TEXTO DE DÓRIS ÁLVARES DE OLIVEIRA CLIQUE PARA AVANÇAR.

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TEXTO DE DÓRIS ÁLVARES DE OLIVEIRA

CLIQUE PARA AVANÇAR

Chegar aos setenta anos, século vinte e um, terceiro milênio! Que façanha! É muito chão caminhado! Fico, às vezes, atônita, a perguntar-me:

Aonde vai parar o tempo que passa por mim em disparada?Que loucura é essa que me leva como um redemoinho, sem que eu possa defender-me? E defender-me de quem? De que?

Também em disparada passavam as árvores, à minha janela, nas idas e vindas, ao longo das viagens pela velha estrada de ferro, nesse sertão mineiro.

Árvores fiéis que sempre estavam de volta à paisagem, na viagem seguinte!

Aquele tempo, porém, não me atropelava os sonhos de menina.

Que tempo é esse de agora que me escorre por entre os dedos sem que eu possa detê-lo ou ao menos controlá-lo?

Já vai bem longe o tempo em que fui motorista da família. Há muito, não levo o marido ao trabalho e os filhos pequenos à escola, pediatra, parquinhos, dentista, festinhas e tantas outras atividades próprias das idades dos meus quatro filhos.

Naquela época, eu conseguia administrar meu tempo. Sim! Porque o tempo era meu! Eu estava no comando. Ou pelo menos pensava estar...

Hoje, fico em casa, às vezes paparicando netos, ajudando filhos, outras vezes em oração... lendo, escrevendo... Aqui e ali, uma viagem... Confesso que me rendi ao computador, à internet. Gosto muito de receber e enviar mensagens pelo correio eletrônico.

Ah! Eu me rendi também à Serra do Curral! Pela janela, a serra vem revelar-me o amanhecer. É um quadro de beleza indescritível e eu gosto de perder-me a admirá-lo.

E se a lua cheia desponta atrás da serra aveludada... Ah! Parece até a hóstia consagrada sobre o altar! Aí é caso perdido: Esqueçam-me, por favor!

Fui pra Poxoréu! Pra Carinhanha! Fui pra Caicó! Ah! Esse velho coração poeta! Não perde a mania de mergulhar preguiçosamente na imensidão enluarada...

Mas de repente já é segunda feira e já pulou para quarta, sexta... Já é fim de semana outra vez?

O que é isso, meu Deus?!

Aonde foi parar a semana que deixei aqui nesta cadeira, junto à costura inacabada, só enquanto ia ao geriatra?

Já se foi! Passou como um busca-pé e se perdeu no infinito.Cheguei aos setenta anos brigando contra o vendaval do tempo.

Daí, o telefonema que preciso dar e só me lembro de fazê-lo à hora inconveniente. Quando chega a hora conveniente, não me lembro de dar o telefonema.

Por isso, nos meus guardados, há tanto abraço que não foi dado, tanto sorriso que não se abriu, tanta esperança que se fez saudade... tanto verso que se perdeu na bruma, tanta palavra boa que se calou no peito e não levou ao outro uma mensagem de conforto e paz.

Sempre me doeu ser avó de apartamento, um mal necessário, devido à violência que assusta as famílias de hoje. Por isso, sou avó sem goiabeira...

...Sem tanque de lavar roupa que possa proporcionar uma boa farra com banho de mangueira. Ah! Mas sou uma avó com cachorro! Menos mal! E muito a contra gosto, sou também uma avó com piscina...

Ah! Piscina! Para mim, não passa de uma banheira grande. Pois eu tive um rio inteirinho para banhar-me corpo e alma! Um rio inteirinho para apaixonar-me...

...Por seu canto, seus matizes, sua história, sua gente, sua alma.

Apesar do pouco espaço, vivo procurando motivos para reunir família. Minha missão é ser ponte entre os meus queridos. Eu sempre afirmei que mãe feliz é aquela que, quando parte, não faz falta alguma, só deixa muita saudade.

Quanto menor o espaço, maior tem que ser o coração para a acolhida, porque família é coisa que passa rápido também.

Como as águas de um rio, família passa rápido: do berço à faculdade, ao casamento, à profissão... Tudo é um pulo. Um salto de cachoeira.

Mas cachoeira de rio com regras definidas: minutos com sessenta segundos, semanas com sete dias, anos com doze meses.

Antes, a vida era corredeira de rio... Hoje é correria.E de repente eu me dou conta de que já vivo o verso que Chico Buarque compôs em Roda Viva:

Na volta do barco é que senteO quanto deixou de cumprir.

O meu barco está voltando.Já sei o que deixei de cumprir, já sei o quanto errei, mesmo sem querer, sem saber, sem poder. Mas sei também o quanto amei e tentei entregar cheia a minha medida.

Aprendi a aprender. Essa foi minha maior conquista. Sei que apesar do sol em seu declínio, o aprendizado não terminou. Minha estrada desceu o morro. Já cheguei à praia.E tenho muito que aprender ainda. Mesmo a praia é caminho que ensina...

Mas de repente ressurge a aurora! Toda a magia recomeça nos netos que chegam de todos os cantos e de todos os encantos! De todas as portas e de todas as esperanças! De todos os abraços, eles chegam e querem um aconchego de vó.

Aconchego de vó é diferente de aconchego de mãe. Os filhos pequenos, muitas vezes, tiveram como acalanto as “Águas de Março” de cada dia:

“É pau, é pedra, é o fim do caminho, é um pedaço de toco, é um pouco sozinho, é o caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é o laço, é o anzol...” *

* Tom

Jobim

No atropelo diário, conciliando horários de marido e filhos, lar e paróquia, versos e crônicas, costuras e telas, familiares e amizades de longe e de perto, sobrevivi às águas de março, como ensina a Palavra de Deus: Para tudo há um tempo,

para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Ecle 3,1)

Amorosamente, acompanhei a metamorfose dos filhos bebês, crianças e adolescentes, vestibulandos , profissionais, pais de família. Cheguei aos setenta anos com a sensação de missão cumprida.

Mas vieram então os primeiros doze anos do século vinte e um e tudo aconteceu de repente... como diria Vinícius, “Não mais que de repente.”

Fomos envolvidos por uma enxurrada de informática que nos fez ganhar tempo, mas perder a privacidade, a ingenuidade, a identidade e muitas vezes a noção da verdade.

Hoje, o mundo inteiro está dentro da minha casa! Internet, fax, ipod, ipad, iphone, netbook,webcam...Nem sei mais! Santo Deus, isso é fabuloso! Mas amedronta também! Facilitou a comunicação e o mundo parece querer viver tudo de uma só vez!

Lembro-me bem de que, na nossa sala de estar,tínhamos sempre uma Bíblia,um Atlas Geográfico, uma gramática,um dicionário, para consultas esporádicas, nos nossos encontros diários e informais de família.

qualquer dúvida sobre qualquer assunto.É

maravilhoso!

O triste é que os jovens estão perdendo a intimidade tão benéfica com os livros

e, entre outros males, importam, junto à tecnologia, um anglicismo exagerado, que trouxe como brinde o halloeen...

Hoje, a um simples toque dos dedos deslizando sobre um tablet, “Dr Google” esclarece

O telefonema interurbano que nos fazia enfrentar uma fila imensa, insistindo com a telefonista que, de antemão, já avisara haver uma espera de três horas para completar a ligação...Ah!... Agora é DDD... É DDI... Tudo instantâneo! Que conforto!...

A velha carta que levava, às vezes, quinze dias para chegar ao destinatário e mais quinze dias para a resposta chegar ao remetente...Ah!... Agora é internet, Sedex, telefonia móvel, o popular celular!Realmente uma beleza!

Sim! O nosso indispensável celular tornou-se tão sofisticado que, há poucos dias, tive sérias dificuldades para adquirir umaparelho que apenas falasse!

Quando cheguei aos sessenta anos, pareceu-me chegar a um clube, tão grande foi a acolhida! Adquiri algumas vantagens como ônibus de graça, meio ingresso para cinema, teatro, estádio de futebol, medicamentos a baixo custo e até gratuitos...

Prioridade em filas, prioridade no uso de cadeira no recinto, direito a artrose, artrite, dor na “escadeira” e na “cacunda”, zumbido no ouvido, e outros mimos mais.

O poeta Drumond perguntava em seu poema: -Pra que tanta perna, meu Deus?Ah! Ele não viveu os primeiros doze anos do século vinte e um! Se tivesse vivido, ele perguntaria como eu:-Pra que tanta pressa, meu Deus?

Toda essa pressa de beber a vida inteira de uma só vez, de um só gole, acredito que seja causado pela facilidade de comunicação, de locomoção: as pessoas se mergulham em suas máquinas sedutoras, semihipnotizadas, pensam que são deuses e vão mergulhando, sim, cada vez mais, na sua solidão.

Por favor! Não me convidem para qualquer passatempo. Não é esse o meu problema. Cheguei aos setenta anos, no século vinte e um, um tempo esquisito, onde eu acabo de guardar os enfeites do Natal e já é Advento outra vez! O que eu quero é meu tempo de volta...

...para sentar-me a um banco de jardim, sentir a alegria dos passarinhos no arvoredo, encantar-me com o por do sol e, como o poeta Bilac, ouvir estrelas. Quero viver esse momento , sem correr o risco de perceber, ao voltar para casa, que já estou mesmo é chegando aos oitenta anos.

Autora: Dóris Álvares de Oliveira

Crônica: Cheguei aos Setenta AnosImagens : InternetMúsica: My Way - Orq. André Rieu Belo Horizonte, dezembro de 2012