
entre o esplendor do sol e os jardins frescos onde cantam repuxos.
A minha infância foi nos pátios onde primavam os arabescos, nos
mercados barulhentos sob as estrelas, também na quente penumbra
dos souks acompanhada por silhuetas cobertas de algodões
multicolores.
Eu diria, hoje, que Marrocos é a grande capital do Sul, por estar
situado no cruzamento de três mundos: o deserto, a montanha e as
planícies atlânticas. Esta localização privilegiada está na origem da
minha procura.
Lembro-me ainda, quando com a família fugíamos do calor do
verão para uma morada secundária, de como era agradável quando
o sol estava no zénite e a sua luz se derramava na cidade, numa
abundância excessiva, sobre as paredes brancas de Casablanca.
Saíamos, percorrendo a estrada com alegria. A maior parte dos
habitantes escapava-se para os frescos vales fora da cidade, outros
iam para o Alto Atlas, no Djebel Toubkal, onde os cumes chegam a
mais de 4000 metros de altitude, passando pela linda cidade de
17
um olhar sobre o passadoO sufi andaluz começava sempre o dia dirigindo-se ao céu:
“Faz-me entrar, Senhor, nas profundezas do oceano da tua
Unidade infinita”
Poeta anónimo
Ilustração árabe
mostrando a dança extática
e cósmica
dos derviches.
I
curiosamente, num rio, na propriedade onde passávamos a maior
parte dos fins-de-semana, situada num laranjal à beira do Oum-El-
Rbia, que nasce nas altas montanhas do Atlas marroquino. Era lá que
o meu barco me esperava. Precipitava-me para ele logo que podia,
para o fazer deslizar na água, subindo a corrente o mais possível para
me deixar levar, desta vez no sentido inverso, à procura de águas
mais rápidas. De tempos a tempos, acostava a pequenas ilhas para
mergulhar, com o arrojo da juventude, nos turbilhões perigosos em
que me deixava ir até ao fundo para, em seguida, vir à superfície.
Fazia-o, é claro, às escondidas de meus pais.
Gloriosos dias de Verão em que o sol africano derramava a luz
e o calor de um céu sem nuvens. Tudo isto me era muito próximo e
sobretudo muito caro. Era o meu jardim secreto. Rio espantoso de
realidade, poderei esquecê-lo algum dia? As forças da natureza eram
sublimes e sem eu saber escutava uma linguagem secreta, como num
sonho. Não escrevi nada sobre os tempos da minha juventude, mas
eles estão no meu coração, como que fechados em todo o meu ser.
Os sufis marroquinos dizem: Quando o coração chora o que
perdeu, o espírito ri pelo que achou. Será que já compreendi que a
vida que há em mim não me pertence? Ela faz parte do todo, eu fui
criado para ela, serei eu consciente disto todos os dias?
Foi o meu período líquido, que continuou mais tarde no mar
alto. Arthur Rimbaud, no seu poema L’Éternité, soube descrever o
anseio de plenitude ligado à extensão marinha:
Elle est retrouvée
Quoi, l’éternité
C’est la mer allée
Avec le soleil 1
De marinheiro de água doce tornei-me marinheiro com um
veleiro maior e descobri três coisas: o homem, a liberdade e a luz.
Marrakech, paraíso de verdura louvado já na metade do século XII
pelos viajantes ocidentais:
Ó cidade real de Marrakech
Tão conhecida
Do sítio onde os seus raios se extinguem
O teu palácio magnífico
Ultrapassa em esplendor e em sumptuosidade
Todas as cortes reais!
O teu pomar de Messena tão ricamente plantado
De árvores agradáveis a um e outro,
De laranjeiras e limoeiros
Sem contar os outros frutos
De azeitonas e tâmaras
É um jardim cheio de delícias
Nessas terras, história e literatura andam de braço dado. A
norte de Marrakech estende-se a região de Aglumat, para onde foi
exilado o príncipe e poeta El M’Hamid Ren Abdar, da cidade de Sevilha.
Nós dirigíamo-nos para a cidade de Azemur, na direcção da cidade
de Mogador, hoje chamada Essaouira. Construída no século XIII pelos
grandes arquitectos vindos da Europa, Essaouira surge entre dunas
e ondas vivas, espantosa cidade de sonho, hesitante entre o Oriente
e o Ocidente; os navegadores portugueses que partiram à conquista
de novos mundos marcaram a costa atlântica com fortalezas e
cisternas, e é por uma dessas fortalezas que é conhecida e visitada
nos nossos dias.
Foi no meio destas visões de história viva que passei a minha
juventude. Elas não são apenas convites ao devaneio, mas sim temas
de meditação muito ricos para o conhecimento das civilizações que
terminam um ciclo e permitem uma melhor compreensão do presente.
Os meus primeiros passos no estudo do movimento deram-se,
um olhar sobre o passado
18
Os meus primeiros contactos com o mar são já longínquos,
mas ainda hoje não posso viver longe dele. O espantoso sortilégio
da vela é o impulsionar-se assim, sem finalidade, sem esforço, sem
nenhuma intervenção mecânica, unicamente com um pedaço de
pano. Mais tarde, quando ensinava Aikido, solicitava os meus alunos
para corrigirem as suas posições baseando-me na lição que tinha
aprendido no mar: “Não esqueçam que para fazer avançar um veleiro,
é preciso colocar a vela correctamente no sentido do vento!”.
A vela é uma excelente escola de previsão, prudência e domínio.
Conheci um grande marinheiro, Bernard de Moitessier, que foi o
primeiro navegador solitário a fazer a volta ao mundo sem escala,
passando pelo Cabo Horn na rota mais perigosa, uma estreia na época.
Ele foi meu aluno e ficou dois anos amarrado no porto de Casablanca,
vivendo no barco que ele mesmo tinha desenhado. Sempre muito
imaginativo, tinha uma bicicleta que montava e desmontava de cada
vez que queria ir ter connosco ao Dojo. Muitas vezes trocámos
opiniões sobre os movimentos do mar e os movimentos do Aikido.
Na aparência, dir-se-ia que não há nenhuma relação entre os dois,
mas é uma verdade aparente, pois aprendi muito com Moitessier.
Sempre disponível para a grande aventura, mas para uma aventura
pensada, controlada, ele costumava repetir as palavras do grande
marinheiro Nelson, safety first, ou seja, primeiro a segurança.
Eram os anos 60, e nessa época o meu amor pela vela e pelas
artes japonesas era enorme, mas os valores correntes estavam bem
longe das minhas aspirações. A noção de que para ser alguém era
preciso ter êxito estava radicada nos nossos educadores e na sociedade
em geral. Ganhar dinheiro, alcançar altos cargos. Parecer era mais
importante do que ser. Mas era minha convicção que o hábito não
faz o monge, nem pode ser o nosso cartão de visita.
Era também a época em que eu queria e devia mudar o mundo.
Eu procurava a natureza, o ar livre, o largo, a floresta, o céu azul.
Ansiava pelos grandes espaços ainda não manchados pelo orgulho
e pela avidez dos homens.
O ambiente natural em que estava inserido foi, creio, favorável
ao desenvolvimento do meu eu. Alguns versos de Kipling que aprendi
nesse período vinham muitas vezes à minha memória quando fundei,
em diferentes países, Dojos que tive que abandonar em seguida, como
tive de abandonar alunos que ainda guardo no meu coração. Ainda
não tinha lido a Vida de Milarepa2, cuja extraordinária experiência
chega às mesmas conclusões, e que me impressionou anos mais tarde,
mas nunca esqueci estes versos do poeta inglês:
Se podes ver destruir a obra da tua vida
e, sem uma palavra,
começares a reconstruir,
então serás um homem, meu filho.
Depois veio a descoberta do mergulho submarino. O contacto
com as profundezas foi mais sério do que as minhas primeiras
experiências fluviais. Lembro-me que gostava de perguntar às criaturas
marinhas, talvez espantadas por encontrarem um bípede no seu meio,
quando nos encontrávamos frente a frente, como poderiam elas
imaginar a intensidade do sol? Saberiam que existia uma superfície
acima delas? Por mim, ia meditando nas palavras de Djalal-Od-Dim-
Rumi3:
Como chegar à pérola,
olhando simplesmente o mar?
O encontro apaixonante com os padres do deserto, sobretudo
dominicanos e muçulmanos, permitiu-me estabelecer relações entre
vários pensamentos, encontrar elos e reconhecer divergências,
imaginar uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Aprendi a relativizar
a visão do mundo. Se houvesse apenas um mundo, haveria só pessoas
19
um olhar sobre o passado
lismo. A sua poesia, ou considerada como tal pelo Ocidente, é, aos
olhos do Oriente, uma forma de expressão simbólica, uma das muitas
maneiras de traduzir o pensamento e a concepção das coisas.
O Oriente exprime-se muitas vezes pela imagem. Contudo, a
fal ta aparente de racionalismo não significa que se abandone ao irra -
cional. Todo o pensamento oriental assenta na veracidade dos fenó -
menos que se desenrolam no universo. Os fenómenos podem ser in -
ter pretados de maneiras diferentes, mas eles não permanecem imutá -
veis e guardam ao mesmo tempo um valor de eternidade. Muda o
obs er vador e a perspectiva, não o objecto observado e a sua natureza.
A compreensão do além fronteiras é uma necessidade essen -
cial, que não deve ser satisfeita de um modo superficial, pois ela é
um complemento que nos pode ajudar numa prática objectiva e
espiritual, onde cada um pode trazer ao outro o contributo da sua
uni cidade. Devemos esperar dos outros o que não podemos esperar
de nós próprios. Certos cientistas do movimento deveriam meditar
mais vezes e com maior atenção sobre o assunto. A sinceridade dos
diálogos que encontrei em Marrocos entre os sufis muçulmanos e
estes investigadores espirituais ocidentais era invulgar, aí reinava um
espírito universal e um respeito mútuo no sentido mais lato do termo.
O sufismo depende de uma Revelação e uma das suas crenças
baseia-se no princípio de que se o tempo e o lugar se prestam, não
é proibido colher flores num jardim que não seja o seu. A tolerância
dos sufis muçulmanos é pouco conhecida nos meios ocidentais, pouco
ou mal informados a seu respeito. Mas poucos seres poderiam ter
uma atitude mais tolerante do que Mahomé, o profeta do Islão,
quando convida a procurar o saber até na China.
A necessidade de ir para além das divergências de cada origi -
nalidade é inseparável da procura da Unidade, do mesmo modo que
a Universalidade aumenta, se estiver próxima da Unidade.
sem rosto. Se todos os homens se parecessem, os seus rostos teriam
todos a mesma máscara, e isso seria terrível. As diferenças entre os
povos são indispensáveis para a riqueza de toda a humanidade. Os
homens, infinitamente variados e com pontos de vista também
diversificados, têm a necessidade de se completarem através das
diferenças do outro.
As ciências que hoje se interessam pelo estudo do movimento,
e que vêem o corpo como uma unidade e o movimento como uma
expressão são para mim já qualquer coisa de maravilhoso. É um
grande avanço na compreensão humana. Contudo, os investigado -
res deveriam ir mais longe e estudar a tradição oriental, que tem há
milénios uma visão do homem na sua globalidade.
Cultivar a diferença não é a vocação universal do homem? A
diferença constitui o património e a fecundidade da verdadeira natu -
reza humana, mas é basicamente um gesto de amor e de respeito. É
o que é diferente do meu ser — o índio da Amazónia, o negro de uma
tribo longínqua ou ainda o chinês dos confins da China — que me
atrai, e não um outro eu, parecido comigo sob todos os pontos de
vista. O despertar ou o exacerbar da xenofobia é sempre gerado pelo
desrespeito da diferença.
Frequentemente os meios científicos mostram-se cépticos
perante certos conceitos orientais, subestimando o facto de nem
sempre serem empíricos, mas sim fundamentados em experiências
testadas ao longo de milénios. Houve épocas em que as teorias vindas
do Oriente foram criticadas, outras em que eram vistas como qualquer
coisa de exótico, outras ainda em que a sua recuperação obedeceu
à volubilidade da moda. Trata-se, porém, de conceitos que estão
muito próximos da natureza, possuindo uma estrutura própria que
se apoia solidamente na observação. O seu lirismo não leva a uma
falta de rigor interno que rege o seu raciocínio, ele não exclui o rea -
um olhar sobre o passado
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Em Marrocos aprendi a empregar o meu corpo na sua unida -
de. A natureza e a espiritualidade que aí encontrei fizeram-me com -
preender que não se deveria usar o corpo como uma máquina, a
mente de um lado e o corpo de outro, separados como se fossem
duas partes independentes e pertencessem a dois entes distintos.
Essa descoberta foi determinante para a minha formação nas ar -
tes do Budo.
Nos anos 60, o Judo, que na Europa estava ainda no início da
sua divulgação, não era considerado um desporto nem tinha finali -
dades de competição, mas ensinava uma filosofia e praticávamo-lo
nesse estado de espírito, que nada tinha a ver com o que existe hoje
em dia. O Judo tornou-se uma luta. O medo de perder, sabe-se bem,
gera a violência. Tendo-o compreendido, apesar de ser na época um
dos professores mais jovens da Bélgica, procurei no Judo o espírito
sem nunca o encontrar. Tinha já ensinado na Alemanha, em Aix-la-
-Chapelle, em Marrocos, passando pelos Dojos japoneses, designa -
damente o Kodokan e a Universidade de Tenri, considerada como a
Meca do Judo. A abordagem, que se desviava dos aspectos filosóficos,
era decepcionante. Então voltei-me para o Aikido, cuja beleza já me
tinha atraído, e para o Kendo e o Iai-do, sob a direcção do mestre
Nakakura, o maior mestre japonês da época, por me parecer serem
as artes que melhor protegiam a essência do Budo. Participei em
muitos campeonatos da Europa e do Mundo (entre eles no 1º Cam -
peonato do Mundo de Kendo que houve em Tokyo em 1970) e, como
membro fundador da Federação Internacional de Kendo, tive o pri -
vilégio de ensinar no Dojo Aikikai de Osaka.
As belas teorias cuja aplicação procurava no país do sol nas -
cente — Amor, Harmonia, vitória da Paz — foram rapidamente esque -
cidas para dar lugar às tensões engendradas pela ideia de vencer a
todo o preço. O único lugar no Japão onde encontrei a realização do
1 O Dr. Rogério Martins traduziu assim este fragmento: ”Está recuperada/ O quê? — Aeternidade/ É a luz do Sol/ com o mar misturada.”
2 Milarepa ou Jetsun-Kahbum, Vie de Jetsun Milarepa, Paris, Editado pelo Dr. Evans-Wentz do Jesus College Oxford, 1975.
3 Djalal-Od Dim, Rumi (1207-1273) é considerado o maior poeta místico do Irão. A suaimensa obra é quase tão lida e meditada como o próprio Alcorão. Este grande pensa-dor era também um grande visionário. Fundou a ordem dos Derviches Rodopiadores. O seu filho, Sultan Valad, sucede-lhe e é com ele que esta ordem se institucionaliza.
que me tinham ensinado no ocidente foi nos mosteiros Zen, na
posição de sentado...
No combate, o estado de vigília não é nem concentrado nem
disperso. É preciso adquirir uma neutralidade interior de onde pos -
sam brotar a disponibilidade e a rapidez da reacção, que permitem
lançar o nosso movimento com o corpo e com o espírito. Os nossos
mestres ensinaram-nos que é preciso a atitude de quem escuta música,
sem que o eu intervenha. Só então o organismo está apto a captar.
Aprendi também que não nos devemos deixar atrair pelos resul -
tados brilhantes da técnica, pois ela tem o seu reverso. A execução
per feita de um movimento pode esconder uma presunção egocên -
trica, e a proeza técnica pode ser uma manifestação de orgulho: pode
julgar-se ter já compreendido tudo, quando de facto se está apenas
no princípio. Esta atitude interior incorrecta esvazia a habilidade
adquirida da sua substância, tornando-se a arte do movimento um
pro ce dimento, uma simulação que os verdadeiros mestres do movi -
mento descobrem depressa.
Hoje há dois caminhos nas Artes Marciais. O primeiro dirige-
-se para o desporto, passando pelos Jogos Olímpicos: Pesos e Halteres,
Luta, Boxe, Judo, Karate, e disciplinas similares (quem sabe se um dia
também o Aikido será contemplado), mas este caminho despojou o
sentido primordial do movimento. O outro caminho é o do movimento
indiviso, onde o principal adversário é o próprio praticante.
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um olhar sobre o passado
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Quando queremos relembrar certas épocas importantes da
nossa vida os pensamentos aceleram-se e depois acalmam-se, pouco
a pouco, e param, como se parássemos o nosso automóvel à beira
de um caminho. Os pensamentos confundem-se. Há-os solitários,
sonhadores, efémeros nas tensões da batalha que por vezes desfi -
gura a vida.
Porquê falar mais uma vez de Marrocos? Porquê esta para -
gem? Talvez porque a paragem é uma maneira de nos observarmos
hoje, de nos vermos de fora e de, como nos poços da nossas recor -
dações, a que atiramos uma pedrinha, distinguir os dias de vida e
por vezes os de vazio.
Fui educado num mundo ocidental cristão, que me levou ao
conhecimento de prestigiados padres dominicanos, como o padre
Avril, que foi mais tarde um grande pregador em Notre Dame de
Paris; depois o padre Ecremente; o padre Taillez, que se tornou bispo
em Marrocos; e o padre Beguin, que fez Yoga comigo e a quem eu
chamava “o místico do deserto”, por dominar não só o árabe como
di fe rentes dialectos marroquinos, e ter sabido penetrar profundamente
no espírito dos sábios muçulmanos.
Estes homens deram-me uma visão religiosa ampla, oposta
às visões estreitas que tantas vezes serviram à conquista e ao domí -
nio dos povos. A religião dita “oficial” não tem a exclusividade dos
sen timentos interiores, seja ela cristã, muçulmana, budista ou hindu.
Falta-nos, por vezes, um certo recuo face à nossa própria cultura, ou
a atitude construtivamente crítica dos místicos, que as religiões esta -
be lecidas evitam, pois eles perturbam o que está institucionalizado.
Marrocos é para mim, na espiral dos meus sessenta anos, a
lembrança de numerosos outros rostos que não posso esquecer.
É a lembrança daqueles de quem gosto e que são mais do que eles
imaginam… Hassan, o seu irmão Alaoui M’Barek, a quem eu chama -
va “o gato”, o meu amigo de infância Jaffar Sebti, Kamal, Ben Ali,
Claude Durix e tantos outros… muitos dos quais me ajudaram e
ensinaram na sua procura sincera.
O Dojo de Casablanca teve grande importância e não posso
falar do Tenchi Tessen sem o referir. Neste Dojo, cristãos, muçulma -
nos, judeus e sufistas viviam em completa harmonia. Este lugar é
ainda hoje uma recordação maravilhosa para muitos praticantes.
Aprendemos juntos que o homem nasceu para descobrir a sua
verdadeira natureza e foi na prática do movimento que alguns
tomaram consciência das bases fundamentais do Ser. Todos sabía -
mos que o grande dever da nossa escola era respeitar a natureza dos
outros. Não existia uma regra moral, o que por vezes não acontece
em certas escolas. Todos sabíamos que as regras das convenções
sociais, necessárias em qualquer grupo, só têm um valor relativo no
plano da realização humana ou espiritual. Ninguém devia impor ao
outro comportamentos que obstassem ao seu desenvolvimento.
No mundo árabe o saber é considerado como um tesouro que
se recebe e que se transmite. Etimologicamente, transmitir deriva
23
a ponte e a viaEm Marrocos verão o natural
que está sempre mascarado nas nossas terras
e sentirão além disso a preciosa e rara influência
do Sol, que dá a tudo uma vida penetrante.
Delacroix
II
partilhou connosco os ensinamentos da filosofia Samkhya; de um
pintor japonês que aos setenta anos aprendeu a pintar cavalos e
queria terminar a sua vida a viajar pelo mundo e a ensinar a sua
pintura às crianças; do rabino que veio um dia cantar à escola e fez
vibrar as vidraças.
Outras visitas houve, que guardo ainda na memória. Primeiro,
os célebres Kendokas e os campeões de Judo de apetite feroz, a se -
guir vieram os especialistas de Aikido: o experiente Kobayashi; o
mais jovem Masamichi Noro, com os seus belos movimentos, que
mais tarde fundou o Kinomichi, cansado como eu da orientação das
Artes do Budo. Houve também momentos de recolhimento e de
convívio, partilhados nas Sesshin de Zen, e outros, nas cerimónias
solenes como as Kagami Biraki.
Como descrever este passado, estas vivências, estas amiza -
des numa escola onde ensina o presente? E onde, como dizia Krishna-
murti: o vento do deserto varre o rasto do viajante; só se imprime o
passo presente, o passado e o futuro da areia são alisados pelo vento3.
Afinal podemos lembrar apenas o que nos é exterior, como num
mapa de lembranças onde só tivéssemos percorrido alguns cami -
nhos... Mas há sempre, dizem os indianos, um fio condutor que guia
o nosso destino. Da nossa própria procura interior através dos labi -
rintos da vida fica esse fio invisível e subtil que nos segue no mais
ín ti mo do nosso coração. Estamos sós, mas sempre acompanhados.
As recordações são um pouco como as pedrinhas da fábula
do Pequeno Polegar de Charles Pérrault: elas marcam o caminho
percor rido. O trajecto exterior pode ser assinalado, mas a experiência
interior opõe resistências ao acto da comunicação. E esse é o verda -
deiro livro que jamais escreveremos. O essencial só pode ser perce -
bido pelos outros através de uma grande sensibilidade, pois a ver -
dadeira experiência situa-se para além dos encontros das paixões
do latim tradere, ou seja trazer e, por extensão, trazer do passado,
con ceito que logo implica a transmissão do passado, ou seja, da
tradição. Contudo, tradição não significa rigidez, e é uma palavra
que se aplica tanto a uma maneira de pensar como a uma maneira
de agir.
A tradição, apesar de ser uma herança do passado, contra -
riamente à opinião de alguns, também implica evolução. Haverá
sempre os partidários da evolução e os conservadores, mas cada
indivíduo deve ter a liberdade de desenvolver os conceitos adop -
tados, o que por vezes se torna uma carga difícil de suportar. No
mundo oriental, mais do que no mundo ocidental, é com grande
respeito que se escuta uma pessoa digna de ser escutada.
Há lugares onde o Sopro do Espírito marca a nossa vida. O Dojo
de Casablanca foi para mim um desses lugares. O trabalho aí desen -
volvido foi apaixonante. Eu esperava os alunos à hora do Muezzin,
quando o seu canto, da torre da mesquita, acordava a cidade para a
oração. É impossível esquecer a prática das artes marciais ao nascer
do Sol, durante anos e anos, terminada sempre pela meditação,
com todos unidos pelo mesmo ideal. Seguiam-se diariamente o
célebre chá marroquino com menta, preparado pelo aluno mais jo -
vem, e as alegrias das discussões apaixonadas, que só terminavam
à hora em que cada um ia para o trabalho.
Como esquecer também pessoas espantosas, como Sterky
que, com setenta e três anos e tendo sido submetido a duas trepa -
nações, pra ticava todos os dias? As suas palavras eram sempre um
hino à vida.
E como esquecer as visitas de Léopold Senghor1, poeta e homem
de estado; de Mestre Deshimaru2, monge Zen que no início da sua
estadia na Europa veio pela primeira vez a Marrocos e ficou admirado
por ninguém reparar no seu traje; do eminente swami Punjaji, que
a ponte e a via
24
humanas, numa visão do mundo que por vezes toca o real, que está
para além da linguagem, das palavras, e que talvez só exista no
silêncio.
Obrigado, Marrocos. Aprendi muito de ti.
Encontro com o Oriente
O tempo vivido em Marrocos não foi a única experiência
marcante da minha formação. A China e a Índia estiveram sempre
presentes na minha prática, apesar dos meus mestres japoneses só
se lhes referirem vagamente, sobretudo através dos grandes princí -
pios do Yin/Yang, que lhes serviam, muitas vezes, de dialéctica:
Nada é absolutamente Yin nem absolutamente Yang
Nada é neutro ou perfeitamente equilibrado
Há sempre e em tudo, excesso de Yin ou de Yang
O Yin repele o Yang; o Yang repele o Yin
Tudo o que começa tem um fim
Tudo o que tem um fim tem um reverso.4
Nos meus movimentos tentava pôr em prática todos estes
princípios, tal como uma criança que tudo quer descobrir, mas isso
não foi suficiente. Queria ir mais longe. A minha pesquisa tornava-
se, pouco a pouco, uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Esta
diligência não podia ter um sentido único... tantas vezes o erro do
principiante!
Lembro-me ainda das palavras de Paul Claudel5, quando era
embaixador no Japão:
A permuta só conhece duas línguas Universais. Uma, fácil, como
uma queda repetitiva, produz o ruído caótico de uma guerra. Outra,
rara, difícil e sempre renovada, devota-se à criação cultural.
Com efeito, a educação e a cultura são os pilares mais sólidos
da liberdade do homem. Disciplina, criatividade, amor pela natureza
e pela vida são sempre a finalidade de qualquer educação, mas uma
cultura partilhada, de que advém uma grande riqueza, é sem dúvida
a base de uma realização espiritual.
O estudo das Artes Marciais, numa visão correcta, pode ser
uma educação eficaz. Mas o que se passa hoje?
Em 1964, numa final dos Jogos Olímpicos, o campeão japonês
T. Soné foi batido pelo holandês A. Geesink, para espanto geral do
público que assistiu, consternado, ao inacreditável. Os japoneses
eram vencidos no seu próprio terreno. Foi um choque rude para um
país que se gabava de ter elevado as artes guerreiras ao nível de
uma filosofia. Os meus amigos japoneses estavam perplexos.
Já nessa altura pude reparar que no Japão o culto da força
prevalecia sobre o do espírito, mas havia felizes excepções. Muito
antes dos Jogos Olímpicos o meu mestre de Judo, Kenshiro Abé6,
dizia: Se o músculo fizer lei, vai criar-se sobretudo a ilusão.
Que aconteceu à Via? Como explicar o seu espírito?
Para tal é necessário recuar no tempo. O poeta Tokoma fornece
as indicações para uma correcta compreensão:
... é mergulhando a mão na água,
no meio das ervas aquáticas,
que eu apreendo o espírito do charco...
25
a ponte e a via
a ponte e a via
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1 Léopold Senghor (Léopold Sedar), poeta senegalês de língua francesa. Antigopresidente do Senegal. Desde 1969 é membro do Instituto de França (Academia dasCiências Morais e Politicas, 1969).
2 Taisen Deshimaru (1914-1982), monge japonês, foi discípulo do Mestre Kôdô Sawaki(1880-1965). Taisen Deshimaru chega a Paris em 1967. Publica o seu primeiro livro Vrai Zen em 1969. Cria a Associação Zen d’Europe em 1970, que em seguida se tornoua Association Zen Internationale. Visita pela primeira vez a África, a convite do BudoClub du Marroc, em 1968, e, nos anos 70, a convite do Budokan de Cascais, visitaPortugal, também pela primeira vez, e realiza vários sesshin nesta escola.
3 René Fouéré, Krishnamurti ou La Révolution du Réel, Paris, ed. Le Courier du Livre,1969, p.144.
4 J. Lavier, La Bio-energétique chinoise, Paris, ed. Libraire Maloine S.A., 1964.
5 Paul Claudel (1868-1955), poeta e dramaturgo francês.
6 Grande mestre de Judo, Kenshiro Abé (1915 -1987) recebeu aos 14 anos o seuprimeiro cinto negro, atribuído pela célebre Dai-Nippon Butokukai, que foi a primeirainstituição de Artes Marciais oficialmente instituída no Japão, em 1895.
Um imenso edifício com um telhado ultra moderno, que se
assemelha a um templo, ergue-se para o céu de Tóquio: o Budokan.
Os gritos, kiai, ressoavam e respondiam como que em eco
aos murmúrios da cidade. Este imenso espaço, que pode receber
milhares de visitantes, estava a abarrotar. O Budokan festejava um
momento importante na história do sabre japonês: os primeiros
campeonatos do mundo de Kendo, em 1970. Orientais e ocidentais
defrontavam-se com dureza. Nessa altura eu era membro funda dor
da Federação Internacional de Kendo. Para cúmulo e, devo con fes -
sar, sem me ter dado conta, venci um campeão japonês 7º Dan em
Nagoya. A N.H.K. (Televisão Nacional Japonesa) ofereceu-me logo
uma estadia no Japão.
Durante estes campeonatos conheci, depois de um combate
de treino, uma celebridade japonesa, Yukio Mishima, muito insigne,
vestido inteiramente de branco e com uma armadura que o meu
mestre de sabre, Nakakura Sensei2, achava muito ostensiva.
Quan do levantámos as nossas máscaras, com o rosto coberto
de suor, Mishi ma fez-me um sorriso rasgado e ofereceu-me o seu
hachimaki. Tomei chá com ele, falámos de Marrocos e ele ficou muito
intrigado com o reino marroquino onde, no meu Dojo, se pratica -
vam Artes Marciais e meditação Zen em conjunto com sufis muçul -
manos. Fiquei muito impressionado quando, pouco tempo depois,
soube da sua morte.
Escritor famoso e contestado, Mishima tinha formado um
exército privado, cujos efectivos, uma vintena de homens, tinham
resolvido restaurar os valores do Bushido japonês. A 25 de Novembro
de 1970, depois de um discurso aos jovens recrutas das Forças Na -
cionais de Defesa, que não o levaram a sério, Mishima suicidou-se,
segundo o espectacular ritual seppuku: abriu o ventre, a seguir um
assistente cortou-lhe a cabeça com um golpe de sabre, que repetiu
mais de sete vezes. O Ministro da Defesa estava presente e demitiu-
-se pouco tempo depois. O acto extremo do autor, chocante aos
nossos olhos, impressionou os japoneses; muitos reagiram suici -
dando-se, mas a imprensa foi muito discreta a este respeito.
Mishima comportava-se como se o Japão não tivesse mudado
profundamente nos últimos cem anos. Foi um gesto nobre, mas é
preciso admitir que a sua última vontade foi fazer reviver o ultra
nacionalismo dos anos trinta.
O espírito dos samurais não desapareceu inteiramente da
mentalidade japonesa, adaptou-se à vida moderna. Notei muitas
vezes, nas altas esferas das Artes Marciais, uma atitude à qual não
posso aderir. Lembro uma noite em que uma dezena de budokas se
reuniu para festejar uma vitória e, depois da ceia, tendo saboreado
um excelente saké, o mais velho dos praticantes tomou a palavra.
Fez-se silêncio. Sob o efeito do álcool e do fumo dos cigarros, disse:
“Não esqueçamos que somos budokas e que, se o Imperador nos
chamar, saberemos todos morrer, do primeiro ao último, para que se
realize o Hakko-Ichin”.
27
para onde foram os samurais
Sobre cada espinho da silva,
brilha uma gota de orvalho
Matsuo Bashô1
III
não são eleitos pelo povo.
9. Os soberanos são divindades visíveis.
10. A arte de governar o país e as orações dirigidas aos deuses durante
as cerimónias shintô, são uma e mesma coisa.
11. Os soberanos oferecem orações a Amaterasu-ô-mi-kami para o
bem estar do povo, especialmente durante as festas que estão
relacionadas com a agricultura.
12. As regiões não submetidas ao Imperador são infelizes. As guer -
ras antigas e as recentes contra a China e a Rússia têm como fina -
lidade o bem estar do povo.
13. Imperador e povo são unos.
14. A lealdade para com o soberano (chugi) é o fundamento da moral
japonesa (o Chu para com a família imperial é mais impor tante
que qualquer giri).
15. A lealdade não consiste apenas em actos de coragem durante a
guerra: a lealdade é sinónimo de respeito aos pais, de união en tre
irmãos, de paz entre casais, de fidelidade para com os ami gos, de
sobriedade, de bondade, de assiduidade no trabalho; ela é a prática
das virtudes, a promotora do bem estar da sociedade, o respeito
pelas leis, o desejo de desenvolver a indústria e o co mércio. Tudo
está incluído na lealdade para com o Imperador.
São verdadeiros dogmas, que se inserem na prática do Bushi -
do japonês e de alguns dirigentes.
Para mim havia soado a hora da verdade: queria um só tecto,
mas sem o Imperador. Curiosamente o seu filho, que na altura era
príncipe, entregou-me uma magnífica maquete do palácio Kinkadu-
ji com uma bandeira de ouro.
É altura de abordar um aspecto bem conhecido da civilização
japonesa e cujas manifestações são por vezes tão brutais e espec -
taculares que nos fazem pensar serem a essência deste povo. Contudo,
No Japão o mestre tem uma tal autoridade que nós, aqui, nem
sequer imaginamos. No Oriente, na época do Confucionismo, em que
reinava o ju, a figura de um mestre do Budismo, que fazia a iniciação
ao saber da transcendência, aparecia rodeada de uma auréola. Não
surpreende que uma máxima japonesa diga: O teu pai e a tua mãe
são como o Céu e a Terra. Mas o teu mestre é como o Sol.
As Artes Marciais, do ponto de vista exaltado do Yamato-
Damashi3, o espírito das virtudes guerreiras do povo japonês, não
têm nada de universal. Aos que seguem a via do Budo, lembro a am -
biguidade das duas orientações: uma que segue a religião Shintoísta,
outra que advoga uma visão mística da raça japonesa e um culto de
fidelidade ao Imperador. Quando seguimos até ao fim uma escola de
Budo, coloca-se-nos um problema de opção, especialmente se diri -
gimos uma escola na Europa...
Para vos dar uma ideia da síntese moderna do Bushido e do
Shintô, eis alguns extractos do Kokutai No Hongi, documento que
contém arquétipos relativos ao carácter sagrado da cultura japo ne -
sa, à conduta e ao dever de gratidão:
1. Os Imperadores do Japão descendem da Deusa Solar Amaterasu-
ô-mi-kami.
2. O Japão foi sempre governado pela mesma dinastia.
3. O Japão é um país único no mundo, sem igual.
4. Todos os soberanos e a Deusa do Japão formam uma única
entidade.
5. A Deusa Amaterasu-ô-mi-kami reside no espelho metálico do
Templo de Ise.
6. Os três símbolos do poder Imperial (espelho, sabre e jóia) foram
entregues aos Imperadores pela Deusa Amaterasu-ô-mi-kami.
7. A arte de governar o país é uma obra divina (matsurigoto).
8. Os soberanos do Japão são diferentes dos das outras nações, porque
para onde foram os samurais
28
essa é apenas uma das suas facetas, pois sabemo-lo rico noutras
coisas. Refiro-me ao heroísmo guerreiro dos samurais. A história do
Japão, no seu conjunto, desenrola-se em torno de duas atitudes:
uma de abertura ao mundo e outra em que tudo muda com o tinir
das armas.
Em 1185, com a chegada de Kamakura, a tão sensível arte
dos períodos de Asuka, de Nara e de Heian, quer dizer a idade da
madeira e dos tons pastel, viu chegar a idade do ferro e dos cavalos.
A força e a morte apareceram então. É opinião de L. Warner que
“nenhum outro período da história japonesa oferece um exemplo de
uma mu dan ça tão rápida como o que marca a passagem do este -
ticismo decadente do século XII para o tempo viril e impetuoso dos
Kamakura”4.
Temos o direito de nos interrogar sobre onde se situa o ver -
dadeiro Japão? Na época anterior ao Kamakura ou naquela poste -
rior? Estamos na presença de dois rostos do Japão, mas tam bém é
verdade que depois do ano de 1185, com excepção de alguns raros
e breves períodos, os militares exerceram sempre o controle efectivo.
É curioso constatar que, no conjunto da história do Ja pão, não houve
predominância de um sobre o outro, mas sim uma alter nância dos
dois aspectos: por um lado a procura da serenidade, do requinte, do
belo, da não violência; por outro as guerras intestinas contínuas, a
violência, por vezes a barbárie até ao suicídio. Tudo isto revela a
complexidade da personalidade japonesa através dos séculos.
A esta época remonta a formulação do conceito de direito:
só o Imperador gozava de verdadeiros direitos, direitos que, para
todos os japoneses, lhe vinham do Céu. Esta visão influenciou de tal
modo a administração feudal que houve leis que não chegaram a
ser publicadas e permaneceram secretas.
No final da época Kamakura (1333) chegou-se a um extremismo
que ainda hoje é visível nos negócios ou mesmo nas famílias. Até nas
Artes Marciais a delegação do poder continua a ser um facto que
escapa à maior parte dos estrangeiros.
O código do Bushido, a Via dos Bushi, antigamente chama do
Kyuba-no-michi, ou seja, a via do arco e do cavalo, é um conjunto
codificado de ensinamentos e atitudes face à vida. Trata-se de uma
herança do período movimentado acima referido, mas no século XIII
o seu sentido era ainda restricto. Segundo o escritor G. B. Sanson o
nome Bushi-Do é recente5 e, segundo Chamberlain, “nenhum dicio -
nário japonês ou estrangeiro o menciona antes de 1900”6.
Muitos praticantes das Artes Marciais não sabem que a pala -
vra Budo, embora impregnada do conceito de dever para com os su -
periores, que remonta a tempos imemoriais, acaba por ser rela -
tivamente moderna.
Documentos antigos indicam-nos que os japoneses estavam
sempre em guerra. A submissão ao seu senhor era total, e advém
do sistema patriarcal consagrado pelo feudalismo. As noções são
simples, pois os samurais não fazem especulações filosóficas. Ba -
seiam-se no conceito de giri, a justa razão, e no conceito de chugi,
que significa lealdade. A base do Bushido e da economia assenta
nes tes dois conceitos.
No entanto, com o tempo, desenvolveu-se uma mística do
sentimento, como, por exemplo, a noção de ninjo, de piedade e
respeito. Os laços que ligavam estes samurais aos filósofos nacio -
nais foram em primeiro lugar, é preciso não esquecer, as doutrinas
de Confúcio (551-479 a.c.) e de Mencio (372-289 a.c.), numa época
em que na China se dava mais importância à piedade filial do que
à obediência aos chefes e ao soberano.
Os ideais do verdadeiro samurai eram chi, a sabedoria, jin, a
disponibilidade, e yu, a coragem. Sabedoria não era sinónimo do
29
para onde foram os samurais
ver sangue e a não deixar transparecer qualquer emoção. No In -
verno, não se podiam aproximar do fogo que aquecia a casa, e
quando regressavam serviam-lhes arroz cor de sangue, tingido
com o sumo de ameixas salgadas...
A descrição de outras provas, por vezes diabólicas, a que os
samurais se submetiam, permite-nos compreender a sua atitude
destemida perante a morte. Aprendiam as Artes Marciais e estuda -
vam os clássicos chineses desde muito cedo. O pequeno sabre que
traziam à cintura não era um brinquedo e aprendiam a servir-se
de le, sacrificando as suas vidas, se o código de honra da sua casta
as sim o ordenasse. Não podiam ler romances, nem assistir a peças
de teatro popular, que fizessem apelo a paixões e emoções. Quan-
do passavam da infância à adolescência deixavam de estar subme -
tidos à vigilância dos que os rodeavam, e tinham liberdade de acção
de acordo com a sua maturidade. Tinham consciência de que uma
ofensa grave nunca seria inteiramente perdoada, e de que uma
censura era pior do que a morte. A sua palavra era sagrada, e de viam
ser Bushi-ni-ichigon, guerreiros de uma só palavra, enquanto ser
Bushi-no-nigon, guerreiros com mais do que uma palavra, significava
a morte.
Outra coisa que os samurais deviam ignorar completamente
era o uso do dinheiro. Este ideal, limitado mas não desprovido de
nobreza, inspirou aventuras cheias de actos de coragem comoventes
e terríficos, como, por exemplo, a história dos quarenta e sete Ronins,
os samurais sem mestre.
O meu mestre de Kendo e de Iai-do, Nakakura, levou-me a vi -
sitar a casa do chefe destes quarenta e sete samurais, numa peque -
na cidade perto da actual Kobé. Um descendente da família Ochmio
Kunamoshi ofereceu, para o Dojo que eu dirigia em Casablanca, uma
telha desta casa, mas um aluno meu, autor de livros sobre Zen, apro -
saber, mas sim uma ética no seu mais alto expoente, razão pela
qual se deu a junção com o Budismo Zen. Só entre o séc. XV e XVI,
o samurai se iniciou no arranjo floral e na cerimónia do chá, pois
raramente pousava o sabre, que estava sempre a seu lado como um
ser amado.
A temeridade era mal vista. Um verdadeiro Bushi não se lançava
na acção de cabeça baixa, pois a verdadeira coragem consiste em
viver quando é justo viver e morrer quando é justo morrer.
Os samurais eram admirados por todos porque sabiam escrever
um poema antes de morrer. A cerimónia do seppuku, impropria men -
te chamada harakiri, e praticada em casos limites como o de salva -
guardar a honra, é um cerimonial complicado, com um ritual em que
o menor detalhe tem as suas regras.
O futuro samurai tinha uma educação rigorosa. A criança não
podia mostrar muito afecto pelos seus pais; não podia ter atitudes
sentimentais e ainda menos chorar.
Hagino, um japonês descendente de samurais que foi meu
aluno de Aikido, contou-me em 1968 que o tempo das carícias
maternais foi breve para ele. Era engenheiro electrónico e director
de uma empresa japonesa de televisões. Quando o pai organizou a
ceri mónia da atribuição do hakama segundo as regras dos sa mu -
rais, Hagino teve que reprimir desde logo as suas manifestações de
afecto. Passou a ser-lhe interdito o prazer do devaneio, o de nada
fazer, o do conforto, tendo mesmo como almofada um entrançado
de lâminas de bambu. Ensinaram-lhe que o dever é o único guia e
que a morte tem pouca importância.
Os aprendizes de samurai passavam por provas muito duras,
como, por exemplo, a da atribuição do katana, o sabre. Os jovens
rapazes tinham que se acostumar a dormir num cemitério e, durante
as execuções por decapitação a que assistiam, eram obrigados a
para onde foram os samurais
30
priou-se dela... Fomos em seguida fazer uma cerimónia no tem plo
e queimar incenso no túmulo dos Ronins. A sua história é represen -
tada no teatro de Chushingua desde 1748. A terrífica aventura é
contada em onze actos, a sessão dura um dia e a sala tem nor mal -
mente a lotação esgotada. Em resumo, a história reza o seguinte:
Em 1701 o Shogum Tokugawa encarregou dois nobres da sua
corte de receber os representantes do imperador: Naganori Asano,
senhor de Ako, e Sakyo Date, senhor de Yoshida. O Shogum desi gnou
o seu camareiro Yoshinaka Kira para dirigir a etiqueta desta cerimónia,
mas o camareiro era invejoso e desprezou os dois jovens senhores.
Sakyo Date ofereceu presentes sumptuosos a Yoshinaka Kira.
Asano, mais simples, ofereceu um presente mais modesto mas com
Ki mochi, ou seja, com estado de alma. O camareiro não com pre-endeu
esta intenção e, a partir desse dia, tratou mal Asano que, com
sabedoria e modéstia, se dominou e aceitou com condes cen dência os
reparos do outro. Mas Kira interpretou esta atitude como sendo de
medo e a situação piorou.
Chegou o dia da recepção e, perante todos os nobres da corte,
Kira insultou Asano que, não podendo suportar esta injustiça,
desembainhou a sua katana e feriu Kira no rosto. Era proibido
desembainhar o sabre no palácio do Shogum. Asano conhecia essa
regra e, segundo o código de honra do Bushido, preferiu perder a vida
a perder a honra. Foi condenado pelo Shogum a fazer seppuku, as
suas terras foram confiscadas e os seus fiéis samurais foram dispersos,
tornando-se Ronins.
Asano cumpriu a cerimónia do seppuku com uma coragem
exemplar, que comoveu a assembleia; depois de ter cravado o sabre
no abdómen, cortou a garganta.
O chefe dos quarenta e sete samurais, Yoshitica Oishi, sou be
que o seu senhor tinha sido injustamente julgado por causa de
Kira que, receando uma revolta, reforçou a guarda do seu cas telo.
Oishi reuniu os samurais mais fiéis e juraram vingar o seu senhor.
Todos arranjaram uma nova profissão — lenhadores, forjadores,
comerciantes — para poderem conhecer e estudar as defesas do castelo
de Kira, até nele poderem entrar. Oishi passou a vaguear pelos
albergues mal frequentados e a levar uma vida de deboche, chegando
mesmo a repudiar a sua esposa, que ignorava o seu projecto de
vingança.
Ao fim de dois anos, Kira mandou um dos seus fiéis espiar Oishi,
mas este continuava a fazer o papel de bêbado, o que des cansou Kira,
que reduziu a segurança à entrada do seu castelo.
Chegara o momento, a hora de vingar e salvar a honra de Asano.
Oishi convocou os quarenta e oito Ronins ainda fiéis, mas faltou um
que, tendo sido proibido pela sua familia de se vingar, preferiu suicidar-
se...
Uma noite, valendo-se da reduzida segurança do castelo e
sabendo que Kira tinha organizado uma recepção, aproveitaram o
momento. Divididos em dois grupos, passaram ao ataque, neu -
tralizaram a guarda e encontraram Kira, que se tinha escondido num
canto do castelo. Os quarenta e sete Ronins ordenaram-lhe que
executasse o seppuku, mas ele, apavorado, tentou fugir. Oishi não
hesitou em matá-lo com o sabre que tinha servido para o suicídio do
seu mestre e a seguir todos concordaram em colocar a cabeça de Kira
sobre o túmulo de Asano.
Segundo o código de honra do Bushido a vingança era in terdita.
Portanto, os quarenta e sete Ronins decidiram fazer seppu ku, cortando
o ventre. Foram enterrados no cemitério de Senga-kugi. Só o mais
novo foi poupado, para que pudesse contar esta aventura depois da
morte dos seus companheiros.
Hoje, cerca de três séculos volvidos, os japoneses levam as
31
para onde foram os samurais
poema de Wou-Men:
Durante trinta anos procurei o perito do sabre.
Quantas vezes caíram as folhas
e os ramos deram botões.
Desde que um dia vi os pessegueiros em flor,
desde aí e até hoje
nunca mais duvidei.7
Comecei a perceber que a procura interior através das Artes
Marciais era complexa, e que alguns dos antigos samurais eram
adeptos do Zen, que os libertava de preocupações dualistas como
perder ou ganhar, vencer ou morrer, medo ou cólera, e que lhes per -
mitia ter a atitude certa, espontânea, verdadeira e sem inter venção
da consciência. Quando se atinge um certo grau na prática das Artes
Marciais, para continuar a progredir devemos libertar-nos dos cons -
trangimentos interiores que embaraçam a nossa mente.
O Zen vive-se, não se explica. Nos Estados Unidos, perto de
São Francisco, fui a um mosteiro Zen. O mestre Shunryu Suzuki8
falou-me da dificuldade de definir o Zen no Ocidente, e contou-me
esta história:
Um dia, um mestre de Zen foi aos Estados Unidos. Em Boston
foi convidado pela elite intelectual que, para o receber, tinha alugado
uma das maiores salas da cidade. Pediram-lhe para fazer uma
conferência. A sala estava cheia e o mestre aceitou. À hora prevista,
o mestre apareceu no palco e pôs-se na posição zazen em cima da
mesa que lhe estava reservada. Completamente imóvel, pôs-se a
meditar, perante o silêncio gelado da assistência. Ao fim de uma hora
perante uma sala tensa, o mestre saiu da imobilidade, juntou as mãos,
fez gasho (saudação), e disse: — Acabou a primeira lição. Dirigiu-se
à saída e foi-se embora.
De facto, o Zen vive-se, não se explica. Não é uma religião. É
crianças ao cemitério onde estão enterrados os quarenta e sete Ronins
para lhes dar uma lição de coragem, yu, e de sabedoria, chi. À entrada
do cemitério encontra-se uma inscrição significativa: “O gesto dos
quarenta e sete Ronins só pode honrar as futuras gerações da nossa
Nação”.
Para alguns esta atitude pode revelar uma alma generosa, ao
mesmo tempo sensível e viril, mas seguir esta via é como andar na
corda do funâmbulo, em que uma inépcia pode desencadear a vio -
lência e a injustiça. A perseguição do ideal deve ser feita a partir
do interior, depois de se ter reconhecido que, através dos séculos,
muitos foram heróis e muitos foram os que trouxeram má fama a
esta via, a via do Budo.
Neste capítulo quis mostrar como é difícil seguir a via dos Bushi.
Sendo hoje as artes do Budo praticadas apenas pelo seu lado des -
portivo, não se correrá o risco de abafar a sua essência, que se en -
contra para além do Budo? E como transmitir essa essência, adop -
tando uma forma mais adaptada aos heróis de hoje?
Por altura dos meus vinte cinco anos encontrava-me perante
o véu da incompreensão que, em tantos domínios, separa o Oriente
do Ocidente. Depois veio um raio de Sol, o Zen e o Yoga, que pouco
a pouco tornaram a prática mais clara, através do conhecimento da
profundidade do Ser, que só pode levar a uma Unidade, único garante
da compreensão mútua que ilumina o Caminho.
No meio das Artes Marciais, no Japão, descobri uma mecani -
zação do gesto, por vezes dentro de um espírito nacionalista, bem
longe do espírito ecuménico que eu procurava. Mas, no fundo, que
procurava eu? Só hoje sou capaz de o dizer: procurava a libertação
de uma força criadora através da espiritualidade, que, porventura,
não soube encontrar na religião ou na psicologia da minha época.
A minha experiência assemelha-se àquela que vem descrita num
para onde foram os samurais
32
uma atitude interior, uma maneira de viver, difícil de apreender por
quem o não pratica. É a arte de ver a sua própria natureza.
A escola budista Mahayana, de que deriva o T’Chang na
China e o Zen no Japão, lembra-nos que o homem tem um véu que
esconde a sua verdadeira natureza. Esta permite-lhe identificar-se
com o Universo, e faz dele um ser perfeito, longe da porta aferrolhada
do pensamento agitado, das especula ções intelectuais e da prisão
de uma maneira de pensar racional, que o impede de ver claro.
No Zen a lógica não existe. Existe o satori, que é a reintegra -
ção perfeita da consciência no Universo, forma de chegar a um co -
nhecimento simples, concreto, perfeito e verdadeiro, que, quando
acontece, é a iluminação. O homem comunica com o Universo. Ele
É. Aqui, não existe diferença entre o sujeito que descobre e o objec -
to descoberto. O homem encontra a sua verdadeira natureza e,
como dizem os mestres, reencontra a sua condição normal. Isto é
des concertante e inconcebível para o homem dito normal... e ain-
da por cima ocidental. Por isso, quem empreende esta busca tem de
aprofundar o conhecimento, avançando com paciência e persis-
tência por um caminho cheio de armadilhas, e preparando-se para
as decepções, como quando “uma mosca ataca um sabre”.
Cada um encontra um dia o mestre que devia encontrar. O co -
nhecimento não se assimila através de alguns estudos gestuais ou
de palavras dispersas, como se fossem receitas de cozinha. A reali -
za ção interior envolve-nos, compromete todo o nosso ser. Nesta
pro cura, acontece o que se chama ponto zero, ou seja, um período
de infusão a seguir ao qual, pouco a pouco, começa uma evolução
imperceptível.
Nem sempre podemos exprimir o que sentimos: estamos
sós, é a travessia do deserto. Quantos alunos conheço que vivem na
fron teira da verdadeira Via, da harmonia, e que, recusando a verdade,
dão um passo atrás no momento em que deviam avançar, mesmo
quando procuram essa verdade. São eles que muitas vezes provocam
conflitos num grupo que trabalha com sinceridade.
O ramo florido da ameixoeira
dá o seu perfume a quem o quebrou.9
Foi em Kyoto que encontrei a calma e a beleza que tinha perdido
em Tokyo. Se em Tokyo achei a multidão extenuante, Kyoto fez-me
descobrir uma outra face do Japão. Nas pequenas ruas transversais,
existiam verdadeiros mercados que me lembravam Marrocos. No
Verão, ripas de bambu, ainda hoje, protegem o transeunte, que con -
tinua a usar o traje nacional mais do que o ocidental. Dos artesãos
que há gerações fabricam leques ou trabalham a laca, emanava uma
calma, enquanto gueishas encantadoras, com os seus cabelos alisa -
dos com óleo de camélia, fazendo lembrar porcelana, cruzavam-se
comigo arrastando as suas sandálias. Eu passava despercebido ves -
tindo o meu hakama, o meu keikogi e as minhas guettas nos pés.
Lembro-me de parar um instante junto a um grupo de crianças, de
kimonos floridos, que partilhavam açúcar de cevada ou chá verde.
Mais longe, numa pequena ponte abraçando um rio, tintureiros mo -
lha vam os seus panos, e na margem flutuavam ao vento as sedas
multicolores. E ainda os fûros (banhos termais) públicos, de onde
saíam velhos e jovens vestidos com yukatas de cores diferentes, e
grandes sorrisos, inclinando-se respeitosamente sempre que se
cruzavam com conhecidos. Um bonzo passava olhando em frente.
Fazia um calor tropical, quase húmido. Estava à porta de uns fabri -
cantes de bokken (sabre de madeira), pai e filho, cujo endereço me
tinha sido dado em Tokyo, e que são únicos no Japão. Tinha três ho -
ras, antes de uma cerimónia do chá, para escolher um bokken corres -
pondente ao meu tamanho, ao meu peso e à minha experiência.
Kyoto é na verdade um outro mundo: os elementos que a
33
para onde foram os samurais
fia humana.
No Japão, o Zen compreende três grupos: Rinzai, Sôto e Oba -
ku, cujos princípios são idênticos embora a sua história seja diferente.
O primeiro chegou ao Japão em 1191 com o monge japonês Eisaï
(1141-1215), que tinha ido instruir-se na China. O segundo foi fun -
dado por Dôgen (1200-1253), que também tinha sido discípulo
de grandes mestres chineses da escola T’Chang. O terceiro foi funda -
do no Japão em meados do séc. XVII, durante o período Toku gawa
(1644), por um mestre pintor chinês chamado Hsunen (1601-1668),
que se tornou superior do mosteiro de Obaku-san, o primeiro que
visitei no Japão.
O Zen é um ensinamento oral em que a intuição é mais im -
portante do que os textos. Akira Sato10, o arquitecto paisa gista,
mestre de jardins e monge Zen, que em 1968 me foi visitar a Marro -
cos, convidou-me para, juntamente com o meu aluno Hagino, irmos
ao Japão a fim de visitar alguns templos célebres, e quis apresen-
tar-me ao seu mestre, pois eu tinha o desejo de fazermos sesshin
com os monges. Aceitei de boa vontade, tanto mais que o meu Dojo
em Casablanca tinha sido o primeiro de toda a África a praticar Zazen.
Akira disse-me:
Sei que no Japão não falam muito dos chineses, mas o Zen deve
muito a Lao-Tsé11. Este grande sábio meditava muitas vezes em plena
natureza, nos bosques, à beira de lagos e rios. É o seu pensamento
que está na origem da minha especialidade de pai sagista. A beleza
dos jardins é eficaz para que possamos encon - trar a nossa natureza
fundamental e aprofundar as virtudes espi rituais, que são os
ensinamentos sistemáticos, os métodos dos livros. A natureza é
como um praticante de Zen, não é?
Akira Sato era de baixa estatura, e vestia sempre fato cinzento,
camisa branca e uma bonita gravata. Trazia um pequeno leque
compõem misturam-se, entrelaçam-se e acabam na verdura, como
num sonho. “Não te apresses”, parece sussurrar-nos o espírito da
cidade. Antes de penetrar nos mistérios de Kyoto tudo parece no seu
lugar e enquadrado do modo mais natural. Foi aqui que o Budismo
japonês se expandiu, foi neste lugar que as artes e a cultura encon -
traram o seu terreno de eleição. No Japão a beleza esconde-se. É
iniciática, ou é merecida ou não o é. Depende da intuição de cada
um. Tal como no amor, o belo que se revela belo ao primeiro olhar
é vulgar. Com certeza que a beleza não está ausente das grandes
cidades cheias de gente: ela aparece nos jardins, nos templos ao
canto de uma rua, numa casa onde o requinte vindo de outras para -
gens realiza a harmonia perfeita entre o homem e o cosmos, crian -
do um verdadeiro oásis de paz. A beleza é um instante presente, é
como uma palavra murmurada ao nosso ouvido, longe da agitação
da circu lação da multidão japonesa, tão frenética como a das for -
migas no seu trabalho.
A visão da beleza que poderíamos qualificar de romântica está
baseada na intuição, não no intelecto, e pode ser definida como:
Shumi: o gosto Kokoro: o coração Satori: a iluminação
A beleza escondida que encontrei através do seu hermetismo
e da sua espiritualidade, foi a que me levou à China e, mais tarde, à
Índia. Mas o caminho que escolhemos depende das finalidades a
que nos propomos.
Os objectivos que persigo impedem-me de me fixar em qual -
quer forma particular. Decepcionado por alguns depositários da Via
das Artes Marciais, encontrei-me entre duas paredes... Voltei-me
para o Zen para encontrar uma resposta que, na sua essência, tivesse
um alto valor Universal. Já sabia que o Zen tem a preocupação de
evitar as complicações filosóficas, de ir directamente aos conceitos,
às práticas mais simples, e de afirmar, antes de tudo, uma filoso-
para onde foram os samurais
34
à cintura, para refrescar o rosto de vez em quando. Oferecia-me
sempre o chá segundo as regras do cerimonial Cha-no-yu, e eu
assistia, sempre maravilhado ao ritual dos gestos onde tudo é
simples, puro, mas extremamente preciso, como um kata de sabre
que pretenda produzir um sentimento delicado e sóbrio. De cada
vez aprendia a escutar a canção deliciosa da água a ferver. É pre ciso
ter o espírito muito vivo para com preender, comen tava o meu amigo,
que há qualquer coisa de intuitivo... O chá, diz um sábio chinês, é
uma via directa. Gostava que sentisse isso, para esquecer as desilusões
do Budo japonês, tão militarista. A seguir recitou-me lentamente um
poema de Dogen12, numa mistura de francês e inglês, com sotaque
japonês:
Meia noite
O ar está calmo, sereno
A água como um espelho,
A Lua,
Luz no ar, Luz na água
Por todo o lado pura.
Oh, pura, transparente
Uma barca vagueia.
Depois acrescentou: Compreendeu, Sensei? Respondi-lhe que
talvez devesse entender que, para continuar a Via começada, era
preciso que estivesse mais sereno, puro, desapegado de tudo, livre,
e que o caminho devia ser transparente como a paisagem que Dogen
descreve. Akira recitou, então, outro poema de Yamada Mumon:
As sombras dos bambus passam sobre os passeios
Mas não levantam nenhuma poeira;
A luz da Lua penetra até ao fundo da água
Mas não deixa lá nenhuma marca.
Logo a seguir, perguntou-me se o conhecia. Claro que o conhe -
35
para onde foram os samurais
cia. Disse-lhe que gostava sempre de o escutar, pois para mim ele
representava um movimento como o Kokyu-nage do Aikido, mas que
isso não explicava o Zen, e naquele momento eu andava à procura
de explicações. Akira comentou:
Não se pode explicar o Zen, porque é inexprimível. É por isso
que o levo a ver jardins, templos, pois a natureza faz melhor do que
explicar: ela inspira-nos uma compreensão pessoal. Só isso é verdade.
Exprimi mais uma dúvida. Uma vez que o Zen não se explica,
deveria eu renunciar a compreendê-lo. Ele fixou-me gravemente com
os seus pequenos olhos penetrantes. E, com um meio sorriso, das
suas palavras, mais uma vez, brotou a força da sabedoria:
A compreendê-lo não, pelo contrário. A que vos seja expli cado,
sim... O Zen é a doutrina do pensamento transmitida pelo pen samento.
I shin den Shin (da minha alma à tua alma). É por um esforço intuitivo
e pessoal. Procure em si e sorria... como Buda.
A chuva chegou e partiu, o sol subiu ao seu trono. O calor
reconfortava-me. Se a luz era autoritária, ela deixava, contudo, viver
as inumeráveis luzes que me rodeavam. Os pequenos trevos tímidos
e os íris azuis pontilhavam o jardim. Uma esperança...
Estavamos longe de tudo, no espaço e mais ainda no tempo.
Sorri.
Foi a última vez que encontrei Akira Sato.
para onde foram os samurais
36
1 Matsuo Bashô (1644-1694). Poeta e religioso Zen, foi um dos principais escritores dogénero poético haiku. O haiku, segundo Sousa Braga, é um poema breve de três versos(de 5-7-5 sílabas) e é o resultado da lenta depuração que a poesia japonesa sofreu aolongo de séculos. Soji, Sokan e Moritake, no séc. XVI, conferiram-lhe individualidade.Mas foi sobretudo com Bashô que o haiku adquiriu a textura mais cristalina.” (MatsuoBashô, O Gosto Solitário do Orvalho, antologia poética, versão de Jorge de SousaBraga, Lisboa, ed. Assírio e Alvim, 1986, p.12). Bashô que, em 1684 inicia uma vidaerrante foi também autor de alguns diários de viagens: O Caminho Estreito para oLongínquo Norte, O leque Circular e O Deserto.
2 Kiyoshi Nakakura (1910-2000) nasceu em Kagoshima e iniciou a prática do Budo muitocedo, dedicando-se sobretudo ao Iai-do e ao Kendo. Casou-se com a Srª Matsuko, filhade Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, de quem se tornou filho adoptivo com onome de Morihiro Ueshiba. Atingiu os graus de 9º Dan, Hanshi de Kendo e 9º Dan,Hanshi de Iai-do. Abandonou o Kobukan Dojo por razões pessoais. Foi um dos grandese prestigiados mestres de Kendo e de Iai-Do do Japão.
3 O Yamato-Damashi, ou espírito do Yamato, foi a expressão utilizada sobretudo antes edurante a Segunda Guerra Mundial para tudo o que o Japão podia conter de força, deespírito, de coragem e de capacidade de devoção e entrega à pátria e ao imperador.
4 L. Warner, Art of Japan, Inglaterra, ed. University Harvard, 1958, p.38.
5 G. B. Samson, A Short Cultural History, New York, 1943.
6 B.H. Chamberlain, Moeurs et Coutumes du Japon, Tradução de Marc Logé, da 5ª ediçãojá revista e aumentada pelo autor, Paris, 1931 .
7 Wou-Men, Passe sans Porte ( Wou-Men Kouan), traduzido por Masumi Shibata, Paris,ed. Villain et Belhomme, 1973.
8 Shunryu Suzuki (1904-1971), monge japonês do Soto Zen, chega aos Estados Unidosem 1959, para aí desenvolver o Soto Zen. Rapidamente atrai numerosos discípulos efunda um centro em S.Francisco e em Tassajara, local onde abre o “Zen MoutainCenter”, o primeiro mosteiro zen do mundo ocidental. Sucede-lhe um dos seusdiscípulos americanos, Richard Baker. Shunryu Suzuki escreve um pequeno livro EspritZen, Esprit Neuf que é uma pérola para todos aqueles que se interessam pelo Zen. Estaobra é uma compilação de várias conversas e entrevistas entre ele e os seus discípulos.Shunryu Suzuki, Esprit Zen, Esprit Neuf, Évereux, ed. Point, Inédit Sagesses, 1976.
9 Matsuo Bashô (ver nota 1)
10 Akira Sato, presidente da Associação dos Arquitectos Paisagistas do Japão e praticanteZen.
11 Lao-Tsé ou Lao Tzu terá vivido na primeira metade do séc.VI a.c., sendo mais velho duasgerações do que Confúcio. A obra Tao Te King (O Livro da Via e da Virtude), atribuído a Lao Tsé, é, por isso, considerado pela tradição como o mais antigo livro da filosofiachinesa. No entanto, sabe-se hoje, que é uma obra bastante posterior, talvez do séc. IIIa.c.. A ligação entre as ideias do verdadeiro Lao Tsé e do livro que associamos ao seunome é difícil de estabelecer, mas é de admitir que esta obra tenha conservado, aindasob a forma original, alguns dos seus ensinamentos.
12 Dôgen Zenji (1200-1253). V. Jacques Brosse, Zen et Occident, Paris, ed Albin Michel,1992.
segunda parte
criação do tenchi tessen
38
Antes de responder à pergunta que dá o título a este capítulo,
julgo oportuno retomar brevemente a já referida questão acerca das
artes do movimento como prática que não pode estar desligada da
espiritualidade.
No livro O gesto criador e o Aikido, os autores interrogam-se
sugerindo uma dicotomia radical:
O que é o espaço, para o desportista? Um mundo neutro e sem
energia, um lugar de treino no qual reina a clorofila. Ele tra balha um
corpo mecânico, de cuja higiene cuida, e, tal como a arte apenas
preocupada com as leis da estética, poderia ver o seu corpo,
consagrado ao rendimento, de outro modo que não fosse o de um
fresco ornamental no frontão dos estádios?1
Esta oposição entre a arte e o desporto não é uma tese de -
fensável. Marcada por uma compreensão caricatural da arte, a
afirmação deixa porém antever um drama em que muitos prati can -
tes estão mergulhados.
As novas abordagens em relação ao corpo são como uma luz
nas trevas. Psicólogos, grupos de teatro, médicos, dão-se conta de
que qualquer coisa ficou esquecida e que o corpo tem uma outra
dimensão, mais próxima do que antes se chamava espírito. Se a
junção entre movimento e espiritualidade já está em curso, parece
ainda longe de estar feita, e a reacção, quando queremos apro fun -
dar a arte do movimento, costuma ser a da perplexidade.
Hoje em dia uma grande parte dos praticantes de Artes Marciais
estão divididos em vários grupos: a maioria escolheu a via da com -
petição, que, na minha opinião, conduz muitas vezes a vitórias
efémeras; outros escolheram a auto defesa; outros ainda, mais
próximos da Via do Samurai, preocupam-se sobretudo com a estra -
tégia do combate.
Todos esses praticantes foram mal dirigidos, foi-lhes ensinada
uma técnica, em detrimento da arte da procura interior. Na trans -
missão de conhecimentos do que, por definição, seria a Unidade,
caiu-se no velho erro ocidental de separar o corpo e o espírito.
Um dos sintomas evidentes dessa fractura é o desaparecimento
ou a escassez dos Dojos, ou seja, dos lugares de treino do corpo e do
espírito, suplantados pelos ginásios onde normalmente se treina
apenas o corpo. Basta entrar num ginásio para nos apercebermos
de que a espiritualidade ou está ausente ou é, na maior parte das
vezes, abordada sem critério. Teremos compreendido o verdadeiro
caminho do Do, a mensagem de amor através do conhecimento de
si próprio? Como compreender que o Aikido (e da mesma forma as
outras Artes Marciais e do movimento), criado como uma arte espi -
ritual, possa hoje estar inscrito no comité olímpico como um des -
porto? Alguns dos meus velhos mestres devem dar voltas no túmulo.
Habituado a trabalhar dentro de um outro espírito e decep cionado
com esta degradação, mantive-me na via da não dualidade.
Que podemos encontrar no Ocidente em relação às Vias orien -
tais, que são arte do movimento? Podemos encontrar uma opção
39
o que é o tenchi tessen? I
Auguste Rodin, nas suas conversas com Paul Gsell, quando se
referia aos oficiantes da beleza, dizia:
Começo a compreender, isto é, dei-me ao trabalho por uma
coisa. Qualquer um que compreende uma coisa, compreende geral -
mente todas as coisas, pois tudo obedece às mesmas leis. Aprendi a
escultura e sabia que era algo de grandioso. Lembro-me de que, na
Sucessão de Cristo, particularmente no terceiro livro, usei a pa la vra
“escultura” em vez de “Deus” e isso era perfeitamente certo.2
Na procura da arte do movimento é verdade que o corpo e
o espírito estão misturados como o sal e a água do mar.
No Tenchi Tessen, os preliminares, como, por exemplo, o trovão,
os oito ventos, o infinito e a espiral, ou temas como o pássaro, a roda
e Nataraja, o deus dançarino, são movimentos que devem ser
executados a partir do interior, como uma expressão universal, pois
são o conjunto de todas as vibrações da natureza, por mais subtis
que sejam. São vibrações primeiro percebidas intuitivamente e
depois conscientemente, para a seguir se exteriorizarem no gesto,
acompanhado por vezes por sons emitidos durante a expiração.
Os movimentos do Tenchi Tessen propõem a recriação de um
micro-cosmos animado sempre pela acção unificadora do sopro. O
sopro é a vida e é também o movimento, movimento que é a própria
Vida, o seu centro, centro onde não há limites.
Às vezes falo em técnica do movimento, mas quando digo isso
não me refiro a recursos ou expedientes formais. Quero dizer que o
movimento deve ser preciso, com uma linha de expressão exacta,
resultante de treino e domínio. É a escrita do corpo em movimento,
onde a técnica se transforma em movimento, pois o espírito já não
se inquieta, o corpo já não está tenso e assim todo o ser se manifesta.
Como antecipado rapidamente na introdução, ao criar o Tenchi
Tessen, escolhi um nome de origem chinesa, que para mim traduz
sim plesmente física, condicionada pela habitual divisa mens sana in
corpore sanum, que ignora por completo a espiritualidade e que
adultera inclusivamente a original anima sana in corpore sanum.
Podemos encontrar também a opção oposta, a via mística, de
inspiração judaico-cristã, reservada aos que se retiram do mundo e
desprezam profundamente o corpo.
O investigador que, sem rejeitar o corpo e sem querer fugir do
mundo, aspira a uma espiritualidade, depara-se com um muro de
incompreensão.
No que diz mais especificamente respeito ao Tenchi Tessen,
devo confessar que, quando me perguntam o que é, fico sem voz.
É-me difícil delimitar a minha pesquisa estando eu ainda no prin -
cípio. Sei que poderia dizer o que não é, e isso não seria fugir à per -
gunta, tanto mais que o meu objectivo é concretizar, através da nossa
escola, a diferença entre o estudo mecanicista do movimento e o
movimento criador.
Como em todas as artes, em particular nas artes ditas “marciais”,
a ruptura deu-se devido a essa diferença. Com mais de trinta anos
de prática afastada do conformismo japonês, conformismo por
vezes esclerosado com problemas hierárquicos hoje sem grande
significado, o Tenchi Tessen nasceu de experiências diversificadas
como o Aikido, o Judo, o Yoga, o Zen e a antropologia teatral. É a
escolha de uma escola onde a forma se move e o gesto se harmoniza.
Os movimentos desenvolvem-se em espiral, em curva ou em
círculo, requerem um trabalho incansável e cheio de emboscadas,
desde o sentir ao ter consciência, a ponto de os poder demonstrar e
viver. Contudo, antes de prosseguir falando do caminho percorrido
e a percorrer, queria que parássemos um instante, no ponto em que
se cruzam os caminhos dos que procuram o mistério do movimento.
Este ponto de intercepção é o da vida criativa.
o que é o tenchi tessen?
40
profundamente a arte do movimento que pratico: Ten, Céu; Chi,
Terra; Tessen, Leque, que simboliza o sopro.
Na prática do Tenchi Tessen procurar-se-á sempre a harmonia
destes três elementos, pondo sempre a nossa maior atenção na
execução do movimento no seu mais alto grau, pois ele deve incarnar
o UM e o MÚLTIPLO. Para isto é, evidentemente, necessária uma
compreensão da unidade da vida, pois tantas vezes o homem fica
prisioneiro do seu pequeno eu e, portanto, dos seus limites pessoais.
No estudo do Tenchi Tessen é conveniente aprender a ultra -
passar os limites psicológicos do ego. É aqui que começa a medi -
tação. Dou uma grande importância ao fundamento silencioso, ou
seja à meditação, pois estas duas disciplinas são complementares.
No silêncio e na meditação haverá uma transformação progressiva,
durante a qual a nossa consciência pessoal se irá separar dos seus
condicionamentos, para ficar finalmente disponível para a unidade
universal, formando a realidade última dos seres e das coisas. A
realidade, porém, não é senão a própria essência do movimento: esta
realidade é ela mesmo movimento de pura criação, e é aqui que as
relações do homem entre terra e céu representam uma arte de viver
que pode ser a base espiritual do Tenchi Tessen.
Nas técnicas do Tenchi Tessen é o nosso interior que rege o
movimento. É o que eu chamo movimento habitado pela cons -
ciência interior, onde existe o domínio de vibrações e de ritmos
esparsos, o que dá a possibilidade de captar as sensações virgens e
de as modelar, como um escultor. Trata-se de um processo que exige
uma grande atenção.
Na procura da forma, há uma educação da mente ou da força
que a acciona e, para o efeito, é útil conhecer os seus mecanismos.
O movimento da mente e o seu funcionamento
É preciso saber distinguir a mente da consciência do ser, ainda
que as duas sejam apenas uma e a mesma coisa. Através da procura
interior na arte do movimento, damo-nos conta de que a mente é
uma parte da consciência indivisa. Esta é neutra e não se identifica
com os movimentos da mente, é o fundo da nossa personalidade
aparente. Esta consciência do ser é indefinível, e a procura demons -
tra que, quando transcende as funções psicológicas, não tem limi -
tes porque não tem forma, e não tendo forma não pode ser agarrada.
A mente funciona geralmente de uma maneira dualista — sim/
não, bem/mal, faço/não faço, e assim por diante — o que gera por
vezes eternos problemas que se repetem. Só depois de um verda -
deiro discernimento a mente pára de vagabundear. A consciência
certa assemelha-se ao espaço vazio e silencioso. Tal como ele a
mente dissolve-se no silêncio de ser, silêncio que não é ausência mas,
pelo contrário, plenitude.
O estudo do Tenchi Tessen deve, através dos seus movimentos,
eliminar este jogo psíquico dos opostos dualistas, que são a principal
causa de um movimento mal executado, pois os opostos geram a
divisão do gesto e afastam-no da sua unidade. Para a tradição indiana,
a mente funciona segundo três modos que, na minha opinião, se
reflectem muitas vezes na execução de um gesto:
• o primeiro é o funcionamento em que o espírito está agi -
tado, extrovertido e turbulento, que encontra a sua expressão no
egoísmo, na paixão, na brutalidade;
• o segundo é o que torna o espírito pesado, inerte, preguiço -
so, pouco evoluído, ou seja, quando a psique é abafada pela matéria;
• o terceiro é o que torna a mente calma, leve, estável, clara;
é o estado ideal para a prática, porque nos torna disponíveis, o que
41
o que é o tenchi tessen?
tradições? Depois de uma pausa, ele respondeu: No vosso país, na
Europa, vocês comem frutos exóticos, frutos vindos de diferentes
origens, bananas, pêras, laranjas, ananás. Têm o direito de se ali -
mentarem de todas as tradições, sendo claro que a banana nunca se
tornará uma maçã e vice versa. Estes dois frutos não se guer reiam.
As verdadeiras tradições não são contraditórias na sua essência.
Não será o mesmo com a música?
A música para o Tenchi Tessen deveria partir de um idêntico
impulso, de uma explosão criadora.
As experiências que realizámos com músicos provaram que
quando os movimentos do Tenchi Tessen e a música são praticados
numa comunhão mútua e sincera tornam-se indissociáveis, pois
praticantes e músicos têm a mesma finalidade, não seguem cami -
nhos paralelos, e por isso manifestam-se no instante presente.
O aparecimento da música nasceu de uma necessidade de
fusão do movimento com o som. Werkmeister3 dizia: O Universo
inteiro reflecte a harmonia da criação, esta harmonia está na origem
da música. Os movimentos que trabalhamos são sempre executados
com a finalidade de ir ao fundo das coisas.
Não é o som o espelho desta harmonia universal?
Não sendo o Tenchi Tessen uma dança, os seus movimentos
harmonizam-se perfeitamente com a música, pois dirigem-se aos
limites do corpo, do gesto, e a música vai no sentido do desabro char
do som. Se esta fusão se der no mesmo instante, toca-se o absoluto.
Contudo, se por vezes o som é necessário para que o movimento se
apoie nele, o silêncio é também a música do movimento. Vêm-me à
memória as palavras de Isadora Duncan: Sempre predisse que viria
um grande artista que reunisse estes dois dons — saber escrever
música e poder dançá-la.
Eu não sei compor música, mas penso que os movimentos do
também pode ser alcançado pela própria prática, mas para isso é
necessário um desenvolvimento da atenção e da quietude.
Em relação ao último ponto, é necessário esclarecer que se
fizermos um esforço demasiado voluntarioso para estarmos aten -
tos sem nos descontrairmos, vamos criar tensões. O movimento
crispa-se e o sopro não flui. Se, pelo contrário, nos descontrairmos
sem aumentar a atenção, caímos na inércia. As nossas acções devem
ser feitas sem implicações emotivas e sem interesse pessoal, na
pureza e na positividade dos nossos pensamentos. Assim o movi -
mento virá do centro, pois mobiliza a atenção num gesto único, puro,
que é também um movimento unificador.
A música e o Tenchi Tessen
Uma pergunta me fazem frequentemente: porquê música no
Tenchi Tessen? E que música? Não é fácil responder quando o inter -
locutor é um melómano ou um musicólogo. A pergunta poderia ser
colocada da seguinte maneira: qual é o papel da música na prática
do Tenchi Tessen?
Há muitas opiniões sobre a relação da música com o movi -
mento. Na dança, por exemplo, os coreógrafos e os grandes bai -
la rinos têm muitas vezes pontos de vista diferentes. Para uns a
mú sica pode ser um apoio rítmico, no conceito de uma unidade de
medi da; outros, pelo contrário, interpretam a música com o corpo,
procurando o que o compositor quis transmitir; outros ainda vão
mais longe, para além da obra musical.
Não partilho estes pontos de vista, e eles lembram-me uma
pergunta sobre as diferentes correntes espirituais que fizeram
um dia a um sábio oriental: Pode viver-se de acordo com várias
o que é o tenchi tessen?
42
Tenchi Tessen passam pela intuição do corpo, e uma música que não
tenha a mesma finalidade torna-se um mal entendido. Na nossa
cultura, de que a música faz parte, por vezes desenvolvem-se as
formas e os meios, pondo de lado as artes do movimento, que não
fazem parte da cultura. Refiro-me à cultura mais profunda, intuitiva,
pré-expressiva, que é a base e o fundamento dessas formas e desses
meios, pois ela vai à fonte da vida, da forma em movimento.
Como toda a arte que manifesta beleza, é também através de
sinais exteriores e de processos que lhe são próprios que a arte capta,
para se apropriar deles e para os idealizar, os eflúvios estranhos e
maravilhosos do mundo que nos rodeia, bem como os sentimentos
mais íntimos e os pensamentos mais profundos. A arte aparece-nos
por vezes como imaterial, subjectiva.
Quando um praticante dá ao seu movimento a expressão
máxima, esta emana do mais profundo do seu ser e ele realiza uma
síntese harmoniosa entre a matéria e o espírito, síntese de dois
aspectos de uma mesma realidade. À semelhança do pintor que
fixa lentamente na tela o sonho da sua imaginação, do escultor que
desbasta o bloco de pedra e lhe dá o último acabamento, do poeta
que encontra apoio num determinado sentido das palavras e do
músico que trabalha com sonoridades que se desvanecem logo que
são emitidas ou ouvidas, o praticante de Tenchi Tessen cria um movi -
mento de que só ficará a lembrança fugaz de um instante, como
acontece com o bailarino.
E, já que falamos de coisas imateriais, dirijo-me aos materia -
listas convictos. Beethoven compôs as suas obras-primas quando já
estava completamente surdo, separado de todos os barulhos do
exterior. Ele costumava explicar que ouvia os acordes indizíveis da
sua alma, no fundo do seu ser, muito melhor do que ouvia antes. Ele
equilibrava as massas sonoras e dele jorrava uma música que per -
tencia ao mundo exterior. Que prova mais peremptória!
A música do Tenchi Tessen é a imagem do verdadeiro praticante
e, para concluir, se me permitem cito esta metáfora que vem da Índia:
Aquele que procura verdadeiramente é como uma harpa de três cordas.
Há a corda física, harmonizada pela prática e pelo respeito das leis
e ritmos profundos da Natureza, enquanto a corda emocional e a
corda mental são harmonizadas pelo silêncio interior. Como a harpa
é um instrumento nas mãos do artista, aquele cujo corpo se faz harpa
torna-se instrumento das mãos divinas. A vida inteira de quem procura
torna-se então uma obra constante, os seus gestos exprimem os
movimentos e os ritmos de uma sinfonia cósmica de que ele é uma
nota singular ligada ao que o rodeia. Não virão a música e a arte do
movimento das mesmas profundezas?
O movimento do pincel
O movimento do pincel é uma fonte do gesto e do movimento
exterior. O mestre e pintor chinês Zhang compreendeu-o muito bem
ao escrever: É preciso transmitir à mão o que o coração apreendeu.
São palavras que trazem à memória as lembranças de um
encon tro com outro artista que se dedicava à mesma arte com o
mesmo espírito.
Entrei num atelier onde o cheiro característico das tintas de
óleo enchia o espaço silencioso. Aproximei-me com cuidado, evitan -
do derrubar as numerosas telas que enchiam a sala iluminada pela
luz imaterial das janelas sem cortinas. O homem parecia estar sentado
defronte do cavalete desde sempre, e capaz de aí ficar até ao fim dos
tem pos. No seu trabalho não havia nem precipitação, nem hesitação.
Durante uns momentos, apesar da minha presença, ele criou e cobriu
43
o que é o tenchi tessen?
com o estado de espírito. O perigo das artes do movimento — cali -
grafia, dança, Tenchi Tessen, etc. — é o de negligenciar a vertente
interior para se ocupar de problemas técnicos e formais, que não
são mais do que aparências de arte.
O Tenchi Tessen, como já referido, é o fruto de uma experiência
nas artes em geral, elaborada em domínios diversificados como a
mitologia indiana, a filosofia chinesa, as artes marciais, a icono-
grafia, o yoga ou o teatro. Domínios diferentes mas que têm um
ponto em comum: uma dimensão cósmica.
O itinerário do Tenchi Tessen só pode ser traçado percor rendo
essas disciplinas, entendendo-as como um caminho global e vi san -
do atingir o equilíbrio. Tal método pode parecer demasiado empírico
aos olhos ocidentais, mas o Oriente vê nesta procura uma prática
ligada às artes, cujos fundamentos se enraízam nas mais antigas
tradições.
Sabemos que, para que um movimento seja autêntico, deve
estar para além dos automatismos e dos condicionamentos que
impedem a espontaneidade criativa. Este processo deve ser ensi -
nado e dado a conhecer aos praticantes.
Uns escolheram o pincel, outros o sabre, eu escolhi o leque.
1 Georges Brunon e Pierre Molinari, Le Geste Créateur et l’Aikido, Mayenne, ed. DuRocher, 1980, p. 53.
2 Auguste Rodin, L’Art (entretiens réunis para Paul Gsell), Lausanne, ed. Merunod, 1953,p.96.
3 Andreas Werkmeister, Musiktheoretiker, ed. Herman A.W, 1951.
de tinta fresca uma tela branca, com as cores predilectas que só ele
sabia misturar, especialmente os verdes e as cores da floresta no
Outono. Enquanto pintava, o seu rosto de olhos azuis permanecia
impas sível, mas o seu pincel saltitava em diferentes direcções e
parecia estar directamente ligado ao mais profundo do seu ser.
Voltou-se de repente, esboçou um sorriso tímido sob a barba
branca, poisou o pincel e a paleta e apanhou maquinalmente um
dos seus muitos cachimbos. Num movimento de hesitação, voltou a
poisá-lo e sentou-me nos seus joelhos.
Foi assim que conheci o meu avô. Morreu como um grande
pintor, frente ao seu cavalete, ao assinar a sua última obra, no meio
das cores de Outono. Para a minha irmã e para mim ele foi sempre
o “avô cachimbo”.
Muito mais tarde na região de Kyoto, no Japão, peguei pela
primeira vez num pincel para caligrafia (burashi) e pensei nele ao
perguntar-me que elo poderia ligar os artistas europeus com os
orientais.
O meu Mestre, talvez adivinhando os meus pensamentos,
lembrou-me que era preciso que eu inspirasse e expirasse mais
lentamente, pois os meus gestos eram bruscos demais e que eu me
devia concentrar exclusivamente na fonte profunda do ser que
existe dentro de mim mesmo. Deste modo o acto de pintar encontraria
a sua plenitude e espontaneidade.
Se respeitarmos estes verdadeiros preliminares, a caligrafia
toma relevo; de outro modo, torna-se inerte.
O traçado do pincel é como que uma projecção do espírito —
por vezes o pincel apenas aflora a folha branca, outras vezes esmaga-
-se contra ela — então o traço é sem retorno nem hesitação, como
uma estrela cadente na noite.
Para o mestre de caligrafia, a postura deve estar em harmonia
o que é o tenchi tessen?
44
O Dojo é um local de prática onde o vazio é habitado pelo
instante presente.
No silêncio do Dojo a grande tela branca está estendida no
chão. Vestindo o keikogi e o hakama brancos, o praticante está de
pé e começa a rodar com o seu leque vermelho. O ritmo é lento e
leve como uma boa respiração. Os gestos, primeiro arredondados,
desenrolam-se em grandes espirais, como se quisessem domesticar,
docemente, o espaço. O movimento prolonga-se espontaneamente
e forma um todo.
Os movimentos do Tenchi Tessen, como os do pincel na arte
da caligrafia, são vigorosos e firmes, partem da base para chegar ao
cimo. Há neles a consciência da gravidade, que está ligada à cons -
ciência do eixo. O movimento parte do centro sem hesitar, pois o
equilíbrio é obtido pelo movimento periférico que gira em volta
do eixo imóvel. A dança dos movimentos começa e continua, sem
sabermos distinguir se é o leque que dança ou se é o corpo do pra -
ticante que o faz. Mas é um ritmo que pode ser lido no espaço do
Dojo, uma vez deixado vazio.
O som do sopro do praticante assemelha-se ao vento da pri -
mavera que aflora as folhas dos bambus como numa carícia. De
súbito, um kiai, o grito que se manifesta quando o movimento está
no apogeu. O movimento desaparece para logo renascer; este é o
movi mento do instante.
O espaço e o céu ainda vibram! À volta é o silêncio que sublinha
o canto do pássaro e das rãs que vivem no pequeno lago do Dojo.
Esses movimentos são a passagem obrigatória para escalar a
montanha. E contudo um olhar sobre o passado...
O Homem sob o Céu e a noção de Ma
Chegará um dia em que o movimento (técnica) e a estabili -
dade, a arte e a sabedoria, harmonizar-se-ão, mas antes disso quanto
trabalho incansável teremos pela frente, como num combate contra
nós próprios. O Dojo é um dos locais eleitos para esse tipo de com -
bate, ou seja, para o conhecimento e a aceitação de si próprio e dos
outros, num processo de integração em evolução permanente.
45
dojo — local de práticaNo ponto do mundo
que rodeia o ponto de repouso
está a dança.
T. S. Eliot
Uma aula de
Tenchi Tessen
no Dojo Ten Chi
II
O sentido dos movimentos do Tenchi Tessen não é a realização
rígida ou mecânica de um gesto, mas sim o desenvolvimento, através
da prática, de uma nova sensibilidade em relação à terra e ao céu,
ao espaço e à energia cósmica. O coração do movimento é calor,
abertura ao outro, escuta na estabilidade, num silêncio interior.
O único objectivo no gesto é estar presente: simplesmente
estar no movimento. É por o gesto estar numa presença que ele é
sem ruptura e que a sensação se abre ao espaço na relação Céu/ Terra.
Trata-se de uma sensação que não pode ser percebida pelo intelecto,
mas que aparece com a prática e ressoa para além da prática.
Iki é o estado espiritual que dá vida às técnicas e que pode
estender-se quer a significados específicos, como sopro e espírito,
quer a referentes mais amplos, como seja um modo de vida artístico.
Na arte do movimento não é suficiente uma sucessão de
belas posturas. É necessário que as posturas e os movimentos se
encontrem impregnados de ki, de energia vital, respondendo a um
ritmo global a que os praticantes das Artes Marciais no Japão cha -
mam ma. O ma é o intervalo de espaço ou de tempo entre cada
postura e a sua evolução, ou entre uma postura e a postura segui -
nte. Contudo, não é um espaço ou um tempo gratuito ou desneces -
sário, mas antes um transporte artístico do espaço-tempo. Apesar
de a definição não ser clara nem muito lógica, é de facto qualquer
coisa que diz respeito à sensibilidade ao movimento do ponto de
vista corporal e estético.
Os mestres do movimento declaram que há um ma que pode
ser ensinado e outro que não é transmissível”. O ritmo pode ser
ensinado, mas o grau não. Morihei Ueshiba, fundador do Aikido,
costumava repetir: Sigam os movimentos do vosso coração. Esta
afirmação simples exprime todo o ideal de beleza que só se atinge
depois de muitos anos de estudo e de prática incansável.
A imagem do Homem sob o Céu é elucidativa a esse respei to,
e torna-se evidente nos ideogramas das línguas chinesa, ren, e
japonesa, jin. Primeiro o homem tomou consciência da sua verti ca -
li dade e, segundo a tradição oriental, situou-se entre Céu e Terra.
Obser vou, acima dele, um mundo impalpável e inacessível e, sob os
seus pés, um mundo compacto, bem sólido e ao alcance imediato
da sua mão. Nasceram assim os dois termos chineses T’ien, céu, e
Ti, solo ou terra, e o homem em movimento encontra-se entre esses
dois elementos.
Na prática do Tenchi Tessen há uma realização da união en -
tre o que está em cima e o que está em baixo, união que religa a
aspiração do homem em direcção ao céu e o seu enraizamento na
terra: não esqueçamos que uma flor privada das suas raízes e da
luz não pode desabrochar.
Pela presença do gesto e da estabilidade na deslocação, o movi -
mento pode ser, simultaneamente, aberto, fechado e móvel. Daí nasce
a verdadeira fluidez, na qual a leveza não é flutuação e aquilo que
nos rodeia não é peso.
dojo — local de prática
46
O Dojo Ten Chi
Na iconografia hindu, o leque é um dos atributos de Vishnou;
é um símbolo de sacrifício ritual, pois serve para atiçar o fogo e,
pela mesma razão, é atribuído também a Agni. É, ainda, o estan -
darte de Vâyu, personificação do Sopro Cósmico e intermediário
entre o Céu e a Terra, espaço que enche o sopro, ki. Vâyu, conside -
rado o deus do vento, penetra, quebra e purifica e está em relação
com as direcções do espaço e com os ventos.
O leque é o emblema da dignidade régia na África e na Ásia,
enquanto que na Europa o flabellum das cerimónias romanas era
utilizado, na igreja primitiva, para celebrar o ofício divino.
Entre os taoistas, o leque parece relacionar-se com a ave, como
instrumento de libertação da forma, como símbolo do voo para o
país dos imortais. Nesta tradição mencionam-se leques que produ -
zem o fogo e o apagam e que são capazes de gerar o vento e a chuva.
Ghung-li Ch’uan, o primeiro dos oito imortais, segundo a mitologia
chinesa, é sempre representado com um leque, com o qual, diz a
lenda, pode ressuscitar os mortos.
O Tessen é o utensílio. Ele torna-se objecto da nossa meditação,
desde que a nossa mão prolongue o nosso coração. As nossas duas
mãos simbolizam a unidade que deve existir na nossa mente.
Para Annick de Souzenelle2 o verbo hebreu yada, conhecer, tem
como raiz yad, a mão, à qual se junta ayin, o olho. Poderíamos dizer
que a mão está dotada de visão e o olho, de uma certa forma, de
tacto. Visão e tacto levam ao conhecimento que liberta.
47
segurar o tessenO coração de acordo com a intenção
A intenção de acordo com o sopro
O sopro de acordo com a energia.
A mão de acordo com o pé
O cotovelo de acordo com o joelho
O ombro de acordo com a anca.1
III
do artista. Isto faz-me pensar num dos meus amigos cirurgiões, que
me disse: Haverá uma melhor precisão no acto cirúrgico quando na
universidade ensinarem a postura.
Para o artista chinês, a disposição mental precede o gesto do
pintor e o pincel prolonga-o. Em relação ao corpo fala-se do braço
inteiro, do punho vazio, da acção de cada dedo e assim por diante.
Tal como nos movimentos do pincel e nas Artes Marciais, no
Tessen há formas de ataque distintas, a que se chamam perguntas.
Há, entre outros, o ataque frontal, o ataque oblíquo, o de contra
pêlo, ou seja em sentido contrário ao dos pelos do pincel, o de
pêlo deitado, pressionando e aliviando, em movimento ondulado,
em cadência sincopada.
Quando se faz um traço, pensamos na dança, na música. Não
é uma linha feita automaticamente. Com o seu ataque, o seu impulso,
a sua amplitude e o seu soltar, ele incarna ao mesmo tempo a forma
e o volume, a tonalidade e o ritmo.
A unidade Mão-Tessen representa a Energia e, através dela, a
verdadeira natureza do Homem. Haverá aí o Ser profundo, essa rea -
lidade já existente que ainda não atingiu a plenitude, mas o seu
movimento vai nessa direcção.
O Tenchi Tessen e a sua simbólica
Face aos inúmeros caminhos que nos são oferecidos para
progredir na Via, o investigador sincero corre o risco de se perder. O
Tenchi Tessen pode ser, para ele, um meio de encontrar os marcos
do seu percurso.
Quando, no decorrer da prática, convido os alunos a reflectir
sobre as técnicas e os símbolos que as acompanham, alguns deles
Agarrar o Tessen exige sensibilidade e força. Para que a mão
possa segurar convenientemente o leque é preciso que o corpo esteja
numa posição correcta de equilíbrio. Nas aulas costumo repetir que,
para segurar bem o Tessen, é preciso que os pés estejam bem assentes
na terra!
Antes de chegar a uma verdadeira simbiose com o Tessen, o
praticante deve tomar consciência do espaço que o rodeia, a fim de
poder alargar o seu esquema corporal para além do próprio Tessen.
O objecto deixa de ser um utensílio para se tornar uma excres -
cência dos dedos, ou melhor, o seu prolongamento natural, tal como
o pincel para o pintor ou o martelo para o escultor. O instrumento
deve incorporar-se para fazer a Unidade.
A procura do modo de segurar o Tessen, tal como a de segurar
o pincel na caligrafia chinesa, é subtil, e toca directamente o corpo
segurar o tessen
48
podem sentir uma certa perplexidade perante a insistência cíclica
da recomendação. Os símbolos, ou os princípios, nunca devem ser
examinados a partir de um mesmo nível. O percurso interior deve
ser sempre evolutivo na medida em que o Tenchi Tessen é considerado
um Do, uma Via.
É pela prática que o símbolo se revela. Quando o véu cai, o
centro do movimento oferece a sua jóia e cada um recebe-a conforme
a sua capacidade. Esta jóia depende da qualidade do instante, da
presença, da não dispersão.
Sabemos que a psique não é estática, que tem os seus ritmos,
as suas estações. A sua apreensão comporta movimentos de abertura
e de fecho. Só o acesso ao sopro permite atingir um equilíbrio, sempre
frágil durante a sua existência. A estabilidade manifesta-se quando
a mente está apaziguada; ela permite a passagem para a outra
margem, que é um para além de várias alternâncias.
Lao Tsé bem soube apontá-las:
Trinta raios convergem para o meio
mas é o vazio do centro
que faz avançar o carro.
Molda-se a argila para fazer vasos,
Mas é do vazio interno
Que depende o seu uso.
Portas e janelas rasgam uma casa,
É ainda o vazio
Que a torna habitável.
O ser dá possibilidades,
Mas é pelo não ser que as utilizamos.3
O texto citado define as afirmações pela alternância entre duas
evidências. No movimento, habituamo-nos a ver o exterior, ou seja
o cheio, e Lao Tsé ensina que os cheios só existem pelos vazios, que
o cheio depende do vazio. O ser é o não ser?
Na arte do Tenchi Tessen o vazio não é conceptualizável, ele
foge e, regra geral, é rejeitado. Contudo, como é que uma arte do
movi mento pode levar-nos às reflexões acerca do vazio?
Talvez a aceitação do conceito seja facilitada pela observação
do próprio corpo que possuímos: se o considerarmos micro-fisica -
mente, do ponto de vista da sua estrutura atómica, ele seria carac -
te rizado por incríveis vazios entre as partículas que lhe fariam per -
der a sua substância, a sua permanência, embora ao nosso olhar
continue permanente.
No movimento o símbolo pode incitar-nos a compreender
primeiro a impermanência, pois cada gesto ou o próprio movi men -
to, sendo aparentemente o mesmo, esconde o vazio, e quando existe
o vazio existe o não ser.
O movimento é ir em direcção à nascente, a Via é isso e só a
podemos compreender por meio de um jogo contínuo desta alter -
nância que tanto nos atira para o informe, o vazio, como para o que
tem uma forma, o que é palpável.
E, um outro poeta diz:
O si-mesmo é também o outro.
O outro é também o si-mesmo.
Que o outro e o si-mesmo deixem de se opor.
Aí, está o eixo do Tao, a via do meio.
49
segurar o tessen
1 Segundo os mestres do movimento, estas seis concordâncias determinam o movimentocorrecto.
2 Annick de Souzenelle, Le Symbolisme du Corps Humain, St. Jean de Braye, ed. Dangles,1986.
3 Lao Tsé, Tao Te King, Paris, Alban Michel-Spiritualités vivantes, 1984.
Karaté Tradicional
Boxe Chinês do Norte Boxe Chinês do Sul Pa Kua
Tai-Chi-Chuan Hsing-I-Chuan
Karaté Tradicional
Em geral, rotação horizontal das ancas na direcção da flecha.
Sincronização de todas as partes do corpo utilizando o deslo camento
do centro de gravidade. Utilização de todo o peso nos golpes, os pés
estão, relativamente, fixos: importância dada à estabilidade.
Ponto positivo: suficiente eficácia a curto prazo em relação
ao Tai-Chi-Chuan. Técnica relativamente simples com pouca impor -
tância dada aos músculos das costas.
Ponto negativo: exige uma grande rotação das ancas. A falta
de pedagogia ou treino consciente para a explosão, que deve ser pro -
curada através da sensação, torna o movimento ineficaz. Portanto,
é necessário tempo para adquirir.
Tai-Chi-Chuan
Em regra, o ombro avança ligeiramente para a frente; o peito
é reentrado e as costas são alargadas. O modo de produzir energia,
Fa-Jin, é o seguinte: a energia, Qi, inspirada é relaxada de uma só vez,
originando uma compressão para explodir. Esta explosão faz ro dar o
principal centro energético situado no ventre. A força do Jin é libertada
e atravessa as costas e o ombro para chegar ao murro. Os centros
energéticos dos joelhos, tornozelos e nuca rodam sincronizados com
o centro energético do ventre. O queixo levanta-se ligeiramente, como
complemento desta forma particular. O tronco torna-se um êmbolo.
Ponto positivo: uma percentagem importante de explosão.
Ponto negativo: é um processo lento.
Hsing-I-Chuan
Mesmo sem a deslocação à frente, o golpe do pé que está atrás
produz a potência explosiva. O braço está em extensão e a força brota
do ombro. Torna-se como uma lança. Mantendo os pés em direcção
Estudo do Mestre Uemura-Shigeru
A análise elaborada pelo Mestre Uemura-Shigeru1, que proce -
deu à caracterização das diferentes artes marciais, fornece escla -
recimentos determinantes para a compreensão do movimento
fundamental do Tenchi Tessen.
segurar o tessen
50
ao interior, o Fa-Jin (produzir energia) torna-se possível.
Ponto positivo: para a explosão do centro de energia, Tan dien,
e em relação com o Tai-Chi-Chuan, utiliza-se o sistema muscular,
tornando o movimento mais rápido.
Ponto negativo: obtém-se menos potência do que no Tai-Chi-
Chuan.
Boxe Chinês do Norte
Golpe de perfil na técnica de base Oi-Zuki, em oposição à
posição San-Chi do boxe do Sul.
Ponto positivo: grande potência de frente, utilização do
comprimento do braço a 100%.
Ponto negativo: vulnerabilidade lateral.
Boxe Chinês do Sul
Peito ligeiramente arqueado, costas bem direitas. A força é
produzida por uma contracção muscular de modo a exercer uma
compressão do Qi, originando a sua explosão. Pouca rotação horizon -
tal das ancas. Os músculos das costas são utilizados como potentes
molas. Os dois pés deslizam, naturalmente, para a frente.
Ponto positivo: podem adicionar-se as forças musculares.
Ponto negativo: a rentabilidade compressão/explosão é menor.
Pa Kua
A técnica de golpe do Pa Kua utiliza a força produzida a partir
de um movimento em espiral, uma rotação ou uma torção. É ne -
cessário esclarecer que o movimento é composto por duplas espi -
rais cruzadas e orientadas na mesma direcção. Este movimento para -
doxal permite produzir a força com uma grande energia potencial.
Conforme aparece no desenho, o braço direito efectua uma
rotação para a direita e aproxima-se, até metade da distância, do
objecto que está em frente. A força da inércia não deve ser bloqueada
através de uma paragem brusca e o movimento deve ser deixado
rodar. É também preciso adicionar uma rotação para a esquerda no
antebraço, o que vai permitir percorrer o resto da distância até ao
objecto.
O gesto deve ser efectuado com a mão aberta, pois o punho
fechado não pode produzir a força ideal. Há uma razão que justifica
a posição da mão aberta no boxe do Pa Kua: os cinco dedos afastados
e a utilização do movimento de cada um dos dedos permitem du -
plicar a potência da força da espiral.
Para o busto e para as duas pernas utiliza-se a mesma técnica
de produzir um movimento de duas espirais cruzadas e orientadas
na mesma direcção.
Ponto positivo: o sistema de combate deste tipo de boxe foi
muito bem estudado no que diz respeito ao contra ataque ou à
projecção. A esquiva no Aikido parece-se muito com a do Pa Kua,
mas com uma diferença principal: no Pa Kua o busto está à frente
ou atrás de modo a dar peso ao corpo a fim de o desequilibrar; no
Aikido o busto deve estar direito, pois dá-se mais importância a esta
posição para o movimento do Qi.
Ponto negativo: 80% das técnicas de golpe são efectuadas
com as mãos abertas e, no caso de não se saber bater com a mão
aberta, não há potência em relação aos outros tipos de boxe que
facilitam a prática utilizando a rotação das ancas.
51
segurar o tessen
1 Uemura-Shigeru, révue Arts Martiaux, nº 45, Juin/Juillet, Paris, 2000, p. 42.
terceira parte
tenchi tessen — prática
58
Sabemos que o corpo e o psiquismo no homem vivo são in -
separáveis. A energia anima tanto as funções vegetativas do corpo
como o seu sistema de relação. É a circulação equilibrada da ener -
gia que, geralmente, reflecte o estado de saúde do indivíduo.
Insistindo uma vez mais na respiração, é da profunda expiração,
localizada no baixo ventre, que depende a descoberta do centro de
gravidade através do corpo: a secreta flor de ouro1 dos chineses, o ki,
a energia.
A preparação do Tenchi Tessen desenvolve-se no silêncio. O
silêncio e o esforço são as dimensões naturais tanto do repouso co -
mo da actividade. Esta preparação, quando banhada no silêncio e
regida pelo esforço, conduz sempre a uma purificação da activi dade
mental. Deste modo a nossa prática torna-se a expressão correcta
da nossa inserção no cosmos.
O silêncio é nudez do ser, abertura à vibração do todo. O
silêncio não é ausência de barulho, é a possibilidade dada ao
corpo de reencontrar a sua condição justa, o seu centro. Mergulhado
na experiência interior, o silêncio é também o veículo natural da
comu nicação, mas o significado principal da prática do silêncio é
concen trar-se aqui e agora, no instante presente. O silêncio é o meio
mais poderoso e natural de alargamento do campo da consciência,
e não é por acaso que aqueles que meditam o respeitam.
Durante a preparação, um dos objectivos é o de modificar a
fonte das nossas informações sensoriais e, assim que um gesto
necessite de esforço, logo, de energia, esta deverá surgir do meio
do corpo, local onde se situa o centro de gravidade. É também ne -
ces sário aprender a descontrair os ombros e os braços, de modo a
permitir que as mãos adquiram uma sensibilidade adequada.
A preparação do Tenchi Tessen é uma ponte entre o corpo e a
mente. É um pressuposto bem distante da concepção ocidental
predominante, que entende a preparação, ou aquecimento, como
uma prática puramente física ou um conjunto de exercícios mecâ -
nicos. Contudo, aqueles que persistirem acabarão por constatar um
melhoramento do seu estado físico e mental. A respiração e o gesto
tornam-se mais fluídos e harmoniosos, o estado de espírito modi -
fica-se e torna-se mais vivo, a capacidade de concentração aumenta
e o praticante sente-se mais habitado no seu corpo.
Durante a prática devemos utilizar o corpo como um arco, os
movimentos do leque são as flechas e o nosso eu profundo é o alvo.
A abertura do tessen
A primeira forma da técnica de abertura/golpe do tessen
utiliza a força produzida a partir de um movimento em espiral2.
Como já referido, o movimento do tessen é composto por
duas espirais cruzadas que se completam e orientam na mesma
direcção e, durante a abertura do leque, a força de inércia não deve
59
a preparação psico-fís ica I
Movimentos de base
Os movimentos de base do Tenchi Tessen inspiram-se nos
elementos da natureza, como por exemplo o Sol e a Lua, e nas no -
ções de espaço e de tempo, como por exemplo a saudação às oito
direcções do espaço.
Sabemos, graças às ciências humanas em geral e à psicologia
em especial, que a identificação do homem com as coisas que o
rodeiam está profundamente ligada ao conhecimento da sua vida,
o que lhe permite tomar consciência de que ele é um dos elemento
do Universo, mas não o único. Essa consciência reflecte-se nas suas
aspirações mais secretas e profundas.
Na interdependência e aliança com as forças naturais, o
homem sente-se regenerado e as suas energias mudam, revita -
lizando o seu corpo e agindo no seu psiquismo. Outro elemento
importante é a consciência do ritmo respiratório, à imagem do fluxo
e refluxo do mar.
A canalização da energia interna nos movimentos de base,
provocada pela respiração diafragmática, aumenta o vigor do
praticante, habilitando-o a responder corporal e psiquicamente
aos vários exercícios que compõem uma aula de Tenchi Tessen. Tais
movimentos contribuem para reencontrar os gestos do quotidiano,
frequentemente esquecidos, devido ao ritmo da vida moderna.
Da dinâmica deste conjunto de movimentos brota um ambiente
propício à serena comunhão do corpo e do espírito, baseada no
respeito mútuo existente no seio do grupo de praticantes de Tenchi
Tessen. Esta comunhão, por sua vez, estende-se a tudo aquilo que
os rodeia.
Segue-se uma rápida exposição sobre o simbolismo dos dois
elementos naturais de base, a Lua e o Sol.
ser bloqueada, antes deve ser utilizada e deixada rodar.
Neste movimento respeita-se o princípio Sei-Tai, o do corpo
equilibrado. O olhar deve estar no plano horizontal. É importante
desenvolver a percepção horizontal, pois ela dá-nos uma visão global
do nosso corpo no espaço. A base desta postura é a vertica lidade do
busto e a horizontalidade do braço direito, que segura o tessen. Esse
braço segue uma ligeira rotação para a direita, numa espiral interna,
e o cotovelo é reentrado. É um movimento paradoxal, da esquerda
para a direita, que arrasta o fluxo de energia interna para o exterior,
produzindo uma força inesperada no impacto, ou seja na abertura,
favorecendo a livre circulação do Ki no corpo. Quanto ao braço
esquerdo, colocado atrás, encontra-se em extensão, com a mão
estendida, os dedos juntos e a palma dirigida para a Terra. A fun ção
do braço esquerdo é a de suporte para a suspensão e o equilíbrio.
Por vezes, são necessários anos de prática para se compreen -
der esta postura e impregnar-se dos seus eixos precisos. Neste livro
podemos dar apenas algumas indicações, pois a verdadeira descrição
só pode ser feita pelo kuden, a transmissão da linguagem do corpo,
que é também uma transmissão oral, e pelo hiden, que é o ensino
essencial, apoiado numa prática consistente.
a preparação psico-fís ica
Tessen
60
A Lua
A lua é por excelência o astro dos ritmos da vida: nasce, cresce,
mingua, morre durante três noites e depois renasce. O seu símbolis -
mo alarga-se a tudo o que ela controla ou parece controlar: as águas,
a fertilidade, o ciclo feminino e, por fim, o tempo.
Neste movimento, o praticante avança a perna esquerda do -
brando-a, e a perna direita encontra-se estendida, a bacia ligeira -
mente virada para a frente. A mão esquerda repousa na coxa esquer -
da, com o braço direito ele descreve um meio círculo, de frente para
trás, abrindo o tessen. O peso do corpo segue o movimento do braço
direito, numa alternância de cheio/vazio.
O Sol
No Taihinya Upanishad aparece a afirmação: Aquele que reside
no homem e reside no Sol é um só 3. Foi nesse estado de espírito que
surgiu este movimento. Na sua simbólica e na mitologia, o Sol foi
sempre o distribuidor da luz e da vida; para muitas culturas antigas,
ele representa a verdade, o olho único e todo poderoso da justiça e
da igualdade, a fonte de liberdade, de compaixão e de ilumina ção.
A chama olímpica que é levada por um antigo atleta até ao novo
local da realização dos jogos é símbolo e vestígio do culto solar. O
Sol esteve sempre enraizado, por vezes sem que se saiba, em nu -
merosas artes, para além do tempo e do espaço.
Neste exercício o praticante, em simultâneo com a abertura
do tessen, desliza o pé direito à frente, a partir do seu centro e em
direcção a uma circunferência imaginária, descrevendo progres -
sivamente um círculo e sem perder o centro desse mesmo círculo.
A construção do círculo é feita em 16 tempos, no sentido dos pon -
teiros do relógio e, com efeito, o praticante desenha um Sol com o
seu movimento.
61
a preparação psico-fís ica
1 Lu Tsou, Le Secret de la Fleur d’Or, Paris, ed. Librairie de Médicis, 1982.
2 Nas artes marciais mais conhecidas, este movimento pode aparentar-se com a artechinesa do Pa Kua aprofundada no estudo do Mestre Uemura-Shigeru. V. Infra, p. 51.
3 E. Marcault (tradução), Neuf Upanishad, Paris, ed. Adyar, 1923, p.118.
62
No Tenchi Tessen, os educativos, ou taiso, são movimentos
que se destinam a uma preparação respiratória associada ao movi -
mento, que ultrapassa uma simples preparação física. Estes exer -
cícios podem ser considerados como uma sinfonia de movimentos
— flexíveis, fluidos, em espiral — executados com o tessen, e visam
uma educação corporal.
A riqueza gestual destes educativos prepara o praticante para
a execução de outras técnicas, como por exemplo os temas e os kata.
Trata-se de uma série de exercícios que ultrapassam as figuras codi -
ficadas, ajudam à compreensão corporal, abrem a porta à libertação
do corpo, ao seu desabrochar, e permitem o despertar e a expres -
são das pulsões corporais sãs, geradoras do equilíbrio interior.
O Trovão
O primeiro movimento é o acolher do sopro, que se transforma
em trovão. Executa-se nas oito direcções do espaço, tornando-nos
disponíveis para cada uma delas. A inspiração e a expiração liga -
das ao relaxamento muscular no centro do corpo implicam a ideia
de acolher as oito direcções, tal como a respiração fisiológica que
tudo penetra, segundo as necessidades do organismo. O intelecto
ou a vontade consciente não devem interferir na acção, pois isso
impediria de imediato o jogo subtil das interacções, o equilíbrio per -
feito dos sopros. O dom do inconsciente é o abandono em cada uma
das direcções.
Garuda
Na mitologia indiana, Garuda é uma ave fabulosa que simboliza
a palavra solta, e representa os ensinos esotéricos dos Védas. Um
hino destes textos sagrados é associado a essa imagem:
Rodeados de vento, os ascetas vestem-se de andrajos castanhos.
Seguem o arrebatamento do vento,
Assim que os deuses entraram neles.1
A águia, a que pode ser comparada Garuda, é a rainha das aves,
emblema da vitória, triunfo do Espírito sobre o intelecto. Para o Budo,
a visão da águia simboliza a visão penetrante: Ver tudo e não estar
em parte alguma. A visão interior é importante e, no início da prática,
representa para o praticante o modo de desmascarar as armadilhas
do ego ou questões como: Quais os objectivos da prática? Onde está
o meu centro?
Aristóteles fala da visão extraordinária da águia que olha o Sol
de frente. O sentido dado pelo filósofo foi mais tarde alargado a
Cristo, que era a águia capaz de olhar o Pai de frente. Na psicolo gia
junguiana, a história de Afrodite e de Psique2 exprime a importância
de ter uma visão mais larga perante a vida, logo, maiores possibili -
dades que serão função da nossa própria visão. É um meio de se
inserir na acção de um espaço-tempo mais aberto: um centro que
se torna um lar adquire uma direcção cósmica e as acções do homem
tornam-se sagradas.
63
os educativos II
dos pés é bastante maior, mas a tomada de consciência da postura
é indispensável para compreender a execução da postura do cava -
leiro do Tenchi Tessen. Ainda, sem deslocar os ombros e, principal -
mente, sem arquear o peito, levar os braços um pouco atrás e relaxar
os coto velos; as mãos apoiam-se nas coxas; virar as palmas das mãos
para baixo desenvolve a tomada de consciência da Terra.
Quanto à respiração, inspiração, expiração e pausas respira -
tórias têm respectivamente a duração máxima de 15 segundos, de
mo do a executar uma respiração completa, ou mais de uma, por
minu to. O diafragma deve estar relaxado e a respiração deve ser len -
ta. A língua encostada ao palato neutraliza a vaga dos pensamentos.
Com a prática desta postura, a parte inferior do corpo torna-
-se sólida e equilibrada; a energia dos quatro membros do corpo e
da totalidade do corpo aumenta e transforma-se; o sopro, Ki, torna-
-se substancial.
De modo a compreender a execução deste educativo é neces -
sário reter duas particularidades: o exercício, no momento em que
se abre o leque, reproduz o movimento do arqueiro ao estender o
seu arco; a cabeça roda uma vez para a direita e volta logo de se -
guida à posição inicial, sendo este movimento da cabeça acompa -
nhado pela intenção no olhar.
Em relação a esta postura, há algumas observações que
merecem ser assinaladas:
a) existe o estiramento lateral do braço direito, do tórax, dos
ombros e da cintura escapular, que são zonas de importantes
pontos de acupunctura;
b) é estimulada a circulação do sangue na bacia e no tórax, o
que contribui para a eliminação das dores nos ombros e na nuca;
c) a inspiração acompanha o primeiro e o segundo momento
do exercício; em seguida dá-se a pausa respiratória, após o que, na
O Cavaleiro
Um cavaleiro é aquele que domina a sua montada.
O que significa que é indispensável estar primeiro no coração,
em seguida, no corpo.
Antes de executar este educativo, devemos estudar a postura
do cavaleiro na sua fase estática. Nela encontra-se uma semelhan -
ça com uma postura presente na arte chinesa do Tai-Chi-Chuan.
Apesar das diferenças de execução no Tenchi Tessen, existem pontos
comuns: o peito não deve estar arqueado, a cabeça e a nuca devem
estar direitas e no alinhamento da coluna vertebral.
A posição do cavaleiro é uma postura de meditação respiratória,
como uma asana do Yoga. A sua fase estática tem a duração de 3 a
10 minutos, exige resistência física sem forçar, e é alcançada como
segue: pés juntos; virar as pontas dos pés para o exterior; passar o
peso do corpo para as pontas dos pés e virar os calcanhares para o
exterior; em seguida, rodar as pontas dos pés para o exterior de modo
a que os pés fiquem paralelos; o afastamento dos pés ultrapassa
ligeiramente a largura dos ombros. Neste educativo o afastamento
os educativos
64
expiração, o braço baixa ao nível do ombro e abre-se o tessen; por
último, segue outra pausa respiratória e executa-se o movimento de
rodar a cabeça;
d) o voltar à posição inicial é acompanhado por uma inspiração.
Quanto à circulação da energia, salientam-se algumas carac -
terísticas:
a) a força sai da coluna vertebral; as pernas seguem a anca,
koshi, ao executar os dois movimentos em semi-círculo;
b) quando o movimento parece ter terminado, a energia não
é interrompida, ela segue a espiral e a intenção é contínua;
c) o praticante deve ser flexível e duro, flexível como o bambu
e duro como o aço. Ele deve compreender a noção de estender-se e
desdobrar-se à semelhança do leque e, em seguida, de juntar-se e
fechar-se a fim de alcançar a subtileza;
d) a não interrupção da energia e a intenção contínua são
válidas para todos os movimentos do Tenchi Tessen.
A Espiral
No Tenchi Tessen, a noção da espiral é imprescindível, e sur giu
de forma natural, no meu estudo do movimento ligado às artes do
Budo, principalmente o Aikido.
A noção de eixo do mundo, ou eixo cósmico, que se ergue no
centro do Universo, está muito divulgada. O diagrama do Universo
é muitas vezes representado na forma de uma montanha cósmica
de formas geométricas e simétricas em relação a este eixo, como
por exemplo o monte Meru, na Índia. O ponto onde o eixo do mundo
tres passa a base da montanha encontra-se, segundo Cook3, no cen -
tro de uma espiral lisa, que representa o caminho de iniciação que
leva ao centro. É convicção do autor que o simbolismo da espiral es -
teja muito próximo do simbolismo do labirinto: Da mesma maneira
que o labirinto só considera as dificuldades no percurso centrípeto,
é também necessário considerar o desenrolamento centrífugo da
espiral com o seu sentido de desenvolvimento, de evolução, onde a
própria espiral simbolizaria a viagem da alma após a morte.
Para despertar o corpo para a espiral, é oportuno partir da
compreensão do círculo. A sugestão que costumo dar aos meus alu -
nos é a de desenharem círculos com o corpo, sendo esses o começo
da espiral.
No movimento, a espiral liga sem ruptura o real ao imaginário.
Fazer a espiral com a compreensão do seu símbolo quer dizer que
podemos viver a espiral com o corpo. Compreenderemos então que
não se trata apenas de uma consideração do espírito, mas antes de
uma fonte dinâmica: o corpo físico e a mente encontrar-se-ão
energeticamente modificados e ter-se-á adquirido uma maior
consciência das relações que unem o corpo e o espaço.
65
os educativos
No centro do
furacão, a calma.
1 Maurice Cocagnac, Les Racines de l’Âme Indienne, Paris, ed. Armand Collin, 1984, p.189.
2 Carl Gustav Jung, L’Homme et ses Symboles, Paris, ed. Robert Laffont, 1964.
3 Theodoro Andrea Cook, The Curve of Life, New York, Dover Publications Inc., 1979.
66
— Deveis manter o equilíbrio sobre a vossa perna direita, como
se eu varresse a vossa perna esquerda. A perna direita deve inclinar-
se para retomar outra gravidade, como se o pé direito es magasse o
chão. Deste modo a perna direita fica por um breve ins tante enraizada
na terra, de modo a assumir uma outra atitude.
— O Mestre julga que é fácil preocuparmo-nos com várias coisas
ao mesmo tempo? Pensar no equilíbrio, no tessen, na res piração e
ainda continuar a controlar a distância do parceiro?
— Só conseguireis realizar este movimento corrigindo um
elemento de cada vez e após numerosas repetições. Será preciso
esperar, ter paciência e uma dose de esforço adequado, onde todos
estes elementos se integrem numa coordenação global. Nessa altura,
chamarei a isso movimento.
— Esse movimento tem um nome?
— Para simplificar, vou servir-me de uma imagem que co nhecem.
Fechem os olhos e pensem no deus Shiva da mitologia indiana, na
sua forma de dançarino, Nataraja. Quando o vosso parceiro abrir o
tessen, não tenham medo do contacto. Inclinem a perna esquerda
conforme as indicações já dadas, sigam o movimento e deixem agir.
Deste modo, passareis de um conjunto de movimentos analíticos a
uma acção global.
— Sim, começamos a sentir o movimento. A imagem de Nataraja
ajuda.
— Ao terem corporizado a imagem de Nataraja, a atenção
consciente libertou-se. Agora podeis preocupar-vos com a colo cação
do vosso corpo em relação ao corpo do parceiro. É o mo mento de
trabalhar com mais intenção, de modo a reforçar a rela ção com o
outro, mas isso levará tempo, talvez quatrocentos e cinquenta
anos! É ali que tudo começa. Primeiro, os vossos comandos ner vosos
vão parecer mudar de origem e ganhar uma nova quali dade de
integração.
— É uma forma de passagem?
— Se quiserem, é. Passa-se de um movimento analítico a uma
acção global. É belo. É como quando se termina uma escul tura. E,
para quem observa do exterior, o movimento dá uma im pressão de
harmonia, de espontaneidade que brota de si mesmo. Mas o verdadeiro
ensino só começa a partir de uma boa execu ção do movimento.
No nosso quotidiano estamos rodeados por símbolos e, na
maior parte das vezes, não temos consciência disso. Por exemplo,
as letras e as palavras são símbolos que os nossos pensamentos e
ideias revestem a fim de transpor o passo de uma expressão virada
para o mundo exterior.
Os temas na arte do Tenchi Tessen, são como símbolos, dos
quais apreendemos um certo nível; depois, o próprio símbolo, con-
duzido pela compreensão do utilizador, escala outros níveis.
As emoções, vividas no corpo, são forças violentas e nem
67
os temas e a reflexão simbólica III
O encontro é um dos temas importantes do Tenchi Tessen. Se
no seio da nossa Terra a existência de um organismo vivo exige que
ele se relacione com outros organismos, os seres humanos têm
particular necessidade de estabelecer constantes relações com os
seus semelhantes e, por consequência, dependem da sua faculdade
de comunicação, que se encontra extremamente desenvolvida.
A aptidão para comunicar existe também no mundo animal,
onde é frequente a utilização de uma espécie de código linguístico
para as trocas entre indivíduos de uma mesma espécie. Quando se
fala da linguagem entende-se, geralmente, uma comunicação fun -
dada na emissão de sons — a própria etimologia da palavra, deri -
vada do latim lingua, o indica, fixando-se sobretudo num dos ele -
mentos que compõem os órgãos fonatórios, a língua — mas existem
outras linguagens, gestuais e codificadas, como as utilizadas por
surdo-mudos, por certos profissionais (guardas de trânsito, por
exemplo) ou por algumas tribos.
A educação dos jovens animais, assim como a das crianças e
dos adultos da espécie humana, repousa na imitação de gestos e
comportamentos complexos. A palavra educação, do latim educare,
significa conduzir para fora. Uma verdadeira educação processa-se
fora da matriz psíquica da família, a fim de encontrar o seu lugar
num meio mais vasto.
Posta esta premissa em relação ao tema o encontro, é neces -
sário compreender que a comunicação com o tessen exerce-se a três
níveis: o da informação, o do psiquismo e o da acção.
• A informação deve ser memorizada. Exteriormente, ela diz
respeito à maneira como se deve responder aos acontecimentos
físicos; interiormente, aos sentimentos e pulsões biológicas.
• Pela palavra psiquismo, entendo a força unificadora que
aproxima os membros de uma comunidade. É o que mantém a coesão
sempre temos a noção do impacto que elas têm no corpo e na mente.
Esta simbólica, que encontramos nas expressões da linguagem
corrente, tem na nossa vida um peso maior do que admitiríamos.
No entanto, esse mesmo simbolismo pode ajudar-nos a compreender
o nosso inconsciente. Ao passar pelo estado da reflexão, vemos
claramente que as ideias não têm forma intrínseca, apesar de o
símbolo lhes atribuir uma.
Corpo e mente são dependentes, interdependentes e inter -
activos. É o que ilustra a utilização dos símbolos. A título exem -
plificativo, vejamos como é que se cria o som ou a melodia. A melodia
depende do instrumento, do gesto, do movimento e da respiração
do instrumentista. Nenhum dos três elementos pode produzir,
isoladamente, uma melodia ou um som, e cada um depende do jogo
de interacção com os outros.
Aprender uma técnica do Tenchi Tessen e compreender a inter-
conexão corpo-mente-som ou palavra não é fácil. É necessário que
a linguagem não seja redutível a uma troca de palavras com o
outro, e o mesmo se aplica aos nossos discursos interiores, quer
sejam elaborados em voz alta ou mentalmente.
Compreender um tema e o seu símbolo é tomar consciência
das suas interacções. Cada movimento possui um segredo que é
necessário decifrar e, através da prática incansável, tentam-se ul -
trapassar os limites da nossa compreensão.
Quando se executa um tema a dois ou individualmente, de-
se nha-se com o corpo uma forma que pode ser simbólica e onde
participam a respiração, a mente e a vivência de cada um, que reli -
gam os vários aspectos de nós mesmos com a fonte de Energia que
os cria e suporta.
O Encontro
os temas e a reflexão simbólica
68
no interior do campo psíco-activo. É também tomar consciência da
nossa própria unidade.
• A acção é o gesto adequado. A relação entre interiori za ção
e acção é um tema central na arte do movimento. O movimento, o
gesto correcto é, pois, ter plena consciência na acção.
O movimento designado como o encontro deve ser efectuado
num espírito de cooperação e em harmonia com o que nos rodeia.
Poderia o nosso movimento fundar-se no Grande Sopro, no Ki, ou
no Divino? O místico Mestre Eckhart dizia “o fundamento divino”.
Sem estes três níveis de comunicação o encontro torna-se um gesto
sem alma.
O encontro contempla um ser na sua relação com o outro e
pode ser efectuado de várias maneiras, podendo ser abordado
por diferentes perspectivas. Do ponto de vista filosófico, Gaston
Bachelar, na sua apresentação de Martin Buber, conduz-nos mara -
vilhosamente:
Um ser existe pelo mundo que te é desconhecido e, de repente,
num encontro, antes de o conhecer, tu reconhece-lo.
Na noite estabelece-se um diálogo que, devido a uma certa
entoação, empenha a fundo as pessoas: “És tu, Miguel?” E a voz
responde: “És tu, Joana”. Ninguém sente a necessidade de respon der:
“sim sou eu”. Porque se o eu interrogado transcendesse a interrogação,
se se esquivasse à graça infinita do encontro, cairia no monólogo ou
na confissão, naquilo que louva ou no que la menta, na insípida
narrativa dos desejos e das penas. Diria aquilo que era antes de dizer
aquilo que é, diria aquilo que é antes de dizer aquilo em que, pelo
encontro, se tornou.
O instante da pessoa humana totalmente privado deste vector
de futuro que a simpatia acaba de lançar, esse instante per deria a
sua força, seria amolecido e amortecido. Segundo Martin Buber, toda
a filosofia da pessoa deve estar contida naquela mútua interrogação.
(...)
O tempo das pessoas é infinitamente raro e vazio em com -
paração com o tempo das coisas. Vivemos adormecidos num mun do
em sono. Mas quando um “tu” murmura ao nosso ouvido é o safanão
que sacode as pessoas: o eu desperta pela graça do “tu”. A eficácia
espiritual de duas consciências simultâneas, reunidas na consciência
do seu encontro, escapa de súbito à viscosa e contínua causalidade
das coisas. O encontro cria-nos: nada éramos — ou apenas coisas —
antes de ser reunidos. (...)
Ao próprio nível da linguagem, Martin Buber mostra-nos as
duas nascentes da palavra que, evidentemente, são as duas nascentes
do pensamento: de um lado as coisas e de outro as pessoas, o isso e
o tu. Mas as milhares de nascentes murmu ran tes que nos chegam
das coisas não são mais do que afluentes da nascente central que
nos chega do tu.
Que me importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra se eu
estou sem amor e sem lar! É preciso ser dois — ou pelo menos ter sido
dois — para compreender um céu azul, para revelar uma aurora! As
coisas infinitas como o céu, a floresta e a luz só en contram o seu
nome num coração amante. E o sopro das planícies, na sua doçura e
na sua palpitação, é, antes de tudo, o eco de um suspiro enternecido.
Deste modo, a alma humana, rica de um amor eleito, anima as
grandes coisas antes das pequenas. Ela trata por tu o Universo assim
que sentiu a embriaguês humana do tu (...). É aqui que intervém a
mais preciosa categoria buberiana: a reciprocidade. Nunca
encontramos esta reciprocidade no eixo do eu-isso. Ela só aparece,
verdadeiramente, no eixo em que o eu-tu oscila ou vibra.1
O Pássaro
A vertente simbólica de o pássaro revela uma abertura ao es -
69
os temas e a reflexão simbólica
es querdo levantado, agarrando um tambor, damura, na mão direita
superior, e uma chama, a do conhecimento, na mão esquerda supe -
rior. As duas outras mãos fazem o gesto de ausência de medo (a mão
direita) e o de apontar o solo (a mão esquerda). Uma serpente está
enrolada à volta do braço direito da frente. Uma pele de tigre cinge-
-lhe os rins, ondas do Ganges são representadas escorrendo da
cabeça. O seu rolo de cabelo na nuca, mukuta, está ornamentado
com a imagem da lua. Usa brincos de homem e de mulher a fim de
mostrar a ambiguidade da sua natureza. Os seus braços, pernas e
tornozelos estão ornamentados de pulseiras. Esta imagem está
frequentemente envolvida por um halo de chamas, jvala-tiruvâshi,
significando que ele queima os seus desejos pelo fogo.
A dança de Nataraja faz estremecer todo o cosmos. Os três
mundos — o céu, a terra e os infernos — são abalados. Todo o acto
puro, que apenas exprime o poderoso instinto de vida, assemelha-
-se a uma força cega que varre tudo à sua passagem. Contudo, não
é a vontade de Shiva que dança, mas a sua natureza.
Aos olhos dos homens, preciosa é a felicidade prudente de
manter o confortável status quo, e natural é a mágoa diante das
obras da morte. Somos uma energia em acção dentro da rede da
grande mestra da ilusão, Maya, que faz balbuciar e oscilar a criação.
Quem se preocuparia, sem sucumbir à loucura, de incriminar o sol
pelo seu ardor? Aqui ele aquece, ali calcina, por toda a parte ilumina.
E Nataraja dança.
1 Gaston Bachelar, La Poétique de l’Espace, Paris, ed. P.U.F., 1981.
paço, ao sopro. À semelhança da cabeleira dos Upanishad (pre -
sente também no caractere chinês Do) e do cavaleiro que cavalga o
vento, a ave é aquela que celebra as núpcias entre Céu e Terra, entre
o que está em cima e o que está em baixo.
Este tema estimula a ascenção do homem para que ele reen -
contre o seu estado original: a ave, desdobrando o seu voo em toda
liberdade, abrindo as suas asas e sorrindo à gravidade, convida o
homem a levantar a cabeça em direcção aos céus.
Nataraja
Nataraja é uma forma de Shiva representando uma dança
que produz um ritmo capaz de criar o mundo fenoménico. Dan -
çando, ele esmaga o anão Mulayaka, que simboliza a ignorância
hu mana. Nataraja tem quatro braços, e é representado com o pé
os temas e a reflexão simbólica
A dança criadora
de Nataraja
70
samurai e é constituído pelo conjunto dos princípios espirituais e
morais que guiavam a vida dos cavaleiros japoneses de outrora.
Actualmente o conjunto das várias Artes Marciais é designado
pelo termo Budo.
Budoka (jap.)
Praticante de Budo.
Bushi (jap.)
O guerreiro, aquele que cumpre o código de honra dos samurais.
Bushido (jap.)
Código de honra dos samurais. Literalmente, via dos guerreiros
(bushi). Este termo designa as qualidades físicas e morais que de -
vem ser o apanágio dos bushi.
Cha-no-yu (jap.)
Cerimónia do chá. Literalmente, a água quente para preparar a
emulsão de pó de chá verde (macha, cha) e designando, por ex -
tensão, um grupo de pessoas reunidas em torno de uma chávena
de chá, num pavilhão caracterizado pela elegância sóbria. A ceri -
mónia do chá foi estritamente codificada a partir do séc. XVI.
Dan (jap.)
Grau. Este termo é usado no sistema actual de graduações das Artes
Marciais e só é utilizado a partir da graduação que habilita o pra -
ticante a usar o cinto preto (1º dan).
Derviche
Monge sufista.
Agni (sâns.)
Na mitologia indiana, Agni é o deus do fogo. É uma das grandes
divindades dos Védas. Segundo a tradição védica, o fogo não se
limita ao elemento físico designado por esse nome, mas também
representa o prín cípio de vida, de calor, de consciência que se oculta
em todos os seres.
A-himsa (sâns.)
Termo que se refere à noção de não violência. É um dos cinco eternos
princípios éticos que as Leis de Manu dizem ser obrigatórios para
todas as castas do povo indiano, particularmente, para os brâmanes.
Aikido (jap.)
Ai: harmonia; Ki: energia; Do: via. Significa via de realização física,
mental e espiritual pela união harmoniosa da energia/espírito.
Esta via, embora assente em princípios milenários, foi estruturada
e codificada recentemente, tornando-se numa das mais novas Artes
do Budo. O seu fundador foi Morihei Ueshiba (1880-1969).
Asana (sâns.)
Termo associado à prática do yoga e que significa postura. Segun -
do o yoga, a postura deve satisfazer duas exigências: ser estável e
agradável e eliminar a agitação corporal de modo a concentrar as
energias dispersas.
Budo (jap.)
Substantivo composto pelas palavras Bu: cavaleiro, etimológicamente
aquele que pára as lanças, e Do: a via, o caminho. O Budo é a via do
glossário
Notas:Sânscrito (sâns.)Japonês (jap.)Chinês (chin.)
72
Derviche rodopiador
Monge sufista que utiliza a dança e a música como meio de evolu -
ção espiritual.
Dojo (jap.)
Substantivo japonês formado pelas palavras Dô, derivado do chinês
Tao, ou seja a Via, e Jo, que designa o lugar reservado à prática de
várias disciplinas de formação, como o Zazen e algumas Artes
Marciais. A união dos dois lexemas gera o significado lugar onde
se pratica a Via.
Flabellum (latim)
Grande leque de plumas de pavão ou de folhas de lótus, adap ta -
do a um longo cabo. Era utilizado na antiguidade, preservado
como símbolo nos ritos orientais e na liturgia romana durante as
festas solenes.
Hachimaki (jap.)
Designado também Tenugi, é uma peça de pano, tendo muitas
vezes inscrito o nome do Dojo ou uma caligrafia de um poema. No
Kendo, o hachimaki é colocado de maneira a proteger a nuca do
atrito provocado pelos cordéis que servem para segurar o men, o
capacete. Em outras artes do Budo é utilizado para impedir que a
transpiração escorra pelo rosto.
Hakama (jap.)
Traje dos Bushi. O Keiko Hakama era o tipo de traje usado pelos
cavaleiros. Consiste numa espécie de saia-calça comprida. Também
marca o compromisso formal do praticante na via do Aiki.
Hakko-Ichin (jap.)
“Oito direcções, um só tecto”; expressão atribuida por Nikon Shoki
ao mítico imperador Jinmu, para simbolizar a reunião das tribos que
vieram dar origem ao Japão. Noutras épocas, esta expressão foi usada
para justificar o expansionismo japonês.
Hanshi (jap.)
Título honorífico dado aos grandes mestres de Artes Marciais. O
Hanshi irradia o seu Eu espiritual superior.
Hara (jap.)
Literalmente: barriga. Ponto onde se reúne e de onde emerge a energia
vital. Isto é, o lugar onde tomamos consciência do equilíbrio estático
e das possibilidades cinéticas. Este ponto corresponde ao centro
anatómico do ser humano, e é, também conhecido por Tan tien;
Tanden; Centrum; Seika no iten.
Hsing-I-Chuan (chin.)
Significa punho do corpo e do espírito. Arte Marcial da Escola de
Wushu, que tem a particularidade de pertencer, em simultâneo, aos
estilos externos (wai chia) e internos (nei chia).
Iai-Do (jap.)
I (iru): unir-se, universo; Ai (awaresu): união, harmonia; Do: caminho,
via. Significa caminho de harmonia com o universo. Arte Marcial que
utiliza o trabalho com o sabre como prática.
Judo (jap.)
Ju: não resistência; Do: caminho. Arte Marcial moderna estabelecida
por Jigoro Kano (1860-1938).
Kagami Biraki (jap.)
Kagami, significa espelho, no shintoísmo é usado para simbolizar
o nosso espírito; Biraki, significa abrir, como abrir uma porta, ou
ainda, partir para abrir, como partir um muro, que se encontra no
fun do de um túnel, para ver o que está do lado de lá. É a festa tra -
dicional dos dojos japoneses, celebrando o Ano Novo.
Karate (jap.)
Kara: vazio; Te: mão; o caminho da mão vazia. Arte Marcial origi -
nária da ilha de Okinawa no Japão.
73
glossário
por Kan-ami e seu filho Zeami, nos séc. XIV e XV, a pedido do shogun
Ashikaga Yoshimitsu.
Oi-Zuki (jap.)
Golpe dado com o punho fechado. Técnica utilizada no Karate.
Qi (chin.)
Energia (o mesmo que ki em japonês)
Ronin (jap.)
Literalmente, o homem que flutua ao sabor do vento. Designava ori -
ginalmente os agricultores que, não tendo terra, trabalhavam em
terras alheias e em diversos locais. Posteriormente, passou a ser usa -
do para designar o samurai que, por algum motivo, ficava sem
mestre, sem suzerano.
Samkhya Yoga (sâns.)
Samkhya significa, literalmente, número, conta. É o mais antigo dos
seis principais sistemas (darçana) filosóficos da Índia. Esta escola
define o conhecimento do ponto de vista metafisico e cosmológico.
Samurai (jap.)
Termo derivado de sabuna, que significa, literalmente, estar ao lado.
Este termo é usado impropriamente para designar um cavaleiro.
Seika tanden (jap.)
Termo associado ao Hara. Seika, lugar de nascimento, casa natal;
Tanden, bacia, fonte de riqueza. Lugar onde aparece a vida.
Sensei (jap.)
Literalmente, aquele que nasceu antes. Designa o professor.
Seppuku (jap.)
Suicídio ritual dos samurais. Ritual de origem chinesa, introduzido
no Japão no séc. XVI, durante uma guerra civil e consiste em pra -
ticar uma incisão ao nível do abdomen, da esquerda para a direita
e, em seguida, subir a ponta do sabre até ao coração.
Kata (jap.)
Este termo significa movimento do actor e ainda é usado no teatro
Nô e Kabuki. Aplicado às Artes Marciais, designa um conjunto de
formas rituais que tem por finalidade pôr em prática os seus princí -
pios fundamentais. Kata é uma sequência composta de gestos
formalizados e codificados, tendo por base um estado de espírito
orientado para a realização do caminho, da via (do).
Keikogi (jap.)
Traje para a prática do Budo, composto por casaco, calças e cinto,
cuja cor define a graduação do praticante.
Kendo (jap.)
O caminho da espada. Arte Marcial desenvolvida a partir do kenjutsu.
No Kendo é usado o shinai, espada, formado por quatro pedaços de
bambu polido e fixos com tiras de couro.
Kendoka (jap.)
Praticante de kendo.
Kinomichi (jap.)
Arte do movimento criada por Masamichi Noro.
Kokyu-nage (jap.)
Kokyu, respiração; Nage, projecção. Técnica utilizada no Aikido e
que permite projectar o parceiro através de um movimento suave.
Significa também a força que emana do ki (energia).
Naginata (jap.)
Arma usada no Japão desde o período Heian (794-1184). Espécie
de foice com um cabo comprido. É uma Arte Marcial, essencial -
mente, praticada por mulheres.
Nô (jap.)
Abreviatura de Sarugaku no Nô. Forma aristocrática de espectá culo
cantado e dançado, com origem nos dramas de Kagura, de Sarugaku
e nas danças populares (dengaku,mai). Esta forma de teatro foi criada
glossário
74
Sesshin (jap.)
Literalmente, recolher, tocar o espírito. Período intensivo de medi -
tação, com a duração de vários dias.
Shintô (jap.)
Literalmente, via/conduta (to ou do) dos deuses (shin ou jin). Se -
gundo Delumeau, remete para um conjunto diversificado de crenças,
de cultos, de concepções do mundo e do universo que prevalecem
no arquipélago japonês de uma maneira flexível, sem esforço de
sistematização, desde a antiguidade. Na sua acepção mais antiga,
exprime o mundo religioso do Japão pré-búdico. Este shintô, de -
nominado puro, original, nacional, e até arcaico, materializou-se
inicialmente pelos seus lugares de culto — elementos da natureza
ou simples oratórios temporários desfeitos após cada cerimónia —
antes de qualquer espécie de dogma lhe conferir a base ideológica
que não possuía.
Shiva (sâns.)
Na mitologia indiana, é o princípio absoluto, o germe. Totalmente
transcendente enquanto que imutável e pura consciência (brahman).
As suas formas são diversas. É, também, o arquétipo do yogui. Na
sua forma de Shiva Nataraja, dançando a dança cósmica, destrói
tudo o que é nocivo e faz renascer o mundo. Significa, também, morte
e renascimento espiritual, e entrada na beatitude.
Shogun (jap.)
Abreviatura de Sei I Taishogun. Título usado desde o séc. XIII pelos
generais ou chefes de guerra exercendo, na realidade, poder político,
militar e administrativo.
Souks
Mercado marroquino
Tai-Chi-Chuan ou Tai Quan (chin.)
Literalmente, técnica de combate da suprema cumeeira com as
mãos. É uma Arte Marcial chinesa que utiliza o princípio da alternância
do cheio/vazio, do Yin/Yang.
Taiso (jap.)
Termo que designa um conjunto de exercícios que prepara o físico,
a respiração e a mente para um trabalho mais elaborado. No caso do
Tenchi Tessen, prepara o praticante para o trabalho dos temas, kata
e coreografias.
Tan dien (jap.) ou Tanden (jap.) ou Tan tien (chin.)
Campo de cinábrio. Expressão de origem taoista que designa o
ponto de encontro de todas as energias.
Ten-chi-jin ou Tatsu Jin (jap.)
Literalmente, homem entre Céu e Terra. Termo que designa o homem
realizado.
Upanishad (sâns.)
Literalmente, aproximação; Upa: perto; Nishad: sentado. Textos
anónimos em prosa ou em verso, representando ensaios espontâneos
e audaciosos que visam descobrir a Verdade última. Não podem ser
encerrados num sistema. Os primeiros textos datam do séc. VIII ao
séc. VII a.c. e na realidade constituem o Védanta, ou seja, o fim do
Véda. Contam-se mais de duzentos textos redigidos em diversas
épocas e o assunto de mais de vinte deles é sobre o yoga como
disciplina autónoma.
Vâyu (sâns.)
Literalmente, ar, vento. Na Índia antiga o organismo psicosomá -
tico era explicado pelos vâyu (ventos internos). Vâyu é uma espé -
cie de dinamismo interno que é inato e que provém dos efeitos cines -
tésicos, que têm múltiplas direcções. É a noção de movi mento/
ritmo interno. É sinónimo de Prana para designar a energia vital.
Véda (sâns.)
Literalmente, ciência, saber. Conjunto de escrituras consideradas
75
glossário
sagradas pela tradição brahmanista. Este conjunto de escrituras
é constituído por quatro compilações de natureza semelhante:
Rig-véda; Sama-véda; Yajur-véda e Atharva-véda.
Vishnou (sâns.)
Na mitologia indiana é o deus solar. Corresponde à consciência
luminosa e preside à coesão e preservação do universo.
Yamato-Damashi (jap.)
Termo que designa o espírito das virtudes guerreiras do povo japonês.
Yoga (sâns.)
A raiz desta palavra é jug, que significa segurar, ligar, manter sob o
jugo. O primeiro significado para esta palavra é tiro, parelha. O se -
gundo indica uma disciplina que tem por finalidade dominar os
diversos elementos da personalidade. O yoga é um dos seis sistemas
(darçana) filosóficos da Índia.
Yoguin (sâns.)
Adepto da prática do yoga.
Yukata (jap.)
Tipo de kimono leve, feito de algodão e usado durante as noites
quentes de Verão no Japão.
Zazen (jap.)
Za significa sentado e Zen é a abreviação da palavra zenna, derivada
do sânscrito dhyana, que significa meditação. Portanto, prática da
meditação na postura sentada.
Zen (jap.)
Meditação.
glossário
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78
apêndices
80
Pela sua pertinência neste volume, o presente apêndice propõe
um resumo histórico sobre o leque. A informação foi retirada da
internet (site: http://perso.wanadoo-fr/éventail/historique.htm), e
baseia-se nos livros Éventails (Genève, Slatkine, 1987), de Maryse
Volet e Annette Beentjes, e L’eventail à tous vents (Paris, Louvre des
Antiquaires, 1989), de Michel Maignan.
A Pré-História
Não possuímos qualquer testemunho sobre a existência do
leque na época pré-histórica. Contudo, a semelhança deste uten -
sílio com o afasta-moscas e a sua utilização nas suas variantes rús -
ticas, para avivar o fogo, permite-nos pensar que os nossos longín -
quos antepassados não o ignoraram.
A Antiguidade
No Egipto, a existência de leques muito antigos está provada
há mais de 5.000 anos. Tratam-se de leques de cerimónia, fixos e de
cabo comprido. No Sudão, foram encontrados leques de plumas de
avestruz, com mais de 4.000 anos. O túmulo de Tout-Ank-Amon
continha dois leques fixos, com cabos ricamente revestidos a folha
de ouro e pedras preciosas. Infelizmente, as plumas destes leques
desapareceram.
Na Assíria, o leque de plumas era utilizado, principalmente,
durante as cerimónias religiosas.
Inúmeras esculturas ou obras gráficas que se encontram na
maior parte dos grandes museus mostram leques fixos, e muitos
autores antigos os evocam, especialmente, no teatro. Damos aqui a
descrição de Anthony Rich (Dictionnaire des Antiquités, 1883):
Flabellum – leque. Os leques das senhoras gregas e romanas
eram feitos de folhas de lótus, de plumas de pavão ou de outro
material deste tipo pintado com cores brilhantes. Não se podiam abrir
ou fechar, como os nossos. Eram direitos e tinham um cabo comprido...
de qualquer maneira elas serviam-se sempre de um escravo...”
(assinale-se, aqui, que a iconografia, no entanto, nos mostra bastantes
leques individuais!)
Rich apresenta-nos, segundo uma pintura de Pompeia, um
leque de folhas de lótus, e um outro de plumas de pavão, segundo
uma pintura de Stabies. Note-se que todos estes leques eram fixos,
mesmo se os tabulae tenham prefigurado os chamados leques
quebrados.
Certamente, a antiguidade extremo-oriental não ficava atrás.
Contudo, e embora certos textos (não contemporâneos) mencionem
a presença de leques há 3.000 anos, a sua existência (primeiro os
fixos) só está provada depois de 600 a.c. e, no Japão, depois do séc.
III da nossa era. Na China, foram encontrados leques em bambu
entrançado, datando do séc. II a.c.
81
o leque — resumo histórico I
Império-Baixo e Idade Média
Em Roma, Constantinopla e depois Bizâncio, as senhoras
continuam, certamente, a usar os leques acima descritos.
O leque desempenhava para a igreja católica o mesmo papel
litúrgico que os serafins na religião judia. Os flabelli utilizados pare -
cem ter sido feitos ou em plumas fixas a um cabo, ou do tipo cocarde.
O Flabellum desaparecerá dos atributos pontificiais. Um destes le -
ques — o Flabellum de Monza (séc. VI) — era, aliás, a reutilização de
um objecto que tinha pertencido a uma senhora de reputação
duvidosa que, através desta dádiva teria resgatado as suas culpas!
Na sociedade civil italiana e, sem dúvida, noutros locais do
mediterrâneo, é o leque em forma de bandeira que parece ser o mais
divulgado.
Durante este tempo, pelo menos desde o séc. IX, o Japão, que
de certeza tinha recebido o leque écran da China, inventava o leque
de abrir e desenvolvia todo um cerimonial de ética à volta dos Uchiwa,
leque rígido, e dos Ogi, leque de abrir.
Também outras civilizações ainda desconhecidas na Europa,
como a dos Azetecas e a dos Maias tinham conhecido os leques.
O Renascimento
As viagens marítimas circumplanetárias e a partilha do mun -
do entre Espanha e Portugal, levarão os soberanos ibéricos a rece -
ber de Cristovão Colombo e de Cortês leques de plumas (entre os
quais o de Montezuma, que se encontra hoje em Viena) e os nave -
gadores lusitanos a descobrir, no Japão, o leque dobrado. Trazem
caixas repletas de leques, que de Lisboa irão chegar à Península
Ibérica e a Itália, onde o Renascimento desabrochava, suscitando
a inveja dos reis de França. Será Catarina de Médicis, rainha de
Fran ça, quem terá introduzido neste país, os primeiros leques dobra -
o leque — resumo histórico
Leques chineses
82
dos. Em Inglaterra, Elisabeth I estimará bastante os leques de todos
os tipos, ao ponto de decidir que estes eram o único presente que os
seus súbditos lhe poderiam oferecer.
É, aliás, nesta época que o nome deste objecto se fixa. A Idade
Média tinha conhecido os esmouchoirs, depois os esventours (numa
carta de 1384), e Rabelais descrevia ainda “os esventoirs de plumas,
de papel, de tela”.
Infelizmente, chegaram até nós poucos leques desta época.
O séc. XVII
Contrariamente ao que poderia imaginar-se, os primeiros
países importadores de leques não desenvolveram uma verdadeira
actividade criadora. Apesar daquilo que a produção actual poderia
fazer crer, Espanha e, principalmente, Portugal não se dedicaram a
essa actividade. Foi, sobretudo, em Itália (e paralelamente aos leques
écran que continuavam a ser muito apreciados) que se desen vol veu
uma produção de qualidade, graças às proezas dos peleiros na
obtenção de um pergaminho particularmente fino (velino, feito a
partir de pele de vitela), chamado pele de cisne. Rapidamente, os
italianos e os franceses utilizaram esta pele (e muito raramente o
papel), reproduzindo aí cenas mitológicas ou tiradas da história
antiga, tendo como base quadros de pintores conhecidos.
Célebres gravadores atingiram a sua fama na criação de folhas
de leque: Abraham Bosse, em França, Wenceslas Hollar, em vários
países. Estas folhas são muitas vezes destinadas aos leques écran
fixos, que também serão utilizados nos séculos seguintes, com cabos
em madeira e torneados.
As armações dos leques dobrados eram, quase sempre, em
marfim pouco decorado, mas cedo, se adicionaram incrustações de
madrepérola ou de conchas. No fim do século, e devido ao progres -
83
o leque — resumo histórico
Leques ocidentais
1. giratório, séc. XVI
2. plissado em roda
3. de penas
4. de grade
5. com baínha
6. com varetas de
madrepérola ou marfim
7. de penas e decoração de
madrepérola
8. pintado
9. indiano
so das técnicas, que permitiu construir hastes que comportavam
quatro ou cinco pedaços juntos, deu-se o aparecimento das arma -
ções em conchas (eventualmente salpicadas de ouro ou prata com
decoração à Berain) e em madrepérola.
Os leques mais luxuosos recebiam uma armação feita com
metais preciosos, mas estas armações foram fundidas para atender
a necessidades pecuniárias. Também, muitas outras armações não
suportaram o desgaste ao longo dos anos, o que explica que muitas
folhas desta época tenham chegado até nós sob a forma de quadros,
tendo sido compostas em rectângulo, mais ou menos repintadas
para lhes dar uma forma rectangular.
As formas e os estilos das folhas dos leques podem variar. Con -
tudo, nota-se uma predominância de fundos escuros e, frequen -
temente, o verso das folhas têm ricos ornamentos com motivos
florais, muito parecidos com alguns quadros em voga nessa época.
Por vezes (principalmente em Inglaterra, onde se utilizava uma pele
mais grosseira e onde o leque não comportava mais do que uma
simples folha, esta armação era mesmo chamada à inglesa), o verso
da folha era decorado com simples e sinuosas linhas douradas.
No fim do século, e imitando os leques vindo da Ásia, assiste-
-se ao desenvolvimento de uma produção de leques quebrados, fei -
tos em marfim e, muito raramente, em madeira. A minúcia da pintura
destes leques e a utilização do marfim deram origem ao aparecimento
de belos objectos.
O séc. XVIII
Os leques, à semelhança dos homens, não obedecem às impo -
sições aparentes das mudanças de século!
Os primeiros anos do século, até à Regência, foram marcados
por uma evolução limitada. Os leques quebrados estavam menos
o leque — resumo histórico
84
perfurados e o trabalho de incrustação de madrepérola e conchas
aperfeiçoou-se. Porém, após a morte de Luís XIV, os temas mitoló -
gicos ou religiosos ficaram menos em voga (pelo menos em França,
mas os leques com cenas bíblicas continuaram a ser muito aprecia -
dos em países protestantes como a Holanda) e os artesãos aplica -
ram o seu grande virtuosismo na elaboração de sumptuosas arma -
ções, com varetas em madrepérola de uma elegância nunca atingida
posteriormente.
Contudo, a partir de 1760, as armações deixaram de ter tanta
importância e tornaram-se esqueleto, as folhas já não eram pintadas
na íntegra, mas revestidas por cartolinas mais ou menos elaboradas.
Nas folhas, a pele era cada vez mais substituída pela seda (menos
despendiosa) ou pelo papel serpente dos leques vulgares, e os assun -
tos, abandonando os grandes temas, privilegiaram as cenas pastorais,
as evocações do amor e do casamento (gaiolas de pássaros e altares
de amor...), ou então celebravam os principais acontecimentos da
crónica: passagem de cometa, modas excentricas, as primeiras subi -
das em balão. Os leques de sistema ou de diferentes mecanismos
desen volveram-se nessa altura.
Por outro lado, é então que começa a industrialização, com o
melhoramento dos procedimentos de dobragem da folha e com o
desenvolvimento (ao que parece, mais tardio em França do que na
Inglaterra) dos leques impressos, utilizados como suporte de canções,
música e propaganda política.
O uso político culminou, é claro, na altura da Revolução Fran -
cesa, que utilizou tanto os leques de formato habitual (expresso
em pés e polegadas mesmo depois da aparição do sistema métrico),
como os leques gigantes, dos quais raramente se encontra o modelo
original, sem ilustrações ou textos políticos.
O séc. XIX
Embora menos afectados pelos acontecimentos franceses, os
outros países seguiram mais ou menos a mesma evolução. O leque
conheceu um evidente declínio, ligado às desordens sociais, ao de -
saparecimento de certos circuitos de produção, à evolução da moda.
O tamanho do leque diminuiu e, durante a Restauração, fizeram-se
muitos leques quebrados, sobretudo em corno e em marfim, muitas
vezes pobremente decorados, embora houvesse também verdadeiras
preciosidades.
Contudo, assistiu-se a uma certa renovação, que, inicialmente,
se traduziu pela procura dos leques das avós. Como testemunha a
imprensa da época, no séc. XIX (talvez mais do que no século anterior)
as emoções são transmitidas pela linguagem do leque. O entusias -
mo pelos leques do séc. XVIII favoreceu o retomar dos modelos dessa
época (pelo menos na elegância da execução), antes que a pros -
peridade do Segundo Império, a cópia dos estilos do passado, o talento
de grandes fabricantes e dos artesãos de Oise, o interesse de pintores
célebres concorresse para uma verda deira explosão.
Nos anos 1860-1870 é difícil encontrar uma gravura sobre a
moda sem um leque... O melhoramento dos processos industriais
(litografia, fabrico de armações, etc.) facilitou esse impulso, mas as
mais belas peças renovavam-se com uma qualidade inédita após
um século. É esse, na realidade, o período de ouro do leque, onde
coexistem a realização de modelos de grande prestígio e a sua difusão
junto das classes médias.
No fim do século, as dimensões do leque aumentaram, para
diminuir a seguir, e o leque publicitário adquiriu plenos direitos de
cidadania, primeiro sob a forma de leques para o espectáculo, depois
para as companhias de caminho de ferro e, por fim, para os hotéis,
casinos e bebidas de toda a espécie. O gosto pelo Japão permitiu a
utilização de leques importados, por vezes publicitários ou come -
morativos.
O séc. XX
O leque, geralmente de tamanho pequeno, quando se adapta -
va à Arte Nova, ou mesmo quando imitava de novo os estilos do pas -
sado, continuou a ser utilizado ao longo da primeira década. Porém,
como indicava o Petit echo de la mode, desde 1901 “já não reinava”.
Todavia, conheceu ainda algum sucesso, mesmo que os mode -
los realizados nesses anos fossem apresentados por vendedores
ignorantes como sendo mais antigos. A guerra de 1914-1918 deu-
-lhe um golpe fatal, em simultâneo com a emancipação da mulher,
que, ao conduzir automóveis, fumar cigarros, trabalhar nas fábricas
ou nos escritórios, já não lhe reconhecia utilidade nem agrado.
Claro que a alta costura e o mundo do espectáculo ainda o
exi biram durante algum tempo, mas era um canto do cisne. Apenas
os leques publicitários se desenvolveram, até perderem terreno com
a Segunda Gerra Mundial.
Os leques em celulóide, surgidos no fim do séc. XIX, continua -
ram também a usar-se, com um fim por vezes publicitário, mas prin -
cipalmente como acessório para a moda ou como objecto turístico.
Alguns são extremamente interessantes.
Por último, sobretudo na Ásia e em Espanha, resistem produ -
ções geralmente em massa, para uso autóctone ou para turistas, que
obrigam os coleccionadores de leques a recear certos presentes de
amigos bem intencionados ainda que poupados!
Poderemos acreditar num retorno do leque no século XXI?
O facto parece pouco provável. No entanto, este objecto soube
tantas vezes fechar-se e esperar o fim da tempestade, que talvez o
vejamos abrir-se de novo e retomar a sua conversa ligeira...
85
o leque — resumo histórico
Versos de circunstância sobre o leque
À mademoiselle G. M.
Jadis frôlant avec émoi
Ton dos de licorne ou de fée,
Aile ancienne, donne-moi
L’horizon dans une bouffée.
À mademoiselle Missia Godebska
Aile que du papier reploie
Bats toute si t’initia
Naguère à l’orage et la joie
De son piano Missia.
À madame Léopold Dauphin
Spirituellement au fin
Fond du ciel avec des mains fermes
Prise par Madame Dauphin
Aile du Temps tu te refermes.
Stéphane Mallarmé (1842-1898)
o leque — resumo histórico
86
O leque e as suas partes
Folha — Parte superior do leque constituída por vários materiais
(papel, velino, seda, renda,...); é suportada pelas extremidades das
varetas e por vezes forrado com uma contra folha.
Extremidades das varetas — Parte superior das varetas destinada
a suportar a folha e que fica escondida quando esta é dobrada.
Lâmina — Vareta exterior da armação, de um modo geral, mais sólida
que as restantes a fim de as proteger quando o leque está fechado.
Varetas — Elementos que constituem a armação, situadas entre as
duas lâminas.
Eixo Central — Conjunto do eixo, ou parafuso, e seu fecho, que reúne
as varetas e as lâminas na base.
Cabeça — Parte da armação onde se fixa o eixo central.
Folha
Extremidades das varetas
ou parte superior
Lâmina
Varetas
Eixo central
Cabeça
A origem do leque, como já foi referido, perde-se na noite
dos tempos, apesar de a tradição mais comunmente aceite atribuir
aos chineses a primazia de ter criado um objecto especial para obter
frescura, ideia que parece datar do ano 1106 a.c. Contudo, se os da -
dos recolhidos por Maryse Volet, já expostos no apêndice anterior,
desmentem esta convicção, é pela importação do País do Meio que
o leque chega ao País do Sol Nascente.
O leque chinês primitivo não era flexível: a sua forma derivava
de uma simples folha de palmeira. Esse leque rígido, feito de penas,
era colocado no carro dos antigos imperadores chineses. Da China
o uso do leque parece ter passado à Coreia e daqui ao Japão, onde
não tardou a entrar na moda e se tornou um acessório indispensável
ao traje nacional dos dois sexos.
Na região de Shosoin, no Japão, perto do templo Todaji, em
Nara, os arqueólogos descobriram, entre outros objectos, um leque
do séc. VII. Podemos concluir que o leque era um objecto conhecido
nessa época.
A invenção do leque de abrir é geralmente atribuída aos ja -
poneses. Uma antiga tradição relata-nos que, em 1184, a viúva de
Atsumori se retirou para o templo de Mi-ei-dô, em Kyoto, tornou-
-se monja e um dia teve ocasião de cuidar do superior do con -
vento, que sofria de febre. Curou-o, diz-se, abanando-o com um
papel dobrado em leque e murmurando encantamentos. Parece
que ainda hoje os bonzos do templo de Mi-ei-dô são exímios em
fabricar leques; é também essa a razão pela qual os fabricantes
japoneses adoptam tão frequentemente o nome de Mi-ei-dô como
insígnia das suas lojas.
Outra lenda atribui a inovação do leque a um fabricante que
vivia em Kyoto, na época de Ten-ji (668-672), mas cujo nome não
passou à posteridade. Segundo esta lenda o fabricante quis espantar
um morcego que lhe entrara em casa de noite; o animal, aterrorizado,
87
o leque no japão Ii
Leques de penas
em brazões japoneses
terístico do japonês de outrora, quase como um símbolo do país.
Desempenhava um papel considerável em quase todas as mani -
festações da vida japonesa: dava-se como recordação a quem
partia; trocavam-se leques quando da primeira conversação com
alguém; a recém-casada oferecia ao seu marido, entre outros objec -
tos, um leque; no 16º aniversário, quando se atingia a maioridade
no Japão, ofereciam-se leques, emblema de uma vida próspera. Se
um ancião chegava aos 77 anos de idade os parentes ofereciam-lhe,
também, leques nos quais tinham inscrito a letra ki, pois os três signos
que a compõem significam, separadamente, 7, 10, 7, o que perfaz
77. O ancião, por sua vez, oferecia aos seus parentes mais chega -
dos pequenos leques nos quais também traçara a letra ki. A festa
dos 77 anos chama-se no Japão ki-ju no ga.
Na Europa é usual suspender um ramalhete no topo da casa
acabada de construir; no Japão, em ocasiões semelhantes, atam-se
na ponta de uma longa vara três leques dispostos em círculo, no topo
da casa. Os grandes generais japoneses tinham um leque de ferro,
que utilizavam para transmitir ordens aos seus tenentes; os árbi-
tros nos concursos de pólo, da-kyû, ou nas lutas, usavam, como
mar ca distintiva das suas funções, um leque rígido com a divisa:
Isshin, Issei, ou seja, um espírito, uma voz ou, por outras palavras, a
decisão do juiz é soberana. Nas cerimónias religiosas, o leque tinha,
também, o seu lugar marcado. Assim, durante as festas de Isé, em
honra da deusa do Sol, Amaterasu, cinco grandes leques feitos cada
um de seis tábuas de hinoki, que mediam mais ou menos 2 metros,
eram transportados em procissão nos arredores dos templos.
O leque de abrir desempenha um papel importante nos dis -
tintos divertimentos dos leques flutuantes e no jogo ôgi otoshi,
assim como, na dança do pinheiro e na dança dos leques. É, aliás, o
acessório mais usado por quase todos os bailarinos japoneses:
atirou-se contra a lâmpada e queimou-se. Quando o fabricante o
apanhou para o deitar fora, viu uma das asas do animal abrir-se.
Este movimento deu-lhe a ideia de fabricar um leque que se podia
dobrar e levar escondido na manga. No dia seguinte confeccionou
o primeiro leque de abrir.
No entanto, para alguns historiadores, a explicação seria outra:
o leque de abrir teria a sua origem no Mokkan, tabuinha na qual os
escribas da corte costumavam corrigir as suas notas. Para manter
juntas as tabuinhas, os escribas usavam um fio que passava por um
furo praticado numa das extremidades de cada uma delas. Assim,
para encontrar a tabuinha procurada bastava abri-las em leque.
Note-se, no entanto, que o leque rígido chinês, uchiwa em
japonês, foi de uso geral no Japão até ao início do séc. XV, época
em que o leque de abrir, ôgi, se tornou cada vez mais popular, tanto
entre os humildes como no clã dos nobres e na corte imperial. Che -
gou mesmo a substituir a pequena régua, chamada shaku, nas ceri -
mónias oficiais e nas audiências concedidas pelo imperador. Foi
nesta época que também os chineses adoptaram o ôgi.
Como já foi referido, o leque tornou-se um objecto usado
tanto pelas mulheres como pelos homens. Os cronistas antigos sali -
entam que Minamoto No Yorimasa escreveu um poema sobre o seu
leque, antes de fazer hara kiri ou seppuku, logo a seguir à derrota
na batalha de Ujikawa. O leque foi introduzido no ritual do seppuku
em subs tituição da adaga, o sabre pequeno. Durante este ritual, no
momento em que o indivíduo estendia a mão para agarrar o leque,
que se encontrava à sua frente no suporte de madeira, cortavam-
-lhe a cabeça.
No Japão, até 1868 o leque foi usado por toda a gente: des de
o imperador, príncipes, nobres e guerreiros até aos mais humildes
comerciantes, camponeses ou criados. Era o atributo mais carac -
o leque no japão
88
os man-zai e os bailarinos do sam-bagô usam-no regularmente.
Desempenha, também, um papel de relevo em muitas histórias ou
lendas.
À semelhança de muitos objectos que acabam por adquirir
um significado simbólico, no Japão, o leque tornou-se símbolo de
prosperidade, logo, do monte Fuji que representa também esta
prosperidade. Quando, em 1635, os portugueses receberam auto -
rização para se estabelecer em Nagasaki, o desenho da sua planta
urbana tinha a forma de um leque, para simbolizar um acordo de
troca sob o signo da mútua prosperidade.
As aya honé, varetas exteriores de um leque de abrir, entre as
quais se agrupam as outras, são levemente encurvadas no interior
para manter as outras bem apertadas quando o leque está fechado.
Todas as varetas são reunidas por um pedacinho de tubo, kana-mé,
ou seja olho de caranguejo, fixado nas duas extremidades por rodelas
metálicas.
Os japoneses, frequentemente, fabricavam punhais, tan-tô,
cuja bainha e cabo imitavam à perfeição um leque fechado.
Segue uma lista que indica os nomes e as características de
algumas variedades de leques japoneses.
Uchiwa — leques rígidos
Gum-bai uchiwa ou Dan-sen ou, ainda, Gum-bai:
É uma espécie de abano de couro espesso ou de ferro fixado
sobre um pau ou uma barra de ferro, quase sempre lacado e deco -
rado com um motivo representando a Lua, o Sol ou a Estrela Polar.
Este leque rígido foi empregado na guerra exclusivamente por ofi -
ciais de alta patente; era utilizado por eles para transmitir ordens e
para servir de escudo contra flechas e pedras.
Ji-sen:
Leque de penas que na arte japonesa se vê frequentemente
nas mãos dos guerreiros; tem a forma de um uchiwa. As penas
utilizadas são de faisão ou de pavão.
Maki uchiwa:
Leque que pode ser enrolado em volta de uma vara central.
Abrindo as varetas, horizontalmente, em cruz com o cabo, o leque
mantêm-se rígido e pronto a ser utilizado.
Mizu uchiwa:
Leques fabricados em Kuku-i. O seu papel impermeável per -
mite mergulhá-los na água fresca para baixar a temperatura do ar
que entra em contacto com eles quando se agitam. São lacados e
datam do fim do séc. XVII.
89
o leque no japão
Uchiwa
O leque rígido na arte
heráldica japonesa
nos pormenores, diferia um pouco do leque do imperador.
Ako-ya ôgi:
Leque composto de 16 varetas. O pano era igualmente deco -
rado com desenhos emblemáticos; longas fitas com nós ornavam as
extremidades dos oya honé e o kanamé.
Gun-sen ou Tes-sen ou Tetsu-sen:
Leque de guerra feito de metal, sobretudo de ferro, podendo
também ser feito em aço ou em cobre e por vezes em bambu laca -
do, mas é um leque de abrir composto de dez varetas. A folha é de
papel espesso, decorada habitualmente com o Sol vermelho de
Yama-to (país do Sol nascente) em fundo de ouro de um lado, ao
passo que o outro ostenta, em fundo azul escuro ou preto, o disco
prateado da Lua ou a constelação da Ursa Maior. Esta decoração,
que se encontra também no gum-bai uchiwa, está no entanto sujeita
a muitas variações. Os gun-sen eram, ao que parece, utilizados já no
séc. XII. Um outro tipo de gun-sen que tem a sua origem no hi-ôgi
é feito de lamelas em metal muito pesado o que obriga ao uso das
duas mãos para o abrir e fechar.
Hi ôgi:
Leque composto de 23 varetas de madeira de hinoki. É o gé -
nero de leque usado pela imperatriz do Japão. O pano está orna -
mentado com pinheiros, ameixoeiras, flores de laranjeira e camélias.
Komori:
Literalmente: morcego. É um leque curtíssimo, composto de
12 ou 14 varetas de bambu com uma folha de papel colorido de
várias cores. As varetas de guarda são mais largas que as dobras do
pano.
Mai-ôgi:
Leque muito particularmente usado pelos bailarinos japo ne -
ses. Tem 10 varetas ligadas por um pedaço de chumbo destinado a
Hamaguri uchiwa:
Leque em forma de concha, hamaguri, de onde deriva o seu
nome. Foi inventado, segundo consta, por volta de 1800. Na folha
ostenta pinturas de assuntos diversos. É de madeira de hinoki e
chama-se também kyo uchiwa.
Yama-to uchiwa:
Leque de circular com uma folha de papel transparente ornada
de desenhos. Data do fim do séc. XVIII, fabri cado em Yama-to.
Shibu uchiwa:
Leques usados na cozinha como abanos para avivar o fogo.
A folha, muito espessa, está coberta de uma goma extraída do su -
mo dos frutos verdes do kaki, em japonês shibu, daí o seu nome. Este
género de leque foi fabricado pela primeira vez nos finais do séc.
XVIII segundo indicações de um daimyo. A folha, mergulhada no
shibu, espalha, segundo parece, um cheiro bastante desagradável.
Ôgi — leque de abrir
Ako-mé ôgi:
Leque composto de 25 a 39 varetas. É o leque cuja criação é
atribuída à viúva de Atsumori. Pintado de branco e decorado com
crisântemos, folhas de ameixoeira, tufos de pinho e outros emble -
mas de longevidade. Foi utilizado desde o séc. XII e, segundo parece,
até à Restauração (1868), pelas damas da corte imperial.
Chû-kei:
Leque de abrir construído de tal maneira que as varetas de
guarda estão quebradas na raiz do pano com um certo ângulo
para o exterior, de modo que o leque fechado tem, mesmo assim, o
aspecto de um leque parcialmente aberto. Este leque era usado
pelo imperador e pelos shogun. Os nobres usavam um chû-kei que,
o leque no japão
90
torná-lo mais pesado na ponta para ser de mais fácil manipula ção.
Está recoberto por uma folha de papel espesso e monocromo, com
as armas daquele perante o qual o bailarino vai exercer a sua arte.
Data do início do séc. XVII.
Mita ôgi:
Enormes leques com mais de 2 metros de altura, compostos
de seis tábuas de madeira de hinoki utilizados nas procissões re -
ligiosas. Leques parecidos são usados pelos bombeiros de Kyoto.
Naka uki:
Leque de corte empregado apenas no verão. A sua folha é,
habitualmente, decorada de volubilis. Na opinião de alguns, este
género de leques de abrir foi utilizado durante as cerimónias da
corte desde o séc. VIII, data que invalidaria a história da invenção
do leque de abrir pela viúva de Atsumori em 1184.
Ri-kyu ôgi:
Leque concebido pelo célebre mestre da cerimónia do chá,
(cha-jin), Sen no Rikyu (1521-1591). Compunha-se apenas de três
varetas de madeira ligadas por uma forte folha de papel decorada
com pinturas. Rikyu utilizava este género de leques como bandeja
para bolos nas cerimónias do chá.
Suyé hiro ôgi:
Leques de 15 a 25 varetas, muito flexíveis; as varetas de guarda
são estreitas e frequentemente esculpidas. São utilizados, princi -
palmente, pelos bailarinos do teatro Nô.
91
o leque no japão
Ôgi
Fantasias heráldicas
em leques de abrir
Tessen, o leque dos samurais
O tessen tinha, pois, o seu lugar na panóplia das Artes do Budo,
como arma de defesa. Foram escritos grandes feitos dos samurais
com os seus leques.
Um dos heróis mais lendários do Japão é, sem sombra de dúvida,
o princípe Yoshitume do clã dos Minamoto. No Gikeiki ou Crónica
de Yoshitsume encontram-se abundantes detalhes sobre a vida deste
herói. Um dos episódios importantes da sua vida foi o seu encontro
com Benkei. Assim reza a lenda:
Benkei era um monge guerreiro de uma estatura imponen- te.
Um verdadeiro gigante! A sua arte do Naginata era temível. Tinha
feito um voto de contribuir para a reconstrução de um tem plo e, por
isso, tinha tomado a decisão de roubar mil sabres aos tran seuntes.
Após ter conseguido apropriar-se de novecentos e noventa nove
sabres, uma noite colocou-se perto de uma ponte, em Kyoto, à espera
da sua última vítima. Na escuridão viu apro ximar-se uma silhueta
solitária. Era um jovem homem que toca va flauta, Yoshitsune. A
cabeça e os ombros cobertos por um man to de seda, segundo um
costume frequente entre os acólitos dos templos. Primeiro, o monge
guerreiro recusou-se a conside rar este frágil e efeminado adolescente
como um adversário digno dele. Mas, mal começaram a combater,
deu-se conta de que Yoshit-sune era um temível lutador, pois tinha
aprendido as Artes Mar ciais com os Tengu, génios místicos que
habitavam a floresta. Yoshitsune venceu Benkei com um golpe de
leque. Per dido de admiração diante tal demonstração de virtuosismo,
Benkei supli cou-lhe que o deixasse ficar com ele e tornou-se o seu
mais leal servidor.
Um outro feito admirável, baseado na história e não na mi -
o leque no japão
Leques de guerra:
Gun-Sen ou Tes-sen
Dan-sen ou Gum-bai
e Sai-hai
92
tologia, foi o de Takeda Shingen durante uma batalha contra Uyesugi
Kenshin, no início do séc. XVI:
Estes dois homens faziam parte dos maiores combatentes que
o Japão tinha conhecido e afrontaram-se em lutas sem pie dade.
Shingen e Kenshin eram a expressão viva dos homens de guerra que
foram os samurais.
Hábeis administradores e excelentes comandantes milita res,
ambos eram apaixonados pela literatura e pelas Artes Marciais. Tanto
um como o outro tinham sido educados por mon ges. Com efeito,
Shingen e Kenshin eram os nomes que tinham recebido quando
entraram para o mosteiro. Na vida, consideravam-se novi ços. As suas
cabeças estavam sempre rapadas. Kenshin vivia como um monge
budista. Era celibatário e nunca comia carne. Ambos tinham outro
amor comum: o combate. Ao longo de dez anos de incessantes lutas
que abalaram a província de Kawanakajima, inúmeras batalhas foram
travadas entre os dois sem, no entanto, ser possível dar uma clara
vitória a um deles.
Durante uma batalha em que os dois exércitos se encon tra vam
face a face, numa situação de impasse demasiado longa para o gosto
de Kenshin, este decidiu ir ver Shingen. Picou o seu cavalo e, de uma
assentada, entrou no campo do adversário. Encon trou Shingen sentado
numa cadeira diante da sua tenda, estudando manobras militares
com um leque na mão. Então, Kenshin lançou o seu cavalo sobre ele,
afastando os ajudantes de campo. Depois, com o seu sabre
desembainhado ameaçou a cabeça de Shingen e fez-lhe uma pergunta
tipicamente Zen: “E agora o que é que tu dizes?” Sem perder a calma,
Shingen respondeu-lhe, também segundo a tradição Zen: “Um floco
de neve sobre uma brasei ra”. Ao ouvir essas palavras Kenshin atacou
com o seu sabre, mas Shingen parou o ataque com um golpe de leque.
Kenshin conti nuou a atacar, mas Shingen conseguia desviar-se de
cada ataque, até que os seus homens chegaram e feriram o cavalo
de Kenshin, obrigando-o a retirar-se. Para ele foi uma derrota terrível,
pois o seu adversário venceu-o, tendo como única arma um leque.
Quando, mais tarde, os samurais adoptaram o uso do leque,
só se serviam dele para repelir os adversários considerados inferiores
na arte do combate ou na hierarquia social. Pouco a pouco, o leque
foi associado às proezas dos mestres do sabre. Com efeito, foram
criadas técnicas de combate que transformaram o leque, objecto
utilitário e de ornamento, numa arma de defesa. Naturalmente, os
homens do sabre associaram-no, nas suas técnicas de combate, ao
sabre curto, no caso de não poderem utilizar o sabre longo, seja por
o terem perdido em combate ou por as regras da hospitalidade não
permitirem o uso do sabre num dado local. Neste último caso, o leque
era utilizado para atingir os pontos vitais do assaltante ou, sim -
plesmente, para neutralizar os seus ataques, como demonstra uma
história da vida de Araki Matayemon (1601-1638):
Este mestre da escola Yagyu Shinkage e que morreu muito jovem
tinha entre os seus alunos um senhor cuja habilidade com o sabre
igualava a sua. Cada vez que combatia com os outros alunos superava-
os, mas nunca conseguiu tocar o seu mestre de sabre. A sua ambição
era tornar-se o melhor da sua região, mas sabia que, enquanto Araki
Matayemon vivesse, ser-lhe-ia impos sível realizar o seu sonho. Era
necessário matá-lo.
Nas antigas casas japonesas, um sistema de painéis des lizantes
permitia dividir uma habitação em inúmeras salas. Estes ecrãs, ou
shoji, eram mantidos no lugar graças aos tatami, tapetes colocados
no chão. Segundo a tradição, quando um homem de um nível social
inferior era recebido por um senhor, colocava-se à entrada da sala,
no sítio onde se encontrava o primeiro tatami. Aí, de joelhos, devia
saudar o dono da casa, que se encontrava na ex tremidade oposta.
93
o leque no japão
batalhas mais célebres ou glorificam os guerreiros mais ilustres.
O sabre e o leque
O shibu ou senbu representa a arte do leque, o qual é utilizado
através de movimentos muitos sofisticados e, à semelhança da
dança do sabre, com um fundo musical e poético. Pode-se encon -
trar, aqui, semelhanças com o teatro Kabuki, já que o leque é manejado
de modo a responder aos humores e solicitações do poeta e do
cantor. Existem centenas de danças diferentes e muitas são coreo -
grafadas a partir de poemas muito curtos, zekku, outras a partir de
poemas mais longos, risshi, koshi e choka. Um certo número de can -
ções populares, imayou, que datam do período Heian (806-1185),
são transformadas numa dança que incorpora a música do biwa,
um instrumento de cordas. A mais recente era Showa assistiu à evo -
lução do naginata, que introduziu técnicas de um tipo particular de
lança utilizadas pelas mulheres na arte shibu.
A arte de narrar e de cantar com a ajuda do sabre e do tessen
Cantar poemas e histórias é uma arte muito técnica chamada
shigin: o cantor, gindoka, pronuncia as palavras, muito figuradas,
cantando. Hoje os poemas já não são recitados como nos séculos
passados. Esta forma artística, que continuamos a encontrar no
Kenshibudo, foi estabelecida por volta de 1900 por Iwabuchi Shimpu
e Kimura Gakufu.
Procedendo desta maneira, acontecia que, quan do o visitante saudava
em rei, inclinando-se respeitosa men te, a sua cabeça ficava entre os
dois painéis, mesmo por cima da calha que permitia fazer deslizar os
shoji. Se, nesse momento, al guém os empurrasse com força, podia
decapitar a pessoa ajoelhada.
Foi essa a ideia que o senhor teve para matar o seu mestre de
armas. Mandou os seus criados lubrificarem as calhas e orde nou-lhes
que ficassem escondidos atrás dos painéis, quando Araki Matayemon
o viesse visitar, para quando este se inclinasse para o saudar, eles
empurrassem com força os painéis para o assassinar.
Ao receber o convite para ir ao palácio, Matayemon ficou
desconfiado. Quando se encontrava à entrada da sala colocou o seu
leque não sobre o tatami, mas na calha dos shoji. Saudou o senhor,
que fez sinal aos criados, estes empurraram os painéis, mas ao
deslizarem sobre as calhas foram travados pelo leque aí colocado por
Araki Matayemon.
Artes do leque
O Kenshibudo
O Kenshibudo escreve-se com quatro caracteres; o primeiro,
ken, significa sabre; o segundo shi, quer dizer poema; o terceiro, bu,
evoca a dança e o último, do, a Via. O Kenshibudo é uma dança
artística na qual o sabre é o principal elemento de uma coreografia
inspirada num poema ou numa história. As origens da dança do
sabre kenbu remontam à era de Togukawa (1603-1867). Foi desen -
volvida como uma arte muito estética e dirigia-se aos sentimentos
profundos dos samurai, para conservar viva neles a disciplina do
Budo. Os poemas e as histórias que são a base do kenbu narram as
o leque no japão
94
95
tenchi tessen — i lustrações Iii
forma de segurar o tessenequipamento básico
96
tessen ou leque
tabi
vista superior
hakama
vista lateral
kimono
97
cerimonial
preparação
98
99
preparação
preparação
100
101
preparação
preparação
102
103
passos
CRUZADO
DESLIZADO
passos
104
SEMI-CÍRCULO
105
passos
CAVALEIRO
SAMA
passos
106
TURBILHÃO
SENTADO
107
movimentos de base
SAUDAÇÃO ÀS 8 DIRECÇÕES
N
NO
O
SO
S
SE
E
NE
1
2
6
4
2
3
5
N
NO
O
SO
S
SE
E
NE
1
2
3 4
6
5
7
8
movimentos de base
108
SAUDAÇÃO ÀS 8 DIRECÇÕES
ABERTURA LATERAL
109
movimentos de base
A LUA
movimentos de base
110
MOVIMENTO EM 3 TEMPOS
111
movimentos de base
O SOL
1615
14
13
12
11
10
98
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6
5
4
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1
2
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1615
14
13
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10
98
7
6
5
4
3
2
1
4
3
5
6
1615
14
13
12
11
10
98
7
6
5
4
3
2
1
educativos
112
ABERTURA
113
educativos
OS 8 VENTOS
N
NO
O
SO
S
SE
E
NE
1
2
6
4
2
3
5
N
NO
O
SO
S
SE
E
NE
A ESPIRAL
educativos
114
O CAVALEIRO
115
educativos
O INFINITO
educativos
116
ISHVARA PRANIDANA
A ONDA
117
educativos
GARUDA
temas
118
O RECUO
119
temas
O ENCONTRO
temas
120
ANTECIPAR-SE
O ENCONTRO
121
temas
CORTAR OS VENTOS
temas
122
DESVIAR-SE
123
temas
O PÁSSARO
temas
124
A ESPIRAL
O PÁSSARO
125
temas
A ESPIRAL
temas
126
NATARAJA
127
saudação ao céu
tenchi tessenarte e movimento
georges stobbaerts
Hanshi, 8º Dan Dai Nippon Butoku Kai (Kyoto, Japão)
Fundador do Aikido em Portugal
Criador do Tenchi Tessen