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UNICURITIBA – CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDAD ANIA
LUCIANE MARIA TRIPPIA
A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO E AS COTAS RACIAIS
CURITIBA 2014
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LUCIANE MARIA TRIPPIA
A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO E AS COTAS RACIAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Milléo Baracat
CURITIBA 2014
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LUCIANE MARIA TRIPPIA
A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO
E AS COTAS RACIAIS
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba,
pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Presidente:
___________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo Milléo Baracat
Membros:
___________________________________________________________ Professor Doutor Luiz Eduardo Ghunter
___________________________________________________________ Professora Doutora Silvana Souza Netto Mandalozzo
Curitiba, 13 de junho de 2014.
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Dedico esse trabalho a todas as mulheres negras que sentiram (e sentem) na “pele” as dores da desigualdade ...
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AGRADECIMENTOS
Ao meu querido avô Antonio Firakowski (in memorian), homem de uma
simplicidade singular, religioso, paciente professor, íntegro magistrado, que em sua
conduta elegante, apresentou-me o caminho do Direito ...
Aos meus familiares, especialmente ao meu filhinho Gabriel (quem,
espero, leve consigo o senso de igualdade presente nesta pesquisa), pelo apoio e
compreensão nos momentos de ausência.
Às admiráveis pesquisadoras Nádia Regina de Carvalho Mikos (que me
incentivou a fazer o mestrado), Andréa Vieira Zanella (que me mostrou os caminhos
da pesquisa), e a profª Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr (que sempre muito
prestativa, me deu grande incentivo nesta jornada).
Ao meu orientador Prof. Dr. Eduardo Milléo Baracat (a quem tenho profunda
admiração) pela orientação e ensinamentos transmitidos.
Ao queridíssimo Prof. Luiz Eduardo Gunther, que muito me ajudou com as
dicas e sugestões de leitura no decorrer das aulas (e também após, nos corredores
da faculdade!).
Ao Prof. Dr. Daniel Ferreira e Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes
Bertoncini, pelas boas discussões acerca do tema.
Aos meus queridos professores, amigos e colegas, de ontem e hoje, que
muito contribuem para o meu desenvolvimento humano e profissional, e sem os
quais a minha vida não teria sentido.
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RESUMO
O princípio fundamental e universal da não discriminação tem previsão ampla, incidindo no campo trabalhista, onde é comum a ocorrência de práticas discriminatórias. Embora a sociedade brasileira, em geral, negue a existência de racismo, a discriminação existe, conforme apontam pesquisas, e, portanto, precisa ser combatida. De outro lado, a atividade empresarial, influenciada pelo fenômeno da globalização, além de ter papel fundamental na geração de empregos e impostos, capaz de colaborar no atendimento das demandas sociais pelo Estado, também pode atuar na inclusão de grupos vulneráveis, como as trabalhadoras negras, por exemplo. O presente artigo teve por objetivo, diante da ocorrência de discriminação de gênero e racial no mercado de trabalho, verificar a possibilidade de utilização de cotas para mulheres negras, como medida de inclusão social, problematizando a possibilidade de essas serem utilizadas como instrumentos no combate às práticas discriminatórias, especialmente se adotadas pelo setor privado. Releva-se que tais medidas afirmativas já são usadas, de diferentes formas, pelo ordenamento jurídico brasileiro (portadores de deficiências, nas universidades, no serviço público estadual, no âmbito eleitoral, entre outros). Para tanto, foi pesquisado a situação da mulher negra no mercado de trabalho no Brasil, sendo verificada a ocorrência de discriminação de gênero e raça simultaneamente. Constatou-se a existência de diversas legislações acerca do tema, tanto no âmbito nacional com internacional. Entretanto, diante da ocorrência de práticas discriminatórias em relação à trabalhadora negra, foi verificada a possibilidade de utilização de cotas raciais, como instrumento para combatê-las e eliminá-las, através da utilização pela atividade empresarial, por conduta voluntária (ética), em consonância com o Estatuto da Igualdade Racial. Concluindo-se, após pesquisa bibliográfica realizada, que atividade empresarial, agindo com ética, poderá implementar ações afirmativas (cotas), contribuindo, assim, no combate à discriminação das trabalhadoras negras, e, com isto, estará colaborando para a inclusão social, e dando suporte para a existência de uma sociedade sustentável.
Palavras-chave : Discriminação – gênero – raça – mercado de trabalho – ações afirmativas – cotas – ética empresarial – responsabilidade social.
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ABSTRACT
The fundamental and universal principle of non-discrimination has extensive forecasting, focusing on the labor field, where it is common the occurrence of discriminatory practices. Although the Brazilian society in general, deny the existence of racism, discrimination exists, as pointed searches, and therefore needs to be tackled. On the other hand , business activity , influenced by globalization , and play a critical role in generating jobs and taxes , able to collaborate in meeting the social demands by the state , can also act on the inclusion of vulnerable groups , such as black workers for example. This article aims, before the occurrence of racial and gender discrimination in the labor market, to verify the possibility of use of quotas for black women , as a measure of social inclusion, discussing the possibility of these being used as instruments to combat discriminatory practices , especially if adopted by the private sector . It is noted that such affirmative measures are already used in different ways, by Brazilian law disabled, universities, state public service, in the electoral context , among others) . To that end, we researched the situation of black women in the labor market in Brazil, and verified the occurrence of gender discrimination and race simultaneously. Found the existence of various laws on the subject, both at the national level Internacinal. However, due to the existence of discriminatory practices in relation to the black working, there was the possibility of using racial quotas as a tool to combat them and eliminate them through the use by business activity, by voluntary conduct (ethics) in accordance with the Statute of Racial Equality . Concluding, after literature search was undertaken which business activity, acting ethically, can implement affirmative action ( quotas) , thus contributing to the fight against discrimination against black workers , and, thus , will be collaborating for social inclusion , and supporting the existence of a sustainable society. Keywords: Discrimination - Gender - Race - Job Market - affirmative action - quotas - business ethics - social responsibility.
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LISTA DE SIGLAS
CF – Constituição Federal Brasileira
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos
EEOC – Equal Employment Opportunity Commission
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INSPIR – Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ODM - Objetivo de Desenvolvimento do Milênio
OIE
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONU – Organização das Nações Unidas
PEA – População Economicamente Ativa
Sinapir – Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial
STF – Supremo Tribunal Federal
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
TST – Tribunal Superior do Trabalho
UNIFEM – Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1 A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL ...................................... 18 1.1. DIMENSÕES DA IGUALDADE.. ........................................................................ 18 1.1.1 Dimensão formal ............................................................................................ 22 1.1.2 Dimensão material ........................................................................................... 26 1.2. A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL ................................................. 29 1.2.1 Diferenças e desigualdades de gênero ............................................................ 29 1.2.2 A discriminação de gênero no Brasil ................................................................ 36 1.3. A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA ....................................................... 43 1.3.1 Discriminação racial ....................................................................................... 43 1.3.2 A discriminação da mulher negra ... ................................................................. 53 2 A DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA NA RELAÇÃO DE EMPREGO ............................................................................................................ 64 2.1 TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO EM FACE DA MULHER NEGRA NA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA ............................................................................... 64 2.1.1 Discriminação na fase pré-contratual .. ........................................................... 69 2.1.2 Discriminação no curso do contrato ................................................................ 75 2.2. EVOLUÇÃO NORMATIVA RELACIONADA À DISCRIMINAÇÃO RACIAL ........ 85 2.2.1 No âmbito internacional .. ................................................................................. 86 2.2.2 No âmbito nacional .......................................................................................... 89 3 A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO ............................................ 96 3.1. AÇÕES AFIRMATIVAS DECORRENTES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DE POLÍTICAS PRIVADAS ................................................................................... 96 3.2. A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL...... 108 3.3. DESAFIOS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA ATRAVÉS DAS COTAS ........................................................................... 118 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 133
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INTRODUÇÃO
“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e
temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí
a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.1
A frase do sociólogo Boaventura Souza Santos é importante na compreensão
do tratamento específico e particular, direcionado a comunidade negra2 nas últimas
décadas no Brasil. O Estado, visando a garantir o direito à diferença e à diversidade,
notadamente nos âmbitos do ensino, da política, e do trabalho, vem adotando
medidas nestes setores, a fim de garantir o direito fundamental igualitário.
Há muito, no entanto, que a igualdade, na forma concebida pela Revolução
Francesa (meramente formal), e nos diplomas legais que a ela se seguiram, de
cunho universalista, vem sendo entendida como contrária à discriminação. Atos
discriminatórios reduzem as perspectivas de uns em benefícios de outros,
dificultando o acesso às oportunidades, e por isto não mais são tolerados na
sociedade contemporânea.
A determinação de não discriminar, pura e simplesmente, não elimina as
distâncias existentes entre as chamadas minorias e os grupos privilegiados,
fazendo-se necessária a mutação do princípio da igualdade, a fim de incorporar ao
seu conteúdo atitudes de natureza positiva, com vistas à eliminação das
desigualdades.
Ressalta-se que igualdade e diferença possuem relevâncias diversas,
conforme estejam em questão os direitos de liberdade ou os direitos sociais. Mas
para a sua realização prática, ou seja, para que deixem de ser mera declaração
verbal, e de fato se efetivem, se faz necessária à ampliação dos poderes estatais.
Assim, torna-se imperativo ao Estado a implementação do direito a igualdade.
1 SANTOS, Boaventura de Souza, NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In:__________ (org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 53. 2 A palavra “negro”, por questão semântica, será usada no texto como sinônimo de “afro-descendente”. Será empregada como categoria sociológica, e não categoria de cor. (palavras estas utilizadas como categoria de cor, pelo IBGE)
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Nesse cenário, a igualdade passa a ter conteúdo positivo, a fim de que cada
pessoa possa exercer, em sua plenitude, as suas potencialidades, sem violência ou
discriminação. É fundamental, no entanto, conjugar a vertente repressiva-punitiva
com a vertente promocional. Sob esta perspectiva, emergem as políticas sociais, o
que se convencionou chamar de “ação afirmativa” (da qual as cotas são espécies),
visando à concretização da igualdade substancial ou material.
A relevância e atualidade do tema decorrem do fato que no Brasil há cerca de
191 milhões de pessoas, sendo 47,7% de brancos, 7,6% de negros, 43,1% de
pardos (ou mestiços), 1,1 % de amarelos ou asiáticos e 0,4% de indígenas, segundo
aponta IBGE. De acordo com este resultado, portanto, a maioria da população
residente no país é composta por negros e pardos (ou mestiços) (50,7%).3 A
pesquisa aponta um aumento de pessoas que se declararam pretas e pardas.4
Segundo Marcelo Paixão e Flávio Gomes, entre 1995 a 2006, a população
economicamente ativa (PEA) brasileira, descontando a população residente nas
áreas rurais da região Norte, apresentou um saldo líquido de ingresso de 20,6
milhões de pessoas. Quando considera grupos de cor ou raça, é verificado que,
entre os brancos, esse saldo foi de 7,7 milhões de pessoas, ao passo que entre
pretos e pardos foi de 12,6 milhões de pessoas.5
Portanto, ao longo do período analisado, a presença de pessoas negras no
mercado de trabalho, em diversos segmentos, apresentou maior dinamismo diante
do que ocorreu entre os de cor ou raça branca. As mulheres negras representaram
cerca de 6,4 milhões de pessoas a mais para o mercado de trabalho. Os homens
negros responderam pelo incremento de 6,3 milhões de pessoas. Entre homens e
mulheres brancos, respectivamente, o acréscimo de ingresso no mercado de
trabalho, entre 1995 e 2006, foi de 2,6 e 5,1 milhões de pessoas.6
3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindic sociais2013/default.shtm>. Acesso em 04 maio 2014. 4 MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Da escravidão às cotas : a ação afirmativa e os negros no Brasil. Birigui, SP: Boreal, 2013, p. 13. 5 PAIXÃO, Marcelo; GOMES, Flavio. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 304. 6 Ibid, p. 304.
12
Ressalta-se que a taxa de participação na PEA, no período de 1995 a 2009,
manteve-se relativamente estável em quase todos os grupos de idade, exceto para
os grupos mais novos, de 10 a 17 anos, levando a presunção de que estejam
frequentando o ensino fundamental. Ademais, a conclusão dos níveis educacionais,
e a busca por qualificação são de suma importância para o ingresso no trabalho.7
Ainda que tenha havido um elevado acesso de mulheres negras ao mercado
de trabalho, permanece a restrição ao acesso de mulheres em geral, a alguns
segmentos. Isto ocorre tanto no serviço público, como no setor privado, razão pela
qual poderia ter levado a inclusão da letra a, no art. 373, da CLT, pela lei 9.799/99,
que trata do impedimento de acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Esta lei
também vedou a adoção de critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou
aprovação em concursos, em empresas privadas, por razão de sexo, entre outras
exigências.8
Além do mais, ainda em relação às diferenças de gênero, observa-se que a
estrutura ocupacional entre os sexos é heterogênea, ocorrendo uma segregação
horizontal. Tal fenômeno ocorre na maioria dos países, onde o maior percentual de
mulheres está concentrado em ocupações que guardam analogia com atividades
exercidas no ambiente doméstico. Ressalta-se que tais ocupações são, geralmente,
mal remuneradas e de pouco prestígio.9
Pesquisas comprovam que a participação masculina, geralmente, é maior que
a feminina, apesar de ter havido um crescimento de 48,1% para 52,6% da
participação das mulheres, e do fato de ter ocorrido uma redução de 75% para 72%
na participação masculina da população economicamente ativa (PEA). Tal fato, ao
se comparar com a análise educacional, demonstra uma inversão de hierarquia de
gênero.10
7 LIMA, Márcia; RIOS, Flavia; FRANÇA, Danilo. Articulando Gênero e Raça: a participação das Mulheres Negras no Mercado de Trabalho (1995-2009). In: MARCONDES, Mariana Mazzini (et al.). Dossiê Mulheres Negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013, p.63. 8 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no Emprego por Motivo de Sexo. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação . 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 71. 9 Ibid, p.71. 10 LIMA, 2013, p.65.
13
As mulheres tendem a permanecer mais nas escolas do que os homens.11
Mas, por outro lado, elas acabam participando menos no mercado de trabalho, o que
indica uma inflexão distinta na trajetória feminina e masculina no mercado de
trabalho. Acrescenta-se neste resultado, também, as atribuições familiares
incumbidas pela sociedade às mulheres em geral, o que, certamente, reflete nesta
trajetória.12
Em análise de dados fornecidos pelo IBGE, contendo microdados Pnad por
atividade no mercado de trabalho, no ano de 200613, em relação às cinco principais
ocupações das mulheres, verificou-se entre as mulheres brancas que: 33,0%
estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 13,5% empregadas
no mesmo setor (sem carteira); 13,3% exerciam atividade considerada por conta
própria (sem 3º grau), 9,9% empregada pública/estatutária/militar, e 9,0%
empregada doméstica (sem carteira).
Em relação ao trabalho das mulheres negras, a mesma pesquisa mostrou
que: 22,0% estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 16,6%
trabalhavam como empregada doméstica (sem carteira), 15,9% exercia atividade
considerada por conta própria (sem 3º grau), 14,2% empregadas no setor privado
(sem carteira assinada), e 7,5% empregada pública/estatutária/militar. E em relação
ao emprego doméstico (com carteira), o índice encontrado foi de 5,2%.
Verifica-se, desse modo, que embora tenha havido um expressivo aumento
no ingresso das mulheres negras no mercado de trabalho, houve restrições a alguns
segmentos, em ambos os setores (serviços públicos e privados). Também foi
verificada a ocorrência de diferenças em relação às ocupações (segregação
horizontal), tendo sido mantida a presença das mulheres, em geral, nas atividades
relacionadas ao serviço doméstico. Destaca-se que a trabalhadora negra, em
especial, é a que mais exerce a atividade de empregada doméstica no país.
11 LIMA, 2013, p.65. 12 Ibid, p. 65. 13INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2011microdados.shtm> Acesso em 03 maio 2014, p.15.
14
A atividade empresarial, de outro lado, influenciada pelo fenômeno da
globalização, além de assumir um papel fundamental na criação de empregos e
impostos, capaz de colaborar no atendimento das demandas sociais pelo Estado,
também pode (e deve) atuar na inclusão de grupos vulneráveis para atingir a sua
capacidade plena. E isto se torna imperioso em uma sociedade onde ocorrem
discriminações, notadamente no acesso das mulheres negras no mercado de
trabalho brasileiro.
Assim, a fim de contribuir no combate à discriminação da mulher negra no
mercado de trabalho, busca-se investigar a discriminação no tocante a dois aspectos
que possuem origens históricas e repercussões atuais. O primeiro é em relação à
mulher, seja em virtude de questões culturais e socioeconômicos (jornada doméstica
e cuidados com filhos, que a torna com menor disponibilidade de tempo para o
trabalho e para viagens e, em decorrência, menos produtiva na empresa), seja em
razão de características fisiológicas (gestação que a torna menos produtiva, e a
afasta do trabalho por determinados períodos; força física menor do que a do
homem, o que faz com que não possa realizar determinados trabalhos braçais).
O segundo aspecto, em relação à raça negra. Pretende-se investigar, a partir
de dados estatísticos porque as pessoas da raça negra, em especial as mulheres,
não conseguem ingressar em determinados nichos no mercado de trabalho, e nem
galgar cargos de maior complexidade, bem como obter mesma remuneração dos
demais trabalhadores no Brasil.
Por outro lado, necessário analisar se ações afirmativas, precipuamente as
cotas (públicas ou privadas), possuem papel relevante no tocante ao combate dessa
discriminação, assim como verificar a possibilidade e viabilidade de sua utilização no
direito brasileiro. Releva, em outra perspectiva, analisar a possibilidade da atividade
empresarial (responsável pelo desenvolvimento sustentável no país, com o advento
da Constituição de 1988), implementar cotas para mulheres negras, o que se
justificaria pela ética e vantagem econômica, analisando, sobretudo, os principais
desafios para a sua concretização.
Objetiva a presente dissertação, assim, verificar a possibilidade de utilização
de cotas, no setor privado (regime celetista), para auxiliar no combate a
discriminação da mulher no mercado de trabalho brasileiro.
15
O tema justifica-se, principalmente, em razão de sua atualidade, em especial
diante da lei prevendo cotas raciais/socias nas universidades públicas
12.711/201214, e do projeto de lei da Câmara (PLC 29/12), aprovado pelo Senado
em 20 de maio de 2014, prevendo cotas para negros no serviço público federal (nos
órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas
e sociedades de economia mista controladas pela União).15
A pertinência da temática também está relacionada com a previsão contida no
Estatuto da Igualdade Racial, instituído no ano de 2010, pela lei n.12.28816, que trás
em seu artigo 1º, como objetivo: “garantir à população negra a efetivação da
igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e
difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”.
Observa-se que este mesmo Estatuto previu, inclusive, especificamente em
relação à atividade laboral17, que as políticas voltadas para a inserção dos negros no
mercado de trabalho devem respeitar os compromissos assumidos pelo Brasil, ao
ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, e a Convenção n. 111, da OIT.
Recentemente o regulamento do Sistema Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (Sinapir) foi aprovado como forma de organização e articulação
para a implementação de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades
étnicas existentes no Brasil. Ressalta-se que ao Poder Público Federal cabe
incentivar a sociedade civil, inclusive a iniciativa privada, a participar deste Sistema.
As empresas, portanto, através da adoção de políticas afirmativas,
especialmente as cotas, podem vir a propiciar a igualdade de oportunidades em prol
das trabalhadoras negras. Assim, a pesquisa se restringirá a analisar a possibilidade
de inclusão dessas mulheres, através dessas medidas, no setor privado. Não será
tratado, desta forma, da inclusão no setor público até porque está em trâmite,
conforme supramencionado, legislação a respeito, e nem no trabalho doméstico. 14 Esta lei “dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências”. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Disponível 05 maio 2014. 15 Disponível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/05/20/senado-aprova-cota-para-negros-em-concursos-publicos>. Acesso em 20 maio 2014. 16 Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 17 Art. 38 e seguintes, do Estatuto da Igualdade Racial.
16
Também a pesquisa se restringirá à questão das mulheres negras, e não dos
homens negros, haja vista que segundo apontam as pesquisas, há uma maior
discriminação em relação às elas, as quais, além do mais, ainda tem atribuições
relacionadas às atividades do lar e da família. Por isso o estudo em relação às
cotas, especificamente, direcionado às mulheres negras.
Desta forma, formula-se na presente pesquisa o seguinte problema: em que
medida as cotas, implementadas pelo setor privado, podem ser instrumentos aptos a
combater a discriminação da trabalhadora negra no mercado de trabalho brasileiro?
Primeiramente serão analisadas as dimensões da igualdade (formal e
material), partindo da evolução deste instituto no decorrer da história. Em seguida,
será analisada a ocorrência de discriminação de gênero no Brasil, onde se pretende
verificar também as diferenças e desigualdades havidas entre homens e mulheres,
e, em seguida, a situação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro.
A discriminação da trabalhadora negra, na relação empregatícia, será
estudada no segundo capítulo, o qual foi dividido em duas partes. Na primeira,
investigar-se-á a possibilidade de ocorrência de práticas discriminatórias em duas
fases do contrato de trabalho (pré-contratual e no curso do contrato). Em seguida,
pretende-se fazer uma evolução das normas relativas à discriminação racial, tanto
no âmbito internacional (especialmente as fontes norteadoras deste tema, como a
OIT e DUDH), como no interno (dispositivos constitucionais e infraconstitucionais,
incluindo o Estatuto da Igualdade racial e o recente regulamento do Sinapir.
Por fim, a investigação a ser delineada no terceiro e último capítulo, irá
investigar o instituto das ações afirmativas, limitando-se a tratar da fase histórica de
forma contextualizada, analisando, principalmente, a sua implantação enquanto
modalidade de políticas públicas. Na sequência, pretende-se verificar a utilização
das cotas na sociedade brasileira em geral (incluindo esferas política e de ensino)
como forma de combater as discriminações, inclusive as raciais. E, finalmente,
perquirir quais são os desafios no combate a discriminação da trabalhadora negra
através da utilização de cotas pelas empresas, procurando trazer opiniões
favoráveis e desfavoráveis, bem como os seus principais argumentos para tanto.
17
Também procurar-se-á enfrentar a possibilidade da atividade empresarial,
enquanto responsável pelo desenvolvimento sustentável da economia no país,
implementar políticas afirmativas, em especial as cotas, no combate à discriminação
da trabalhadora negra, finalizando, assim, o raciocínio proposto neste capítulo.
Releva informar que serão utilizados, como marcos teórico, dentre os outros
igualmente importantes, as seguintes obras: “Democracia, liberdade e igualdade”, de
Pontes de Miranda; e “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, de Celso
Antonio Bandeira de Mello, no primeiro capítulo. No segundo: “O Direito à
Diferença”, de Álvaro Ricardo de Souza Cruz. E no terceiro capítulo: “Ação afirmativa
& princípio constitucional da igualdade”, de Joaquim Benedito Barbosa Gomes.
O tema da presente dissertação se harmoniza com a linha de pesquisa
número 2: “Atividade empresarial e Constituição: inclusão e sustentabilidade”, do
Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA. O elo entre eles se observa ao verificar a normativa
jurídica acerca da discriminação e inclusão racial no mercado de trabalho,
recepcionados pela Constituição Federal ou criadas após (especialmente a
instituição do Estatuto da Igualdade Racial), atuando para a inclusão e
sustentabilidade do trabalho da mulher negra no país. Tais normativas refletem na
atividade empresarial, sendo determinante a sua atuação no processo inclusivo
destas trabalhadoras brasileiras.
18
1. A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL
1.1. DIMENSÕES DA IGUALDADE
A questão da igualdade, ou de sua falta, vem desde os tempos antigos.
Juntamente com a evolução da humanidade, houve, em certa medida, a busca pela
redução das desigualdades entre as pessoas. Esta tentativa de eliminação havida
entre senhores e escravos tinha o elemento humano como sujeito de direitos.
Segundo Pontes de Miranda, no início da história da humanidade, os homens
primitivos eram iguais, passando, após, a serem submetidos à figura de um chefe,
que se satisfazia com a função de “centro”. Os demais homens continuaram iguais
entre si, se diferenciando por determinadas características como: mística, política ou
econômica. Pontes de Miranda classifica essas como desigualdades por aumento.18
Outro tipo de desigualdade verificada pelo mesmo autor, no tocante a
evolução da igualdade do homem no decorrer da história, ocorre quando
posteriormente surgem a escravidão e a servidão, a qual classificou como
desigualdade por mutilação. Aponta como umas das causas principais para tal
ocorrência, as guerras e invasões havidas na época.19
A desigualdade também aparece sob outras perspectivas, além da posição
que o homem ocupa em uma estrutura social onde inserido, como a biológica e
psicológica. Tais diferenças, no entanto, não podem definir tratamentos desiguais
considerando a característica comum existente entre eles, qual seja, a condição de
humanidade.
Por outro lado, as diferenças verificadas entre os homens, segundo Denise
Pasello Novais, são uma imposição da natureza, que expõe as características tanto
psicológicas quanto físicas, bem como as habilidades e as aptidões de cada um. Por
isso, tais diferenças não devem ser confundidas com desigualdades.20
18 MIRANDA, Pontes. Democracia, liberdade e igualdade. São Paulo: Saraiva, 1979, p.415. 19 Ibid, p. 415. 20 NOVAIS, Denise Pasello Valente. Discriminação da mulher e o direito do trabalho: da proteção à promoção da igualdade. São Paulo: LTr, 2005, p. 28.
19
A desigualdade, a partir da característica que diferencia os seres humanos,
impõe a divisão entre inferioridade e superioridade. Superá-la pode gerar um estado
de igualdade, visando a atingir um grau de equilíbrio entre tais fatores. Assim, poder-
se-ia afirmar que o sentido oposto de igualdade significaria desigualdade, mas não
diferença, posicionando esta no âmbito de atuação da igualdade.
Desde a antiguidade, no período axial, os filósofos buscam conceituar o que é
a igualdade. O ponto de partida para tal abordagem é a constatação de que somente
é possível o seu questionamento dentro de um contexto de relações sociais, pois o
indivíduo considerado de forma isolada não é capaz de representar um parâmetro
de comparação, além da existência de um objeto de análise para que a comparação
possa ser realizada.21
Foi neste mesmo período, compreendido entre 600 a 480 a.C., que o homem
tornou-se o principal objeto de análise e reflexão, segundo afirma Fabio Konder
Comparato22, restando estabelecida uma grande linha divisória na história desde
então, onde grandes princípios e diretrizes de vida foram estabelecidos, vigorando
até os dias atuais.
O homem, o ser humano, desde então, “passou a ser considerado em sua
igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as
múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais”, conforme assevera
Comparato.23
No entanto, para indivíduos serem considerados iguais ou desiguais, a
despeito das diferenças, há que se identificar em critérios que possam efetivamente
ser usados sem que venham gerar tratamento desigual. Assim, condutas que visem
impor um padrão único, ou que gere discriminação, viola não apenas o direito a
diferença, mas, principalmente, o direito à igualdade em relação aos demais seres
humanos.
21 TABORDA, Maren Guimarães. O Princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: Conteúdo, Alcance e Direções. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, jan/mar, 1998, p. 245. 22 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 20. 23 Ibid, p. 24.
20
Segundo José d´Assunção Barros24, a noção de igualdade opõe-se a noção
de diferença: “uma coisa ou é igual à outra (pelo menos em um determinado
aspecto) ou então dela difere”. Por exemplo: em relação a certos indivíduos, é
possível considerá-los iguais ou diferentes quanto ao aspecto sexual, profissional,
religioso, ou étnico, entre outros.
Uma questão complexa, todavia, envolvendo as diferenças, segundo o
mesmo autor25, se refere às chamadas “diferenças raciais”, também denominadas
“diferenças de cor”, quando estabelecida a dicotomia “negros e brancos”, pois,
mesmo que construída culturalmente, gera um contraste entre estas duas essências.
Ademais, há que se observar que raças não existem enquanto realidade biológica.
Observa-se que a ciência moderna derrubou os conceitos de raça e etnia,
comprovando que não se justifica a divisão da humanidade em grupos raciais. Na
realidade, existem, percentualmente, mais diferenças entre duas pessoas de mesma
cor do que entre os representantes das etnias africanas. Portanto, raça só existe
uma: a raça humana.
A igualdade, portanto, pode significar diferenciação. Segundo Walter Claudius
Rothenburg26 o importante é que haja uma construção da identidade de forma
emancipada e autônoma a fim de que, a partir de seu reconhecimento, possa ser
estabelecida a igualdade. Assim, “pode-se opor a diferença como algo bom e digno
de promoção à desigualdade, como algo mau, a ser combatido”.
Igualdade e identidade, por outro lado, não se confundem, embora em sua
concepção possa vir a indicar uma semelhança de características, ou de elementos
componentes de duas pessoais ou coisas. Assim, duas pessoas, ainda que
consideradas iguais, não são idênticas, embora possam ter características
semelhantes nos mais variados aspectos.
24 BARROS, José d'Assunção. Igualdade, desigualdade e diferença: em torno de tr ês noções . Análise Social , Lisboa, n. 175, jul. 2005. Disponível em <http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000325732005000300005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 15 mar. 2014, p. 345. 25 Ibid, p. 352 26 ROTENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e a discriminação positiva: o pr incípio da isonomia. Disponível em:<http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/igualdade-material-e-discrimina%C3%A7%C3%A3o-positiva-o-princ%C3%ADpio-da-isonomia>. Acesso em 20 mar. 2014, p. 84.
21
Desta forma, os seres humanos, para serem considerados iguais ou
desiguais, necessitam de comparativos em relação a determinadas características
que devem ser especificadas, não fazendo sentido, portanto, afirmar que todos os
homens são iguais. O que lhes é comum, todavia, é a natureza humana, sendo a
norma jurídica quem lhes torna iguais perante a lei.
Uma grande questão que se impõe é, portanto, a necessidade de
compreensão desta variação de grau e contexto em relação à igualdade. Ademais, a
igualdade pode ser verificada também através dos planos filosóficos e jurídicos,
segundo Luciana de Oliveira Leal, ressaltando que a filosofia trouxe subsídios ao
Direito para o estudo do tema, lhe conferindo caráter obrigatório.27
A idéia jurídica de igualdade, na consciência ocidental, perpassa pela
evolução da própria idéia de igualdade, tendo em sua trajetória registros desde
Pensadores da Grécia Antiga (como Aristóteles), passando pela Roma Antiga,
seguindo-se pela doutrina de Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. O ponto de
chegada (e partida) se dá com o movimento constitucionalista moderno, nos séculos
XVIII e XIX, quando então passou a ser inserida nas Constituições modernas.
As revoluções liberais ocorridas nos séculos XVIII e XIX elevaram o elemento
humano a ocupar espaço, desaparecendo as distinções, ao menos, no plano
legislativo. Foi neste período que houve a consagração da igualdade formal e, por
derradeiro, a abolição de qualquer discriminação frente à lei.
A noção de igualdade, tanto no plano filosófico quanto no jurídico, apresenta
íntima relação com valores diversos como: justiça, liberdade, entre outros que
também vieram acompanhando o desenvolvimento da humanidade. Filosoficamente,
a igualdade estava associada à ideia de justiça na distribuição dos escassos bens
da vida, observando que para Aristóteles “o justo é a distribuição igual entre os
iguais, e desigual entre os desiguais, na medida do mérito de cada um”. Portanto,
segundo o pensamento aristotélico, a igualdade é uma proporção na distribuição.28
27 LEAL, Luciana de Oliveira. O sistema de cotas raciais como ação afirmativa no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-sistema-de-cotas-raciais-como-a%C3%A7%C3%A3o-afirmativa-no-direito-brasileiro>, acesso em 10 abril 2014, p. 5. 28 Ibid, p. 6.
22
O conceito de igualdade, no plano jurídico, foi fruto de evolução normativa e
doutrinária concomitantemente ao desenvolvimento dos direitos fundamentais, por
ocasião das primeiras declarações de direitos, época das revoluções liberais. Fabio
Konder Comparato observa que a Declaração de 1789 representou uma “referência
indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos”.29
Há, inclusive, quem atribua à desigualdade existente na sociedade francesa,
em especial, no século XVIII, como determinante para impulsionar a eclosão da
Revolução havida naquela época. Afinal, segundo assevera Estevão Mallet, “é
intuitivo que sociedades menos desiguais são mais estáveis, enquanto sociedades
mais desiguais são menos instáveis”.30
O alcance do princípio da igualdade, todavia, ampliou-se nas sociedades.
Atualmente, este princípio não se restringe apenas à igualdade formal, onde os
indivíduos são nivelados pela norma jurídica, mas também passou a orientar a
própria legislação, no sentido de que esta esteja de acordo com a isonomia. Assim,
o enunciado de que “todos são iguais perante a lei” guarda, portanto, duas
naturezas: uma formal, e outra material.31
1.1.1 Dimensão formal
A noção de igualdade, enquanto categoria jurídica, teve a sua emergência,
como princípio jurídico constitucional, por ocasião das Revoluções ocorridas no final
do século XVIII, notadamente nos EUA e na França. Foi neste último país, aliás,
onde a idéia jurídica de igualdade foi utilizada, no art. 1º da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, em 1789, tendo sido, posteriormente, inserida nas
Constituições modernas.32
29 COMPARATO, 2013, p. 163. 30 MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2013, p. 20. 31 MIRANDA, 1979, p.485. 32 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Nova ed. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 118.
23
O reconhecimento da igualdade constitucional, assim, foi representado como
uma novidade fundamental da filosofia racionalista e individualista dos séculos XVII
e XVIII, sendo consagrada nas Declarações de Direitos do Homem, as quais
surgiram após as Revoluções Liberais, vindo a ser tornar um dogma jurídico-político
nos Estados Modernos.33
O conceito jurídico de igualdade é fruto da formação do Estado Liberal
burguês, onde tal conceito, no entanto, estava reduzido a uma concepção
puramente formal, restrita, basicamente, aos limites do ordenamento jurídico. A
igualdade, portanto, era vista como um ideal a ser alcançado pelo homem,
rompendo com as estruturas políticas através da abolição dos privilégios concedidos
à nobreza e ao clero.34
Naquela época, a burguesia em ascensão, desejava expandir seus mercados,
por isto tratou de consolidar a igualdade jurídica de todos os homens, não permitindo
que houvesse mais distinções por motivos de parentesco ou de linhagem. No fundo,
o que se pretendia, era mesmo acabar com os privilégios e regalias de classe, ou
seja, a intenção não era, pelo menos exclusivamente, abrir-se um debate sobre a
igualdade de condições de participação social.35
A igualdade formal, portanto, resulta de uma perspectiva política do Estado de
Direito, o qual é fundado na lei, no sentido de lei igual para todos, com a
preocupação e o comando legal do tratamento igualitário, desconsiderando-se,
contudo, qualidades e atributos pessoais do destinatário da norma. Assim, como
forma de garantir os direitos fundamentais, considera-se todos iguais, mas tão
somente perante a lei.
Esta dimensão formal em que se resumia a igualdade, segundo a concepção
liberal clássica é, no entanto, insuficiente para realizar a igualdade em todas as suas
potencialidades. E são as próprias desigualdades oriundas das relações tanto
políticas, quanto socioculturais, ocorridas nas comunidades da época, que acabam
denunciando a falência da visão liberal de sociedade.
33 Ibid, p. 118. 34 COMPARATO, 2013, p. 159. 35 Ibid, p. 163.
24
Eis que houve um avanço dos movimentos em prol da diminuição das
injustiças socias, ocasionando um conflito entre a noção de igualdade jurídica na
concepção liberal francesa (com a abolição de privilégios), e o desejo da igualdade
real, fática, entre os homens no meio social, o que gerou preocupações nos regimes
políticos da maioria dos Estados Sociais de Direito.
A regra de que “todos são iguais perante a lei”, segundo Pontes de Miranda,
se dirige, em especial, aos legisladores, sejam eles democráticos ou não. Contudo,
se não houver democracia, o princípio da igualdade sofre mutilação, visto que nem
todos são iguais quanto à participação na criação da ordem estatal. Este princípio,
ademais, é imperativo para legisladores e executores administrativos ou judiciais.36
Ressalta Celso Antonio Bandeira de Mello que a lei deve ser instrumento de
regulação da vida social, devendo tratar todos os cidadãos de forma equitativa, sem
dar origem a privilégios ou distinções. Ressalta, também, que as situações
equivalentes devem ser projetadas no ordenamento, a fim de amparar a
legitimidade.37
Perez Luno ensina que para uma melhor classificação da dimensão formal do
princípio da igualdade, a qual mais se opera nas relações jurídicas, há que ser
observada três características básicas: 1ª) pluralidade de pessoas, objetos ou
situações (de modo a não confundir com igualdade de identidade), 2ª) dimensão
relacional (ou seja, a existência de relações bilatérias ou multilaterais), 3ª)
comparação entre os entes. Ou seja: espera-se que haja a coincidência plural,
relacional e comparativa entre os entes.38
Ademais, este jurista espanhol ressalta que há exigências a serem
observadas quando da formulação legal, como a generalidade da lei, a qual deve ser
genérica a fim de evitar privilégios.39 Sendo assim, todos devem se sujeitar a ela,
não podendo o legislador ultrapassar os limites da discricionariedade, o que, na
prática, gera discussões a respeito.
36 MIRANDA, 1979, p. 485. 37 MELLO, Celso Antonio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 10. 38 LUNO, Antonio Perez Luno. Dimensões de La Igualdad. , 2 ed., editora Dykinson, Madri, 2007, p. 18. 39 Ibid, p. 22.
25
A segunda exigência a ser observada seria a equiparação, a qual supõe um
trato igual de circunstâncias, ou de situações não coincidentes, em busca de pontos
convergentes. E já a terceira seria a diferenciação, que permite um tratamento
diferenciado de circunstâncias e situações semelhantes, desde que de acordo com
pressupostos que excluem a discriminação ou a arbitrariedade. Destaca-se,
contudo, a possibilidade de desprezar determinadas diferenças naturais.40
Também há, ademais, a igualdade de procedimento, a qual implica em uma
garantia funcional de regularidade nos procedimentos de aplicação do Direito
(perante a lei processual, e não qualquer lei). Isto é o que ocorre, por exemplo, em
casos onde há a prioridade processual do idoso; nas situações de prazo
diferenciado para a Fazenda Pública, quando objetiva tutelar o interesse público;
entre outros.
Ressalta-se que o standard, o comportamento padrão, não precisa de
legislação para ser definido. Ele varia conforme a sociedade, a qual, sendo
dinâmica, acaba por contar, também, com a jurisprudência para obter uma melhor
definição, sendo estabelecido conforme o caso e a região envolvida. A igualdade
como procedimento, embora submeta todos a uma mesma lei, busca não apenas a
sua concretude, mas também superar as distorções.41
Os Estados tiveram que ocupar-se, então, em articular a igualdade jurídica
com a igualdade social, de modo a tentar propiciar a igualdade de chances e
oportunidades para a sociedade em geral, a qual, não mais se satisfazendo com a
previsão de igualdade formal, reclamou para si, a garantia de uma igualdade
material (substancial).
Portanto, o fato de elevar-se a igualdade a um princípio, revelou o seu caráter
norteador das relações sociais, reconhecendo que cada ser humano tem uma
condição essencial capaz de igualar aos demais, e que, qualquer disposição
contrária, deve, assim, ser interpretada sob a égide deste princípio. A igualdade
formal, desta forma, abriu espaço à igualdade material, quando se verificou que a
igualdade absoluta, nos estritos termos da lei, pode dar margem a desigualdades.
40 Ibid, p. 24. 41 Ibid, p. 32.
26
1.1.2 Dimensão material
Segundo a filosofia liberal, o mandato de igualdade dirigia-se somente ao juiz
e à Administração (enquanto na sua concretização, aplicação), restando ao
legislador (quando da formulação, elaboração),à liberdade para qualificar como igual
ou desigual nas mais diversas situações. Ao final, deveria servir a lei para perpetrar
e cristalizar as desigualdades substanciais existentes, de modo geral, entre os
homens à época. 42
Utilizando-se ainda da concepção liberal, seria possível distinguir a igualdade
formal e material, pois enquanto para esta a igualdade estava relacionada à
proibição de descriminações injustificadas, com a menor intervenção estatal
possível, na concepção social a igualdade estaria relacionada à exigência de
tratamento individualizado, contando com a participação do Estado para propiciar a
sua garantia.
Observa-se que a sociedade e o Estado foram passando por profundas
transformações, em especial na Europa a partir de 1800, quando ocorreram intensas
lutas sociais, decorrentes do extremo estado de penúria das classes trabalhadoras e
de sua consequente organização política. E, como consequência direta, surgem os
direitos sociais, valorizando-se os direitos humanos, perdendo o Estado então a sua
feição “liberal”. Observa Fabio Konder Comparato que “o reconhecimento dos
direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a
humanidade do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX.”43
A partir deste período, houve gradual integração do Estado com a sociedade
civil, alterando a sua forma jurídica, os processos de legitimação, e a sua própria
estrutura de Administração. Paralelamente, o capitalismo foi se desenvolvendo,
sendo adotadas novas tecnologias, e a mão-de-obra foi se concentrando nos
centros urbanos, colaborando para o surgimento do Estado Social.44
42 MELLO, 2011, p. 10. 43 COMPARATO, 2013, p. 66. 44 Ibid, 66.
27
A nova forma estatal, marcada também pela grande influência nas relações
privadas, tem como uma das principais características a busca pelo bem-estar social
e a distribuição mais equitativa da riqueza. A propriedade privada deixa de ser a
principal tutela, passando a valorizar a dignidade da pessoa humana, garantindo-se,
por outro lado, a autonomia individual, através da limitação jurídica do Estado.45
A fim de criar condições para o desenvolvimento da personalidade individual e
garantir a liberdade, o Estado passa a intervir de forma positiva, atento na
articulação de direitos, garantias e liberdades, com os direitos sociais, o
caracterizando como um Estado Social de Direito.46
A igualdade, com o advento do Estado Social, evoluiu em seu conceito,
ganhando então conteúdo material, vez que a igualdade perante a lei cedeu lugar à
busca pela igualdade fática. Ela tornou-se obrigatória não mais somente ao juiz, ao
legislador e ao administrador, pois a sua observância passou a ser exigência não
apenas para quem a aplicava, mas para a própria lei!
No contexto do reconhecimento dos direitos sociais, a igualdade material
passou a exigir atos concretos a fim de viabilizar a igualdade do plano fático, e não
apenas a vedação à discriminação e diferenciação. Mais que isto, a igualdade fática
acabou por desdobrar em igualdade de oportunidades, objetivando propiciar iguais
condições de competição pelos bens considerados essenciais.
A propagação da idéia de “igualdade de oportunidades” foi aparecendo,
então, em diversos ordenamentos jurídicos, norteada pela necessidade de extinguir,
ou ao menos mitigar as desigualdades econômicas e sociais, visando promover a
justiça social. Em especial, surgiram políticas sociais de apoio e promoção de
determinados grupos socialmente fragilizados, como, por exemplo, a inserção das
mulheres e negros no mercado de trabalho, discriminados em razão de gênero e
raça, respectivamente.
A igualdade material é, portanto, aquela capaz de assegurar o tratamento
uniforme de todos os homens, visando a alcançar a igualdade real e efetiva de
45 CAPLAN, Luciana. O Direito Humano à Igualdade, o Direito do Trabalho e o Princípio da Igualdade. In: PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz (coord). Direitos Humanos e Direito do Trabalho . São Paulo: Atlas, 2010, p.123. 46 Ibid, p. 123.
28
todos, perante os bens da vida. E, para tanto, é imperioso existir um nivelamento
das oportunidades, redistribuindo-se o acesso a várias posições na sociedade,
tornando-as, deste modo, igualmente acessíveis.
A mera igualdade de direitos não é, pois, suficiente, para “tornar acessível a
quem é socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozam os indivíduos
socialmente privilegiados”. Necessário se faz a distribuição desigual para colocar os
primeiros ao mesmo nível de partida, ou seja, a concessão de privilégios jurídicos e
benefícios materiais para os considerados privilegiados economicamente.
Frisa-se que o princípio da igualdade material está presente na maioria das
democracias ocidentais, com contornos de Estado social. Inserido nas respectivas
Cartas Constitucionais, assegura tal princípio, a sociedade em geral, o acesso a
determinados bens, como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a previdência e
a assistência social, inclusive no Brasil.
O ordenamento constitucional brasileiro também acolheu o princípio da
igualdade material, o que não significou o tratamento igualitário pela lei a todos os
indivíduos, mas, antes de tudo, identificar as desigualdades e tratar de modo
desigual os desiguais, conforme assevera Celso Antonio Bandeira de Mello.
No entanto, este autor traz critérios, que ora se transcreve, na medida em que
exata a lição:
“a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só
indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de
direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam
características, traços, nelas residentes, diferençados; c) que exista, em
abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a
distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma
jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja
pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é,
resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa –
ao lume do texto constitucional – para o bem público”47
47 MELLO, 2011, p. 10.
29
Portanto, há que se observar e definir critérios passíveis de indicar uma
desequiparação legítima na lei, vez que ao ordenamento jurídico-constitucional
brasileiro é vedada a discriminação em qualquer uma de suas formas, inclusive as
de origem, raça, sexo, idade ou cor, a fim de que a desigualdade não seja
aprofundada, mas sim combatida, conforme previsão no texto constitucional.48
Além das noções e distinções entre igualdade e diferença, importa verificar a
relação destas com a noção de discriminação, ocorrida comumente no vocabulário
histórico, político, e, em especial, no social. A discriminação, segundo assevera José
d´Assunção Barros49, pode ser considerada, de certo modo, como instrumento ou
até como etapa das desigualdades.
A noção de discriminação está relacionada a forma de condução social das
diferenças, objetivando o seu tratamento desigual, precisamente em relação a
grupos menos favorecidos. Ela ocorre através de um jogo de dominação e
estratificação social, e, em vários âmbitos, com menor ou maior frequência, como no
caso da discriminação ocorrida em relação às mulheres e aos negros.
1.2 A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL
1.2.1 Diferenças e desigualdades de gênero
A tentativa de compreensão acerca das diferenças e desigualdades entre
homens e mulheres não é recente, pelo contrário, desde os povos gregos, até
recentemente, acreditava-se que a mulher era um ser inferior na divisão entre os
seres humanos, e, com isso, eram os homens quem detinham o direito de exercer
uma vida pública.
48 Artigos 5º e 7º, CF. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil . Brasília, DF, 05 out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 04 maio 2014. 49 Ibid, p. 354.
30
Por outro lado, a vida privada, considerada um lugar de menor destaque, era
reservadas às mulheres, às quais eram destinados direitos e deveres voltados,
quase que exclusivamente, para a criação dos filhos, e aos cuidados domésticos e
familiares. Assim, ao homem era designado o espaço produtivo, e à mulher o
espaço reprodutivo, que se reflete também na esfera do trabalho.50
Segundo Thereza Cristina Gosdal, a atribuição de status secundário às
mulheres, em relação àquele atribuído aos homens é tendencialmente percebida por
antropólogos, sociólogos e historiadores em caráter universal. E, independente das
atividades masculinas realizadas, elas são reconhecidas como as mais importantes
e com maior valor, lhes propiciando, assim, um poder maior.51
A desigualdade, outrora combatida pela Revolução Francesa, não se
estendeu às mulheres. Foram necessários quase que dois séculos para que as
normas sociais conferissem igualdade de direitos entre homens e mulheres, não
tendo mais lugar o modelo do sexo único surgido na antiguidade greco-romana.
Porém, as desigualdades ainda permanecem, e não podem ser aceitas.
As diferenças, por outro lado, fazem parte da condição humana, e, por isso,
estão presentes na formulação e interpretação do ordenamento jurídico. Elas
representam características que podem particularizar uma situação, mas sem que
isto venha a gerar uma desvalorização do próprio ser humano, sob pena de incorrer
em uma desigualdade.
A expressão diferença, ainda que possa adquirir diferentes significados,
conforme contextos sociais, políticos ou culturais, pode definir, no tocante ao gênero,
peculiaridades tanto físicas quanto psíquicas, emotivas e comportamentais. A partir
destas, teorias foram construídas para indicar diferentes habilidades sociais, talentos
e aptidões, justificando os lugares e destinos de casa gênero. Observa Guacira
Lopes Louro que o movimento feminista, a partir desta perspectiva, passou a “se
ocupar centralmente desta diferença, e de suas consequências.”52
50 CORTIZO, Maria del Carmem; GOYENECHE, Priscila Larratea. Judiciarização do privado e violência contra a mulher . In: Revista Katálysis. V.13, nº 1. Florianópolis, jan./jun. 2010, p. 103. 51 GOSDAL, Thereza Cristina. Discriminação da mulher no emprego : relações de gênero no direito do trabalho Curitiba: Genesis, 2003, p. 74. 52 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação : Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: 2011, p. 49.
31
As concepções de gênero, ademais, segundo Guacira Lopes Louro, se
diferem não apenas na história ou nas sociedades, mas também no interior destas,
se constituindo com ou sobre corpos sexuados, nos mais diversos grupos que a
constituem, como, por exemplo, de classe, racial, étnico ou religioso.53
Gênero e sexo, por sua vez, não se confundem. O primeiro resulta de uma
construção cultural, e diz respeito às diferenças psicológicas, sociais e culturais. E já
o segundo advém da própria natureza do indivíduo, estando relacionado com
diferenças fisiológicas e anatômicas, classificando genética e anátomo-fisiológica os
seres humanos.54
Leda de Oliveira Pinho chama a atenção, ademais, para a diferença
semântica encontrada tanto do termo gênero como no termo sexo, nas línguas de
raiz anglo-saxônica (inglesa), e latina (espanhola, francesa e portuguesa),
sugerindo, para uma melhor compreensão dos seus conteúdos, a consideração dos
significados que eles comportam em razão de suas origens.55
Na dimensão semântica latina, a expressão gênero pode ser compreendida
como uma construção social, histórica e cultural, elaborada sobre as diferenças
sexuais, sendo necessário, porém, descolar o sexo do gênero para um melhor
entendimento das questões culturais que envolvem os comportamentos e
características femininas e masculinas, nas mais diferentes sociedades e culturas.56
Portanto, ser mulher ou homem é uma questão não tanto relacionada com o
nascimento do indivíduo, mas sim uma produção social formada por múltiplas
instâncias. As sociedades criam categorias femininas e masculinas para as
diferenças de sexo, e isto acontece de forma a tornar os indivíduos diferentes e, por
vezes, desiguais.
Historicamente, no desempenho dos “papéis”, o gênero feminino acaba sendo
sobreposto pelo gênero masculino, tendo as suas características que lhes são
53 Ibid., p.27. 54 OLINTO, Maria Teresa Anselmo. Reflexões sobre o uso do conceito de gênero e/ou sexo na epidemiologia. Revista Brasileira de Epidemiologia. Volume 01, nº 2, 1998, p. 162. 55 PINHO, Leda de Oliveira. Princípio da Igualdade : investigação da perspectiva de gênero. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 53. 56 CARVALHO, Marília Gomes, e TORTATO, Cintia Souza Batista. Gênero: considerações sobre o conceito. In: LUZ, Nanci Stancki et al (orgs.) Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola. Curitiba: UTFPR, 2009, p.24.
32
inerentes enfatizadas, e, por outro lado, as suas diferenças acentuadas. E como há
o predomínio dos ideais masculinos, acaba-se por formar um mundo com tais
características.57
Assim, as sociedades são formadas, comandadas e organizadas com visões
estereotipadas de papéis masculinos e femininos, concebidas com graus
hierárquicos desiguais, onde são impostos certos papéis para mulheres e homens,
vindos a determinar o modo como eles se vêem e como se relacionam entre si.58
A desigualdade de gênero, nesta perspectiva, não é uma questão de
diferença, visto que está interligada a um problema de relacionamento, de
hierarquia, e até mesmo de dominação, onde a categoria masculina é o padrão, e é
também a referência de medida na sociedade.
A lógica dicotômica, a qual supõe a polarização masculino-feminino, está
presente no pensamento das sociedades de uma forma geral, concebendo, assim,
homens e mulheres como polos opostos que se relacionam dentro de uma lógica
invariável de dominação-submissão. Segundo assevera Guacira Lopes Louro, a
dicotomia marca a superioridade masculina59.
Joan Scott redefiniu gênero como “uma maneira de se referir à organização
social da relação entre os sexos” com o objetivo de rejeitar o paradigma determinista
da condição social pelo sexo biológico. É no significado das relações de poder que
as pessoas primeiro experienciam as relações de gênero, influenciando na forma
como as percepções coletivas e pessoais se estabelecem, na dimensão pública e
privada, distribuindo de forma desigual tais relações.60
Na construção social, do que é ser mulher e do que é ser homem, há uma
relação com o sistema patriarcal, o qual, originariamente masculino, faz parte de um
sistema de dominação, com fundamentação e constituição histórica, em que o
homem é quem organiza e dirige, majoritariamente, a vida social, com reflexos tanto
na esfera privada como, principalmente, na pública.
57 Ibid, 40. 58 Ibid, 41. 59 LOURO, 2011, p.35. 60 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria de análise histórica. Revista Educação e Realidade . Porto Alegre, nº 20, vol.2, jul/dez., 1995, p.71.
33
A sociedade, marcadamente masculina, gerou situações nem sempre
favoráveis às mulheres, ocasionando dificuldades de aceitação e gerando restrições
de características femininas. O tratamento diferenciado destinado a elas é verificado
nas mais diversas relações dentro do contexto social, a despeito das diferenças,
inclusive físicas, havidas entre mulheres e homens.
Muitos estudos sugerem que os traços diferenciadores entre os gêneros são
determinados mesmo pela cultura, não tendo tanta importância os fatores hormonais
pré-natais, como, por exemplo, aqueles que geram nas meninas uma maior
capacidade verbal, e para os meninos uma maior capacidade visual, espacial e
matemática, segundo assevera Luciana Parisotto et al.61
Mas há diferenças, como algumas de ordem física, que são inerentes a
determinado gênero, como, por exemplo, a possibilidade de gestação e de
amamentação. Somente as mulheres, pelo menos de modo natural, biologicamente
falando, são capazes de gerar seres, e, alimentá-los através de produto produzido
por seus próprios organismos.
Ademais, além da responsabilidade pela perpetuação da espécie, é esperado
da mulher, o cuidado e a educação dos filhos (especialmente nos aspectos
emocionais e morais), a assistência aos idosos, doentes e portadores de
necessidades especiais e atividades concernentes, denominadas, segundo Daniel
Viana Teixeira como “economia doméstica” (improdutiva), em contraposição às
atividades da “economia de mercado” (produtiva).62
O trabalho, numa classificação segundo o critério de gênero, pode ser
compreendido como produtivo e reprodutivo. O primeiro é assim classificado por
executar atividades de produção social e direção da sociedade, as quais são
exercidas, geralmente, por homens, no espaço público. Já o segundo, conhecido
como trabalho doméstico, ocorre no espaço privado, realizando as atividades
relacionadas aos cuidados do lar e da família.
61 PARISOTTO, Luciana et al. Diferenças de gênero no desenvolvimento sexual: Integração dos paradigmas biológicos, psicanalítico e evolucionista. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul , vol. 25, abr. 2003, p. 84. 62 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol. 6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 259.
34
Vera Maluf observa, contudo, que ao longo da história, a mulher passou a
desempenhar três papéis: a esposa, a profissional e a mãe. E, destes múltiplos
papéis, tem se esperado a sua execução perfeita por um mundo, no qual, os
imperativos de eficácia, o pragmatismo de resultados, teorizam permanentemente
sobre as vidas humanas, gerando muita frustração e sentimento de culpa em muitas
mulheres.63
Daniel Viana Teixeira adverte sobre as consequências do ônus (social) que
também é impingido às mulheres, no tocante aos cuidados com os filhos em idade
pré-escolar. Tal atribuição importa em intensa dedicação, por seguidos anos,
justamente no período em que a mulher está “na plenitude de sua capacidade
laborativa”, e no qual poderia termais chances de sucesso de competição no
mercado de trabalho.64
Estas responsabilidades domésticas e familiares atribuídas, em geral, às
mulheres, podem ser consideradas prejudiciais ao trabalho feminino, na medida em
que lhes tomam o tempo que poderiam dedicar-se a uma atividade laborativa, o que,
muitas das vezes, acaba por gerar sentimentos que prejudicam a própria saúde da
mulher, comprometendo a sua qualidade de vida.
As diferenças de gênero podem então, nestas situações, se tornarem
desigualdades, haja vista todas as consequências geradas em relação às mulheres.
Elas acabam por ficar em condição desfavorável em relação aos homens, os quais,
detentores do poder, e norteadores do padrão ideal, ficam, confortavelmente, em
posição de vantagem em várias situações no contexto social.
Ressalta-se que embora a estrutura familiar venha passando por significativas
alterações nas últimas décadas, tendo o “pátrio poder” sido substituído pelo “poder
familiar” por uma questão cultural65, os padrões continuam a se repetir, ou seja, o
trabalho reprodutivo e doméstico continua a pertencer à mulher.
63 MALUF, Vera. Mulher, trabalho e maternidade : uma visão contemporânea. São Paulo: Editora Atheneu, 2012, p. 12. 64 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol. 6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 260. 65 Art. 1.631, CC “Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais ; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.” (grifos acrescentados) Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em 04 maio 2014.
35
Observa-se, contudo, que muitas mulheres, para dar conta da dupla jornada
de trabalho que lhes é imposta, têm delegado o dever de cuidado com a casa e os
filhos a uma terceira pessoa, a empregada doméstica (geralmente mulheres). E tal
“transferência”, por sua vez, acaba configurando uma perpetuação da relação de
desigualdade de gênero, pois o serviço doméstico passa de uma, para outra mulher.
Entretanto, em relação à exclusividade da mulher executar a função de
trabalhadora doméstica, asseveram Silvana Souza Netto Mandalozzo e Lenir
Mainardes da Silva, que em um futuro próximo é possível que também os homens
possam vir a se dedicar a tais serviços inerentes a esta profissão (como limpar a
casa, cozinhar, arrumar e cuidar de crianças e idosos, dentro outros), vindo a
contribuir para a igualdade entre os sexos.66
O fato é que a reação contra a desigualdade de gênero tem gerado também
outras mudanças no contexto social. Informa Mary del Priore que as mulheres, no
início do século XXI, estariam retardando a maternidade e escolhendo o melhor
momento para serem mães. Muitas delas estariam passando a escolher quando e
se terão filhos, dependendo das condições econômicas e culturais de cada uma,
valorizando mais a realização profissional e a independência financeira.67
Sobre o tema da opção da maternidade, Vera Maluf observa que a mulher,
“presa às leis instituídas pela sociedade dos homens, vê-se condicionada a uma
vida de sacrifícios para criar e educar os filhos e desiste de sua realização
profissional!”. Para se justificar, a autora faz referência ao pensamento da filósofa
francesa Elizabeth Badinter, para a qual a mulher é vítima de um sistema que a
impossibilita de se desenvolver como ser humano livre e independente.68
Contudo, na sociedade atual, principalmente após a década de 1980, quando
se acentuaram as modificações de paradigmas dos processos de produção
manufatureira dos países industrializados, houve expressivas mudanças sociais,
66 MANDALOZZO, Silvana Souza Netto; SILVA, Lenir Mainardes. Aspectos Sociais da Relação entre Empregado e Empregador doméstico. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. Trabalho doméstico : teoria e prática da Emenda Constitucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p. 187. 67 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013, p. 157. 68 MALUF, 2012, p. 60.
36
econômicas e políticas que repercutiram no modelo patriarcal da família (esfera
privada), e nas relações de trabalho da mulher (esfera pública).69
Houve um alto grau de emancipação da mulher, onde medidas de inclusão e
promoção à igualdade passaram a ser adotadas, refletindo, também, no ambiente
familiar. Os homens, sensibilizados, parecem estar mais comprometidos e atuantes
em relação aos serviços domésticos, ao cuidado e educação dos filhos.
Entretanto, a despeito das tentativas de superação das diferenças e
desigualdades de gênero, a mulher tem sido alvo de discriminações, tanto no
ambiente doméstico como no mercado de trabalho, onde a maioria vivencia ainda
posições precárias e subalternas. Embora muitas barreiras tenham sido superadas,
persistem ainda características socioculturais que discriminam as mulheres sob as
mais variadas formas. E isto não pode ser mais tolerado pela sociedade atual.
1.2.2 A discriminação de gênero no Brasil
O verbo discriminar tem origem no latim discriminare, significando diferenciar,
distinguir, discernir, separar, especificar, extremar e estabelecer diferença,70 em
relação a uma pessoa ou grupo de indivíduos em face de alguma característica
pessoal, cultural ou racial; formar grupo à parte em razão de alguma pertença, como
por exemplo: étnica, religiosa, cultural entre outros, segundo definições encontradas
na maioria dos dicionários.
A utilização da palavra discriminação no sentido de “distinção desfavorável” é
adotada na maioria dos textos constitucionais elaborados a partir da segunda
metade do século XX.71 No Brasil, somente a partir de 1998, por seu cunho de
resgate ao Estado de Direito, é que tal expressão passou a ser utilizada com este
sentido, sendo antes utilizado para fins administrativos ou tributários. 69 MOURÃO, Tania Fontenele; GALINKIN, Ana Lucia. O que pensam as mulheres no topo da carreira? In: _______. Trabalho de Mulher : mitos, riscos e transformações. São Paulo: LTr, 2007, p. 144. 70 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 686. 71 LIMA, Firmino Alves. Teoria da discriminação nas relações de trabalho . Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 20.
37
O ato ou a ação de discriminar, isto é, de segregar, desigualar por à parte por
intolerância ou preconceito, é um fenômeno eminentemente social, que guarda
conotação de desvalor, visto que gera desigualdades entre indivíduos e grupos
sociais. A discriminação é fundada em uma ideologia preconcebida que pode
resultar em inferioridades em geral.
Segundo Thereza Cristina Gosdal, a discriminação pode ser considerada um
fenômeno social, relacional, que excede o campo do Direito. Por ser social, a
discriminação é dinâmica, podendo variar no espaço e tempo, ou seja, em um
mesmo contexto, um fato pode ser discriminatório para uma pessoa, e não ser para
outra, pois está relacionado a uma valoração comparativa, inerente ao sujeito.72
O ato de discriminar, no discurso político moderno, tem conotação de
desfavorecimento de um indivíduo ou de um grupo social, aparentemente sem um
motivo que o justificasse. E já em um discurso jurídico, discriminar pode ter sentido
amplo, correspondendo ofensa ao princípio da igualdade, e sentido estrito, quando a
violação ao princípio da igualdade tem fundamento em critérios proibidos.
Para Joaquim Benedito Barbosa Gomes, a discriminação possui um caráter
competitivo, que é, em geral, indissociável das relações sociais, e revela uma
tentativa de beneficiar alguns indivíduos em detrimento de outros: “quanto mais
intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o
seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e
discriminado.”73
Por isso entende Robert Castel ser a discriminação “escandalosa”, porquanto
se constitui ela em uma negação dos direitos inscritos nos textos constitucionais,
substanciais ao exercício da cidadania. Ademais, o tratamento igualitário dos
indivíduos é uma condição de entrada na democracia moderna, fixando contornos
de uma sociedade na qual os cidadãos podem ser responsáveis por si mesmos.74
72 GOSDAL, 2003, p. 91. 73 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ações Afirmativas e princípio constitucional da igualdade : o Direito como instrumento de transformação social (A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 18. 74 CASTEL, Robert. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones? Tradução de Francisco Morás. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 12.
38
A discriminação é uma conduta que interfere de forma negativa nos direitos
das pessoas, as impedindo, por motivos injustificados, de exercerem plenamente o
direito à igualdade de oportunidades. E a causa da discriminação, segundo observa
Maurício Godinho Delgado, pode residir, muitas vezes, no “cru preconceito, isto é,
um juízo sedimentado desqualificador de uma pessoa em virtude de uma sua
característica determinada externamente”, em razão de sexo e raça, por exemplo.75
Preconceito, para Thereza Cristina Gosdal, constitui em uma ideia
preconcebida acerca de algo ou alguém, advinda de atitude interior de um indivíduo
ou de um grupo, visando à justificativa de sua exploração econômica, política ou
ocultação de antagonismos de classe. O preconceito conduz à discriminação,
infligindo em certas pessoas um tratamento diferenciado e imerecido, fundado, em
geral, no desconhecimento.76
Observa Sergio Gomes da Silva, a respeito da origem do preconceito em
relação às mulheres, que tal fenômeno ocorre em razão de que, por muito tempo,
partia-se da idéia de que o Direito deveria estar a serviço dos homens, os quais
eram tidos, geralmente, como a classe dos mais fortes, o que teria servido para
construir idéias falsas. Desta forma, os preconceitos contra o gênero feminino
estariam presentes nos mais diferentes setores das sociedades.77
No mesmo sentido, Daniel Viana Teixeira entende que os atos
discriminatórios guardam relação direta com a própria estrutura social, a qual foi
moldada, no decorrer dos tempos, segundo necessidades, interesses e pontos de
vista sob o enfoque masculino. Entendendo, por derradeiro, ser um problema não
especificamente de discriminação, mas sim de dominação, sugerindo, como
solução, a presença do poder às mulheres.78
Segundo o mesmo autor, para a obtenção da igualdade de oportunidades, se
faz necessária, então, não apenas a busca dos papéis definidos aos homens, mas,
em especial, uma posição de igual poder às mulheres para criar papéis sociais que
75 DELGADO, Maurício Godinho. Proteções contra discriminação na relação de emprego. In VIANA, Marcio Tulio; RENAULT, Luiz Otavio Linhares. Discriminação . São Paulo: LTr, 2000, p.97. 76 GOSDAL, 2003, p. 92. 77 SILVA, Sergio Gomes. Preconceito e discriminação: as bases da violência contra a mulher. Revista Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília, vol. n. 30, n. 3, Setembro, 2010, p. 561. 78 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol.6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 261.
39
redefinam os trabalhos em masculinos e femininos. Ademais, informa que muitos
países, como a Suécia, por exemplo, já vem adotando uma visão diferenciada do
problema, procurando interferir na própria estrutura desempenhada tanto pelos
homens quanto pelas mulheres.79
Desse modo, tanto o preconceito quanto a discriminação dirigidos em relação
às mulheres sofrem a interferência de uma conduta humana masculina, seja por
ação ou omissão, violando, diretamente, direitos. O preconceito, portanto, é uma das
causas da discriminação negativa, embora ambas as denominações não se
confundam, visto o preconceito tratar-se de uma idéia pré-concebida que, sem
verificação, acaba por se propagando no meio social em desfavor das mulheres.
A reação das mulheres contra atos discriminatórios, e de cunho
preconceituoso, podem ser observadas em muitos e diversos momentos da História,
segundo afirma Guacira Lopes Louro. Contudo, foi no final do século XIX, no
Ocidente, onde as manifestações do feminismo (movimentos socias feministas)
ganharam visibilidade, adquirindo, a partir de então, um caráter mais expressivo, em
especial pela extensão do direito de voto às mulheres.80
Destaca-se que no Brasil, no ano de 1832, ou seja, ainda durante o século
XIX, Nísia Floresta Brasileira Augusta81 publicou o livro “Direitos das mulheres e
injustiça dos homens”, onde ela reivindicava a igualdade e a educação para as
mulheres, indo contra, portanto, a discriminação e preconceitos da sociedade
patriarcal da época. Tal obra representou, certamente, um marco inicial na luta pelos
direitos das mulheres no país.
Na sequência, na virada do século, ocorreram os movimentos de
reinvindicações femininas, através do sufragismo, fato que passou a ser reconhecido
como a “primeira onda” do feminismo, cujos objetivos imediatos estavam
relacionados à organização familiar, ao acesso aos estudos, e oportunidades para o
79 Ibid, p. 261 e 262. 80 LOURO, 2011, p.18. 81 O seu verdadeiro nome é Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885). Ela foi uma notável educadora, escritora e poetisa, nascida no Rio Grande do Norte. Disponível em: < http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/NisiaFlo.html>. Acesso em 10 maio 2014.
40
desempenho de algumas profissões. Embora, segundo assevera Guacira Lopes
Louro, dirigidos apenas a “interesses de mulheres brancas de classe média”.82
Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que estes primeiros movimentos
feministas ocorridos no início do século XX, possuíam um traço de caráter liberal,
consistindo em uma luta pela “igualdade formal”, fato este que teria marcado, até a
década de 1980, a política pública no Brasil. Ressalta, ademais, que o enfoque
daquele movimento inicial, todavia, era a busca pela igualdade entre os sexos,
passando, posteriormente, para a diferença entre os sexos, enfatizando, então, “os
valores da mulher como mulher”.83
Salienta-se que no Brasil, para além da conquista do direito de votar (ocorrida
em 1932, sob o governo de Getúlio Vargas)84, o Estado, na década de 90, a fim de
promover uma maior participação política das mulheres, criou cotas por sexo para
candidaturas femininas, através da Lei nº 9.504/97. Tal dispositivo legal prevê a
reserva de, no mínimo, 30% e, no máximo, 70% para as candidaturas de cada sexo,
importando num mecanismo de promoção feminina nos espaços formais de poder.
O segundo movimento feminista, conhecido como a “segunda onda” do
feminismo, iniciou no final da década de 60, movido por diferentes grupos de
conscientização, tendo surgido para expressar a insatisfação com os tradicionais
arranjos sociais e políticos da época. Esse movimento ocorreu através de marchas e
protestos públicos, mas teve influências de publicações em jornais, revistas e livros,
como, por exemplo, a clássica obra “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir.85
Os direitos e deveres das mulheres, a partir dos dois movimentos feministas,
deram um grande salto, seja no âmbito público, seja no âmbito privado. Eles
proporcionaram também à sociedade moderna a compreensão de que as mulheres
não poderiam mais fazer parte de um grupo oprimido, vítimas de preconceitos e
discriminações, passando a ser recriada, a partir de então, a relação entre os
gêneros masculino e feminino.
82 Ibid, p. 19. 83 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O Direito à Diferença. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2009, p. 75. 84 BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: Reestruturação da Ideo logia de Gênero no Brasil. Tradução de Lólito Lourenço de Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 02. 85 LOURO, 2011, p.18.
41
Os comportamentos conservadores da sociedade, em relação à mulher, tanto
na vida doméstica como na social, passaram a ser revistos nos mais diversos
campos. Segundo assevera Leda de Oliveira Pinho, foram os novos métodos
contraceptivos e o maior acesso à escolarização que acabaram por permitir o
acesso das mulheres ao espaço público, outrora voltado e preparado para o modelo
masculino, onde eram os seus representantes quem detinham os melhores postos e
as melhores remunerações.86
Observa Andrea Simpriani, ademais, que o feminismo multicultural
contemporâneo está dirigido a um debate no campo moral, tendo por interesse as
questões de relação interpessoal e a busca por uma “identidade feminina”.
Diferentemente, portanto, do que objetivou o movimento feminista ocorrido no final
da década de 60, o qual estava voltado para reivindicações em relação aos aspectos
de cunho político e econômico da opressão das mulheres.87
A busca pela identidade feminina ocorre em decorrência da notável mudança
havida na sociedade nas últimas décadas, quando houve um acesso maciço das
mulheres ao ensino superior e ao mundo do trabalho.
Mas, segundo informa Nanci Stancki da Luz, apesar da elevação do número
de mulheres no ensino superior, há uma distribuição desigual de gênero entre os
cursos. A participação feminina continua ocorrendo em áreas associadas ao cuidado
e educação, enquanto que a masculina é associada com a racionalidade,
confirmando, portanto, a ocorrência de discriminação também neste setor.88
Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que, ultimamente, a condição de
“dona de casa” se tornou, inclusive, objeto de escárnio social, pois sequer está
incluída nas pesquisas do IBGE como parte integrante da população
economicamente ativa. A sociedade atual, por outro lado, tem esperado da mulher a
86 PINHO, 2005, p. 41. 87 SEMPRIANI, Andrea. Multiculturalismo . Tradução Laureano Pelegrin. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 52. 88 LUZ, Nanci Stancki. Divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no Brasil. In: LUZ, Nanci Stancki et al (org.) Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola. Curitiba: UTFPR, 2009, p. 159.
42
submissão a uma dupla jornada de trabalho, reforçando o pensamento machista
presente ainda na cultura brasileira.89
Pesquisas comprovam que, embora o modelo contemporâneo de família
esteja sendo alterado nos últimos tempos, as mulheres brasileiras ainda são as
responsáveis pelo cuidado dos filhos e dos afazeres domésticos. Segundo
estatísticas da PNAD, no conjunto de cônjuges que realizam afazeres domésticos,
96% são mulheres. São elas que participam com mais intensidade e gastam um
número de horas mais elevado no cuidado de tais atividades do que os homens.90
Alice Monteiro de Barros lembra que a educação transmitida pela família,
antigamente, induzia as mulheres a relegar a um plano secundário a vida
profissional, incutindo-lhes a idéia de que elas deveriam estar disponíveis para as
atividades relacionadas aos cuidados domésticos, relegando aos homens a
responsabilidade pelo sustento familiar. E isto acabou por influenciar a própria
estrutura ocupacional das mulheres no mercado de trabalho.91
Além do mais, ressaltando a importância da família no direcionamento da
escolha profissional dos indivíduos, Nanci Stancki da Luz observa que, nos
processos de socialização familiar, os próprios brinquedos oferecidos às meninas e
aos meninos reforçam a divisão sexual do trabalho. Assim, ao serem oferecidos a
eles jogos eletrônicos e carrinhos, e para elas utensílios domésticos e bonecas,
acaba sendo transmitida a ideia dessa divisão de papéis.92
É inegável, contudo, que a grande inclusão das mulheres no ensino superior,
verificada nas últimas décadas no país, tem contribuído para o avanço das mulheres
nos mais variados setores profissionais. Mas a distribuição desigual das tarefas no
âmbito familiar, somada à questões relacionadas à própria condição feminina
(reprodução e amamentação) tem mantido a desvalorização do trabalho da mulher.
A dupla jornada a que são submetidas às mulheres, em razão da necessidade
de conciliar a vida familiar e profissional, aliadas às questões biológicas, acaba por
89 CRUZ, 2009, p.40. 90 Disponível: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tempo_trabalho_afdom_pnad2001 2005.pdf, acesso em 10 abril 2014. 91 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no emprego por motivo de sexo. In: VIANA, Márcio Túlio, RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coord). Discriminação : estudos. São Paulo: Ltr, 2000, p. 32. 92 LUZ, 2009, p. 160.
43
sujeitá-las a precarização de suas atividades, incorrendo em alguns fenômenos
como: terceirização, informalidade, flexibilização, baixas remunerações, entre outros
que acabam por desvalorizar e diminuir chances de êxito profissional.93
Importa ressaltar que certas diferenças, além de darem ensejo ao trabalho
precário da mulher, causam, sobretudo, discriminações por gênero no ambiente de
trabalho, nas mais variadas formas e fundamentos. Mas, ainda pior, pode acontecer
quando há outro fator discriminante agregado, como, por exemplo, a raça. Nestas
situações, a discriminação ocorrerá de forma dupla, sendo, portanto, potencializada,
podendo ocasionar indignidade na própria condição humana destas mulheres.
1.3 A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA
1.3.1 Desigualdade e discriminação racial
O gênero é um fator que gera desigualdades e discriminações entre homens
e mulheres. Mas outro fator que pode ser constatado, também pelo físico dos seres
humanos, é a raça, embora esta compreenda mais a ideia de traços encontrados em
grupos específicos, como os negros, por exemplo.
A palavra “negra”, segundo observa Antonio Sérgio Guimarães, foi utilizada
inicialmente pelos europeus para fazer referência à cor da pele escura de alguns
povos, após as conquistas do século XVI. A partir de então, tal palavra passou a ser
utilizada como fonte de sentimento negativo, visto que no Ocidente cristão, a
coloração negra significava derrota, pecado, enquanto que o branco significava
pureza, sucesso, e a sabedoria.94
93 Ibid, p. 161. 94 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito racial: temas e tempo. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2012, p. 11.
44
Entre os séculos XVII e XIX, a ciência moderna criou para os negros e
“homens de cor”, teorias raciais ou racistas, sob a suposição de existência de raças
humanas, na busca de explicações biológicas para as suas origens, capacidades e
habilidades. O médico francês François Bernier, no ano 1684, foi o primeiro autor a
fazer uso da noção de raça, propondo em sua obra uma classificação pautada nos
diferentes tipos físicos nos diversos continentes.95
Tal obra denominada “Nova Divisão da Terra pelas Diferentes Espécies ou
Raças de Homens que a Habitam”, utilizando-se não apenas da cor da pele, mas de
outros traços fisionômicos, agrupou os europeus, os norte-africanos, os habitantes
do Oriente Médio, os persas e iranianos numa mesma espécie. A diferença de cor
entre essas populações seria devido à exposição solar. E à raça encontrada nas
demais partes da África foi atribuída por Bernier como “negra”. 96
Segundo Lilia Moritz Schwarcz, o termo raça teria sido introduzido na
literatura por Georges Cuvier, no início do século XIX, dando início à idéia da
existência de heranças físicas permanentes entre grupos humanos diversos.97 Este
cientista, ademais, representou as raças como uma hierarquia explicada por
diferenças de cultura e de qualidade mental, com os brancos no topo e os negros na
base, conceito este que para alguns vigora até os dias atuais.
Jessé de Souza, ademais, atribui esta suposta concepção de superioridade
de raças, ainda verificada atualmente, a uma associação inconsciente e pré-reflexiva
de alguns indivíduos, para os quais, a “raça branca” é associada aos povos
europeus e sua herança cultural, possuindo autocontrole e disciplina em suas
necessidades corporais. E já a “raça negra” está relacionada com primitivismo
africano, sendo, por isso, considerada inferior e percebida como “repositário de
valores ambíguos como força muscular e sensualidade.” 98
As teorias raciais, entretanto, não são de ordem biológica, ainda que possam
conceituar, arbitrariamente, grupos humanos pelo conjunto de caracteres físicos
95 SOARES FILHO, Almiro de Sena. A cor da Pele. Curitiba: Instituto Memória, 2010, p. 45. 96 GUIMARÃES, 2012, p. 18. 97 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 47. 98 SOUZA, Jessé. A visibilidade da raça e a invisibilidade da classe contra as evidências do conhecimento imediato. In: SOUZA, Jessé (Org.) A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 85.
45
hereditários como a cor da pele, formato da cabeça, tipo de cabelo entre outros.
Segundo Antonio Sergio Guimarães, o que as teorias faziam (e fazem) é reproduzir
preconceitos vulgares para justificar a exploração econômica, a dominação política,
e relações de classe daqueles que detém o poder.99
Com efeito, o conceito de raça, tal qual tem sido utilizado, não tem
fundamento científico, sendo tal palavra considerada até de difícil definição. Todavia,
está presente tanto no imaginário popular, como pelo próprio IBGE, onde permanece
a adoção de uma multiplicidade das raças: branca, preta, amarela, parda ou
indígena, sendo utilizadas as categorias raça/cor: “preta” e “parda”, como
equivalentes à categoria raça/cor: “negra”.100
Ali Kamel observa que já é consenso entre os geneticistas, nas últimas
décadas, que não há diferença entre os homens, os quais são considerados todos
iguais, ou “igualmente diferentes”. A propósito, a ciência já afirmou que associação
entre raça e doença não passa de um mito. A equivocada atribuição de determinada
doença a uma raça (como, por exemplo, a anemia falciforme), na verdade, nada tem
a ver com a questão racial, mas sim com grupos populacionais, em razão dos
casamentos realizados entre seus pares.101
Por outro lado, acerca das diferenças na coletividade humana, segundo crítica
de Demétrio Magnoli, embora a ciência tenha mesmo desmoralizado a crença
anacrônica sobre o racismo, o multiculturalismo, no entanto, teria acabado por
replantar as raças no solo da cultura.102 Ou seja, para esse autor, embora
cientificamente inexista o racismo, persiste por questões relacionadas à diversidade
cultural presente nas sociedades.
Raça, portanto, pode ser considerada como um conceito social, e não um
conceito científico, pois nem a genética oferece subsídio algum para a idéia social e
cultural referente à questão racial, segundo assevera Craig Venter, um dos maiores
geneticistas do mundo, tendo sido o primeiro a descrever a sequência do genoma
99 GUIMARÃES, 2012, p. 21. 100 SOARES FILHO, 2010, p. 49. 101 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 43. 102 MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue : história do pensamento racial. 1 ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009, p. 15.
46
humano. Os indivíduos negros, segundo este cientista, diferem tanto entre si, quanto
os indivíduos brancos.103
Desse modo, o conceito de raça, segundo os estudos avançados no campo
da genética, bem como pelas seguras pesquisas realizadas pela ciência moderna,
está, de fato, desvinculado de critérios biológicos, confirmando ser oriundo de uma
construção eminentemente sociocultural, ocorrendo na forma negativa ou positiva,
conforme o objetivo que se lhe queira dar, segundo observa José Augusto Lindgren
Alves.104
Contudo, o problema não está somente na existência ou não de raças, mas,
principalmente, no sentido que é dado ao termo, até mesmo porque a categoria
“raça” não teria mais utilidade prática atualmente.105Segundo Sergio Pena, é preciso
ser assimilado à noção de que há apenas uma única divisão de cunho biológico
coerente da espécie humana, que é a que resulta em bilhares de indivíduos, e não
em algumas “raças”.106
Ademais, ao serem atribuídos aos indivíduos alguns caracteres, como às
diferenças físicas ou etno-religiosas, por exemplo, poderia estar se incorrendo em
um ato de “racismo”, o qual, quase sempre, ocorre com conotação negativa, no
sentido de segregar, discriminar individualmente ou uma coletividade, fruto de uma
ideologia preconceituosa.
Observa-se que a questão racial já foi, inclusive, objeto de apreciação pelo
Supremo Tribunal Federal107, processo no qual houve a condenação de Siegfried
Ellwanger, autor de obras com conteúdo antissemita, pelo crime de racismo. Nesses
autos, após debates acerca do significado jurídico do termo, reconheceu-se o
racismo como sendo um fenômeno social, e que a existência de “raças” decorrem de
mera concepção histórica, política e social.
103 Jornal da Ciência. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.php?id=11494. Acesso 10 abr. 2014. 104 ALVES, José Augusto Lindgren. A conferência de Durban contra o Racismo e a responsabilidade de todos. Revista Brasileira de Política Internacional. Vol. 45, n. 2, Brasília, jul/dez. 2002, p. 203. 105 GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 48. 106 PENA, Sergio. Receita para uma humanidade desracializada. In FRY, Peter et al. Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 41. 107 Autos HC 82.424-QO/RS, Rel. Min. Maurício Correa, conhecido como “Caso Ellwanger”.
47
Os argumentos pseudocientíficos justificaram, durante muito tempo, os
comportamentos raciais. Atualmente, porém, a genética já colocou abaixo o
fundamento dessas teses, e estabeleceu que as diferenças entre indivíduos não são
determinadas por herança biológica ancestral, mas, sim, dependem de atributos
individuais e das experiências socioculturais de cada um.
Além do mais, como não existem diferenças genéticas significativas entre as
raças, os seres humanos podem ser considerados todos parentes, sendo, ao
mesmo tempo, diferentes entre si. Por isso, o racismo, que por sua vez gera o
preconceito racial, não pode ser tolerado em nenhuma parte do mundo, ainda que
as relações raciais ocorram de forma diferenciada nos países, podendo haver menor
ou maior tolerância, como é verificado em diversos países.
As relações raciais no Brasil são consideradas diferentes das observadas em
países como EUA e África do Sul,108 onde há uma tensão de natureza puramente
racial, o que não é verificado neste país. Segundo Gilberto Freyre109, tal fato pode
ser atribuído à intensa miscigenação ocorrida, a qual teria levado a formação do tipo
brasileiro, considerado como um indivíduo dotado de maior elasticidade e
passividade nas relações sociais. 110
Entretanto, alguns autores como Alvaro Ricardo de Souza Cruz, por exemplo,
entendem que a “democracia racial” é um mito, por desconsiderar a existência da
distinção entre as raças, e, consequentemente, do racismo entre os brasileiros.111A
seu ver, é este o motivo, inclusive, que tem dificultado a consecução de medidas
afirmativas no Brasil, o qual tem sido amplamente difundido pelas mídias em geral,
do “mito da democracia racial”.
O racismo brasileiro, resultante de um processo sócio-econômico-cultural,
expressa-se através das desigualdades verificadas em diversos indicadores sociais
(renda, emprego, educação, saúde, moradia). Pesquisas diversas já realizadas 108 Países em que tiveram como líderes em defesa dos direitos dos negros: Martin Luter King (1929-1968) e Nelson Mandela (1918-2013), respectivamente. 109 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: formação da família brasilei ra sob o regime da economia patriarcal . 51 ed. São Paulo: Global, 2006, pp. 116 e 117. 110 Destaca-se que este entendimento de Freyre teria levado alguns estudiosos à conclusão de que no Brasil haveria uma “democracia racial”, fato este que o teria levado a ser conhecido como autor deste conceito. Contudo, tal fato é contestado de forma contundente por Ali Kamel. KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 18. 111 CRUZ, 2009, p. 135.
48
demonstram a existência de diferenças significativas na apropriação da riqueza e no
acesso aos serviços básicos pelos negros, pertencentes às camadas socias mais
baixas.
Além do mais, as desigualdades raciais podem ser acentuadas quando há um
grupo dominante, geralmente detentor de maior força, e que acaba por impor
características que lhes favoreçam, na busca de melhores posições na hierarquia
social (espaços de poder, decisão e prestígio). Tal fato, contudo, acaba por dar
origem a uma cultura de discriminação racial, presente na maioria das sociedades.
A questão da discriminação racial-social-econômica dos negros, no Brasil,
está diretamente ligada ao passado, remontando ao século XVI, quando teve início o
comércio de escravos no período colonial. Segundo Thereza Cristina Gosdal, tal fato
teria ocorrido em razão do sistema capitalista mercantil vigente na época, no mundo
ocidental, voltado à produção do lucro pela exploração do trabalho.112
Ressalta-se que a escravidão ocorreu, primeiramente, com os indígenas,
como uma tentativa que os portugueses encontraram para lucrar com a colônia,
através do cultivo da cana-de-açúcar, visto que a busca pelo ouro e prata haviam,
incialmente, sido frustradas. Para tanto, exigia-se, para a produção do açúcar, uma
grande quantidade de mão-de-obra e trabalho constante.113
Diante da mal sucedida escravidão dos indígenas, houve a substituição pela
mão-de-obra dos negros, os quais foram trazidos à força para as colônias. O
transporte era feito em navios em condições extremamente ruins, onde as doenças
se proliferavam de forma avassaladora, sendo comum a ocorrência de óbitos pelos
negros, tanto por doenças, como pela fome, além do cometimento de suicídios.114
Recentemente foi noticiada pela imprensa escrita, inclusive, a descoberta de
uma cova coletiva no Rio de Janeiro, onde os corpos dos escravos mortos durante o
transporte pelo Atlântico apodreciam em meio a pilhas de lixo. Este “cais sórdido”,
como foi chamado pelo jornal, funcionou até a década de 1840, quando então as
112 GOSDAL, 2002, p. 231. 113 Ibid,p. 232. 114
Ibid,p. 232.
49
autoridades os enterravam sob docas projetadas para receber a nova imperadora do
Brasil, que estava vindo da Europa para o Brasil.115
Os escravos, quando então não morriam antes de chegar ao país, eram
submetidos ao árduo trabalho, castigos corporais, e diversas humilhações. Além do
mais, eram excluídos do convívio social, e tinham que suportar a própria
desintegração familiar, pois, ao chegar ao Brasil, havia grande probabilidade de que
cada membro da família fosse vendido para diferentes fazendeiros, degenerando
profundamente as relações sociais.116
Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que o mito existente de que o negro
era mais dócil, e o indígena incapaz para trabalhar, faz parte de uma “ideologia
racista” do escravagismo. Pois diversos estudos já comprovaram que, na verdade,
houve uma grande perda da população indígena117, razão pela qual não foi possível
corresponder com a expectativa de mão-de-obra esperada pelos portugueses para o
trabalho na agricultura.118
Além do mais, a alegada “passividade” dos negros, em aceitar o regime de
cativeiro, também não corresponde à realidade da época, visto que as rebeliões
eram constantes, tendo como exemplo mais marcante as manifestações ocorridas
pelos quilombolas em Palmares. E em decorrência delas, os quilombos, na visão
escravagista, foram associados à idéia de “vadiagem”, tornado comum à concepção
de que “negro bom” era aquele que trabalhava, ou seja, que não se rebelava.119
Outras demonstrações de que a população negra não aceitava passivamente
o regime da escravatura, é verificado através da grande quantidade de pedidos de
liberdade ocorridos no século XIX, durante ainda o período de escravidão. Conforme
resultado encontrado em pesquisa realizada por Keila Grinberg, foram encontradas,
115Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2014/03/11/corrida-do-rio-para-o-futuro-cruza-com-o-passado-escravo.htm>. Acesso em: 10 abr. 14. 116 PAIXÃO, Marcelo. Histórias das Diferenças e das Desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES Flavio (orgs.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 298. 117 Estima-se que a escravidão teria provocado cerca de 90% dos óbitos dos ameríndios em algumas regiões da América. (CRUZ, p. 131). 118 CRUZ, 2009, p. 133. 119 Ibid, p. 135.
50
na Corte de Apelação do Rio de Janeiro, cerca de 380 ações de liberdade,
superando, inclusive, os processos criminais.120
Thereza Cristina Gosdal informa que muitas foram as formas de reação dos
negros contra a opressão a que sofriam por conta do regime escravo. Alguns,
pacificamente, optavam pelo suicídio, aborto ou através da resistência ao trabalho
forçado. Outros, reagiam ativamente através de fugas, formando-se os conhecidos
quilombos, comuns em todo o período escravista. Também ocorriam atentados
contra a vida dos proprietários e familiares, sendo tais atos, também, severamente
repreendidos.121
Marcelo Paixão ressalta a importância que tiveram as mulheres negras na
resistência à dominação, contrariando, deste modo, à ideia de que a aceitavam
pacificamente. Informa este autor que as mulheres agiam a fim de proteger seus
filhos e companheiros, bem como a comunidade a qual pertenciam, no intuito de
garantir a integridade física e psicológica de todos. E, para evitar que a venda de
filhos e esposo ocorressem em separado, rebelavam-se ameaçando os senhores
com o suicídio e infanticídio, além da recusa ao trabalho.122
Segundo consta na legislação referente à escravidão, o negro era
considerado um objeto, e classificado como uma mercadoria (coisa). Mas, como
naquela época na Europa o trabalho era livre, com o passar do tempo, em
decorrência das transformações nas relações sociais, e nos interesses econômicos
(especialmente a formação de um mercado consumidor, pela Inglaterra), o discurso
escravista no país foi sofrendo modificações, até culminar na abolição, em 1888,
através da edição da Lei Áurea.123
120 GRINBERG, Keila. Liberata : a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, p. 9. 121 GOSDAL, 2002, p. 235. 122 PAIXÃO, 2012, p. 298. 123 Ressalta-se que até a promulgação definitiva da abolição da escravatura, muitas leis foram criadas no sentido de ‘libertar lentamente’ os trabalhadores forçados. Em setembro de 1871 foi criada a Lei do Ventre Livre, que concedeu liberdade aos escravos nascidos no Brasil após a data de promulgação da mesma. Conta-se, contudo, que ao nascerem eram simplesmente abandonados por ordem do proprietário da mãe do recém-nascido; e a Lei dos Sexagenários, favorável aos escravos de mais de 60 anos, os quais eram simplesmente expulsos das fazendas sem nenhuma indenização ou amparo do governo. A Princesa Isabel, como regente do Brasil Imperial, foi a responsável por assinar a Lei Áurea (Lei Imperial nº 3.353), depois de diversas tentativas empenhadas pelos integrantes da Campanha Abolicionista, que se desenvolvia desde 1870. A sanção da referida Lei foi
51
Celso Furtado observa que a abolição dos escravos no Brasil significou mais
uma medida de caráter político do que econômico, visto que não foram verificadas
alterações significativas na organização da produção, e nem na distribuição da
renda naquela época. Ou seja, o período escravista teria servido mais como base de
um sistema regional de poder, do que como forma de organização produtiva.124
A referida lei que pôs fim à escravidão125, contudo, concedeu apenas a
liberdade “formal” aos escravos, não tendo representado solução à situação do
negro, que se viu impelido, para tentar se manter, ou retornar às áreas rurais, ou
sujeitar-se ao recebimento de ínfimos salários. Além do mais, segundo Antonio
Celso Baeta Minhoto, o escravo negro, recém-liberto, estava diante de outro
problema, a ausência de identidade própria, pois até então era considerado como
um bem social.126
Além do mais, observa Thereza Cristina Gosdal que na mentalidade dos
escravos negros, o trabalho, em razão da escravidão, possuía conotação pejorativa,
estando esta integrada na psicologia coletiva. Deste modo, era preferível para eles o
estabelecimento em distantes locais, vivendo da caça, pesca ou lavoura, à trabalhar
de forma rígida e disciplinada, garantindo, ao menos, a conquistada liberdade e a
própria dignidade social.127
A abolição da escravidão significou para o negro, portanto, uma fase de
elaboração de nova concepção de sua própria identidade, e o seu papel na
sociedade, implicando em novos padrões de comportamento, diante da liberdade
recém-adquirida. No entanto, se por um lado ele estava livre, a dependência
econômica permanecia, assim como a visão geral estereotipada (negativa) em seu
desfavor.
Antonio Celso Baeta Minhoto observa, ademais, que a escravidão ocorrida
nas Américas foi desprovida de lastro ideológico racial, tendo ela ocorrido como
produto de inspiração fundamentalmente econômica, em consonância com o início
do período capitalista. E a escolha pelo trabalho dos negros africanos foi em razão
um enorme passo dado pelos liberais, que um ano mais tarde iriam derrubar o sistema monárquico em favor da Proclamação da República. 124 FURTADO, 2007, p. 204 e 205. 125 O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. (MINHOTO, 2013, p. 46.) 126 Ibid, p. 46. 127 GOSDAL, 2002, p. 246.
52
de que eram eles considerados mais eficientes que outros grupos étnicos na lavoura
da cana-de-açúcar, e pela maior capacidade de adaptação ao clima tropical que
possuíam.128
Porém, muito embora a ideologia da escravidão no Brasil não tenha tido
cunho racial, durante o período de trabalho escravo havia a presença de um
sentimento desfavorável atribuído à raça negra. Tal fato teria levado a disseminação
de um estereótipo negativo em desfavor dos negros129, fato este que não pode ser
deixado de ser considerado na análise de sua trajetória social no país,
especialmente no período após a abolição.
Os escravos, recém-libertos, passaram da categoria de “coisa” para,
legalmente, desfrutarem a condição de cidadãos. No entanto, diante da ausência de
políticas governamentais, de apoio e incentivo para os negros iniciarem uma nova
vida, gerou-se graves consequências de cerceamento de oportunidades, os
impedindo de exercitarem plenamente a cidadania conquistada. Além do mais, a
presença do analfabetismo era comum maioria dos ex-escravos, fato que agravava
a situação deles, informa Camilla Cowling130.
Os negros recém-libertados, segundo observa Thereza Cristina Gosdal,
acabaram formando um “contingente desenraizado”, aos quais eram relegadas as
piores tarefas, e pagas pífias remunerações.131Neste cenário, onde os negros
estavam praticamente abandonados ao acaso numa sociedade elitizada, acabavam
alguns ingressando na marginalidade para garantir a própria sobrevivência.
Assim, se por um lado os negros ganharam a liberdade com respaldo legal,
de outro, deixaram de ganhar subsídios para que pudessem ser inseridos à nova
ordem econômica do país. Portanto, daí já se denota o início da formação de uma
estrutura social restritiva, que deixou de promover, naquele importante momento
histórico, as possibilidades reais de mobilidade, mantendo, ademais, a estratificação
discriminatória da sociedade, atingindo, especialmente, as mulheres negras. 128 MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Da escravidão às cotas : a ação afirmativa e os negros no Brasil. Birigui, SP: Boreal Editora, 2013, p. 44. 129 Ibid, p. 45. 130 COWLING, Camila. O fundo de emancipação “livro de ouro” e as mulheres escravizadas: gênero, abolição e os significados da liberdade na corte, anos 1880. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES Flavio (orgs.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 219. 131 GOSDAL, 2002, p. 248.
53
1.3.2 Discriminação da mulher negra
Ao longo da história, as mulheres tiveram importante participação na
formação das sociedades em geral, vinda a alcançar voos de dimensões
inimagináveis. Por certo, ainda que tenham conseguido conquistar a igualdade em
relação aos homens, ocupando posições significativas, há um grupo de mulheres
que ainda estão muito aquém dos direitos outrora conquistados, como as negras,
por exemplo.
Para tratar da realidade da mulher negra no Brasil, atualmente, é necessário
remontar ao período em que elas chegaram ao país, a fim de verificar em que
contexto histórico, e sob quais condições elas vivenciavam as relações públicas e
privadas na sociedade escravocrata, no início do século XVI. Época esta em que,
ressalta-se, as mulheres, assim como homens e crianças, em razão de seus
fenótipos e origem africana, era tratados como coisas, e não como seres
humanos.132
As mulheres negras, no tempo da escravidão, segundo observação de Sonia
Maria Giacomini,133 além de serem tratadas como “coisa”, representando um objeto
de comercialização para o trabalho escravo, também eram consideradas como
objeto de satisfação sexual, amamentação dos filhos dos homens brancos e, ainda,
como “saco de pancada das sinhazinhas”, porque, além de escravas, eram elas
mulheres, assevera esta autora.
Cabe lembrar que a sociedade era estruturada sob o paradigma do
patriarcalismo, marcada pelo domínio e exploração do homem branco tanto em
relação ao gênero como da raça, ao qual era permitida, na esfera privada, a
possibilidade de exercer a própria sexualidade de forma livre, inclusive podendo
buscar satisfação fora da vida conjugal, conforme observam Carla Bassanezi Pinky
e Joana Maria Pedro.134
132 SOARES, 2010, p.21. 133 GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava : uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Curitiba: Appris, 2013, p. 103. 134 PINSKY, Carla Bassanezi, PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 16.
54
Sendo assim, as escravas, submetidas a uma relação de subordinação e
submissão, expostas à opressão, eram, rotineiramente, além de oprimidas pelas
relações de gênero, sexualmente violentadas dentro das próprias senzalas. E isto
acabou por contribuir na formação de uma imagem de suposta permissividade
sexual, segundo informa Marcelo Paixão e Flavio Gomes, de forma a ocasionar uma
estigmatização e grande erotização do corpo da mulher negra.135
Conforme aduz Carlos Roberto Bacila, se a inferioridade feminina é vista
como um estigma, em razão da alta concentração de poder que detém a figura
masculina136, poder-se-ia afirmar, sob este viés, que as mulheres negras, portanto,
são estigmatizadas sob as mais variadas formas, o que acaba por reforçar aquela
imagem negativa a elas associada.
Além do mais, durante a época da escravidão surgiu a teoria do racismo
científico, conforme a qual os intelectuais e a própria elite política definiam o negro
como raça inferior. Desta forma, as mulheres negras eram, invariavelmente
associadas à animalidade e perversão, sendo alvo de ataques diversos, de
estereótipos e estigmas de cunhos também pejorativos, segundo observa Petrônio
Domingues.137
Segundo relatos de mulheres negras no Brasil, oriundo de pesquisa realizada
por Emerson Rocha, é comum nas rodas sociais ouvir entre os indivíduos piadas
sobre “pretos” e “macacos”. No entanto, tal discriminação é verificada ainda na fase
infantil, como nas escolas, onde as meninas negras comumente são alvo de
chacotas como: “benfeito, estava pulando como uma macaca”; “vai pro circo
chipanzé”; “olha o cabelo dela”; entre outras.138
Além do mais, ainda na mesma pesquisa139 há relatos de mulheres negras
que se ressentem por não passarem a maior parte de suas vidas despercebidas
(pelo fato de possuírem uma cor), ao contrário do que ocorre com pessoas brancas,
135 PAIXÃO, 2009, p. 955. 136 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas : um estudo sobre os preconceitos. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008, p. 51. 137 DOMINGUES, Petrônio. Zizinha Guimarães: entre a história e a memória. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012, 267. 138 ROCHA, Emerson. Cor e dor moral. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira : quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 354 e 355. 139 Ibid., p. 355.
55
o que lhes geram um sofrimento íntimo, calado. Mas, sobretudo, sentem-se
incapazes de compreender este sofrimento, causado por motivo de racismo, em um
país composto por “pessoas tão multicoloridas”.
A cor da pele está diretamente ligada à imagem, à estética dos seres
humanos, especialmente das mulheres na cultura ocidental. A estética, por sua vez,
pode ser considerada como grande influenciadora na sociedade, de maneira a
formar critérios de gostos, opiniões, escolhas e situações. Contudo, com a sua
supervalorização atualmente, tal fato acaba por gerar discriminações em relação à
mulher negra, haja vista o imposto padrão estético atual.
É notória, tanto no imaginário social, como principalmente através dos meios
de comunicação, a padronização de uma beleza branca no país em relação às
mulheres, fazendo com que isto seja referência para a população em geral. Tal
fenômeno é verificado, inclusive, em anúncios de emprego, onde pode haver a
exigência por uma “boa aparência” como critério de seleção, o que, em geral,
significa pessoa de cor branca, embutindo, claramente, conteúdo racista.
Os meios de comunicação, por outro lado, podem se constituir em um espaço
no qual as mulheres negras, ainda que em presença minoritária, venham a construir
uma nova representação, modificando a lógica atual. Ademais, acaba por possibilitar
a veiculação desta nova representação, mais positiva, menos estereotipada das
categorias tradicionalmente conhecidas, como as domésticas e as mulatas.
Como consequência da histórica imagem das mulheres negras, assevera
Sueli Carneiro, que elas sofrem graves sequelas na autoestima, ensejando, em seu
desfavor, uma espécie de violência psicológica, de natureza racial. Tal fato,
ademais, implica em diversas outras consequências, como, por exemplo, no precoce
relacionamento tanto afetivo quanto sexual das meninas negras, as levando,
inclusive, ao envolvimento no turismo sexual, na busca de aceitação e afeto.140
140 CARNEIRO, Sueli. Mulheres Negras, violência e pobreza. In: Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas / Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. – Brasília: A Secretaria, 2003, p.15.
56
As mulheres negras no país, segundo a mesma autora141, são tratadas como
“antimusas” pela sociedade em geral. Há relatos de negras, na pesquisa realizada
por Emerson Rocha142, que, na ânsia de corresponder ao padrão estético
estabelecido na coletividade, quando crianças, penteavam os cabelos,
extremamente crespos, com tamanha força que acabavam por fazer o couro
cabeludo sangrar. Em outro relato, uma negra afirma ter evitado, muitas vezes, a
exposição solar, a fim de ficar “mais branquinha”.
Ressalta Emerson Rocha, ademais, que ao homem branco é fácil esquecer-
se da cor, pois conta com a “cumplicidade do mundo”, podendo estar relaxado em
relação à sua cor.143 Mas já em relação ao negro, há forças que sempre o fazem
lembrar, lhes gerando grande angústia e sofrimento, sobretudo no caso das
mulheres, pois a elas é imposto um padrão estético inalcançável. De forma
discriminatória, ocorre uma limitação de suas aspirações e motivações perante a
vida social.
Observa Devah Pager144que os grupos estigmatizados sentem a
discriminação como algo que, invariavelmente, permeia suas vidas. O mesmo autor
informa, ainda, que pesquisas comprovam que os indivíduos discriminados são
mesmo mais propensos a sofrer de ansiedade, depressão, e vários outros
problemas que influenciam na saúde de uma forma geral.
A saúde mulher negra, aliás, já foi bastante debatida no país, pelo próprio
Ministério da Saúde, o qual, trazendo a tona o conceito de “doenças raciais”, lançou
no ano de 1996, o Programa de Anemia Falciforme, entre outros nos anos
seguintes, segundo informa Demétrio Magnoli.145 Este autor, contudo, faz severas
críticas às atitudes estatais, ao classificar doenças relacionadas aos negros, como,
por exemplo, a anemia falciforme, sob o fundamento de que, simplesmente, raça
não existe, conforme amplamente comprovado pelos mapas genéticos.146
141 Ibid, p. 16. 142 ROCHA, 2009, p. 354 e 355. 143 Idem, p. 359. 144 PAGER, Devah. Medir a discriminação . Revista de Sociologia da USP, vol. 18, nº 2, São Paulo, nov. 2006, p. 67. 145 MAGNOLI, 2009, p. 344. 146 Ibid, p. 341.
57
A anemia falciforme, contudo, embora comum entre os povos negros,
advindos ou não do continente africano, não pode ser classificada como doença de
negros e nem como doença africana, pois se trata, na realidade, de uma “doença
geográfica”, que resultou de uma “bem-sucedida estratégia evolucionária humana
para lidar com a malária causada pelo Plasmodium falciparum”, informa Magnoli.147
Portanto, é descabido classificar doenças adotando critérios raciais, sob o
risco de estar agindo, de maneira discriminatória, em assunto relacionado à “saúde
dos negros”. Por outro lado, há que se ter em conta que embora a anemia falciforme
não seja considerada uma doença relacionada à raça, ela existe e, assim como
outras doenças, fazem das mulheres negras vítimas de um sistema de saúde
precário, sendo deixado de lhes oferecer a devida atenção para o tratamento.148
Além do mais, a negra também na saúde é vítima de discriminação dentro
dos próprios serviços oferecidos, ao receber atendimento descortês e humilhante
pelos profissionais desta área. É comum o relato de atendimento hostil, o qual gera
nestas mulheres sensação de invisibilidade social, tornando o sofrimento ainda
maior, ao somar a dor da própria doença com a dor que as afeta intimamente.149
A fragilidade do sistema de saúde também é verificada em relação ao
conhecimento precário que as mulheres negras têm em relação à própria fisiologia
reprodutiva, e as formas de anticoncepção. O acesso das mulheres negras à
assistência obstétrica (pré-natal, parto e puerpério) é também inferior em relação às
demais mulheres.150
Ocorre no país uma baixa qualidade de serviços de saúde em relação à
mulher negra, citando, como exemplo, a inadequado atendimento de puérperas.
Informa esta autora que além da falta de cordialidade, há uma baixa utilização de
anestesia no parto vaginal. O acesso a este procedimento é maior às mulheres
brancas do que às negras, refletindo atitudes discriminatórias inclusive na área de
saúde.151
147 Ibid, 341. 148 CORDEIRO, 2007, p. 72. 149 Ibid, p. 72. 150 OLIVEIRA, Fátima. Saúde da população negra : Brasil ano 2001. Brasília Organização Pan-Americana da Saúde, 2003, p. 160. 151 CORDEIRO, 2007, p. 21.
58
O acesso a determinados tipos de exame como, por exemplo, os exames
preventivos do câncer de mama, mamografia e exame do colo do útero
(Papanicolau) também reflete a discriminação. A proporção de atendimentos
realizados a população de brancos é significativamente maior que a de negros,
tendo sido constatado, ademais, que enquanto 19% das mulheres brancas nunca
haviam feito tal procedimento, o índice é de 32,6% para mulheres negras.152
O diferente acesso aos serviços de saúde é, certamente, um dos pontos que
contribuem para o maior adoecimento e menor esperança de vida da população
negra. Segundo dados do IPEA, no ano de 2011, a população negra, em
comparação à população branca, tende a se concentrar um pouco mais nas faixas
mais jovens. Enquanto 42,6% das mulheres negras tinham até 24 anos, as brancas,
na mesma faixa de idade, correspondiam a 37,1% da população.153
De outro lado, a mesma pesquisa verificou que, como reflexo da precariedade
do sistema de saúde para com a mulher negra, foi constatado que estas, com 60
anos ou mais de idade representavam 10,3% do total, enquanto que as mulheres
brancas alcançaram 14%, representado, portanto, uma menor expectativa de vida
para a população negra em comparação à branca.154 Segundo Fátima Oliveira, a
população negra tem uma expectativa de vida 6 anos inferior à população negra (64
e 70 anos, respectivamente).155
No Brasil, a expectativa de vida da mulher negra é de 66 anos, enquanto a da
mulher branca é de 71 anos, sendo que aquela tem 25% a menos de chance de
chegar aos 75 anos como esta. Convém ressaltar, ainda, que a taxa de mortalidade
infantil das crianças negras é de 62,3%, enquanto a das brancas 37,3%, segundo
informa aquela mesma autora.156 Portanto, as diferenças de tratamento encontradas
no sistema de saúde refletem diretamente na população negra feminina no país.
Além do mais, outras diferenças podem ser encontras no tocante à população
negra, como na distribuição de renda. Tatiana Dias Silva observa, primeiramente,
152 Ibid, p.22. 153 MARCONDES, Mariana Mazzini et al. Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 22. 154 Ibid, p. 23. 155 OLIVEIRA, 2003, p. 19. 156 Ibid, p. 19.
59
que a desigualdade dos rendimentos está relacionada, sobretudo, ao pertencimento
racial. Informa a autora que a participação da população negra nos estratos
inferiores é sempre maior que o dobro da participação branca, aqueles
representando 52% com rendimentos igual ou superior a um SM per capta (não
pobres), e 74% vivenciando a extrema pobreza, do total de contingente.157
Em relação ao acesso a bens de consumo e exclusão digital, segundo Layla
Daniele Pedreira de Carvalho, houve uma notável evolução ao longo das últimas
décadas, em razão, provavelmente, também da estabilidade econômica do país.
Como consequência, verificou-se uma diminuição das desigualdades sociais, e,
consequentemente, das desigualdades raciais,158 visto que a população negra é
quem compõe a base da pirâmide social brasileira.
Destaca-se que um fator considerado importante na (e pela) sociedade atual
é o acesso a internet, seja nas trocas de informações como na geração de
conteúdos, nos mais variados segmentos. Contudo, a população negra, do Brasil,
ainda mantem-se em níveis inferiores se considerados à média nacional. Segundo
Layla Daniele Pedreira de Carvalho, 60% desta população permanecem excluídos
dos meios digitais de comunicação, diminuindo, desta forma, as chances para uma
inserção mais igualitária na economia nacional.159
O acesso à escola significa, de uma forma geral, também uma oportunidade
de diminuir as desigualdades ocorridas no país, principalmente em relação à
população de negros. É na inserção escolar que ocorre um importante momento de
socialização do indivíduo, mas que, por outro lado, também são verificadas atitudes
discriminatórias de reprodução de estereótipos, segregações, atingindo duramente
esta população.
Ressalta-se que a situação dos negros no Brasil, como já verificado, foi
marcada por grande opressão. Maria Ligia de Oliveira Barbosa informa que no ano
de 1835, era vedado, por lei, a matrícula de escravos em qualquer escola, inclusive 157 SILVA, Tatiana Dias. Mulheres negras, pobreza e desigualdade de renda. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 115. 158 CARVALHO, Layla Daniele Pedreira. A concretização das desigualdades: disparidade de raça e gênero no acesso a bens e na exclusão digital. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 83. 159 Ibid, p. 102.
60
a primária. Antes da abolição da escravatura, portanto, os negros/escravos recebiam
educação somente em casa, no espaço privado, sendo a educação formal, assim,
privilégios da população branca.160
A mesma autora trás um interessante resultado de pesquisa realizada entre
alunos brancos e negros em relação ao quesito qualidade escolar: alunos negros
que estudaram em escolas de boa qualidade tiveram um desempenho melhor, em
testes de matemática e português, do que alunos brancos que estudaram em
escolas de má qualidade. Isto confirma a igual capacidade de aprendizagem entre
ambos por um lado, e de outro que a qualidade escolar é de fundamental
importância no aprendizado dos alunos.161
Portanto, tão importante quanto o acesso à instituição escolar, é a presença
de qualidade no ensino direcionada aos alunos, sejam brancos ou negros. Mas
outros fatores também devem ser observados, como, por exemplo, o material
didático utilizado em salas de aula, os quais, muitas vezes, trazem como referência
de modelo bem sucedido indivíduos geralmente brancos. Além do mais, alguns
livros fazem, inclusive, apologia ao racismo, contribuindo no afastamento e até na
desistência escolar pelo aluno negro.
As taxas de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais, entre anos de
1993 e 2003, embora tenha apresentado quedas significativas, caindo de 16,4%
para 11,6%, não foi suficiente para diminuir as disparidades escolares na população.
No ano de 2003, o número encontrado de indivíduos brancos, maiores de 15 anos,
analfabetos, foi de 7,1%, e já de indivíduos negros foi de 16,8%, representando mais
que o dobro daqueles, segundo informações do IPEA.162
Em pesquisa mais recente, no tocante ao período de estudos, foi observado
que a média de anos da população com 15 anos ou mais de idade aumentou de 5,5
anos, em 1995, para 7,5 anos, em 2009, significando aumento de apenas 2 anos no
160 BARBOSA, 2005, p.10. 161 Ibid, p. 12. 162 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 1ª edição. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf>. Acesso em 20 abr. 2014.
61
período. E, da mesma forma, também em relação à população negra, houve uma
pequena elevação de 2,4 anos no mesmo intervalo, conforme dados do IPEA.163
Mas há um fator que pode ser decisivo na permanência escolar: a expectativa
da própria família em relação ao desempenho escolar, segundo Maria Ligia de
Oliveira Barbosa. A autora informa que em pesquisa realizada ficou demostrado que
as crianças negras, no Brasil, costumam ser objeto de avalição menos positiva por
parte de suas genitoras, inclusive em relação a esperança quanto ao número de
anos de escolarização de seus filhos.164
Outro motivo que pode ser atribuído à baixa permanência nas instituições
escolares, segundo a mesma autora, seriam as próprias práticas docentes. Uma
observação etnográfica demonstrou que o tratamento dispensado pelas professoras
aos alunos ocorria de forma desigual, e não apenas na educação infantil, sendo
verificado nos diversos níveis tratamento mais favorável e acolhedor em relação ao
aluno branco, em expressa atitude discriminatória em relação ao negro.165
Em relação a presença da população negra nas Universidades, segundo
dados do IPEA, no ano de 2009, a taxa de escolarização no nível superior da mulher
era de 16,6%, e do homem 12,2 %. A taxa de escolarização das mulheres brancas
era 23,8%, enquanto das mulheres negras a taxa é de apenas 9,9%, confirmando a
existência de significativa desigualdade racial também nesta modalidade de
ensino.166
Ressalta-se, todavia, que na análise do referido resultado há que se levar em
conta a políticas públicas estatais adotadas, em razão de pressões sociais ocorridas
na metade de 1990, por mais vagas no ensino superior. Segundo Edilza Correa
Sotero, isto gerou a criação de modelos diversos de ações afirmativas nas
163 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 4ª edição. Disponível em: Acesso em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014. 164 BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. As relações entre educação e raça no Brasil: um objeto em construção. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas b rasileiras . Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.13. 165 Ibid, p. 13. 166 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 4ª edição. Disponível em: Acesso em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014.
62
instituições públicas. Além do mais, no ano de 1995, foi introduzido pelo governo
federal o Programa Universidade para Todos (PROUNI) em instituições privadas,
permitindo, neste contexto, o ingresso de mais alunos negros no ensino superior.167
Ainda que o acesso ao ensino superior tenha melhorado, sobretudo a partir
dos anos 1970 (quando houve maior acesso pelas mulheres), e nos anos 1990,
(facilitando o acesso da população negra, em razão tanto da estabilidade da moeda,
como pela adoção de políticas governamentais), há desigualdade em relação às
opções profissionais. Segundo observam Kaizô Iwakami Beltrão e Moema de Poli
Teixeira, os homens brancos continuam a dominar as carreiras de mais alto prestígio
e status social.168
Segundo estes autores, em relação à divisão de carreiras por gênero, aquelas
consideradas femininas estariam relacionadas com o prolongamento das funções
domésticas (ensino, cuidado e serviços), enquanto as consideradas masculinas a
manutenção de maquinários e objetos técnicos. Em relação à divisão de carreiras
por cor, entretanto, verifica-se que os homens negros tendem a realizar o mesmo
tipo de atividades executadas por mulheres brancas, sendo verificado que quanto
mais feminina for a carreira, maior a proporção indivíduos negros.169
Rafael Guerreiro Osório atribui às divisões de carreiras em relação aos
indivíduos brancos e negros à diferença educacional havida entre eles. Além do
mais, há que se levar em conta, também, que a posição social dos negros, ao
ingressarem no mercado de trabalho, em geral já está consolidada, restando grande
chance de encontrarem apenas ocupações relacionadas as atividades manuais de
baixa qualificação e remuneração, tanto para mulheres como para homens
negros.170
167 SOTERO, Edilza Correia. Transformações no acesso ao ensino superior brasileiro: algumas implicações para os diferentes grupos de cor e sexo. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 43. 168 BELTRÃO, Kaizô Iwakami; TEIXEIRA, Moema De Poli. Cor e Gênero na seletividade das carreiras universitárias. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas b rasileiras . Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.143. 169 Ibid, p. 174. 170 OSORIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. A geração 80: um documentário estatístico sobre produção das diferenças educacionais entre negros e brancos. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras. Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.22.
63
Em relação à diferença de carreiras exercidas entre mulheres brancas e
negras, nota-se discrepância ainda maior, ainda que tenha havido avanços
educacionais, o movimento para melhores ocupações ocorre com as mulheres
brancas. 171 As mulheres negras, provenientes de classes mais pobres, em sua
maioria, acabam por se dirigir aos empregos domésticos, enquanto que as
pertencentes da classe média se voltam para a prestação de serviços, tanto em
áreas administrativas, como de saúde e educação.
A profissão de empregada doméstica, sendo uma profissão que independe de
qualificação, embora exija esforço físico, representa um meio para as mulheres que
vivem em condição social precária para obter renda. E consequentemente, segundo
asseveram os autores, entram estas mulheres na ciranda do consumo, torna-se um
meio também pelo qual geram para si mesmas a aparência de uma vida a qual elas,
provavelmente, estão fadadas a não viver. 172
Mas não são apenas as mulheres negras, com precária condição social, que
sofrem discriminação. Há casos de mulheres que, mesmos possuindo renda,
também são vítimas deste fenômeno, conforme noticiado pelo jornal Gazeta do
Povo, sob o título: “Porta fechada para a discriminação”. A funcionária pública Ana
Claudia Oliveira relata que, por diversas vezes, não conseguiu fechar contrato de
locação, exatamente na etapa final, quando já restava superado o requisito renda
(sendo concursada possui garantia de remuneração mensal).173
Ana Claudia Oliveira comenta, também, que ouviu relatos de pessoas negras
que pediram para que outras pessoas intermediassem a locação, a fim de evitar a
situação por ela enfrentada.174 Tais fatos demonstram, deste modo, que a
discriminação racial no país nem sempre é observada de forma direta, sendo
interessante, portanto, a realização de estudos baseados também em notícias de
jornal, conforme assevera Carlos Hasenbalg.175
171 LIMA, 2013, p.56. 172 CARNEIRO, 2009, p.141. 173 Jornal Gazeta do Povo, edição de 15 de maio de 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/imobiliario/conteudo.phtml?id=1372615&==tit=Porta-fechada-para-discriminacao>. Acesso em 28 abr. 2014. 174 Ibid. 175 GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Entrevista com Carlos Hasenbalg. Revista Tempo Social, SãoPaulo, v.18, n.2, Nov. 2006.Disponívelem:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010320702006000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 30 Apr. 2014.
64
2. A DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA NA RELAÇÃO DE
EMPREGO
2.1 TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO EM FACE DA MULHER NEGRA NA RELAÇÃO
EMPREGATÍCIA
O trabalho pode ser considerado um meio pelo qual os indivíduos podem
superar a situação de pobreza e alcançar condições de vida digna. Nesta
perspectiva, o trabalho remunerado torna-se uma necessidade social, uma forma de
garantir a manutenção própria e familiar, mas que também pode significar uma
necessidade política nos caso das mulheres, dado o contexto histórico e social em
que foram inseridas no mercado de trabalho.
A participação feminina no mundo do trabalho, perpassando pelo processo de
globalização e ajustes estruturais, apresenta-se bastante heterogênea, estando
presente em diversas atividades e setores. O perfil da força de trabalho feminino,
entretanto, é marcado pela forte presença cultural, a qual exerce influência em
relação à execução de determinadas funções, como o trabalho doméstico, por
exemplo, o que acaba por gerar uma dupla jornada de trabalho, sobrecarregando
demasiadamente as trabalhadoras em geral.
Thereza Cristina Gosdal observa que, embora a mulher, a partir do século XX,
tenha sido integrada ao trabalho, o núcleo central de sua identidade social continuou
sendo sua função de mãe e esposa176, ou seja, permaneceram a elas as
responsabilidades domésticas e reprodutivas. Tais atribuições, vistas como
diferenças no capítulo primeiro, acabam por gerar discriminações de gênero no
ambiente de trabalho.
Assevera Antonio Casemiro Ferreira, ademais, que embora existam normas
laborais positivas que visam a assegurar a proteção a determinados grupos, elas
176 GOSDAL, 2003, p. 74.
65
acabam não tendo a devida efetividade, ao não assegurar a proteção esperada,177
como no caso das mulheres (licença maternidade), por exemplo, as quais podem
significar contraditoriamente motivo para a ocorrência de atitudes discriminatórias no
meio laboral.
A caracterização de um ato discriminatória no ambiente de trabalho, segundo
José Claudio Monteiro de Brito, ocorre quando é negada ao trabalhador a igualdade
necessária na aquisição e manutenção do emprego. Na relação de emprego é
verificada, além do mais, a condição ideal para quem irá discriminar, visto que nela
há uma sujeição de um indivíduo por outro, portanto, uma relação de poder onde
facilmente podem ocorrer práticas discriminatórias.178
Ademais, onde há uma relação de poder, geralmente há um estado de
subordinação, o qual, somando-se às características do contrato de trabalho
(pessoal e de trato sucessivo), pode ensejar situações propícias à ocorrência de
práticas discriminatórias, ofensivas aos direitos de igualdade e à dignidade da
pessoa do empregado.
No entanto, nem sempre práticas discriminatórias são verificadas apenas
durante a relação empregatícia. A discriminação pode ser ocorrer até mesmo antes
da própria relação de emprego, atingindo certos grupos de pessoas, como por
exemplo, mulheres e negros, os quais podem ter acesso obstado inclusive a certos
postos de trabalho.179 Verifica-se, atualmente, muitos casos onde há a ocorrência de
impedimento na aquisição do emprego em si, caracterizando atitude discriminatória.
A discriminação no meio laboral, portanto, pode ocorrer sob as mais variadas
formas e em momentos diversos. As condutas discriminatórias intentadas em
desfavor das mulheres, em geral, mas, principalmente, em relação às mulheres
negras, são as mais difíceis de ser comprovadas, tendo em vista tanto a reprimenda
legal como, especialmente, a reprimenda social. Na sociedade contemporânea não
é mais comum revelar preferências, e nem demonstrar explicitamente o racismo.
177 FERREIRA, Antonio Casemiro. Para uma concepção decente e democrática do trabalho e dos seus direitos: (Re)pensar o direito das relações laborais. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais . 2 ed. São Paulo – Cortez, 2002, p.286. 178 BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTR, 2002, p.43. 179 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilícitos. Curitiba: 2009, p. 118.
66
Segundo informa Ana Emilia Andrade Albuquerque da Silva, o Brasil foi a
segunda maior nação escravista da era moderna, perdendo apenas para os Estados
Unidos, tendo sido o maior importador de escravos (40% do total conhecido).
Durante quase cinco séculos foram trazidos cerca de 4 (milhões) de negros para
executarem o trabalho na lavoura, mineração entre outros.180 O escravo além de não
ser considerado sujeito de direito, era privado do convívio social.
A mesma autora informa também que o Brasil foi o penúltimo país a abolir o
tráfico de escravos, no ano de 1850, e o último país a abolir a escravidão, em
1888.181A partir de então, o trabalhador negro, que era a força motriz da economia
nacional, passou a ser considerado preguiçoso, indolente, e sem o conhecimento
necessário para trabalhar na indústria então nascente, perdendo espaço para o
imigrante branco que recém estavam chegando ao país.
Camila Cowling observa que após a abolição, a elite temendo o perigo social
que os escravos libertos representavam, criaram escolas para educar principalmente
os filhos destes, onde quase sempre, porém, aprendiam tarefas domésticas. Tal fato
ocorreu, inclusive, porque nas famílias brasileiras não existia a domesticidade,
sendo comum todo o trabalho doméstico ser realizado exclusivamente pelos
escravos, diferentemente do que ocorria nas famílias europeias, conforme informa a
mesma autora.182
Durante ainda o período imperial (1822-1889), ressalta Flavia Fernandes de
Souza que a escravidão doméstica era mantida, aceita e muito utilizada nas
diferentes camadas sociais, podendo ser considerada como um fenômeno
disseminado nos espaços urbanos. Ademais, a presença de escravos era indicador
de status social, sendo a sua quantidade considerada como um elemento
identificador do grau de poder, riqueza e prestígio de certas famílias durante aquele
período.183
180 SILVA, Ana Emília Andrade Albuquerque da. Discriminação racial no trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 55. 181 Ibid, p. 57. 182 COWLING, 2012, p. 220. 183 SOUZA, Flavia Fernandes de. Escravas do lar: as mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 244.
67
O número de escravos domésticos nas famílias era variável, podendo oscilar
de um a dois em famílias pobres, de cinco a seis em famílias médias e de poucas
posses, e de dez ou mais cativos em núcleos médios menos abastados, informa a
mesma autora. E já nas famílias mais ricas, de mais posses, havia cerca de vinte ou
mais escravos, sendo a maioria alocada para o trabalho doméstico, ocupação esta
que representava a maioria dos escravos, sendo as mulheres o segmento
majoritário.184
Acerca do período pós-abolição, Sonia Maria Giacomini observa que não
houve espaço para a “pacífica coexistência” entre senhoras e escravos, assim como
também não houve muito espaço para a “solidariedade feminina” e, muito menos,
para a emergência de uma “escrava livre enquanto mulher.” Embora estas mulheres,
no âmbito do cativeiro, pudessem ser consideradas muito mais independentes do
ponto de vista econômico que as mulheres brancas, assevera a autora.185
A libertação dos escravos, ademais, não representou para eles a liberdade
efetivamente, e muito menos, a equiparação entre brancos e negros. O grande
contingente de trabalhadores domésticos se manteve, representando no período
pós-abolição, cerca de 14% da população trabalhadora contabilizada e classificada
em diferentes ocupações, ficando atrás somente da categoria denominada “sem
profissão” ou de ocupações “desconhecidas”. Após, vinham outras categorias, como
“manufaturas”, e do “comércio”.186
A dependência econômica, portanto, continuou e as atitudes e
representações socias que regulavam as relações entre as raças somente foram aos
poucos se modificando. Com efeito, Sonia Maria Giacomini ressalta que é a
ocorrência da desmistificação dos papéis atribuídos à mulher negra, na época da
escravidão, que pode levar a um questionamento do discurso dominante sobre a
condição da mulher negra na atualidade.187
184 Ibid, p. 246. 185 GIACOMINI, 2013, p. 104. 186 SOUZA, Flavia Fernandes de. Escravas do lar: as mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 244. 187 GIACOMINI, 2013, p. 105.
68
Sonia Maria Giacomini observa que embora a escravidão tenha acabado,
teria restado a presença de suas heranças no “bojo das relações burguesas e
capitalistas”. Segundo a autora, a mulher negra assalariada hoje, grande parte na
condição de empregada doméstica, ou babá de família burguesa e pequeno-
burguesa, confirma a imensa capacidade das classes dominantes de incorporar
privilégios antigos que lhes são próprios188, encobrindo práticas discriminatórias.
A discriminação no mercado de trabalho, segundo Silvia Carine Tramontin
Rios, pode ocorrer de forma direta (quando ela é intencional e consciente), indireta
(quando há uma conduta velada), e oculta (similar à indireta, diferenciando-se
quanto à intencionalidade, sendo nesta forma consciente). A autora ressalta,
todavia, que estas duas últimas formas de discriminação (indireta e oculta) são as
mais difíceis de comprovar quando assim as empresas estão agindo.189
Estevão Mallet, em um entendimento similar em relação à discriminação racial
havida no mercado de trabalho, observa que ela costuma apresenta-se de forma
oculta, disfarçada, e, por vezes, dissimulada, o que a torna ainda mais grave, e, pior,
de difícil identificação e combate.190
A não identificação da discriminação, assim como a concepção de que o
Brasil é uma sociedade desracializada, sem desigualdades, sem distinções sociais,
hierárquicas e econômicas, pautadas nas diferenças fenotípicas, resulta na
sedimentação de um racismo disfarçado, sem rosto nem sanção. Este é o primeiro
óbice a ser ultrapassado na árdua luta contra a discriminação racial no País,
especialmente no mercado de trabalho.
Destarte, diante de dificuldade em averiguar a ocorrência de práticas
discriminatórias em face das mulheres negras, no mercado de trabalho (inclusive
doméstico), nos momentos em que ela pode ocorrer (seja na fase pré-contratual,
como no curso do contrato) lança-se mão de verificação de dados fornecidos em
institutos de pesquisas do país, a fim de localizar tais práticas no âmbito laboral.
188 Ibid, p. 105. 189 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos . Curitiba: 2009, p. 122. 190 MALLET, 2013, p.40.
69
2.1.1 Discriminação na fase pré-contratual
A fase pré-contratual, no âmbito do emprego, é aquela que antecede a
assinatura do contrato de trabalho, consistindo para a empresa o recrutamento e
seleção, e para o indivíduo, a candidatura do emprego. E é neste momento em que,
embora não exista formalmente uma relação de emprego, várias práticas adotadas
no processo de seleção do trabalhador podem configurar condutas discriminatórias.
O período pré-contratual consiste no momento em que a atividade
empresarial busca indivíduos com as características necessárias para integrá-las,
representando, por isso, um momento decisivo para a inserção ou não ao trabalho.
Mas não significa, por outro lado, que o empregador está obrigado a contratar quem
se candidata, sendo, para tal faculdade, estabelecidos limites.
Observa-se que ao mesmo tempo em que há a liberdade de contratar, há
limites para o poder de quem oferta o emprego. No momento pré-contratual, este
deve avaliar somente a capacidade profissional do candidato. Contudo, se ocorrer
de forma diversa, o ofertante estaria extrapolando o poder para obter dados sem
relação com a atividade laboral a ser exercida, incorrendo em ato discriminatório.191
Diversas condutas discriminatórias podem ocorrer nesta fase contratual, como
a exigência de exames relativos à esterilização ou estado de gravidez, quando na
admissão de mulheres; e, de forma geral, quando há arguições pessoais objetivando
obter informações relacionadas a crenças religiosas, estado de saúde, situação
familiar, orientação sexual, entre outros, além das questões ligadas à estética e
aparência física (incluindo aí a “cor da pele”) dos candidatos à vaga de emprego.192
A despeito de todo o aparato de proteção e do que dispõem as normas
internacionais, as discriminações estão presentes no mercado de trabalho. Em face
das dificuldades encontradas pelo indivíduo que procura uma colocação no mercado
de trabalho, surgem as oportunidades do empregador, movido pelo preconceito e
discriminação, violar o seu direito fundamental ao trabalho.
191 MARQUES, Christiani. O contrato de trabalho e a discriminação estética. São Paulo: Ltr, 2002, p. 36. 192 Conforme prevê a Lei 9.029, de 13 de abril de 1995, que proíbe práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.
70
Observa Sandra Lia Simon que na fase pré-contratual se revela uma situação
de vulnerabilidade do empregado, que dispõe de sua força de trabalho e necessita
do emprego para sustento próprio familiar, em relação ao empregador, o qual é
detentor de meios de produção. E este impõe, normalmente, as condições
estabelecidas no contrato, se assemelhando a um contrato de adesão, na busca de
seus interesses privados.193
Mas embora a atividade empresarial conte com a liberdade econômica,
pautada no sistema capitalista, a observância de preceitos de proteção e valorização
da pessoa humana se impõe. Assim, faz-se necessária a preocupação com
eventuais critérios discriminatórios que possam permear o processo seletivo.
A mera apresentação de critérios objetivos durante um processo seletivo,
contudo, não é suficiente para descaracterizar uma atitude discriminatória, pois
critérios subjetivos podem estar escondidos, camuflados, caracterizando a hipótese
de discriminação oculta. Em tal ato não é revelada a real intenção do avaliador,
podendo ocorrer quando, por exemplo, há anúncio de vaga sem discriminação de
sexo ou cor, mas a real intenção é a de contratação de pessoa branca.
Ressalta Luciano Augusto de Toledo Coelho que, se as tratativas pré-
contratuais contrariarem os deveres que a boa-fé impõe, poderá dar ensejo a danos,
tanto ao empregador quanto ao empregado. E tal fato pode advir de condutas
realizadas (através de anúncios e solicitação de exames), ou pela não realização do
próprio contrato, assevera o autor.194
Na fase pré-contratual não se vislumbra a subordinação entre as partes,
considerada um dos elementos da relação de emprego. Assim, para apurar se uma
conduta foi ou não razoável, é necessária a contextualização entre a exigência do
ofertante e a necessidade real para preenchimento de vaga no pretenso emprego,
como por exemplo, quando há exigências que não tenham relação com a finalidade
da atividade profissional, caracterizando indício atitude discriminatória.
193 SIMÓN, Christiani. A proteção constitucional da intimidade e da vida p rivada do empregado. São Paulo: LTr, 2000, p. 129. 194 COELHO, Luciano Augusto de Toledo. Responsabilidade civil pré-contratual em direito d o trabalho. São Paulo, LTr, 2008, p. 42.
71
Ademais, ressalta Eduardo Milleo Baracat que a responsabilidade pré-
contratual, dentre outras situações, decorre dos deveres de proteção. Consiste ela
em um dever das partes em não causar danos diretos ou indiretos durante as
tratativas preliminares do contrato, por meio da observância da conduta de boa-fé,
permitindo, desta forma, evitar condutas discriminatórias.195
No entanto, a ocorrência de atos lesivos à pessoa do trabalhador, fundados
em condutas ilícitas que configurem discriminação, pode dar ensejo ao direito à
reparação, uma vez que, ao dificultar o acesso ao mercado de trabalho, se mostram
impeditivos do direito a igualdade de oportunidades que deve ser garantido a todos,
independentemente de gênero ou raça, inclusive.
Firmino Alves Lima informa que, nos Estados Unidos da América, a agência
do governo Equal Employment Opportunity Comission, encarregada de combater a
discriminação no mercado de trabalho, estabelece diretrizes para os empregadores.
Tais diretrizes, além de orientar os empregadores, também são utilizadas como
auxiliares em decisões judiciais que envolvam condutas discriminatórias.196
O acesso das mulheres e negros ao mercado de trabalho, no Brasil, é
pautado por grande desvantagem histórica. Mesmo antes do capitalismo, quando
havia outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, esta divisão
era marcada pela relação entre produção e reprodução. Coexistindo com essa
divisão, há uma desigualdade racial, advinda do período escravo ocorrido no país.
No entanto, o processo histórico de inserção social especificamente das
mulheres, como trabalhadoras, não é o mesmo entre mulheres brancas e negras.
Para estas, além da problemática de gênero, há a questão da desigualdade racial
verificada no país. Nesta perspectiva, o mercado de trabalho, para as mulheres
negras, torna-se um locus de lutas e tensões entre a inserção desigual e a
transformação social, segundo assevera Maria Betânia Ávila.197
195 BARACAT, Eduardo Milleo. A boa-fé no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 225. 196 LIMA, Firmino Alves. Teoria da discriminação nas relações de trabalho . Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 220. 197 AVILA, Maria Betânia. Reflexões sobre a Desigualdade de Gênero e Raça no Mercado de Trabalho. In: Autonomia econômica e empoderamento da mulher: textos acadêmicos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 193.
72
Conforme anteriormente informado, cabível repetir que em análise de dados
fornecidos pelo IBGE, contendo microdados Pnad por atividade no mercado de
trabalho, no ano de 2006198, em relação às cinco principais ocupações das
mulheres, verificou-se entre as mulheres brancas que: 33,0% estavam empregadas
no setor privado (com carteira assinada), 13,5% empregadas no mesmo setor (sem
carteira); 13,3% exerciam atividade considerada por conta própria (sem 3º grau),
9,9% empregada pública/estatutária/militar, e 9,0% empregada doméstica (sem
carteira).
Em relação ao trabalho das mulheres negras, a mesma pesquisa mostrou
que: 22,0% estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 16,6%
trabalhavam como empregada doméstica (sem carteira), 15,9% exercia atividade
considerada por conta própria (sem 3º grau), 14,2% empregadas no setor privado
(sem carteira assinada), e 7,5% empregada pública/estatutária/militar. E em relação
ao emprego doméstico (com carteira), o índice encontrado foi de 5,2%.199
Evidencia-se entre as trabalhadoras brancas e negras, portanto, uma grande
diferença em relação à atividade exercida quando divididas utilizando-se o critério
racial. As mulheres negras, em especial, são as que, de forma já esperada, estão
em maior número nas atividades ligadas aos serviços domésticos, principalmente na
informalidade (sem carteira), haja vista ser uma atividade que não requer elevado
nível educacional, apenas disposição e força física.200
Pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho, aponta que
entre os dez países com maior número de trabalhadores domésticos, oito estão no
chamado mundo emergente. E o Brasil está entre estes, vindo acompanhado pela
Índia, Indonésia, Filipinas, México, Colômbia e Arábia Saudita. Por outro lado, os
países que menos possuem empregados domésticos são: Japão, Austrália, Hungria
e Montenegro, informam Edésio Passos e André Passos.201
198INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2011microdados.shtm> Acesso em 03 maio 2014, p.15. 199 Ibid, p.15. 200 Entre as trabalhadoras negras, uma em cada cinco é trabalhadora doméstica (21,8%). 201 PASSOS, Edésio; PASSOS, André. O Trabalho Doméstico e a Emenda Constitucional 72: resgate, igualdade, perdão, responsabilidade. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; MANDALOZZO, Silvana (Coord.). Trabalho doméstico: teoria e prática da Emenda Cons titucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p.80.
73
Em relação às taxas de desocupação no mercado de trabalho brasileiro, no
período de 1995 e 2009, observa-se que a taxa de desemprego feminina é maior
que a masculina, tanto entre brancos e negros. Segundo asseveram Márcia Lima,
Flavia Rios e Danilo França, este resultado decorre da crescente disputa por postos
de trabalho entre mulheres e homens, em especial no setor de serviços. Estes
autores atribuem o desemprego feminino à existência de maiores oportunidades de
trabalho para os homens, mesmo em setores tradicionalmente favoráveis às
mulheres.202
O Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial - INSPIR solicitou ao
DIEESE que elaborasse um estudo da presença da população negra no mercado de
trabalho metropolitano, o qual, desde 2000, vem publicando no dia da Consciência
Negra (20 de novembro) estatísticas sobre a população negra no mercado de
trabalho. Nessas pesquisas, do período entre 1996 a 2004, também ficou
demonstrado que a taxa de desemprego da população negra é mais elevada.203
A mesma pesquisa revelou que naquele período o tempo de procura por
emprego aumentou vertiginosamente. Um negro levava, em média, 15 meses para
conseguir um emprego, lapso bem maior que para a população não-negra. A
diferença é ainda maior, contudo, quando o corte acresce, além da raça, a questão
de gênero, pois entre as mulheres negras a média de procura é de 17 meses; já
entre os homens negros, este tempo cai para 13 meses.204
As mulheres negras são as que apresentam maiores taxas de desocupação,
seguidas pelas mulheres brancas, em terceiro lugar os homens negros, e, por fim,
os homens brancos. A maior taxa de desocupação das mulheres ocorre, em parte,
em razão de sua trajetória diferenciada em termos de inserção no mercado de
trabalho, dada, inclusive a tarefa de conciliar o trabalho remunerado e as atividades
domésticas, observam Márcia Lima, Flavia Rios e Danilo França.205
202 LIMA, 2013, p.66. 203 DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDO SOCIOECONOMICOS –DIEESE. Disponível em:<http://projetos.dieese.org.br/projetos/inspir/relatorioPesquisa.pdf>. Acesso em 04 maio 2014, p. 157. 204 Ibid, p.159. 205 Ibid, p.67.
74
Além do mais, as mulheres negras ingressam mais cedo do que as brancas
no mercado de trabalho, e tendem a sair mais tarde. A entrada precoce no mundo
do trabalho, e a consequente necessidade de conciliar trabalho e estudo, leva não
só a taxa de abandono escolar mais elevada entre os negros em geral, mas também
a piores performances no sistema educacional, que, somadas às manifestações
racistas, acabam desestimulando os jovens negros a permanecerem na escola e os
coloca em situação de desvantagem perante seus colegas brancos. 206
Além de ingressarem mais cedo no mercado de trabalho, as mulheres negras
enfrentam maior jornada de trabalho, pois os postos normalmente elas ocupam
exigem maior número de horas de permanência. Além do mais, embora tenha
ocorrido um aumento da participação feminina na força de trabalho, a sua rotina é
acrescida das “obrigações” domésticas que ainda não são divididas no âmbito
familiar, influenciando na qualidade de vida destas trabalhadoras.
Por fim, é possível constatar que tanto na inserção no mercado de trabalho,
como nos níveis de desemprego ocorrido na população brasileira, especialmente
entre os negros, a escolarização tem papel fundamental. Mas também é importante
destacar que as manifestações racistas que permeiam a sociedade, ainda que
considerada velada, certamente geram atos discriminatórios no meio laboral,
exercendo grande influência nos números encontrados nestas pesquisas realizadas.
Observa-se que, inobstante a existência de normas tanto no âmbito
internacional, como nacional, que vedam a discriminação racial nas relações de
emprego, as práticas discriminatórias em face da mulher negra ocorrem de diversas
maneiras na fase pré-contratual.
As trabalhadoras negras, conforme visto, embora tenham apresentado uma
elevação no ingresso ao mercado de trabalho (PEA), no período de 1995 a 2006,
elas ainda permanecem em desvantagem em relação ao trabalhador negro e à
trabalhadora branca. Foi verificado que ocorrem restrições a elas em determinados
postos de trabalho, por questões de gênero e raça.
206 INSTITUTO BRASILERIO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IPEA. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf>. Acesso em 03 maio 2014.
75
Ademais, além de ingressarem mais cedo no mercado de trabalho, e saírem
mais tarde, elas ainda representam o maior número de desocupados, confirmando a
perversa discriminação ocorrida na fase pré-contratual em relação às negras.
2.1.2 Discriminação no curso do contrato
A fase contratual da relação de trabalho compreende o período que decorre
do termo de início do contrato de trabalho até o momento anterior à sua extinção. O
empregador, durante essa fase, tem o dever de respeitar a dignidade de pessoa do
empregado207 e as condições de realização do trabalho, que atinem ao princípio da
boa-fé contratual. Observam Rafaela Correa Leite e Silvia Carine Tramontin Rios
que é exigida do empregador, quando da utilização dos métodos na seleção de
pessoal, uma atitude lícita, diante da inexistência de previsão legal.208
Contudo, na execução do contrato são observadas muitas situações que
constituem descumprimento das obrigações emergentes da relação trabalhista,
sobretudo em decorrência do exercício abusivo do poder, gerando circunstâncias
propícias às discriminações no curso do contrato de trabalho, como por exemplo, em
relação à ascensão profissional, remuneração diferenciada e a dispensa.
Para Firmino Alves de Lima são inúmeras as situações em que o empregador
ou tomador de serviços pode incorrer em atitudes discriminatórias durante o contrato
de trabalho, como quando deixa de conceder os mesmos benefícios a alguns
trabalhadores, ou quando aplica cargas de ônus, de forma desproporcional, aos
empregados. O autor observa que algumas atitudes mais severas podem até
configurar o assédio moral vertical, como quando o empregado é colocado sem
importância para a atividade funcional perante os mais colegas, por exemplo.209
207 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil . Art. 1º, III. Brasília, DF, 05 out 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 04 maio 2014. 208 LEITE, Rafaela Correa; RIOS, Silvia Carine Tramontin. Durante a Contratação. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos. Curitiba: 2009, p. 169. 209 LIMA, 2011, p. 222.
76
Na atual sociedade, capitalista, salarial, a forma preponderante de garantir
renda para sobrevivência é por meio do emprego. Assim, um trabalho remunerado,
preferencialmente formalizado, é uma necessidade social e também política para as
mulheres, tanto para a própria manutenção e/ou de sua família, como para a sua
autonomia e autoafirmação.
Assim, quando há a efetivação de um contrato de trabalho, a mulher
consegue vencer uma etapa importante para o seu acesso ao emprego, vez que
demonstra que ela está inserida no mercado de trabalho. Tal fato pode significar
que, eventuais desigualdades que poderiam influenciar de forma negativa a
contratação, foram ultrapassadas. Contudo, isso não garante a impossibilidade de
ocorrência de atos discriminatórios durante o vínculo empregatício.
As trabalhadoras são vítimas de discriminação, porquanto as relações sociais
são, por si, desiguais e hierarquizadas. Isto ocorre tanto pela exploração da relação
capital/trabalho, como pela dominação masculina sobre a feminina, retratando a
relação entre produção e reprodução. Decorre, daí, a divisão sexual do trabalho,
oriunda desta relação, transformando-se conforme a sociedade que está inserida.
Thereza Cristina Gosdal observa que a vinculação da mulher às tarefas
domésticas e ao cuidado de familiares é considerada como um fator que condiciona
a busca feminina por empregos precários, a tempo parcial ou temporário.210 O
desenvolvimento de atividades em empregos nestas condições acaba por favorecer
a ocorrência de discriminação salarial, influenciando, também, na divisão sexual das
tarefas, seja em ambiente produtivo, como no ambiente doméstico.
Observam Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira e Monica Nicknich que as
trabalhadoras, inicialmente, realizavam atividades como: domésticas, cozinheiras,
costureiras, parceiras sexuais (dos senhores da casa-grande), mineradoras e
agricultoras, tendo mudado este quadro a partir do início do século XX. Mas, mesmo
com a inserção em outras atividades, as mulheres ficavam com as tarefas menos
especializadas e mal remuneradas, tal qual ainda subsiste nos dias de hoje.211
210 GOSDAL, 2003, p. 161. 211 OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar; NICKNICH, Mônica. Uma reflexão sobre o direito das mulheres ao trabalho : a igualdade à luz da filosofia de Bobbio e o pragmatismo da singularidade
77
Atribui-se a discriminação havida em desfavor das mulheres, seja salarial ou
acerca de oportunidades, às questões inerentes ao gênero feminino, como:
gestação, maternidade e responsabilidades familiares. Tais situações decorrem da
visão patriarcal, presente na cultura nacional, que exerceu influência na concepção
do modelo produtivo, e mantém os papéis de cada gênero no âmbito familiar.
Muitas mulheres se submetem a receber baixos salários, e se contentam com
atividades consideradas inferiores, em postos de trabalho menos relevantes,
principalmente por questões econômicas. Isto ocorre, sobretudo, em relação às
mulheres negras, as quais fazem parte de um tipo de “família mais vulnerável” (sem
cônjuge e com filhos pequenos). Mas outros motivos levam a estas situações, como
baixos índices escolares, de renda, e a presença de discriminação nas relações
empregatícias.212
Hélio Santos identifica três tipos básicos de discriminação racial que podem
ocorrem durante a relação empregatícia. A primeira denomina ocupacional, que se
caracteriza pela dificuldade do trabalhador em obter vagas em funções mais bem
remuneradas e valorizadas. Tal fato é verificado quando, por exemplo, o trabalhador
negro é preterido para ocupar cargos hierarquicamente superiores dentro da
empresa. Nesta modalidade, parece haver incertezas quanto à capacidade do
referido trabalhador em executar certas tarefas.213
A segunda prática discriminatória, referida pelo autor, é a denominada
salarial. Tal prática é considerada antiga, e trás a idéia de que o trabalho do
individuo negro tem valor inferior aos demais trabalhadores. A terceira prática seria a
discriminação pela imagem, que, segundo o autor, tem embutida uma espécie de
fobia pela presença do negro. Esta pode ocorrer nos mais variados segmentos, os
quais não consideram o trabalhador negro à altura de imagem ideal que o
empregador pretende passar a sociedade.214
para Warat. In: GUNTHER, Luiz Eduardo, MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. 25 anos da Constituição e o direito do trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, p. 443. 212 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IPEA. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em 01 maio 2014. 213 SANTOS, Hélio. A baixa diversidade étnico-racial no mundo do trabalho. In: GONÇALVES, Benjamim. O Compromisso das Empresas com a promoção da Iguald ade Racial. São Paulo: Instituto Ethos, 2006, p. 20. 214 Ibid, p. 20.
78
Em todas as situações supracitadas, há claramente a presença, no fundo, do
tão contestado racismo, o qual a maioria das pessoas no país nega praticar. A rigor,
não existe um prévio acordo para a não contratação dos homens e mulheres negros.
Mas, no dia-a-dia, através do comportamento da maioria dos empregadores, quando
excluem os trabalhadores negros em geral, está subentendida a existência de uma
discriminação racial, mas que, culturalmente, tenta se passar por uma espécie de
“racismo cordial” (se é que isto é possível!).
Uma prova da discriminação racial havida no mercado de trabalho são os
insultos raciais ocorridos neste ambiente. Informa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,
que segundo uma pesquisa realizada pela Delegacia de Crimes Raciais de São
Paulo, nos anos de 1997 e 1998, os insultos aparecem na maioria das queixas
relativas à discriminação nas esferas do trabalho (36%), seguido pelas ocorrências
referente à relação de consumo de bens e serviços (24%), e por vizinhanças do
indivíduo insultado (21%).215
“Operário é indenizado após ser chamado de macaco”, foi o título de uma
matéria veiculada no jornal, no início do mês de maio de 2014, acerca de um ato
discriminatório ocorrido em face de um trabalhador negro, em uma empresa de
alimentos, na cidade de Florianópolis. O empregador foi condenado ao pagamento
do valor de R$ 15 (quinze) mil, fixado pelos desembargadores da 3ª Turma do
Tribunal Regional do Trabalho de Santa Cataria. A decisão, ressalta-se, é
definitiva.216
No entanto, a forma disfarçada como os atos discriminatórios costumam
ocorrer nas relações empregatícias, especialmente as de cunho racial, sejam na
fase pré-contratual, como durante a relação empregatícia. Mas, embora as
pesquisas demonstrem a existência de insultos no âmbito laboral, assevera Luís
Felipe Lopes Boson, que é muito raro o preconceito racial ser objeto de debate em
tribunais trabalhistas no país.217
215 GUIMARÃES, 2012, p. 199. 216 Disponível em:<http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=11146 7025&tit=Operario-e-indenizado-apos-ser-chamado-de-macaco-em-SC. Acesso em 07 maio 2014. 217 BOSON, Luis Felipe Lopes. A discriminação na Jurisprudência. In: RENAULT, Luiz Otávio Linhares, VIANA, Marcio Tulio, CANTELLI, Paula Oliveira (coord.). Discriminação. 2 ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 276.
79
O mesmo autor ressalta a possibilidade de utilização do art. 932, III, do
Código Civil, o qual prevê a responsabilização do empregador por atos de seus
empregados. Ou seja, diante de atos discriminatórios ocorridos entre empregado e o
chefe hierarquicamente imediato, por exemplo, seria possível atribuir o dever de
indenizar ao empregador. Assim, a responsabilização poderia ensejar uma maior
vigilância no interior da empresa, vindo a coibir práticas racistas, conclui o autor.218
Observa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães que os insultos raciais, utilizados
como instrumentos de humilhação, ocorrem geralmente por grupo dominante
(brancos), que ocupam melhores posições sociais em termos de poder, prestígio
social e vantagens materiais. Tal fato ocorre em relação a ambos os sexos, sendo
normalmente ao homem atribuído termos animalescos associados a qualidades
desprezíveis (“macaco safado”), acrescentando-se às mulheres a devassidão moral
e sexual (“filha de uma barata preta” entre outros).219
A despeito das injúrias, de cunho racial depreciativo, havidas no mercado de
trabalho em desfavor das mulheres negras, também é verificado outro modo de
discriminação em face das mulheres: a discriminação salarial. Em comparação aos
homens, as mulheres percebem menor contraprestação salarial por serviço
realizado, tendo recebido em média 72,3% do salário dos homens em 2011,
segundo IBGE.220
O ordenamento jurídico pátrio, de forma expressa, protege a mulher contra a
discriminação salarial. Os textos constitucionais de 1934, 1946, 1967, e 1988, e a
CLT, proíbem a diferença salarial por motivo de sexo (artigo 7º, XXX, da CF, e
artigos 5º e 373-A, III, da CLT). Além do mais, o Brasil é também signatário da
Convenção nº 100 da OIT, a qual estipula igualdade de remuneração de
trabalhadores homens e mulheres por atividade laboral de igual valor, observa Alice
Monteiro de Barros.221 No entanto, segundo mostram pesquisas, tais dispositivos
não têm sido observados no cotidiano.
218 Ibid, p. 277. 219 GUIMARÃES, 2012, p. 190. 220 Disponível em:<http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,mulheres-receberam-72-3-do-salario-dos-homens-em-2011-diz-ibge,105384,0.htm>. Acesso em 01 maio 2014. 221 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no Emprego por Motivo de Sexo. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação . 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 66.
80
A constatação de desigualdade de remuneração entre mulheres e homens é
verificada tanto de forma geral, através de estatísticas que demonstram que a
maioria das trabalhadoras possui empregos que remuneram menos que o emprego
masculino, ou de situações específicas, onde são observadas desigualdades dentro
de uma empresa. A diferença de rendimentos expressa uma síntese da situação dos
indivíduos no mercado de trabalho e da magnitude dos déficits de trabalho decente
existentes no país.
O trabalho feminino costuma ser precário, tendo como características a baixa
valoração e, consequentemente, uma menor remuneração, refletindo em ínfimos
salários. Atribui-se tal fato, de forma geral, tanto à estrutura patriarcal enraizada na
sociedade brasileira, que influenciou o modelo de produção, pautado em
características masculinas, quanto à manutenção de tarefas domésticas,
relacionadas às atividades do lar, juntamente com responsabilidades pelos encargos
com filhos e familiares.
Márcio Túlio Viana, ao tratar do aumento da desigualdade ocasionado pelo
modelo econômico de produção, assinala que a comparação entre o salário da
mulher e do homem é possível quando ambos exercem a mesma função. O autor
ressalta, todavia, que como a função exercida por mulheres corresponde a tarefas
domésticas e que, portanto, consideradas de menor valor, torna difícil haver aquela
coincidência de funções.222
Além da verificação de diferença salarial entre mulheres e homens, também é
verificada desigualdade de rendimentos entre brancos e negros. Segundo projeção
feita pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a renda da população
negra só será igual à da branca em 32 anos. Atualmente, negros ganham, em
média, 53% da renda do branco, informa a mesma pesquisa.223
Após a abolição da escravatura, surgia no país uma população livre em teoria,
porém presa a sua condição e taxação de ex-escravo, condição que por si só lhe
garantia a exclusão da estrutura produtiva de então. Ao negro foi imposta uma
realidade de ocupação das mais baixas escalas do operariado, o afastando do ideal
222 VIANA, p. 325. 223BRASIL. Senado Federal. Notícias do Senado. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/Datasenado/noticia.asp?not=12>. Acesso em 01 maio 2014.
81
de integração social. Além do mais, ao negro era atribuída natureza inferior
embasadas em teorias pseudocientíficas, a fim de legitimar a exploração econômica,
o impossibilitando de manifestar suas reais potencialidades.
Na esperança por uma remuneração em sua oferta de trabalho, tal qual ao
branco imigrante, o negro submetia-se às piores condições empregatícias,
entendendo o trabalho livre, qualificado ou não, como sinônimo de liberdade. Os
empregadores capitalistas, na busca por melhores custos, contratavam para o
trabalho os empregados que lhes fossem mais em conta. É desta forma que o ciclo
da imobilidade social para o ex-escravo vai se consolidando, refletindo nas atuais
condições de trabalho dos negros.
Segundo Lilian Arruda Marques e Solange Sanches, as ocupações formais no
mercado de trabalho brasileiro mostram rendimentos próximos ao dobro dos postos
de trabalho informais, que são ocupados, em sua maioria, por mulheres e negros (de
ambos os sexos). Além do mais, é no setor informal onde são reproduzidas as
desigualdades existentes nos postos formalizados, e onde são oferecidas as
menores remunerações. No ano de 2006, por exemplo, o rendimento médio de um
homem branco, no setor forma, era 72% maior que de uma mulher negra.224
Os rendimentos do trabalho, em geral, são considerados baixos no país. A
diferença racial de rendimentos, contudo, é maior que a diferença entre gêneros. No
ano de 2006, o rendimento médio entre os homens negros equivalia a 70% do
rendimento das mulheres brancas, e a 51% dos rendimentos dos homens brancos.
As mulheres negras tinham um rendimento médio equivalente a apenas 37% do
recebido pelos homens brancos, informam as mesmas autoras.225
Em um comparativo de rendimentos realizado entre negros e brancos, em
seis grandes capitais do país, foi constatados que negros e pardos recebem
remuneração inferior aos dos brancos, segundo Antonio Celso Baeta Minhoto. O
autor informa também que o salário médio na cidade de São Paulo, no ano de 2004,
é de R$ 1.242,77, para os brancos, e R$ 653,16, para os negros.226
224 MARQUES, 2010, p. 67. 225 Ibid, p. 68. 226 MINHOTO, 2013, p. 24.
82
Contudo, é frequente a argumentação de que as diferenças de rendimentos
entre brancos e negros se deve, sobretudo, aos diferenciais na qualificação. De fato,
no caso dos negros, em razão do processo discriminatório no ambiente escolar, e da
necessidade de abandonar os estudos para ingressar mais cedo no mercado de
trabalho, os indicadores educacionais acabam sendo inferiores aos dos brancos.
As diferenças escolares entre brancos e negros, porém, tem o condão de
explicar apenas uma parte da desigualdade racial. Parte significativa da diferença
salarial havida entre ambos pode ser explicada, desta forma, pela própria
discriminação racial havida no ambiente laboral.
É notória que a escolaridade pode influenciar no rendimento de um indivíduo.
No entanto, Antonio Celso Baeta Minhoto assevera que independente do grau de
escolaridade, a remuneração do trabalhador branco é maior que a do negro, sendo
ampliada ainda mais a diferença quando há um maior nível de escolaridade entre os
grupos. Os negros, embora sejam mais alfabetos, no ensino superior estão cinco
vezes menos que os brancos, a despeito da política de cotas nesta área.227
O mercado de trabalho brasileiro discrimina homens negros e mulheres
brancas e negros, mas estando em pior situação as mulheres negras. Comparando
a remuneração em relação à totalidade de pessoas ocupadas, as negras recebem
53% do que recebem os homens brancos. As brancas o equivalente a 69%, e os
negros, 63% dos rendimentos dos brancos. Neste cenário, evidencia-se, com o
rendimento inferior, o baixo status das mulheres negras na sociedade brasileira.228
Além das diferenças salariais, outras discriminações também ocorrem em
relação à mulher negra durante a relação empregatícia. A igualdade também não é
observada em relação aos quadros funcionais. Os postos de chefia e de direção, os
quais envolvem, normalmente, poder de mando, permanecem aos homens,
incluindo atividades que elas costumam estar representadas, como no ensino.229
Em relação à diferença de gênero havida em relação à ocupação de postos
de comando na maioria das empresas, a autora atribui a “obstáculos implícitos
derivados de preconceitos psicológicos e estruturais que constituem as chamadas
227 Ibid, p. 26. 228 LIMA, 2013, p.76. 229 BARROS, 2010, p. 72.
83
barreiras invisíveis”. E tais barreiras, por sua vez, dificultam, e até mesmo impedem
as trabalhadoras de assumirem cargos diretivos na maioria dos países, inclusive no
Brasil, onde a participação delas é inexpressiva.230
No Brasil, ainda que a quantidade de mulheres em postos de comando esteja
aumentando, em pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, no ano de 2004, eram elas
ainda minoria. Constatou-se que quanto mais alto fosse o cargo, mais alta seria a
disparidade entre os gêneros. Dentre as empresas foram verificadas as seguintes
proporções de ocupação das mulheres: 11,5% para cargos de direção; 24,6% para
nível de gerência; 37% para nível de supervisão; e 35% para o nível funcional. 231
Pesquisa mais recente realizada, no ano de 2010232, verificou-se uma
evolução positiva na participação das mulheres, comparando-se como a pesquisa
realizada em 2007, no nível executivo, onde a proporção delas foi alterada de 11,5%
para 13,7% nos cargos de direção. Contudo, nos demais três cargos hierárquicos
(funcional, de supervisão e gerência) a evolução foi negativa, ou seja, não houve um
aumento na participação de trabalhadoras nestes níveis.
Em relação à participação dos negros aos quadros funcionais, outra pesquisa
realizada pelo Instituto Ethos, com 500 empresas no país, no período de 2003 e
2005, constatou-se que houve uma melhora em três dos quatro níveis hierárquicos
pesquisados: no quadro executivo, que engloba presidentes, vice-presidentes e
diretores (1,8% para 3,4%) na gerência (8,8% para 9%), e no quadro funcional geral
(20 para 23%). No nível de supervisão, chefia ou coordenação, o quadro se manteve
inalterado (13,5%).233
Em outra pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, em parceria com a
Fundação Getúlio Vargas, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fundo
de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), no período de
230 Ibid, p. 72. 231 INSTITUTO ETHOS. A responsabilidade das empresas no processo eleitor al. São Paulo: Instituto Ethos, 2004. Disponível em: <http://www3.ethos.org.br/cedoc/a-responsabilidade-social-das-empresas-no-processo-eleitoral-2004/#.U2fjcYFdXEg>. Acesso em 01 maio 2014, p.20. 232 INSTITUTO ETHOS. Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores E mpresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas . São Paulo: Instituto Ethos, 2010. Disponível em: < http://www1.ethos.org.br/ethosweb/arquivo/0-a-eb4perfil_2010.pdf>. Acesso em 01 maio 2014, p.15. 233 INSTITUTO ETHOS. O Compromisso das Empresas com a Promoção da Iguald ade Racial . São Paulo, Instituto Ethos, 2006. Disponível em: < http://www3.ethos.org.br/cedoc/o-compromisso-das-empresas-com-a-promocao-da-igualdade-racial-maio2006/#.U2fmrIFdXEg>. Acesso em 01 maio 2014, p. 20.
84
julho à setembro de 2003, foi constatado, quanto à participação da mulher negra
entre as 500 maiores empresas do Brasil, em números absolutos, de 6.016 mulheres
ocupando cargo de gerência, somente 372 são negras ou pardas. No quadro
executivo, entre 339 mulheres que desempenham a atividade, somente 3 são
negras!234
Segundo os resultados obtidos, embora possa haver uma confirmação de
uma tendência de contínua expansão da presença da mulher, ainda que apenas no
topo, das escalas hierárquicas das empresas, não foi possível verificar a quantidade
de mulheres negras participantes dos cargos das empresas analisadas. Mas, diante
da baixíssima presença de negros constatada nesta última pesquisa, é possível
esperar pouco, ou quase nenhuma presença das mulheres negras nos quadros
funcionais das empresas brasileiras.
É imprescindível que haja, portanto, o reconhecimento da existência da
discriminação racial no meio laboral, como sendo um processo que passa por
inúmeros obstáculos, que vão desde a noção destes conceitos até a aceitação
consciente, por brancos e negros, de que tanto uns como outros são sujeitos nessa
relação desarmoniosa.
Uma parte dos operadores do direito, contudo, assim como a sociedade em
geral, não reconhecem a existência da discriminação no ambiente social, e muito
menos no mercado de trabalho, não conseguindo visualizar, desta forma, que
algumas das práticas cotidianas externam o pensamento vicioso do preconceito.
Algumas atitudes corriqueiras são vistas como meros acontecimentos, e não como
ato discriminatório.
Portanto, embora haja a existência de normas que vedem a utilização de
critérios relacionados ao gênero e raça no acesso ao emprego, critérios subjetivos
são utilizados pelo empregador para ocultar a intenção de discriminar. Deste modo,
as coerções jurídicas apenas contribuem para evitar algumas situações
discriminatórias, mas não às impedem de acontecer no mercado de trabalho.
234 Disponível em: <http://www.uniethos.org.br/_Uniethos/Documents/pesquisa_diver_perfil.pdf.> Acesso em: 04 maio 2014.
85
2.2 EVOLUÇÃO NORMATIVA RELACIONADA À DISCRIMINAÇÃO RACIAL
O Direito tem a função de regular a vida na sociedade, através de um
conjunto de normas de caráter positivo, quando para atribuir vantagens jurídicas em
favor de seus titulares, como de caráter negativo para vedar condutas agressoras
em desfavor dos indivíduos. É no conjunto de regras de caráter negativo onde se
localizam as normas que vedam a discriminação, e de regras positivas que as que
visam promover o direito a oportunidades de grupos discriminados.
Atualmente, o universo jurídico está composto por inúmeras normas que
proíbem atos discriminatórios, notadamente em matéria de emprego e profissão.
Visando a eliminar a discriminação racial no mercado de trabalho, no âmbito
internacional foram criados instrumentos, os quais servem de diretriz ao
ordenamento jurídico nacional, possuindo ambos a intenção de abolir violações,
conferindo maior igualdade social.
O ordenamento jurídico brasileiro, desta forma, em consonância com a
normativa internacional, acerca da promoção da igualdade no mercado de trabalho,
prevê normas que visam a garantir a efetivação do direito a tratamento isonômico
dos trabalhadores, seja no acesso, como durante a relação empregatícia,
especialmente em relação ao trabalhador negro.
Observa Flávia Piovesan235, ademais, que os Tratados e Convenções
Internacionais, em conformidade com o disposto no parágrafo 2º, do artigo 5º, da
Constituição Federal (“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”) têm
hierarquia de norma constitucional e, consequentemente, aplicabilidade imediata no
ordenamento jurídico brasileiro.
235 PIOVESAN, Flavia, GUIMARAES, Luis Carlos Rocha. Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial . Disponível: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/Flavia piovesan/piovesan_racial.html>. Acesso em 04 maio14
86
Incontinenti, serão verificados a seguir os instrumentos legais, nos âmbito
internacional e nacional, utilizado na busca pela igualdade de oportunidades, e no
combate à discriminação racial ocorrida no mercado do trabalho.
2.2.1 No âmbito internacional
O tema da igualdade e da não discriminação encontra-se na origem do
próprio Direito do Trabalho, que surge historicamente como elemento compensador
das desigualdades reais existentes entre os empregados e empregadores nas
relações laborais. A discriminação racial é vedada por fontes internacionais de
Direito, tendo como principal norteadora, além da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), de 1948, as Convenções da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio informa que a OIT foi criada pelo
Tratado de Versalhes, na tentativa de adotar medidas em relação aos direitos
sociais, os quais estavam comprometidos ao final da Primeira Guerra Mundial. O
objetivo principal foi o de promover negociações entre as esferas governamentais e
privadas, entre trabalhadores e empregadores, dos países membros, dos diversos
continentes.236
Acerca do papel da OIT, no cenário da globalização, onde surgem
continuamente desafios jurídicos tanto para os Estados, como para empresas e
organizações internacionais, assinala Luiz Eduardo Gunther que ela possui
importante significado “para reunir elementos de convicção, analisá-los e apresentar
estudos constantes com o objetivo de equilibrar as relações de capital e o trabalho,
já que vivemos em um mundo unipolar, com predomínio do capitalismo.”237
236 MASTRANTONIO, Simone Aparecida Barbosa. Ações Afirmativas : promoção da cidadania empresarial. Curitiba: Juruá, 2011, p. 102. 237 GUNTHER, Luiz Eduardo. A OIT e o Direito do Trabalho no Brasil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 26.
87
A discriminação racial no ambiente de trabalho, ademais, foi objeto de
preocupação na OIT antes mesmo da existência da Convenção Internacional sobre
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, datada de 1966 (quando
foi aberta para assinatura dos Estados, sendo publicada em 10 de dezembro de
1969). A Convenção nº. 111, que trata da proibição da discriminação nas relações
de emprego e profissão, foi aprovada em 1958, sendo ratificada pelo Brasil dez anos
depois.
O ato discriminatório, segundo a Convenção n. 111, pode ser observado por
intermédio da conduta de distinguir, excluir ou dar preferência, agregada aos tipos
de discriminação que podem ser por raça, cor, sexo, origem social, ascendência
nacional, tendo como efeitos a anulação ou alteração da igualdade de oportunidade,
ou de tratamento no emprego ou ocupação. O parágrafo 1º, do artigo 1º, indica os
critérios de discriminação e, dentre estes, tem-se o critério de cor e raça.
Os Estados que aderiram à Convenção, se comprometeram a participar da
tarefa de eliminar a discriminação e fomentar a igualdade, dentre outras ações,
enviando relatório anual das atividades desenvolvidas com base nos ditames da
Convenção. Para Thereza Cristina Gosdal, trata-se de uma política social que
objetiva suprimir todas as formas de discriminação, sendo aplicável aos indivíduos e
empregadores, alcançando desde o acesso até a permanência no emprego.238
A Convenção além de tratar do direito a não discriminação, prevê também o
direito à diferença, como ocorre quando se determina a adoção de políticas
nacionais com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades e de tratamento
em matéria de emprego e profissão, em virtude da constatação de diferença fática
(art. 2º e 5º). Trata, enfim, de assegurar a igualdade através da diferença.
Observa-se que a tanto a Convenção n. 100 (Igualdade de Remuneração,
1951), com a própria Convenção n. 111 (Discriminação no Emprego e Ocupação,
1958), ambas ratificadas pelo Brasil na década de 60, são parte do conjunto das
convenções definidas pela OIT como fundamentais. Representam o principal
instrumento de luta contra a discriminação e pela promoção da igualdade de
oportunidade e de tratamento no local do trabalho.
238 GOSDAL, 2003, p. 101.
88
Ademais, considerando que no Brasil, no ano de 2009, o setor que
apresentou maior déficit de trabalho decente e proteção normativa no mundo do
trabalho foi o doméstico (formado por maioria de mulheres negras)239, foi aprovada
na 100ª Conferência da OIT, em Genebra, a Convenção n. 189, sobre o Trabalho
Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos.
A Convenção 189, acompanhada pela Recomendação n. 201 (com o mesmo
título), por sua vez, traz normas mínimas aplicáveis ao trabalho doméstico, no intuito
de romper o “paradigma da submissão e informalidade”, conforme assevera Lorena
de Mello Rezende Colnago240. E, na esteira deste instrumento internacional de
proteção, ocorreu no país à promulgação da EC 72, em 02.04.2013, equiparando
aos demais empregados à maioria dos direitos dos trabalhadores domésticos.
Dentre os organismos internacionais, destaca-se que não é apenas a OIT que
possui normas que vedam práticas discriminatórias. A Organização das Nações
Unidas (ONU) também trás uma série de normas a respeito, como as seguintes
Declarações: sobre a “eliminação de todas as formas de discriminação racial”
(1963), sobre a “eliminação da discriminação contra a mulher” (1967), e sobre a
“eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião
e nas convicções” (1981).
José Claudio Monteiro de Brito Filho observa que na seara internacional, há
previsão de normas que vedam a discriminação através de Convenções, como
sobre: “a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, ratificada em 1965,
e “a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher”, ratificada em
1979. Havendo, ainda, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, ratificado em 1992 pelo Brasil, segundo lembra o autor.241
239 DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONOMICOS – DIEESE. Anuário do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda 2010/2011: Mercado de Trabalho. São Paulo: DIEESE, 2011. Disponível em: < http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A333FE61F013341780DBB382F/mercado.pdf>. Acesso em 04 maio 2014. 240 COLNAGO, Lorena de Mello Rezende. O Trabalho Doméstico: primeiras impressões da Emenda Constitucional 72/13. In: GUNTHER, Luiz Eduardo, MANDALOZZO, Silvana Souza Netto (coord.). Trabalho doméstico: teoria e prática da Emenda Cons titucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p. 195. 241 BRITO FILHO, 2002, p. 62.
89
O amplo arsenal legislativo contra a discriminação, no plano internacional,
seja de forma geral, ou em casos determinados por motivos ou hipóteses geradoras
de preconceito (como em relação aos negros), serve de balisa para o ordenamento
jurídico brasileiro. Contudo, assevera Ana Emilia Andrade Albuquerque que referidos
diplomas internacionais e nacionais “estão longe de garantir ao cidadão brasileiro a
igualdade substancial almejada”.242
2.2.2 No âmbito nacional
As normas nacionais, relativas às vedações de práticas discriminatórias no
meio laboral, têm como principal diretiva a Constituição Federal, de 1988. Observa
Antonio Sergio Alfredo Guimarães que antes desta data, as lideranças negras no
país não tinham espaço para expressar as suas reinvindicações, ante a negativa do
reconhecimento da existência de discriminação e preconceito racial, sendo a
“pobreza negra puramente pobreza”.243
Observa o autor que com a promulgação do texto constitucional, as condutas
discriminatórias raciais passaram a ser reconhecidos tanto pelo governo como pela
opinião pública. No entanto, na prática muito pouco teria mudado para os negros,
visto que a discriminação de classe (no caso, a pobre) é considerada legítima na
sociedade em geral.244
Apesar de autores considerarem ineficaz o dispositivo constitucional no
efetivo combate da discriminação racial, o fato é que há tal previsão, em
circunstâncias e dimensões diversificadas, se estendendo ao mercado de trabalho.
Maurício Godinho Delgado assevera que na ordem justrabalhista, a atual
constituição lançou um “divisor nítido de fases nessa seara temática”, a partir do
qual um sistema legal de proteção contra atos discriminatórios foi assentado. 245
242 SILVA, 2005, p.40. 243 GUIMARÃES, 2012, p. 72. 244 Ibid, p. 72. 245 DELGADO. Maurício Godinho. Proteções contra Discriminação na Relação de Emprego. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação. 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 109.
90
No artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, encontra-se como objetivo da
República Federativa do Brasil: a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Confirmando à intenção pela busca de um Estado Social, no artigo 4º foi estipulado
o princípio da prevalência dos direitos humanos, denotando a posição do Brasil junto
à comunidade internacional, quanto à intenção em aplicar tal disposto nos
documentos ratificados.
O artigo 5º, caput, da CF, ao determinar que “todos são iguais perante a lei,
sem distinções de qualquer natureza”, exalta o princípio da igualdade como ícone à
aplicação dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos. O inciso XLI,
na mesma linha, prevê a punição legal de “qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais”. E já o inciso XLII, de forma incisiva, traz que “a
prática de racismo constitui crime...” (grifos acrescentados) e, de tão grave, é
considerado inafiançável e imprescritível pela lei.
A vedação à discriminação, entretanto, não se esgota no texto constitucional
como preceitos genéricos. Ao contrário, em relação à prática discriminatória no
ambiente de trabalho, há expressa previsão contida no Capítulo dos Direitos Sociais,
artigo 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII (contém proibições de diferença de salários, de
exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo, idade, cor ou
estado civil; de qualquer discriminação no tocante a salários e critérios de admissão
do trabalhador portador de deficiência; de distinção entre trabalho manual, técnico e
intelectual ou entre os profissionais respectivos)
Além dos dispositivos constitucionais, outras normas infraconstitucionais
existem na tentativa de combater a discriminação, a qual é considerada, segundo
observam Gustavo Pereira Farah e Rafael Carmezim Nassif, como um dos maiores
problemas enfrentados pela sociedade moderna.246 A Lei n. 7.716/89, editada meses
após a CF, trouxe uma reprimenda à prática discriminatória, definindo, em seu artigo
1º, os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. Nos artigos 3º e 4º, dispôs
sobre a discriminação no acesso ao trabalho em cargos da Administração Direta ou
Indireta, concessionárias de serviços públicos, e ainda em empresas privadas.
246 FARAH, Gustavo Pereira, NASSIF, Rafael Carmezim. A discriminação na Constituição Federal de 1988 e a súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho. In: GHUNTER, Luiz Eduardo, e MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. 25 anos da Constituição e o Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, p. 265.
91
Observa Silvia Carine Tramontin Rios, no entanto, que a Lei n. 7.716/89
equiparou o preconceito de “raça” ao de “cor”, para fins de aplicação das penas
estabelecidas (inclusive reclusão) ao estabelecer como contravenção penal, no
artigo 4º, ao ato de negar ou obstar emprego em empresa privada em razão de
sexo, raça ou estado civil.247 Ademais, a Lei n. 9.459/97 passou a considerar crime
condutas configuradas por atos discriminatórios ou de preconceito em razão de raça,
cor, etnia, religião e origem (como o crime de injúria, por exemplo). Assim, ambos os
critérios (raça e cor) foram utilizados pelo legislador.
Ressalta-se que na década de 50 houve no país, a promulgação da Lei 1.390,
denominada Lei Afonso Arinos que tratava como contravenção penal as práticas
decorridas de atos resultantes de preconceitos de raça e de cor, no meio laboral.
Segundo Fabiano Augusto Martins Silveira, esta lei pode ser considerada como um
dos primeiros dispositivos a tratar positivamente dos crimes raciais e de preconceito,
no ordenamento penal brasileiro.248
Firmino Alves Lima observa que o nome da Lei Afonso Arinos se deve em
razão de ter sido elaborada pelo deputado Afonso Arinos de Melo Franco, da União
Democrática Nacional – UDN.249 Esta lei, segundo o autor, além de não definir
exatamente o significado de discriminação, tratou apenas de proteger o trabalhador
na questão da recusa ao “acesso” ao emprego, por motivo de raça ou cor da pele,
sem, no entanto, mencionar algum óbice relativo à sua “manutenção” pelos mesmos
motivos mencionados.250
No ordenamento jurídico brasileiro, há outros diplomas infraconstitucionais
que buscam a isonomia dos trabalhadores de maneira geral, como as Leis n.
9.029/95 e n. 9.799/99 (relativas ao acesso às relações empregatícias). Também a
própria CLT traz a vedação às práticas discriminatórias em diversos artigos, com
destaque para os artigos 460 e 461 (que vedam discriminação salarial entre os
trabalhadores).
247 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos. Curitiba: 2009. 248 SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da Criminalização do Racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 101. 249 LIMA, 2006, p.82. 250 Ibid, p. 83.
92
Além do mais, considerando que a discriminação ocorrida em face à
trabalhadora negra perpassa além da questão racial, também pela questão de
gênero (dupla discriminação), encontra ela guarida igualmente na CLT. O Capítulo
III, do Título III, desta Consolidação, trata da “Da proteção do trabalho da mulher”, o
qual aborda, em cada uma das sessões: duração e condições do trabalho, trabalho
noturno, períodos de descanso, métodos e locais de trabalho, e proteção à
maternidade.
A CLT, embora tenha sido elaborada no ano de 1943, durante o período do
Estado Novo (sob o comando do então presidente Getúlio Vargas) está em vigência
até os dias atuais, encontrando-se, no entanto, repleta de emendas, inclusões e
supressões.251 Àquele dispositivo que trata especificamente da proteção do trabalho
da mulher (Capítulo III, do Título III), inclusive, teria sido influenciado pelo Decreto nº
21.417-A, de 1932, que regulamentou as condições de trabalho da mulher nos
estabelecimentos industriais e comerciais, observa Barros252.
Para Maria Cristiane Sbalqueiro Lopes253, o ordenamento jurídico, até a
Constituição de 1988, tinha por tendência “proteger” o trabalho da mulher, acabando
por perpetuar, desta forma, a discriminação da mulher no mercado de trabalho. A
autora assevera que o motivo principal era, na realidade, a busca da proteção
estrutural da família patriarcal, do qual perduram resquícios destas disposições
“falsamente protetivas”. Contudo, haveria ainda “riscos de retrocesso, alimentado
pelo contexto de contínua precarização laboral”.
O combate à discriminação no âmbito do trabalho está, portanto, amplamente
amparado por instrumentos legais (constitucionais e infraconstitucionais), todos
devidamente orientados pelo princípio da igualdade, seja no tocante ao gênero,
como em relação à questão racial. Contudo, é notório que tais normas jurídicas, por
si só, não estão sendo suficientes para obstar as práticas discriminatórias cometidas
principalmente em relação às trabalhadoras no país, conforme verificado no item
anterior. 251 CORTÊS, Iáris Ramalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi, e PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 279. 252 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 8ª ed., 2012, p. 856. 253 LOPES, Maria Cristiane Sbalqueiro. Direito do Trabalho da Mulher: Da Proteção à Promoção . Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, Junho 2006. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01043332006000100016&lng=en&nrm=iso>. Acesso 05 maio 2013, p.2.
93
Na busca pela não discriminação e implementação dos ditames contidos na
Convenção n. 111, da OIT, e na Convenção Internacional sobre Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, inclusive na própria Constituição e leis
infraconstitucionais, foi instituído, através da Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, o
Estatuto da Igualdade Racial, após aproximadamente cinco anos e meio de debate
no Congresso Nacional, observam Mateus Bertoncini e Felippe Abu-Jamra
Correa.254
O Estatuto da Igualdade Racial representou não apenas um avanço legislativo
no tocante à aplicação da Convenção n. 111, da OIT, ao prever o acesso ao
mercado de trabalho pelo negro, no intuito de eliminar a discriminação racial no meio
laboral, mas também um leque de possibilidades para reverter à desvantagem
socioeconômica do indivíduo negro que também acaba influenciando em outros
segmentos de sua vida em sociedade.
O artigo 1º do Estatuto trás como objetivo: “garantir à população negra a
efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais,
coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância
étnica”. E, especificamente em relação ao mercado de trabalho, previu, de forma
expressa, a partir do artigo 38, que as políticas voltadas para a inserção dos negros
no mercado de trabalho devem respeitar os compromissos assumidos pelo Brasil ao
ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, e a Convenção n. 111, da OIT. 255
O Estatuto previu também, no artigo 47, a instituição de um Sistema Nacional
de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) “como forma de organização e de
articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados
a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público
federal”. Este artigo determinou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão participar do Sistema mediante adesão; cabendo ao Poder Público Federal
incentivar a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.256
254 BERTONCINI, Mateus, e CORREA, Felippe Abu-Jamra. Responsabilidade social da empresa e as ações afirmativas : implicações do estatuto da igualdade racial. Curitiba: JM, 2012, p. 75. 255 Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 256 Ibid.
94
O Estatuto da Igualdade Racial é composto por sessenta e cinco artigos,
sendo dividido em quatro títulos (Disposições Preliminares, Direitos Fundamentais,
SINAPIR, e Disposições Finais). O “acesso ao trabalho”, que é o foco principal do
presente estudo, está previsto no Capitulo V, do Título II, artigos 38 a 42, do
Estatuto. E já este primeiro artigo aduz que “a implementação de políticas voltadas
para a inclusão da população negra no mercado de trabalho será de
responsabilidade do poder público”.257
O artigo 39, e seguintes, diz que o poder público deverá promover ações que
assegurem a “igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população
negra”, através de implementação de medidas que visem “à promoção da igualdade
nas contratações do setor público, e o incentivo à adoção de medidas similares nas
empresas e organizações privadas”.258
A iniciativa privada, portanto, está nitidamente relacionada com o referido
Estatuto, o qual está “conclamando as empresas a uma atuação responsável, na
senda de implementação de seu programa de isonomia material em favor da
população negra”.259 Tal entendimento, porém, é alvo de críticas de quem entende
ser esta função do Estado, exclusivamente, não aceitando a inclusão da participação
do empresariado no combate a discriminação racial no mercado de trabalho.260
Em 05 de novembro de 2013 foi aprovado o regulamento do Sinapir, através
do Decreto n. 8.136, como forma de organização e articulação, para a
implementação do conjunto de políticas e serviços, destinados a superar as
desigualdades étnicas existentes no Brasil. Segundo dispõe o Estatuto de Igualdade
Racial, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar deste
Sistema, mediante a adesão. Ressaltando que ao Poder Público Federal cabe
incentivar a sociedade civil, inclusive a iniciativa privada, a também participar deste
Sistema.261
257 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 258 Ibid. 259 BERTONCINI e CORREA, 2012, p. 79. 260 Ibid, 79. 261 BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Instituiu o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8136.htm>. Acesso 06 maio 2014.
95
Porém, diante da verificação de descompasso existente entre as legislações
que vedam a ocorrência de discriminação racial no meio laboral, e a realidade
encontrada no mercado de trabalho, notadamente em relação à mulher negra, talvez
se faça necessária à adoção de outros mecanismos de promoção de igualdade de
oportunidades no emprego. Em consonância com o Sinapir, é possível, por
exemplo, a utilização de ações afirmativas, em especial cotas raciais de gênero, a
serem instituídas pela iniciativa privada, na busca da equidade e justiça social.
Observa-se, além do mais, que o direito à liberdade econômica não pode se
sobrepor à existência digna e livre do homem, devendo a economia privada se
adequar aos princípios basilares previstos na Declaração Universal de Direitos
Humanos, na Convenção n. 111 da OIT, e nos demais instrumentos internacionais,
assim como no amplo arsenal legislativo interno. Deste modo, não pode o
empregador, por exemplo, ao argumento de que pretende exercer o poder diretivo
sob sua empresa, proceder em atitudes discriminatórias raciais, que vão de encontro
à dignidade do trabalhador negro.
A normativa que veda a discriminação racial, conforme visto, é extremamente
ampla, seja através da ratificação dos vários instrumentos internacionais, como pelo
vasto ordenamento jurídico interno. A despeito de toda esta tentativa de combate da
discriminação racial e da promoção da igualdade de oportunidades no trabalho, sem
preconceitos, especialmente de gênero e raça, torna-se imperativo a adoção de
mecanismos de promoção no meio laboral.
A neutralidade estatal, característica da sociedade capitalista liberal, tem se
mostrado prejudicial a determinados grupos sociais, principalmente em relação às
trabalhadoras negras. Por isso, segundo assevera Joaquim Benedito Barbosa
Gomes, quando o Estado e a lei não são suficientes para reverter um quadro social
de desigualdade, a neutralidade deve ser renunciada.262 Vislumbra-se, desta forma,
a possibilidade de adoção de ações afirmativas, decorrentes de políticas públicas ou
privadas, a fim tornar a sociedade brasileira justa e solidária de fato, e livre da
presença de condutas discriminatórias.
262 GOMES, 2001, p. 37.
96
3. A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA MULHER
NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO
3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS DECORRENTES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E
POLÍTICAS PRIVADAS
A desigualdade racial no país não pode, e nem deve, ser considerada um
simples fenômeno, mas muito mais, pois se produz e reproduz na sociedade de
forma nefasta, em diversos âmbitos, notadamente no mercado de trabalho. E é
também neste âmbito que ocorrem dificuldades na efetivação dos direitos humanos,
correndo o risco de, inclusive, comprometer os avanços conquistados na esfera
jurídica.
Ao Estado, enquanto agente regulador da ordem social, cumpre exercer o
seu papel, devendo buscar mecanismos na promoção da igualdade para todos,
principalmente os mais vulneráveis, visando, por fim, a estabelecer a justiça social e
garantir a convivência pacífica e igualitária na sociedade, especialmente em relação
a determinados grupos, como os negros.
Convém observar que o próprio Estado brasileiro, aliás, colaborou para o
agravamento da discriminação racial. Inicialmente, no período em que apoiou o
movimento da escravatura, considerado ato legal (1500-1888) e, na sequência,
durante o período republicano, quando deixou de propiciar o acesso dos negros às
terras, à educação263, e ao trabalho.
Além do mais, é ao Estado que cabe, com suas decisões imperativas, ditar
as normas de conduta, organizacionais e, deste modo, criar novas situações a fim
de também atuar no sentido de fazer prevalecer os direitos humanos na sociedade.
Assim, o Estado é considerado supremo e o legal depositário da vontade social,
devendo oferecer a toda população a característica de certeza. 263 A respeito da exclusão dos negros do sistema de ensino brasileiro, por ocasião da abolição da escravatura, cita-se a tese de doutorado do médico (negro) Nizan Pereira, intitulada: “A construção da invisibilidade e da exclusão da população negra nas práticas e políticas educacionais no Brasil”, noticiado na matéria: O Brasil sem “escola” tem história e tem cor, pelo jornal Gazeta do Povo, pág. 08, em 13 de maio de 2014.
97
Propiciar o bem-estar de todos os membros da sociedade, sem distinção,
também é outro objetivo do Estado, que deve ser implementado através de políticas
públicas. Para tanto, a atuação de todos os Poderes do Estado devem se direcionar
para a construção de uma sociedade justa e igualitária, ou ao menos,
incessantemente almejada, cabendo a toda a sociedade verificar se os poderes
públicos estão cumprindo esse dever.
A questão dos negros no Brasil, em especial, foi quase sempre tratada com
certo descaso pelo Estado desde o seu início, de forma autoritária e excludente, por
séculos a fio. Contudo há poucas décadas, a partir de amplos debates sobre o seu
papel, os Poderes do Estado passaram, então, a lançar mão de políticas públicas,
visando à promoção da igualdade no país.
O tema desigualdade racial no Brasil vem crescendo e tomando força não
apenas na forma de debate público e acadêmico, mas também como uma
preocupação do Estado, em torno do qual vem sendo construído um conjunto de
iniciativas, a fim de propiciar a efetiva democracia racial. E, para tanto, é imperioso
que haja intervenção estatal através de políticas públicas. 264
Políticas públicas, em sua acepção conceitual, são entendidas como
programas de ação do governo que resultam de processos previamente regulados
(processos eleitoral, de planejamento, de governos, legislativo, administrativo,
judicial e orçamentário), com vistas a coordenar os meios à disposição do Estado e
das atividades privadas, a fim de realizar objetivos socialmente relevantes, e
politicamente determinados.265
O conceito de políticas públicas, desse modo, pressupõe um modelo de
ação, ou programa, ou atividade pública, o que torna evidente o comprometimento
das funções estatais na realização de metas para efetivas os direitos fundamentais
previstos na Magna Carta. Esta, por sua vez, dá a direção e regula a atuação do
Estado, representado através de seus três Poderes (Executivo, Legislativo, e
Judiciário).
264 Sabrina Moehlecke destaca que o início do desenvolvimento de políticas públicas de “valorização e promoção da população negra”, ocorreu a partir de 1995, por influência do movimento negro (Marcha Zumbi contra o racismo), no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>. Acesso em 10 maio 2014. 265 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em Direito. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.
98
Os referidos Poderes do Estado, por sua vez, são harmônicos e
independentes entre si266, sendo verificada divisão de atribuições distintas entre eles
dentro do âmbito do próprio Estado, ficando a cargo dos Poderes Executivo e
Legislativo a elaborações dos planos de governo, dos quais se originam políticas
públicas nas áreas administrativas. No caso de omissões ou outro tipo de
irregularidades, pode caber uma intervenção judicial, através, então, da participação
do Poder Judiciário.
Joaquim Benedito Barbosa Gomes aduz que as ações afirmativas (espécie
de política pública) que decorrem da ação do Poder Judiciário, ora assumem um
caráter “redistributivo”, ora se revestem de natureza “reparadora” ou “restauradora”.
Assevera que às vezes, todavia, podem ambas as características se cruzarem,
como no caso em que os programas são concebidos e implementados em
decorrência de decisão judicial.267
Políticas Públicas, ademais, não devem ser confundidas com o próprio
direito social, mas devem sim ser vistas como um programa de governo cujo objetivo
é o de alcançar a efetivação deste direito. Acentua-se que as políticas públicas
prioritárias para o Estado, foram previamente inseridas na Constituição Federal,
devendo então os poderes Executivo e Legislativo observá-las e implementá-las,
observa Lívia Regina Savergnini Bissoli Lage.268
Cristiane Derani269 conceitua política pública como:
“um fenômeno oriundo de um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade. É fruto de um Estado complexo que passa a exercer uma interferência direta na construção e reorientação dos comportamentos sociais. O Estado para além do seu papel de polícia ganha dinâmica participativa na vida social, moldando o próprio quadro social por uma participação pelo poder de impor e pela coerção.”
266 Art. 2º, da Constituição Federal. 267 GOMES, 2001, p. 56. 268 LAGE, Lívia Regina Savergnini Bissoli. Políticas Públicas como programas e ações para o atingimento dos objetivos fundamentais do estado. In: GRINOVER, Ada Pelegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas . 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 152. 269 DERANI, Cristiane. In BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora) Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico . São Paulo: Saraiva, 2006, p. 131.
99
A política pública pode ser considerada como fruto do Estado moderno, no
qual a sociedade outorga um poder de mando, aguardando que sejam emanadas
ações que guardem previsibilidade no âmbito da representação política, através de
via legal. Neste cenário, os Estados podem ser vistos como uma arena onde se
promovem ações respaldadas no texto constitucional, assim como um agente
central, quando atua na promoção da dignidade humana.270
Observa-se que, após os acontecimentos ocorridos na 2ª Guerra Mundial, os
direitos humanos passaram a ter a atual concepção. A partir da Declaração
Universal de 1948, foram adotados inúmeros instrumentos internacionais de
proteção, “com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos
direitos humanos”, segundo assevera Flávia Piovesan.271
Contudo, a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada pela
tônica da proteção geral, não foi suficiente no combate à discriminação, e fim do
racismo. A mera igualdade formal, não foi capaz de garantir a dignidade humana dos
grupos mais vulneráveis, surgindo, daí, a necessidade de conferir a estes uma
proteção especial e particularizada.
A partir do início da segunda metade do século passado, então, a
comunidade internacional foi compelida a elaborar instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos, mas com um recorte mais étnico-racial, visando a
erradicação do racismo e da discriminação, apesar de muitos Estados europeus,
contraditoriamente, terem continuado com suas colônias na maioria dos continentes.
No âmbito internacional surgiu, em 1950, a Declaração das Raças da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO); em 1958, a Convenção n. 111 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) sobre a Discriminação em Emprego e Profissão; e, em 1960, a
Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino da
UNESCO, os quais representaram um marco inicial na proteção dos direitos
humanos.
270 SANTOS, Hermílio. Sociedades complexas e políticas públicas. In: ______(org.). Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. Disponível em: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>. Acesso em 01 maio 2014. 271 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justiça internacional: um estud o comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africa no. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p, 43.
100
A exemplo destes documentos paradigmáticos surgiu, em 1965, a Convenção
Internacional para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial, a qual
adveio em decorrência das lutas pelos Direitos Civis nos EUA, e das lutas
anticoloniais na África.272 Posteriormente em 2001, houve a elaboração da
Declaração e o Plano de Ação de Durban, na África do Sul.
No âmbito nacional também houve um avanço na questão da igualdade racial,
inclusive na área do mercado de trabalho. Tal fato resultou em parte da influência do
movimento realizado em 1995, através da Marcha Zumbi dos Palmares contra o
Racismo, pela Cidadania e a Vida, em Brasília273; e outra parte influenciada pela
referida Declaração ocorrida na África do Sul, durante a III Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
Assim estes eventos, ocorridos na perspectiva dos direitos humanos, tanto
os internacionais como os nacionais, com respaldo na vasta legislação referente ao
combate da discriminação e promoção racial (mencionada no capítulo anterior),
vieram a dar visibilidade para a questão racial no país, dando início a discussões
sobre o tema, e as variadas formas de combatê-los e até mesmo exterminá-los.
A partir de então, a sociedade brasileira e o próprio Estado, este através dos
poderes Executivo e Legislativo, começaram a debater sobre a implantação de
outras políticas (públicas e privadas) visando a efetivar a promoção da igualdade
racial, já que a previsão dos instrumentos legais referente a este tema, não foram
suficientes para que o ideal de justiça social fosse alcançado no país.
Entre as possibilidades de implementação de outras políticas, a fim de
promover a igualdade de oportunidades e tratamento no emprego dos trabalhadores
negros, destaca-se a utilização de ações afirmativas, como mecanismos públicos ou
privados no combate à discriminação racial. Segundo Firmino Alves Lima, ações as
quais integram “um corpo de posturas em busca da igualdade real como um objetivo
a ser alcançado”.274
272 Destaca-se que o Brasil ratificou a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial em 17 de março de 1968, ratificado por 170 Estados. 273 Movimento do qual decorreu a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI), em 1995, sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. 274 LIMA, 2006, p. 136.
101
Destaca-se, contudo, que o termo “políticas públicas” acaba sendo utilizado, e
até em algumas vezes confundido, com “ações afirmativas”, as quais são
consideradas como espécie de ferramentas sociais necessárias ao combate da
desigualdade e discriminação tanto racial como social, com vistas a atender grupos
que se encontram em condições de desvantagem ou vulnerabilidade social, em
decorrência de fatores históricos, culturais ou econômicos.275
O primeiro registro no Brasil, a respeito de medidas para solucionar a prática
discriminatória no meio laboral, precursor do que poderia chamar-se de ação
afirmativa, ocorreu em 1968, por iniciativa de servidores do Ministério do Trabalho e
do TST. Na ocasião, referidos servidores, tendo verificado a existência de
discriminação na área ocupacional (através de fiscalização e denúncias) se
mostravam favoráveis a uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter a
percentagem mínima de empregados para trabalhadores de cor (20%, 15% ou 10%,
de acordo com o ramo de atividade e demanda).276
Apenas foi nos anos 80 que houve a primeira formulação de um projeto neste
sentido, partindo do Poder Legislativo, através do projeto de Lei n. 1.332, de 1983. O
autor deste projeto foi o deputado federal Abdias Nascimento, e tinha como proposta
uma “ação compensatória”, estabelecendo mecanismos de compensação para os
trabalhadores negros, após séculos de discriminação (20% de vagas tanto para
mulheres, como para homens, em concursos públicos). No entanto, este projeto
também não foi aprovado pelo Congresso Nacional.277
Livio Sansone assevera que o próprio movimento negro no Brasil, além de
tentar sensibilizar a opinião pública, acerca dos temas ligados a causas negras em
geral, tem elaborado diversas reinvindicações, também no mercado de trabalho.
Entre elas destacando-se, inclusive, a adoção de ações afirmativas (em especial o
sistema de quota racial), originariamente utilizada em países mais etnicamente
polarizados278, informa o autor.
275 Ibid, p.136. 276 MASTRANTONIO, 2011, p. 120. 277 MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 278 SANSONE, Livio. Racismo sem Etnicidade: Políticas Públicas e Discri minação Racial em Perspectiva Comparada. RiodeJaneiro, v.41, n.4, 1998.Disponívelem:<http://www.scielo.br/scielo.ph pscript=sci_arttext&pid=S0011-52581998000400003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 01 maio 2014.
102
Joaquim Benedito Barbosa Gomes conceitua ações afirmativas, ademais,
como um conjunto de ações de políticas públicas e privadas, de caráter compulsório,
facultativa ou voluntário, que visam ao combate de discriminação presente ou a
correção dos efeitos de discriminações pretéritas, que objetivam concretizar a
igualdade a bens fundamentais, como, por exemplo, o acesso a educação e ao
mercado de trabalho.279
Também neste sentido é o entendimento de Paulo Lucena de Menezes, para
o qual a ação afirmativa, fundada na idéia clássica de justiça social, consiste em
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, com a finalidade de
implementar uma “igualdade concreta (igualdade material), no plano fático, que a
isonomia (igualdade formal), por si só, não consegue proporcionar.”280
Assim, tem-se que a ação afirmativa desiguala para igualar, mas para igualar
especialmente no tocante a oportunidades, que é o ponto principal no qual onde
estão localizados os grupos discriminados. Assevera Manuela Tomei que a ação
afirmativa amplia a noção da não discriminação e da igualdade de oportunidades
(como o acesso ao emprego e educação, por exemplo), no acesso aos bens
sociais.281
A base filosófica das ações afirmativas, segundo Joaquim Benedito Barbosa
Gomes, pode estar fundamentada nas idéias de justiça compensatória e de justiça
distributiva. A primeira se motiva por fatos pretéritos, oferecendo uma reparação (ou
compensação) a indivíduos de determinados grupos socias, que não sofreram
diretamente os danos, pleiteada em face de quem, portanto, não deu causa ao dano,
consistindo em um ônus impingido a sociedade atual. A natureza das ações
afirmativas seria, portanto, restauradora.282
279 GOMES, 2001, p. 40. 280 MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa no direito norte-americano. São Paulo: RT, 2001, p.29. 281 TOMEI, Manuela. Ação Afirmativa para a igualdade racial: caracterís ticas, impactos e desafios. Brasília, OIT, 2005, p.9.Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 282 GOMES, 2001, p. 62.
103
Por meio da justiça compensatória, portanto, a reparação seria efetivada para
aqueles que não sofreram o dano diretamente. Ademais, as políticas indenizatórias
para reparar a dívida histórica da sociedade em relação a determinadas categorias
não seriam consideradas legítimas, visto que somente aqueles que foram
diretamente prejudicados poderiam pleitear a reparação correspondente, e contra
quem efetivamente deu causa ao dano.
A justiça distributiva, por outro lado, a qual remonta a Aristóteles, visa
promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros
importantes bens e benefícios, segundo assevera Joaquim Benedito Barbosa
Gomes. Ressalta ainda o autor que os partidários desta tese vislumbram um
substrato utilitarista, portanto, a redistribuição dos benefícios e ônus na sociedade
teria o efeito de promover o bem-estar na sociedade.283
As ações afirmativas, através da justiça distributiva, estariam relacionadas,
assim, a uma distribuição mais igualitária de oportunidades, de maneira a facilitar o
acesso dos indivíduos em condição desfavorável a bens que, normalmente, não
conseguiriam alcançar caso não fossem excluídos histórica e culturalmente. Esta
teoria, contudo, é comumente a mais aceita pelos defensores das ações afirmativas,
sendo adotada como principal fundamento.284
Paulo Lucena de Meneses entende que as ações afirmativas se encontram
justificadas pela necessidade de promoção de uma maior diversidade social,
mediante a ascensão e o fortalecimento de grupos sub-representados na sociedade,
independente das causas que deram origem as exclusões.285
Joaquim Benedito Barbosa Gomes, ademais, cita Dworkin em sua obra
Taking Rights Seriously, o qual, com base em argumentos utilitaristas, entende que
o objetivo imediato das ações afirmativas seria o de aumentar o número de
determinadas raças em certas posições e profissões, e o objetivo final seria, então, o
de reduzir o grau de consciência racial na sociedade em geral.286
283 Ibid, p.68. 284 Ibid, p.72. 285 MENEZES, 2001, p.34. 286 Ibid, p.69.
104
Assim, as ações afirmativas visam acelerar o ritmo de participação de
indivíduos de determinados grupos (como mulheres e negros) no acesso
especialmente a educação e emprego, através de políticas públicas ou privadas. Por
isso, devem ser tomadas tanto pelo Estado, quanto pela sociedade (incluindo aí a
atividade empresarial) ambos considerados verdadeiros atores, de acordo com a
realidade constatada, vindo a ampliar o acesso aos bens sociais.
Portanto, para a concretização da igualdade substantiva (material), conta-se
com aqueles indispensáveis atores, a fim de evitar discriminações e dar, por
derradeiro, mais eficácia ao princípio da isonomia. Justifica-se assim o
favorecimento de indivíduos pertencentes a determinados grupos em detrimento de
outros, como espécie de “discriminação positiva, visando à igualdade entre os
desiguais, ou seja, a restituição de uma igualdade que foi rompida ou que nunca
existiu.”287
Importa ressaltar que a ação afirmativa não se constitui em direito de
minorias, haja vista que as desigualdades sociais não são adstritas,
necessariamente, às minorias. Pelo contrário, elas podem atingir maiorias, como na
situação de mulheres, negros e pobres. Tampouco poderia ser confundida com
medidas assistenciais, sob o risco de cristalizar preconceitos. Atenta-se, no caso, a
devida comprovação de discriminação contra o grupo a ser beneficiado, a fim
promover a igualação de oportunidades.288
Ressalta-se que as ações afirmativas foram adotadas no país, no ano de
1990, para a contratação de pessoas deficientes no serviço público289, e em 1991 no
setor privado,290 devidamente respaldadas na atual CF. Tais normas trouxeram
proteção ao mercado de trabalho (como parte dos direitos sociais) a este grupo, com
a reserva de percentual de cargos e empregos para deficientes, previsões as quais
provam, ademais, a própria legalidade das ações afirmativas no país!
287 MASTRANTONIO, 2011, p. 127. 288 LIMA, 2006, p. 139. 289 BRASIL. Lei n. 8112, de 11 de dezembro de 1990, art. 5º, § 2º. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 12 dez. 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm. Acesso em 10 maio 2014. 290 BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, art. 93. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 25 jan. 1991. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em 10 maio 2014.
105
Infere-se que políticas públicas podem ser consideradas ações afirmativas,
mas estas, no entanto, podem advir de políticas privadas, portanto não
necessariamente decorrentes de uma ação estatal, ainda que advinda de legislação
decorrente de política pública do Poder Legislativo ou Executivo. Ações afirmativas
podem ser consideradas, desta forma, como políticas institucionais, ou seja,
medidas que decorrem tanto de entes públicos quanto de entidades privados. 291
As ações afirmativas, portanto, sendo consideradas como um mecanismo
utilizado também pela iniciativa privada, estão sendo utilizadas por empresas em
programas de diversidade, objetivando não apenas a melhoria da imagem, mas
também a ampliação de seus meios de competitividade e, sobretudo, para tornar o
ambiente de trabalho mais cooperativo e receptivo às diferenças pessoais. 292
Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio assevera que a busca pela efetiva
concretização do princípio da isonomia, dirigida aos grupos vulneráveis, objetivando
a inclusão social, somente poderá ser implementada com a máxima eficácia, se
contar com ações concretas do Estado (mediante ações no plano de produção
legislativa, e da atividade administrativa) e da atuação empresarial, em consonância
com a atuação do Poder Judiciário.293
Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-Jamra Corrêa
observam, ademais, que a concretização dos direitos fundamentais, previstos na
Constituição, não é obrigação exclusiva da atividade estatal, mas também da
sociedade e do meio empresarial. Os autores citam como exemplo os direitos do
trabalhador (em especial), o respeito ao consumidor, e a preservação do meio
ambiente, cujas violações geralmente ocorrem na esfera das relações privadas.294
291 Manuela Tomei observa que as medidas de ações afirmativas podem decorrer de autoridades legislativas ou administrativas, por meio de ordens judiciais, ou podem ser também voluntárias (no caso, quando advindas de entidades privadas). Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 292 TOMEI, Manuela. Ação Afirmativa para a igualdade racial : características, impactos e desafios. Brasília, OIT, 2005, p.9. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 293 MASTRANTONIO, 2011, p.154. 294 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes, e CORREA, Felippe Abu-Jamra. Responsabilidade social da empresa e as ações afirm ativas : implicações do estatuto da igualdade racial. Curitiba: JM, 2012, p. 81.
106
Contudo, Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-Jamra
Correa advertem que a atividade estatal não deve ser substituída pela atividade
empresarial. A esta incumbe cumprir a função social, no âmbito interno,
implementando os direitos fundamentais que guardam relação com o
desenvolvimento da atividade empresária. Concluem ensinado que a empresa pode
“fazer mais, a título de responsabilidade social. Menos, no entanto, lhe é defeso”. 295
O fundamento jurídico das ações afirmativas, além do mais, é o próprio
princípio da igualdade, o qual, em conformidade como o conteúdo de igualdade
material (substantiva), necessita, para a sua efetivação, mecanismos de igualação
de oportunidades para assegurar a justiça social. Paulo Lucena de Menezes justifica
a implantação de ações afirmativas também sob esta noção de justiça, ao considerar
a existência de desigualdades injustificadas na sociedade.296
Em 1995, visando a promoção de justiça social também nas esferas do poder,
foi estabelecida ação afirmativa por parte do Poder Legislativo, cota mínima de 30%
para as mulheres, nas candidaturas de todos os partidos políticos do país.297Esta
iniciativa teria origem em uma experiência semelhante utilizada pelos Partidos dos
Trabalhadores em 1991, decorrente de reinvindicações e pressões do movimento
feminista naquela época, na busca de espaço na sociedade.298
Esther Duflo observa que na política, medidas de discriminação positiva
(através das cotas) em favor das mulheres, parecem justificadas. A autora observa
que na maioria dos 17 países que atingiram os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio (ODM)299, 30% tinham mulheres entre os parlamentares, ressaltando que
nestes casos alguma forma de discriminação positiva havia sido implementada.
295 Ibid, p. 82. 296 MENEZES, 2001, p.38. 297 BRASIL. Lei n. 9.100, de 29 de setembro de 1995. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 set. 1995. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9100.htm>. Acesso em 10 maio 2014. 298 MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 299 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) surgem da Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada por 191 estados membros em 8 de setembro de2000. Criada para sintetizar acordos internacionais alcançados em cúpulas mundiais nos anos 90 (sobre meio-ambiente e desenvolvimento, direitos das mulheres, racismo, etc.), a Declaração traz compromissos concretos que, se cumpridos, deverão melhorar o destino da humanidade neste século.
107
Conclui que para haver uma representação equilibrada dos sexos, nos espaços de
poder e decisão, “formas de discriminação positiva serão necessárias”.300
Segundo Vera Soares, a previsão de cotas no sistema eleitoral justifica-se,
ademais, em razão do modo como ocorreu a construção da cidadania política e
social no Brasil, o qual contribuiu para a ausência de um forte sentido de direitos.
Observa a autora que “temos uma cidadania considerada tardia, com reflexos
posteriores sobre as práticas e os direitos políticos no país, em particular nas
mulheres”, o que torna a prática das ações afirmativas nesta campo necessárias,
inclusive no caso dos negros.301
Contudo, tanto as mulheres como os negros ainda mantém baixa
representatividade no parlamento brasileiro, principalmente as negras. Segundo um
estudo da União dos Negros pela Igualdade (Unegro), em parceria com a
Universidade Federal de Outro Preto (MG)302, apenas 0,0001% dos negros no país
exercem mandatos nas principais casas legislativas, sendo que destes, há apenas
13 mulheres, ou seja, uma ínfima participação delas na vida política nacional!303
Joaquim Benedito Barbosa Gomes, por derradeiro, assevera que o combate à
discriminação, de uma forma eficaz, nos mais varias âmbitos, não seria viável sem
“o empenho, a determinação, o engajamento e a vontade política dos órgãos que
encarnam o poder político da nação”304. Portanto, medidas há que serem adotadas,
e utilizadas, no combate às práticas discriminatórias sofridas pelas mulheres negras,
especialmente no mercado de trabalho. E, uma medida afirmativa indicada nesta
caso, poderia ser a adoção de cotas raciais.
300 DUFLO, Esther. Igualdade dos sexos e desenvolvimento. In: OCKRENT, Christine (coord.). O livro negro da condição das mulheres. Tradução: Nícia Bonatti. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2011, p. 664. 301 SOARES, Vera. As ações afirmativas para mulheres na política e no mundo do trabalho no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva. Ação Afirmativa e diversidade no trabalho : desafios e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 33. 302 Disponível em: <http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/265-generos-em-noticias/17342-13-mulheres-negras-brasileiras-de-destaque-na-politica>. Acesso: 10 maio 2014. 303 Destaca-se que há em trâmite atualmente uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), sob n. 116/2011, que reserva vagas a parlamentares de origem negra. De acordo com a proposta do deputado petista Luiz Alberto (BA), a cota valerá para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmara Legislativa do Distrito Federal por cinco legislaturas a partir da promulgação da emenda, prorrogáveis por até mais cinco legislaturas. A proposta ainda passará por uma Comissão Especial antes de ir à votação em dois turnos no plenário da Casa. Disponível: <http://www.estadao. com.br/noticias/nacional,ccj-da-camara-aprova-proposta-de-cota-para-parlamentar-de-origemnnegra, 1091391,0.htm>. Acesso em 10 maio 2014. 304 GOMES, 2001, p. 53.
108
3.2 A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL
Alvaro Ricardo de Souza Cruz explica que as políticas afirmativas não se
confundem exclusivamente com a implantação de cotas, não havendo dúvida,
contudo, de que constituem “um aspecto nodal na questão”. As ações afirmativas,
segundo o autor, podem ser consideradas quaisquer posturas, tanto de ordem
estatal, quando privada, em favor da integração sócio-econômica dos grupos
vulneráveis, garantindo-lhes, ademais, uma identidade sociocultural.305
Almiro de Sena Soares Filho observa que as cotas étnico/raciais enunciam
uma espécie das affirmative action (no direito americano), e discrimination positive
ou action positive (no direito europeu), sendo adotadas há muitos anos em outros
países, como Estados Unidos, África do Sul, Canadá e Índia. A sua utilização, além
do mais, não é recente para o mundo jurídico contemporâneo, principalmente nas
sociedades mais desenvolvidas, cujos regimes democráticos são mais estáveis.306
Resta claro, deste modo, que embora as ações afirmativas sejam,
frequentemente, associadas à fixação de cotas, ou seja, a reserva de espaços em
favor de grupos sociais que necessitam ser beneficiados (a fim de promover-lhes a
inserção social), consistem elas em uma mera modalidade de tais ações. A
utilização das cotas objetiva, assim, corrigir possíveis discriminações.307
A previsão de cotas, todavia, por se uma medida especial, tomada no tempo e
focada em determinada questão, deve persistir até o momento em que as distorções
sejam diminuídas, e melhor, eliminadas, não devendo perdurar indefinidamente para
não vir a provocar outras distorções. No caso das cotas raciais, até que “em
algumas gerações, a cor da pele seja irrelevante”, conforme assevera Luís Roberto
Barroso308.
305 CRUZ, 2009, p.185. 306 SOARES FILHO, 2010, p. 154. 307 MASTRANTONIO, 2011, p.139. 308 BARROSO, Luís Roberto. ”Cotas e Justiça Racial: de que lado você está?” , artigo de 06 maio 2013. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-mai-06/luis-roberto-barroso-justica-racial-lado-voce>. Acesso em 01 maio 2014.
109
Há, portanto, condições que devem ser observadas em relação ao sistema de
cotas. Segundo Thereza Cristina Gosdal, a utilização das cotas deve ser temporária,
tendo durabilidade até que seja estabelecido o equilíbrio relativo ao determinado
grupo em situação vulnerável. Ressalta a autora que tal medida é necessária para o
rompimento dos preconceitos, para a alteração de relações socias, bem como para
o próprio aspecto simbólico envolvido, podendo, inclusive, exercer um papel
transformador na sociedade.309
Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio também ressalta a necessidade da
previsão da regra de temporalidade como condição jurídica para a utilização das
ações afirmativas, vez que elas têm por objetivo a criação de um “status jurídico”
excepcional, com caráter provisório em favor de determinados grupos discriminados.
Ademais, a autora informa a necessidade de verificação de outras regras, como:
objetividade, proporcionalidade, razoabilidade, finalidade, e não onerosidade
excessiva para outros grupos ou para a sociedade em geral.310
Entretanto, segundo Manuela Tomei, as medidas temporárias não devem ser
confundidas com medidas de curto prazo, conforme experiências em outros países
do mundo. A autora observa que tanto para as medidas temporárias como para as
permanentes, é essencial a existência de monitoramento regular da lei e da prática
para pôr fim ao tratamento diferencial quando ele não se fizer mais necessário.311
As ações afirmativas, em especial as cotas, devem ser, portanto, temporárias
e dotadas de especialidade, características estas que, segundo Luciana de Oliveira
Leal, necessitam estar demonstradas no próprio ato que as estabeleceu. Assim,
quando da implementação de cotas, seja no mercado de trabalho, como no ensino,
há que estar indicado o lapso temporal estimado, e os motivos que o justificaram.312
De outro lado, ensina Luis Roberto Barroso que o discrimen utilizado deve
passar, antes, pelo crivo da razoabilidade, a fim de verificar “se o meio empregado e
309 GOSDAL, 2003, p. 129. 310 MASTRANTONIO, 2011, p. 139. 311 TOMEI, 2005, p.16. 312 LEAL, 2009, p.17.
110
o fim perseguido são compatíveis com os valores constitucionais”.313 Desse modo,
quando da previsão de cotas, é necessário verificar no caso concreto se a medida
atende o princípio da razoabilidade, sob pena da norma instituidora de tais medidas
possuir grande possibilidade de ser considerada inconstitucional.
O ordenamento jurídico brasileiro, conforme já verificado, considerando a
constitucionalidade do sistema de cotas, acolheu, ainda que de forma pontual, este
sistema em relação à participação no poder (de gênero), e no mercado de trabalho
(aos deficientes). Insta ressaltar, ademais, que em relação à discriminação racial e
social, o ordenamento pátrio previu cotas raciais tanto no âmbito do trabalho (esfera
pública), como cotas sociais/raciais no acesso às universidades.
Segundo informam Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-
Jamra Corrêa,314 o primeiro caso no país de discriminação positiva para os negros
foi o sistema de cotas instituído nas universidades do Estado do Rio de Janeiro (Lei
Estadual nº 3.708/2001)315, a qual estabeleceu a cota mínima de 40% para a
população negra e parda, no preenchimento de vagas relativas ao curso de
graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e da Universidade
Estadual do Norte Fluminense.
No entanto, a referida Lei foi revogada pela Lei Estadual nº 4.151/2003,316 a
qual alterou o sistema de cotas para 20% das vagas nas instituições públicas de
ensino superior, mantidas e administradas pelo Estado do Rio de Janeiro, para
estudantes oriundos da rede pública de ensino; 20% para negros; e 5% para os
portadores de deficiência e filhos de policiais mortos em razão de serviço.
313 BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação. 2ª ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 35. 314 BERTONCINI, 2012, p. 65. 315 RIO DE JANEIRO. Lei nº 3.708, de 9 de novembro de 2001. Instituiu cota de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, RJ, 11 dez. 2001. 316 RIO DE JANEIRO. Lei nº 4.151, de 4 de setembro de 2003. Instituiu nova disciplina sobre o sistema de cotas para o ingresso nas universidades públicas estaduais e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, RJ, 05 set. 2003.
111
Outras medidas judiciais houveram referente à discussão do sistema de cotas
nas universidades no país317. Contudo, a mais significativa foi a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186318, em 2012.Esta ação
tramitou perante o STF, por intermédio da qual o Partido Democratas, sendo nela
postulada a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos da
Universidade de Brasília, que utilizaram como política de admissão o critério racial
na seleção de candidatos para o ingresso na universidade.
Nos autos, o Ministro Lewandowski afirmou que tais políticas estabeleciam
“um ambiente acadêmico plural e diversificado, tendo por objetivo a superação de
distorções sociais historicamente consolidadas”. O ministro confirmou que os meios
empregados e os fins perseguidos pela UNB são marcados pela “proporcionalidade
e razoabilidade”, e as políticas eram “transitórias” prevendo a revisão periódica dos
resultados. Quanto aos métodos de seleção, considerou-os “eficazes e compatíveis”
com o princípio da dignidade humana.319
Nesse julgamento favorável ao sistema de cotas na UNB, o ministro relator
arguiu que para a efetivação do princípio constitucional da igualdade, o Estado pode
sim lançar mão também de ações afirmativas, as quais consideram a situação real
de determinados grupos socias. Considera-se que tal decisão significou um divisor
de águas, em relação ao assunto do sistema de cotas raciais nas universidades,
pois a partir de então, o tema restou pacificado pelos Tribunais no país.320
No mesmo ano do julgamento da APDF, em 2012, houve a edição da Lei nº
12.711/12 que, consolidando o entendimento acerca do tema, previu vagas aos
estudantes brasileiros das escolas públicas, de baixa renda familiar, a fim de
obterem melhores condições de ingressar nas universidades públicas do país.321
317 Ressalta-se a instituição do PROUNI, através da Lei nº 11.096/2005, que previu “bolsas de estudo” para pessoas portadoras de deficiência, índios e negros, conforme visto em capítulo anterior. 318 BRASIL, ADPF 186. Julgamento em 26.4.2012. 319 Ibid. 320 Observa-se que o STF há havia enfrentado a questão racial no Habeas Corpus (HC 82424), impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, acusado por ser o responsável pela edição e venda de livros fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias em relação à comunidade judaica. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=61291>. Acesso em: 10 maio 2014. 321 Lei nº 12.711/12 – Esta “lei de cotas” é válida inicialmente por dez anos, a partir de agosto de 2012. O regime de cotas sociais/raciais no ensino brasileiro garante 50% das vagas das universidades federais, e dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, aos alunos que estudaram durante todo o ensino médio em escola pública. Para cada uma dessas condições de
112
Insta observar, em relação a parte histórica das ações afirmativas, que
embora haja entendimento por parte de doutrina que as suas origens tenham
ocorrido na Índia,322 Antonio Celso Baeta Minhoto esclarece que a criação dessas
ações seria atribuída aos EUA, pois foi lá que a esta política com caráter social foi
criada, desenvolvida e amadurecida de forma ampla e completa. O autor informa
que a existência de tais políticas em países como a África do Sul (onde o regime do
aparheid durou de 1948 a 1990)323 e Índia324, ocorreram tendo por motivação
principal o combate à exclusão social, mas sob outro modelo.
A política de cotas, referente ao problema da questão racial, utilizadas nas
universidades norte-americanas, foi por diversas vezes levada à Suprema Corte
daquele país. Em 1978, a Universidade da Califórnia estabeleceu cotas para negros,
hispânicos e outros grupos desfavorecidos, porém aquele Tribunal afirmou serem as
mesmas inconstitucionais325. Em 2003, no entanto, aquela Corte reviu a sua
posição.326Segundo observa Estevão Mallet, a Suprema Corte validou a adoção de
cotas para negros nas universidades americanas.327
Notícia veiculada em 22 de abril de 2014 informa que a Suprema Corte dos
Estados Unidos decidiu, por seis votos contra dois, a constitucionalidade de uma
medida aprovada por referendo em Michigan328, que dissolvia a ação afirmativa nas
universidades daquele estado. Ressalta-se, contudo, que a decisão não tratou sobre
o constitucionalidade de implementação de cotas raciais nas universidades, mas sim
de quem deve resolvê-la (se podem os eleitores locais, através de plebiscito, fazê-lo
ou não).329
renda, um percentual das vagas é destinado a quem se auto declarar preto, pardo ou indígena, na mesma proporção em que esses segmentos são encontrados no estado onde está instalada a instituição de ensino, de acordo com o mais recente censo do IBGE. 322 Neste sentido entendeu o ministro Lewandowski nos autos de ADPF 186, julgado em 26.4.2012. 323 BERTONCINI, 2012, p. 57. 324 MINHOTO, 2013, p. 47. 325 Regents of the University of Caifornia versus Bakke (438 US 265). CRUZ, 2009, p. 169. 326 Grutter v. Bollinger (000 U.S. 02-241). MALLET, 2013, p. 107. 327 MALLET, 2013,107. 328 Michigan é um dos oito Estados americanos a banir as ações afirmativas. Ela se soma ao Arizona, Flórida, Nebraska, New Hampshire, Oklahoma, Washington, e Califórnia, onde, em 1996, iniciou este movimento. 329 Disponível em:<http://oglobo.globo.com/sociedade/suprema-corte-dos-eua-respalda-fim-de-crite rios-raciais-em-admissao-de-universidades-do-michigan-12262088>. Acesso em: 10 maio 2014.
113
Ainda em relação à utilização de ações afirmativas nos EUA, ressalta-se que
no campo das relações do trabalho houve também a sua validação. Estevão Mallet
informa que tal fato ocorreu no ano de 1970, no julgamento do caso Steelworkers
versus Weber, reconhecendo a validade de uma norma coletiva celebrada
juntamente com Sindicato. A norma previa promoção preferencial de trabalhadores
negros, os quais eram preteridos pelo setor.330
Álvaro Ricardo de Souza Cruz informa que, no entanto, o caso Weber,
embora tenha sido vencedor nas instâncias inferiores, acabou sendo derrotado na
Suprema Corte dos EUA. Mas o cerne da questão desta última decisão, segundo o
autor, era a verificação da possibilidade da legislação americana poderia contemplar
os planos privados de ações afirmativas,331 e não a constitucionalidade de cotas no
mercado de trabalho para indivíduos negros.
Os julgamentos ocorridos na Suprema Corte Americana, todavia, podem ter o
entendimento alterado, sendo variável a compreensão quanto a legitimidade e
alcance da utilização de cotas raciais, em razão da composição dos juízes daquele
Tribunal. Assim, o entendimento sobre tal tema ora pode ser mais conservador, ora
mais liberal. Atualmente, contudo, a utilização das ações afirmativas, conforme já
verificado, permanecem plenamente válidas, sendo utilizadas naquele país.332
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, ademais, destaca a importância que teve a
criação da Agência Federal EEOC na implantação das ações afirmativas no campo
das relações empregatícias nos EUA. A agência americana cuida dos casos onde
ocorrem discriminações, no campo do trabalho, inclusive raciais, atuando de forma
muito útil também em juízo nestas situações, tendo muito utilidade na questão
probatória.333
Manuela Tomei lembra que ainda nos EUA, em 1964, foi editado o Civil
Rights Act, o qual determinou que os empregadores, com 100 ou mais empregados
deveriam fornecer estatísticas sobre o número de trabalhadores de cada raça,
anualmente. O ato incluía as agências de emprego, sindicatos e empresas. A autora
330 MALLET, 2013, p.108. 331 CRUZ, 2009, p.166. 332 BERTONCINI, 2012, p. 73. 333 Idem, p. 167.
114
informa ainda que desde o ano de 1972, os empregadores dos setores públicos e
privados, com mais de 15 empregados, tem o dever de cumprir aquela norma.334
Segundo Tomei, diversos países adotam políticas de ações afirmativas para,
em consonância com a Convenção n. 111 (OIT), criar mecanismos de combate à
discriminação racial no âmbito do trabalho, entre eles: EUA, Canadá, Irlanda do
Norte, Índia, e a Malásia. Mas, segundo a autora, apenas estes dois últimos países
adotam o sistema de cotas raciais, como espécie de práticas positivas na inclusão
de trabalhadores negros.335
No tocante à justificativa de cotas em relação a discriminação de gênero, no
mercado de trabalho, Vera Soares as justifica em razão de que a “problematização
da presença das mulheres no mundo do trabalho ainda é muito débil.”336
Diante da precariedade do trabalho feminino, alguns países, inclusive,
adotaram cotas de gênero para determinados cargos. A considerável expansão da
mulher nesse campo, em diversas partes do mundo, parece ser algo evidente,
embora ainda marcado por algumas desigualdades, as quais alguns países têm
tentado combater através de política de implantação de cotas nas empresas.
Em especial no continente europeu, tal política teve início já há alguns anos,
como, por exemplo, em 2004 na Noruega (país o qual tem liderado, ultimamente,
ranking mundial de desenvolvimento humano)337, quando o governo local obrigou
empresas públicas e privadas de capital aberto a adotarem cotas para mulheres em
seus conselhos diretores. Pela regra, 40% dos assentos de conselhos diretores são
reservados para mulheres.
Aparentemente o efeito dessa imposição parece ter sido positivo, pois além
de ser considerado um dos melhores países para se viver, inclusive com o continua
elevação de seu PIB, a medida lá adotada acabou por servir de exemplo a outros
países, também na Europa, como, por exemplo, Espanha, que as adotou em 2007,
e, em 2011, França, Itália, Holanda, Bélgica, e Islândia. 334 TOMEI, 2005, p. 19. 335 Idem, p. 14. 336 SOARES, Vera. As ações afirmativas para mulheres na política e no mundo do trabalho no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva. Ação Afirmativa e diversidade no trabalho : desafios e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 45. 337 Disponível em: <www.bbc.co.uk/portuguese/.../09/120919_cotas_mulheres_ru.shtml>, acessado em 10 maio 2014.
115
Ressalta-se que tamanha foi a aceitação, que a vice-presidente da Comissão
Européia, Viviane Reding, cogitou, no ano de 2012, a possibilidade de implantar a
política de cotas femininas nas empresas dos 27 membros do bloco, no intuito de
tentar corrigir a falta de diversidade no topo das empresas, permitindo, desta forma,
que as mulheres possam alcançar postos de liderança com maior rapidez.338
Naquele continente, de forma não muito diferente do Brasil, a porcentagem da
presença feminina nas empresas é de 50%, sendo, contudo, nos conselhos
corporativos apenas 12% a participação delas339. Neste país, o índice é de 8% de
mulheres nesses conselhos das companhias abertas, conforme Instituto Brasileiro
de Governança Corporativa, sendo ainda menor em algumas empresas públicas340.
No Brasil, cotas de gênero, no campo do trabalho, não existem atualmente.
Mas está em trâmite um projeto de lei no Senado neste sentido, a exemplo da
política adotada em países europeus, prevendo igualmente 40% de vagas para
mulheres, nos conselhos de administração de empresas públicas e sociedades de
economia mista, com o objetivo de tornar efetiva a presença de mulheres das
empresas cujo capital majoritário seja da União.
O projeto que prevê cotas para mulheres tramita sob nº PLS 112/2010341, de
autoria da senadora Maria do Carmo Alves, filiada ao partido DEM/SE, prevê ainda
que as empresas estariam livres para realizar o preenchimento de cargos, contanto
que elas respeitem os limites mínimos estabelecidos pela lei, para o preenchimento
das cotas, que são: 10% até 2016, 20% até 2018, 30% até 2020, e fechando os 40%
até 2022. 342
Conquanto não existam cotas de gênero no campo do trabalho no país, há
previsão de cotas raciais no âmbito laboral, as quais se situam, exclusivamente, no
serviço público federal (tal qual em trâmite as cotas raciais atualmente). No setor
privado, informa Benjamin Gonçalves que, em um total de 500 empresas
338 Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/09/120919_cotas_ mulheres_ru. .shtml>. Acesso em 10 maio 2014. 339 Ibid 340 Disponível em: <http://www.ibgc.org.br/PressRelease.aspx?CodPressRelease=415>.Acesso em 10 maio 2014. 341 PLS – Projeto de lei do Senado Federal, nº 112, de 2010. Autora: senadora Maria Carmo Alves (partido DEM/SE). 342 Disponível em: < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106392>. Acesso em 10 maio 2014.
116
pesquisadas, apenas 7% desenvolviam programas especiais para contratação de
pessoas usualmente discriminadas no mercado de trabalho (como mulheres, negros
e indivíduos com mais de 45 anos de idade). Porém não havendo nenhum indicativo
da existência de cotas raciais nas referidas contratações.343
No ano de 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF), em observância à
Convenção n. 111 (OIT), demonstrou preocupação com a igualdade de
oportunidades na área do emprego, notadamente à questão da discriminação racial.
Este Órgão fixou no edital da licitação que cuidava da contratação de terceirizados
para prestação de serviços gerais, a estipulação de cota de 20% de empregados
afrodescendentes, para admissão nos quadros da empresa a ser contratada.344
Também em 2001, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA foram
os primeiros órgãos do governo federal a institucionalizar um programa de ações
afirmativas, seguidos pelo Ministério da Justiça, que pretende ter 45% do quadro de
funcionários formados por mulheres, negros e deficientes. Desde 2002, todas as
empresas que prestam serviços para esses órgãos têm que reservar 20% de vagas
para negros, embora parte dos servidores públicos sejam terceirizados.345
O Ministério da Cultura, em agosto de 2002, instituiu o Programa de Ações
Afirmativas, adotando cotas de 20% no preenchimento de funções de direção e
assessoramento superior, e determinando cláusulas de promoção da igualdade nos
convênios ou cooperação técnica. O Ministério de Comunicação, em fevereiro de
2003, determinou que as campanhas publicitárias da Presidência da República, dos
ministérios, das estatais e das autarquias federais respeitem diversidade.346
O Ministério das Relações Exteriores, no ano de 2002, previu cotas raciais
(10% na primeira fase) para a seleção de candidatos a diplomatas, realizado pelo
Instituto Rio Branco. E desde 2011, o Itamaraty (sede do Ministério) incorporou outra
ação afirmativa à seleção. O órgão passou a aprovar, para a segunda fase da
prova,10% a mais de candidatos em grupo integrado exclusivamente por bolsistas
343 GONÇALVES, 2003, p.22. 344 BRITO FILHO, 2002, 57. 345 DOMINGUES, 2005, P.17. 346 Idem, p.17.
117
negros. Esta política, no entanto, é única no âmbito da Administração Pública
Federal.347
No Instituto Rio Branco (que forma os diplomatas) os cotistas são
selecionados em lista à parte, por ordem de classificação, desde que cumpram o
requisito mínimo para aprovação (40% de acertos). Além disso, há uma parceria
com a Fundação Palmares que oferece bolsas de estudo (R$ 25 mil anuais em
dinheiro) para que pessoas negras possam comprar livros e material de estudo, e
custear cursos preparatórios e professores particulares.348
Entre os Governos e assembleias legislativas dos 26 estados, e Distrito
Federal, apenas o Paraná, Mato Grosso do Sul, e mais recentemente Maranhão e
Rio de Janeiro utilizam a reserva de cotas raciais nos concursos públicos desta
esfera pública. Há, no entanto, localidades onde ainda não existe regra válida para
todo o estado, como no Rio Grande do Sul e o Espírito Santo, onde poucos municípios
adotam a prática.349
No Paraná, desde 2003, a Lei 14.274/03350 reserva 10% das vagas para negros
em concursos estaduais. Contudo, esta lei ainda não prevê mecanismos de controle
para a verificação da declaração dos candidatos afrodescendentes (atualmente os
candidatos que se declaram negros passam por uma seleção “visual”, onde são
verificadas características como: cor da pele e tipo do cabelo)351. Em concursos públicos
municipais do estado, são apenas 9 as cidades paranaenses que aderiram a política.352
Recentemente o Poder Executivo Federal elaborou projeto de lei (PL
6.783/13), que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais a
candidatos negros e pardos. A proposta aplica tal reserva aos órgãos da
administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas e
sociedades de economia mista.353 No entanto, embora tenha sido aprovado pela
347 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2912201009.htm>. Acesso em: 10 maio 2014. 348 Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2013/06/vagas-para-diplomata-caem-e-disputa-cresce-veja-graduacoes-que-passam.html>. Acesso em: 10 maio 2014. 349 Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2011/06/pr-e-ms-ja-adotam-cotas-para-negros-em-concursos-estaduais.html. Acesso em 10 maio 2014. 350 Disponível em:<http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto= 252&indice=1&totalRegistros=1>. Acesso em 10 maio 1014. 351 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1431351&tit== Cotas-raciais-no-servico-publico-dividem-opinioes>. Acesso em 10 maio 2014. 352 Disponível em: < http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/12/pesquisa-desfaz-mitos-de-que-cotas-raciais-no-servico-publico-nao-sao-necessarias-6001.html>. Acesso em: 10 maio 2014. 353 Exemplo: Petrobrás, Caixa Econômica Federal, os Correios e o Banco do Brasil.
118
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em 7 de maio de 2014, aguarda votação
(em regime de urgência) pelo plenário do Senado Federal.354
Em referido projeto, a cota racial terá validade de dez anos, não sendo
aplicável aos concursos cujos editais tenham sido publicados antes da vigência da
lei. Para concorrer a essas vagas, os candidatos deverão se declarar negros ou
pardos no ato da inscrição do concurso, conforme o quesito de cor ou raça usado
pelo IBGE. O projeto determina ainda a adoção da cota racial sempre que o número
de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a três, não
mencionando, no entanto, os cargos em comissão.355
Assim, a exemplo do serviço público e das nações onde já se utilizam cotas
como medidas afirmativas, estas, quiçá, poderiam ser adotadas também no setor
privado do país, em parcerias com as empresas,356 a fim de auxiliar no combate à
discriminação racial, bem como na promoção da igualdade de oportunidade
daqueles que enfrentam desigualdades socias357 (como é o caso das trabalhadoras
negras, por exemplo).
3.3 DESAFIOS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA
ATRAVÉS DE COTAS
Ressalta-se que, inobstante a tentativa de implementação de ações
afirmativas nas empresas, no ano de 1968, por técnicos do Ministério do Trabalho (a
qual não chegou a ser efetivada), resta demonstrado que a separação de vagas
para negros no mercado de trabalho não é inovação, pelo contrário, a preocupação
com a questão da discriminação racial no mercado de trabalho remanesce há muito
tempo no país.
354 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1467113>. Acesso em 10 maio 2014. 355 Idem. 356 Conforme previsão contida no art.39, do Estatuto da Igualdade Racial , instituído pela Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, e em consonância com a Convenção n. 111, da OIT. 357 BERTONCINI, 2012, p.190.
119
As ações afirmativas, em especial a política de cotas raciais, passaram a ser
utilizadas no mercado de trabalho brasileiro há pouco mais de uma década358, mas
tão somente no serviço público. Assim, para que o problema da discriminação
ocorrida em face das trabalhadoras negras possa ser, efetivamente, enfrentado e
resolvido, surge a possibilidade da utilização de cotas raciais direcionado a elas,
através da atividade empresarial (mediante imposição legal ou voluntariamente).
O texto constitucional, em 1988, não enfrentou explicitamente a questão do
negro no mercado de trabalho. É de se indagar, todavia, a razão pela qual é difícil
para muitas pessoas aceitarem que os negros, em especial as mulheres, de fato têm
dificuldades em se alocarem nesse mercado em igualdade de condições (por
questões de gênero e raciais). Essa dificuldade, contudo, é de difícil resolução
natural, necessitando da influência do Estado e da sociedade em geral.
A realidade da mulher negra no Brasil, segundo demonstram as pesquisas, é
precária. Elas possuem acesso limitado a determinas funções e cargos (estando
muitas relacionadas ao serviço doméstico), recebem salários inferiores em relação
tanto aos homens, como às mulheres brancas, além de terem maior dificuldade de
reinserção no mercado de trabalho (as negras são as que permanecem mais tempo
desempregadas). Além do mais, muitas são vitimas também de insultos ocorridos
dentro do ambiente laboral.359
A ocorrência de discriminação racial no Brasil, notadamente em relação às
mulheres negras é, portanto, um fato evidente! E por não se tratar de um mito, mas
sim de uma realidade, impõem-se um tratamento diferenciado a fim de implementar
o direito à igualdade no mercado de trabalho para esta categoria vulnerável. Neste
contexto, torna-se imperioso, primeiramente, o reconhecimento de tal fenômeno.
Observa-se, conforme já verificado, que foi na década de oitenta que tiveram
início os estudos referentes às desigualdades raciais no país, mas que, entretanto,
apenas após 1995 o resultado foi divulgado para a sociedade em geral.360 A partir de
358 Observa-se que o Paraná foi um estado pioneiro a prever cotas raciais no acesso ao serviço público, no ano de 2003, através da edição da Lei estadual 14.274/PR. Ademais, a UFPR, desde 2004, segue a Resolução 1.707, que destina 40% das vagas a cotistas sociais e raciais nas universidades. 359 Conforme dados demonstrados no Capítulo 2 desta pesquisa. 360 Ressalta-se que no ano de 1995 ocorreu no Brasil o movimento negro Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e a vida, em Brasília, do qual decorreu a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI).
120
então, houve campanhas contra o racismo, realizadas pelos movimentos negros, os
quais apontaram que práticas discriminatórias eram mais acentuadas nos estratos
de maior escolaridade, deixando transparecer, logo, a discriminação como fator
explicativo para os resultados obtidos na maior parte das pesquisas já realizadas.361
Antonio Sergio Guimarães assevera que existe, na sociedade brasileira, uma
verdadeira “guerra ideológica” em torno das cotas raciais. O autor observa que há
tanto opiniões favoráveis como contrários à implantação de tais políticas, utilizando-
se, cada qual, de seus próprios argumentos.362
Segundo o autor, os opositores à implantação de ações afirmativas, em
especial à utilização das cotas, adotam suas linhas de defesa em nome de uma
“democracia racial”. Esses se utilizam basicamente de dois argumentos: o primeiro
se refere à institucionalização racial, ou seja, a adoção de políticas raciais poderia
dividir a população brasileira em brancos, negros e indígenas, levando à racialização
da sociedade brasileira.363
A segunda argumentação utilizada pelos oponentes daquelas ações se refere
ao argumento de inexistência das “raças” humanas para a ciência moderna. Nesta
concepção, a discriminação (positiva) racial, portanto, seria infundada, visto a
possibilidade de negros brasileiros terem ancestralidade branca, e brancos
brasileiros terem ancestralidade tanto indígena como africana, assevera Guimarães,
baseado nos conceitos do geneticista Sérgio Pena.364
Neste sentido entendem também Peter Fry e Yvonne Maggi, para os quais a
implementação de cotas em nada iria afetar as “elites endinheiradas do país”. Para
os autores, seria a classe média, principalmente a baixa ascendente, que seriam as
prejudicadas, considerando a notável expansão do ensino médio nos últimos anos, e
o consequente acesso às Universidades em geral. Asseveram que tal política,
mesmo sendo de curto prazo, teria consequências sentidas em um longo prazo.
361 GUIMARÃES, 2012, p. 125. 362 Idem, p. 125. 363 Idem, p. 125. 364 Idem, p. 126.
121
Ademais, o Estado, ao legislar sobre esta matéria, estaria fundando uma “raça”,
criando, justamente, aquilo que se pretendia ver destruído, concluem os autores.365
Ali Kamel é outro autor conhecido por sua posição radicalmente contrária à
“política de preferência racial”. Assevera o autor que a implementação de cotas
representa um “caminho mágico sedutor”, aduzindo que para muitos “basta facilitar o
acesso dos negros e pardos às universidades para que todos os problemas estejam
resolvidos, quando, na verdade, estarão apenas começando”. Justifica tal
entendimento arguindo que além de não haver garantias quanto à eficácia das
cotas, elas podem ensejar o aparecimento do “ódio racial”. 366
Além destas justificativas, há outras ainda também contrárias a utilização das
ações afirmativas. Segundo informa Fátima Bayma, os indivíduos em desacordo
com tais políticas costumam argumentar que elas seriam injustas por desconsideram
o critério do mérito e, portanto, poderiam levar a uma espécie de discriminação
reversa. E, uma vez ocorrendo esta discriminação, estar-se-ia incitando o ódio entre
as raças, o que aumentaria ainda mais o racismo e a discriminação na sociedade
brasileira. 367
Antonio Celso Baeta Minhoto destaca que o tema meritocracia, quando
relacionado ao assunto cotas, seja relacionado à área da educação, como na área
do trabalho, é uma questão importante a ser tratada, visto que comporta
subjetividade em sua abordagem. A meritocracia, para o autor, traz (ou pode trazer)
consigo “uma carga considerável de ideologias, bem como concepções morais,
sociológicas, antropológicas e até psicológicas.”368
Assevera Antonio Celso Baeta Minhoto que nas discussões acerca do mérito,
referente ao acesso às ações afirmativas, pretende-se colocar os possíveis
beneficiários como “aquinhoados que nenhum esforço envidaram para gozar de tais
benefícios, deixando-se de lado o fato de que a própria noção de empenho e esforço
é bastante relativizada no país.” E conclui observando que embora tais políticas
relativizem a questão do mérito, elas não devem impedir a sua adoção pelo Estado
365 FRY, Peter, MAGGIE, Yvonne. Política social de alto risco. In: FRY, Peter et al (org.). Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.280. 366 KAMEL, 2006, p. 143. 367 BAYMA, 2012, p.17. 368 MINHOTO, 2013, p. 174.
122
democrático de Direito, o qual está fundado em valores que tais ações visam a
contemplar.369
José Roberto Pingo Góes, desfavorável à implantação de cotas no sistema
educacional, no entanto, faz críticas em relação à assertiva de que as cotas teriam,
entre seus os objetivos, o rompimento do sistema meritocrático, o qual estaria ao
alcance de indivíduos privilegiados na sociedade. Segundo o autor, “não é o sistema
de mérito que gera injustas desigualdades, mas a precariedade da rede escolar
pública”. Questiona também sobre a possibilidade de imputação de responsabilidade
de fatos ocorridos no passado (escravidão) para a atual sociedade.370
Thereza Cristina Gosdal informa que outra justificativa para posições
contrárias às ações afirmativas e ao sistema de cotas, seria porque estas igualam e
equilibram de uma forma artificial a representação de determinados grupos, como,
por exemplo: as mulheres e os negros. Ademais, observa que para combater a
discriminação destes grupos, alguns autores sugerem a utilização de outras medidas
que sejam menos “dramáticas e estereotipantes”.371
A implementação de cotas, portanto, seja no sistema educacional, como no
ambiente de trabalho, possui diversas críticas. Simone Aparecida Barbosa
Mastrantonio observa que os oponentes que atribuem cunho negativo à tal política,
apontam a existência de diversas falhas, sendo necessário, desta forma, um arsenal
de outras medidas para corrigir os desequilíbrios existentes no mercado de trabalho,
a fim de evitar desigualdades ainda maiores neste meio. 372
Demétrio Magnoli critica a adoção de política de cotas raciais. Segundo o
autor, a população brasileira, em toda a sua história, “não aprendeu a separar as
pessoas segundo o cânone do mito da raça”, e por este motivo, as cotas viriam a
despertar a atenção para tal questão. Observa, ademais, que segundo especialistas,
diferenças genéticas dos grupos humanos não tem importância na interpretação das
369 Idem, p. 174. 370 GÓES, José Roberto Pinto de. O Racismo vira lei. In: In: FRY, Peter et al (org.). Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.197. 371 GOSDAL, 2003, p. 128. 372 MASTRANTONIO, 2011, p. 183.
123
diferenças sociais ou culturais373, não podendo ser admitido, portanto, o termo raça
em discursos de políticas afirmativas.
Outro argumento, contrário à adoção de cotas, ser refere à alegação de que,
sendo discriminatórias, seriam inconstitucionais. Ou seja, não ser reconhece este
tratamento diferenciado para que a igualdade seja alcançada. Paulo Lucena de
Menezes observa, contudo, que “a constitucionalidade de questões envolvendo a
matéria terá de ser, necessariamente, investigada em cada situação concreta,
segundo o método de averiguação do princípio da igualdade jurídica.”374
Por outro lado, os defensores dos programas afirmativos procuram justificar a
opção por tais medidas de combate à discriminação racial, utilizando, basicamente,
como principais argumentos, a reparação histórica pelo sofrimento do passado, a
inclusão e a diversidade social. Tais argumentos se traduzem nos postulados
filosóficos: Justiça Compensatória e Justiça Distributiva, respectivamente.
A Justiça Compensatória está baseada na retificação de injustiças cometidas
contra indivíduos no passado, visando a promover o resgate da dívida histórica, no
caso dos negros, do período da escravidão a que foram submetidos. Mas o
problema deste argumento seria o de identificar quem seriam os beneficiários do
programa compensatório (restaurador), já que os negros de hoje não sofreram
diretamente os danos, bem como identificar quem arcaria com a reparação (no caso,
a sociedade atual), conforme já visto anteriormente.375
Sob a ótica da Justiça Distributiva, a utilização das ações afirmativas estaria
relacionada a uma distribuição mais igualitária das oportunidades, de forma a
facilitar o acesso dos desfavorecidos a bens que alcançariam (direitos, vantagens,
riquezas entre outros), caso não fossem excluídos histórica e culturalmente.
Ressalta Joaquim Benedito Barbosa Gomes que os partidários desta tese
vislumbram um substrato utilitarista. Assim, a redistribuição dos benefícios e os ônus
na sociedade teriam como efeito a promoção do bem-estar na sociedade.376
373 MAGNOLI, 2009, p. 58. 374
MENEZES, 2001, p. 152. 375 GOMES, 2001, p. 62. 376 Ibid, p.68.
124
Há também diversos autores que se mostram favoráveis às ações afirmativas.
Thereza Cristina Gosdal, por exemplo, observa que na análise das experiências
ocorridas em países da Comunidade Européia, os resultados se revelam vantajosos
também às empresas, na medida em que acabam dando retorno econômico positivo
às mesmas. O reconhecimento e a valorização das diferenças “passam a ser
estratégia de competitividade para a empresa”, assevera a autora.377
As políticas afirmativas, para Ronald Dworkin, na perspectiva do sistema
americano, não podem ser consideradas contraproducentes, visto que têm se
mostrado, ao contrário, que são bem-sucedidas (ou seja, funcionam!) conforme
demonstram as estatísticas daquele país. Ademais, tais políticas também não
podem ser consideradas injustas, visto que “não transgridem os direitos individuais
nem comprometem nenhum princípio moral”, logo, as diretrizes das ações
afirmativas podem ser consideradas justas, segundo o autor.378
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, por um lado, observa que ações afirmativas
são medidas que se prestam a “efetivação dos princípios constitucionais da
dignidade humana, do pluralismo e da concepção procedimental da igualdade no
paradigma do Estado Democrático de Direito”. Contudo, de outro lado, adverte que
essas políticas não se limitam ao estabelecimento de cotas, devendo ir mais além,
sob pena de perderem a sua legitimidade, e transformar-se em “cota cega” (como,
segundo o autor, é o caso das cotas raciais nas universidades federais no país).379
Assevera Luis Roberto Barroso, em concordância com a implementação de
ações afirmativas pelo Estado, que:
A própria Lei Maior desequipara as pessoas com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional, nacionalidade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas, como, ao contrário, impõe o tratamento desigual .”380 (grifos acrescidos)
377 GOSDAL, p. 130. 378 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualda de. Tradução: Jussara Simões. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 578. 379 CRUZ, Alvaro Ricardo de Souza. O Direito à Diferença. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2009, p. 231. 380 BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: VIANA, Marcio Tulio; RENAULT, Otavio Linhares (coord.). Discriminação : estudos. São Paulo: Ltr, 2000, p. 32.
125
Michael J. Sandel observa que o princípio da diversidade, utilizado como
principal argumento na implementação de ações afirmativas nos EUA, se justifica
em nome de um bem comum, qual seja: o bem comum da própria universidade e
também da sociedade em geral. No entanto, nele também se verificam objeções,
entre as quais a de que não haveria como garantir existência de uma sociedade
mais diversificada, nem uma maior conscientização, podendo-se correr o risco,
inclusive, de gerar tensões entre as partes que se submetessem às essas ações.381
Para Mateus Eduardo Bertoncini, as políticas de ação afirmativa são
necessárias para que haja a reconstrução do futuro de diversas classes e grupos
menos favorecidos, “como um imperativo constitucional, como uma obrigação
positiva do Estado, da sociedade civil e de cada cidadão, na consolidação do projeto
constitucional de transformação da atual sociedade numa sociedade livre, justa e
solidária”. 382
Note-se que alguns órgãos, como o Supremo Tribunal Federal, conseguiram
já vislumbrar essa realidade. Este Tribunal, no ano de 2012, no julgamento da APDF
186, reconheceu a existência da discriminação racial havida no país, tendo,
consequentemente, julgado pela constitucionalidade das cotas sociorraciais,
permitindo então a sua utilização em uma universidade de Brasília (UNB).
Além do mais, a referida decisão deve ter, por certo, influenciado a edição da
Lei nº 12.711, ocorrida naquele mesmo ano, a qual, reconhecendo a importância da
implantação das cotas no combate a discriminação racial, as previu nas
universidades federais, e de 38 institutos de educação, ciência e tecnologia. Esta
norma visou a oferecer condições melhores para os estudantes ingressarem nas
universidades públicas brasileiras.
Observa-se que o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, enquanto
Presidente STF, no seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido
pelo Tribunal Superior do Trabalho (em 20 de novembro de 2001) proferiu uma
381 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa . Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. – 5ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 211. 382 BERTONCINI, Mateus Eduardo, e CAMPOS FILHO, Wilson Carlo. Políticas de Ação Afirmativa no contexto do direito constitucional brasileiro. Revista Jurídica Unicuritiba – v. 27, nº 11, 2011. Disponível em <http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/215> Acessado em 10 maio 2014, p. 165.
126
palestra intitulada “Óptica Constitucional - A Igualdade e as Ações Afirmativas”,383
onde defendeu a constitucionalidade da implementação de ações afirmativas em
favor dos negros brasileiros já naquele ano!
O atual Presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, inclusive, em
entrevista ao Jornal o Globo, em julho de 2013, exaltando o posicionamento do STF
ao reconhecer o racismo no país, mencionou a existência de “clichês” atribuídos aos
negros (carnaval, futebol, e samba) pela sociedade brasileira. Ademais, ele
confessou ter sido vítima de prática racial, ao ser reprovado na entrevista (após ter
passado com êxito nas provas escritas) quando prestou concurso no Itamaraty.384
Conquanto a suprema Corte do país tenha, recentemente, reconhecido a
existência do racismo no Brasil, e se mostrado favorável à utilização das cotas como
mecanismo de combate da discriminação racial, destaca-se que entre os sujeitos de
obrigação positiva, para a implementação de políticas afirmativas, encontram-se as
empresas.
Nesse sentido, a atividade empresarial, ciente do compromisso social com
seus públicos de interesse, tem buscado, segundo Benjamin Gonçalves, a promoção
da diversidade e da equidade, a qual pressupõe a “representação proporcional nos
quadros da empresa de todos os grupos presentes na sociedade, e oportunidades
iguais para todos e todas.”385
O constituinte, ao estabelecer que a ordem econômica, deve atentar para o
princípio da função social da propriedade (art. 170, III, CF), se referiu, de forma
certeira, à empresa que é uma das unidades econômicas mais importantes do
sistema capitalista atual, segundo José Afonso Dallegrave Neto386. Ressaltando,
ademais, que o processo econômico vigente é determinado e impulsionado,
portanto, pela empresa, e não mais pela propriedade.
383 Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:artigo.revista:2006;1 2000798698. Acesso em: 10 maio 2014. 384 Disponível em: < http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2013/07/28/joaquim-barbosa-brasil-nao-esta-preparado-para-um-presidente-negro-504975.asp>. Disponível em: 10 maio 2014. 385 GONÇALVES, 2003, p. 5. 386 DALLEGRAVE NETO, José Afonso. Notas sobre a subordinação jurídica e a função social da empresa à luz do solidarismo constitucional. In: GEVAERD, Jair, e TONIN, Marta Marília. Direito Empresarial e Cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 208.
127
O referido artigo estabeleceu ainda, que a ordem econômica seria fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput), extraindo-se,
daí, que é campo dos particulares o exercício da atividade econômica, cabendo ao
poder público, então, agir em caráter excepcional. Segundo Thais Novaes
Cavalcanti, houve neste dispositivo uma tentativa do constituinte em conjugar a livre
concorrência com a justiça social, fundamentando assim a função social da
empresa.387
Todavia, se o objetivo da economia é o desenvolvimento da pessoa e, por
conseqüência, do país, a concorrência e o lucro podem vir a contribuir para uma
maior igualdade social. Dessa forma, exerce a empresa um papel de catalizadora
dessas propostas. Ressalta-se, ademais, que no ordenamento jurídico pátrio, a
concepção da função social da empresa é prevista, inclusive, no novo Código Civil,
bem como na Lei das Sociedades Anônimas388.
A atividade empresarial, com o advento da Constituição Federal de 1988,
adquiriu função social, tornando-se também responsável pelo desenvolvimento
sustentável. Há, em seu artigo 170, uma inovação da ordem econômica, vindo a dar
um roteiro de ação ética para as empresas, um verdadeiro código de ética, o que
esclarece, deste modo, o conteúdo constitucional da responsabilidade social da
atividade empresarial.
Sob esta ótica, as empresas estão buscando adaptar-se e estabelecer
padrões de comportamento, adotando uma postura ética voltada a atender não
apenas o interesse lucrativo, e os relacionados aos consumidores e fornecedores,
mas também a um corpo social, cientes de que tal conduta pode refletir na imagem
que representam no mercado consumidor. De outro lado, a sociedade em geral,
cada vez mais, tem cobrado das empresas um posicionamento ético e politicamente
correto, segundo asseveram Mara Darcanchy e José Cabral da Silva Dias.389
387 CAVALCANTI, Thais Novaes. Ética empresarial: fundamentos constitucionais de u ma nova ordem econômica socialmente responsável. Disponível em: <http://www.academus.pro.br/profess or/thaisnovaes/material/Texto_%C3%89tica%20empresarial_Thais%2pdf>. Acesso em 10 maio 2014. 388 Idem, p.5. 389 DARCANCHY, Mara, e DIAS, José Cabral da Silva. Inclusão e Responsabilidade Social nos Direitos Constitucionais Trabalhistas. In DARCANCHY, Mara Vidigal (coordenadora). Direito, inclusão e responsabilidade social : estudos em homenagem a Carlos Aurélio Mota de Souza e Viviane Coelho de Séllos Knoerr. São Paulo: Ltr, 2013, p. 470.
128
Ademais, segundo observa Viviane Coelho de Séllos Knoerr, a ética “é
essencial para a concreção constitucional, para a organização e funcionamento do
Estado, para a efetivação dos direitos fundamentais, para o equilíbrio entre os
poderes públicos, para a representividade política e para a manutenção da
democracia com paz e ordem”.390
Nesta perspectiva, a empresa ética que age de forma socialmente
responsável, acaba por privilegiar necessidades relevantes para a sociedade como
um todo. Enquanto importante agente social, ela pode trazer a diferença para dentro
de seu empreendimento através de políticas afirmativas (como as cotas, por
exemplo), valorizando a diversidade, e, inclusive, “buscando relações sustentáveis
em todos os níveis”. 391
Através de conduta ética pela atividade empresarial pode ocorrer, portanto, a
promoção da diversidade. Para Aaron Myers, a diversidade faz parte da própria
responsabilidade empresarial.392 As empresas têm inúmeros motivos para promover
a diversidade, o que se justificaria pela ética e vantagem econômica.393 Logo, as
empresas podem ser consideras tanto instituições econômicas como instituições
sociais, capazes de provocar grande impacto nas comunidades onde inseridas.
Em síntese, a utilização das cotas pelas empresas pode refletir uma
preocupação destas com a obtenção de melhorias no status, e na participação de
grupos discriminados no emprego e na ocupação. Segundo Manuela Tomei,
ademais, a pressuposição é de que os talentos estejam distribuídos igualmente
entre homens mulheres, e entre grupos raciais dominantes e subordinados, podendo
vir as cotas a oportunizar o pleno desenvolvimento de seus potenciais, a fim de
alcançar, assim, a plena cidadania e justiça social.394
390 SELLOS-KNOERR, Viviane Coelho de. A ética e a constituição: uma reflexão sobre o unidimensional . Disponível em: <http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-389-Viviane_Coelho_de_Sellos_Gondim.pdf> Acesso em 08 de ago. 2013. 391 GONÇALVES, 2003, p. 11. 392 No mesmo sentido Mastrantonio. MASTRANTONIO, 2011, p. 264. 393 MYERS, Aaron. O valor da diversidade racial nas empresas . Revista de Estudos Aafro-asiáticos. Rio de Janeiro, v 25, n. 3, 2003. Disponível a partir do <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101Acesso em 23 de maio de 2014. 394 TOMEI, 2005, p.17.
129
CONCLUSÃO
A idéia de que todos os seres humanos são iguais em direitos é um princípio
declarado universalmente. A priori, ela pode se traduzir na noção de que todos os
seres humanos possuem a mesma dignidade humana, condição esta que os
“igualaria” em direitos e condições, tornando irrelevante toda e qualquer diferença
em face de sexo, cor, origem entre outros.
O princípio da igualdade, transformado em prescrição jurídica, é acolhido pela
maioria das sociedades e inserido em suas constituições políticas, servindo de limite
ao poder estatal, e como norteador e regulador da vida social. Contudo, o fato de
elevar-se a igualdade a um princípio, não confere o tratamento igualitário e digno a
todos os indivíduos, como no caso das mulheres e negros, notadamente no Brasil.
A realidade vivenciada no país, principalmente pelas mulheres negras, nos
diversos âmbitos, mas especialmente no mercado de trabalho, onde se focou esta
pesquisa, confirma a existência de práticas discriminatória em relação ao gênero e
raça. Percebeu-se através do estudo realizado, que estas mulheres passaram (e
ainda passam) por situações discriminatórias que lhes causam sofrimentos, sob a
conivência de uma sociedade que nega a existência do racismo.
No entanto, há que se ressaltar que tentativas para modificar essas situações
vêm ocorrendo nas últimas décadas. A partir dos anos 90, por influência de
organizações internacionais (como a OIT, por exemplo), do processo de
globalização, do multiculturalismo, bem como da própria percepção da
responsabilidade social empresarial, houve mudanças no modo de pensar e agir,
diante dessas sociedades e mercados cada vez mais diversos.
O reflexo de tais mudanças, no Brasil, pode ser percebido pelas atitudes
estatais, em prol do combate a discriminação racial, sob os governos dos
presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (como, por
exemplo, as diversas normas já vistas, e criações de Secretarias e Grupos de
Trabalho acerca do tema). Mas, sobretudo, através da edição do Estatuto da
Igualdade Racial e, mais recente, da aprovação do regulamento do Sinapir.
130
Destaca-se a importância deste Sistema como forma de organização e
articulação, mais efetiva, para a implementação do conjunto de políticas e serviços,
destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no país. Releva-se a
determinação nele instituído, a qual permite, por exemplo, a utilização de ações
afirmativas, em especial cotas raciais de gênero, a serem instituídas pela iniciativa
privada, visando à inclusão da mulher negra no mercado de trabalho.
De outro lado, no tocante às ações afirmativas, em especial às cotas (sendo
aquelas consideradas gênero, da qual esta é a espécie), constatou-se que o assunto
é causador de muitas polêmicas na sociedade brasileira. Foi verificado que há
opiniões de autores que condenam a utilização destas políticas afirmativas, por
entenderem, basicamente, que o sistema de cotas pode institucionalizar a raça,
levando, portanto, a racialização da sociedade brasileira.
Outro argumento contrário utiliza-se da alegação de inexistência de raças
humanas para a ciência moderna. Para esta concepção, não teria fundamento a
instituição de cotas raciais, uma vez que raças não existem, podendo tanto os
negros brasileiros descenderem de brancos, assim como estes terem a
ancestralidade africana. Entretanto, foi verificado que a raça, na verdade, é uma
construção eminentemente sociocultural (no caso, de cunho negativo!).
Além destes dois principais argumentos encontrados, há outro que alega
serem as cotas injustas por ferirem a meritocracia. Porém, deve ser observado que
este argumento, além de não ser unívoco, quando utilizado em relação ao acesso
mercado de trabalho, necessita ser relativizado, pois há que se levar em conta o
preconceito racial existente na sociedade brasileira. Ou seja, ainda que uma
candidata negra preencha os requisitos condizentes com a vaga pretendida (tenha
“mérito”), ela pode ser preterida em razão da cor de sua pele!
A inconstitucionalidade destas políticas afirmativas também foi outro
argumento utilizado em desfavor da utilização das cotas raciais. Segundo seus
defensores, ao preverem a discriminação (reversa), estariam ferindo o princípio da
igualdade. Portanto, não haveria aqui um reconhecimento do tratamento
diferenciado (desigualar para igualar), a fim de que a igualdade seja alcançada,
sendo sugerida uma análise pontual de acordo com as situações concretas (como
no caso da análise das cotas nas universidades, realizada pelo Supremo em 2012).
131
Em contraponto a esses argumentos, há muitos autores que defendem a
utilização de cotas no combate a discriminação, seja sob o viés de uma justificativa
compensatória, como distributiva, inclusive tendo como base as medidas adotadas
em outros países (como nos EUA, por exemplo, país onde há décadas são
utilizadas). Em suma, tais argumentos reforçam a importância de sua implementação
como forma de propiciar a igualdade de oportunidades (igualdade material), como no
caso da mulher negra em relação ao mercado de trabalho.
No entanto, é importante recapitular que a política de cotas, por ser
considerada uma medida especial, deve observar alguns critérios, levando em conta
o tempo e a motivação. Assim, a temporalidade dessas políticas deve ser
considerada quando de sua implementação, não sendo prudente perdurar
indefinidamente, sob o risco de provocar distorções no mercado de trabalho.
Essa característica das cotas (temporalidade), inclusive, também foi
evidenciada naquele julgamento do STF ocorrido recentemente. Mas, conquanto o
Supremo tenha declarada a constitucionalidade das cotas nas universidades, reputa-
se tão importante quanto esta declaração, o reconhecimento da existência de
racismo na sociedade brasileira! Isto certamente reforça a necessidade de
implantação das cotas, as quais já tem respaldo no ordenamento jurídico brasileiro,
especialmente no Estatuto da Igualdade Racial.
Assevera-se, contudo, que a política de cotas no âmbito laboral, não figura
como uma “opção” ofertada pelo ordenamento jurídico, e nem como uma
“exclusividade” de adoção pelo Estado. Ao contrário, trata-se de uma imposição, e
não somente a ele, mas também (e talvez principalmente) à atividade empresarial, a
qual é também considerada como agente da concretização dos direitos
fundamentais, ou seja, é ela também responsável em garantir o acesso das
mulheres negras ao mercado de trabalho.
Infere-se, ademais, conforme anteriormente verificado, que as cotas
(enquanto espécie de ações afirmativas) podem ser consideradas políticas públicas,
mas, no entanto, reforça-se que é possível que elas advenham de políticas privadas,
ainda que oriundas de legislações decorrente de políticas públicas do Poder
Legislativo ou Executivo. Daí surge uma importante questão: como realmente
efetivar a utilização das cotas pelas empresas?
132
Durante a pesquisa foi possível verificar a possibilidade de serem adotadas
cotas raciais por empresas consideradas éticas, que agem de forma socialmente
responsável. Essas empresas, via de regra, visam a promover a diferença dentro de
seu empreendimento, valorizando a diversidade, e, sobretudo, a manter relações
sustentáveis em todos os níveis, em consonância com as políticas internacionais de
valorização do trabalho humano, com ênfase à questão racial.
Contudo, como tal meio de implantação seria em caráter voluntário, pode ele
se mostrar insuficiente no combate à discriminação da mulher negra no mercado de
trabalho. Assim, como a busca pela igualdade de oportunidade não pode ficar
esperando por ato espontâneo, sugere-se a previsão de cotas para essas mulheres,
através de negociações coletivas, bem como a realização de estudo sobre a
viabilidade de criação de normas específicas, pautadas no Estatuto de Igualdade
Racial, voltadas também para o setor privado.
Observa-se, ademais, que alguns aspectos para a implementação das
medidas afirmativas devem ser verificados, como o seu alcance (se a utilização das
cotas raciais de gênero seria adotada, inclusive, por micro e pequenas empresas), e
em relação ao prazo de duração de tais medidas, ou seja, o critério da
temporalidade (o tempo que elas devem persistir, com a previsão, inclusive, de
sanção em caso de seu descumprimento).
Ressalta-se que a pesquisa não teve a preocupação em verificar outros
métodos de ações afirmativas, os quais, certamente, podem ser bem-vindos para tal
fim. Assim com não foi objeto deste estudo a análise das repercussões de cotas
raciais no serviço público em geral, dada a previsão de legislações neste sentido
(inclusive, na esfera federal, permanecia em trâmite até o final deste trabalho), bem
como a questão dos critérios de identificação para o preenchimento de vagas.
Ademais, salienta-se que a existência de uma democracia racial, outrora
considerada no país, é considerada já um mito, ao contrário da discriminação racial
verificada em relação às trabalhadoras negras, a qual é real e, portanto, precisa ser
combatida e eliminada. Para tanto, foi sugerida no presente trabalho a adoção das
cotas raciais de gênero, como medida ético-política-social, a serem adotadas pelas
empresas, visando a obtenção de uma economia mais competitiva, mas, sobretudo,
de uma sociedade mais justa e igualitária.
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REFERÊNCIAS
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