Post on 25-Jul-2015
José Saramago – Memorial do Convento
O Professor: Cristóvão Pereira
Uma leitura de Memorial do Convento
Romance de José Saramago publicado em 1982 e reeditado em 2002. A acção de Memorial do
Convento desenvolve-se no reinado de D. João V, incidindo designadamente sobre o período de construção do
Convento de Mafra, como indicia o título.
O período em questão surge caracterizado através de personagens históricas propriamente ditas, como
sejam aquelas da família real, mas também através de atmosferas marcadas por fenómenos populares do
tempo, como os famosos autos-de-fé (em que uma das personagens principais virá a morrer com António José
da Silva), as procissões e as touradas. A partir destas coordenadas se configura, por um lado, o mundo
artificial e ostentatório da realeza, por outro, um ambiente estratificado de ignorância e superstição evidentes
no Portugal da primeira metade do século XVIII, sob a égide do Santo Ofício.
A contaminação desta narrativa pela noção de que a História e mesmo a Literatura fabricam o
romance da humanidade a partir do ponto de vista dos seus senhores é evidente em todo o enunciado,
nomeadamente a partir da definição das suas personagens principais. É com figuras nobres que Memorial do
Convento começa. No entanto, contrariando as expectativas dos leitores, o narrador parece encarar com
alguma ironia a sua (ausência de) densidade psicológica, facto que é tanto mais chocante quanto se trata do rei
e da rainha. Surpreendentemente, é no meio da multidão, tradicionalmente anónima, que sobressaem, ambos
elementos do povo, Blimunda Sete-Luas, a mulher que vê o interior das pessoas se estiver em jejum e Baltasar
Sete-Sóis, aquele que perdeu uma mão na guerra, e Bartolomeu de Gusmão, o padre "voador", nos quais
assentará a espinha dorsal da acção.
Esta joga-se, por um lado, na edificação do referido Convento ("por um voto que o rei fez se lhe
nascesse um filho") e as vidas e fundos que compromete, e, por outro, na construção paralela da Passarola
pelas supra-citadas personagens principais, espécie de Santíssima Trindade profana.
Enquanto o Convento representa o sacrifício caprichoso da colectividade humana vergada a uma
vontade individual e, por conseguinte, a decepção da aventura colectiva humana tal como a História não a
conta; a Passarola, construída por Baltasar a partir dos planos de Bartolomeu de Gusmão, e voando graças às
vontades humanas contidas nas suas esferas que Blimunda captara nos corpos das pessoas, simboliza de
algum modo a condição angélica do Homem, ou, mais do que isso, a revelação da condição humana (nas suas
entranhas, nos seus fluidos, nos seus cheiros, nas suas rugas, etc.).
Depois da aventura da Passarola, Baltasar trabalhará ainda no Convento, esse monumento cuja massa
monstruosamente inumana vai ascendendo, apesar de tudo, como a Passarola, e revelando a história profana
do Homem como uma história de redenção. Deste modo, José Saramago reescreve as convenções históricas,
religiosas e literárias da nossa cultura, mostrando, como salienta Eduardo Lourenço, que, à semelhança da
Passarola, “o fim de toda a ficção é voar, elevar-se sobrevoando, não céus inexistentes nem realidades
mágicas, mas descolar da sua própria realidade humana, pesada, obscura, opaca, para ver melhor ou de outra
maneira”.
In Diciopédia X [DVD-ROM]. Porto: Porto Editora [Texto adaptado]