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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIASECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
“-SERÁ QUE ESTE ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL É CAPAZ DE
APRENDER?”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DOCENTE SOB A
PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL
Professora PDE: AUGUSTA LUIZA DE SOUZA COSSICH
Orientadora PDE: Profª. Drª. SONIA MARI SHIMA BARROCO
DEZEMBRO 2009
“-SERÁ QUE ESTE ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL É CAPAZ
DE APRENDER?”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DOCENTE
SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL
Professora PDE: AUGUSTA LUIZA DE SOUZA COSSICH – UEM
Orientadora PDE: Profª. Drª. SONIA MARI SHIMA BARROCO – UEM
Resumo
Este texto tem como objetivo apresentar aspectos teóricos elaborados por L. S. Vigotski a respeito da mediação e discutir suas implicações para o trabalho docente. Ele resulta de pesquisa bibliográfica, de estudos em grupo, em que se contemplaram estudos de fontes primárias (textos de L. S. Vigotski e seus colaboradores) e fontes secundárias (textos de autores contemporâneos). Selecionadas as fontes, as mesmas foram lidas, analisadas e serviram de subsídios para as sínteses aqui apresentadas, norteadas pela Teoria Histórico-Cultural. Esta proposta é decorrente de questões que se apresentam na prática docente, em uma escola especial para alunos com deficiência intelectual. Justifica-se sua elaboração visto que, nessa prática, identificam-se aflições sobre que intervenção pode ser feita para que os alunos se apropriem dos saberes sistematizados, aprendam e se desenvolvam. Isso se revela como algo da maior importância, uma vez que a educação escolar constitui-se situação privilegiada para o desenvolvimento de pessoas com ou sem deficiência. No entanto, é comum entre os professores que essas aflições que envolvem a prática pedagógica, muitas vezes, apresentem-se sob a forma de constatação e não de dúvida. Não raramente, ela pode ser percebida em relatos como: o aluno apresenta “atenção limitada”, “ele tem falta de atenção e memória”, “aprende agora e depois esquece”, dentre outras. Dito de outro modo, os professores que atendem a alunos com deficiência intelectual podem não considerar devidamente quanto suas intervenções têm possibilidade de incidir sobre o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores – FPS (memória mediada, atenção voluntária, pensamento verbal, etc.) do aluno e quanto a escolarização promove formas diferenciadas de pensar e agir. Desse modo, pressupondo a importância da escolarização, o foco é a mediação docente. Como resultado, foi possível compreender o conceito de mediação e as suas implicações, especialmente junto a pessoas com deficiência intelectual. Conclui-se, pois, que a teoria pode iluminar a prática docente, não somente aliviando as angústias do professor, mas reposicionando sua intervenção, sua mediação e, sobretudo, a crença na possibilidade de o aluno aprender – conforme suas especificidades – num processo contínuo de compensação e superação.
Palavras-chave: Mediação docente. Aprendizagem e desenvolvimento. Deficiência intelectual. Teoria Histórico-Cultural.
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Abstract
This work aims to present the theoretical aspects developed by L. S. Vygotsky about mediation and to discuss its implications for teaching. It results from a review of the literature, study group, which included studies of primary sources (texts of LS Vygotsky and his collaborators) and secondary sources (texts of contemporary authors). The selected sources were read, analyzed and provided as a subsidy for the summaries presented here, guided by historical-cultural theory. This proposal is the result of issues that arose during the teaching practice in a special school for students with intellectual disabilities. It is appropriate to their development because allows the identification of afflictions about which intervention can be developed for students to take ownership of systematized knowledge, learn and grow. This turns out to be something of great importance, since school education constitutes a privileged position for the development of people with and without disabilities. However, it is common among teachers that these afflictions involving the teaching practice be presented in the form of finding and not doubt. Not infrequently, it can be seen in reports such as “the student has limited attention”, “it is lack of attention and memory”, “Learn now and then forget about it”, among others. In other words, teachers of students with intellectual disabilities may not adequately consider how their activities are able to focus on the development of students' higher psychological functions - HPF (mediated memory, voluntary attention, verbal thinking, etc..), and promote education about different ways of thinking and acting. Thus, assuming the importance of schooling, the focus is the teaching mediation. As a result, it was possible to understand the concept of mediation and its implications, especially towards people with intellectual disabilities. It follows therefore that the theory can illuminate the teaching practice, not only relieving the anxieties of the teacher, but repositioning his/her intervention, mediation, and above all, the belief in the possibility of students learning – according to their specificities – within a continuous process of compensation and overcoming.
Key words: Teaching mediation. Learning and development. Intelectual disability. Historical-cultural Theory.
Introdução
Professor, qual é o seu papel no processo de aprendizagem e desenvolvimento
de seus alunos e em especial do aluno com deficiência intelectual?
Responder tal questão não se constitui em tarefa fácil diante dos
comprometimentos apresentados pelos os alunos com deficiência intelectual, bem como
diante da dificuldade dos profissionais que atuam na área para compreenderem as
questões que envolvem a aprendizagem e o desenvolvimento.
Em busca de respostas sobre a importância do professor neste processo, foram
realizados estudos nos quais se optou pelo aporte teórico da escola vigotskiana. Desta
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maneira, objetivamos expor um pouco a respeito da formação desse profissional, das
suas elaborações e, em especial, no que refere à sua mediação como docente.
De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, para a compreensão da aquisição
das formas superiores de desenvolvimento – das características tipicamente humanas –
faz-se necessário abordar o conceito de mediação.
Neste conceito, encontra-se um dos pontos de grande relevância da obra de L.
S. Vigotski1 (1896 -1934), ou seja, o papel da mediação no processo de aprendizagem.
O eixo orientador de sua obra foi a teorização da constituição sócio-histórica do
psiquismo humano e, consequentemente, isso implica na abordagem do papel que os
mediadores externos assumem para tanto.
Segundo Vigotski, a relação do homem com o mundo físico e social é sempre
mediada, isto é, ocorre por meio do concurso de um elemento intermediário, que a torna
mais indireta e mais complexa. Este autor defendeu que uma característica essencial que
difere o homem dos animais é, justamente, a sua capacidade de conhecer o mundo, de
nomeá-lo, de identificar as causas dos fenômenos e das relações entre eles. Dito de
outro modo, é a capacidade de apreender o mundo externo e de tê-lo internamente, na
consciência, por meio da palavra, dos signos, o que o credencia como ser superior sobre
todos os demais da natureza. Vygotsky e Luria (1996) defendem a mediação
instrumental como processo fundamental na apropriação do conhecimento, reforçando o
papel da educação escolar e do professor para o desenvolvimento humano, afinal, a
aprendizagem movimenta o desenvolvimento!
Entre as contribuições da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski para a educação
destacam-se aquelas que se referem ao contexto da Defectologia. A lei central de
proposições vigotskianas no campo da defectologia é a de que qualquer defeito origina
uma tendência ou estímulo para a formação da compensação, ou seja, a insuficiência de
uma capacidade é compensada com o desenvolvimento de outra. A compensação
ocorrida é relativa ao funcionamento psicológico, numa concepção que corresponde à
plasticidade dos processos de desenvolvimento. As oportunidades para que o indivíduo
se desenvolva são propiciadas pelo meio sociocultural no qual ele se insere e sobre o
qual atua.
1 Apesar de se encontrar Vigotski grafado de diversas formas, tais como: Vygotski, Vygotsky, Vigoskii, Vigotskji, adotaremos, neste trabalho, a grafia VIGOTSKI. Manteremos, apenas nas indicações bibliográficas, a grafia adotada em cada uma delas.
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Vygotsky (1997) defende que é importante compreender o aluno com
deficiência como indivíduo social, o qual, dependendo das mediações recebidas em seu
ambiente físico e social, poderá acionar mecanismos compensatórios, que entram em
conflito com o meio externo para promover a maximização de sua aprendizagem.
Entendemos, enfim, que a contribuição da presente proposta de estudo está na
busca por subsídios teóricos e práticos que forneçam ao professor de alunos com
deficiência intelectual elementos que possam iluminar sua prática docente, em especial
no tocante à mediação instrumental.
Quem foi Lev Semenovich Vigotski?
Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007),
podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, uma
pequena cidade provinciana da Bielo-Rússia, e faleceu em 1934, aos 37 anos, vítima de
uma tuberculose. Era membro de uma família judia com boas condições financeiras, o
que favoreceu seu acesso a um ambiente intelectualizado.
Sua educação formal aconteceu em casa, por meio de tutores particulares.
Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na Universidade de Moscou em 1917.
Posteriormente, estudou Medicina. Lecionou Literatura e Psicologia em Gomel, de 1917
a 1924, quando se mudou novamente para Moscou, trabalhando, de início, no Instituto
de Psicologia e, mais tarde, no Instituto de Defectologia, por ele fundado. Dirigiu,
ainda, um Departamento de Educação para deficientes físicos e retardados mentais.
De 1925 a 1934, Vigotski lecionou Psicologia e Pedagogia em Moscou e
Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo sobre a crise da psicologia, buscando uma
alternativa dentro do materialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista
e mecanicista. Tal estudo levou Vigotski e seu grupo – entre eles, A. R. Luria e A. N.
Leontiev – a propostas teóricas inovadoras sobre temas como: relação entre pensamento
e linguagem, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução
no desenvolvimento. O fundamento básico de suas hipóteses é que os processos
psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e estruturados não em
localizações anatômicas fixas no cérebro, mas em sistemas funcionais, dinâmica e
historicamente mutáveis. O homem é considerado como corpo e mente, como ser
biológico e social, membro da espécie humana e de um processo histórico e cultural,
um ser concreto que cria suas condições de existência na história ao mesmo tempo que a
constrói.
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Vigotski foi possuidor de uma profunda formação em vários campos do
conhecimento, especialmente na filosofia marxista e na conjuntura soviética, e teve uma
larga experiência como professor em diversos níveis e ramos de ensino, sobretudo nas
pesquisas e estudos voltados ao processo de ensino e aprendizagem de pessoas com
deficiências. Após a década de 1990, com a queda do comunismo real, houve uma
maior divulgação de seu trabalho no ocidente, e isso ocorreu também no Brasil.
Sobre o Método Instrumental
De acordo com Facci (1998, p. 68), no texto intitulado O método instrumental
em Psicologia (VIGOTSKI, 1996, p. 93-1001) apresenta algumas implicações
metodológicas para o desenvolvimento do psiquismo, com a existência dos
instrumentos psicológicos, que “[...] são criações artificiais, estruturalmente, são
dispositivos sociais e não orgânicos ou individuais: destinam-se ao domínio dos
processos [psicológicos] próprios ou alheios, assim como a técnica se destina ao
domínio dos processos da natureza”(VIGOTSKI, 1996, p. 93).
Para entender o psiquismo humano, Vigotski separa as funções psicológicas em
funções naturais, que podem ser entendidas como aquelas que compõem o equipamento
biológico e com o qual a criança conta no início de seu desenvolvimento, e em funções
psicológicas, que segundo a Teoria Histórico-Cultural, advêm do processo de
interiorização e de objetivação do conhecimento, que está intimamente ligado a uma
forma de mediação estritamente humana. As funções psicológicas superiores, por sua
vez, podem ser entendidas, de acordo com Barroco (2007), como “aquelas de origem
social, que só passam a existir no indivíduo ante a relação mediada com o mundo
externo (com pessoas e com aquilo que elas criam: objetos, ferramentas, processos de
criação e de execução, etc.)”.
Desta maneira, os modos de perceber, de representar, de explicar e de intervir
sobre o meio, os sentimentos em relação ao mundo, à outra pessoa e a si mesmo, enfim,
todo o funcionamento psicológico tem origem e vai se construindo nas relações do
indivíduo com o seu contexto cultural, social, histórico.
Entre os processos instrumentais e naturais, entre método instrumental e métodos científicos – naturais existe uma relação. Nos métodos científicos naturais, mantém-se uma relação linear, direta entre dois
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estímulos A – B, e nos métodos instrumentais estabelecem-se duas novas conexões A – X e X - B. Aqui, neste caso, o X seria o mediador entre o objeto e a operação psicológica, de forma que a relação seria aqui representada, através de um triangulo
A B
XTodo e qualquer ato de comportamento transforma-se, então, em uma operação intelectual, mediada por dois tipos de instrumentos, denominados por Vigotski de instrumento psicológico e instrumento técnico (FACCI, 1998, p. 68-69).
Podemos entender, desta maneira, que o ser humano necessita do instrumento,
cuja função é regular as suas ações sobre os objetos. Um instrumento refere-se a tudo
aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e modificando suas
formas de ação, potencializando a capacidade do seu próprio corpo. Por essa teoria, não
se tem o homem submetido ao destino, mas dependendo dos recursos que lhes são
disponibilizados. Nesse sentido, trabalhar sob essa perspectiva, implica em se assumir
um dado posicionamento ético diante da escolarização, em prol do desenvolvimento.
O homem, em seu desenvolvimento filogenético, cria o instrumento para lhe
facilitar a ação sobre a natureza e o mundo de modo geral. Os instrumentos acabam
transformando o próprio comportamento daqueles que o utilizam, uma vez que deixam
a prática da ação direta sobre o meio e passam a intervir de modo mais certeiro, amplo,
e, sobretudo, planejado. Um machado, por exemplo, é um instrumento. Quem aprende a
manejá-lo, tem sua força aumentada no intuito de derrubar uma árvore. Ou seja, o
machado permite uma ação indireta sobre o mundo, ao mesmo tempo em que
potencializa a ação do seu corpo (o golpe sobre a árvore tem força ampliada por esta
ferramenta). A transformação externa volta-se ao homem e transforma seu psiquismo.
Saber empregar uma ferramenta ou instrumento incide no próprio modo de ação sobre o
mundo. O instrumento permite que as necessidades de toda ordem, indo desde a
sobrevivência, sejam supridas.
Da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o homem atua
sobre si próprio, transformando suas formas de agir. Mas há outras condições que são
essenciais para que o processo de humanização se realize na vida do sujeito particular.
Há outras formas de regulação da conduta. O signo, por sua vez, regula as ações sobre o
psiquismo das pessoas. O signo é comparado por Vigotski ao instrumento, que o
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denomina de instrumento psicológico. “Tudo que é utilizado pelo homem para
representar, evocar ou tornar presente o que está ausente constitui um signo, como a
palavra, o desenho, os símbolos [...]” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 59).
Diferenciando, temos que, enquanto o instrumento ou ferramenta está orientado
externamente, ou seja, para a modificação do ambiente, o signo é internamente
orientado, modificando o funcionamento psicológico do homem e o seu
comportamento.
O uso de instrumentos especificamente humanos, como os signos, produz novas
relações com o ambiente e uma nova organização do próprio comportamento. O
indivíduo adquire independência em relação ao ambiente imediato; pode fazer
referência a objetos e fatos ausentes. Signos são, pois, mediadores de natureza
psicológica que auxiliam o desenvolvimento de tarefas que exigem atenção ou
memória, uma vez que podem interpretar ou (re) apresentar dados da realidade,
referindo-se a elementos ausentes.
Utilizamos o signo para desempenhar diversas atividades. Anotar um recado,
seguir uma partitura musical, contar uma história. A utilização dos signos amplia a
memória, o raciocínio, o planejamento, a imaginação. “A verdadeira essência da
memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar
ativamente com a ajuda de signos” (VIGOTSKI, 2002, p. 68). A não internalização dos
signos convencionalmente adotados por uma sociedade leva o sujeito a sentir-se como
surdo ou mudo; ele fica alheio a tudo, não conseguindo utilizá-los funcionalmente para
regularem sua conduta. Olham, por exemplo, placas, mas não conseguem lê-las em
outro idioma.
Sendo assim, pode-se afirmar que a utilização de signos torna as ações humanas
mais complexas e sofisticadas, ou ainda, desenvolve a capacidade de operar com
instrumentos mediadores, e é fundamental para o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, diferenciando o homem de outros animais e o constituindo
como humano. Esses mediadores criam espaços de representação, dos quais emergem
um mundo novo, o mundo da significação.
Esse processo de desenvolvimento deve ser compreendido desde o início da vida
da criança. Esta não nasce em um mundo natural, mas em um mundo humano, em meio
a objetos e fenômenos criados pelos homens das gerações que a precederam. Ela vai se
apropriando destes ao se relacionar socialmente e ao participar das atividades práticas
da sociedade.
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Segundo Fontana e Cruz (1997), neste processo interativo, as funções biológicas
herdadas, tais como percepção, memória, ações reflexas, reações automáticas e
associações simples, entrelaçadas aos processos culturalmente organizados,
transformam-se em modos de ação, de relação e de representação propriamente
humanos.
A criança, desde o seu nascimento, apropria-se desse meio cultural, e é por
meio dele que irá assumir características do gênero humano, irá desenvolver a sua
genericidade. Para tanto, para se tornar gênero humano singular, precisa dominar os
conhecimentos próprios a esse meio e ao nível alcançado pela humanidade; precisa
tornar seu aquilo que é circulado entre seus pares. Necessita, pois, da mediação de
indivíduos mais experientes, de modo direto, em sua vida cotidiana e na sua
escolarização, bem como, de modo indireto, por aquilo que escrevem ou objetivam em
obras (científicas, artísticas, filosóficas, etc.). Na concepção de Vigotski, a relação do
homem com o mundo físico e social é, portanto, sempre mediada.
Segundo Facci (1998), de acordo com o método instrumental, o que diferencia
uma criança da outra (o talento, a normalidade) é a possibilidade que ela tem de utilizar,
por si mesma, suas próprias funções naturais e de dominar os instrumentos psicológicos.
Compreender o conceito de mediação, que se caracteriza pela relação do homem
com o mundo e com os outros homens, é de fundamental importância, justamente
porque é por meio deste processo que as Funções Psicológicas Superiores – FPS –, que
são especificamente humanas, desenvolvem-se. Desse modo, podemos pensar quanto a
intervenção docente não se restringe ao conteúdo curricular trabalhado, antes, por meio
deste, a criança apreende o mundo e a humanidade. Assim, ao estar diante de uma
criança com deficiência intelectual, a preocupação não é somente com a sua apropriação
dos conteúdos trabalhados, mas com a oportunidade desta se apropriar dos recursos de
humanização, que podem levá-la a ser um adulto cultural. Sob essa teorização, os
resultados e, antes mesmo, a intervenção docente ganham um novo significado.
Conceito de linguagem
Além dos estudos sobre a mediação, outro tema que Vigotski abordou é de
especial importância para nossa temática. Ele dedicou particular atenção à questão da
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linguagem, porque entendia que é um sistema simbólico fundamental para o
desenvolvimento de todos os grupos humanos.
De acordo com Facci (1998, p. 70) a linguagem
[...] surgiu como uma necessidade decorrente do processo de trabalho, quando os homens tiveram de criar meios de comunicação que permitissem trocar informações, planejar suas atividades, numa ação coletiva. Ela representa um ponto muito importante, no desenvolvimento do homem e é o sistema de signos mediador das funções psíquicas.
Segundo Leontiev (2003, p. 72-73),
A aprendizagem da linguagem é a condição mais importante para o desenvolvimento mental, porque o conteúdo da experiência histórico-social não está consolidada somente nas coisas materiais, está generalizada e reflete-se de forma verbal na linguagem. É precisamente nesta forma que a criança acumula o conhecimento humano, os conceitos sobre o mundo que a rodeia .
Para a Teoria Histórico–Cultural, os objetos físicos são entendidos como
instrumentos e a linguagem, como um sistema simbólico, que tem uma função
mediadora. A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre sempre
na interação com o outro, e a criança, desde o nascimento, tem com o mundo uma
relação mediada pelo outro e pela linguagem.
O adulto ensina a criança a utilizar objetos ao agitar um brinquedo diante dela,
ao ajudar a pegá-lo, ao ensinar a comer com talheres, a tomar banho. Ele aponta,
nomeia, destaca, indica e, ao mesmo tempo, atribui significações aos seus
comportamentos. Desta maneira, aos poucos, a criança aprende a falar e passa a utilizar
a própria linguagem para regular suas ações e conferir sentido às coisas.
De suas relações com o outro, a criança reconstrói internamente as formas
culturais de ação e de pensamento. Nesse processo os instrumentos físicos têm a função
de potencializar externamente a ação do homem, ou seja, orientar sua ação sobre o
objeto, enquanto os signos ampliam as ações psicológicas, como a capacidade de
pensamento, de atenção, de percepção, de memória, de abstração, dentre outras.
A linguagem como sistema simbólico, gera mudanças substanciais no indivíduo.
Por meio dela, acontece a apropriação do conhecimento produzido pelas gerações
precedentes. Ao internalizar a linguagem de sua cultura , o indivíduo não só internaliza
uma forma de comunicação, como sobretudo, o que estas palavras expressam e indicam
em seu meio. Ao internalizar o código linguístico, o significado também é internalizado,
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resultando no desenvolvimento das funções complexas de pensamento, por possibilitar
o desenvolvimento da atenção voluntária, da memória compreensiva, da percepção, do
raciocínio, da capacidade de imaginar.
[...] à atividade consciente do homem [...] designando os objetos e eventos do mundo exterior com palavras isoladas ou combinações de palavras, a linguagem permite ‘discriminar esses objetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória’. Resulta daí que o homem ‘está em condições de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive quando eles estão ausentes’. [...] as palavras de uma língua não apenas indicam determinadas coisas como abstraem as propriedades essenciais desta, relacionam as coisas perceptíveis, a determinadas categorias. [...] A linguagem é o ‘veículo de transmissão de informação’’, que se formou na história social da humanidade [...] (LURIA, 1991, p. 80-81).
A esse processo interno de reconstrução de uma operação externa, Vigotski dá o
nome de internalização (FONTANA; CRUZ, 1997). Nesse movimento, a atividade
interpessoal transforma-se para se constituir em funcionamento interno, intrapessoal.
O leque de possibilidades, para o indivíduo compreender, analisar e expressar os fenômenos e fatos objetivos, depende da qualidade da linguagem internalizada, ou seja, depende do conteúdo apropriado nas interações que estabelece com seus pares. Na escola, a linguagem se configura nos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento, portanto, os conteúdos, trabalhados nas diferentes disciplinas dão suporte ao desenvolvimento das funções complexas do pensamento.(GALUCHI; MORI, 2008, p. 21-22).
O desenvolvimento humano ocorre, do plano social para o individual, ou seja,
para que a apropriação aconteça faz-se necessário um processo de internalização, no
qual a processos externos que se efetivam nas atividades entre as pessoas se
transformem em processos intrapsicológicos, em que a atividade é reconstruída
internamente.
Ainda no plano ontogenético, pode-se dizer que a criança vai assumindo a forma humana à custa de outros agentes mediadores humanos e daquilo que eles produzem. Para se humanizar, precisa sair cada vez mais da esfera das funções naturais e ampliar o espectro cultural de sua vida. Necessita, portanto, fazer uma transposição de um plano a outro, ou seja, do social para o pessoal. Conceitos cotidianos e científicos, valores, crenças, etc., expressos por diferentes signos e traduzindo determinadas significações, presentes no âmbito público, precisam ser apropriados, internalizados, tornados particulares pela criança, que a tudo isso atribuirá um dado sentido (BARROCO, 2007, p. 253, grifo da autora).
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Desta maneira, as origens e as explicações do funcionamento psicológico do
homem devem ser buscadas nas interações sociais. São por meio delas que o indivíduo
tem acesso aos instrumentos e ao sistema de signos que possibilitam o desenvolvimento
de formas culturais de atividade e permitem estruturar a realidade e o próprio
pensamento, destacando, como exposto, o papel da linguagem para que as trocas se
efetuem.
O homem cultural é aquele que, vivendo com outros homens, apropria-se e cria formas mediatas de estar no mundo, de apreendê-lo, de transformá-lo. Necessariamente vale-se da língua/linguagem para tanto e desenvolve o pensamento verbal. Este passa a regular o seu comportamento, permitindo que as suas próprias funções elementares (sensação, percepção, etc.) sejam desenvolvidas para um dado curso que o habilita a estar no mundo de modo ativo (BARROCO, 2007, p. 24).
Zona de Desenvolvimento Proximal: espaço da mediação docente
Vigotski estabeleceu o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que é
muito importante para o meio educativo, por fornecer elementos para a compreensão de
como se dá a integração entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento.
Em suas pesquisas, identificou dois níveis de desenvolvimento. O primeiro
nível se constitui pelas funções psicológicas já efetivadas, formadas e amadurecidas
pelo indivíduo, como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados.
Denominou-o nível de desenvolvimento real ou efetivo. Esse nível costuma ser
determinado, pela solução individual do problema, ou seja, refere-se àquelas conquistas
que já estão consolidadas na criança, aquelas funções ou capacidades que ela já
aprendeu e domina, pois já consegue utilizar sozinha, sem a assistência de alguém mais
experiente.
De acordo com Rego (1999), a avaliação de crianças na escola, na vida cotidiana
e em pesquisas sobre o desenvolvimento infantil restringe-se somente a este nível.
Considera-se representativo de seu desenvolvimento somente aquilo que ela é capaz de
fazer sem a colaboração de outros.
Miranda (2005) também se refere a esta questão ao asservar que, para a análise
do processo de aprendizagem, tradicionalmente, toma-se como base as aquisições já
disponíveis, as possibilidades de realizações de tarefas, ou seja as conquistas já
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efetivadas. As atividades que uma criança é capaz de resolver são consideradas como
indicadores de suas possibilidades e determinam seu nível de desenvolvimento
O segundo nível de desenvolvimento é o potencial, proximal ou próximo, que se
define como aquelas funções que estão em vias de amadurecer e que podem ser
identificadas, mediante solução de tarefas, com o auxílio de adultos e outras crianças
mais experientes. Nesse caso, a criança realiza tarefas e soluciona problemas por
intermédio do diálogo, da colaboração, da imitação, da experiência compartilhada e das
pistas que lhe são fornecidas. Para Vigotski, este nível é bem mais indicativo do
desenvolvimento mental da criança. Enquanto aquele nível caracteriza o
desenvolvimento mental retrospectivamente, este o caracteriza prospectivamente.
É preciso, portanto, conhecer o nível de desenvolvimento potencial, entendido
como a capacidade de realizar tarefas com a mediação de outrem mais experiente. As
possibilidades de alcançar, em um dado momento, novas aquisições mentais, por meio
da realização de tarefas mediadas por outras pessoas, é fundamental na teoria de
Vigotski, por revelar o nível de desenvolvimento potencial.
A participação do outro mais experiente resulta na apropriação de novas formas
culturais. Neste sentido, o processo de desenvolvimento passa por transformações
constantes, permeadas pelo processo da mediação; daí o papel fundamental da interação
social na construção das funções psicológicas humanas.
Mediação Docente: da teoria à prática
O bebê humano, se comparado com as demais espécies animais, é o mais
indefeso e despreparado para lidar com os desafios de seu meio. Para sobreviver,
depende dos sujeitos mais experientes de seu grupo, que se responsabilizam pelo
atendimento de suas necessidades básicas, como locomoção, abrigo, alimentação,
higiene; afetivas, como carinho, atenção e pela formação de comportamentos
tipicamente humanos.
No início da vida, a atividade psicológica do bebê é bastante elementar e determinada por sua herança biológica ou pelo equipamento biológico. O adulto não está só ligado ao meio ambiente por milhares de elos os mais estreitos, como é, ele próprio, produto dele; sua essência encontra-se na essência das coisas ambientais. Não é o que se dá com
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um recém-nascido. Tudo quanto, para o adulto, serve de ponte entre ele e o meio ambiente, tudo o que lhe traz cada sinal do mundo exterior – isto é, sua visão, audição e os demais órgãos da percepção – é quase não funcional num recém-nascido. Imagine-se um homem a quem, um após o outro, se tenham cortado todos os vínculos com o meio ambiente; ele passa a estar completamente isolado do mundo, uma pessoa solitária em meio a um mundo de coisas que não existem para ele. Essa condição é a que se assemelha à de um recém-nascido (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 155).
Vygotsky e Luria ressaltam que os fatores biológicos têm preponderância sobre
os sociais somente no início da vida da criança. Aos poucos, as interações com seu
grupo social e com os objetos de sua cultura passam a governar o comportamento e o
desenvolvimento de seu pensamento.
Naturalmente, esse desenvolvimento produz uma revolução total na vida da criança: de ser primitivo com somente sensações orgânicas, de ser que não vê e não ouve, imerso apenas em sua vida orgânica, ela se transforma num ser que, pela primeira vez, se defronta com a realidade, e começa a interagir com ela, começa a reagir ativamente a estímulos que dela provêm e se encontra diante da necessidade de, gradativamente e de maneiras primitivas, adaptar-se a ela. O primeiro princípio “orgânico” de existência começa a ser substituído por um segundo princípio – o princípio da realidade externa e, o que é mais importante, social (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 156).
Fica evidente que Vigotski não ignora as definições biológicas da espécie
humana, no entanto, atribui como fundamental a dimensão social, que fornece
instrumentos e símbolos que medeiam a relação do indivíduo com o mundo, e que
acabam por fornecer também seus mecanismos psicológicos e formas de agir nesse
mundo.
O aprendizado é considerado, assim, um aspecto necessário e fundamental para
que o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores aconteçam. Nessa
perspectiva, é o aprendizado que possibilita e movimenta o processo desenvolvimento.
Sendo assim, as relações entre desenvolvimento e aprendizagem ocupam lugar de
destaque na obra de Vigotski, considerando que o ensino é fator imprescindível para o
desenvolvimento do psiquismo humano.
Vygotsky e Luria (1996) defendem a mediação instrumental como processo
fundamental na apropriação do conhecimento, reforçando o papel da educação escolar e
do professor para o desenvolvimento humano. Nessa direção, temos que, desde a
educação infantil, a mediação não pode se apresentar de improviso, assistemática e
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desprovida de intencionalidade junto às crianças com e sem deficiências. No caso
daquelas com deficiência intelectual, esse cuidado deve ser ampliado.
Segundo esses autores, já a partir do nascimento, o desenvolvimento e a
aprendizagem estão inter-relacionados. Desde muito pequenas, as crianças realizam
uma série de aprendizados na comunicação direta com pessoas que a rodeiam,
observando, manipulando, experimentando diretamente mediante as interações socais
imediatas. Por isso, muito antes de entrar na escola, a criança já se apropriou de uma
série de conhecimentos do mundo que a cerca. Esses conhecimentos construídos na
experiência pessoal, concreta e cotidiana, Vigotski chamou de conceitos cotidianos ou
espontâneos.
Ao entrar na escola, a criança terá contato com outro tipo de conhecimento. São
os conhecimentos apropriados por meio do ensino sistemático, intencional, próprios à
educação escolar, os quais Vigotski chamou de conceitos científicos. Estes se
relacionam a eventos não diretamente acessíveis à observação ou ação imediata da
criança.
O professor constitui-se, pois, em mediador entre os conhecimentos espontâneos
trazidos pela criança e os científicos que ensina. Os conceitos científicos são
assimilados por meio da colaboração sistemática entre o professor e a criança. O auxílio
e a participação do adulto promove o processo de amadurecimento das FPS da criança.
A qualidade do trabalho pedagógico está relacionada à capacidade de
movimentar avanços no desenvolvimento do aluno, de intervir na sua zona de
desenvolvimento proximal, levando ao amadurecimento e à conquista daquilo que ainda
não é parte do nível real.
No processo de aprendizagem do aluno com deficiência intelectual, a mediação
pedagógica é muito importante, por contribuir para que este possa sair do imediato
concreto e forme o pensamento categorial ou conceitual. A escola lida, assim, com as
flores e os brotos do desenvolvimento e deve fazê-los frutificar. Ou ainda, na linguagem
metafórica, deve transformas crisálidas em borboletas (VYGOTSKY; LURIA, 1996).
Para a Teoria Histórico-Cultural, os processos de desenvolvimento são
impulsionados pelo aprendizado. Neste sentido, a escola deve oferecer conteúdos que
possam desenvolver diferentes modalidades de pensamento. Sob esta perspectiva, a
instituição escolar é imprescindível para o desenvolvimento dos indivíduos com ou sem
deficiência.
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Interagindo com o conhecimento, o ser humano se transforma, sendo introduzido
em novos modos de operação intelectual e, neste sentido, à medida que a criança
expande seus conhecimentos, modifica sua relação cognitiva com o mundo e suas
funções psicológicas superiores, como o pensamento abstrato, a atenção voluntária, a
memória mediada, etc., desenvolvem-se.
Deficiência intelectual: dos limites às compensações
Para compreendermos a importância da mediação docente no processo de
aprendizagem e de desenvolvimento do aluno com deficiência intelectual, faz-se
necessário o conhecimento de algumas questões apontadas em estudos realizados, por
Vigotski e seus colaboradores, com crianças com “retardo”2.
A idéia que normalmente se tem de uma criança sob esta condição é de
[...] alguém que possui um repertório psicológico deficiente, que não possui memória necessária, a capacidade de percepção adequada ou a inteligência adequada. Uma pessoa retardada é psicologicamente desvalida de nascença (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 227).
Pesquisas realizadas por estes autores apontaram para um quadro bem diferente
do exposto. Crianças com retardo na maioria dos casos, apresentam preservadas as
funções relacionadas à visão e à audição. Também foi possível observarem casos que
apresentavam aguçada memória. Ante tais constatações, indagam: como compreender a
diferença no comportamento da criança normal e da criança com retardo.
A diferença está apenas no fato de que uma criança normal utiliza racionalmente suas funções naturais e, quanto mais progride, mais é capaz de imaginar dispositivos culturais apropriados para ajudar sua memória. Não é o que se dá com a criança retardada. Uma criança retardada pode ser dotada dos mesmos talentos naturais de uma criança normal, mas não sabe como utilizá-los racionalmente. Assim, eles permanecem adormecidos, inúteis, como peso morto. Ela os possui, mas não sabe como utilizar esses talentos naturais e isso constitui o defeito básico da mente da criança retardada. Em conseqüência, o retardo é um defeito não só dos próprios processos naturais, mas também do seu uso cultural (VYGOTSKY, LURIA, 1996, p. 288-289)
2 Este termo era empregado pelos autores daquelas décadas, nos dias de hoje, eles tem cunho pejorativo.
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Uma das características da criança deficiente mental, para LURIA (1974, apud
TULESKI, 2007, p. 152),
[...] está no fato de não conseguir ultrapassar o nível da percepção imediata dos objetos, tendo dificuldades em estabelecer relações entre os mesmos em função de uma percepção fragmentada, apresentando dificuldades na transposição de processos externos para internos. Um atraso das operações internas de síntese pode ser considerado uma característica importante da criança atrasada mental. Este atraso, ao aparecer em suas idéias e seu conhecimento, tem relação estreita com o atraso da linguagem e os sistemas complexos de associação que se formam a partir da linguagem..
De acordo com a American Association on Mental Retardation – AAMR
(Associação Americana de Deficiência Mental) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais 54 (DSM-IV), a deficiência mental refere-se a um estado de
redução notável do funcionamento intelectual, significativamente inferior à média
esperada para pessoas da mesma idade e nível de experiências semelhante. Isto deve ser
associado às limitações em, pelo menos, dois aspectos do funcionamento adaptativo:
comunicação, cuidados pessoais, habilidades sociais, competências domésticas,
utilização dos recursos comunitários, aptidões escolares, autonomia, lazer e trabalho,
saúde e segurança (BARROCO, 2007).
Uma mudança na adjetivação da deficiência, de mental para intelectual, vem
ganhando força desde que a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização
Mundial da Saúde realizaram um encontro em Montreal, em 2004, do qual resultou a
Declaração de Montreal Sobre Deficiência Intelectual. Vale ressaltar que, essa
mudança já se fazia presente em alguns eventos ou documentos. Entende-se, assim, que
pessoas com deficiência intelectual são aquelas que apresentam algumas limitações em
áreas das habilidades adaptativas, não reclamando apoios em áreas não-afetadas. Em
relação aos apoios, estes podem ser identificados conforme a sua intensidade:
intermitente, limitado, extenso, generalizado (BARROCO, 2007).
De acordo com Garcia (1999, apud NUERNBERG, 2008, p.309), “a despeito de
envolver limitações orgânicas como lesões cerebrais e malformações orgânicas, a
deficiência não pode ser reduzida aos seus componentes biológicos”.
Vigotski distingue deficiência em primária e secundária. A deficiência primária
consiste nos problemas de ordem orgânica e a deficiência secundária, refere-se às
conseqüências psicossociais da deficiência.
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Mediadas socialmente, as limitações secundárias, remetem-se ao fato de o
universo cultural estar construído em função de um padrão de normalidade, que cria
barreiras físicas, educacionais e atitudinais para a participação social e cultural da
pessoa com deficiência.
No que se refere à deficiência intelectual, Vigotski apresenta contribuições que
apontam para a heterogeneidade do grupo que compartilha desta condição, salientando
que, tão importante quanto a deficiência, é a personalidade dos sujeitos.
De acordo com Nuernberg (2008, p. 309),
As vias alternativas de desenvolvimento na presença da deficiência seguem a direção da compensação social das limitações orgânicas e funcionais impostas por essa condição. Cumpre ressaltar, contudo, que não se trata de afirmar que uma função psicológica compense outra prejudicada ou que a limitação numa parte do organismo resulte na hipertrofia de outra. A compensação social a que se refere Vigotski consiste, sobretudo, numa reação do sujeito diante da deficiência, no sentido de superar as limitações com base em instrumentos artificiais, como a mediação simbólica.
Compreendemos, portanto, que, sob a perspectiva desta teoria, simultaneamente
com o déficit, estão dadas também as tendências psicológicas de uma direção oposta, ou
seja, existem as possibilidades de compensação para vencer a deficiência. A
compensação, neste sentido, deve se alicerçar em um contexto que favoreça
oportunidades para que o sujeito alcance os mesmos fins que o processo educacional
das pessoas consideradas normais. As possibilidades de compensação se apresentam no
desenvolvimento da criança e devem ser incluídas no processo educacional como força
motriz. Consideramos que, para tal, o sistema educacional precisa organizar-se na busca
de criar caminhos alternativos para o desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, apoiando-se em formas de ação mediada, que possam, em algum grau,
promover a substituição das funções lesadas por formas superiores de organização
psíquica.
Desta forma, Vigotski entende que a educação escolar, para as crianças
atrasadas, torna-se ainda mais importante do que para a criança normal, diante da
perspectiva de introduzir-lhes, certas técnicas culturais de comportamento.
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Conclusão
Ao longo deste artigo, a questão inicial sempre esteve presente: “-Será que este
aluno com deficiência intelectual é capaz de aprender?”.
Esta inquietação encontra respostas por meio do respaldo teórico apresentado
pela Teoria Histórico – Cultural, ao discutir o conceito de mediação, ou seja, o papel
da mediação no processo de aprendizagem.
Vigotski tem como eixo orientador de sua obra a explicação da constituição
social psiquismo humano. Explica a trajetória do nascer homem e tornar-se humano,
adquirindo formas superiores de desenvolvimento, características tipicamente humanas,
por meio da interação e apropriação dos bens culturais, contando com as mediações do
outro.
Devemos, desta maneira, compreender que, sobre uma base herdada, o indivíduo
poderá construir sua história ao apropriar-se de sua cultura, desenvolvendo, assim, suas
funções psicológicas superiores. O que lhe é dado biologicamente ao nascer, pode
progredir por meio das suas interações sociais. De acordo com pressupostos desta
teoria, o desenvolvimento é impulsionado pela aprendizagem.
Temos, então, fundamento para afirmar que todos podem aprender. Como
membros pertencentes à espécie humana socialmente organizada, devemos nos
apropriar dos conhecimentos desta para nos humanizarmos.
Mas, quando pensamos no aluno com deficiência intelectual, acreditamos
realmente na sua capacidade de aprender?
Ao discutir a questão da mediação docente, L. S. Vigotski afirma que todos
podem aprender, desde que existam mediações adequadas. Vale considerar que
devemos pensar nas conquistas individuais, ou seja, diferentes aprendizagens para
diferentes níveis de comprometimento intelectual e, com isso, diferentes níveis de
desenvolvimento. Queremos ressaltar, aqui, a capacidade para aprender e não o que se
espera tradicionalmente que se aprenda.
A educação escolar e o professor ocupam lugar de destaque no processo de
aprendizagem e desenvolvimento de seus alunos. Por esta teoria, estes devem criar ou
ampliar zonas de desenvolvimento proximal, considerando, no trabalho junto ao aluno
deficiente, o que este apresenta de íntegro e não se basear no que ele apresenta de
deficitário, buscando vias colaterais de desenvolvimento. Desta forma não podemos
determinar a princípio o que o aluno irá ou não aprender, sem estabelecer limitações,
pautado na sua deficiência.
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O professor ao se assumir como mediador efetivo entre os conhecimentos
científicos e os alunos, está possibilitando o progresso das funções psicológicas
superiores deste. Deste modo, acredita que o processo de escolarização contribui de
maneira fundamental para o desenvolvimento destas funções.
Respondendo à pergunta-título, sim, o aluno com deficiência intelectual é capaz
de aprender.
Deficiente talvez esteja nosso conhecimento a respeito das capacidades e
possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento do aluno com deficiência
intelectual, como também nossa importância e responsabilidade em realizar mediações
adequadas que promovam sua aprendizagem e desenvolvimento.
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