PENSAMENTO E LINGUAGEM Lev Semenovich...

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eBookLibris PENSAMENTO E LINGUAGEM Lev Semenovich Vygotsky —Ridendo Castigat Mores— Pensamento e Linguagem Lev Semenovich Vygotsky (18961934) Edição Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasil.com Fonte Digital www.jahr.org “Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947 2002)

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PENSAMENTOE

LINGUAGEM

Lev SemenovichVygotsky

—Ridendo Castigat Mores—

Pensamento e LinguagemLev Semenovich Vygotsky (1896­1934)

EdiçãoRidendo Castigat Mores

Versão para eBookeBooksBrasil.com

Fonte Digitalwww.jahr.org

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado,ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir aomenos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947­

2002)

Copyright:Autor: Lev S. Vygotsky

Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores(www.jahr.org)

ÍNDICEApresentaçãoNélson Jahr GarciaPrefácio1. O problema e a abordagem2. A teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento dascrianças3. A teoria de Stern sobre o desenvolvimento da linguagem4. As raízes genéticas do pensamento e da linguagem5. Gênese e estudo experimental da formação dos conceitos6. O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância7. Pensamento e linguagemNotasBibliografia (notas biliográficas)

PENSAMENTOE LINGUAGEM

Lev Semenovich Vygotsky

APRESENTAÇÃONélson Jahr Garcia

Vygotsky, um gênio da Psicologia. Quanto não poderialegar­nos se não tivesse partido tão jovem?

Agradeço ao Odair Furtado, professor de Psicologia daPUC­SP que, há vários anos, indicou­me esta obra como de

leitura quase obrigatória. Aprendi a entender minha filha,criança ainda, compreendi melhor os adultos e a mim próprioinclusive.

Vygotsky estava preocupado em entender a relação entreas idéias que as pessoas desenvolvem e o que dizem ouescrevem. Não o fez apenas especulando em uma mesa deescritório, mas foi a campo, pesquisou, fez experiências. Extraiuconclusões como:

“A estrutura da língua que uma pessoa fala influencia amaneira com que esta pessoa percebe o universo ...”

Para aqueles que vêem na linguagem apenas um códigoaleatório, o autor responderia:

“Uma palavra que não representa uma idéia é uma coisamorta, da mesma forma que uma idéia não incorporada empalavras não passa de uma sombra.”

Vygotsky desenvolveu inúmeros conceitos fundamentaispara que compreendamos a origem de nossas concepções e aforma como as exprimimos: “pensamento egocêntrico”,“pensamento socializado”, “conceito espontâneo”, “conceitocientífico”, “discurso interior”, “discurso exteriorizado”, e tantosoutros.

Para quem se interessa por entender as ideologias,comunicação, aprendizagem, doutrinação, persuasão esta é umaobra básica e indispensável.

Prefácio

Este livro aborda o estudo de um dos mais complexosproblemas da psicologia — a inter­relação entre o pensamento ea linguagem. Tanto quanto sabemos esta questão não foi aindaestudada experimentalmente de forma sistemática. Tentamosoperar, pelo menos, uma primeira abordagem desta tarefa,levando a cabo estudos experimentais sobre um certo número deaspectos isolados do problema de conjunto. Os resultadosconseguidos fornecem­nos uma parte do material sobre que sebaseiam as nossas análises.

As análises teóricas e críticas são uma condição prévia

necessária e um complemento da parte experimental e, por isso,ocupam uma grande parte do nosso livro. Houve que basear ashipóteses de trabalho que serviram de ponto de partida ao nossoestudo nas raízes genéticas do pensamento e da linguagem. Comvista a desenvolvermos este quadro teórico, revimos e analisamosacuradamente os dados existentes na literatura psicológicapertinentes para o estudo. Simultaneamente, sujeitamos a umaanálise crítica as teorias mais avançadas do pensamento e dalinguagem, na esperança de superarmos as suas insuficiências eevitarmos os seus pontos fracos na nossa busca de um caminhoteórico por onde enveredar.

Como seria inevitável, a nossa análise invadiu algunsdomínios que lhe eram chegados, tais como a lingüística e apsicologia da educação Na análise que realizamos dodesenvolvimento dos conceitos científicos nas crianças,utilizamos a hipótese de trabalho relativa à relação entre oprocesso educacional e o desenvolvimento mental que havíamoselaborado noutra oportunidade fazendo uso de um corpo dedados diferente.

A estrutura deste livro é forçosamente complexa emultifacetada. No entanto, todas as suas partes se orientam parauma tarefa central: a análise genética das relações entre opensamento e a palavra falada. O primeiro capitulo põe oproblema e discute o método. Os segundo e terceiro capítulos sãoanálises críticas das duas mais influentes teorias da linguagem edo pensamento, a de Piaget e a de Stern. No quarto capítulotenta­se detectar as raízes genéticas do pensamento e dalinguagem; este capítulo serve de introdução teórica à parteprincipal do livro, as duas investigações experimentais descritasnos dois capítulos seguintes. O primeiro estudo (capítulo 5o.)trata da evolução genérica geral dos significados durante ainfância; o segundo (capítulo 6o.) é um estudo comparativo dodesenvolvimento dos conceitos “científicos” e espontâneos dacriança. O último capítulo tenta congregar os fios das nossasinvestigações e apresentar o processo total do pensamento verbaltal como surge à luz dos nossos dados.

Pode ser útil enumerar brevemente os aspectos da nossaobra que julgamos serem novos, exigindo, por conseguinte, umanova e mais cuidada verificação. Além da nova formulação quedemos ao problema e da parcial novidade do nosso método, onosso contributo pode ser resumido como se segue:

(1) fornecemos provas experimentais de que os significadosdas palavras sofrem uma evolução durante a infância e

definimos os passos fundamentais dessa evolução;

(2) descobrimos a forma singular como se desenvolvem osconceitos “científicos” das crianças, em comparação com osconceitos espontâneos e formulamos as leis que regem o seudesenvolvimento,

(3) demonstramos a natureza psicológica específica e afunção lingüística do discurso escrito na sua relação com opensamento e

(4) clarificamos por via experimental a natureza dodiscurso interior e as suas relações com o pensamento.

Não é do pelouro do autor fazer uma avaliação das suaspróprias descobertas e da forma como as interpretou: isso caberáaos leitores e aos críticos.

O autor e os seus associados têm vindo a investigar osdomínios da linguagem e do pensamento há já quase dez anos,durante os quais as hipóteses de que partiram foram revistas ouabandonadas por falsas. No entanto, a linha fundamental danossa investigação não se desviou da direção tomada desdeinício. Compreendemos perfeitamente o quanto o nosso estudo éimperfeito, pois não é mais do que o primeiro passo numa novavia. No entanto sentimos que, ao descobrirmos o problema dopensamento e da linguagem como questão central da psicologiahumana demos algum contributo para um progresso essencial.As nossas descobertas apontam o caminho a seguir por umanova teoria da consciência, nova teoria essa que afloramosapenas no fim do nosso livro.

1. O problema e a abordagem

O estudo do pensamento e da linguagem é uma das áreasda psicologia em que é particularmente importante ter­se umacompreensão clara das relações inter­funcionais existentes.Enquanto não compreendermos a inter­relação entre opensamento e a palavra, não poderemos responder a nenhumadas questões mais específicas deste domínio, nem sequerlevantá­las. Por mais estranho que tal possa parecer, a psicologianunca estudou sistematicamente e em pormenor as relações, eas inter­relações em geral nunca tiveram até hoje a atenção que

merecem. Os modos de análise atomísticos e funcionaispredominantes durante a última década tratavam os processospsíquicos de uma forma isolada. Os métodos de investigaçãodesenvolvidos e aperfeiçoados tinham em vista estudar funçõesseparadas, mantendo­se fora do âmbito da investigação ainterdependência e a organização dessas mesmas funções naestrutura da consciência como um todo.

É verdade que todos aceitavam a unidade da consciência ea inter­relação de todas as funções psíquicas; partia­se dahipótese de que as funções isoladas operavam inseparavelmente,numa ininterrupta conexão mútua. Mas na velha psicologia, apremissa inquestionável da unidade combinava­se com umconjunto de pressupostos tácitos que a anulavam para todos osefeitos práticos. Tinha­se como ponto assente que a relação entreduas determinadas funções nunca variava: aceitava­se, porexemplo, que as relações entre a percepção e a atenção, entre aatenção e a memória e entre a memória e o pensamento eramconstantes e, como constantes, podiam ser anuladas e ignoradas(e eram­no) no estudo das funções isoladas. Como asconseqüências das relações eram de fato nulas, via­se odesenvolvimento da consciência como determinado pelodesenvolvimento autônomo das funções isoladas. No entanto,tudo o que sabemos do desenvolvimento psíquico indica que asua essência mesma é constituída pelas variações ocorridas naestrutura inter­funcional da consciência. A psicologia terá queconsiderar estas relações e as variações resultantes do seudesenvolvimento como problema fulcral, terá que centrar nelas oestudo, em vez de continuar pura e simplesmente a postular ointer­relacionamento geral de todas as funções. Para seconseguir um estudo produtivo da linguagem e do pensamentotorna­se imperativo operar esta modificação de perspectiva.

Um relance sobre os resultados de anteriores investigaçõesdo pensamento e da linguagem mostrará que todas as teoriasexistentes desde a antigüidade até aos nossos dias, cobrem todoo leque que vai da identificação, da fusão entre o pensamento e odiscurso num dos extremos, a uma quase metafísica separação esegregação de ambos, no outro. Quer sejam expressão de umdestes extremos na sua forma pura, quer os combinem, querdizer, quer tomem uma posição intermédia, sem nuncaabandonarem, contudo, o eixo que une os dois pólos, todas asvárias teorias do pensamento e da linguagem permanecemdentro deste círculo limitativo.

Podemos seguir a evolução da idéia da identidade entre opensamento e o discurso desde as especulações da lingüística

psicológica, segundo a qual o pensamento é “discurso menossom”, até as teorias dos modernos psicólogos e reflexionistasamericanos, para os quais o pensamento é um reflexo inibido doseu elemento motor. Em todas estas teorias a questão da relaçãoexistente entre o pensamento e o discurso perde todo o seusignificado. Se são uma e a mesma coisa, não pode surgir entreeles nenhuma relação. Aqueles que identificam o pensamentocom o discurso limitam­se a fechar a porta ao problema. Àprimeira vista, os partidários do ponto de vista oposto parecemestar em melhor posição. Ao encararem o discurso como simplesmanifestação externa, como simples adereço que reveste opensamento e ao tentarem libertar o pensamento de todas assuas componentes sensoriais, incluindo as palavras (como faz aescola de Wuerzburg), não se limitam a pôr o problema dasrelações existentes entre as duas funções, como tentam,também, à sua maneira, resolvê­lo. Na realidade, contudo, sãoincapazes de colocar a questão de uma maneira que permita dar­lhe uma solução real. Tendo tornado o pensamento e o discursoindependentes e “puros” e tendo estudado cada uma destasfunções isoladamente, são forçados a ver as relações entreambas como uma conexão mecânica, externa, entre doisprocessos distintos, A análise do processo do pensamento verbalem dois elementos separados e basicamente diferentes impedetodo e qualquer estudo das relações intrínsecas entre opensamento e a linguagem.

O erro está pois nos métodos de análise adotados pelosinvestigadores precedentes. Para tratarmos com êxito da questãoda relação entre o pensamento e a linguagem teremos quecomeçar por nos perguntar a nós próprios, antes do mais, quemétodo será mais suscetível de nos fornecer uma solução.

Dois métodos essencialmente diferentes de análise sãopossíveis no estudo das estruturas psicológicas. Parece­nos queum deles é responsável por todos os fracassos com que sedefrontaram os anteriores investigadores do velho problema que,por nosso turno, estamos começando a abordar e que o outrométodo é a única via correta para perspectivar a questão.

O primeiro método analisa os conjuntos psicológicoscomplexos em elementos. Pode ser comparado à análise químicada água em hidrogênio e oxigênio, elementos que, cada um deper si não possuem as propriedades do todo e possuempropriedades que não existem no todo. O estudante que utilizareste método na investigação de uma qualquer propriedade daágua — por exemplo qual a razão por que a água apaga o fogo —verificara com surpresa que o hidrogênio arde e que o oxigênio

alimenta o fogo. Estas descobertas não lhe serão de grandeutilidade na resolução dos problemas. A psicologia enfia­se namesma espécie de beco sem saída quando analisa o pensamentoverbal nos elementos que o compõem — a palavra e opensamento — e estuda cada um deles em separado. No decursoda análise as propriedades originais do pensamento verbaldesapareceram. Nada resta ao investigador, senão indagar ainteração mecânica dos dois elementos na esperança dereconstruir, de forma puramente especulativa, as evocadaspropriedades do todo. Este tipo de análise desloca o problemapara um nível de maior naturalidade; não nos fornece nenhumabase adequada para , estudarmos as multiformes relaçõesconcretas entre o pensamento e a linguagem que surgem nodecurso do desenvolvimento e do funcionamento do discursoverbal em todos os seus aspectos Em vez de nos permitirexaminar e explicar casos e frases específicas e determinarregularidades que ocorrem no decurso dos acontecimentos, estemétodo produz generalidades relativas a todo e qualquerdiscurso e a todo e qualquer pensamento. Além disso, induz­nosem sérios erros ao ignorar a natureza unitária do processo emestudo, pois cinde em duas partes a unidade viva entre o som e osignificado a que chamamos palavra e parte da hipótese de queessas duas partes só se mantêm unidas por simples açõesmecânicas.

O ponto de vista segundo o qual o som e o significado sãodois elementos separados com vidas separadas afetougravemente o estudo de ambos os aspectos da linguagem, ofonético e o semântico. O estudo dos sons da fala como simplessons, independentemente da sua conexão com o pensamento,por mais exaustivo que seja, pouco terá a ver com a sua funçãocomo linguagem humana, na medida em que não dilucida aspropriedades físicas e psicológicas específicas da linguagemfalada, mas apenas as propriedades comuns a todos os sonsexistentes na natureza. Da mesma forma, se se estudarem ossignificados divorciados do discurso, aqueles resultarãoforçosamente num puro ato de pensamento que se desenvolve etransforma independentemente do seu veículo material. Estaseparação entre o significado e o som é grandemente responsávelpela banalidade da fonética e da semântica clássicas. Tambémna psicologia infantil, se tem estudado separadamente osaspectos fonético e semântico do desenvolvimento da linguagem.Estudou­se com grande pormenor o desenvolvimento fonético; noentanto, os dados acumulados fraco contributo trouxeram ànossa compreensão do desenvolvimento lingüístico enquanto tale a relação entre eles e as descobertas relativas à genética do

pensamento continuam a ser essencialmente nulas.

Na nossa opinião, o outro tipo de análise, que podemoschamar análise em unidades, e a via correta a seguir.

Entendemos por unidade o produto da análise que, aocontrário dos elementos, conserva todas as propriedadesfundamentais do todo e que não pode ser subdividido sem queaquelas se percam: a chave da compreensão das propriedades daágua são as suas moléculas e não a sua composição atômica. Averdadeira unidade da análise biológica é a célula viva, quepossui todas as propriedades básicas do organismo vivo.

Qual é a unidade do pensamento verbal que satisfaz estesrequisitos fundamentais? Cremos que podemos encontrá­la noaspecto interno da palavra, no seu significado. Até à data,realizaram­se muito poucas investigações sobre o aspectointerno da linguagem, e as que se realizaram pouco nos podemdizer sobre o significado das palavras que não se aplique namesma medida a outras imagens e atos do pensamento. Anatureza do significado enquanto tal não é clara; no entanto, éno significado que o pensamento e o discurso se unem empensamento verbal. É no significado, portanto, que poderemosencontrar a resposta às nossas perguntas sobre a relação entre opensamento e o discurso.

A nossa investigação experimental, bem como a analiseteórica nos indicam que, tanto a psicologia da Forma (Gestalt),como psicologia associacionista, têm seguido direções erradas nainvestigação da natureza intrínseca do significado das palavras.Uma palavra não se refere a um objeto simples, mas a um grupoou a uma classe de objetos e, por conseguinte, cada palavra é jáde si uma generalização. A generalização é um ato verbal depensamento e reflete a realidade duma forma totalmentediferente da sensação e da percepção. Esta diferença qualitativaa se encontra implicada na proposição segundo a qual há umsalto qualitativo não só entre a total ausência de consciência (namatéria inanimada) e a sensação, mas também entre a sensaçãoe o pensamento. Temos todas as razões para supor que adistinção qualitativa entre a sensação e o pensamento é apresença no último de um reflexo generalizado da realidade, queé também a essência do significado das palavras e de que, porconseguinte, o significado é um ato de pensamento no sentidocompleto da expressão. Mas, simultaneamente, o significado éuma parte inalienável da palavra enquanto tal, pertencendo,portanto, tanto ao domínio da linguagem como ao dopensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio, já

não fazendo parte do discurso humano. Como o significado daspalavras é, simultaneamente, pensamento e linguagem, constituia unidade do pensamento .verbal que procurávamos Portanto,torna­se claro que o método a seguir na nossa indagação danatureza do pensamento verbal é a análise semântica — o estudodo desenvolvimento, do fundamento e da estrutura destaunidade, que contém o pensamento a linguagem inter­relacionados.

Este método combina as vantagens da análise e da síntesee permite adequado estudo dos todos complexos. Em jeito deilustração tomemos outro aspecto ainda do nosso objeto deestudo, que também foi muito descurado no passado. A funçãoprimordial da linguagem é a comunicação, intercâmbio social. Aoestudar­se a linguagem por meio da análise em elementos,dissociou­se também esta função da função intelectual dodiscurso. Tratava­se ambas como se fossem duas funçõesseparadas, embora paralelas, sem prestar atenção às suas inter­relações estruturais e evolutivas; contudo, o significado daspalavras é unidade de ambas as funções da linguagem. É axiomada psicologia científica que a compreensão entre espíritos éimpossível sem qualquer expressão mediadora. Na ausência deum sistema de signos, lingüísticos ou não, só é possível o maisprimitivo e limitado tipo de comunicação. A comunicação pormeio de movimentos expressivos, observada sobretudo entre osanimais não é tanto comunicação mas antes uma difusão deafeto. O ganso atemorizado que de súbito se apercebe dumperigo e alerta todo o bando com os seus gritos não está dizendoaos restantes o que viu, antes está contaminando os outros como seu medo.

A transmissão racional, intencional de experiências e depensamentos a outrem exige um sistema mediador, que tem porprotótipo a linguagem humana nascida da necessidade dointercâmbio durante o trabalho. Segundo a tendênciadominante, a psicologia descreveu esta questão de uma formademasiado simplificada, até muito recentemente. Partiu dahipótese de que o meio de comunicação era o signo (a palavra ouo som); de que, pela ocorrência simultânea, um som poderia ir­seassociando com o conteúdo de qualquer experiência, passando aservir para transmitir o mesmo conteúdo a outros sereshumanos.

No entanto, um estudo mais aturado da gênese doconhecimento e da comunicação nas crianças levou à conclusãode que a comunicação real exige o significado — isto é, ageneralização — tanto quanto os signos. Segundo a penetrante

descrição de Edward Sapir, o mundo da experiência tem que serextremamente simplificado e generalizado antes de poder sertraduzido em símbolos. Só desta forma se torna possível acomunicação, pois a experiência pessoal habita exclusivamente aprópria consciência do indivíduo e não é transmissível,estritamente falando. Para se tornar comunicável terá quesubsumir­se em determinada categoria que, por convençãotácita, a sociedade humana encara como uma unidade.Pesquisar a verdadeira comunicação humana pressupõe umaatitude generalizadora, que constitui um estádio avançado dagênese do significado das palavras. As formas mais elevadas dointercâmbio humano só são possíveis porque o pensamento dohomem, reflete a atualidade conceitualizada. É por isso quecertos pensamentos não podem ser comunicados às criançasmesmo quando estas se encontram familiarizadas com aspalavras necessárias a tal comunicação. Pode faltar o conceitoadequado sem o qual não é possível uma compreensão total. Nosseus escritos pedagógicos, Tolstoy afirma que as criançasexperimentam amiúde certas dificuldades para aprenderem umapalavra nova não pelo seu som, mas devido ao conceito a que apalavra se refere Há quase sempre uma palavra disponível —quando o conceito se encontra maduro.

A concepção do significado das palavras como unidadesimultânea do pensamento generalizante e do intercâmbio socialé de um valor incalculável para o estudo do pensamento e dalinguagem. Permite­nos uma verdadeira análise genético­causal,um estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento dacapacidade intelectiva da criança e do seu desenvolvimentosocial.

Pode considerar­se como objeto de estudo secundário arelação mútua entre a generalização e a comunicação.

Virá talvez, a propósito mencionar aqui alguns dosproblemas da área da linguagem que não exploramosespecificamente no nosso estudo. O mais importante de todos é arelação entre o aspecto fonético da linguagem e o significado.Estamos em crer que os recentes e grandes passos em frente dalingüística se ficam em grande medida a dever a alteraçõesoperadas nos métodos de análise empregues no estudo dalinguagem. A lingüística tradicional, com a sua concepção dosom como elemento independente da linguagem, usava o somisolado como unidade de análise Em resultado disto, centrava­sena fisiologia e na acústica mais do que na psicologia do discurso.A lingüística moderna utiliza o fonema, a mais pequena unidadefonética indivisível pertinente para o significado, unidade essa

que, portanto, é característica da linguagem humana distintados outros sons. A sua introdução como unidade de análisebeneficiou a psicologia tanto como a lingüística. Os benefíciosconcretos a que se chegou com a aplicação deste método provamterminantemente o seu valor. Este método é essencialmentesemelhante ao método de análise em unidades, distintas doselementos, que utilizamos na nossa investigação.

A fertilidade do nosso método pode ficar patente tambémnoutras questões relativas às relações entre as funções, ou entrea consciência como um todo e as suas partes. Uma brevereferência a pelo menos uma destas questões indicará umadireção que o nosso estudo poderá vir a tomar futuramente, eassinalar o contributo do presente estudo. Estamos a pensar narelação entre o intelecto e o afeto. A sua separação como objetosde estudo é uma importante debilidade da psicologia tradicionalpois que faz com que o processo de pensamento surja como umacorrente autônoma de “pensamentos que pensam por sipróprios”, dissociada da plenitude da vida, das necessidades einteresses, das inclinações e dos impulsos pessoais de quempensa. Tal pensamento dissociado terá que ser considerado quercomo um epifenômeno sem significado, que não poderá alterarde maneira nenhuma a vida e a conduta de uma pessoa, quercomo uma espécie de força primeira que influenciaria a vidapessoal de uma forma inexplicável, misteriosa. Fecha­se assim aporta à questão da causa e da origem dos nossos pensamentos,visto que a análise determinista exigiria uma clarificação dasforças motrizes que orientam o pensamento por esta ou aquelavia. Pela mesma razão, a velha abordagem impede qualquerestudo frutuoso do processo inverso: a influência do pensamentosobre o aspecto e a vontade.

A análise por unidades aponta a via para a resoluçãodestes problemas de importância vital. Ela demonstra que existeum sistema dinâmico de significados em que o afetivo e ointelectual se unem, mostra que todas as idéias contém,transmutada, uma atitude afetiva para com a porção derealidade a que cada uma delas se refere. Permite­nos, alémdisso, seguir passo a passo a trajetórias entre as necessidades eos impulsos de uma pessoa e a direção específica tomada pelosseus pensamentos, e o caminho inverso, dos seus pensamentosao seu comportamento e à sua atividade. Este exemplo deveriabastar para mostrar que o método utilizado neste estudo dopensamento e da linguagem é também uma ferramentapromissora para investigar a relação entre o pensamento verbal ea consciência como um todo e entre aquele e as outras funções

essenciais desta última.

2. A teoria de Piaget sobre aLinguagem e o Pensamento das

crianças

I

A psicologia deve muito a Jean Piaget. Não é exagero dizer­se que ele revolucionou o estudo da linguagem e do pensamentoinfantis, pois desenvolveu o método clínico de investigação dasidéias das crianças que posteriormente tem sidogeneralizadamente utilizado. Foi o primeiro a estudarsistematicamente a percepção e a lógica infantis; além disso,trouxe ao seu objeto de estudo uma nova abordagem deamplitude e arrojo invulgares. Em lugar de enumerar asdeficiências do raciocínio infantil quando comparado com o dosadultos, Piaget centrou a atenção nas características distintivasdo pensamento das crianças, quer dizer, centrou o estudo maissobre o que as crianças têm do que sobre o que lhes falta. Poresta abordagem positiva demonstrou que a diferença entre opensamento das crianças e dos adultos era mais qualitativa doque quantitativa.

Como muitas outras grandes descobertas, a idéia de Piageté tão simples que parece evidente. Já tinha sido expressa naspalavras de Rousseau, citadas pelo próprio Piaget, segundo asquais uma criança não é um adulto em miniatura e o seucérebro não é um cérebro de adulto em ponto reduzido. Pordetrás desta verdade, que Piaget escorou com provasexperimentais, esta outra idéia simples — a idéia de evolução,que ilumina todos os estudos de Piaget com uma luz brilhante.

No entanto, apesar de toda a sua grandeza, a obra dePiaget sofre da dualidade comum a todas as obras pioneiras dapsicologia contemporânea. Esta clivagem é correlativa da criseque a psicologia está atravessando à medida que se transformanuma ciência no verdadeiro sentido da palavra. A crise decorreda aguda contradição entre a matéria prima factual da ciência eas suas premissas metodológicas e teóricas, que há muito sãoalvo de disputa entre as concepções materialista e idealista do

mundo. Na psicologia, a luta é talvez mais aguda do que emqualquer outra disciplina.

Enquanto nos faltou um sistema generalizadamente aceiteque incorpore todo o conhecimento psicológico disponível,qualquer descoberta factual importante conduzirá à criação deuma nova teoria conforme aos fatos novos observados. Freud,Levy­Bruhl, Blondel, todos eles criaram os seus própriossistemas de psicologia. A dualidade predominante reflete­se naincongruência entre estas estruturas teóricas, com os seus tonscarregados de metafísica e idealismo, e as bases empíricas sobreque foram construídas. Na moderna psicologia fazem­sediariamente grandes descobertas, descobertas essas que, noentanto, logo são envolvidas em teorias ad hoc pré­científicas esemi­metafísicas.

Piaget tenta escapar a esta dualidade fatal atendo­se aosfatos. Evita deliberadamente fazer generalizações mesmo no seupróprio campo de estudo, pondo especial cuidado em não invadiros domínios correlatos da lógica, da teoria do conhecimento daHistória da filosofia. Para ele, o empirismo puro parece­lhe oúnico terreno seguro. O seu livro, escreve ele, é,

antes do mais, e acima de tudo, uma coleção de fatos edocumentos. Os elos que unem entre si os diversos capítulos sãoos elos fornecidos por um método único a várias descobertas e demaneira nenhuma os de uma exposição sistemática (29) (29, p.1).

Na verdade, o seu forte consiste em desenterrar novosfatos, analisá­los e classificá­los penosamente, quer dizer, nacapacidade de escutar a sua mensagem, como dizia Claparède.Das páginas de Piaget cai uma avalanche de grandes e pequenosfatos sobre a psicologia infantil.

O seu método clínico revela­se como uma ferramentaverdadeiramente inestimável para o estudo dos todos estruturaiscomplexos do pensamento infantil nas suas transformaçõesgenéticas.

É um método que unifica as suas diversas investigações enos proporciona um quadro coerente, pormenorizado e vivo dopensamento das crianças.

Os novos fatos e o novo método conduzem­nos a muitosproblemas; alguns são inteiramente novos para a psicologiacientífica, outros aparecem­nos a uma luz diferente. Os

problemas dão origem a teorias, apesar de Piaget estardeterminado a evita­las atendo­se estreitamente aos fatosexperimentais — e passando, de momento, por cima do fato deque a própria escolha das experiências é determinada por certashipóteses. Mas os fatos são sempre examinados à luz de umaqualquer teoria, não podendo por conseguinte ser totalmentedestrinçados da filosofia. Tal é particularmente verdade para osfatos relativos ao pensamento.

Para encontrarmos a chave do manancial de fatos coligidospor Piaget teremos que começar por explorar a filosofia que estápor detrás da sua investigação dos fatos — e por detrás da suainterpretação, que só é exposta no fim do seu segundo livro (30),num resumo do conteúdo.

Piaget aborda esta tarefa levantando a questão do inter­relacionamento objetivo de todos os traços característicos dopensamento infantil por ele observados, Serão tais traçosfortuitos e independentes, ou formarão um conjunto organizado,com uma lógica própria, em torno de um fato central unificador?Piaget crê que assim é. Ao responder à pergunta, passa dos fatosá teoria e incidentalmente mostra o quanto a sua análise dosfatos se encontrava influenciada pela teoria, muito embora, nasua exposição, a teoria venha a seguir aos fatos.

Segundo Piaget, o elo que liga todas as característicasespecíficas da lógica infantil é o egocentrismo do pensamento dascrianças. Ele reporta todas as outras características quedescobriu, quais sejam, o realismo intelectual, o sincretismo e adificuldade de compreender as relações, a este traço nuclear edescreve o egocentrismo como ocupando uma posiçãointermédia, genética, estrutural e funcionalmente, entre opensamento autístico e o pensamento orientado.

A idéia de polaridade do pensamento orientado e nãoorientado tomada de empréstimo à psicanálise. Diz Piaget:

O pensamento orientado é consciente, isto é, prossegueobjetivos presentes no espírito de quem pensa, É inteligente, istoé, encontra­se adaptado a realidade e esforça­se por influenciá­la. É suscetível de verdade e erro ... e pode ser comunicadoatravés da linguagem. O pensamento autístico é subconsciente,isto é, os objetivos que prossegue e os problemas que põe a sipróprio não se encontram presentes na consciência. Não seencontra adaptado à realidade externa, antes cria para si própriouma realidade de imaginação ou sonhos. Tende, não aestabelecer verdades, mas a recompensar desejos e permanece

estritamente individual e incomunicável enquanto tal, por meioda linguagem, visto que opera primordialmente por meio deimagens e, para ser comunicado, tem que recorrer a métodosindiretos, evocando, por meio de símbolos e mitos, ossentimentos que o guiam (29) (29, pp. 59­60).

O pensamento orientado é social. À medida que sedesenvolve vai sendo progressivamente influenciado pelas leis daexperiência e da lógica propriamente dita. O pensamentoautístico, pelo contrário, é individualista e obedece a umconjunto de leis especiais que lhe são próprias.

Entre estes dois modos de pensamento contrastantes:

há muitas variedades no que respeita ao seu grau decomunicabilidade. Estas variedades intermédias obedecerãonecessariamente a uma lógica especial, que também é umalógica intermédia entre a lógica do autismo e a lógica dainteligência. Propomos dar o nome de pensamento egocêntrico àprincipal forma intermédia (29)(29, p. 62).

Embora a sua função principal continue a ser a satisfaçãodas necessidades pessoais, já engloba em si algumas adaptaçõesmentais, um pouco da orientação para a realidade característicado pensamento dos adultos. O pensamento egocêntrico dascrianças “situa­se a meio caminho entre o autismo no sentidoestrito da palavra e o pensamento socializado” (30)(30, p. 276) Éesta a hipótese de base de Piaget.

É importante notar que através de toda a sua obra Piagetsublinha com mais intensidade os traços que são comuns aopensamento egocêntrico e ao autismo do que os traços comunsque os distinguem. No sumário do fim do seu livro, afirma comênfase: “no fim de contas, o jogo é a lei suprema do pensamentoegocêntrico” (30)(30, p. 323). A mesma tendência é especialmentepronunciada no tratamento do sincretismo, muito embora eleassinale que o mecanismo do pensamento sincrético representauma transição entre a lógica dos sonhos e a lógica dopensamento.

Piaget defende que o egocentrismo se encontra a meiocaminho entre o autismo extremo e a lógica da razão, tantocronológica, como estrutural e funcionalmente. A concepçãogenética do pensamento baseia­se na premissa extraída depsicanálise, segundo a qual o pensamento das crianças é originale naturalmente autístico e só se transforma em pensamentorealista por efeito de uma longa e persistente pressão social.

Piaget assinala que isto não desvaloriza a inteligência da criança.“A atividade lógica não esgota a inteligência” (30)(30, p. 267). Aimaginação é importante para resolver problemas, mas não sepreocupa com verificações e provas, coisas que são condiçõesnecessárias da busca da verdade. A necessidade de verificarmose comprovarmos o nosso pensamento — quer dizer a necessidadeda atividade lógica — surge mais tarde. Esta defasagem será deesperar, diz Piaget, visto que o pensamento começa a servir asatisfação imediata muito antes de procurar a verdade, formamais espontânea do pensamento é o jogo ou as imaginaçõesplenas de desejo que fazem o desejável parecer inatingível. Até àidade de sete ou oito anos o jogo domina a tal ponto opensamento da criança, que é muito difícil distinguir a invençãodeliberada, da fantasia que a criança julga ser verdade.

Resumindo, o autismo é encarado como a forma original,mais primitiva, do pensamento; a lógica aparece relativamentetarde; e o pensamento egocêntrico é o elo genético entre ambos.

Embora Piaget nunca tenha apresentado esta concepçãode uma forma coerente e sistemática, é ela a pedra de toque detodo o seu edifício teórico. É certo que por mais de uma vez eleafirma que o pressuposto da natureza intermédia do pensamentoinfantil e uma hipótese, mas também diz que tal hipótese estátão próxima do senso comum que lhe parece pouco maisdiscutível do que o próprio fato do egocentrismo infantil. Segueos traços do egocentrismo na sua evolução e até a natureza daatividade prática da criança e até ao posterior desenvolvimentodas atitudes sociais.

É claro que, do ponto de vista genético, temos que partirda atividade da criança para podermos compreender o seupensamento; e essa atividade é incontestavelmente egocêntrica eegotista. O instinto social sob a sua forma bem definida só sedesenvolve mais tarde. O primeiro período crítico a este respeitosó ocorre por volta dos sete ou oito anos de idade (30)(30, p.276).

Antes desta idade, Piaget tende a ver o egocentrismo comoalgo que impregna tudo. Considera direta ou indiretamenteegocêntricos todos os fenômenos da lógica infantil na sua ricavariedade. Do sincretismo, importante expressão doegocentrismo, diz inequivocamente que impregna todo opensamento da criança, tanto na sua esfera verbal, como na suaesfera sensorial Após os sete ou oito anos, quando o pensamentosocializado começa a ganhar forma, os traços egocêntricos nãodesaparecem instantaneamente. Desaparecem das operações

sensoriais da criança, mas continuam cristalizados na área maisabstrata do pensamento puramente verbal.

A sua concepção da predominância do egocentrismo nainfância leva Piaget a concluir que o egocentrismo dopensamento se encontra tão intimamente relacionado com anatureza psíquica da criança que é impermeável à experiência.As influências a que os adultos submetem as crianças.

não se encontram nestas como se se tratasse de uma placafotográfica: são assimiladas, quer dizer, são deformadas pelo servivo que as sofre e implantam­se na sua própria substância. Éesta substância psicológica da criança, ou, por outras palavras,a estrutura e o funcionamento característicos do pensamento dacriança que procuramos descrever e em certa medida explicar(30)(30, p. 338).

Esta passagem resume a natureza dos pressupostosbásicos de Piaget e conduz­nos ao problema geral dasuniformidades sociais e biológicas do desenvolvimento físico, aque voltaremos na seção III. Em primeiro lugar, examinemos asolidez da concepção de Piaget do egocentrismo da criança à luzdos fatos em que se baseia.

II

Como a concepção que Piaget tem do egocentrismo dacriança é de primeira importância na sua teoria, temos queindagar que fatos levaram não só a admitir esta hipótese, comotambém a depositar tanta fé nela. Por conseguinte, poremosestes fatos à prova comparando­os com os resultados das nossaspróprias experiências (46)(46, 47).

A base factual da convicção de Piaget é­lhe dada pelasinvestigações a que submeteu o uso que as crianças dão àlinguagem. As suas observações sistemáticas levaram­no aconcluir que todas as conversações das crianças se podemclassificar em um de dois grupos: o egocêntrico e o socializado. Adiferença entre ambos reside sobretudo nas suas funções. Nodiscurso egocêntrico a criança fala apenas dela própria, não sepreocupa com o interlocutor, não tenta comunicar, não esperaqualquer resposta e freqüentemente nem sequer se preocupacom saber se alguém a escuta. O discurso egocêntrico ésemelhante a um monólogo numa peça de teatro: a criança comoque pensa em voz alta, alimentando um comentário simultâneocom aquilo que está a fazer. No discurso socializado, ela nãoprocura estabelecer um intercâmbio com os outros — pede,

manda, ameaça, transmite informações, faz perguntas.

As experiências de Piaget mostram que a parte de longemais importante das conversas das crianças em idade pré­escolar é constituída por falas egocêntricas. Chegou à conclusãode que 44 a 47 por cento do número total de conversasregistadas em crianças com sete anos de idade era de naturezaegocêntrica. Este número, diz ele, deve ser consideravelmentemais elevado no caso das crianças mais novas. Investigaçõesposteriores com crianças de seis e sete anos de idadedemonstraram que, nesta idade, nem o discurso social seencontra totalmente liberto de pensamentos egocêntricos. Aodemais, para além dos seus pensamentos expressos, as criançastêm muitos pensamentos não expressos. Alguns destespensamentos, afirma Piaget, ficam por exprimir precisamenteporque são egocêntricos, isto é, incomunicáveis. Para ostransmitir aos outros, a criança teria que ser capaz de adotar osseus pontos de vista. “Poder­se­ia dizer que o adulto pensasocialmente. mesmo quando se encontra só, ao passo que ascrianças com menos de sete anos pensam e falamegocêntricamente, mesmo em sociedade com os outros” (29)(29,p. 56). Assim, o coeficiente de pensamento egocêntrico seránecessariamente muito mais elevado do que o coeficiente de falaegocêntrica. Mas só os dados orais são mensuráveis, só eles nosfornecem a prova documental sobre que Piaget baseia a suaconcepção do egocentrismo infantil. As suas explicações sobre odiscurso egocêntrico e o egocentrismo das crianças em geral sãoidênticas.

Em primeiro lugar, não há vida social persistente emcrianças com menos de sete ou oito anos; em segundo lugar, averdadeira linguagem social das crianças, quer dizer, alinguagem utilizada na atividade fundamental das crianças — ojogo — é uma linguagem de gestos, movimentos e mímica, tantoquanto uma linguagem de palavras. (29)(29, p. 56).

Quando, com sete ou oito anos de idade, o desejo detrabalhar com os outros começa a manifestar­se, a falaegocêntrica continua a subsistir.

Na sua descrição do discurso egocêntrico e do seudesenvolvimento genético, Piaget sublinha que esse discurso nãocumpre nenhuma função no comportamento da criança e que selimita a atrofiar­se à medida que a criança atinge a idade escolar.As experiências que nós próprios levamos a cabo, apontam paraconclusões diferentes. Estamos em crer que o discursoegocêntrico assume desde muito cedo um papel muito definido e

importante na atividade da criança.

Para determinarmos qual a causa da fala egocêntrica e quecircunstâncias a provocam, organizamos as atividades dascrianças duma forma muito semelhante à de Piaget,acrescentando­lhes porém uma série de frustrações e dedificuldades. Por exemplo, quando uma criança se preparavapara pintar, descobria subitamente que não havia papel, ou lápisda cor que necessitava. Por outras palavras, obrigavamo­la adefrontar­se com determinados problemas, obstruindo a suaatividade livre.(ver capítulo 7 sobre outros aspectos destesproblemas)

Descobrimos que nestas situações difíceis, o coeficiente dediscurso egocêntrico quase duplicava, em comparação com onúmero normal de Piaget para a mesma idade e também emcomparação com o nosso próprio número para crianças que nãose defrontavam com estes problemas. A criança tentaria dominare remediar a situação falando para si própria: “Onde está olápis? Preciso de lápis azul. Deixa lá, vou desenhar com o lápisvermelho e molho­o com água; ficará mais escuro e pareceráazul”.

Nas mesmas atividades sem impedimentos, o nossocoeficiente de fala egocêntrica era até um pouco inferior ao dePiaget. Portanto, é legítimo presumir que as interrupções do livredesenrolar da atividade são estímulos importantes para odiscurso egocêntrico. Esta descoberta adequa­se com duaspremissas que o próprio Piaget refere repetidas vezes ao longo doseu livro. Uma delas é a chamada lei da consciência, segundo aqual os obstáculos ou as perturbações duma atividadeautomática fazem com que o autor dessa atividade se apercebadela. A outra premissa é a que afirma que o discurso é umaexpressão desse processo de tomada de consciência.

As nossas descobertas indicam que o discurso egocêntricojá não se limita a ser um simples acompanhamento da atividadeda criança Para além de ser um meio de expressão e delibertação de tensão em breve se torna um instrumento depensamento no sentido próprio do termo — um instrumentopara buscar e planear a solução de um problema. Um acidenteocorrido durante uma das nossas experiências proporciona­nosum bom exemplo da forma como o discurso egocêntrico podealterar o curso de uma atividade: uma criança de cinco anosestava a desenhar um automóvel quando a ponta do lápis sequebrou. Apesar do acidente, a criança tentou acabar o círculoque representava uma roda, pressionando o lápis sobre o papel

com muita força, mas nada surgiu, a não ser uma linha vincadae sem cor. A criança sussurrou de si para si: “Está partido.” pôso lápis de lado, substitui­o por aquarela e começou a desenharum carro partido em resultado de um acidente, continuando afalar de si para si acerca da alteração da sua pintura. Aexpressão egocêntrica da criança acidentalmente provocadaafetou tão manifestamente a sua atividade, que é difícil tomá­laerradamente por um simples subproduto, por umacompanhamento que não interferisse com a melodia. As nossasexperiências evidenciaram alterações muito complexas na inter­relação entre a atividade e a fala egocêntrica. Observamos comoo discurso egocêntrico começava por marcar o resultado final deum ponto de viragem de uma atividade, deslocando­se depoisgradualmente para o meio e finalmente para o início daatividade, passando a assumir uma função diretora, deplaneamento, e elevando a atividade da criança ao nível de umcomportamento com objetivos conscientes. O que acontece nestecaso é semelhante à bem conhecida seqüência genética dadesignação dos desenhos. Um bebê começa por desenhar,decidindo depois o que é aquilo que desenhou; numa idadeligeiramente superior, nomeia o seu desenho quando este seencontra meio feito; e, por fim, decide antecipadamente aquiloque vai desenhar.

A concepção revista da função do discurso egocêntricoinfluenciará também necessariamente a nossa concepção da suatrajetória posterior e terá que ser recordada a propósito daquestão do seu desaparecimento por altura da idade escolar. Asexperiências podem fornecer­nos provas indiretas, mas nenhumaresposta terminante acerca das causas do seu desaparecimento.Não obstante, os dados obtidos sugerem­nos fortemente ahipótese de que o discurso egocêntrico é um estádio na evoluçãodo discurso vocal para o discurso interior. Nas nossasexperiências, as crianças mais velhas comportavam­se de formadiferente das mais novas quando se encontravam face a faceperante certos obstáculos. Freqüentemente, as criançasexaminavam a situação em silêncio encontrando posteriormenteuma solução. Quando inquiridos sobre o que estavam a pensardavam respostas que se assemelhavam bastante ao pensamentoem voz alta das crianças em idade pré­escolar Isto indicaria que,na criança em idade escolar, se encontram relegadas para odiscurso interior sem som, as mesmas operações mentais que acriança em idade pré­escolar leva a cabo em voz alta, por meio dodiscurso egocêntrico. É claro que em Piaget não há nada nessesentido, pois este autor pensa que o discurso egocêntricodesaparece, muito pura e simplesmente. O desenvolvimento do

discurso interno nas crianças pouca dilucidação específicamerece. Mas como o discurso interior e o egocentrismo oralizadopreenchem as mesmas funções, a conclusão a tirar daqui seriaque se, como Piaget defende, o discurso egocêntrico precede odiscurso socializado, então o discurso interior também precede odiscurso socializado — pressuposto que, do ponto de vistagenético, é insustentável.

O discurso interior do adulto representa o “pensar de sipara si” mais do que a adaptação social; isto é, desempenha amesma função que o discurso egocêntrico das crianças. Temtambém as mesmas características estruturais: fora do contextoseria incompreensível para os outros, porque omite “mencionar”o que é obvio para o “locutor”. Estas semelhanças levam­nos apresumir que, quando desaparece da vista, o discursoegocêntrico não se atrofia pura e simplesmente, antes continua oseu curso e “mergulha nas profundidades”, isto é, se transformaem discurso interior. A nossa observação segundo a qual, naidade em que esta modificação ocorre, as crianças queexperimentam dificuldades passam a recorrer, quer ao discursoegocêntrico, quer ao discurso silencioso, a reflexão silenciosa,indica que esses dois discursos podem ser funcionalmenteequivalentes. Partimos da hipótese de que os processos dodiscurso interior se desenvolvem e se vão estabilizandoaproximadamente no início da idade escolar e que isto é causada rápida diminuição do discurso egocêntrico que nessa idade seobserva.

Embora as nossas descobertas sejam de âmbito limitado,julgamos que nos permitirão ver a direção geral do pensamento eda linguagem numa perspectiva nova e mais vasta. No ponto devista de Piaget, as duas funções seguem uma trajetória comum,do discurso autístico ao discurso socializado, da fantasiasubjetiva à lógica das relações. No decurso desta transformação,a influência dos adultos é deformada pelo processo psíquico dascrianças mas acaba por vencer. Para Piaget, o desenvolvimentodo pensamento processa­se por uma gradual socialização dosestados mentais mais profundamente íntimos, pessoais,autísticos. Até o discurso social é apresentado como um discursoque sucede e não que precede o discurso egocêntrico.

A hipótese que propomos inverte esta trajetória. Olhemospara a direção do desenvolvimento do pensamento durante umcurto intervalo de tempo, desde o aparecimento do discursoegocêntrico até ao seu desaparecimento, no quadro dodesenvolvimento da linguagem como um todo.

Consideramos que o desenvolvimento total segue aseguinte evolução: a função primordial da linguagem, tanto nascrianças como nos adultos, é a comunicação, o contato social.Por conseguinte, a fala mais primitiva das crianças é uma falaessencialmente social. De inicio, é global e multifuncional; maistarde as suas funções tornam­se diferenciadas. Numa certaidade o discurso social da criança subdivide­se bastantenitidamente em discurso egocêntrico e discurso comunicativo(Preferimos utilizar o termo comunicativo para a forma dediscurso que Piaget designa por socializado — como se tivessesido algo diferente antes de se tornar social. Do nosso ponto devista, as duas formas, a comunicativa e a egocêntrica, são ambassociais, apesar de as suas funções diferirem). O discursoegocêntrico emerge quando a criança transfere as formas sociaiscooperativas de comportamento para a esfera das funçõespsíquicas pessoais internas. A tendência da criança paratransferir para os seus processos internos os modelosanteriormente sociais é uma tendência bem conhecida que Piagetconhece muito bem. Noutro contexto, ele descreve como asdiscussões entre crianças dão origem às primeiras manifestaçõesde reflexão lógica. Algo semelhante acontece, julgamos, quando acriança começa a conversar consigo, própria como se estivesse afalar com outrem. Quando as circunstâncias a obrigam a deter­se para pensar, o mais certo é começar a pensar em voz alta. Odiscurso egocêntrico, dissociado do discurso social geral, acabacom o tempo por conduzir ao discurso interior que servesimultaneamente o pensamento autístico e o pensamento lógico.

O discurso egocêntrico como forma lingüística separada,autônoma e o elo genético altamente importante na transiçãoentre o discurso oral e o discurso interior, um estádio intermédioentre a diferenciação das funções do discurso oral e atransformação final de uma parte do discurso oral em discursointerior. É este papel de transição do discurso egocêntrico quelhe confere um interesse teórico tão grande. Toda a concepção dodesenvolvimento do discurso se alterará profundamente,consoante a interpretação que se der ao papel do discursoegocêntrico. Assim, o nosso esquema de desenvolvimento —primeiro, o discurso social, depois o discurso egocêntrico, depoiso discurso interior — diverge profundamente não só do esquemabehaviourista tradicional, — discurso oral, murmúrio, discursointerior — mas também da seqüência de Piaget — que passa dopensamento autístico para o discurso socializado e o pensamentológico através do discurso e do pensamento egocêntrico. Nanossa concepção a verdadeira trajetória de desenvolvimento dopensamento não vai no sentido do pensamento individual para o

socializado, mas do pensamento socializado para o individual.

III

Dentro dos limites do presente estudo, não é possívelavaliar todos os aspectos da teoria de Piaget sobre odesenvolvimento intelectual, as nossas preocupações centram­sesobre a sua concepção do papel do egocentrismo na relaçãoevolutiva entre a linguagem e o pensamento. Vamos contudoindicar, de entre as suas hipóteses teóricas e metodológicas,quais as que consideramos erradas, assim como os fatos que elenão consegue enquadrar na sua caracterização do pensamentoda criança.

A psicologia moderna em geral, e a psicologia infantil emparticular, mostram tendência para combinarem as questõespsicológicas com as filosóficas. Um paciente do psicólogo alemãoAch resumiu muito adequadamente esta inclinação, ao observarno fim de uma sessão: “Mas isso é filosofia experimental!” E, naverdade, muitas questões do complexo campo do pensamentoinfantil encontram­se na fronteira da teoria do conhecimento, dalógica teórica e de outros ramos da filosofia. Repetidas vezesPiaget toca inadvertidamente um ou outro destes domínios, mas,com notável coerência, refreia­se e abandona­o imediatamente.No entanto, apesar da sua expressa intenção de evitarteorizações, não consegue manter a sua obra dentro do quadroda ciência puramente factual. A escusa deliberada da filosofia éjá de si uma filosofia — e uma filosofia que pode arrastar os seusproponentes para muitas incoerências. Exemplo disto é aconcepção de Piaget sobre o papel da explicação causal emciência.

Piaget tenta escusar­se a entrar em consideração com ascausas na apresentação das suas descobertas. Ao procederassim, aproxima­se perigosamente daquilo a que, na criança,designa por “pré­causalidade”, muito embora no seu casoparticular possa ver a sua abstenção como um estádio“supracausa” sofisticado, em que o conceito de causalidade teriasido superado. Piaget propõe que se substitua a explicação dosfenômenos em termos de causa e efeito por uma análise genéticaem termos de seqüência temporal e pela aplicação de umafórmula de concepção matemática da interpenetração funcionaldos fenômenos. No caso de dois fenômenos interdependentes, osfenômenos A e B, pode­se considerar que A é função de B ou queB é função de A. O investigador reserva­se o direito de organizara sua descrição dos dados da forma que melhor servir os seusobjetivos em determinado momento, embora eventualmente

confira uma posição preferencial ao fenômeno mais primitivo doponto de vista do desenvolvimento, como fenômeno maisexplicativo no sentido fonético.

Esta substituição da interpretação causal pelainterpretação funcional subtrai ao conceito de desenvolvimentotodo e qualquer conteúdo real. Muito embora, ao analisar osfatores sociais e biológicos, Piaget reconheça que o estudioso dodesenvolvimento mental tem por obrigação explicar a relaçãoentre ambos e a não descurar nenhum, a sua solução é aseguinte:

Mas, para começar, há que escolher um dos idiomas emdesfavor do outro. Optamos pelo idioma sociológico, massublinhamos que não há nenhum exclusivo nisto — reservamo­nos o direito de voltarmos a adotar a explicação biológica dacriança, e a traduzir nos termos que lhe são próprios a descriçãoque tentamos dar aqui (30)(30, p. 266).

Esta concepção reduz realmente toda a demarche de Piageta uma escolha arbitrária.

O quadro de trabalho fundamental da teoria de Piagetapoia­se no pressuposto de que há uma seqüência genética deduas formas opostas de intelecção que a teoria psicanalíticadescreve como duas formas que se encontram ao serviço doprincípio do prazer e do princípio da realidade. Do nosso pontode vista, a pulsão dinâmica de satisfação das necessidades e apulsão de adaptação à realidade não podem ser consideradascomo coisas separadas que se opõem mutuamente. Umanecessidade só pode ser verdadeiramente satisfeita através deuma certa adaptação à realidade. Além disso, não há adaptaçãopela adaptação: a adaptação é sempre orientada pelasnecessidades, o que é um truismo inexplicavelmente descuradopor Piaget.

Piaget compartilha com Freud não só a concepçãoindefensável da existência de um princípio de prazer queprecederia o princípio da realidade. mas também a abordagemmetafísica que eleva o princípio do prazer do seu verdadeiroestatuto de fator secundário, biologicamente importante, ao nívelde uma força vital independente, de primo­motor dodesenvolvimento psíquico. Como separou a necessidade e oprazer da adaptação à realidade, Piaget é logicamente forçado aapresentar o pensamento realístico como algo que existedissociado das necessidades concretas, dos interesses e dasaspirações concretas, como pensamento “puro” que tem por

função exclusiva a busca da verdade pela verdade,exclusivamente.

O pensamento autístico — que originalmente era o opostodo pensamento realístico na seqüência de Piaget — é, em nossaopinião, uma evolução tardia, um resultado do pensamentorealístico e do seu corolário, o pensamento conceptual, que nosconduz a um certo grau de autonomia relativamente á realidade,permitindo assim a satisfação na fantasia das necessidadesfrustradas pela vida real. Esta concepção do autismo é coerentecom a de Bleuler (3). 0 autismo é um dos efeitos da diferenciaçãoe da polarização das várias funções do pensamento.

As nossas experiências trouxeram a primeiro plano outroponto importante, que até aqui tem sido descurado: o pape! daatividade da criança na evolução dos seus processos intelectivos.Vimos que o discurso egocêntrico não se encontra suspenso novácuo, mas está diretamente relacionado com a forma como acriança lida com o mundo exterior real. Vimos que isto é parteintegrante dos processos de atividade racional que a inteligênciacomo que assume nas ações infantis carregadas de incipienteintencionalidade e que esse discurso vai progressivamenteservindo para resolver certos problemas e planear à medida queas atividades da criança se vão tornando mais complexas. Esteprocesso é desencadeado pelas ações da criança; os objetos comque esta lida representam a realidade e modelam os seusprocessos de pensamento.

À luz destes fatos, as conclusões de Piaget exigem umcerto número de clarificações relativamente a dois pontosimportantes. Em primeiro lugar, as peculiaridades dopensamento das crianças por ele analisadas, tais como osincretismo, não abarcam um domínio tão vasto como Piagetjulga. Sentimo­nos inclinados a pensar (e as nossas experiênciasno­lo confirmam) que a criança pensa de uma forma sincréticaem áreas de que não possui conhecimentos ou experiênciasuficientes, mas que não recorre ao sincretismo em relação acoisas que lhe são familiares ou que são de fácil comprovaçãoprática — e o número destas coisas depende do método deeducação. Da mesma forma, dentro do quadro do sincretismopropriamente dito, será de esperar encontrar algumas formaspercursoras das futuras concepções causais que o próprio Piagetmenciona de passagem. Os próprios esquemas sincréticos,apesar das suas flutuações, conduzem a criança a uma gradualadaptação; há que não subestimar a sua utilidade. Mais tarde oumais cedo, através de uma estrita seleção, da redução e daadaptação mútua, irão sendo burilados, transformando­se em

excelentes instrumentos de investigação nas áreas em que ashipóteses são aplicáveis.

O segundo ponto que há que ser reavaliado e sujeito acertas limitações é a aplicabilidade das descobertas de Piaget àscrianças em geral. As suas experiências levam­no a acreditar queas crianças são impermeáveis à experiência. Piaget estabeleceuma analogia que julgamos ser reveladora: diz ele que o homemprimitivo só aprende com a experiência em casos muito especiaise limitados de atividade prática — e cita como exemplos dissocasos raros de agricultura, caça e manufatura.

Mas este contato efêmero e parcial com a realidade nãoafeta minimamente a sua maneira de pensar. O mesmo se aplicaàs crianças por maioria de razões (30)(30, p. 268­269).

No caso do homem primitivo, não podemos chamar àagricultura e à caça contatos desprezáveis com a realidade, poisconstituem praticamente toda a sua existência. A concepção dePiaget pode ser válida para o caso particular das crianças queestudou, nas não tem alcance universal. É ele próprio quem nosdá a causa da qualidade especial de pensamento que observounas suas crianças:

A criança nunca entra em contato real e verdadeiro com ascoisas, pois não trabalha: brinca com as coisas, ou aceita­ascomo ponto assente (30)(30, p. 269).

As uniformidades de desenvolvimento estabelecidas porPiaget aplicam­se ao meio dado, nas condições em que Piagetlevou a cabo o seu estudo. Não são leis da natureza, são leishistórica e socialmente determinadas. Stern já havia criticado aPiaget o fato de não ter tomado na devida conta a importância dasituação e do meio sociais. O caráter mais egocêntrico ou maissocial da fala das crianças depende não só da sua idade, mastambém das condições ambientes. Piaget observou criançasenquanto brincavam em determinado jardim infantil e os seuscoeficientes só são válidos para este meio infantil particular.Quando a atividade das crianças é exclusivamente constituídapor jogos, é acompanhada por um grande manancial desolilóquios. Stern assinala que nos infantários alemães, em que aatividade de grupo é maior, o coeficiente de egocentrismo eraalgo menor e que, em casa, o discurso das crianças tende a serpredominantemente social desde muito tenra idade. Se isto sepassa com as crianças alemãs, a diferença entre as criançassoviéticas e as crianças que Piaget observou nos infantários deGenebra devem ser ainda maiores. No seu prefácio à edição

russa do seu livro, Piaget admite que é necessário comparar ocomportamento de crianças de ambientes sociais diferentes parapodermos estabelecer a diferença entre o social e o individual noseu pensamento. Por esta razão saúda a colaboração com ospsicólogos soviéticos. Também estamos convencidos de que oestudo do desenvolvimento das crianças provenientes deambientes sociais diferentes e em especial de crianças que, aocontrário das crianças de Piaget, trabalham, levaránecessariamente a resultados que nos permitirão formular leiscom um âmbito de aplicação muito mais vasto.

3. A teoria de Stern sobre odesenvolvimento da linguagem

A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecidae que tem vindo a ganhar terreno com o passar dos anos, é a suaconcepção intelectualista sobre o desenvolvimento da linguagemna criança. Contudo, é esta mesma concepção que maisclaramente revela as limitações e as incoerências dopersonalismo filosófico e psicológico de Stern, os seusfundamentos idealistas e a sua ausência de validade científica.

É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como“personalista­genético”. Analisaremos o princípio personalistamais à frente. Para já, vamos ver como Stern trata do aspectogenético. Afirmaremos já à partida que esta teoria, tal comotodas as teorias intelectualistas, é, pela sua própria natureza,anti­genética.

Stern estabelece uma distinção entre três raízes dalinguagem: a tendência expressiva, a tendência social e atendência “intencional”. Enquanto as duas primeiras estãotambém subjacentes aos rudimentos de linguagem observadosnos animais, a terceira é especificamente humana. Stern defineintencionalidade neste sentido como uma orientação para umcerto conteúdo, ou significado. “Em determinado estádio do seudesenvolvimento psíquico”, afirma ele, “o homem adquire acapacidade de significar algo proferindo palavras, de se referir aalgo objetivo” (38)(38, p. 126). Em substância, tais atosintencionais são já atos de pensamento; o seu surgimento denotauma intelectualização e uma objetificação do discurso.

Em consonância com um certo número de autores querepresentam a nova psicologia do pensamento, embora emmenor grau do que alguns deles, Stern sublinha a importânciado fator no desenvolvimento da linguagem.

Não temos nada a obstar à afirmação segundo a qual alinguagem humana desenvolvida possui um significado objetivo,pressupondo portanto um certo grau de desenvolvimento dopensamento, e estamos de acordo em que é necessário tomar emlinha de conta a relação estreita que existe entre a linguagem e opensamento lógico. O problema está em que Stern encara aintencionalidade característica do discurso desenvolvido, queexige explicação genética (isto é, que exige se explique como foigerada no processo evolutivo), como uma das raízes dodesenvolvimento da linguagem, como uma força motora, comouma tendência inata, quase como um impulso, mas, de qualquerforma como algo primordial, geneticamente equiparada àstendências expressiva e comunicativa — as quais na verdade sãodetectáveis já nos primeiros estádios da linguagem. Ao ver aintencionalidade desta maneira (“die intentionale Triebfeder desSprachdranges”), substitui a explicação genética por umaexplicação intelectualista.

Este método de explicar uma coisa pela própria coisa quehá que explicar é o erro fundamental de todas as teoriasintelectualistas e, em particular, da de Stern — daí a suavacuidade geral e o seu caráter anti­genético (pois se relegampara os primeiros estádios de desenvolvimento da linguagemcaracterísticas que pertencem aos seus estádios mais avançados)Stern responde à questão de como e porque a linguagem adquiresignificado afirmando. a linguagem adquire significado pela suatendência intencional, isto é, pela tendência à significação. Istofaz­nos recordar o médico de Molière que explicava os efeitossoporíferos do ópio pelas suas propriedades dormitivas.

Da famosa descrição que Stern nos dá da grandedescoberta feita pelas crianças por volta do ano e meio ou doisanos de idade podemos ver a que exageros pode conduzir umaacentuação exagerada dos aspectos lógicos. Por essa idade, acriança descobre pela primeira vez que cada objeto tem o seusímbolo permanente, uma configuração sonora que o identifica— quer dizer, que cada coisa tem o seu significado. Stern crêque, pelo segundo ano da sua vida, uma criança pode tomarconsciência dos símbolos e da sua necessidade e considera queesta descoberta é já um processo de pensamento no sentidopróprio do termo:

A compreensão da relação entre o signo e o significado quedesponta na criança por esta altura é algo diferente em princípioda simples utilização de imagens sonoras, de imagens de objetose da sua associação. É a exigência de que todos os objetos, sejameles quais forem, tenham o seu nome próprio pode considerar­secomo uma verdadeira generalização levada a cabo pela criança(40)(40, pp. 109­110).

Haverá algum fundamento teórico ou factual parapresumir que uma criança de um ano e meio ou dois anos deidade tem consciência de uma regra geral, de um conceito geral?Todos os estudos realizados sobre este problema nos últimosvinte anos indicam­nos que a resposta é negativa.

Tudo o que conhecemos da mentalidade da criança de umano e meio ou dois anos entra em choque com a idéia segundo aqual ela poderia ser capaz de operações intelectuais tãocomplexas. Tanto a observação como os estudos experimentaisindicam­nos que a criança só muito mais tarde apreende arelação entre o signo e o significado, ou a utilização funcionaldos signos; tal encontra­se muito para lá do alcance de umacriança com dois anos. Além disso, as investigaçõesexperimentais sistemáticas mostraram que a compreensão darelação entre o signo e o significado e da transição para o estádioem que a criança começa a operar com os signos, não resultanunca de uma descoberta ou invenção repentinas. Stern acreditaque a criança descobre o significado da linguagem de uma vezpor todas, mas na realidade, trata­se de um processoextremamente complexo que tem a sua “História Natural” (isto é,as suas origens e as suas formas de transição aos maisprimitivos níveis genéticos) e também a sua “História Cultural”(que também tem as suas séries de fases próprias, o seu própriodesenvolvimento quantitativo, qualitativo e funcional, as suaspróprias leis e dinâmica).

Stern passa virtualmente por cima de todas as intrincadasvias que conduzem ao amadurecimento da função do signo; asua concepção do desenvolvimento lingüístico é extremamentesimplificada. A criança descobre repentinamente que o discursotem significado. Esta explicação da forma como a fala se tornasignificante, merece em verdade ser equiparada à teoria dainvenção deliberada da linguagem, à teoria racionalista docontrato social e a outras teorias intelectualistas famosas. Todaselas desprezam as realidades genéticas e não explicam realmentenada.

Também do ponto de vista dos fatos a teoria de Stern não

agüenta o confronto. Wallon, Kotfka, Piaget, Delacroix e muitosoutros, nos seus estudos das crianças normais e K. Buehler noseu estudo dos surdos­mudos, descobriram:

(1) que a descoberta por parte da criança da ligação entre apalavra e o objeto não conduz imediatamente a uma consciênciaclara da relação simbólica entre o signo e o referente,característica do pensamento bem desenvolvido, que, duranteum grande período de tempo, a palavra surge à criança maiscomo um atributo ou uma propriedade do objeto do que comosimples signo, que a criança apreende a relação externa entre oobjeto e a palavra antes de perceber a relação interna signo­referente;

(2) que a descoberta que a criança faz não é umadescoberta súbita, de que se possa definir o instante exato emque ocorre. Uma série de longas e complicadas “transformaçõesmoleculares” conduzem a esse momento crítico dodesenvolvimento.

No decurso dos vinte anos que decorreram desde apublicação, do seu estudo, ficou estabelecido sem sombra dedúvidas que a observação fundamental de Stern era correta; istoé, há realmente um momento de descoberta que para umaobservação mais grosseira surge como que não reparada. Oponto de viragem decisivo do desenvolvimento lingüístico,cultural e intelectual da criança descoberto por Stern existerealmente — embora este autor tenha laborado em erro, ao dar­lhe uma interpretação intelectualista. Stern assinala doissintomas objetivos da ocorrência dessa transformação crítica: osurgimento de perguntas sobre os nomes dos objetos e asexpansões rápidas, e por saltos, do vocabulário — daíresultantes; ambos estes sintomas são de primeira importânciapara o desenvolvimento da linguagem.

A ativa procura de palavras por parte da criança, que nãotem equivalente no desenvolvimento da “linguagem” nos animais,indica uma nova fase na evolução lingüística. É por essa alturaque o “grandioso sistema de signos da linguagem” (para citarPavlov) emerge para a criança da massa dos outros signos eassume um papel específico no comportamento. Um dos grandesfeitos de Stern foi ter assente este fato sobre os firmes alicercesdos sintomas objetivos, o que torna a lacuna da sua explicaçãoainda mais flagrante.

Ao contrário das outras duas raízes da linguagem, aexpressiva e a comunicativa, cujo desenvolvimento é seguido

desde os animais mais inferiores até aos antropóides e aohomem, a tendência intencional surge do nada: não tem Histórianem conseqüências. Segundo Stern, é fundamental, primordial;brota espontaneamente e “duma vez por todas”. É estapropensão que torna a criança capaz de descobrir a função dalinguagem por meio de uma operação puramente lógica.

É certo que Stern não diz isto assim por estas palavras.Ele entrou em polêmica não só com os proponentes das teoriasanti­intelectualistas que vão buscar as raízes e os inícios dalinguagem das crianças a processos exclusivamente afetivos­conativos, mas também com aqueles psicólogos que sobrestimama capacidade de pensamento lógico das crianças. Stern nãorepete este erro, mas comete outro ainda mais grave aoconsignar ao intelecto uma posição quase metafísica de primazia,como origem, como causa primeira indecomponível da falasignificante. Paradoxalmente este tipo de intelectualismo mostra­se particularmente inadequado ao estudo do processointelectual, que à primeira vista deveria ser a sua esfera deaplicação legítima. Por exemplo poderíamos esperar que o fato dese encarar a significação da fala como resultado de umaoperação intelectual trouxesse muita luz à relação entre alinguagem e o pensamento. Na realidade, tal abordagem, aoestipular como estipula um intelecto já formado, bloqueia toda equalquer investigação sobre as interações dialéticas implícitas dopensamento e da linguagem. O tratamento que Stern dá a esteaspecto fundamental do problema da linguagem encontra­serepleto de incoerências e é a parte mais débil do seu livro. (38)(38).

Pontos tão importantes como o discurso interior, a suaemergência e a sua conexão com o pensamento mal sãoaflorados por Stern. Este passa em revista os resultados dasinvestigações de Piaget apenas na sua análise das conversasinfantis, descurando as funções, a estrutura e o significadogenético dessa forma de linguagem Stern é totalmente incapaz derelacionar as complexas transformações funcionais e estruturaisdo pensamento com o desenvolvimento da linguagem.

Mesmo quando Stern nos dá uma correta caracterizaçãode um fenômeno genético, o enquadramento teórico da sua obraimpede­o de tirar as conclusões óbvias das suas própriasobservações. Este fato torna­se mais evidente do que nunca nasua incapacidade para ver as implicações da sua “tradução” dosprimeiros termos infantis na linguagem dos adultos. Ainterpretação que dá às primeiras palavras das crianças é apedra de toque de todas as teorias da linguagem infantil. É o

ponto focal em que todas as principais tendências das modernasteorias da linguagem se encontram e entrecruzam. Poder­se­iadizer, sem exagero que toda a estrutura de uma teoria édeterminada pela tradução que se dá das primeiras palavras decrianças.

Stern acha que tais palavras não devem ser interpretadasnem dum ponto de vista puramente intelectualista, nem doponto de vista puramente afeto­conativo. Reconhece os méritosde Meumann ao opor­se à teoria intelectualista, segundo a qualas primeiras palavras de uma criança designam realmenteobjetos enquanto objetos (28)(28). Não compartilha contudo, opressuposto de Meumann que afirma que as primeiras palavrassão simples expressões das emoções e dos desejos das crianças.Através da análise das situações em que elas surgem provabastante conclusivamente que estas palavras convêm tambémuma certa orientação em direção a um objeto e que esta“referência objetiva” ou função apontadora freqüentemente“predomina sobre o tom moderadamente emocional” (38)(38, p.180).

Eis como Stern traduz as primeiras palavras:

O significado da palavra infantil mamã traduzida para alinguagem desenvolvida, não é a palavra “mãe”, mas antes umafrase do gênero “Mamã, chega aqui”, ou “Mamã, dá­me”, ou“Mamã, põe­me em cima da cadeira”, ou “Mama, ajuda­me” (38)(38, p. 180).

No entanto, quando observamos as crianças em ação,torna­se óbvio que não é só a palavra mamã que significa,digamos, “Mamã, põe­me em cima da cadeira”, mas o conjuntodo comportamento da criança nesse momento (o seu gesto deaproximação em direção à cadeira, tentando agarrar­se a ela, etc.Aqui, a orientação “afetiva­conotativa” em direção a um objeto(para utilizar os termos de Meumann) é ainda inseparável datendência intencional da fala: ambas as tendências constituemainda um todo homogêneo e a única tradução correta de mamã,ou de quaisquer outras palavras primitivas é o gesto de apontarque as acompanha. A princípio a palavra é um substitutoconvencional para o gesto; surge muito antes da crucial“descoberta da linguagem” pela criança e antes que esta sejacapaz de executar operações lógicas. O próprio Stern admite opapel mediador dos gestos,. especialmente do apontar, noestabelecimento do significado das primeiras palavras. Aconclusão inevitável seria a de que o apontar é de fato. umaatividade percursora da “tendência intencional”. No entanto.

Stern escusa­se a ir buscar as raízes da história genética dessatendência. Para ele, esta não resulta de uma evolução a partir daorientação afetiva para o objeto no ato de apontar (gesto ouprimeiras palavras) — surge do nada e é responsável pelonascimento do significado.

A mesma abordagem anti­genética caracteriza também otratamento que Stern dá a todas as outras questões importantesanalisadas no seu vigoroso livro, tais como o desenvolvimento doconceito e os principais estádios do desenvolvimento dalinguagem e do pensamento. Nem podia ser de outra maneira:esta abordagem é conseqüência direta das premissas filosóficasdo personalismo, o sistema desenvolvido por Stern.

Stern tenta erguer­se acima dos extremos tanto doempirismo como do inatismo. Contrapõe o seu próprio ponto devista do desenvolvimento da linguagem, por um lado, ao deWundt, que considera a linguagem da criança como um produtodo meio ambiente, sendo a participação da criança inteiramentepassiva e, por outro lado, ao ponto de vista dos psicólogos paraos quais o discurso primário (as onomatopéias ou o chamadopapaguear dos bebês) foi inventado por uma geração infindávelde bebês. Stern tem cuidado em não descurar o papeldesempenhado pelos jogos de imitação no desenvolvimento dalinguagem, ou o papel da atividade espontânea da criança,aplicando a estas questões seu conceito de “convergência”: aconquista da linguagem pela criança dá­se através de umaconstante interação de disposições internas que preparam acriança para a linguagem e para as condições externas — isto é,a linguagem das pessoas que a cercam ­, que lhe fornecem quero estímulo quer a matéria prima para a realização dessasdisposições,

Para Stern, a convergência é um princípio geral, aplicável àexplicação de todos os comportamentos humanos. Este écertamente mais um dos casos em que podemos dizer comGoethe: As palavras da ciência ocultam a sua substância”. Asonora palavra convergência, que exprime aqui um princípiometodológico perfeitamente inatacável (quer dizer, o princípiometodológico de que o desenvolvimento deveria ser estudadocomo um processo determinado pela interação entre o organismoe o meio ambiente), liberta na realidade o autor da tarefa deanalisar os fatores sociais e ambientais no desenvolvimento dalinguagem. É certo que Stern afirma realmente com bastanteênfase que o meio ambiente social é o fator principal dodesenvolvimento da linguagem, mas, na realidade, limita o seupapel ao de um fato que se limita a acelerar ou retardar o

desenvolvimento, que obedece às suas próprias leis imanentes.Como tentamos mostrar, utilizando o seu exemplo de como osignificado emerge na linguagem, Stern sobrestimou os fatoresorgânicos internos.

Esta deformação é resultado direto do quadro personalistade referência. Para Stern, a “pessoa” é uma entidadepsicologicamente independente que, “apesar da multiplicidadedas suas funções parciais, manifesta uma atividade unitária,orientada para um objetivo” (39)(39, p. 16). Esta concepção“monadista”, idealista, da pessoa individual, leva a uma teoriaque vê a linguagem como algo radicado numa teleologia pessoal— e daí o intelectualismo e o pendor anti­genético do ponto devista de Stern sobre os problemas do desenvolvimentolingüístico, o personalismo de Stern, ao ignorar como ignora afaceta social do comportamento lingüístico, conduz a absurdospatentes. A sua concepção metafísica da personalidade, ao fazerdecorrer todos os processos de desenvolvimento de umateleologia pessoal, inverte completamente as relações genéticasreais. Em vez de uma história evolutiva da própriapersonalidade, em que a linguagem desempenha um papel quese encontra longe de ser secundário, temos a teoria metafísicasegundo a qual a personalidade gera a linguagem a partir dosfins para que tende a sua própria natureza essencial.

4. As raízes genéticas dopensamento e da linguagem

I

O fato mais importante posto a nu pelo estudo genético dopensamento e a linguagem é o fato de a relação entre ambaspassar por muitas alterações; os progressos no pensamento e nalinguagem não seguem trajetórias paralelas: as suas curvas dedesenvolvimento cruzam­se repetidas vezes, podem aproximar­see correr lado a lado, podem até fundir­se por momentos, masacabam por se afastar de novo. Isto aplica­se tanto aodesenvolvimento filogenético como ao ontogenético.

Nos animais, o pensamento e a linguagem têm variasraízes e desenvolvem­se segundo diferentes trajetórias dedesenvolvimento. Este fato é confirmado pelos estudos recentes

de Koehler, Yerkes e outros sobre os macacos. Koehler provouque o surgimento de um intelecto embrionário nos animais —isto é, o aparecimento de pensamento no sentido próprio dotermo — não se encontra de maneira nenhuma relacionado coma linguagem. As “invenções” dos macacos na execução eutilização de instrumentos, ou no capítulo da descoberta decaminhos indiretos para a solução de determinados problemas,embora sejam sem sombra de dúvida pensamento embrionário,pertencem a uma fase pré­linguística do desenvolvimento dopensamento.

Na opinião de Koehler, as suas investigações mostram queo chimpanzé evidencia um esboço de comportamento intelectualdo mesmo gênero e do mesmo tipo que o do homem. São aausência de linguagem. “esse instrumento técnico auxiliarinfinitamente valioso”, e a pobreza das imagens, “esse materialintelectual extremamente importante”, que explicam a tremendadiferença existente entre os antropóides e os homens maisprimitivos “e vedam ao chimpanzé o mais pequenodesenvolvimento cultural” (18)(18, pp 191­192).

Vigora considerável desacordo entre os psicólogos dasdiferentes escolas acerca da interpretação teórica dasdescobertas de Koehler. A massa de literatura crítica a que estesestudos deram origem representa uma grande variedade depontos de vista o que torna tanto mais significativo o ninguémcontestar os fatos ou a dedução que mais particularmente nosinteressa: a independência entre as ações do chimpanzé e alinguagem. Isto é admitido de boa mente, mesmo pelospsicólogos que, como Thorndyke e Borovski. nada vêem nasações do chimpanzé para lá dos mecanismos instintuais e daaprendizagem por “tentativas e erros”, “nada mais, salvo o jáconhecido processo de formação de hábitos” (4)(4, p. 179). epelos introspeccionistas que fogem a rebaixar o intelecto ao níveldo comportamento dos macacos, mesmo dos mais avançados.Buehler diz com muito acerto que as ações dos chimpanzés nãotêm qualquer relação com a linguagem; e que, no homem, opensamento mobilizado pela utilização dos utensílios(Werkzeugdenken) também tem uma relação muito mais tênuecom a linguagem e com os conceitos do que qualquer outraforma de pensamento.

A questão seria bem simples se os macacos não tivessemnenhum rudimento de linguagem, não tivessem nada que seassemelhasse à linguagem. Ora, acontece que encontramos nochimpanzé uma linguagem relativamente bem desenvolvida, que,sob certos aspectos — sobretudo foneticamente — não deixa de

ser semelhante à humana. Esta linguagem tem umacaracterística notável: a de funcionar independentemente dointelecto. Koehler, que estudou os chimpanzés durante muitosanos na Estação de Antropóides das Ilhas Canárias, ensina­nosque as suas expressões fonéticas denotam apenas desejos eestados subjetivos; são expressões de afetos e nunca um sinal dealgo objetivo” (19)(19, p. 27). Mas a fonética dos chimpanzés e ahumana têm tantas coisas em comum que podemosconfiantemente presumir que a ausência de um discurso dogênero humano não se deve a nenhuma causa periférica.

O chimpanzé é um animal extremamente gregário eresponde de forma muito intensa à presença doutros exemplaresda sua espécie. Koehler descreve formas altamente diversificadasde “comunicação lingüística” entre chimpanzés. Em primeirolugar vem o seu vasto repertório de expressões afetivas: jogofacial, gestos, vocalização; a seguir encontram­se os movimentosque exprimem as emoções sociais; gestos de saudação, etc. Osmacacos são capazes tanto de “compreender mutuamente osseus gestos” como também de “exprimir”, por meio de gestos,desejos que envolvem outros animais. Habitualmente, umchimpanzé executará o início de uma ação que pretende queoutro animal execute — por exemplo, empurrá­lo­á e executaráos movimentos iniciais de marcha para “convidar” o outro asegui­lo, ou agarrará o ar quando pretende que o outro lhe dêuma banana. Todos estes gestos são gestos relacionadosdiretamente com a própria ação. Koehler menciona que oexperimentador é levado a utilizar meios de comunicaçãoelementares essencialmente semelhantes para transmitir aosmacacos aquilo que espera deles.

Estas observações confirmam sobejamente a opinião deWundt segundo a qual os gestos de apontar que constituem oprimeiro estádio do desenvolvimento da linguagem humana nãoaparecem ainda nos animais, mas alguns gestos dos macacossão uma forma de transição entre o movimento de preensão e ode apontar. (56)(56, p. 219). Consideramos que este gesto detransição é um passo muito importante da expressão afetiva nãoadulterada para a linguagem objetiva.

Não há no entanto provas factuais de que os animaistenham atingido o estádio da representação objetiva de nenhumadas suas atividades. Os chimpanzés de Koehler brincavam combarro colorido, começando por “pintar., com os lábios e a línguae passando mais tarde para pincéis a sério; mas estes animais —que normalmente transferem para as suas brincadeiras o usodos utensílios e outros comportamentos aprendidos em

atividades “sérias” (isto é, em experiências) e, vice­versa — nuncaevidenciaram a mínima intenção de representar o quer que fossenos seus desenhos nem o mais leve indício de atribuírem o maispequeno significado aos seus produtos. Afirma Buehler:

Certos fatos põe­nos de sobreaviso no sentido de nãosobrestimarmos as ações dos chimpanzés. Sabemos que nuncanenhum viajante confundiu um gorila ou um chimpanzé com umhomem, e que nunca ninguém observou entre eles nenhum dosutensílios ou métodos tradicionais que, nos homens, emboravariando com as tribos, indicam a transmissão de geração emgeração das descobertas já feitas, nenhuma das arranhadelasque executam na areia ou no barro poderia ser confundida comdesenhos que representassem alguma coisa ou com decoraçõestraçadas durante a atividade lúdica; não há linguagemrepresentacional, isto é, não há sons equivalentes a nomes. Todoeste conjunto de circunstâncias deve ter alguma causa intrínseca(7)(7, p. 20).

De entre os observadores modernos dos macacos, Yerkesdeve ser o único que explica a sua carência de linguagem poroutras razões que não sejam as “causas intrínsecas”. A suainvestigação sobre o cérebro do orangotango produziram dadosmuito semelhantes aos de Koehler; mas levou as suasconclusões mais longe, pois admite uma “inteleção mais elevada”nos orangotangos — ao nível é certo de uma criança de trêsanos, pelo menos (57)(57, p. 132).

Yerkes deduz esta intelecção com base em semelhançassuperficiais entre o comportamento dos homens e o dosantropóides: não apresenta nenhuma prova objetiva de que osorangotangos resolvam os problemas socorrendo­se daintelecção, isto é, de “imagens”, ou de que sigam e discirnam osestímulos. No estudo dos animais superiores, pode­se usar aanalogia com bons resultados, dentro dos limites da objetividade,mas basear uma hipótese em analogias não será com certeza umprocedimento científico correto.

Koehler, por outro lado, foi mais além: não se limitou autilizar a simples analogia na sua investigação da natureza dosprocessos intelectuais dos chimpanzés. Mostrou também, pormeio de uma análise experimental rigorosa, que o êxito das açõesdos animais dependia do fato de eles poderem ver todos oselementos da situação simultaneamente — este fator era decisivopara o seu comportamento. Se o pau que utilizavam para chegara um fruto colocado para lá das barras fosse ligeiramentedeslocado de forma que o utensílio (o pau) e o objetivo (o fruto)

deixassem de ser visíveis num só relance, a resolução doproblema tornar­se­ia muito difícil, freqüentemente impossívelaté (especialmente durante as primeiras experiências). Osmacacos tinham aprendido a alongar os seus utensílios,inserindo um pau no orifício praticado noutro pau. Se por acasoos dois paus se cruzassem nas suas mãos formando um X,tornavam­se incapazes de realizar a operação familiar muitopraticada de alongar o utensílio. Poderiam citar­se dúzias deexemplos destes extraídos das experiências de Koehler.

Koehler considera que a presença real de uma situaçãobastante simples é condição indispensável em qualquerinvestigação do intelecto dos chimpanzés, condição sem a qual oseu intelecto não funcionará: conclui daqui que as limitaçõesintrínsecas da “imagética” (ou “ideação”) são uma característicafundamental do comportamento intelectual do chimpanzé. Seaceitarmos as teses de Koehler, então a hipótese de Yerkesparece mais do que duvidosa.

Em conexão com estes recentes estudos experimentais eobservações do intelecto e da linguagem dos chimpanzés, Yerkesapresenta novo material sobre o seu desenvolvimento lingüísticoe uma nova e engenhosa teoria que pretende explicar a suacarência de verdadeira linguagem. “As reações orais”, afirma ele,“são muito freqüentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas alinguagem no sentido humano não existe” (58)(58, p. 53). 0 seuaparelho vocal é tão desenvolvido e funciona tão bem como o dohomem. O que lhe falta é a tendência para imitar sons. A suamímica está quase totalmente dependente dos estímulos óticos;eles copiam ações, mas não sons. São incapazes de fazer o que opapagaio faz com tanto êxito.

Se as tendências imitativas do papagaio se combinassemcom o calibre intelectual das do chimpanzé, este último possuiriasem dúvida linguagem, já que tem um mecanismo vocalsemelhante ao do homem, assim como um intelecto de tipo enível que lhe permitem utilizar os sons tendo em vista o discursooral (58)(58, p. 53).

Nas suas experiências, Yerkes aplicou quatro métodospara ensinar os chimpanzés a falar. Nenhum deles obteve êxito.Tais fracassos, em princípio, nunca resolvem um problema,como é claro. Neste caso, estamos ainda para saber se é ou nãopossível ensinar os chimpanzés a falar. Não é raro que a culpacaiba ao experimentador. Koehler diz que se os anterioresestudos não conseguiram mostrar que os chimpanzés não têmintelecto, tal não se deve ao fato de os chimpanzés não o

possuírem, mas devido à inadequação dos métodos, à ignorânciados graus de complexidade no interior dos quais o intelecto dochimpanzé pode manifestar­se, à ignorância da sua dependência,à ignorância do fato que tal manifestação depende da existênciade uma situação visual global. “As investigações sobre acapacidade intelectual — troçava Koehler — “testam tanto oinvestigador como o investigado” (18)(18, p. 191).

Sem terem resolvido a questão em princípio, asexperiências de Yerkes mostraram mais uma vez que osantropóides não têm nada que se pareça com a linguagemhumana, nem sequer em embrião. Se relacionarmos isto com oque já sabemos de outras fontes, podemos presumir que osmacacos são provavelmente incapazes de acederem a umaverdadeira linguagem.

Possuindo eles o aparelho vocal indispensável e a gama desons necessários porque razão são incapazes de falar? Yerkesatribui isso à ausência da capacidade de imitação, ou à suadebilidade. Pode ter sido esta a causa dos resultados negativosdas suas experiências, mas provavelmente ele não terá razão aover nessa carência a causa fundamental da ausência delinguagem nos macacos. Embora ele a dê como ponto assente,esta última tese é negada por tudo o que conhecemos dointelecto do chimpanzé.

Yerkes dispunha de um excelente meio para comprovar asua tese, meio esse que por qualquer razão não utilizou e quemuito gostaríamos de poder aplicar se disso tivéssemospossibilidade material: excluiríamos o fator auditivo aoadestrarmos as qualidades lingüísticas dos animais. A linguagemnão depende necessariamente do som. Há por exemplo alinguagem de sinais dos surdos­mudos e a leitura dos lábios, queé também interpretação de movimentos. Nas linguagens dospovos primitivos, os gestos são utilizados em paralelo com o some desempenham um papel de certa importância. Em princípio, alinguagem não depende da natureza do material que emprega. Seé verdade que os chimpanzés têm o intelecto necessário paraadquirirem algo análogo à linguagem humana, e o únicoproblema reside no fato de não serem capazes de imitação vocal,então deveriam ser capazes de dominar nas experiências umqualquer tipo de gestos convencionais, cuja função psicológicaseria precisamente a mesma dos sons convencionais. Como opróprio Yerkes conjectura, poder­se­ia treinar os chimpanzés autilizarem gestos de mão, por exemplo, em substituição dossons. O meio de expressão não está em causa; o que importa é ouso funcional dos signos, de quaisquer signos que possam

desempenhar um papel correspondente ao da linguagemhumana.

Este método ainda não foi posto à prova e não podemos tera certeza dos resultados que daria, mas tudo o que conhecemosdo comportamento dos chimpanzés, incluindo os dados deYerkes. nos obriga a arredar a esperança de que pudessemaprender a linguagem funcional. Nunca ouvimos falar de quehouvesse qualquer indício de utilização sua dos signos. A únicacoisa que sabemos com certeza objetiva e, não que possuem“ideação”, mas que, em determinadas circunstâncias são capazesde executar utensílios muito simples e recorrer a “desvios” e queestas circunstâncias exigem uma situação global perfeitamentevisível e clara. Em todos os problemas em que não se verificava aexistência de estruturas visuais imediatamente perceptíveis, eque se centravam num outro tipo de estrutura diferente, — umtipo de estrutura mecânica, por exemplo — os chimpanzésabandonavam o comportamento de tipo intuitivo para adotaremmuito pura e simplesmente o método de tentativas e erros.

As condições necessárias para o funcionamento intelectualdos macacos serão as mesmas condições exigidas para adescoberta da linguagem, ou o uso funcional dos signos? Demaneira nenhuma. A descoberta da linguagem não podedepender em caso nenhum de uma configuração ótica. Exigeuma operação intelectual de tipo diferente e não temos quaisquerindicações que nos digam que tal operação se encontra aoalcance dos chimpanzés e a maior parte dos investigadoresadmitem a hipótese de que eles carecem de tal capacidade: estacarência pode ser a principal diferença entre o intelecto doschimpanzés e o dos homens.

Koehler introduziu o termo Einsicht (intuição) paradesignar as operações intelectuais acessíveis aos chimpanzés. Aescolha do termo não é acidental. Kafka assinalou que Koehlerparece significar com ele a ação de ver no sentido literal do termoe só por extensão a “visão” genérica de relações, ou acompreensão por oposição à ação cega (17)(17, p 130).

Deve dizer­se que Koehler nunca define Einsicht, nemexplicita a sua teoria. Na ausência de interpretações teóricas, otermo é algo ambíguo na sua aplicação: por vezes, designa ascaracterísticas específicas da própria operação, a estrutura dasações dos chimpanzés e por vezes o processo psicológico queprecede e prepara tais ações; como que um plano interno deoperações. Koehler não avança qualquer hipótese acerca domecanismo de reação intelectual, mas é claro que, funcione o

intelecto como funcionar, e seja qual for a localização que lheatribuirmos, — nas próprias ações dos chimpanzés ou emqualquer processo preparatório interno (cerebral ou neuro­muscular) — a tese mantém­se válida, a tese de que esta reaçãonão é determinada por traços de memória, mas pela situação talcomo se apresenta visualmente. O chimpanzé desperdiçará até omelhor dos instrumentos para determinado problema se não ovir ao mesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que o objetivo (i).Assim, a tomada em consideração da Einsicht não altera emnada a nossa conclusão de que o chimpanzé, mesmo quepossuísse as qualidades do papagaio, seria com certezasobremaneira incapaz de dominar a linguagem.

No entanto, como dissemos, o chimpanzé possui umalinguagem própria bastante rica. O colaborador de Yerkes,Learned, compilou um dicionário de trinta e dois elementos dediscurso, ou “palavras”, que não só se assemelhamfoneticamente ao discurso humano, como possuem tambémcerto significado, no sentido em que são suscitadas por certassituações ou objetos relacionados com o prazer ou o desprazer,ou que inspiram desejo, malícia ou medo (58)(58, p. 54). Estas“palavras” foram compiladas enquanto os chimpanzésaguardavam que os alimentassem, ou durante as refeições napresença de humanos, ou enquanto os chimpanzés estavam sós.São reações vocais afetivas, mais ou menos diferenciadas e, emcerta medida, relacionadas, à maneira dos reflexoscondicionados, com estímulos referentes à alimentação ou aoutras situações vitais quer dizer, era uma linguagemestritamente emocional.

Relativamente a esta descrição da linguagem dos macacosgostaríamos de realçar três pontos: em primeiro lugar, acoincidência da produção dos sons com gestos afetivos,particularmente perceptíveis quando os chimpanzés seencontram muito excitados, não se limita aos antropóides — pelocontrário, é muito vulgar nos animais dotados de voz. Alinguagem humana teve certamente origem no mesmo tipo dereações vocais.

Em segundo lugar, os estados afetivos que suscitamabundantes reações vocais nos chimpanzés são desfavoráveis aofuncionamento do intelecto. Koehler menciona repetidamenteque, nos chimpanzés, as reações emocionais, sobretudo as degrande intensidade, obliteram qualquer operação intelectualsimultânea.

Em terceiro lugar, dever­se­á sublinhar de novo que nos

macacos. a linguagem não tem por função exclusiva aliviar astensões emocionais. Tal como noutros animais e também nohomem, é também um meio de contato psicológico com os seussemelhantes Tanto nos chimpanzés de Yerkes e Learned, comonos macacos observados por Koehler, esta função éinconfundível. Mas não se encontra relacionada com as reaçõesintelectuais, isto é, com o pensamento. Tem origem na emoção efaz claramente parte do síndroma emocional total, parte essa,porém, que desempenha uma função específica, tanto biológicacomo psicologicamente. Está muito longe de constituir uma sériede tentativas conscientes e intencionais para informar einfluenciar os outros. Essencialmente é uma reação instintiva oualgo extremamente semelhante.

Dificilmente se porá em dúvida que, do ponto de vistabiológico, esta função da linguagem é uma das mais primitivas eque geneticamente tem algo a ver com os sinais visuais e oraisdados pelos chefes dos grupos animais. Num estudorecentemente publicado sobre a linguagem das abelhas, K. v.Frisch descreve certas formas de comportamento muitointeressantes e teoricamente importantes, que servem para ointercâmbio ou o contato (10) e que, sem sombra de dúvida, têmorigem no instinto. Apesar das diferenças fenotípicas, estasmanifestações comportamentais são no seu fundamentalsemelhantes ao intercâmbio lingüístico dos chimpanzés. Estasimilitude aponta mais uma vez para independência entre a“comunicação” dos chimpanzés e toda e qualquer atividadeintelectual.

Empreendemos esta análise de diversos estudos dalinguagem e do intelecto dos macacos para elucidarmos a relaçãoentre o pensamento e a linguagem no desenvolvimentofilogenético destas funções. Podemos agora resumir as nossasconclusões, que nos serão úteis para o prosseguimento daanálise do problema:

(1) O pensamento e a linguagem têm raízes genéticasdiferentes.

(2) As duas funções desenvolvem­se segundo trajetóriasdiferentes e independentes.

(3) Não há nenhuma relação nítida e constante entre elas.

(4) Os antropóides revelam um intelecto que, sob certosaspectos (a utilização embrionária dos instrumentos) ésemelhante ao dos homens e uma linguagem também algo

semelhante à humana, mas em aspectos totalmente diferentes (oaspecto fonético da sua fala, a sua função de alívio emocional, osembriões de uma função social).

(5) A estreita correspondência entre o pensamento e alinguagem, existente no homem, encontra­se praticamenteausente nos antropóides.

(6) Na filogenia do pensamento e da linguagem distingue­se com muita clareza uma fase pré­intelectual nodesenvolvimento da linguagem e uma fase pré­linguística nodesenvolvimento do pensamento.

II

Ontogeneticamente, a relação entre a gênese dopensamento e a da linguagem é muito mais intrincada e obscura;mas também aqui poderemos distinguir duas linhas de evoluçãodistintas, resultantes de duas raízes genéticas diferentes.

A existência de uma fase pré­linguística dodesenvolvimento do pensamento na infância só recentemente foicorroborada por provas objetivas. Aplicaram­se a crianças queainda não tinham aprendido a falar as mesmas experiências queKoehler levou a cabo com chimpanzés. O próprio Koehler haviajá realizado ocasionalmente essas experiências com crianças como objetivo de estabelecer comparações e Buehler empreendeu umestudo sistemático das crianças com a mesma orientação. Osresultados foram semelhantes para as crianças e os chimpanzés.

Sobre as ações das crianças, diz­nos Buehler:

eram exatamente como as dos chimpanzés, de tal formaesta fase da vida das crianças poderia ser corretamentedesignada por idade chimpanzóide; na criança que estudamoscorrespondia aos décimo primeiro e décimo segundo meses. É naidade chimpanzóide que ocorrem as primeiras invenções dacriança — invenções muito primitivas, é certo, masextremamente importantes para o seu desenvolvimento (7)(7, p.46).

O que sobremaneira importa do ponto de vista teórico,tanto nestas experiências, como nas dos chimpanzés, é adescoberta da independência entre as reações intelectuaisrudimentares e a linguagem. Notando isto, Buehler comenta:

Costumava­se dizer que a linguagem era o início da

hominização (Menschwerden); talvez sim, mas antes dalinguagem, há o pensamento implicado na utilização deutensílios, isto é, a compreensão das conexões mecânicas e aidealização de meios mecânicos com fins mecânicos, ou, para serainda mais breve, antes de surgir a linguagem, a ação torna­sesubjetivamente significativa — por outras palavras, torna­seconscientemente finalista (7)(7, p. 48).

As raízes pré­intelectuais da linguagem nodesenvolvimento da criança há muito que são conhecidas. Opapaguear das crianças, o seu choro e inclusivamente as suasprimeiras palavras são muito claramente estádios dodesenvolvimento da linguagem que nada têm a ver com odesenvolvimento do pensamento. Tem­se encarado duma formageneralizada estas manifestações como formas decomportamento predominantemente emocionais. Contudo, nemtodas servem apenas a função de alívio de uma tensão.Investigações recentes das primeiras formas de comportamentodas crianças e das primeiras reações das crianças à voz humana(efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo) mostraram quea função social da linguagem já é claramente evidente durante oprimeiro ano de vida, quer dizer, no estádio pré­intelectual dodesenvolvimento da linguagem de criança. Observaram­sereações bem definidas à voz humana logo no terceiro mês de vidae a primeira reação especificamente social à voz durante osegundo mês (5)(5, p. 124). Estas investigações tambémestabeleceram que as gargalhadas, os sons inarticulados, osmovimentos etc., são meios de contato social logo durante osprimeiros meses da vida das crianças.

Assim, as duas funções da linguagem que observamos nodesenvolvimento filogenético já existem e são evidentes nascrianças com menos de um ano de idade.

Mas a mais importante descoberta é o fato de emdeterminado momento por alturas dos dois anos de idade, ascurvas de desenvolvimento do pensamento e da linguagem, atéentão separadas, se tocarem e fundirem, dando início a umanova forma de comportamento. Foi Stern quem pela primeira veze da melhor forma nos deu uma descrição deste momentosoacontecimento. Ele mostrou como a vontade de dominar alinguagem se segue à primeira compreensão difusa dospropósitos desta, quando a criança “faz a maior descoberta dasua vida”, a de que “todas as coisas têm um nome” (40)(40, p.108).

Este momento crucial, quando a linguagem começa a

servir o intelecto e os pensamentos começam a oralizar­se, éindicado por dois sintomas objetivos que não deixam lugar adúvidas: (1)(1), a súbita e ativa curiosidade da criança pelaspalavras, as suas perguntas acerca de todas as coisas novas (“oque é isto?”) e, (ii) o conseqüente enriquecimento do vocabulárioque progride por saltos e muito rapidamente.

Antes do ponto de viragem, a criança reconhece (comoalguns animais) um pequeno número de palavras que, tal comono condicionamento, substituem objetos, pessoas, ações,estados, desejos. Nessa idade, a criança só conhece as palavrasque lhe foram transmitidas por outras pessoas. Agora a situaçãoaltera­se: a criança sente a necessidade das palavras e, por meiodas suas perguntas, tenta ativamente aprender os signosrelacionados com os objetos Parece ter descoberto a funçãosimbólica das palavras. A linguagem, que no estádio anterior eraafetiva­conotativa entra agora no estádio intelectual. Astrajetórias do desenvolvimento da linguagem e do pensamentoencontraram­se.

Neste momento, os problemas do pensamento e dalinguagem entrelaçam­se. Detenhamo­nos um pouco,examinemos o que acontece exatamente quando a criança faz asua “grande descoberta” e vejamos se a interpretação de Stern écorreta.

Buehler e Koffka comparam ambos esta descoberta com asinvenções dos chimpanzés Segundo Koffka, uma vez descobertopela criança, o nome entra na estrutura do objeto, tal como opau passa a fazer parte da situação de querer agarrar o fruto (20)(20, p. 243).

Examinaremos a solidez desta analogia mais tarde, quandoanalisarmos as relações estruturais e funcionais entre opensamento e a linguagem. De momento, limitar­nos­emos anotar que “a grande descoberta das crianças” só se tornapossível depois de se ter atingido um nível de desenvolvimento dopensamento e linguagem relativamente elevado. Por outraspalavras, a linguagem não pode ser “descoberta” sem opensamento.

Em resumo, devemos concluir que:

(1) No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e alinguagem têm raízes diferentes.

(2) No desenvolvimento lingüístico da criança, podemos

estabelecer com toda a certeza uma fase pré­intelectual nodesenvolvimento lingüístico da criança — e no seudesenvolvimento intelectual podemos estabelecer uma fase pré­lingüística.

3) A determinada altura estas duas trajetórias encontram­se e, em conseqüência disso, o pensamento torna­se verbal e alinguagem racional.

III

Seja qual for a forma como abordemos o controversoproblema da relação entre o pensamento e a linguagem, teremossempre que tratar com certa exaustão do discurso interior. Esteé tão importante para a nossa atividade pensante que muitospsicólogos, entre os quais Watson, chegam a identificá­lo com opensamento — que consideram ser uma fala inibida e silenciosa.Mas a psicologia ainda não sabe como se dá a transição dodiscurso aberto para o discurso interior, nem com que idadeocorre, por que processo e por que razão se realiza.

Watson diz que não sabemos em que ponto dodesenvolvimento da sua organização lingüística, as criançaspassam do discurso aberto para o murmúrio e depois para odiscurso interior, porque esse problema só foi estudado de formaacidental. As nossas investigações levam­nos a crer que Watsonpõe o problema de uma forma incorreta. Não há razões válidaspara crer que o discurso interior se desenvolve duma formamecânica qualquer, por meio de uma gradual diminuição daaudibilidade da fala (murmúrio).

É verdade que Watson menciona outra possibilidade:“talvez as três formas se desenvolvam simultaneamente” —afirma ele (54)(54, p. 322). Esta hipótese parece­nos tãoinfundada do ponto de vista genético como a seqüência: fala emvoz alta, murmúrio, discurso interior. Este “talvez” não éescorado por nenhum dado objetivo. Contra ele testemunham asprofundas dessemelhanças entre o discurso externo e o discursointerior, reconhecidas por todos os psicólogos, inclusive Watson.Não há qualquer fundamento para presumir que os doisprocessos, tão diferentes funcionalmente (adaptação social, numcaso, e adaptação pessoal, no outro) e estruturalmente (comefeito, a economia extrema, elíptica, do discurso interiortransforma a configuração do discurso até quase o tornarirreconhecível), possam ser geneticamente paralelos econvergentes. Também não nos parece plausível (para voltarmosà tese principal de Watson) que se encontrem relacionadas

mutuamente pela fala murmurada, a qual, nem pela suaestrutura nem pela sua função, pode ser considerada um estádiointermédio entre o discurso exterior e o discurso interior.Encontra­se a meio caminho apenas fenotipicamente e nãogenotipicamente.

Os nossos estudos do murmúrio nos bebês comprovamisto completamente. Descobrimos que, estruturalmente, quasenão há diferença nenhuma entre o murmurar e a fala em vozalta; funcionalmente, o murmúrio difere profundamente dodiscurso interior e não manifesta qualquer tendência a assumiras características deste último. Ao demais, não se desenvolveespontaneamente até à idade escolar, embora possa ser induzidomuito precocemente: com efeito, sob o efeito da pressão social,uma criança de três anos pode baixar a voz ou murmurar,durante curtos períodos de tempo e com grande esforço. Este é oúnico ponto que parece escorar a concepção de Watson.

Embora discordemos da tese de Watson, acreditamos queeste encontrou a abordagem metodológica correta: para resolvero problema, teremos que procurar o elo intermédio entre odiscurso aberto e o discurso interior.

Inclinamo­nos para ver esse elo no discurso egocêntrico dacriança descrito por Piaget, o qual, para lá do seu papel deacompanhamento da atividade da criança e as suas funçõesrepressiva e de alívio das tensões, facilmente assume umafunção planeadora, isto é, se transforma em pensamentopropriamente dito muito natural e facilmente.

Se a nossa hipótese se verificar correta, teremos queconcluir que a fala é interiorizada psicologicamente antes de serinteriorizada fisicamente. O discurso egocêntrico é discursointerior pelas suas funções; é discurso em vias de se interiorizar,intimamente associado com o ordenamento do comportamentoda criança, já parcialmente incompreensível para os outros, masque mantém ainda uma forma bem explícita, patente, na suaforma e que não mostra quaisquer tendências para setransformar em murmúrio ou qualquer outra forma de discursosemi­silencioso.

Devíamos também ter então resposta para o problema darazão por que o discurso se interioriza. Interioriza­se porque asua função se altera. O seu desenvolvimento deveria ter tambémtrês estádios: não os que Watson julgava, mas os seguintes:discurso externo, discurso egocêntrico e discurso interior.Passaríamos também a dispor de um método excelente para

estudar o discurso interior “ao vivo”, por assim dizer, enquantoas suas peculiaridades funcionais e estruturais estão ainda aformar­se; seria um método objetivo, pois que estaspeculiaridades surgem quando o discurso é ainda audível, isto é,acessível à observação e à mediação.

As nossas investigações demonstram que odesenvolvimento da linguagem segue o mesmo curso e obedeceàs mesmas leis que o desenvolvimento de todas as outrasoperações mentais que envolvem a utilização de signos, comosejam, a atividade de contagem e a memorização mnemônica.Verificamos que estas operações se desenvolvem geralmente emquatro estádios. O primeiro é o estádio primitivo ou natural, quecorresponde ao discurso pré­intelectual e ao pensamento pré­verbal, altura em que estas operações aparecem na sua formaoriginal, tal como se desenvolveram no estádio primitivo docomportamento.

Vem a seguir o estádio que poderíamos chamar “dapsicologia ingênua”, por analogia com aquilo que se designa por“física ingênua” — a experiência que a criança tem daspropriedades físicas do seu próprio corpo e dos objetos que acercam e a aplicação desta experiência ao uso dos instrumentos:o primeiro exercício da inteligência prática infantil quedesabrocha.

Esta fase é muito claramente definida no desenvolvimentolingüístico da criança. Manifesta­se pela utilização correta dasformas e estruturas gramaticais antes de a criança tercompreendido as operações lógicas que representam. A criançapode operar com proposições subordinadas, com palavras como,porque, se, quando e mas, muito antes de dominar realmente asrelações causais, condicionais ou temporais. Domina a sintaxeda linguagem antes de dominar a sintaxe do pensamento. Osestudos de Piaget provaram que a gramática se desenvolve antesda lógica e que a criança aprende relativamente tarde asoperações mentais que correspondem à forma verbal que jáutiliza há muito.

Com a gradual acumulação da experiência psicológicaingênua, a criança entra numa terceira fase, que se distingue porsinais externos por operações externas que são utilizadas comoauxiliares para a solução dos problemas internos. É a fase emque a criança conta pelos dedos, recorre a auxiliaresmnemônicos, etc. No desenvolvimento lingüístico caracteriza­sepelo discurso egocêntrico.

Chamamos ao quarto estádio, estádio de “crescimentointerno”. As operações externas interiorizam­se e sofrem umaprofunda transformação durante esse processo. A criançacomeça a contar de cabeça, a utilizar a “memória lógica”, querdizer, a operar com as relações intrínsecas e a utilizar signos. Nodesenvolvimento lingüístico é o último estádio do discursointerior, silencioso. Continua a haver uma interação constanteentre as operações externas e internas e cada uma das formasconverte­se incansável e incessantemente na outra e vice­versa.Pela sua forma, o discurso interior pode aproximar­se muito dodiscurso externo ou tornar­se até exatamente igual a este último,quando serve de preparação para o discurso externo — porexemplo, quando se está a pensar uma conferência que se vaiproferir. Não existe qualquer divisão nítida entre ocomportamento interno e o comportamento externo e cada umdeles influencia o outro.

Ao considerarmos a função do discurso interior nosadultos após se ter completado o desenvolvimento, temos deperguntar a nós próprios se, no seu caso, os processoslingüísticos e intelectivos têm uma relação necessária, sepodemos passar um traço de igual entre ambos. Também aqui,como no caso dos animais, a resposta é negativa.

Esquematicamente, podemos imaginar o pensamento e alinguagem como dois círculos que se intersectam Nas regiõessobrepostas, o pensamento e a linguagem coincidem, produzindoassim o que se chama pensamento verbal. O pensamento verbal,porém, não engloba de maneira nenhuma todas as formas depensamento ou todas as formas de linguagem. Há uma vastaárea de pensamento que não apresenta nenhuma relação diretacom a linguagem. O pensamento manifestado na utilização deutensílios encontra­se incluído nesta área, tal como acontececom o pensamento prático em geral. Além disso, as investigaçõeslevadas a cabo pelos psicólogos da escola de Wuerzburgdemonstraram que o pensamento pode funcionar sem quaisquerimagens verbais ou movimentos lingüísticos detectáveis porauto­observação. As experiências mais recentes mostramtambém que não há correspondência direta entre o discursointerior e a língua ou os movimentos da laringe do indivíduosujeito à observação.

Não há também quaisquer razões psicológicas para fazerdecorrer todas as formas de atividade lingüística do pensamento.Nenhum processo de pensamento estará com certeza a sermobilizado quando um indivíduo recita em silêncio um poemaaprendido de cor ou quando repete mentalmente uma, frase que

lhe foi fornecida com propósitos experimentais — apesar do quepossa pensar Watson. Por último, há a linguagem líricasuscitada pela emoção. Embora tenha todas as marcas auditivasda fala, dificilmente poderá ser classificada como atividadeintelectual no sentido próprio do termo.

Somos portanto forçados a concluir que a fusão entre opensamento e a linguagem, tanto nos adultos como nas criançasé um fenômeno limitado a uma área circunscrita. O pensamentonão verbal e a linguagem não intelectual não participam destafusão e só indiretamente são afetados pelos processos dopensamento verbal.

IV

Podemos agora resumir os resultados da nossa análise.Começamos por tentar seguir a genealogia do pensamento e dalinguagem até às suas raízes, utilizando os dados da psicologiacomparativa. Estes dados são insuficientes para detectarmos astrajetórias de desenvolvimento do pensamento e da linguagempré­humanos com um grau mínimo de certeza. A questãofundamental, a de saber­se se os antropóides possuem ou não omesmo tipo de intelecto do que o homem, é ainda controversa.Koehler responde afirmativamente, outros respondem pelanegativa. Mas seja qual for a solução que as futurasinvestigações derem a este problema, uma coisa é já clara: nomundo animal, o percurso para um intelecto de tipo humanonão é igual à trajetória para uma linguagem de tipo humano; opensamento e a linguagem não brotam da mesma raiz.

Nem aqueles que negariam a existência de um intelectonos chimpanzés podem negar que os macacos possuem algo quese aproxima do intelecto, que o tipo mais elevado de formação dehábitos neles patente é um intelecto embrionário. A utilização deutensílios prefigura o comportamento humano. Para osmarxistas, as descobertas de Koehler não constituem surpresaMarx afirmou há muito (27) que a utilização e a criação deinstrumentos de trabalho embora estejam presentes nos animaisde forma embrionária, são características específicas do processode trabalho humano A tese de que as raízes do intelecto humanose estendem ao reino animal e tem origem nele foi há muitoadmitida pelo marxismo vemo­la ser elaborada por Plekhanov(34)(34, p. 138).

Engels escreveu que os homens e os animaiscompartilham todas as formas de atividade intelectual; só o seunível de desenvolvimento difere (9): os animais são capazes de

raciocinar a um nível elementar, de analisar (o partir de uma nozé um inicio de análise) e de fazer experiências, quandoconfrontados com determinados problemas, ou quando se lhesdepara uma situação difícil. Alguns, como o papagaio, porexemplo, não só são capazes de aprender a falar, como podematé aplicar palavras com sentido, duma forma restrita: para pediralguma coisa, usará palavras pelas quais receberá umarecompensa; quando é irritado deixará escapar as mais seletasinvectivas do seu vocabulário.

Escusado será dizer que Engels não acredita os animaiscom a capacidade de pensarem ou de falarem ao nível dohomem, mas, neste momento, não precisamos de aprofundarmuito o significado exato da sua afirmação. Por agora, apenasdesejamos confirmar que não há boas razões para negar aexistência, nos animais, de uma inteligência e uma linguagemembrionárias do mesmo tipo da dos homens que, sedesenvolvem, também como nos homens, segundo trajetóriasseparadas. A capacidade de expressão oral dos animais não nosdá nenhuma indicação sobre o seu desenvolvimento mental.

Vamos agora resumir os dados pertinentes fornecidos porestudos recentes sobre as crianças. Vemos que nas criançastambém, as raízes e curso seguido pelo desenvolvimento dointelecto diferem dos da linguagem — e que, inicialmente, opensamento é não­verbal e a linguagem é não­intelectual. Sternafirma que, em determinado ponto, as duas linhas dedesenvolvimento se cruzam, tornando­se a linguagem racional eo pensamento verbal. A criança “descobre” que “cada coisa tem oseu nome e começa a perguntar como se chamam todos osobjetos.

Alguns psicólogos (8) não estão de acordo com Stern,discordando que esta primeira fase de perguntas tenhaocorrência universal e que seja necessariamente sintoma dequalquer descoberta momentosa. Koffka adota uma posiçãointermédia entre Stern e os seus opositores. Como Buehler, elerealça a analogia entre a invenção de utensílios peloschimpanzés e a descoberta pela criança da função nominativa dalinguagem mas, segundo ele, esta descoberta não é de tão vastoalcance como Stern supunha. Segundo o ponto de vista deKoffka, a palavra passa a fazer parte da estrutura do objeto nomesmo pé que todas as outras partes suas constituintes.Durante um certo período de vida da criança, a palavra para estanão é um signo, mas apenas uma das propriedades do objetoque tem de ser fornecida para que a estrutura fique completa.Como Buehler apontou, cada novo objeto apresenta uma nova

situação problemática para a criança e esta resolve o problemauniformemente nomeando o objeto. Quando lhe falta a palavrapara o novo objeto pergunta­a aos adultos (7)(7, p. 54).

Julgamos que esta concepção se encontra mais próxima daverdade Os dados existentes sobre a linguagem das crianças(escorados pelos dados antropológicos) sugerem­nos com grandeforça que durante um longo período de tempo a palavra é para acriança uma propriedade, mais do que o símbolo do objeto, que acriança apreende a estrutura­palavra­objeto mais cedo do que aestrutura simbólica interna. Escolhemos esta hipóteseintermédia entre as várias que se nos oferecem porque, tendo emconta a lei das probabilidades, achamos difícil de acreditar queuma criança entre os dezoito meses e os dois anos de idade sejacapaz de descobrir a função simbólica da linguagem. Taldescoberta surge mais tarde e não duma forma repentina, masatravés de uma série de transformações “moleculares”. Ahipótese que preferimos está em conformidade com aconfiguração geral da trajetória da dominação dos sons que nasanteriores seções descrevemos. Mesmo nas crianças em idadeescolar o uso funcional de um novo signo é precedido por umperíodo de aprendizagem durante o qual a criança vaidominando progressivamente a estrutura externa do signo. Deforma correspondente, só ao operar com as palavras, quecomeçou por conceber como uma propriedade dos objetos, acriança descobre e consolida a sua função como signo.

Deste modo, a tese de Stern da “descoberta” sofrelimitações e carece de uma reavaliação. Contudo, o seu princípiobásico permanece válido: é evidente que, sob o ponto de vistaontogenético, o pensamento e o discurso se desenvolvem aolongo de linhas separadas e que num certo ponto essas linhas seencontram. Este importante fato está hoje definitivamenteprovado, sem detrimento de clarificação, através de estudosposteriores, dos detalhes em que os psicólogos ainda estão emdesacordo: se esse encontro se dá num só ponto ou em váriospontos, como uma súbita descoberta ou após longa preparaçãoatravés do uso prático e da lenta troca funcional, e se ocorre aosdois anos de idade ou na idade escolar.

Podemos agora sumariar a nossa investigação do discursointerior. Também aqui consideramos várias hipóteses echegamos à conclusão que o discurso interior se desenvolveatravés de uma lenta acumulação de mudanças funcionais eestruturais, que se desliga do discurso externo da criançasimultaneamente com a diferenciação das funções social eegocêntrica do discurso, e finalmente que as estruturas do

discurso dominadas pela criança se transformam nas estruturasbásicas do seu pensamento.

Isto conduz­nos a um outro incontestável fato de grandeimportância: o desenvolvimento do pensamento é determinadopela linguagem, ou seja, pelos instrumentos lingüísticos dopensamento e pela experiência sociocultural da criança.Fundamentalmente, o desenvolvimento da lógica na criança,como o demonstraram os estudos de Piaget, é função direta doseu discurso socializado. O crescimento intelectual da criançadepende do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ouseja, da linguagem.

Podemos agora formular as principais conclusões a retirardas nossas análises. Se compararmos o desenvolvimentoprimitivo do discurso e do intelecto — que, como vimos, sedesenvolvem ao longo de linhas separadas quer nos animais quernas crianças de tenra idade — com o desenvolvimento dodiscurso interior e do pensamento verbal, temos de concluir queo último estádio não é uma simples continuação do primeiro. Anatureza do próprio desenvolvimento transforma­se, do biológicono sócio­histórico. O pensamento verbal não é uma formanatural de comportamento, inata, mas é determinado peloprocesso histórico­cultural e tem propriedades e leis específicasque não podem ser encontradas nas formas naturais dopensamento e do discurso. Desde que, admitamos o caráterhistórico do pensamento verbal, teremos que o considerar sujeitoa todas as premissas do materialismo histórico, que são válidaspara qualquer fenômeno histórico na sociedade humana. Sópode concluir­se que a este nível o desenvolvimento docomportamento será essencialmente governado pelas leis geraisdo desenvolvimento histórico da sociedade humana.

O problema do pensamento e linguagem estende­se,portanto, para além dos limites da ciência natural e torna­se noproblema focal da psicologia humana histórica, ou seja, dapsicologia social. Consequentemente, ele deve ser colocado deum modo diferente. Este segundo problema exposto pelo estudodo pensamento do discurso será objeto de investigação separada.

5. Gênese e estudoexperimental da formação dos

conceitos

I

Até muito recentemente, o estudioso da gênese dosconceitos encontrava­se inferiorizado pela carência de ummétodo experimental que lhe permitisse observar a dinâmicainterna do processo.

Os métodos tradicionais de estudo dos conceitossubdividem­se em dois grupos. O chamado método da definição,com as suas variantes, é típico do primeiro grupo de métodos. Éusado para investigar os conceitos já formados na criançaatravés da definição verbal dos seus conteúdos. No entanto, estemétodo tem dois importantes inconvenientes que o tornaminadequado para investigar o processo em profundidade. Emprimeiro lugar, é um método que se exerce sobre o produtoacabado da gênese dos conceitos, descurando a dinâmica e odesenvolvimento do próprio processo. Em vez de registar opensamento da criança, limita­se freqüentemente a suscitar umareprodução verbal do conhecimento verbal, de definiçõesacabadas fornecidas a partir do exterior. Pode ser um teste doconhecimento e da experiência da criança ou do seudesenvolvimento lingüístico, mais do que estudo de um processointelectual no verdadeiro sentido da palavra. Em segundo lugar,este método, ao centrar­se na palavra, não consegue entrar emlinha de conta com a percepção e a elaboração do materialsensorial que dão origem aos conceitos. O material sensorial e apalavra são materiais indispensáveis na formação do conceito Oestudo separado da palavra coloca o processo num planopuramente verbal que não é característico do pensamento dacriança. A relação entre o conceito e a realidade permanece porexplicar; o significado de uma determinada palavra é abordadaatravés de outra palavra e esta operação, por muito que nospermita descobrir, nunca nos dará um quadro dos conceitos dacriança mas sim um registo das relações existentes no seucérebro entre famílias de palavras previamente formadas.

O segundo grupo engloba os métodos utilizados no estudoda abstração. Estes métodos incidem sobre os processospsíquicos que conduzem à formação dos conceitos. Exige­se dacriança que descubra um certo número de traços comuns numasérie de impressões discretas, abstraindo esses traços comunsde todos os outros traços com que se encontram fundidos napercepção. Os métodos deste tipo descuram o papeldesempenhado pelo símbolo (a palavra) na gênese do conceito:um quadro parcial substitui a estrutura complexa do processo

total por um processo parcial.

Assim, ambos os métodos parciais tradicionais separam apalavra do material da percepção e operam com uma, quer com ooutro, tomados em separado. A criação de um novo método quepermite a combinação de ambas as partes foi um grande passoem frente. O novo método introduz no quadro experimentalpalavras sem sentido que a princípio não significam nada para acriança sujeita à experiência. Introduz também conceitosartificiais relacionando cada palavra sem sentido com umacombinação particular dos atributos dos objetos para a qual nãoexista nenhum conceito nem palavra. Por exemplo, nasexperiências de Ach (1), a palavra gatsun vai a pouco e poucosignificando “grande e pesado”; a palavra fal, pequeno e leve;Este método pode ser utilizado tanto com crianças como comadultos, visto que para resolver o problema o indivíduoobservado não precisa ter já qualquer experiência ouconhecimento prévio. O método também entra em linha de contacom o fato de um conceito não ser uma formação isolada,ossificada, imutável mas parte ativa de um processo intelectual,constantemente mobilizada ao serviço da comunicação, doconhecimento e da resolução de problemas. O novo métodocentra a investigação sobre as condições funcionais da gênesedos conceitos.

Rimat levou a cabo um estudo cuidadosamente preparadocom adolescentes, utilizando uma variante deste método. Aconclusão principal a que chegou foi a de que a verdadeiragênese dos conceitos excede a capacidade dos pré­adolescentes esó começa com o dealbar da puberdade. Escreve este autor:

Estabelecemos terminantemente que só ao findar o décimosegundo ano da vida das crianças se manifesta um acentuado esúbito aumento da capacidade de formar sem ajuda, conceitosobjetivos generalizados... O pensamento através dos conceitos,emancipado da percepção, traz à criança exigências que excedemas suas possibilidades mentais para as idades inferiores a dozeanos (35)(35, p. 112)

As investigações de Ach e Rimat provam a falsidade daconcepção segundo a qual a gênese dos conceitos se baseia nasconexões associativas. Ach demonstrou que a existência deassociações entre os símbolos verbais e os objetos, por maisnumerosas que sejam, não é, em princípio, por si própriasuficiente para a formação dos conceitos. As suas descobertasexperimentais não confirmam a velha idéia que pretende que umconceito se desenvolve pelo máximo fortalecimento das conexões

associativas envolvendo os atributos comuns a todos — umgrupo de objetos e o enfraquecimento das associações —estabelecidas entre os atributos em que esses mesmos objetosdiferem.

As experiências de Ach demonstraram que a gênese dosconceitos é um processo criativo e não mecânico e passivo; queum conceito surge e toma forma no decurso de uma complexaoperação orientada para a resolução do mesmo problema, e quea simples presença das condições externas que favorecem umarelacionação mecânica entre a palavra e o objeto não basta paraproduzir um conceito. Segundo este ponto de vista, o fatordecisivo para a gênese dos conceitos é a chamada tendênciadeterminante

Antes de Ach, a psicologia postulava a existência de duastendências básicas que regeriam o fluxo das nossas idéias: areprodução através das associações e a persistência. A primeiratendência, traz­nos à memória as imagens que em experiênciaspassadas se encontravam ligadas à imagem que, emdeterminada altura, nos ocupa o espírito. A segunda é atendência de cada imagem para regressar e voltar a penetrar nofluxo de imagens. Nas suas primeiras investigações, Achdemonstrou que estas duas tendências não conseguiam explicaros atos de pensamento que possuem uma finalidadeconscientemente orientada. O estudo dos conceitos por parte deAch mostrou que nenhum conceito novo se formava sem o efeitoregulador da tendência determinante gerada pela tarefaexperimental.

Segundo o esquema de Ach, a gênese dos conceitos nãosegue o modelo de uma cadeia associativa em que um elo solicitao segundo: é um processo orientado para um objetivo, uma sériede operações que servem como passos intermédios em direção aum objetivo final. A memorização das palavras e a suarelacionação com determinados objetos, por si só, não conduz àformação do conceito: para que o processo comece terá de surgirum problema que não possa ser resolvido doutra forma, a nãoser pela formação de novos conceitos.

Esta caracterização do processo de formação de novosconceitos é no entanto insuficiente. A criança pode compreendere empreender a tarefa experimental muito antes de atingir osdoze anos de idade, e no entanto ser incapaz de formar novosconceitos até ter atingido essa idade. O estudo do próprio Achdemonstrou que as crianças não diferem dos adolescentes e dosadultos pela forma como compreendem os objetivos, mas pela

forma como o seu espírito opera para atingir esses objetivos. Opormenorizado estudo experimental de D. Usnadze sobre agênese dos conceitos em idade pré­escolar (44)(44, 45,) tambémdemonstrou que, nessa idade, as crianças abordam os problemasexatamente da mesma maneira que um adulto quando operacom conceitos, mas que o caminho que seguem para os resolveré inteiramente diferente. Só podemos concluir que os fatoresresponsáveis pela diferença essencial entre o pensamentoconceptual do adulto e as formas de pensamento característicasda criança de tenra idade não são nem a tendênciadeterminante, nem o objetivo prosseguido, mas outros fatoresque os investigadores não inquiriram.

Usnadze assinala que, embora os conceitos completamenteformados só surjam relativamente tarde, as crianças começam autilizar palavras socorrendo­se delas para estabelecerem umterreno de compreensão mútua com os adultos e entre si Combase nisto, conclui que as palavras se apoderam da função dosconceitos e podem servir como meios de comunicação, muitoantes de atingirem o nível dos conceitos característico dopensamento completamente desenvolvido.

Vêmo­nos confrontados, portanto, com o seguinte estadode coisas: uma criança é capaz de apreender um problema evisualizar o objetivo que tal problema levanta, num estádio muitoprecoce do seu desenvolvimento. Como as tarefas levantadaspela compreensão e a comunicação são essencialmentesemelhantes para a criança e o adulto, a criança desenvolveequivalentes funcionais dos conceitos numa idade extremamenteprecoce. mas as formas de pensamento que utiliza ao defrontar­se com estas tarefas diferem profundamente das que o adultoemprega pela sua composição, pela sua estrutura e pelo seumodo de operação. O principal problema suscitado pelo processode formação do conceito — ou por qualquer atividade finalista —é o problema dos meios pelos quais tal operação é levada a cabo,por exemplo, não se consegue explicar cabalmente o trabalho, sese disser que este é suscitado pelas necessidades humanas.Temos que entrar também em linha de conta com osinstrumentos utilizados e a mobilização dos meios adequados enecessários para o realizar. Para explicar as formas maiselevadas do comportamento humano, temos que pôr a nu osmeios através dos quais o homem aprende a organizar e dirigir oseu comportamento. Todas as funções psíquicas de grau maiselevado são processos mediados e os signos são os meiosfundamentais utilizados para os dominar e orientar. O signomediador é incorporado na sua estrutura como parte

indispensável a bem dizer fulcral do processo total. Na gênese doconceito, esse signo é a palavra, que a princípio desempenha opapel de meio de formação de um conceito, transformando­semais tarde em símbolo. Nas experiências de Ach não se dá a estafunção da palavra a atenção suficiente. O seu estudo, emboratenha o mérito de desacreditar, de uma vez por todas, o ponto devista mecanicista sobre a formação dos conceitos, não pôs a nu averdadeira natureza do processo — nem geneticamente, nemfuncionalmente, nem estruturalmente. Enveredou por umadireção errada com a sua interpretação puramente teleológica,que eqüivale a afirmar que é o próprio objetivo que cria aatividade apropriada através da tendência determinante — isto é,de que o problema traz consigo a sua resolução.

II

Para estudar o processo de gênese do conceito nas suasdiferentes fases de desenvolvimento, utilizamos o métodoelaborado por um dos nossos colaboradores, L. S. Sakharov (36).Poderíamos descrevê­lo como o método do duplo estímulo:apresentam­se ao indivíduo observado duas séries de estímulos,uma das quais como objeto da sua atividade e a outra comosignos que servem para organizar esta última. (2)

Sob muitos e importantes aspectos, este modo de procederinverte as experiências de Ach sobre a formação dos conceitos.Ach começa por dar ao indivíduo observado um período deaprendizagem ou de prática; pode manipular os objetos e ler aspalavras sem sentido neles escritas antes de se lhe dizer qual atarefa que se lhe pede. Nas nossas experiências, põe­se oproblema ao indivíduo sujeito a observação logo de início; oproblema não se altera durante toda a experiência mas as chavespara a sua resolução são introduzidas pouco a pouco, de cadavez que a criança volta um bloco. Decidimo­nos por estaseqüência porque julgamos que, para que o processo sedesencadeie, é necessário pôr a criança perante o problema. Aintrodução gradual dos meios necessários à resolução doproblema permite­nos estudar o processo total da formação dosconceitos em todas as suas fases dinâmicas. A formação doconceito é seguida pela sua transferência para outros objetos; oindivíduo observado e induzido a utilizar os novos termos parafalar dos objetos diferentes dos blocos experimentais e a definir oseu significado duma forma generalizada.

III

Na série de investigações sobre o processo de gênese dos

conceitos iniciados no nosso laboratório por Sakharov ecompletados por nós e pelos nossos colaboradores Kotelova ePachlovskaia (48)(49)(48, 49, p. 70) estudaram­se mais de cemindivíduos — crianças, adolescentes e adultos, incluindo algunscom perturbações das atividades lingüísticas e intelectuais.

Os principais resultados do nosso estudo podem serresumidos como se segue: o desenvolvimento dos processos queacabam por gerar a formação dos conceitos começam durante asfases mais precoces da infância, mas as funções intelectuais que,em determinadas combinações formam a base psicológica daformação dos conceitos amadurecem, tomam forma edesenvolvem­se apenas durante a puberdade. Antes dessa idadeencontramos certas formações intelectuais que desempenhamfunções semelhantes aos dos conceitos genuínos que mais tardeaparecem. Relativamente à sua composição, estrutura efuncionamento estes equivalentes funcionais dos conceitos têmuma relação com os verdadeiros conceitos que é semelhante àrelação entre o embrião e o organismo completamentedesenvolvido. Identificar ambos seria ignorar o lento processo dedesenvolvimento entre a fase inicial e a fase final.

A formação dos conceitos é resultado de uma complexaatividade em que todas as funções intelectuais fundamentaisparticipam. No entanto, este processo não pode ser reduzido àassociação, à tendência, à imagética, à inferência ou àstendências determinantes. Todas estas funções sãoindispensáveis, mas não são suficientes se não se empregar osigno ou a palavra, como meios pelos quais dirigimos as nossasoperações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamospara a solução do problema com que nos defrontamos.

A presença de um problema que exige a formação deconceitos não pode por si só ser considerada como causa doprocesso, embora as tarefas que a sociedade coloca aos jovensquando estes entram no mundo cultural, profissional e cívico dosadultos sejam um importante fator para a emergência dopensamento conceptual. Se o meio ambiente não coloca osadolescentes perante tais tarefas, se não lhes fizer novasexigências e não estimular o seu intelecto, obrigando­os adefrontarem­se com uma seqüência de novos objetivos, o seupensamento não conseguirá atingir os estádios dedesenvolvimento mais elevados, ou atingi­lo­á apenas comgrande atraso.

A tarefa cultura, por si só, porém, não explicas omecanismo de desenvolvimento que tem por resultado a

formação do conceito. O investigador deve intentar compreenderas relações intrínsecas entre as tarefas externas e a dinâmica dodesenvolvimento e considerar a gênese dos conceitos comofunção do crescimento cultural e social global da criança, quenão afeta apenas o conteúdo mas também o seu modo de pensarA nova utilização significativa, o seu emprego como meio para aformação dos conceitos é a causa psicológica imediata datransformação radical no processo intelectual que ocorre nolimiar da adolescência.

Nesta idade não aparece nenhuma função elementar novaque seja essencialmente diferente das que já existem: todas asfunções existentes passam a ser incorporadas numa novaestrutura, formam uma nova síntese, passam a fazer parte deum novo todo complexo; as leis que regem este todo determinamtambém o destino de cada sua parcela individual. O recurso àspalavras para aprender a orientar os processos mentais pessoaise parte integrante do processo de formação dos conceitos. Acapacidade para regular as nossas ações pessoais utilizandomeios auxiliares só atinge o seu completo desenvolvimento naadolescência.

IV

Da nossa investigação resultou que a acessão à formaçãodos conceitos se opera em três fases distintas, cada uma dasquais se subdivide em vários estádios. Nesta seção e nas seis quese seguem, descreveremos estas fases e as suas subdivisões àmedida que aparecem quando as estudamos pelo método do“duplo estímulo”.

Os bebês dão o primeiro passo para a formação dosconceitos quando congregam um certo número de objetos numacervo desorganizado ou “monte” para resolverem um problemaque nós adultos resolveríamos geralmente formando um novoconceito. O “monte”, constituído por um conjunto de objetosdessemelhantes reunidos sem qualquer base. revela umalargamento difuso não orientado, do significado do signo(palavra artificial) a objetos aparentemente não relacionados unscom os outros, ligados entre si ocasionalmente na percepção dacriança.

Neste estádio, o significado das palavras para a criançanão denota mais do que uma conglomeração sincrética e vagados objetos individuais que duma forma ou doutra coalesceramnuma imagem no seu espírito. Dada a sua origem sincrética,essa imagem é altamente instável.

Na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende afundir os elementos mais diversos numa só imagem nãoarticuladas sob a influência mais intensa de uma impressãoocasional. Claparède deu o nome de sincretismo a estaconhecida característica do pensamento infantil; Blonskichamou­lhe “coerência incoerente” do pensamento infantil.Descrevemos noutra ocasião o fenômeno como resultado de umatendência para compensar a pobreza das relações objetivas bemapreendidas por meio de uma super­abundância derelacionações subjetivas e para confundir estas reaçõessubjetivas com as ligações objetivas entre as coisas. Estasrelações sincréticas e os “montes” de objetos: congregados emtorno do significado de uma palavra, refletem também os laçosobjetivos, na medida em que estes últimos coincidirem com asrelações existentes entre as percepções ou impressões dacriança. Por conseguinte, muitas palavras têm parcialmente omesmo significado para o adulto e a criança, especialmente aspalavras que se referem a objetos concretos que fazem parte domeio ambiente habitual da criança. Os significados que osadultos e as crianças atribuem a determinada palavra como que“coincidem” muitas vezes no mesmo objeto concreto e isto bastapara assegurar a compreensão mútua.

A primeira fase da formação dos conceitos que acabamosde descrever subsume três estádios distintos. Foi­nos possívelobservá­los pormenorizadamente no quadro do estudoexperimental.

O primeiro estádio na formação dos conjuntos sincréticosque representam para a criança o significado de determinadapalavra artificial é a manifestação do estádio das aproximaçõessucessivas (de “tentativas e erros”) no desenvolvimento dopensamento. O grupo é criado ao acaso e a adjunção de cadaobjeto não é mais do que uma simples tentativa ou hipótese, oobjeto é imediatamente substituído por outro, mal se verifica quea hipótese é errada, isto é, quando o experimentador volta oobjeto e mostra que este tem um nome diferente,

Durante o estádio que se segue, a composição do grupo égrandemente determinada pela posição espacial dos objetosexperimentados, isto é, por uma organização puramentesincrética do campo visual da criança. A imagem ou gruposincréticos formam­se como resultado da contiguidade no espaçoou no tempo dos elementos isolados ou pelo fato de a percepçãoimediata da criança os levar a uma relação mais complexa.

Durante o terceiro estádio da primeira fase da formação

dos conceitos a imagem sincrética repousa numa base maiscomplexa: é composta de elementos retirados de diferentesgrupos ou “montes” já anteriormente formados pela criança daforma que acima se descreveu. Estes elementos sujeitos a umanova combinação não têm qualquer relação intrínseca entre si,de forma que a nova formação possui a mesma “coerênciaincoerente” que os primeiros conjuntos. A única diferença resideno fato de que ao tentar dar significado a um novo nome acriança já consegue seguir uma operação a dois tempos, masesta operação mais elaborada permanece sincrética e não produzuma ordem mais elevada do que a simples reunião de “montes”.

V

A segunda fase importante na via da gênese do conceitoengloba muitas variações de um tipo de pensamento quedesignaremos por “pensamento por complexos”. Num complexo,os objetos individuais isolados encontram­se reunidos no cérebroda criança não só pelas suas impressões subjetivas, mastambém por relações realmente existentes entre esses objetos.Isto é um novo passo em frente, uma progressão para um nívelmuito superior.

Quando atinge esse nível a criança já superouparcialmente o seu egocentrismo. Já não confunde as relaçõesentre as suas impressões com relações entre coisas — passodecisivo para abandonar o sincretismo e se aproximar dopensamento objetivo. O pensamento por meio de complexos já éum pensamento coerente e objetivo, embora não reflita asrelações objetivas da mesma forma que o pensamentoconceptual.

No pensamento dos adultos persistem certos resíduos dopensamento por meio de complexos. Os nomes de família sãotalvez o melhor exemplo disto. Todo o nome de família, (“Petrov”,por exemplo) subsume o indivíduo duma maneira que seassemelha estreitamente ao modo de funcionamento doscomplexos infantis. A criança que atingiu esse estádio dedesenvolvimento como que pensa em termos de nomes defamília; quando começa a organizar o universo dos objetosisolados, fá­lo agrupando­os em famílias separadas, mutuamenterelacionadas.

Num complexo, as ligações entre os seus componentes sãomais concretas e factuais do que abstratas e lógicas; do mesmomodo, também não classificamos uma pessoa na família Petrovpor haver qualquer relação lógica entre essa pessoa e os outros

membros portadores do nome. São os fatos que ditam a resposta.

As ligações factuais que subjazem aos complexos sãodescobertas através da experiência. Por conseguinte, umcomplexo é, acima de tudo, e principalmente, um agrupamentoconcreto de objetos ligados por nexos factuais. Como umcomplexo não é formado no plano do pensamento lógico abstrato,os nexos que o geram, bem assim como os nexos que ajuda acriar, carecem de unidade lógica; podem ser de muitos ediferentes tipos. Todo e qualquer nexo existente pode levar àcriação de um complexo. É essa a principal diferença entre umcomplexo e um conceito. Enquanto os conceitos agrupam osobjetos em função de um atributo, as ligações que unem oselementos de um complexo com o todo e entre si podem ser tãodiversas quanto os contatos e as relações existentes na realidadeentre os elementos.

Na nossa investigação observamos cinco tiposfundamentais de complexos que se sucediam uns aos outrosdurante este estádio de desenvolvimento.

Chamamos ao primeiro tipo de complexo o tipo associativo.Pode basear­se em todo e qualquer nexo que a criança note entreos objetos da amostra e os objetos de alguns outros blocos. Nanossa experiência o objeto­amostra, o que fora dado em primeirolugar à criança com o nome à vista, forma o núcleo do grupo aser construído. Na construção de um complexo associativo, acriança pode acrescentar um bloco ao objeto de partida por ter amesma cor que este, juntando a seguir outro porque ésemelhante ao núcleo pela sua forma e dimensão ou porqualquer outro atributo que lhe chame a atenção. Qualquerconexão entre o objeto do núcleo e outro qualquer objeto bastapara que a criança inclua esse objeto no grupo e o designe pelo“nome de família”. A conexão entre o núcleo e o outro objeto nãotem que ser um traço comum, como por exemplo, a mesma corou forma; uma semelhança ou um contraste, ou umaproximidade no espaço podem também servir para estabelecer aligação.

Para a criança dessa idade a palavra deixa de ser o nomepróprio do objeto singular; torna­se o nome de família de umgrupo de objetos relacionados entre si por muitas e variadasformas, tantas e tão variadas como as relações entre as famíliashumanas.

VI

O pensamento por complexos do segundo tipo consiste emcombinar os objetos ou as impressões concretas que estesdeixam no espírito da criança em grupos que se assemelhammuito estreitamente a coleções. Os objetos são agrupados combase em qualquer traço por que defiram, complementando­se,assim, mutuamente.

Nas nossas experiências, a criança tomava objetos quediferiam da amostra pela cor, pela forma ou o tamanho, ou poroutra qualquer característica. Não pegava nelas ao acaso;escolhia­os porque contrastavam com o atributo da amostra quetomara como base do agrupamento e complementava esseatributo. O resultado disto era uma coleção das cores e formaspresentes no material da experiência, por exemplo, um grupo deblocos de diferentes cores.

O que guia a criança na construção da coleção era aassociação por contraste e não a associação por semelhança. Noentanto esta forma de pensar combinava­se por vezes com aforma associativa propriamente dita, atrás descrita, produzindouma coleção baseada em princípios mistos. A criança nãoconsegue manter­se fiel durante toda a experiência ao princípioque originalmente aceitara para base da coleção. Insensivelmentepassa a considerar uma característica diferente, de forma que ogrupo que daqui resulta se torna uma coleção mista, de cores eturmas, por exemplo.

Este longo e persistente estádio de desenvolvimento dopensamento da criança radica na sua experiência, na qualverifica que coleções de coisas complementares formam por vezesum conjunto ou um todo. A experiência ensina à criança certasformas de agrupamento funcional: a chávena, o pires e a colher;um talher constituído por um garfo, uma faca, uma colher e umprato; o conjunto de roupas que veste. Tudo isto são modelos deconjuntos complexos naturais. Até os adultos, quando falam dospratos ou das roupas, habitualmente estão a pensar emconjuntos de objetos concretos mais do que em conceitosgeneralizados.

Recapitulando, a imagem sincrética que leva à formação de“montes” baseia­se em nexos vagos e subjetivos; o complexoassociativo fundamenta­se nas semelhanças existentes ou outrasligações necessárias entre as coisas; o conjunto complexo,baseia­se nas relações entre os objetos observadas através daexperiência prática. Poderíamos dizer que o conjunto baseadonos complexos é um agrupamento de objetos baseado na suaparticipação na mesma operação prática — da sua cooperação

funcional.

VII

Após o estádio de pensamento que opera por complexos,há que colocar necessariamente o complexo em cadeia — umaadjunção dinâmica e seqüencial de ligações isoladas numaúnica, sendo o significado transmitido de um elo para o outro.Por exemplo, se a amostra experimental é um triângulo amarelo,a criança poderia por exemplo, pegar em alguns blocostriangulares até a sua atenção ser atraída por, digamos, pela corazul do bloco que a determinada altura acabara de acrescentarao conjunto; passaria a selecionar blocos azuis sem atender àforma — angulosos, circulares, semicirculares. Isto, por seuturno, basta para voltar a alterar o critério; esquecendo­se dacor, a criança passa a escolher blocos redondos. O atributodecisivo varia constantemente durante todo o processo. O tipo denexos ou a forma como cada elo da cadeia se articula com o queo precede e o que se lhe segue não apresentam coerêncianenhuma. A amostra inicial não tem importância fulcral. Cadaelo, uma vez incluído num complexo em cadeia, é tão importantecomo o primeiro e pode tornar­se um ímã para uma série deoutros objetos.

A formação de cadeias demonstra flagrantemente anatureza factual concreta e perceptiva do pensamento porcomplexos. Um objeto que entrou num complexo devido a umdos seus atributos, não entra nele como portador desse atributo,mas como elemento isolado com todos os seus atributos. Acriança não abstrai o traço isolado do todo restante, nem lheconfere um papel especial como acontece com os conceitos. Noscomplexos a organização hierárquica está ausente: todos osatributos são funcionalmente equivalentes. A amostra pode sercompletamente esquecida quando se forma uma ligação entredois objetos diferentes. Estes objetos podem não ter nada emcomum com alguns dos outros elementos e, no entanto, fazeremparte da mesma cadeia por força de compartilharem um atributocom outro dos elementos.

Por conseguinte, o complexo em cadeia pode serconsiderado como a forma mais pura do pensamento por meiodos complexos. Ao contrário do complexo associativo, cujoselementos, no fim de contas, se encontram interligados por meiode um elemento — o núcleo do complexo — o complexo emcadeia não tem núcleo, há relações entre elementos isolados,mas nada mais.

Um complexo não se eleva acima dos seus elementos comoacontece com o conceito; funde­se com os objetos concretos queo constituem. Esta fusão do geral com o particular, entre ocomplexo e os seus elementos, esta amálgama psíquica, comoWerner lhe chamava, é a característica distintiva de todo opensamento por complexos — e do complexo em cadeia, muitoem particular.

VIII

Como o complexo em cadeia é factualmente inseparável dogrupo de objetos concretos que o formam, adquire amiúde umaqualidade vaga e flutuante O tipo e a natureza das ligaçõespodem mudar de elo para elo imperceptivelmente quase. Muitasvezes, uma semelhança muito remota basta para criar umaligação entre dois elos da cadeia. Por vezes os atributos sãoconsiderados semelhantes, não devido a uma semelhançagenuína mas devido a uma vaga impressão de que têm algumacoisa em comum. Isto leva ao quarto tipo de complexo observadonas nossas experiências. Poderíamos designá­lo por complexodifuso.

O complexo difuso e marcado pela fluidez do próprioatributo que une os seus elementos individuais. Formam­segrupos de objetos ou imagens perceptualmente concretos pormeio de ligações difusas ou indeterminadas. Por exemplo, umadas crianças das nossas experiências escolheriaindiferentemente para associar a um triângulo, trapézios outriângulos, pois aqueles lhe faziam lembrar triângulos com osvértices cortados. Os trapézios conduzi­la­iam aos quadrados, osquadrados aos hexágonos, os hexágonos aos semicírculos e estespor fim aos círculos. A cor, como base para a seleção, éigualmente flutuante e variável. Os objetos amarelos podem serseguidos por objetos verdes; a seguir o verde pode mudar paraazul e o azul para o preto.

Os complexos resultantes deste tipo de pensamento sãotão indefinidos que podem não ter limites. Tal qual uma tribobíblica que aspira a multiplicar­se até ser mais numerosa do queas estrelas do céu ou as areias do mar, também um complexodifuso no espírito de uma criança é uma espécie de família quetem poderes de expansão ilimitados por adjunção sucessiva demais e mais membros ao grupo original.

As generalizações da criança nas áreas não sensoriais enão práticas do seu pensamento que não podem ser facilmenteverificáveis através da percepção ou da ação são os equivalentes

na vida real dos complexos difusos observados nas experiências.É bem sabido que a criança é capaz de transiçõessurpreendentes, de espantosas generalizações e associações,quando o seu pensamento se aventura para lá das fronteiras dopequeno mundo palpável da sua experiência. Fora desse mundo,a criança constrói freqüentemente surpreendentes complexosilimitados pela universalidade das ligações que abarcam.

Estes complexos ilimitados, porém, são construídossegundo os mesmos princípios dos complexos concretoscircunscritos. Em ambos os tipos de complexos, a criançamantém­se dentro do limite das ligações concretas entre ascoisas, mas, na medida em que o primeiro tipo de complexoscompreende objetos que se encontram fora da esfera do seuconhecimento prático, estas ligações baseiam­se naturalmenteem atributos difusos irreais e instáveis.

IX

Para completar o quadro do pensamento por meio decomplexos. temos que descrever um outro tipo de complexos —que como que constitui a ponte entre os complexos e o estádiofinal e superior do desenvolvimento da gênese dos conceitos.

Chamamos pseudo­conceitos a este tipo de complexos,porque a generalização formada no cérebro, emborafenotipicamente se assemelhe aos conceitos dos adultos épsicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito;na sua essência é ainda um complexo.

Na montagem experimental, uma criança produz umpseudo­conceito sempre que cerca uma amostra com objetos quepoderiam também ser congregados com base num conceitoabstrato Por exemplo, quando a amostra é constituída por umtriângulo amarelo e a criança pega em todos os triângulos domaterial experimental, poderia estar a ser orientada pela idéiageral ou conceito de triângulo. No entanto, a análiseexperimental mostra que na realidade a criança é orientada pelasemelhança concreta visível e se limita a formar um complexoassociativo confinado a um certo numero de ligações, um certotipo de conexões sensoras. Embora os resultados sejamidênticos, o processo pelo qual são atingidos não é de maneiranenhuma o mesmo que no pensamento conceptual (iii)

Temos de deter­nos a observar este tipo de complexos comalgum pormenor. Ele desempenha um papel predominante nopensamento da criança na vida real e é importante como elo de

transição entre o pensamento por complexos e a verdadeiraformação de conceitos.

X

Os pseudo­conceitos predominam sobre todos os outroscomplexos no pensamento da criança em idade pré­escolar, pelasimples razão de que, na vida real, os complexos quecorrespondem ao significado das palavras não sãoespontaneamente desenvolvidos pela criança: a trajetória seguidapor um complexo no seu desenvolvimento encontra­se pré­determinada pelo significado que determinada palavra já possuina linguagem dos adultos.

Nas nossas experiências, a criança, liberta da influênciadiretriz das palavras familiares, era capaz de desenvolversignificados de palavras e de formar complexos de acordo com assuas preferências pessoais. Só através da experimentaçãopoderemos avaliar o tipo e a latitude desta atividade espontâneade domínio da linguagem dos adultos. A atividade pessoal dacriança não se encontra de maneira nenhuma esterilizada,embora se encontre geralmente oculta da vista e canalizada paravias complexas, por influência da linguagem dos adultos.

A linguagem do meio ambiente, como os seus significadosestáveis, permanentes, aponta o caminho que a generalizaçãoinfantil seguirá. No entanto, constrangido como se encontra, opensamento da criança prossegue ao longo da via pré­determinada, segundo a forma peculiar ao seu nível dedesenvolvimento intelectual. O adulto não pode transmitir àcriança o seu modo de pensar. Apenas lhe fornece o significadojá acabado de uma palavra, em torno do qual a criança formaum complexo — com todas as peculiaridades estruturaisfuncionais e genéticas do pensamento por meio de complexos,mesmo quando o produto do seu pensamento é na realidadeidêntico, pelo seu conteúdo, a uma generalização que poderia tersido obtida por meio do pensamento conceptual. A semelhançaexterna entre o pseudo­conceito e o conceito real, que tornamuito difícil pôr a nu este tipo de complexos é um dos maisimportantes obstáculos para a análise genética do pensamento.

A equivalência funcional entre o complexo e o conceito, acoincidência que existe na prática entre o significado de muitaspalavras para o adulto e a criança de três anos, a possibilidadede compreensão mútua e a aparente similitude dos seusprocessos intelectivos levou a presumir­se erradamente quetodas as formas de pensamento e de atividade intelectual dos

adultos já se encontram presentes em embrião no pensamentodas crianças e que na puberdade não se dá nenhumatransformação radical. É fácil compreender a origem destaconcepção errada. A criança aprende muito precocemente umagrande quantidade de palavras que significam a mesma coisapara ela e para o adulto. A compreensão mútua entre o adulto ea criança cria a ilusão de que o ponto final do desenvolvimentodo significado das palavras coincide com o seu ponto de chegada,de que o pensamento é fornecido já acabado à criança desdeinício e de que não se dá nenhum desenvolvimento.

A aquisição pela criança da linguagem dos adultos explicade fato a consonância entre os complexos da primeira e osconceitos da segunda — por outras palavras, a emergência deconceitos complexos ou pseudo­conceitos. As nossasexperiências, em que o pensamento das crianças não éentaramelado pelo significado das palavras demonstra que, senão existissem os pseudo­conceitos, os complexos da criançaseguiriam uma evolução diferente dos conceitos dos adultos e acomunicação verbal entre as crianças e os adultos seriaimpossível.

O pseudo­conceito serve como elo de ligação entre opensamento por complexos e o pensamento por conceitos. É dualpor natureza, pois um complexo já traz em si a semente emgerminação de um conceito. O intercâmbio verbal com os adultostorna­se assim um poderoso fator de desenvolvimento dosconceitos infantis. A transição entre o pensamento porcomplexos e o pensamento por conceitos passa despercebida àcriança, porque os seus pseudo­conceitos já coincidem no seuconteúdo com os conceitos dos adultos.

Assim, a criança começa a operar com conceitos, a praticaro pensamento conceptual antes de se aperceber ter plenaconsciência da natureza destas operações. Esta situaçãogenética muito peculiar, não se limita ao processo de acessão aosconceitos; é a regra mais do que a exceção no desenvolvimentointelectual das crianças.

XI

Vimos já com clareza que só a análise experimental nospode dar os vários estádios e formas do pensamento porcomplexos Esta análise permite­nos pôr a nu, duma formaesquemática, a verdadeira essência do processo genético deformação dos conceitos e dá­nos assim a chave paracompreender o processo tal como se desenrola na vida real. Mas

um processo de formação dos conceitos experimentalmenteinduzidos nunca refletem perfeitamente o desenvolvimentogenético exatamente como ocorre na vida real. As formasfundamentais do pensamento concreto que enumeramosaparecem na realidade em estados mistos e a análise morfológicaaté agora exposta terá que ser seguida por uma análise funcionale genética. Devemos tentar correlacionar as formas depensamento complexo descobertas na experiência com as formasde pensamento que encontramos no desenvolvimento real dacriança e verificar as duas séries de observações uma com aoutra.

A partir das nossas experiências concluímos que, noestádio do pensamento complexo, os significados das palavras talcomo as crianças os percebem referem­se aos mesmos objetosque o adulto tem no espírito, o que assegura a compreensãoentre a criança e o adulto, mas que a criança pensa a mesmacoisa de maneira diferente, por meio de operações mentaisdiferentes. Tentaremos verificar esta proposição comparando asnossas observações com os dados sobre as peculiaridades dopensamento infantil e o pensamento primitivo em geral coligidospela ciência psicológica.

Se observarmos que grupos de objetos a criança relacionaentre si ao transferir o significado das primeiras palavras e comoprocede, descobrimos uma mistura das duas formas a que nasnossas experiências chamamos complexo associativo e imagemsincrética.

Tomemos de Idelberger um exemplo, que é citado porWerner (55)(55, p.206). No 251o. dia de vida, uma criançaemprega a palavra au­au a uma figura de porcelana chinesa querepresenta uma rapariga e com que a criança gosta de brincarNo 307o. dia, chama au­au a um cão que ladra no pátio, aosretratos dos avós, a um cão de brinquedo e a um relógio. No331o. dia aplica o mesmo nome a um pedaço de pele com umacabeça de animal notando particularmente os olhos de vidro e aoutra pele sem cabeça. No 334o.aplica­o a uma boneca deborracha que chia quando é comprimida e no 396o. dia aplica­oaos botões de punho do pai. No 443o. dia profere a mesmapalavra mal vê uns botões de pérola dum vestido e umtermômetro de banho.

Werner analisou este exemplo e concluiu que se podiacatalogar da seguinte forma todas as coisas a que a criançachamava au­au: em primeiro lugar, os cães e os cães debrinquedo e pequenos objetos oblongos que se assemelhassem à

boneca de porcelana (por exemplo, a boneca de borracha e otermômetro); em segundo lugar, os botões de punho, os botõesde pérola e outros pequenos objetos semelhantes. O atributo queservia de critério eram as superfícies oblongas ou as superfíciesbrilhantes parecidas com olhos.

É evidente que a criança unia estes objetos concretossegundo os princípios dos complexos. Estas formaçõesespontâneas de complexos preenchem completamente todo oprimeiro capítulo da história do desenvolvimento das palavrasinfantis.

Há um exemplo bem conhecido e freqüentemente citadodeste tipo de derivas: a utilização pelas crianças da palavra quá­quá para designar primeiro um pato nadando na água dum lagoe depois toda a espécie de líquidos, incluindo o leite engarrafado;quando acontece a criança observar uma moeda com uma águiadesenhada, a moeda passa a ser um quá­quá sendo depois adesignação transferida para todos os objetos redondos com oaspecto de moedas. Eis um complexo em cadeia típico: cada novoobjeto incluído na cadeia tem algum atributo comum com outroelemento, mas os atributos de ligação estão constantemente avariar.

A formação de complexos é responsável pelo fenômenopeculiar de uma palavra poder, em diferentes situações, tersignificados diferentes ou até opostos, desde que haja qualquernexo associativo entre esses significados. Assim, uma criançapode dizer antes, quer para antes e depois, ou amanhã paraamanhã e ontem, indiferentemente. Temos aqui uma perfeitaanalogia com algumas línguas antigas — o Hebreu, o Grego e oLatim — nas quais uma mesma palavra indica por vezes tambémo seu contrário. Os Romanos, por exemplo, tinham uma mesmapalavra para alto e baixo. Tal casamento de significados opostossó é possível em resultado do pensamento por complexos.

O pensamento primitivo tem outro traço muitointeressante que nos mostra o pensamento por complexos emação e indica a diferença entre os pseudo­conceitos e osconceitos. Este traço, que Levy­Bruhl foi o primeiro a reconhecernos povos primitivos, Storch nos doentes mentais e Piaget nascrianças — é designado correntemente por contaminação. Aplica­se o termo à relação de identidade parcial ou estreitainterdependência estabelecida pelo pensamento primitivo entredois objetos ou fenômenos que na realidade não apresentamqualquer continuidade nem nenhuma outra conexãoreconhecível.

Levy­Bruhl (26) cita von den Steinen a propósito de umflagrante caso de participação observado nos Bororo do Brasilque se orgulham de serem papagaios vermelhos. Von denSteinen a princípio não sabia como interpretar uma afirmaçãotão categórica, mas acabou por achar que os índios queriamsignificar precisamente isso. Não se tratava apenas de umapalavra de que se tivessem apropriado, ou duma relação familiarsobre que insistissem: o que queriam significar era umaidentidade de essências.

Parece­nos que o fenômeno da contaminação não tevenenhuma explicação psicológica suficientemente convincente eisto por duas razões: em primeiro lugar, as investigaçõestenderam a centrar­se sobre o conteúdo do fenômeno e adescurar as operações mentais nele envolvidas, isto é, a estudaro produto em vez do processo; em segundo lugar, não seefetuaram quaisquer tentativas adequadas para ver o fenômenono contexto de outras conexões e relações formadas pelo cérebroprimitivo. Acontece demasiadas vezes que aquilo que atrai aatenção das investigações é o fantástico, o extremo, como porexemplo, o fato de os Bororo se considerarem como papagaiosvermelhos a expensas de fenômenos menos espetaculares. Noentanto, uma análise mais aturada mostra que até as conexõesque não se chocam abertamente com a nossa lógica sãoformadas pelos povos primitivos com base nos princípios dopensamento por complexos.

Como as crianças de certa idade pensam por pseudo­conceitos, como, para elas, as palavras designam complexos decoisas concretas, o seu pensamento terá necessariamente comoresultado a contaminação, isto é, conexões que não sãoaceitáveis pela lógica dos adultos. Determinada coisa pode serincluída em diferentes complexos por força dos seus diferentesatributos concretos e. consequentemente, pode ter vários nomes.A utilização de um ou de outro depende do complexo que éativado em determinado momento. Nas nossas experiênciasobservamos freqüentemente casos deste tipo de contaminaçãoem que um objeto era incluído simultaneamente em dois ou maiscomplexos. A contaminação não é uma exceção no pensamentopor complexos, muito pelo contrário, é a regra.

Os povos primitivos também pensam por complexos e,consequentemente, nas suas línguas a palavra não funcionacomo uma entidade portadora de um conceito, mas como um“nome de família” para grupos de objetos concretos congregadosnão logicamente, mas factualmente. Storch mostrou que estemesmo tipo de raciocínio é característico dos esquizofrênicos que

regridem do pensamento conceptual para um tipo mais primitivode intelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considera que ouso das imagens concretas em lugar dos pensamentos abstratosé um dos mais característicos traços do pensamento primitivo.Assim, a criança, o homem primitivo, e o alienado, por muito queos seus processos mentais difiram no respeitante a outrosaspectos importantes, manifestam todos fenômenos decontaminação — sintoma do pensamento primitivo porcomplexos e da função das palavras como nomes de família.

Estamos portanto em crer que a forma como Levy­Bruhlinterpreta a contaminação é incorreta. Este autor aborda o fatode os Bororo afirmarem serem papagaios vermelhos do ponto devista da nossa lógica, presumindo que também para o homemprimitivo tal asserção significa uma identidade de essências. Mascomo, para os Bororo, as palavras designam grupos de objetos enão conceitos, a sua asserção tem diferente significado. Apalavra que designa papagaio é uma palavra que designa umcomplexo de que eles fazem parte conjuntamente com ospapagaios. Não implica identidade, tal como o fato de duaspessoas compartilharem o mesmo nome de família não implicaque sejam uma e a mesma pessoa.

XII

A história da linguagem mostra claramente que opensamento por complexos com todas as suas peculiaridades é opróprio fundamento do desenvolvimento lingüístico.

A lingüística moderna estabelece a distinção entre osignificado de uma palavra, ou expressão, e o referente, isto é, oobjeto que designa. Pode haver um só significado e váriosreferentes, ou diferentes significados e um só referente. Querdigamos “o vencedor de Jena” ou o “derrotado de Waterloo”,estamos a referir­nos à mesma pessoa e, no entanto, osignificado das duas expressões é diferente. Só há uma categoriade palavras que têm por única função a função de referência: sãoos nomes próprios. Usando esta terminologia, podíamos dizerque as palavras das crianças e dos adultos coincidem, pelos seusreferentes mas não pelos seus significados.

Também na História das línguas encontramos exemplos deidentidades de referentes combinadas com divergências designificados. Esta tese é confirmada por uma grande quantidadede fatos. Os sinônimos existentes em cada língua são um bomexemplo disto. A língua russa tem duas palavras para designar aLua, a que se chegou através de diferentes processos de

pensamento claramente refletidos pela etimologia Um termoderiva da palavra latina que conota “capricho, fantasia,inconstância” e tinha por intenção óbvia sublinhar a volubilidadede formas que distingue a Lua de todos os outros corposcelestes. A palavra que está na origem do segundo termo, quesignifica “mediador”, foi sem dúvida impregnada pelo fato de otempo poder ser medido pelas fases da Lua. Entre as línguas omesmo acontece. Por exemplo, em Russo, a palavra que significaalfaiate deriva de uma velha palavra que designa uma peça depano; em Francês, Inglês e Alemão significa “o que talha”.

Se seguirmos a evolução de uma palavra em qualquerlinguagem e por mais surpreendente que tal possa parecer àprimeira vista, veremos que o seu significado se transformaexatamente da mesma forma que o pensamento das crianças. Noexemplo que citamos, a palavra au­au aplicava­se a uma série deobjetos totalmente distintos do ponto de vista dos adultos. Nodesenvolvimento da linguagem semelhantes transferências designificado não constituem exceção, antes pelo contrário, sãoregra. O russo tem uma palavra para dia­e­noite, a palavra sutki.A principio. significava costura, junção de duas peças de roupa,algo entretecido, passou depois a ser utilizada para designar todoe qualquer tipo de junção, por exemplo, a junção de duasparedes de uma casa e, portanto, um canto ou esquina; começoua ser utilizada metaforicamente para designar “crepúsculo”, aaltura “em que o dia e a noite se casam, se encontram”; passoudepois a designar o intervalo entre um crepúsculo e o seguinte, oatual sutkí de 24 horas. Palavras tão diversas como costura,canto, crepúsculo e 24 horas são englobadas num só complexono decurso do desenvolvimento de uma palavra da mesma formaque uma criança incorpora diferentes coisas num grupo combase na imagética concreta.

Quais são as leis que regem a formação das famílias depalavras? O mais freqüente é os novos objetos serem designadosem função de atributos que não são essenciais, de forma que apalavra não exprime verdadeiramente a natureza da coisanomeada. Como um nome nunca é um conceito quando aparecepela primeira vez, é simultaneamente demasiado limitado edemasiado vasto. Por exemplo, a palavra russa que designa ratosignificava primeiramente “ladrão”. Mas uma vaca não é nem delonge apenas um animal com cornos, nem um rato se limita aroubar; assim, os seus nomes são demasiado limitativos. Poroutro lado, são demasiado latos, na medida em que essesepítetos podem ser aplicados — e realmente são­no em certaslínguas — a um certo número de outras criaturas. O resultado

disto é uma luta incessante, no seio da língua emdesenvolvimento, entre o pensamento conceptual e a herança, olegado, do primitivo pensamento por meio de complexos. Osubstantivo criado por um complexo, o nome baseado num,entra em conflito com o conceito que passou a representar. Naluta entre o conceito e a idéia que deu origem ao nome, aimagem perde gradualmente terreno; desvanece­se daconsciência e da memória e o significado original da palavraacaba por ficar obliterado. Há alguns anos toda a tinta deescrever era negra e a palavra russa que designa tinta refere­se àsua cor negra. Mas isso não nos impede de falarmos hoje de“negrura” vermelha, verde ou azul sem notarmos aincongruência da combinação. As transferências dos nomes paranovos objetos ocorrem por contiguidade ou semelhança, isto é,com base em ligações concretas típicas do pensamento porcomplexos. As palavras que estão sendo elaboradas na nossaépoca apresentam­nos muitos exemplos do processo como coisasheterogêneas se misturam num mesmo agrupamento. Quandofalamos da “perna da mesa”, do “cotovelo da rua”, da “boca nabotija”, estamos a agrupar objetos duma forma semelhante aoscomplexos. Nestes casos, as semelhanças visuais e funcionaisque servem de mediadores no processo são bastante claras. Atransferência pode ser determinada, no entanto, pelasassociações mais variadas, e quando se trata de umatransferência que ocorreu há muito tempo, é impossívelreconstruir as conexões existentes com conhecimento perfeito dopano de fundo histórico do acontecimento

A palavra primitiva não é um símbolo direto de umconceito mas antes uma imagem, um retrato, um esboço mental,uma curta história sobre esse conceito quer dizer, uma autênticaobra de arte em ponto pequeno. Ao nomearmos um objeto pormeio de um conceito pictórico desse gênero, vinculamo­lo a umgrupo em que figura uma certa quantidade de outros objetos. Aesse respeito, o processo de criação da linguagem é análogo aoprocesso de formação dos complexos no desenvolvimentointelectual das crianças.

XIII

Na linguagem das crianças surdas­mudas podemosaprender muitas coisas acerca do pensamento por complexos,pois a estas crianças falta o principal estímulo para a formaçãode conceitos. Privados de intercâmbio social com os adultos edeixados a si próprios para determinarem que objetos devemagrupar sob a égide de um mesmo nome, formam os seus

complexos livremente e as características especiais dopensamento por complexos aparecem na sua forma pura enítida.

Na linguagem por sinais dos surdos­mudos, o ato de tocarum dente pode ter três significados diferentes: “branco”, “pedra”e “dente”. Os três significados pertencem a um mesmo complexoque, para melhor elucidação, exige um gesto suplementar deapontar ou imitativo, de forma a precisar­se que objeto se quersignificar em cada caso concreto. As duas funções da palavraencontram­se, por assim dizer, separadas. Um surdo­mudo tocao dente e a seguir, apontando para a sua superfície ou fazendoum gesto de arremesso, diz­nos a que objetos se refere em cadacaso.

Para comprovarmos e complementarmos os nossosresultados experimentais fomos buscar alguns exemplos degênese de complexos do desenvolvimento lingüístico dascrianças, do pensamento dos povos primitivos e dodesenvolvimento da linguagem enquanto tal. Dever­se­á notar noentanto que até o adulto normal, que é capaz de formar e utilizarconceitos, não opera sistematicamente com conceitos ao pensar.Para lá dos processos primitivos de pensamento dos sonhos, oadulto desvia­se constantemente do pensamento conceptual parao pensamento concreto do tipo dos complexos. A formatransitória do pensamento, o pseudo­conceito, não se limita aopensamento das crianças; também nós recorremos a ela muitofreqüentemente na nossa vida de todos os dias.

XIV

A nossa investigação levou­nos a dividir o processo degênese dos conceitos em três fases principais. Descrevemos duasdessas fases, marcadas pela predominância da imagemsincrética e do complexo, respectivamente, e chegamos agora àterceira fase. Tal como na segunda, pode ser subdividida emvários estádios.

Na realidade, as novas formações não aparecemnecessariamente apenas após o pensamento por complexos tercompletado a sua trajetória de desenvolvimento. Duma formarudimentar podem ser observadas muito antes de a criançacomeçar a pensar em termos de pseudo­conceitos.Essencialmente, no entanto, as formas que vamos começar adescrever têm uma segunda raiz, uma raiz independente.Possuem uma função genética diferente da dos complexos nodesenvolvimento mental da criança.

A principal função dos complexos consiste em estabelecerligações e relações. O pensamento por complexos dá início àunificação das impressões dispersas; ao organizar elementosdiscretos da experiência em grupos cria uma base para futurasgeneralizações.

Mas o conceito desenvolvido pressupõe algo mais do que aunificação Para formar esse conceito é também necessárioabstrair, isolar elementos e ver os elementos abstraídos datotalidade da experiência concreta em que se encontrammergulhados. Na genuína gênese dos conceitos é tão importanteunificar como separar: a síntese tem que combinar­se com aanálise. O pensamento por complexos não pode efetuar ambas asoperações. A superabundância, a superprodução de conexões e adebilidade da abstração constituem a essência mesma dopensamento por complexos. A função do processo queamadurece durante a terceira fase do desenvolvimento da gênesedos conceitos é constituída pela satisfação do segundo requisito,embora os seus primeiros passos radiquem num período muitoanterior.

Na nossa experiência, o primeiro passo em direção àabstração dava­se quando a criança começava a agrupar omáximo número possível de objetos, por exemplo, objetos queeram pequenos e redondos ou vermelhos e chatos. Como omaterial experimental não contém objetos idênticos, até os queapresentam o maior número de semelhanças são diferentes sobcertos aspectos. Daqui se segue que, ao colher assim os quemelhor “se casavam”, a criança tem que prestar mais atenção acertos traços de um objeto do que aos outros — dando­lhe umtratamento preferencial, por assim dizer. Os atributos, aosomarem­se, fazem com que o objeto que apresenta o máximo desemelhanças com a amostra se torne o centro de atenção,abstraindo­se assim, em certo sentido, dos atributos a que acriança presta menos atenção. A primeira tentativa de abstraçãonão é obvia enquanto tal, porque a criança abstrai todo umgrupo de traços, sem os distinguir claramente uns dos outros;amiúde, a abstração de um tal grupo de atributos baseia­seapenas numa impressão vaga e geral de semelhança dos objetos.

No entanto, o caráter global da percepção da criança abriubrechas. Os atributos de um objeto foram divididos em duaspartes a que não se deu a mesma importância — e isto é umcomeço de abstração positiva e negativa. Um objeto não entra jáno complexo in toto, com todos os seus atributos — alguns vêemvedada a sua entrada; se, com isso, o objeto é empobrecido, osatributos que provocaram a sua inclusão no complexo adquirem

um relevo mais vincado no pensamento da criança.

XV

Durante o estádio seguinte do desenvolvimento daabstração, o agrupamento de objetos com base no máximo desemelhança possível é superado pelo agrupamento com basenum único atributo, por exemplo, o agrupamento exclusivo dosobjetos redondos, ou dos objetos chatos. Embora o produto nãose possa distinguir do produto de um conceito, estas formações,tal como os pseudo­conceitos, são meras percursoras dosautênticos conceitos. Segundo o uso introduzido por Gross(14),podemos chamar a estas formações conceitos potenciais.

Os conceitos potenciais resultam de uma espécie deabstração isolante de natureza tão primitiva que se encontrapresente em certo grau não só nas crianças de muito tenra idadecomo também nos animais. Pode treinar­se as galinhas aresponderem a um atributo distinto em diferentes objetos, comopor exemplo, a cor ou a forma, se esse atributo for sinal decomida acessível; os chimpanzés de Koehler, tendo aprendido autilizar um pau como instrumento, utilizavam outros objetoscompridos quando precisavam de um pau e não o tinham.

Mesmo nos bebês muito pequenos, os objetos ou as figurasque apresentam certos traços comuns evocam respostassemelhantes. No mais precoce estádio pré­verbal as criançasesperam nitidamente que situações semelhantes conduzam adesfechos semelhantes. A partir do momento em que umacriança associou uma palavra com um objeto, facilmente seaplica a um novo objeto que a impressiona por, em certosaspectos, ser semelhante ao primeiro. Os conceitos potenciais,portanto, podem ser formados, tanto na esfera do pensamentoperceptual, como na esfera do pensamento prático, virado para aação — com base na semelhança de significados funcionais, nosegundo. Estes últimos são uma importante fonte de conceitospotenciais. É do conhecimento geral que os significadosfuncionais desempenham um papel muito importante nopensamento da criança infantil. Quando Se lhe pede queexplique uma palavra, uma criança dir­nos­á aquilo que o objetodesignado pela palavra em questão faz, ou — o que é maisfreqüente — o que se pode fazer com esse objeto. Até osconceitos abstratos são muitas vezes traduzidos na linguagem daação concreta: “Razoável quer dizer quando estou a suar e nãome deixo estar numa corrente de ar”.

Os conceitos potenciais já desempenham um certo papel

no pensamento por complexos. Por exemplo, os complexosassociativos pressupõem a existência de que se “abstrai” umtraço comum de diferentes unidades. Mas enquanto opensamento por complexos predominar, o traço abstraído éinstável, não tem posição privilegiada e facilmente cede a suadominância temporária a outros traços. Nos conceitos potenciaispropriamente ditos, um traço que alguma vez tenha sidoabstraído não se volta a perder facilmente no meio de outrostraços. A totalidade concreta de traços foi destruída pela suaabstração e abre­se a possibilidade de unificar os traços numabase diferente. Só o domínio da abstração, combinado com opensamento por complexos desenvolvido permite à criançaavançar para a formação dos conceitos genuínos. Um conceito sósurge quando os traços abstraídos são novamente sintetizados ea abstração sintetizada daí resultante se torna o principalinstrumento de pensamento. Como ficou provado pelas nossasexperiências, é a palavra que desempenha o papel decisivo nesteprocesso; a palavra é utilizada deliberadamente para orientartodos os processos parciais do estádio superior da gênese dosconceitos (iv).

XVI

No nosso estudo experimental dos processos intelectuaisdos adolescentes observamos como as formas primitivas depensamento, quer as sincréticas quer as que se baseiam noscomplexos, vão desaparecendo gradualmente, como os conceitospotenciais vão sendo usados cada vez menos e os verdadeirosconceitos começam a formar­se — raramente a princípio e depoiscom crescente freqüência. Mesmo após o adolescente teraprendido a produzir conceitos, não abandona as formas maiselementares; estas continuam a operar durante um certoperíodo, continuando até a predominar em muitas áreas do seupensamento. A adolescência é menos um período de consumaçãodo desenvolvimento do que de transição e crise.

O caráter transitório do pensamento do adolescente torna­se particularmente evidente quando observamos ofuncionamento real dos conceitos acabados de adquirir. Certasexperiências especialmente projetadas para estudar as operaçõesque os adolescentes levam a cabo com os conceitos põem emevidência acima de tudo uma flagrante discrepância entre a suacapacidade para formar conceitos e a sua capacidade para osdefinir.

O adolescente formará e utilizará muito corretamente umconceito numa situação concreta, mas sentirá uma estranha

dificuldade em exprimir esse conceito por palavras e a definiçãoverbal, em muitos casos, será muito mais restritiva do que seriade esperar pela forma como o adolescente utilizou o conceito. Amesma discrepância ocorre no pensamento dos adultos, mesmoem níveis de desenvolvimento muito avançados. Isto está deacordo com o pressuposto de que os conceitos evoluem de formamuito diferente da elaboração deliberada e consciente daexperiência em termos de lógica. A análise da realidade com aajuda dos conceitos precede a análise dos próprios conceitos.

O adolescente defronta­se com outros obstáculos quandotenta aplicar um conceito que formou numa situação específica aum novo conjunto de objetos e circunstâncias em que osatributos sintetizados no conceito aparecem em configuraçõesque diferem da original (exemplo disto seria a aplicação a objetosquotidianos do novo conceito “pequeno e alto” desenvolvido noteste dos blocos). No entanto, o adolescente corretamente é capazde realizar essa transferência num estádio relativamente precocedo desenvolvimento.

Muito mais difícil do que a transferência em si é a tarefa dedefinir um conceito quando já não tem quaisquer raízes nasituação original e tem que ser formulado num plano puramenteabstrato, sem referência a nenhuma situação ou impressãoconcretas Nas nossas experiências, há crianças ou adolescentesque resolvem corretamente o problema da formação do conceito,mas descem a um nível muito mais primitivo de pensamentoquando se trata de definir verbalmente o conceito e começammuito pura e simplesmente a enumerar os vários objetos a queaquele se pode aplicar na configuração particular em que seencontra. Neste caso operam com a palavra como um conceitomas definem­no como complexo — forma de pensamento estaque vacila entre o conceito e o complexo e que é característica etípica desta idade de transição.

A maior de todas as dificuldades é a aplicação de umconceito que o adolescente conseguiu finalmente apreender eformular a um nível abstrato a novas situações que têm que serencaradas nos mesmos termos abstratos — um tipo detransferência que habitualmente só é dominado pelo fim doperíodo de adolescência A transição do abstrato para o concretovem a verificar­se tão árdua para o jovem, como a primitivatransição do concreto para o abstrato. As nossas experiênciasnão deixam quaisquer dúvidas que neste ponto, de qualquerforma, a descrição da gênese dos conceitos dada pela psicologiatradicional, a qual se limita a reproduzir o esquema da lógicaformal, não tem qualquer relação com a realidade.

Segundo a escola clássica, a formação dos conceitos érealizada pelo mesmo processo do retrato de família nasfotografias compósitas de Galton. Estas são realizadas tirandofotografias de vários membros de uma mesma família sobremesma chapa, de forma que os traços de família comuns a váriaspessoas surgem com extraordinária vivacidade, enquanto ostraços pessoais variáveis de cada um se esfumam com asobreposição. Presume­se que na formação de conceitos se dáuma intensificação de traços semelhantes; segundo a teoriatradicional a soma destes traços é o conceito. Na realidade, comoalguns psicólogos há muito notaram, e as nossas experiênciasdemonstram, o caminho pelo qual os adolescentes atingem aformação dos conceitos nunca se conforma com este esquemalógico. Quando se vê em toda a sua complexidade o processo degênese dos conceitos, este surge­nos como um movimento depensamento dentro da pirâmide dos conceitos, que oscilaconstantemente entre duas direções, do particular para o geral edo geral para o particular.

As nossas investigações mostraram que um conceito seforma não através do jogo mútuo das associações, mas atravésde uma operação intelectual em que todas as funções mentaiselementares participam numa combinação específica. Estaoperação é orientada pela utilização das palavras como meiospara centrar ativamente a atenção, para abstrair certos traços,sintetizá­los e representá­los por meio de símbolos.

Os processos que conduzem à formação dos conceitosdesenvolvem­se segundo duas trajetórias principais. A primeira éa formação dos complexos: a criança une diversos objetos emgrupos sob a égide de um “nome de família” comum; esteprocesso passa por vários estádios. A segunda linha dedesenvolvimento é a formação de “conceitos potenciais”,baseados no isolamento de certos atributos comuns. Em ambosos processos o emprego da palavra é parte integrante dosprocessos genéticos e a palavra mantém a sua funçãoorientadora na formação dos conceitos genuínos a que oprocesso conduz.

6. O desenvolvimento dosconceitos científicos na infância

I

Para se idealizar métodos eficazes de instrução dascrianças em idade escolar no conhecimento sistemático, énecessário compreender o desenvolvimento dos conhecimentoscientíficos no espírito da criança. Não menos importante do queeste aspecto prático do problema é o seu significado teórico paraa ciência psicológica. No entanto, o conhecimento que possuímosdo conjunto do assunto é surpreendentemente escasso e vago.

Que acontece no cérebro da criança aos conceitoscientíficos que lhe ensinam na escola? Qual é a relação entre aassimilação da informação e o desenvolvimento interno de umconceito científico na consciência das crianças?

A psicologia infantil contemporânea tem duas respostas aestas questões. Uma escola de pensamento crê que os conceitoscientíficos não têm História interna, isto é, não sofrem qualquerdesenvolvimento, mas são absorvidos de forma acabada por umprocesso de compreensão e assimilação. A maior parte dasteorias e métodos de educação continuam a basear­se nestaconcepção. Trata­se contudo de uma concepção que não resiste aum exame, quer do ponto de vista teórico, quer do ponto de vistadas suas aplicações práticas. Como sabemos, a partir deinvestigações do processo de formação dos conceitos, umconceito é algo mais do que a soma de certas ligaçõesassociativas formadas pela memória, é mais do que um simpleshábito mental; é um complexo e genuíno ato de pensamento, quenão pode ser ensinado pelo constante repisar, antes pelocontrário, que só pode ser realizado quando o própriodesenvolvimento mental da criança tiver atingido o nívelnecessário. Em qualquer idade, um conceito encarnado numapalavra representa um ato de generalização. Mas o significadodas palavras evolui e, quando a criança aprende uma novapalavra, o seu desenvolvimento mal começou: a princípio apalavra é uma generalização do tipo mais primitivo; à medidaque o intelecto da criança se desenvolve é substituída porgeneralizações de tipo cada vez mais elevado — processo este queacaba por levar à formação dos verdadeiros conceitos. Odesenvolvimento dos conceitos, dos significados das palavras,pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais:atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade paracomparar e diferenciar. Estes processos psicológicos complexosnão podem ser dominados apenas através da aprendizageminicial.

A experiência prática mostra também que é impossível e

estéril ensinar os conceitos de uma forma direta. Um professorque tenta conseguir isto habitualmente mais não consegue dacriança do que um verbalismo oco, um psitacismo que simulaum conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que narealidade só encobre um vácuo.

Leão Tolstoy, com o seu profundo conhecimento danatureza da palavra e do significado, compreende maisclaramente que a maior parte dos educadores que é impossíveltransmitir pura e simplesmente um conceito de professor paraaluno. Ele narra as suas tentativas para ensinar linguagemliterária às crianças do campo, começando por “traduzir” o seuvocabulário na linguagem dos contos populares e traduzindodepois a linguagem dos contos em linguagem literária. Tolstoydescobriu que não se pode ensinar a linguagem literária àscrianças através de explicações artificiais, por memorizaçãocompulsiva e repetição como se ensina uma língua estrangeira.Escreve ele:

Temos que admitir que tentamos por diversas vezes ...fazer isto e que sempre nos defrontamos com uma insuperávelaversão por parte das crianças, fato que mostra que seguíamosum caminho errado. Estas experiências transmitiram­me acerteza de que é perfeitamente impossível explicar o significadode uma palavra ... Quando tentamos explicar qualquer palavra, apalavra “impressão”, por exemplo, substituímo­la por outrapalavra igualmente incompreensível, ou toda uma série depalavras cuja conexão interna é tão incompreensível como aprópria palavra.

Aquilo de que uma criança necessita, diz Tolstoy, é de umapossibilidade de adquirir novos conceitos e palavras a partir docontexto lingüístico geral.

Quando houve ou lê uma palavra desconhecida, numafrase quanto ao resto compreensível, e depois a lê noutra frase,começa a fazer uma vaga idéia do novo conceito; mais tarde oumais cedo sentirá ... necessidade de usar a palavra — e uma vezque a use, passa a assenhorear­se da palavra e do conceito. Masestou convencido de que é impossível transmitir deliberadamentenovos conceitos ao aluno ... tão impossível e fútil como ensinaruma criança a andar apenas pelas leis do equilíbrio ... (43)(43,p,. 143).

A segunda concepção da evolução dos conceitos científicosnão nega a existência de um processo de desenvolvimento nocérebro da criança em idade escolar; defende porém que este

processo não difere essencialmente de maneira nenhuma dodesenvolvimento dos conceitos formados pela criança na suaexperiência quotidiana e que não tem qualquer interesseconsiderar­se estes dois processos em separado. Qual é ofundamento deste ponto de vista?

A literatura existente neste domínio mostra que aoestudarem a formação dos conceitos na infância, muitosinvestigadores usaram os conceitos quotidianos formados pelacriança sem intervenção da educação sistemática. Presume­seque as leis baseadas nestes dados se aplicam também aosconceitos científicos das crianças, não se considerandonecessário comprovar esta hipótese. Só um punhado dos maisperspicazes estudiosos modernos do pensamento da criançaquestionam a legitimidade de tal extensão. Piaget traça umalinha de demarcação nítida entre as idéias da realidadedesenvolvidas predominantemente pelos seus esforços mentais eas leis que são decisivamente influenciadas pelos adultos. Dá aoprimeiro grupo de leis a designação de espontâneas e ao segundoa de não espontâneas e admite que estas últimas exigirãopossivelmente uma investigação independente. A este respeitoavança muito mais e muito mais profundamente do que todos osoutros estudiosos dos conceitos infantis.

Ao mesmo tempo, há certos erros do pensamento de Piagetque infirmam o valor das suas concepções. Embora defenda queao formar um conceito a criança o marca com as característicasda mentalidade que lhe é própria, Piaget tende a aplicar a suatese apenas aos conceitos espontâneos e presume que só estespodem esclarecer­nos verdadeiramente sobre as qualidadesespeciais do pensamento infantil; não consegue ver a interaçãoentre ambos os tipos e as ligações que os unem num sistematotal de conceitos, durante o desenvolvimento intelectual dacriança. Estes erros conduzem­no a outro. A teoria de que asocialização progressiva do pensamento e a essência mesma dodesenvolvimento mental da criança constitui um dos alicercesfundamentais da teoria de Piaget. Mas, se as suas concepçõessobre os conceitos não espontâneos fossem corretas, seguir­se­iadelas que um fator tão importante para a socialização dopensamento como a aprendizagem escolar não tem qualquerrelação com o processo de desenvolvimento interno. Estaincoerência é o ponto fraco da teoria de Piaget, tanto do ponto devista teórico como prático.

Teoricamente, Piaget vê a socialização do pensamentocomo uma abolição mecânica das características do pensamentopróprio da criança, como o seu gradual apagamento. .Tudo o que

é novo no desenvolvimento provém do exterior, substituindo osmodos de pensamento próprios da criança. Durante toda ainfância há um conflito incessante entre duas formas depensamento mutuamente antagonistas, com uma série decompromissos em cada nível de desenvolvimento sucessivo, atéque o pensamento adulto acaba por dominar. A natureza própriada criança não desempenha nenhum papel construtivo no seudesenvolvimento intelectual. Quando Piaget diz que nada é maisimportante para o ensino eficaz do que um conhecimentoexaustivo do pensamento espontâneo da criança (33) move­oaparentemente a idéia de que, tal como é preciso conhecer uminimigo para poder vence­lo no combate, assim é precisoconhecer o pensamento da criança.

Contraporemos a estas premissas errôneas a premissa deque os conceitos não espontâneos têm que possuir todos ostraços peculiares ao pensamento da criança em cada nível dedesenvolvimento porque estes conceitos não são adquiridos porsimples rotina, antes evoluem por recurso a uma estrênuaatividade mental por parte da criança. Estamos em crer queestes dois processos — o desenvolvimento dos conceitosespontâneos e dos conceitos não espontâneos — se encontramrelacionados e influenciam­se um ao outro permanentemente.Fazem parte de um único processo: o desenvolvimento da gênesedo conceito, que é afetado por condições externas e internasvariáveis mas é essencialmente um processo unitário e não umconflito de formas de intelecção antagônicas e mutuamenteexclusivas. A instrução é uma das principais fontes dos conceitosda criança em idade escolar e é também uma poderosa força deorientação da sua evolução, determinando o destino de todo oseu desenvolvimento mental. Se assim é, os resultados do estudopsicológico dos conceitos infantis podem aplicar­se aosproblemas do ensino duma maneira muito diferente daquela quePiaget pensava.

Antes de analisarmos pormenorizadamente estaspremissas, pretendemos avançar as razões que nos assistempara diferenciarmos os conceitos espontâneos e os nãoespontâneos — particularmente os científicos — e submetermosos últimos a um estudo especial.

Em primeiro lugar, sabemos da simples observação que osconceitos se formam e desenvolvem em condições internas ouexternas totalmente diferentes, consoante têm origem no que acriança aprende na sala de aulas ou na sua experiência pessoal.Nem sequer os motivos que movem a criança a formar os doistipos de conceitos são os mesmos: o espírito defronta­se com

problemas muito diversos quando assimila conceitos na escola e,quando é entregue aos seus próprios recursos. Quandotransmitimos um conhecimento sistemático à criança,ensinamos­lhe muitas coisas que esta não pode ver ouexperimentar diretamente. Como os conceitos científicos e osconceitos espontâneos diferem pela relação que estabelecem coma experiência da criança e pela atitude da criança relativamenteaos seus objetos, será de esperar que sigam caminhos dedesenvolvimento muito diferentes desde a sua gestação até a suaforma final.

O destacar­se os conceitos científicos como objeto deestudo tem também um valor heurístico. No momento atual, apsicologia só dispõe de dois métodos para estudar a gênese dosconceitos. Num, tratamos dos conceitos reais das crianças, masempregamos métodos — tais como a definição verbal — que nãopenetram para lá da superfície; o outro permite­nos uma análisepsicológica incomparavelmente mais profunda mas apenasrecorrendo ao estudo de conceitos experimentais artificialmenteconcebidos. Estamos perante um urgente problema metodológicoque consiste em encontrar meios de estudar os conceitos reaisem profundidade — em encontrar um método que possa utilizaros resultados obtidos pelos dois métodos que até aqui utilizamos.Parece­nos que a abordagem mais prometedora para o problemaserá o estudo dos conceitos científicos, que são conceitos reais,mas que, no entanto, se formam debaixo dos nossos olhos, quaseà maneira dos conceitos artificiais.

Por fim, o estudo dos conceitos científicos enquanto tais,tem importantes implicações para a educação e a instrução.Embora os conceitos não sejam absorvidos já completamenteformados, a instrução e a aprendizagem desempenham um papelpredominante na sua aquisição. Descobrir a relação complexaentre a instrução e o desenvolvimento dos conceitos científicos éuma importante tarefa prática.

Tais foram as considerações que nos serviram deorientação para a tarefa de distinguir os conceitos científicos dosconceitos do dia a dia e submetê­los a um estudo comparativo.Para exemplificarmos o tipo de questões a que tentamos darresposta, tomemos o conceito “irmão” — um conceito quotidianotípico utilizado habilmente por Piaget para determinar toda umasérie de peculiaridades do pensamento infantil — e comparemo­lo com o conceito “exploração” com que a criança contacta nassuas aulas de ciências sociais. Será o seu desenvolvimento igual,ou diferente? Será que a palavra “exploração” se limitará arepetir a evolução do desenvolvimento de “irmão” ou será

psicologicamente um conceito de tipo diferente? Apresentamos ahipótese de que os dois conceitos devem diferir, tanto no seudesenvolvimento, como no seu funcionamento, e que estas duasvariantes do processo de gênese do conceito se devem influenciarmutuamente na sua evolução.

II

Para estudar a relação entre o desenvolvimento dosconceitos científicos e dos conceitos quotidianos, precisamos deuma bitola de comparação. Para construirmos um dispositivo demedição temos que conhecer as características típicas dosconceitos quotidianos na idade escolar e a direção do seudesenvolvimento durante esse período.

Piaget demonstrou que os conceitos das crianças em idadeescolar são marcados predominantemente pelo fato de aquelasnão terem uma percepção consciente das relações, embora asmanipulem corretamente duma forma irrefletida e espontânea.Piaget perguntou a crianças de idades compreendidas entre ossete e os oito anos de idade o significado da palavra “porque” nafrase: “Amanhã não vou à escola, porque estou doente”. A maiorparte das crianças respondeu: “Quer dizer que o menino estádoente”; outras responderam: “Quer dizer que o menino não vai aescola”. Uma criança é incapaz de compreender que asperguntas não se referem aos fatos distintos da doença e daausência à escola mas à sua relação interna. No entanto ascrianças aprendem com certeza o significado da frase, poisutilizam espontaneamente a palavra “porque” de uma formacorreta, embora não a saibam empregar deliberadamente. Assim,não são capazes de terminar corretamente a frase seguinte: “Ohomem caiu da bicicleta porque... ”. Freqüentementesubstituirão a causa por uma conseqüência (“porque partiu obraço”). O pensamento da criança não é deliberado, nem temconsciência de si próprio; por que razão então a criança acabapor conseguir tomar consciência dos seus próprios pensamentose dominá­los? Para explicar o processo, Piaget invoca duas leispsicológicas.

Uma dessas leis é a lei da conscientização, formulada porClaparède, que provou através de experiências muitointeressantes que a percepção da diferença precede a percepçãoda semelhança. É com a maior das naturalidades que a criançaresponde a objetos semelhantes e não tem necessidade de tomarconsciência do seu modo de resposta, ao passo que adissemelhança cria um estado de desadaptação que conduz àtomada de consciência. A lei de Claparède afirma que quanto

mais suavemente utilizamos uma relação em ação, menosconsciência teremos dessa relação, a consciência que tomamosdo que estamos fazendo varia na proporção direta dasdificuldades que sentimos para nos adaptarmos a uma situação.

Piaget utiliza a lei de Claparède para explicar odesenvolvimento do pensamento que se dá entre os sete e osdoze anos. Durante este período, as operações mentais dacriança entram repetidamente em conflito com o pensamento Acriança sofre sucessivas derrotas e fracassos, devido àsdeficiências da sua lógica e estas penosas experiências geram anecessidade de tomada de consciência dos seus conceitos.

Compreendendo que a necessidade não é explicaçãobastante para nenhuma transformação ocorrida nodesenvolvimento do pensamento, Piaget complementa a lei deClaparède com a lei da derivação ou do deslocamento. A tomadade consciência de uma operação mental significa umatransferência dessa operação do plano da ação para o plano dalinguagem, isto é, implica que se recrie essa mesma operação naimaginação, para que ela possa exprimir­se por palavras. Estatransformação não é, nem rápida, nem suave. A lei afirma que odomínio de uma operação no plano superior do pensamentoverbal apresenta as mesmas dificuldades que o domínio dessamesma operação no plano da ação. Isto explica a lentidão doprocesso.

Estas interpretações não nos parecem adequadas. Asdescobertas de Claparède podem ter uma explicação diferente.Os estudos experimentais que nós próprios levamos a cabosugerem­nos que a criança toma consciência das diferenças maiscedo do que as semelhanças não por nenhuma deficiênciaresultante de um qualquer mau funcionamento, mas porque aconsciência da semelhança exige uma estrutura de generalizaçãoe de conceptualização mais desenvolvida do que a consciênciadas diferenças. Ao analisarmos o desenvolvimento dos conceitosde diferença e de semelhança, descobrimos que a consciência dasemelhança pressupõe a formação de uma generalização, ou deum conceito, que abarque os objetos semelhantes, ao passo quea consciência da diferença não exige tal generalização — podesurgir por outras vias. O fato de a ordem de seqüências genéticadestes dois conceitos inverter a seqüência da anteriormanipulação comportamental da semelhança e da diferença nãoé caso único. Por exemplo, as nossas experiências determinaramque as crianças respondem às ações representadas graficamenteantes de conseguirem responder à representação de um objeto,mas que tomam plena consciência do objeto antes da ação (v).

A lei da transferência constitui um exemplo da teoriagenética tão espalhada segundo a qual certos acontecimentos oumodelos observados durante os primeiros estádios de umprocesso de desenvolvimento se repetirão nos estádios maisavançados. Os traços que efetivamente se repetem cegam muitasvezes os observadores para as significativas diferenças causadaspelo fato de os últimos processos se desenrolarem num estádiode desenvolvimento superior. Podemos dispensar­nos de discutiro princípio genético enquanto tal, pois que apenas nos interessaa sua validade explicativa no tocante ao desenvolvimento daconsciência. A lei da transferência, como a lei da consciência,pode quando muito responder à questão da razão pela qual acriança em idade escolar não tem consciência dos seusconceitos; não consegue explicar como se atinge a consciência.Para explicarmos esse acontecimento decisivo nodesenvolvimento fundamental da criança há que procurar outrahipótese.

Segundo Piaget, na criança em idade escolar, a ausênciade consciência é um resíduo do seu egocentrismo, que está emvias de desaparecimento, mas que continua a exercer influênciana esfera do pensamento verbal que se está começandoprecisamente a formar nesse momento. A consciência é atingidaquando o pensamento socializado maduro expulsa do nível dopensamento verbal o egocentrismo residual, ocupando o seulugar.

Tal explicação da natureza dos conceitos da criança emidade escolar, baseada essencialmente na incapacidade geral dascrianças para tomarem consciência dos seus atos, não resiste àprova dos fatos. Vários estudos mostraram que é precisamentedurante os primeiros tempos da idade escolar que as funçõesintelectuais superiores, cujas características principais são aconsciência refletida e o controle deliberado, começam a ocuparo primeiro plano no processo de desenvolvimento. A atenção, queanteriormente era involuntária, toma­se voluntária e dependecada vez mais do pensamento da própria criança: a memóriamecânica transforma­se em memória lógica orientada pelosignificado, podendo começar a ser utilizada deliberadamentepela criança. Poder­se­ia quase dizer que tanto a atenção como amemória se tornam “lógicas” e voluntárias na medida em que ocontrole de uma função é a contrapartida da consciência quecada qual dele tem. Não obstante, não se pode negar o fatodemonstrado por Piaget: a criança em idade escolar, embora váganhando em deliberação e domínio das suas funções, não temconsciência das suas operações conceptuais, Todas as funções

mentais de base se tornam deliberadas e conscientes, durante aidade escolar, exceto o próprio intelecto.

Para resolvermos este aparente paradoxo, temos quevoltar­nos para as leis fundamentais que regem odesenvolvimento psicológico. Uma dessas leis afirma que aconsciência e o controle só aparecem num estádio relativamentetardio de desenvolvimento de uma função, depois de esta ter sidoutilizada e praticada inconsciente e espontaneamente. Parasubmetermos uma função ao controle da inteligência e davontade, temos que a dominar primeiro.

O estádio das funções indiferenciadas na infância éseguido pela diferenciação da percepção nos primeiros tempos dainfância e o desenvolvimento da memória na criança em idadepré­escolar, para apenas mencionarmos os aspectos maissalientes do desenvolvimento mental ocorridos em cada idade. Aatenção, que é uma função correlativa da estruturação do que éapercebido e recordado, participa deste desenvolvimento.Consequentemente, a criança que se encontra prestes a entrarpara a escola possui as funções que terá que aprender para assubmeter a um controle consciente numa forma já relativamentemadura. Mas, nessa idade, os conteúdos dos conceitos — oumelhor, dos pré­conceitos como se devem chamar nessa idade —estão apenas começando a perder o seu caráter de complexos eteria que haver um autêntico milagre para que a criança fossecapaz de tomar consciência deles e de os dominar durante esseperíodo. Para que isso fosse possível. a consciência não teria quelimitar­se a tomar posse das suas funções isoladas teria que ascriar.

Antes de continuarmos, queremos clarificar a palavraconsciência no sentido em que a usamos, quando falamos defunções não conscientes que se “tornam conscientes”(empregamos a expressão não consciente para distinguirmos oque não é ainda consciente do “inconsciente” freudiano,resultante da repressão, que é um desenvolvimento posterior,que é efeito de uma diferenciação da consciência relativamentedesenvolvida). A atividade da consciência pode seguir diferentesvias; pode incidir sobre alguns aspectos apenas de umpensamento ou de um ato. Acabei, por exemplo de dar um nó —fi­lo conscientemente, no entanto não consigo explicar como ofiz, pois a minha consciência se encontrava centrada mais sobreo nó do que sobre os meus próprios movimentos, e como daminha ação,. Quando esta última se torna objeto da minhaconsciência, terei acedido à plena consciência. Utilizamos apalavra consciência para designar a percepção da atividade do

cérebro — a consciência de ter consciência. Uma criança emidade pré­escolar que, em resposta à pergunta: “eu sei o teunome?”, responde dizendo o nome, não possui esta consciênciaauto­reflexiva; sabe o seu nome mas não tem consciência de queo sabe.

Os estudos de Piaget mostraram que a introspeção sócomeça a desenvolver­se durante a idade escolar. Este processotem bastantes coisas em comum com o desenvolvimento dapercepção e da observação externas durante a transição entre aprimeira e a segunda infâncias, quando a criança passa daprimeira expressão sem palavras, para a percepção dos objetosorientada pelas palavras e por estas expressa — percepção emtermos de significado. De forma semelhante, a criança em idadeescolar passa da introspeção não formulada para a introspeçãoverbalizada; percebe os seus próprios processos psíquicos comoprocessos significantes. Mas a percepção em termos designificado implica sempre um certo grau de generalização.Consequentemente, a transição para a auto­observaçãoverbalizada denota um processo embrionário de generalizaçãodas formas interiores de atividade. O desvio para um novo tipode percepção interior significa também um deslocamento paraum tipo superior de atividade interior, pois que cada novamaneira de ver as coisas abre a porta para novas possibilidadesde as manipular. Os movimentos do jogador de xadrez sãodeterminados pelo que vê no tabuleiro; quando a sua percepçãodo jogo se altera, a sua estratégia alterar­se­á também. Quandoapercebemos algum dos nossos atos de uma forma generalizada,isolamo­los da nossa atividade mental total, podendo assimcentrar a atenção neste processo enquanto tal e estabelecer umanova relação com ele. Desta maneira, o fato de nos tornarmosconscientes das nossas operações e de vermos cada uma delascomo um processo de determinado tipo — tal como umarecordação ou a imaginação — conduz­nos a dominar esseprocesso.

A instrução escolar induz o tipo de percepçãogeneralizante, desempenhando assim um papel decisivo naconscientização do processo mental por parte da criança. Osconceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter­relações, parecem ser o meio em que primeiro se desenvolvem aconsciência e o domínio do objeto, sendo mais tarde transmitidospara outros conceitos e outras áreas do pensamento. Aconsciência reflexiva chega à criança através dos portais dosconceitos científicos.

A caracterização que Piaget nos dá dos conceitos

espontâneos da criança como não conscientes e não sistemáticostendem a confirmar a nossa tese. A inferência de que espontâneoé sinônimo de inconsciente transparece com toda a evidência emtodos os seus escritos e é fácil de ver qual a base disso. Aooperar com os conceitos espontâneos, a criança não temqualquer consciência desses mesmos conceitos, pois a suaatenção se encontra sempre centrada no objeto a que o conceitose refere e nunca no próprio ato de pensamento. A concepção dePiaget, segundo a qual, para a criança, os conceitos têm umaexistência desligada de todo e qualquer contexto, é tambémclara. Segundo este autor, se quisermos descobrir e explorar asidéias espontâneas da própria criança ocultas por detrás dosconceitos não espontâneos que profere, teremos que começar porlibertá­las de todo e qualquer vínculo a um sistema. Estaabordagem teve como resultado o tipo de respostas queexprimem a atitude não mediatizada da criança relativamenteaos objetos e que impregnam todos os livros de Piaget.

A nós parece­nos óbvio que um conceito só pode cair sob aalçada da consciência e do controle deliberado quando faz partede um sistema. Se a consciência significa generalização, ageneralização significa, por seu turno, a formação de umconceito de grau superior que inclui o conceito dado como seucaso particular. Um conceito de grau superior implica aexistência de uma série de conceitos subordinados e pressupõetambém uma hierarquia de conceitos com diversos níveis degeneralidade. O exemplo que se segue pode exemplificar a funçãodesempenhada por estes diversos graus de generalidade naemergência de um sistema: uma criança aprende a palavra flor epouco depois a palavra rosa; durante um longo período de temponão se pode dizer que o conceito “flor”, embora de aplicação maislata do que a palavra “rosa”, seja para a criança mais geral. Nãoinclui nem subordina a si a palavra “rosa” — os dois conceitossão inter­permutáveis e justapostos. Quando “flor” se generaliza,a relação entre “flor” e “rosa”, assim como entre flor e outrosconceitos subordinados, também se transforma no cérebro dacriança. Um sistema vai ganhando forma.

Nos conceitos científicos que a criança adquire na escola, arelação entre esse conceitos e cada objeto é logo de iníciomediada por outro conceito. Assim, a própria noção de conceitocientífico implica uma certa posição relativamente aos outrosconceitos, isto é, um lugar num sistema de conceitos.Defendemos que os rudimentos da sistematização começam porentrar no espírito da criança através do contato que estaestabelece com os conceitos científicos, sendo depois transferidos

para os conceitos quotidianos, alterando toda a sua estruturapsicológica de cima até baixo.

III

A inter­relação entre os conceitos científicos e os conceitosespontâneos é um caso especial de um assunto muito maisvasto: a relação entre a instrução escolar e o desenvolvimentomental da criança. Têm sido avançadas muitas teorias relativas aesta relação e tal problema é ainda hoje uma das principaispreocupações da Psicologia soviética. Passaremos em revista astrês tentativas para resolver a questão, de forma a situarmos onosso estudo no contexto mais geral.

A primeira teoria, que ainda hoje é a defendida por maiornúmero de pessoas, considera que a instrução e odesenvolvimento são mutuamente interdependentes, encarandoo desenvolvimento como um processo de maturação sujeito acertas leis naturais, e a instrução como a utilização dasoportunidades criadas pelo desenvolvimento. Um dos aspectosmais típicos desta escola de pensamento consiste nas tentativasque levou a cabo para separar cuidadosamente os produtos dodesenvolvimento dos da instrução, pressupondo que assimpoderia isolá­los na sua forma pura. Nenhum investigador oconseguiu até hoje. Geralmente atribuem­se as culpas destesfracassos à inadequação dos métodos, compensando­se osmesmos fracassos com um redobrar das análises especulativas.Estes esforços para dividir o equipamento intelectual dascrianças em duas categorias podem ir a par com a noção de queo desenvolvimento pode seguir o seu curso normal e atingir umnível elevado sem o concurso da instrução — e que até ascrianças que nunca foram à escola podem desenvolver as formasde pensamento mais elevadas acessíveis aos seres humanos. Noentanto, o mais freqüente é modificar­se esta teoria de forma aentrar em linha de conta com uma relação que obviamente existeentre o desenvolvimento e a instrução: o primeiro cria aspersonalidades: a segunda, realiza­as. Encara­se a instruçãocomo uma espécie de superestrutura erigida por sobre amaturação; ou para mudarmos de metáfora, estabelece entre odesenvolvimento e a instrução uma relação semelhante à queexiste entre o consumo e a produção. Temos assim uma relaçãounilateral: a aprendizagem depende do desenvolvimento, mas ocurso do desenvolvimento não é afetado pela aprendizagem quese aprende.

Esta teoria repousa sobre a observação muito simples,segundo a qual qualquer instrução exige um certo grau de

maturidade de algumas funções: não se pode da maneiranenhuma ensinar uma criança de um ano a ler ou uma criançade três anos a escrever. Com isto reduz­se a análise daaprendizagem a determinar o nível de desenvolvimento quevárias funções terão que atingir para que a instrução se tornepossível. Quando a partir do momento em que a memória dacriança progrediu o suficiente para lhe permitir memorizar oalfabeto, a partir do momento em que a sua atenção pode fixar­se numa tarefa aborrecida, a partir do momento em que o seuespírito atingiu uma maturidade suficiente, a ponto de poderapreender a conexão existente entre o signo e o som — então,pode começar­se a ensinar a criança a escrever. Segundo estavariante da teoria a instrução arrasta­se a reboque dodesenvolvimento. O desenvolvimento tem que cumprirdeterminados ciclos antes da instrução poder começar.

A verdade desta última afirmação é evidente; existe de fatoum nível mínimo que é indispensável. No entanto, estaconcepção unilateral tem como resultado uma série deconcepções erradas. Suponhamos que a memória, a atenção e opensamento da criança se desenvolveram a ponto de esta podercomeçar a aprender a escrita e a aritmética; será que o estudo daescrita e da aritmética provocará alguma transformação, algumefeito, sobre sua memória, a sua atenção ou o seu pensamento?A resposta da psicologia tradicional é a seguinte: sim, na medidaem que a criança exercita estas funções; mas o processo dedesenvolvimento enquanto tal não se altera; nada de novo sepassa no desenvolvimento mental da criança; aprendeu a ler —nada mais. Esta concepção, característica da velha teoriapedagógica também impregna ligeiramente os escritos de Piaget,que acredita que o pensamento da criança atravessa certas fasese estádios, independentemente da instrução que tenha, recebido;a instrução continua a ser um fator estranho. A bitola por que sedeve medir o grau de desenvolvimento da criança não é o queaprendeu pela instrução mas a maneira como pensa sobreassuntos acerca dos quais nunca recebeu nenhum ensinamento.Aqui a separação — ou melhor, a oposição ­­ entre a instrução eo desenvolvimento é levada até ao extremo.

A segunda teoria relativa ao desenvolvimento e à instruçãoidentifica os dois processos e foi W. James quem primeiro aexpôs. Baseia ambos os processos na associação e na formaçãode hábitos, tornando assim a instrução sinônimo dodesenvolvimento. Esta concepção ressurge um pouco nopresente momento, sendo Thorndike o seu principal promotor. Areflexologia, que traduziu o associacionismo para a linguagem da

psicologia, vê o desenvolvimento intelectual da criança comouma acumulação gradual de reflexos condicionados; aaprendizagem é vista precisamente da mesma forma. Como ainstrução e o desenvolvimento são idênticos não se levantasequer a questão da relação existente entre ambos.

A terceira escola de pensamento, representada pela teoriagestaltista, tenta reconciliar as duas anteriores teorias embora,evitando as suas fraquezas. Embora este ecletismo tenha comoresultado uma abordagem algo inconsistente, consegue com istouma certa síntese entre os dois pontos de vista opostos. Koffkaafirma que todo o desenvolvimento tem dois aspectos, amaturação e a aprendizagem. Embora isto signifique que seaceitam, numa forma menos extrema, ambos os pontos de vista,a nova teoria representa um avanço sobre as duas outras, sobtrês pontos de vista.

Em primeiro lugar, Koffka admite uma certainterdependência entre os dois aspectos do desenvolvimento.Com base numa certa quantidade de fatos, demonstra que amaturação de um órgão depende do seu funcionamento, que semelhora através da aprendizagem e da prática. A maturação, porseu turno, proporciona novas oportunidades para aaprendizagem. Mas Koffka limita­se a postular umainfluenciação mútua sem a examinar pormenorizadamente. Emsegundo lugar, esta teoria introduz uma nova concepção dopróprio processo educacional como formação de novasestruturas e aperfeiçoamento das antigas. Dessa forma, concede­se à instrução um papel estrutural significativo. A característicafundamental de todas as estruturas é a sua independênciarelativamente à sua substância original — pode ser transferidapara outros meios. Uma vez que a criança tenha formadodeterminada estrutura, ou aprendido determinada operação,será capaz de a aplicar a outros meios. Demos­lhe um tostão deinstrução e ela ganhou um milhão. O terceiro ponto em que estateoria se mede vantajosamente com as anteriores é a suaconcepção da relação temporal entre a instrução e odesenvolvimento. Como a instrução já transmitida emdeterminada área pode transformar e reorganizar as outras áreasdo pensamento da criança, pode não se limitar a seguir amaturação ou acompanhar o seu passo, pode também precedê­lae acelerar o seu progresso. O admitir­se que seqüênciastemporais diferentes são igualmente possíveis e importantes éuma contribuição da teoria eclética que não devemossubestimar.

Esta teoria coloca­nos perante uma velha questão que

reaparece sob um aspecto diferente: a quase esquecida teoria dadisciplina formal, habitualmente associada com Herbart. Estateoria defendia que a aprendizagem de certas matériasdesenvolve as faculdades mentais em geral, para além detransmitir o conhecimento do assunto estudado e asqualificações específicas desse assunto. Na prática, esta teorialevou às formas mais reacionárias de pedagogia, como os “liceusclássicos” alemães e russos, que davam especial e desmesuradorealce ao Latim e ao Grego como fontes de “disciplina formal”. Osistema acabou por ser abandonado porque não satisfazia osobjetivos práticos da educação burguesa moderna. Dentro dapsicologia propriamente dita, Thorndike levou a cabo uma sériede investigações, esforçando­se por desacreditar a disciplinaformal e por provar que a instrução não exercia nenhum efeitoapreciável sobre o desenvolvimento. A sua crítica é convincentequando se aplica aos ridículos exageros da doutrina da disciplinaformal, mas não afeta o seu núcleo válido.

No seu afã para demonstrar o caráter errôneo daconcepção de Herbart, Thorndike executou experiências com asfunções mais especializadas, mais limitadas e mais elementares.Do ponto de vista de uma teoria que reduz todo o conhecimentoà formação de conexões associativas, a escolha da atividadepouca importância teria. Em algumas experiências treinou aspessoas sujeitas à observação a estabelecerem a diferença entreo comprimento relativo de linhas, tentando determinar depois sea prática adquirida tinha melhorado a sua capacidade paradistinguirem as dimensões de diferentes ângulos. Como énatural, verificou que tal não tinha acontecido. A influência dainstrução sobre o desenvolvimento tinha sido postulada pelateoria da disciplina formal, mas apenas relativamente a matériascomo a matemática ou o ensino das línguas, que mobilizamvastos complexos de funções psíquicas. A capacidade paraavaliar o comprimento de algumas linhas pode não afetar acapacidade para distinguir entre ângulos diferentes, mas tal nãoquer dizer que o estudo da língua materna — com o conseqüenteaperfeiçoamento dos conceitos — deixe de ter qualquer efeitosobre o estudo da aritmética. A obra de Thorndike apenas fazsurgir como possível a existência de dois tipos de instrução: oadestramento numa qualquer qualificação especializada, comopor exemplo, a datilografia, que mobiliza a formação de hábitos eexige uma certa prática, que é a instrução mais freqüente nasescolas profissionais para adultos, e o tipo de instrução dada àscrianças, que ativa vastas áreas da consciência. A idéia dadisciplina formal pode ter pouco a ver com o primeiro tipo deinstrução, mas pode verificar­se válida para o segundo tipo. Salta

à evidência que no processo superior que surge no decurso dodesenvolvimento cultural da criança, a disciplina formal devedesempenhar um papel que não desempenha nos processos maiselementares: todas as funções mais elevadas têm em comum aconsciência, o controle e a abstração. Em consonância com asconcepções teóricas de Thorndike, as diferenças qualitativasentre as funções mais elevadas e as funções mais elementaressão ignoradas nos seus estudos sobre a transferência dainstrução.

Para formularmos a nossa proposta de teoria sobre arelação entre a instrução e o desenvolvimento, partimos dequatro séries de investigações, (2) que tinham por propósitocomum pôr a nu estas inter­relações complexas em certas áreasde instrução escolar: escrita e leitura, gramática, aritmética,ciências naturais e ciências sociais. Os inquéritos específicos quelevamos a cabo incidiam sobre tópicos como o domínio dosistema decimal em função do desenvolvimento do conceito denúmero; a consciência da criança relativamente às operaçõesque executa ao resolver problemas matemáticos; os processos deinterpretação e resolução dos problemas, utilizados pelosdetentores do primeiro grau de ensino. Veio a lume muitomaterial interessante sobre o desenvolvimento da linguagemescrita e falada durante a idade escolar, sobre os níveis decompreensão do significado figurado, daquele desenvolvimentodecorrentes, sobre a influência do domínio das estruturasgramaticais na evolução do desenvolvimento mental, sobre acompreensão das relações no estudo das ciências sociais enaturais. As investigações centravam­se sobre a nível dematuridade atingido pelas funções psíquicas no começo daescolaridade e a influência da escolaridade sobre o seudesenvolvimento; sobre a seqüência temporal da instrução e dodesenvolvimento; sobre as funções das várias matérias de ensinono âmbito da disciplina formal.

1.Na nossa primeira série de estudos, examinamos o nívelde desenvolvimento das funções psíquicas necessárias para aaprendizagem das matérias escolares básicas — leitura e escrita,aritmética, ciências naturais. Descobrimos que não se poderiaconsiderar que estas funções se encontrassem maduras noprincípio da instrução, mesmo para o caso das crianças que semostraram capazes de dominar o currículo muito rapidamente, ecom muito bons resultados. A linguagem escrita é um bomexemplo. Por que razão a escrita é tão difícil para os jovensestudantes que em certos períodos há um desfasamento de seisou oito anos entre as suas “idades lingüísticas” escrita e falada?

Habitualmente, explicava­se isto pela novidade da escrita: comonova função, esta tem que repetir os estádios de desenvolvimentoda fala; por conseguinte, a escrita de uma criança com oito anosde idade deve assemelhar­se à fala de um bebê de dois anos.Este último utiliza poucas palavras e uma sintaxe muito simples,porque o seu vocabulário é reduzido e não possui qualquerconhecimento das estruturas das frases mais complexas; mas acriança em idade escolar possui as formas gramaticais e lexicaisnecessárias à escrita, visto que são iguais às que se utilizam nalinguagem falada. As dificuldades de dominar a mecânica daescrita não podem também explicar o tremendo abismo existenteentre a linguagem oral e a linguagem escrita da criança em idadeescolar. A nossa investigação mostrou que o desenvolvimento daescrita não repete a história do desenvolvimento da fala. Alinguagem escrita é uma função lingüística distinta, que difereda linguagem oral tanto pela sua estrutura como pela suafunção. Até os seus estádios mais elementares dedesenvolvimento exigem um alto nível de abstração. É umalinguagem feita apenas de pensamento e imagem, faltando­lhe asqualidades musicais, expressivas e de entoação característicasda linguagem oral. Ao aprender a escrever, a criança tem que selibertar do aspecto sensorial da linguagem e substituir aspalavras por imagens de palavras. Uma linguagem que épuramente imaginativa e que exige a simbolização da imagemsonora por meio dos signos escritos (isto é, um segundo grau desimbolização) terá que ser mais difícil para a criança do que alinguagem oral, tal como a álgebra é mais difícil do que aaritmética. Os nossos estudos mostram que é a qualidadeabstrata da linguagem escrita que constitui o obstáculo maisimportante e não o subdesenvolvimento dos pequenos músculosou quaisquer outros obstáculos mecânicos.

A escrita é também um discurso sem interlocutor, dirigidoa uma pessoa ausente ou imaginária ou a ninguém em particular— situação esta que, para a criança, é nova e estranha. Osnossos estudos mostram que, no início do ensino, as motivaçõesda criança para aprender a escrever são muito fracas. A criançanão sente qualquer necessidade disso e só tem uma vaga idéiada sua utilidade. Na conversação, todas as frases são impelidaspor um motivo: o desejo ou a necessidade conduzem os pedidos,as perguntas arrastam consigo as respostas, o espanto leva àexplicação. Os móbeis mutáveis variáveis dos interlocutoresdeterminam em cada momento a elocução, o curso da linguagemoral. Esta não precisa de ser conscientemente orientada — asituação dinâmica encarrega­se disso. Os motivos para escreversão mais abstratos, mais intelectualizados, encontram­se mais

afastados das necessidades imediatas. No discurso escrito,somos obrigados a recriar a situação, a representá­la paraconosco. Isto exige um certo distanciamento face à situação real.

A ação de escrever exige também da parte da criança umaação de análise deliberada. Quando fala, a criança tem umaconsciência muito imperfeita dos sons que pronuncia e não temqualquer consciência das operações mentais que executa.Quando escreve, tem que tomar consciência da estrutura sonorade cada palavra, tem que dissecá­la e reproduzi­la em símbolosalfabéticos que têm que ser memorizados e estudados deantemão. Da mesma forma deliberada, tem que dar às palavrasuma certa seqüência para formar uma frase. A linguagem escritaexige um trabalho consciente, porque a relação que mantém como discurso interior é diferente da linguagem falada: esta últimaprecede o curso de desenvolvimento, ao passo que a linguagemescrita aparece depois do discurso interior e pressupõe a suaexistência (o ato de escrever implica uma tradução a partir dodiscurso interior). Mas a gramática do pensamento não é igualem ambos os casos. Poderíamos até dizer que a sintaxe dodiscurso interior é o exato contrário da sintaxe da palavraescrita, constituindo a linguagem falada um caso intermédio.

O discurso interior é uma linguagem completamentedesabrochada em toda a sua dimensão, é uma linguagem maiscompleta do que a falada. O discurso interior é quasecompletamente predicativo porque a situação, o assuntopensado, é sempre conhecido de quem pensa. A linguagemescrita, pelo contrário tem que explicar completamente asituação para ser inteligível. A transformação do discursointerior, condensado ao máximo, em linguagem escrita,pormenorizada ao máximo, exige o que poderíamos designar porsemântica deliberada — estruturação deliberada do fluir dosignificado.

Todos estes traços da linguagem escrita explicam por querazão o seu desenvolvimento na criança em idade escolar seguemuito atrasado em relação ao da linguagem oral. A discrepânciaé causada pela proficiência da criança nas atividadesespontâneas, inconscientes e na sua falta de qualidades para aatividade abstrata, deliberada. Como os nossos estudosmostraram, as funções psicológicas sobre que se baseia alinguagem escrita ainda não se começaram a desenvolver quandoo ensino da escrita se inicia e este tem que se erguer sobre osalicerces de processos rudimentares que mal estão começando asurgir por essa altura.

Resultados semelhantes se obtêm nos domínios daaritmética, da gramática e das ciências naturais. Em todos estescasos, as funções necessárias para a aprendizagem nunca seencontram maduras quando o ensino começa. Analisaremosbrevemente o caso da gramática, que apresenta algumascaracterísticas especiais.

A gramática é uma matéria que parece não ter grandeutilidade prática. Ao contrário de outras matérias escolares, nãodá à criança qualificações que não possuísse já. A criança jáconjuga e declina quando entra para a escola e até houve quemafirmasse que o ensino da gramática podia ser dispensado. A istosó podemos retorquir que a nossa análise mostrou com toda aclareza que o estudo da gramática é de primeiríssimaimportância para o desenvolvimento mental da criança

É certo que, muito antes de entrar na escola, a criançapossui já um certo domínio da gramática da sua língua materna,mas trata­se de um domínio inconsciente adquirido duma formapuramente estrutural, tal como se adquire a composição fonéticadas palavras. Se pedirmos a uma criança de tenra idade queproduza uma combinação de sons, por exemplo, sc, veremos quelhe é muito difícil articulá­las deliberadamente; no entanto, noseio de uma estrutura, como na palavra Moscovo, a criançapronunciará os mesmos sons facilmente. O mesmo se passa coma gramática. A criança utilizará o caso ou o tempo do verbocorretamente numa frase, mas não será capaz de declinar ouconjugar uma palavra a nosso pedido. Pode não adquirir novasformas gramaticais ou sintáticas na escola, mas, graças aoensino da gramática e da escrita, pode ganhar consciência doque faz para utilizar conscientemente as suas qualificações. Talcomo, ao aprender a escrever a palavra Moscovo aprende queesta palavra é composta pelos sons m­o­s­c­o­v­o e aprende apronunciar cada um desses sons separadamente, tambémaprende a construir frases, a fazer conscientemente o que faziainconscientemente ao falar. A gramática e a escrita ajudam acriança a elevar­se a um nível mais elevado de desenvolvimentolingüístico.

Assim. a nossa investigação mostra que o desenvolvimentodos alicerces psicológicos necessários para o ensino das matériasde base não precede esse ensino, mas desabrocha numacontínua interação com os contributos do ensino.

2. A nossa segunda série de investigações centrou­se sobreas relações temporais entre os processos de ensino e odesenvolvimento das funções psicológicas que lhes

correspondem. Descobrimos que o ensino geralmente precede odesenvolvimento. A criança adquire certos hábitos e qualificaçõesnum dado domínio antes de aprender a aplicá­los consciente edeliberadamente. Nunca há um paralelismo completo entre ocurso do ensino e o desenvolvimento das correspondentesfunções.

O ensino tem a sua própria seqüência e a sua própriaorganização, segue um currículo e um horário e não se podeesperar que as suas leis coincidam com as leis internas dosprocessos de desenvolvimento que solicita e mobiliza. Com basenos estudos que levamos a cabo, tentamos traçar curvas querepresentassem a evolução do ensino e das funções psicológicasque nele participavam; estas curvas não eram coincidentes,muito pelo contrário, evidenciavam uma relação complexa a maisnão poder ser.

Por exemplo, os diferentes passos dados na aprendizagemda aritmética podem não ter igual valor para o desenvolvimentomental. Acontece muitas vezes que três ou quatro estádiospercorridos no ensino desta matéria pouco acrescentam aoconhecimento que a criança tenha da aritmética e que, com oquinto passo, haja como que uma revelação: a criançacompreendeu um princípio geral e a sua curva dedesenvolvimento sofre uma súbita e marcada subida. Para estacriança particular, o quinto passo foi decisivo, mas tal não podetomar­se como regra geral. O currículo não pode determinar comantecedência o ponto de viragem em que um princípio geral setorna claro para determinada criança. Não se ensina à criança osistema decimal em si, ensina­se­lhe a escrever números, asomar e a multiplicar, a resolver problemas e de tudo istoacabam por emergir alguns dos conceitos gerais do sistemadecimal.

Quando a criança aprende uma operação aritmética ou umconceito científico, o desenvolvimento dessa operação ou doconceito está apenas no início. O nosso estudo mostra que acurva de desenvolvimento não coincide com a curva do ensinoescolar; o ensino precede de muito o desenvolvimento.

3. A nossa terceira série de investigações assemelha­se aosestudos que Thorndike levou a cabo sobre a transferência doadestramento, exceto num aspecto: fizemos incidir as nossasexperiências não sobre as funções mais elementares, mas sobrematérias de ensino escolar e sobre as funções superiores, querdizer sobre as matérias e funções de que se poderia esperar quetivessem relações significativas entre si.

Descobrimos que o desenvolvimento intelectual, muito aoinvés de seguir o modelo atomista de Thorndike, não se encontracompartimentado segundo os temas do ensino. A sua evolução émuito mais unitária, e as diferentes matérias escolaresinfluenciam­se mutuamente ao impulsionarem o seudesenvolvimento. Embora o processo de ensino siga a suaprópria ordem lógica, desperta e orienta no cérebro da criançaum sistema de processos que se encontra oculto à observaçãodireta e que segue as suas próprias leis de desenvolvimento. Adetecção destes processos de desenvolvimento estimulados pelainstrução é uma das tarefas fundamentais do estudo psicológicoda aprendizagem.

Especificamente, as nossas experiências puseram emevidência os seguintes fatos inter­relacionados: as condiçõesprévias do ensino para diferentes matérias escolares sãoessencialmente semelhantes; o ensino de uma determinadamatéria influencia o desenvolvimento das funções superiorespara além dos confins dessa matéria específica; as principaisfunções psíquicas mobilizadas pelo estudo de várias matérias sãointerdependentes — as suas bases comuns são constituídas pelaconsciência e pelo domínio deliberado da matéria, os principaiscontributos dos primeiros tempos de escola. Destas descobertassegue­se que todas as matérias escolares fundamentais atuamcomo uma disciplina formal, facilitando cada uma delas aaprendizagem das outras; as funções psicológicas por elasestimuladas desenvolvem­se num único processo complexo.

4. Na quarta série de estudos, atacamos um problema aque não se prestou a devida atenção no passado, mas queconsideramos ser de importância fulcral para o estudo do ensinoe do desenvolvimento.

A maior parte das investigações psicológicas relativas àaprendizagem escolar mediam o nível de desenvolvimento mentalda criança propondo­lhe a resolução de certos problemasestandardizados. Presumia­se que a quantidade de problemasque fosse capaz de resolver sozinha indicaria o nível do seudesenvolvimento mental nesse momento particular. Mas destamaneira, só se pode medir a parte do desenvolvimento da criançaque se encontra acabada, e esta é bem reduzida percentagem doacervo total. Tentamos abordar o assunto de diferente modo.Tendo determinado que a idade mental de duas crianças era deoito anos, digamos, demos a cada uma delas problemas maisdifíceis do que os que conseguiriam resolver por si sós, dando­lhes leve ajuda: o primeiro passo da solução, ou outra qualquerforma de ajuda. Descobrimos que, em cooperação, uma das

crianças podia conseguir resolver problemas concebidos paracrianças de doze anos, enquanto a outra não conseguia ir alémdos problemas pensados para crianças de nove anos. Adiscrepância entre a idade mental real de uma criança e o nívelque atinge quando resolve problemas com auxílio indica a zonado seu desenvolvimento próximo: no nosso exemplo, esta zonaera de quatro para a primeira criança e de um para a segunda.Podemos dizer realmente que o seu desenvolvimento é o mesmo?A experiência ensinou­nos que a criança com a zona maisextensa de desenvolvimento próximo terá melhor aproveitamentona escola. Esta medida dá­nos uma indicação acerca dadinâmica da evolução intelectual mais útil do que a idademental.

Hoje em dia, os psicólogos compartilham da convicção doleigo, segundo a qual a imitação é uma atividade mecânica e quequalquer pessoa pode imitar praticamente tudo o que quiser selhe mostrarem como. Para imitar, é preciso dominar os meiosnecessários para avançar de algo que conhecemos para algo quedesconhecemos. Com o auxílio externo, todas as crianças podemfazer mais do que o que conseguiriam por si sós — emboraapenas dentro dos limites impostos pelo seu grau dedesenvolvimento. Koehler descobriu que um chimpanzé sóconsegue imitar os atos inteligentes de outros macacos que estáem condições de eventualmente executar por si. É certo que oadestramento persistente pode induzi­lo a executar ações muitomais complicadas, mas estas são executadas de uma formamecânica e trazem todas as marcas dos hábitos sem sentido,mais do que das intuições percucientes. Até o mais esperto dosanimais é incapaz de se desenvolver intelectualmente através daimitação. Pode ser treinado, aperfeiçoado, a praticar certos atosespecíficos, mas os novos hábitos não produzem novascapacidades gerais. Neste sentido, pode dizer­se que é impossívelensinar os animais.

No desenvolvimento das crianças, pelo contrário, aimitação e o ensino desempenham um papel de primeiraimportância. Põem em evidência as qualidades especificamentehumanas do cérebro e conduzem a criança a atingir novos níveisde desenvolvimento. A imitação é indispensável para se aprendera falar, assim como para se aprender as matérias escolares. Acriança fará amanhã sozinha aquilo que hoje é capaz de fazer emcooperação. Por conseguinte, o único tipo correto de pedagogia éaquele que segue em avanço relativamente ao desenvolvimento eo guia; deve ter por objetivo não as funções maduras, mas asfunções em vias de maturação. Continua a ser necessário

determinar o limiar mínimo a que deve começar, digamos, aeducação aritmética, pois que é necessária uma maturidademínima das funções; mas temos que entrar em linha de contacom o limiar superior: a instrução deve estar voltada para ofuturo e não para o passado.

Durante um certo período as nossas escolas favoreceram osistema “complexo” de instrução que se julgava encontrar­seadaptado à maneira de pensar das crianças. Ao pôr as criançasperante problemas que estas conseguiam resolver sem ajuda,este método não conseguia utilizar a zona de desenvolvimentopróximo e dirigir a criança no sentido do que ainda nãoconseguia levar a cabo. A educação seria orientada mais para asfraquezas da criança do que para os seus pontos fortes,encorajando­a assim a permanecer no estádio dedesenvolvimento pré­escolar.

Para cada matéria de ensino há um período em que a suainfluência é mais proveitosa, porque a criança se encontra maisreceptiva. Montessori e outros educadores chamaram­lhe operíodo sensitivo, termo que é usado também em biologia para osperíodos de desenvolvimento ontogênico em que o organismo éparticularmente sensível a determinado tipo de influências.Durante esse período, uma influência que antes ou depois poucoefeito teria pode alterar radicalmente a evolução dodesenvolvimento. Mas a existência de um tempo ótimo para oensino de determinado assunto não pode ser explicada emtermos puramente biológicos, pelo menos no que toca aprocessos tão complexos como a linguagem escrita. As nossasinvestigações demonstraram a natureza social e cultural dodesenvolvimento das funções superiores durante este período,isto é, a sua dependência relativamente à cooperação com osadultos e ao ensino que estes ministram. Os dados deMontessori não perderam contudo a relevância. Ela descobriupor exemplo que se se ensinar uma criança a escrever muitocedo, quando chega aos quatro e meio ou cinco anos, a respostadela é “uma explosão de escrita”, uma abundante e imaginativautilização da linguagem falada que não é nunca igualada porcrianças de idade superior. Eis um exemplo flagrante da forteinfluência que a instrução pode ter quando as correspondentesfunções ainda não amadureceram completamente. A existênciade períodos sensitivos para todas as matérias de ensino éperfeitamente escorada pelos dados que obtivemos nos nossosestudos. O período de escolaridade como um todo é o períodoótimo para o ensino de operações que exigem consciência econtrole deliberado; o ensino destas operações impulsiona ao

máximo o desenvolvimento das funções psicológicas superioresna altura da sua maturação. Isto aplica­se também aodesenvolvimento dos conceitos científicos a que a escola primáriaintroduz as crianças.

IV

Sob a nossa orientação, Zh.I. Shif conduziu umainvestigação sobre o desenvolvimento dos conceitos quotidianos ecientíficos durante a idade escolar (37). O seu principal propósitoera o de testar experimentalmente as nossas hipóteses detrabalho sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos emcomparação com os conceitos quotidianos. Apresentavam­se àcriança problemas estruturalmente semelhantes incidindo quersobre material científico, quer sobre material “ordinário”,comparando­se as soluções. As experiências iam desde aefabulação de histórias a partir de uma série de gravuras quemostravam o início de uma ação, a sua continuação e o seutermo até ao completar de fragmentos de frases terminadas porporque ou embora; estes textos eram complementados poranálises clínicas. O material de uma série de testes foi retiradode cursos sociais do segundo e do quarto graus. A segunda sérieutilizava situações simples da vida do dia a dia, tais como: “orapaz foi ao cinema, porque...”, “a menina ainda não sabe ler,embora...”, “Ele caiu da bicicleta, porque...”. Utilizaram­semétodos suplementares de estudo, como por exemplo: testou­sea extensão dos conhecimentos das crianças durante algumaslições especialmente organizadas para o efeito. As crianças queestudamos eram alunas da escola primária.

As análises dos dados, que foram comparados emseparado para os diferentes grupos etários, mostraram que, namedida em que o currículo fornece o material necessário, odesenvolvimento dos conceitos científicos precede odesenvolvimento dos conceitos espontâneos.

Quantidade de fragmentos de frase corretamentecompletados

SEGUNDO GRAU QUARTO GRAU*

Fragmentos terminados em “porque” conceitos científicos 79,7% 81,8%conceitos quotidianos 59,0% 81,3%Fragmentos terminados em “embora” conceitos científicos 81,3% 79,5%

conceitos quotidianos 16,2% 65,5%

(*) No sistema escolar russo, as crianças do segundo e do quartograus terão, em média, oito a dez anos de idade.

Como poderemos explicar que a freqüência de resoluçõescorretas seja maior para os problemas que envolvem conceitoscientíficos do que para os problemas que envolvem conceitos davida quotidiana? Podemos de imediato pôr de parte a noção deque a criança é auxiliada pela informação que recebe na escola,faltando­lhe experiência nas coisas do dia a dia. Os nossostestas, tal como os de Piaget, incidiam sobre assuntos e relaçõesque eram familiares às crianças e que estas mencionavamespontaneamente nas suas conversas. Ninguém pode admitirque uma criança saiba menos de bicicletas, de crianças, ou deescolas do que da luta de classes, da exploração ou da Comunade Paris. A vantagem da familiaridade pesa totalmente a favordos conceitos quotidianos.

A criança deve achar difícil resolver problemas da vidaquotidiana porque carece de consciência destes conceitos eportanto não pode operar com eles da forma que é exigida pelatarefa. Uma criança de oito ou nove anos utiliza corretamente apalavra “porque” numa conversa espontânea; nunca diria queum menino caiu da bicicleta e partiu a perna porque foi levadopara o hospital. No entanto, é com este tipo de afirmações queage até que o conceito de “porque” se torne completamenteconsciente. Por outro lado, completa corretamente frases sobreassuntos de ciências sociais, como “A economia planificada épossível na URSS porque não há propriedade privada — todas asfábricas, terras e oficinas pertencem aos operários ecamponeses”. Por que razão é a criança capaz de executar aoperação neste caso? porque o professor, trabalhando com oaluno, forneceu a informação, fez perguntas, corrigiu e obrigou acriança a explicar. Os conceitos da criança foram formados peloprocesso da aprendizagem, em colaboração com um adulto. Aocompletar a frase, ela faz uso dos frutos dessa colaboração, destavez independentemente. A ajuda do adulto, invisivelmentepresente, permite à criança resolver esses problemas mais cedodo que os problemas da vida quotidiana.

No mesmo grupo etário (segundo grau), as frases comembora patenteiam um quadro diferente: os conceitos científicosnão se encontram mais avançados do que os conceitos da vidaquotidiana. Sabemos que as relações adversativas aparecemmais tarde do que as relações causais no pensamento infantilespontâneo. Uma criança dessa idade pode aprender a utilizarconscientemente a palavra “porque”, pois nessa altura já dominao seu emprego espontâneo. Como não domina ainda igualmente

a palavra “embora”, não pode, como é natural, utilizá­ladeliberadamente no seu pensamento “científico”; porconseguinte, a percentagem de respostas certas é igualmentebaixa para ambas as séries de testes.

Os nossos dados mostram um rápido progresso na soluçãodos problemas da vida quotidiana: no quarto grau os fragmentoscom “porque” são corretamente completados com igualfreqüência para os conceitos quotidianos e os conceitoscientíficos. Isto confirma a nossa hipótese de que um nível maiselevado no domínio dos conceitos científicos também eleva onível dos conceitos quotidianos espontâneos. Uma vez atingidosa consciência e o controle em determinado tipo de conceitos,todos os conceitos previamente formados são reconstruídos emconformidade com essa consciência e esse controle.

A relação entre os conceitos científicos e os conceitosquotidianos espontâneos na categoria adversativa apresenta, noquarto grau, um aspecto bastante semelhante ao da categoriacausal no segundo grau. A percentagem de soluções corretaspara tarefas que mobilizam os conceitos científicos ultrapassa apercentagem dos que mobilizam os conceitos espontâneos. Se adinâmica é a mesma para ambas as categorias, será de esperarque os conceitos quotidianos se desenvolvam rapidamente noestádio seguinte do desenvolvimento, acabando por apanhar osconceitos científicos. Começando dois anos mais tarde, todo oprocesso de desenvolvimento de “embora” duplicaria a velocidadedo de “porque”.

Pensamos que os nossos dados confirmam a hipótesesegundo a qual desde o princípio os conceitos científicos eespontâneos da criança — por exemplo, os conceitos de“exploração” e de “irmão” — se desenvolvem em sentidosinversos: partindo de pontos muito afastados movem­se emdireção um ao outro. Este ponto é o fulcro da nossa hipótese.

A criança ganha consciência dos seus conceitosespontâneos relativamente tarde; a capacidade para os definirpor meio de palavras, para operar com eles conforme queira,aparece muito depois de ter adquirido os conceitos. Ela possui oconceito (isto é, conhece o objeto a que o conceito se refere), masnão tem consciência do seu ato de pensamento. No seudesenvolvimento, o conceito científico, em contrapartida, começausualmente pela sua definição verbal sendo logo de inícioutilizado em operações não espontâneas — quer dizer, logo deinício se começa a operar com o próprio conceito, que começa asua vida no cérebro da criança a um nível que os conceitos

espontâneos só atingem mais tarde.

Um conceito infantil do dia a dia, como, por exemplo,“irmão”, está impregnado de experiência concreta. No entanto,quando se lhe pede para resolver um problema abstrato sobre oirmão de um irmão, como nas experiências de Piaget, porexemplo, a criança fica confusa. Por outro lado. embora possaresponder corretamente a questões sobre a “escravatura”, a“exploração” ou a “guerra civil” estes conceitos são esquemáticose carecem do rico conteúdo proveniente da experiência pessoal.São gradualmente preenchidos pelo trabalho escolar e pelasleituras posteriores. Dir­se­ia que o desenvolvimento dosconceitos espontâneos da criança se processa de baixo para cimae que o desenvolvimento dos conceitos científicos segue umatrajetória descendente, em direção a um nível mais elementar econcreto. Isto é conseqüência da diversidade de formas como osdois tipos de conceitos surgem. Se procurarmos a raiz de umconceito espontâneo veremos geralmente que este tem origemnuma situação de confronto com uma situação concreta, aopasso que os conceitos científicos implicam logo de início umaatitude “mediada” relativamente ao seu objeto.

Embora os conceitos científicos e espontâneos sedesenvolvam em direções inversas, os dois processos estãoestreitamente relacionados. Por exemplo, os conceitos históricospodem começar por desenvolver­se apenas quando o anteriorconceito quotidiano da criança se encontra suficientementediferenciado — quando a sua vida e a vida dos que a rodeiampode conformar­se à generalização elementar “no passado eagora”, os seus conceitos geográficos e sociológicos crescerãonecessariamente sobre o terreno do esquema simples “cá e lá”.Ao forçarem lentamente o seu caminho ascendente, os conceitosquotidianos abrem caminho para os conceitos científicos e o seudesenvolvimento descendente. Cria uma série de estruturasnecessárias para a evolução dos aspectos mais primitivos eelementares de um conceito, que lhe dão corpo e vitalidade. Osconceitos científicos, por seu turno, fornecem estruturas para odesenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos dacriança rumo à consciência e à utilização deliberada. Osconceitos científicos desenvolvem­se para baixo, através dosconceitos espontâneos; os conceitos espontâneos desenvolvem­separa cima, através dos conceitos científicos.

A influência dos conceitos científicos sobre odesenvolvimento mental da criança é análogo ao efeito resultanteda aprendizagem de uma língua estrangeira, processo que éconsciente e deliberado desde o início. Na língua materna de

cada qual, os aspectos mais primitivos da linguagem sãoadquiridos antes dos mais complexos. Estes últimos pressupõemuma certa consciência das formas fonéticas, sintáticas egramaticais, mas, com uma língua estrangeira, as formassuperiores desenvolvem­se antes do discurso espontâneo efluente. As teorias intelectualistas da linguagem, como, porexemplo, a de Stern, que põem toda a tônica na relação entre osigno e o significado já desde o início do desenvolvimentolingüístico, contêm um certo grau de verdade no caso daslínguas estrangeiras. Os pontos fortes da criança nas línguasestrangeiras são os pontos fracos na sua própria língua e vice­versa. Na sua própria linguagem, a criança conjuga e declinacorretamente mas sem perceber o que faz: não sabe dizer ogênero, o caso ou tempo da palavra que emprega. Numa línguaestrangeira, distingue entre os gêneros masculino e feminino etem consciência das formas gramaticais desde o principio.

Com a fonética dá­se o mesmo. Embora não dê erros depronúncia na sua língua materna, a criança não tem consciênciados sons que pronuncia e, quando aprende a soletrar, sentegrandes dificuldades para dividir uma palavra nos sons que acompõem. Numa língua estrangeira, fá­lo facilmente e a escritanão se atrasa relativamente à fala. Acha dificuldades napronúncia, na fonética “espontânea”. O discurso fluente eespontâneo, com um domínio rápido e seguro das estruturasgramaticais só lhe vem depois de longo e árduo estudo.

Os resultados obtidos na aprendizagem de uma línguaestrangeira estão dependentes de se ter ou não atingido um certograu de maturidade na língua materna. A criança pode transferirpara a nova língua o sistema de significados que já possuía nasua própria língua e o inverso também é verdade: uma línguaestrangeira facilita o domínio das formas superiores da línguamaterna. A criança aprende a ver a sua língua materna como umsistema particular entre muitos, aprende a considerar os seusfenômenos à luz de categorias mais vastas e isto conduz àconsciência das operações lingüisticas. Goeth disse com verdadeque “aquele que não conhece nenhuma língua estrangeira nãoconhece verdadeiramente a sua própria língua”.

Não é de surpreender que exista uma certa analogia entrea interação mútua da língua materna e da língua estrangeira e ainteração entre os conceitos científicos e os conceitos da vidacotidiana, na medida em que ambos os processos fazem parte daesfera do pensamento verbal em desenvolvimento. Há contudotambém diferenças essenciais entre eles. No estudo das línguasestrangeiras, a atenção fixa­se nos aspectos exteriores, sonoros,

físicos do pensamento verbal; no desenvolvimento dos conceitoscientíficos, a atenção fixa­se nos aspectos semânticos. Os doisprocessos de desenvolvimento seguem caminhos separados,embora semelhantes.

Não obstante, ambos os processos sugerem uma respostaúnica para o problema do modo como se formam os novossistemas, estruturalmente análogos aos mais primitivos: alinguagem falada, a escrita, as línguas estrangeiras, opensamento verbal, duma forma geral. Os fatos experimentaisresultantes dos nossos estudos infirmam a teoria datransferência, que afirma que o estádio primitivo mais avançadorepete a trajetória do estádio anterior, verificando­se inclusive arecorrência das dificuldades já superadas no plano inferior.Todas as nossas provas confirmam a hipótese de que sistemasanálogos se desenvolvem em sentidos inversos ao nível superior einferior, e que cada sistema influencia o outro e beneficia dospontos fortes do outro.

Podemos agora voltar­nos para a inter­relação dosconceitos num sistema — o ponto fulcral da nossa análise.

Os conceitos não se encontram depositados no cérebro dacriança como ervilhas num saco, sem qualquer relação que osuna. Se assim fosse, não seria possível nenhuma relaçãointelectual que exigisse uma coordenação de pensamentos, nemnenhuma concepção geral do mundo. Nem sequer poderiamexistir conceitos separados enquanto tais; a sua própria naturezapressupõe um sistema.

O estudo dos conceitos das crianças a cada nível etáriomostra que o grau de abstração de generalidade (planta, flor,rosa) é a variante psicológica fundamental a partir da qual osconceitos podem ser hierarquizados significativamente. Se todosos conceitos são generalizações, então a relação entre osconceitos é uma relação de generalidade. O aspecto lógico dessarelação foi estudado muito mais completamente do que os seusaspectos genético e psicológico. O nosso estudo tenta colmatareste desfasamento.

Comparamos os graus de generalidade dos conceitos reaisda criança com as fases e os estádios atingidos por esta naformação experimental dos conceitos: sincretismo, complexos,pré­conceitos e conceitos. Era nosso propósito descobrir seexistia uma relação definida entre a estrutura da generalizaçãotipificada por estas duas fases e o grau de generalização dosconceitos.

Conceitos com diferentes graus de generalidade podemsurgir numa mesma estrutura generalizativa. Por exemplo, asidéias de rosa e de flor podem encontrar­se simultaneamentepresentes no estádio do pensamento por complexos. Emconformidade com isso, podem aparecer conceitos de igual graude generalidade em estruturas com diferentes graus degeneralização; por exemplo, a palavra “flor” pode aplicar­se atodas as flores e a cada uma delas quer no estádio dopensamento por complexos, quer no estádio do pensamentoconceptual. Descobrimos porém que, apesar de não havercompleta correspondência, cada fase, ou cada estruturageneralizativa, tem como contrapartida um certo nível degeneralidade, uma relação específica entre os conceitos de ordemsuperior e de ordem inferior, uma combinação característica doconcreto e do abstrato. É verdade que o termo flor pode ser tãogeral ao nível do complexo como ao nível do conceito, masapenas no tocante aos objetos a que se refere. Neste caso, umgrau equivalente de generalidade não implica uma identidade detodos os processos psicológicos mobilizados pela aplicação dapalavra. Assim, no pensamento complexo a relação entre “flor” e“rosa” não é uma relação de subordinação hierárquica: oconceito mais lato e o conceito mais restrito coexistem no mesmoplano.

Nas nossas experiências, uma criança muda aprendeusem grandes dificuldades as palavras mesa, cadeira, escritório,divã, prateleiras, etc.. No entanto, verificou­se que a palavramobília era de apreensão demasiado difícil. A mesma criança,que aprendera com êxito as palavras camisa, chapéu, casaco,calças, etc., não conseguiu ultrapassar o nível desta série eaprender a palavra roupa. Verificamos que a um determinadonível de desenvolvimento a criança é incapaz de deslocar­se“verticalmente” do significado de uma palavra para o de outra,isto é, de compreender as suas relações de generalidade. Todosestes conceitos se encontram ao mesmo nível, todos eles sereferem diretamente a determinados objetos e são mutuamentedelimitados da mesma turma que os objetos são delimitados: opensamento verbal mais não é do que uma componente dopensamento sensorial, determinado pelos objetos. Porconseguinte, teremos que considerar este estádio como umestádio pouco desenvolvido e sincrético no desenvolvimento dosignificado das palavras. O surgimento do primeiro conceitogeneralizado, como, por exemplo, o conceito de “mobília” ou de“roupas” é um sintoma de progresso tão relevante como osurgimento da primeira palavra com sentido.

Os níveis superiores de desenvolvimento do significado daspalavras regem­se pela lei da equivalência dos conceitos,segundo a qual todo e qualquer conceito pode ser formulado emtermos de outros conceitos, de um número ilimitado demaneiras. Ilustraremos o esquema subjacente a esta lei por meiode uma analogia não tão rigorosa como seria idealmente dedesejar, mas que é bastante aproximada para o quepretendemos.

Se imaginarmos a totalidade dos conceitos distribuída pelasuperfície do globo, a localização de cada um deles pode serdefinida por meio de um sistema de coordenadas, quecorresponderiam à latitude e à longitude da geografia. Umadestas coordenadas indicará a localização de um conceito entreos extremos da conceptualização abstrata do maior grau degeneralização possível e a apreensão imediata sensorial de umobjeto — isto é, o seu grau de concreto e de abstração. Asegunda coordenada representará a referência objetiva doconceito, o ponto da realidade a que se aplica. Dois conceitos quese apliquem a diferentes áreas da realidade, mas que possuam omesmo grau de abstração — por exemplo, plantas e animais —poderia conceber­se que teriam diferentes latitudes, mas amesma longitude. A analogia geográfica falha em váriospormenores: por exemplo, os conceitos mais generalizadosaplicam­se a um conteúdo de área mais vasta, fato que deveriaser representado na latitude por uma linha e não por um ponto.Mas serve­nos para transmitir a idéia de que, paracaracterizarmos adequadamente um conceito teremos de ocolocar em dois domínios contínuos — um que representa oconteúdo objetivo e outro que representa os atos de pensamentoque apreendem o conteúdo. A interseção destes dois domíniosdetermina todas as relações entre o conceito dado e todos osoutros — os conceitos que se lhe encontram coordenados,subordinados ou que os subordinam. A esta posição de umconceito no sistema total dos conceitos poderemos chamar amedida da sua generalidade.

As múltiplas relações mútuas dos conceitos, sobre que sebaseia a lei da equivalência, são determinadas pelas respectivasmedidas de generalidade. Tomemos dois exemplos extremos: asprimeiras palavras infantis (pré­sincréticas), que carecem dequalquer grau de generalidade e os conceitos de númerosdesenvolvidos através dos estudos de aritmética. No primeirocaso, é óbvio que qualquer conceito só poderá exprimir­seatravés de si próprio e nunca através de outros conceitos. Nosegundo caso, qualquer número poderá ser expresso de

inúmeras maneiras, dado que existe uma infinidade de númerose que cada número contém em si as suas relações com todos osoutros. Por exemplo, podemos exprimir o número “um” comosendo “mil menos novecentos e noventa e nove” ou em geral,como sendo igual à diferença entre dois números consecutivos,ou como sendo igual a um número qualquer dividido por sipróprio e duma miriade de maneiras diferentes. Eis um exemplopuro de equivalência de conceitos Na medida em que aequivalência depende das relações de generalidade entre osconceitos e estas relações são específicas para cada estruturageneralizante, esta última determina a equivalência de conceitospossível na sua esfera.

A medida de generalidade determina não só a equivalênciade conceitos mas também todas as operações intelectuaispossíveis com dado conceito. Todas as operações intelectuais —comparações, juízos, conclusões — exigem um movimento noseio das coordenadas que delineamos. As transformaçõesgenéticas na estrutura de generalização provocam alteraçõestambém nestas operações. Por exemplo, à medida que seatingem os níveis mais elevados de generalidade e deequivalência dos conceitos, torna­se mais fácil recordarpensamentos independentemente das palavras usadas. Umacriança de tenra idade reproduzirá um significado exatamentenas mesmas palavras com que o recebeu. Uma criança em idadeescolar já pode reproduzir um significado relativamente complexopor palavras suas; assim, portanto, a sua liberdade intelectual jáé maior. Nas perturbações patológicas do pensamentoconceptual a medida de generalidade de um conceito encontra­sedistorcida, o equilíbrio entre o abstrato e o concreto encontra­sealterado e as relações com os outros conceitos torna­se instável.O ato mental pelo qual se apreende tanto o objeto como a relaçãoentre o objeto e o conceito perde a sua unidade e o pensamentocomeça a seguir trajetórias quebradas. caprichosas e ilógicas.

Um dos objetivos do nosso estudo dos conceitos reais dascrianças era o de encontrar índices da sua estrutura degeneralidade em que pudéssemos confiar, pois só por meiodesses índices os esquemas genéticos dados, gerados pelosnossos estudos experimentais dos conceitos artificiais, poderiamser aplicados com proveito aos conceitos infantis emdesenvolvimento.

Acabamos por achar esse índice na medida degeneralidade dos conceitos, que varia com os diferentes níveis dedesenvolvimento, desde as formações sincréticas até aosconceitos propriamente ditos. As análises dos conceitos reais das

crianças também nos ajudaram a determinar a forma como osconceitos diferem aos vários níveis nas suas relações com oobjeto e o significado das palavras e pelas operações intelectuaisque possibilitam.

Além disso, a investigação dos conceitos reaiscomplementou o estudo experimental, mostrando com clarezaque cada novo estádio do desenvolvimento da generalização éconstituído sobre as generalizações do nível precedente; osprodutos da atividade intelectual do período precedente não seperdem. Nas nossas investigações não pudemos pôr a nu asrelações internas entre as fases consecutivas porque, após cadainsucesso, o sujeito observado tinha que libertar asgeneralizações que tinha feito e recomeçar de novo. Também anatureza dos objetos experimentais não era de molde a permitira sua conceptualização em termos hierárquicos.

A investigação dos conceitos reais colmatou estas falhas.Descobriu­se que as idéias das crianças em idade pré­escolar(que possuem a estrutura de complexos) resultavam, não doagrupamento de imagens dos objetos individuais, mas daelaboração de generalizações predominantes durante uma faseanterior. A um nível superior, descobrimos uma analogiasemelhante entre antigas e novas formações no desenvolvimentodos conceitos aritméticos e dos conceitos algébricos. Aprogressão dos pré­conceitos (os conceitos aritméticos da criançasão geralmente deste tipo) para os conceitos genuínos, como porexemplo, os conceitos algébricos dos adolescentes, realiza­se pormeio da generalização das generalizações do período anterior.Neste estádio anterior abstraíram­se certos aspectos dos objetosgeneralizando­se esses aspectos para se atingir a idéia denúmero. Os conceitos algébricos representam abstrações egeneralizações de certos aspectos dos números e não dos objetos,significando portanto uma nova trajetória de desenvolvimento —um novo e mais elevado plano de pensamento.

Os novos e mais elevados conceitos, por seu turno,transformam o significado dos conceitos inferiores. O adolescenteque já domina os conceitos algébricos atingiu um ponto deobservação a partir do qual vê os conceitos aritméticos segundouma perspectiva mais vasta. Vimos isto com especial nitidezquando realizamos experiências com a passagem do sistemadecimal para outros sistemas de numeração. Enquanto a criançaopera com o sistema decimal sem dele ter consciência enquantotal, não domina ainda o sistema, mas, pelo contrário, encontra­se­lhe subordinada. Quando se torna capaz de o aperceber comoum caso particular do conceito mais lato de escalas de notação,

pode operar indiferentemente com este ou outro sistema denumeração. A capacidade de passar de um para outro sistema(por exemplo, a capacidade de “traduzir” um número da basedecimal para a base cinco) é o critério deste novo tipo de nível deconsciência, na medida em que indica a existência de umconceito geral de um sistema de numeração. Neste como noutroscasos em que se dá uma passagem de um nível de significadopara outro, a criança não é obrigada a reestruturarseparadamente todos os seus anteriores conceitos, coisa queseria realmente um trabalho de Sisifo. Logo que uma novaestrutura é incorporada no seu pensamento — geralmenteatravés de conceitos aprendidos na escola — essa estruturaespalha­se imediatamente pelos outros conceitos a medida queestes são arrastados para as operações intelectuais de tipo maiselevado

A nossa investigação dos conceitos reais infantis de ordemsuperior lança uma nova luz sobre outra importante questão dateoria do pensamento. A escola de Wuerzburg demonstrou que aevolução do pensamento orientado não é regida por conexõesassociativas, mas pouco fez para clarificar os fatores específicase determinam realmente esta evolução. A psicologia gestaltistasubstituiu o princípio da associação pelo princípio da estrutura,mas não conseguiu estabelecer a distinção entre o pensamentopropriamente dito e a percepção, a memória e todas as outrasfunções sujeitas a leis estruturais; repetiu o modelo da teoriaassociativa ao reduzir todas as funções a um só nível. A nossainvestigação ajudou­nos a transcender este modelo mostrandoque o pensamento de nível superior é regido pelas relações degeneralidade entre conceitos — um sistema de relações ausenteda percepção e da memória. Wertheimer demonstrou que opensamento produtivo está dependente da transferência doproblema da estrutura em que foi apreendido pela primeira vezpara um contexto ou estrutura completamente diferente. Mas,para transferir um objeto de pensamento da estrutura A para aestrutura B temos que transcender as conexões estruturaisdadas, e isto, como mostram os nossos estudos, exige umdeslocamento para um plano de maior generalidade, para umconceito que subsume e rege tanto A como B.

Podemos agora reafirmar numa base sólida que a ausênciade um sistema é a diferença psicológica fulcral que distingue osconceitos espontâneos dos científicos. Poder­se­ia mostrar quetodas as peculiaridades do pensamento infantil descritas porPiaget (tais como o sincretismo, a justaposição, a insensibilidadeà contradição) decorre da ausência de um sistema nos conceitos

espontâneos da criança — conseqüência das relações degeneralidade não desenvolvidas. Por exemplo, para que fosseperturbada por uma contradição, a criança teria que ver asafirmações contraditórias à luz de um qualquer princípio geral,isto é, no quadro de um sistema. Mas quando, nas experiênciasde Piaget, uma criança diz de um objeto que se dissolveu naágua porque era pequeno, e de outro que se dissolveu porque eragrande, limita­se a proferir afirmações empíricas de fatos quedecorrem da lógica das percepções. No seu cérebro não háqualquer generalização do tipo “As dimensões reduzidasimplicam a dissolução” e, por conseguinte, não sente que asduas afirmações sejam contraditórias. É esta ausência dedistanciação relativamente à experiência imediata — e não osincretismo visto como um compromisso entre a lógica dossonhos e a realidade — que explica as peculiaridades dopensamento infantil, as quais, por conseguinte, não surgem nosconceitos científicos das crianças, os quais desde a sua gestaçãotrazem consigo relações de generalidade, isto é, algunsrudimentos de um sistema. A disciplina formal dos conceitoscientíficos transforma gradualmente a estrutura dos conceitosespontâneos da criança e contribui para os organizar numsistema; isto impele a criança a mais elevados níveis dedesenvolvimento.

A nossa discordância com Piaget centra­se sobre um únicoponto. Ele pressupõe que o desenvolvimento e a instrução sãoprocessos completamente separados e incomparáveis e que afunção da instrução limita­se a introduzir os modos adultos depensar, os quais entram em conflito com os da criança e acabampor os superar. Estudar o pensamento das criançasindependentemente da influência da instrução, como fez Piaget,exclui­se uma importante fonte de transformações e impede­se oinvestigador de pôr a questão da interação entre odesenvolvimento e a instrução que é característica a cada níveletário. A nossa abordagem centra­se sobre esta interação. Tendodescoberto muitos e complexos laços internos entre os conceitoscientíficos e os conceitos espontâneos, esperamos que as futurasinvestigações comparadas clarifiquem mais profundamente a suainterdependência. avançando nós próprios uma primeiraantecipação do alargamento do estudo do desenvolvimento dainstrução aos níveis etários mais baixos. No fim de contas ainstrução não começa na escola. Os futuros investigadorespodem muito bem descobrir que os conceitos espontâneos dascrianças são produto da instrução pré­escolar, tal como osconceitos científicos são produto da instrução escolar.

V

Para lá das conclusões teóricas, o nosso estudocomparativo dos conceitos científicos e dos conceitos do dia a diaproduziu alguns resultados metodológicos. Os métodos por nóselaborados para utilização nas nossas investigações permitiram­nos colmatar o desfasamento existente nas investigações dosconceitos experimentais e dos conceitos da vida real. Ainformação recolhida sobre os processos mentais dos jovensestudantes de ciências sociais, embora muito esquemática erudimentar, sugeriu­nos alguns aperfeiçoamentos do ensino aintroduzir no ensino dessa disciplina.

Retrospectivamente, temos consciência de algumasomissões e de alguns defeitos metodológicos, que talvez sejaminevitáveis quando se está abordando um novo campo de estudo.Não estudamos experimentalmente com pormenor a naturezados conceitos do dia a dia da criança. Isto deixa­nos sem osdados necessários para descrevermos a evolução global dodesenvolvimento psicológico durante a idade escolar; porconseguinte, a nossa crítica às teses fundamentais de Piaget nãose encontra suficientemente escorada em fatos de confiança esistematicamente recolhidos.

O estudo dos conceitos científicos incidiu sobre uma únicacategoria — a dos conceitos das ciências sociais — e os conceitosparticulares selecionados para a investigação não formam nemindicam um sistema inerente à lógica do sujeito. Emboratenhamos aprendido muitas coisas sobre os conceitos científicosem comparação com os conceitos espontâneos, poucoaprendemos em relação às regularidades específicas dodesenvolvimento dos conceitos sociológicos enquanto tais. Osfuturos estudos deverão incidir sobre conceitos que pertençam adiversos campos da instrução escolar, comparando­se cadaconjunto de conceitos com um conjunto de conceitos extraídosde uma área semelhante da experiência do dia a dia.

Por último e sobretudo, as estruturas conceptuais queestudamos não eram suficientemente diferenciadas. Por exemplo,quando utilizamos fragmentos de frases terminados por“porque”, não separamos os vários tipos de relações causais(empíricas, psicológicas, lógicas) como Piaget fez nos seusestudos. Se o tivéssemos feito, talvez tivéssemos sido capazes deestabelecer uma determinação mais fina entre os resultados dostestes das crianças de diferentes grupos etários.

No entanto, até estas deficiências nos ajudarão a

estabelecer o itinerário das investigações futuras. O presenteestudo não é mais do que um primeiro e muito modesto passo naexploração de uma nova área da psicologia do pensamentoinfantil que é muito plena de promessas.

7. Pensamento e linguagemEsqueci a palavra que pretendia

dizer e o meu pensamento,desencarnado, volta ao reino das sombras

(de um poema de Mandelstham)

I

Começamos o nosso estudo com uma tentativa de pôr a nua relação existente entre o pensamento e a linguagem nosestádios iniciais do desenvolvimento filogenético e ontogenético.Não encontramos nenhuma interdependência específica entre asraízes genéticas do pensamento e da palavra. Tornou­se patenteque a relação interna que buscávamos não era um requisitoprévio do desenvolvimento histórico da consciência humana,antes era um seu produto.

Nos animais, mesmo naqueles antropóides cuja fala éfoneticamente como a fala humana e cujo intelecto se aparentacom o do homem, a linguagem e o pensamento não se encontraminterrelacionados. É indubitável que, no desenvolvimento dacriança, existe também um período pré­linguístico dopensamento e um período pré­intelectual a fala: o pensamento ea palavra não se encontram relacionados por uma relaçãoprimária. No decurso da evolução do pensamento e da fala gera­se uma conexão entre um e outra que se modifica e desenvolve.

Seria errado no entanto encarar o pensamento e a falacomo dois processos não relacionados entre si, seja como doisprocessos paralelos, seja como dois processos que seentrecruzassem em certos momentos e se influenciassemmutuamente duma forma mecânica.

A ausência de uma relação primária não quer dizer que aconexão entre eles só possa formar­se de uma forma mecânica.

A futilidade da maior parte das investigações primitivasdevia­se em grande parte ao fato de se pressupor que opensamento e a palavra eram elementos independentes e

isolados e que o pensamento verbal era fruto da sua uniãoexterna.

O método de análise baseado nesta concepção estavavotado ao fracasso. Buscava explicar as propriedades dopensamento verbal cindindo­o nos elementos que o compunham— a palavra e o pensamento — nenhum dos quais tomado emseparado possuiria as propriedades do todo.

Este método não é uma verdadeira análise que nos sejaútil para resolver problemas concretos, antes conduz àgeneralização.

Comparamo­lo à análise da água em hidrogênio e oxigênio— que só pode dar resultado em descobertas aplicáveis a toda aágua existente na natureza, desde o Oceano Pacífico até umagota de água da chuva.

Semelhantemente, a afirmação segundo a qual opensamento verbal se compõe de processos intelectuais efunções de discurso propriamente ditas aplica­se a todo opensamento verbal e não explica nenhum dos problemasespecíficos com que se defronta o estudioso do pensamentoverbal.

Tentamos uma nova abordagem do problema esubstituímos a análise em elementos pela análise em unidades,cada uma das quais retém, sob uma forma simples, todas aspropriedades do todo. Encontramos esta unidade do pensamentoverbal no significado da palavra.

O significado duma palavra representa uma amálgama tãoestreita de pensamento e linguagem que é difícil dizer se se tratade um fenômeno de pensamento, ou se se trata de um fenômenode linguagem. Uma palavra sem significado é um som vazio;portanto, o significado é um critério da palavra e um seucomponente indispensável. Pareceria portanto que poderia serencarado como um fenômeno lingüístico. Mas do ponto de vistada psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização,um conceito. E, como as generalizações e os conceitos sãoinegavelmente atos de pensamento, podemos encarar osignificado como um fenômeno do pensar. No entanto, daqui nãose segue que o pensamento pertença a duas esferas diferentes davida psíquica.

O significado das palavras só é um fenômeno depensamento na medida em que é encarnado pela fala e só é um

fenômeno lingüístico na medida em que se encontra ligado com opensamento e por este é iluminado. É um fenômeno dopensamento verbal ou da fala significante — uma união dopensamento e da linguagem.

As nossas investigações experimentais confirmamintegralmente esta tese fundamental. Não só provaram que oestudo concreto da gênese do pensamento verbal se tornoupossível pelo estudo do significado das palavras como unidadeanalítica, como levaram também a outra tese que consideramosser o mais importante resultado do nosso estudo e que decorreimediatamente da primeira: a tese segundo a qual o significadodas palavras evolui. Este ponto de vista deve substituir opostulado da imutabilidade dos significados das palavras.

Do ponto de vista das velhas escolas da psicologia, arelação entre a palavra e o significado é uma relação associativaestabelecida através da repetição da percepção simultânea de umcerto som e de um certo objeto. Uma palavra solicita no espírito oseu conteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nos recorda essemesmo amigo ou uma casa, os seus habitantes. A associaçãoentre a palavra e o seu significado pode desenvolver­se mais forteou mais debilmente, pode ser enriquecida pela relacionarão comoutros objetos de tipo semelhante, difundir­se por sobre umvasto domínio, Ou tornar­se mais limitada, isto é, pode sofrertransformações quantitativas e externas, mas não pode modificara sua natureza psicológica. Para que tal acontecesse teria quedeixar de ser uma associação.

Desse ponto de vista, qualquer evolução do significado deuma palavra é impossível e inexplicável — conseqüência esta queconstitui um handicap tanto para os lingüistas como para ospsicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com ateoria da associação, a semântica persistiu em considerar osignificado da palavra como uma associação entre o som e oconteúdo. Todas as palavras, desde as mais concretas às maisabstratas, surgiam como sendo formadas da mesma maneira,relativamente ao seu significado, parecendo não conter nenhumelemento característico da fala enquanto tal; uma palavra fazia­nos recordar o seu significado tal como um objeto nos recordavaoutro objeto.

Pouco surpreenderá portanto que a semântica nem sequerpusesse a questão mais ampla da evolução do significado daspalavras. Reduzia­se essa evolução às variações nas conexõesassociativas entre as palavras isoladas e os objetos isolados: umapalavra poderia em determinada altura denotar um objeto

passando depois a associar­se com outro, como um sobretudoque, por mudar de proprietário, nos recordasse primeiro umapessoa e, logo depois, outra.

A lingüística não compreendia que na evolução históricada linguagem, a própria estrutura do significado e a suanatureza psicológica se transformam também.

Das generalizações primitivas, o pensamento verbal vai­seelevando ao nível de conceitos mais abstratos. Não é apenas oconteúdo de uma palavra que se altera, mas a forma como arealidade é generalizada e refletida numa palavra.

A teoria associativa também não se adequa à explicação dodesenvolvimento dos significados das palavras na infância.Também neste aspecto, só pode explicar as alterações externas,puramente quantitativas, das conexões que ligam a palavra e oseu significado, o seu fortalecimento e o seu enriquecimento,mas não as transformações psicológicas e estruturaisfundamentais que podem ocorrer e ocorrem no desenvolvimentoda linguagem infantil.

Infelizmente, o fato de o associacionismo em geral ter sidoabandonado durante um certo lapso de tempo não parece terafetado a interpretação da palavra e do significado. A escola deWuerzburg, cujo propósito principal era o de provar aimpossibilidade de reduzir o pensamento a um simples jogo deassociações e demonstrar a existência de leis específicas queregem a corrente de pensamento, não reviu a teoria associativada palavra e do significado, nem reconheceu sequer anecessidade de uma tal revisão. Esta escola emancipou opensamento dos grilhões da sensação e da imagem e das leis daassociação e transformou­o num ato puramente espiritual. Masao fazê­lo, regrediu para os conceitos pré­científicos de SantoAgostinho e Descartes, acabando por chegar a um idealismosubjetivo extremo. A psicologia do pensamento encaminhava­separa as idéias de Platão, e, ao mesmo tempo, deixava­se alinguagem à mercê da associação. Mesmo após a obra realizadapela escola de Wuerzburg, continuou a considerar­se que aconexão entre a palavra e o seu significado era uma simplesrelação associativa. Encarava­se a palavra como correlativoexterno do pensamento, como seu simples adereço, que nãotinha qualquer influência na sua vida interna. O pensamento e apalavra nunca estiveram tão separados como durante o períodode Wuerzburg. Na realidade, a destruição da teoria associativano domínio do pensamento incrementou o seu poderio nodomínio da linguagem.

A obra de outros psicólogos veio reforçar ainda mais estatendência. Selz continuou a investigar o pensamento sem tomarem consideração a relação entre este e a linguagem e chegou àconclusão de que o pensamento produtivo do homem e dochimpanzé eram de natureza idêntica a tal ponto esteinvestigador ignorava a influência das palavras sobre opensamento.

Até Ach, que levou a cabo um estudo especial dosignificado das palavras e que tentou superar o associativismona sua teoria dos conceitos se limitou a pressupor a existênciade “tendências determinantes” que entrariam em açãoconjuntamente com as associações na formação dos conceitos.Por conseguinte, as conclusões a que chegou não vieram alterara anterior compreensão do significado das palavras. Aoidentificar o conceito com o significado, impedia que seexplicasse os desenvolvimentos e as transformações dosconceitos. Uma vez estabelecido, o significado de uma palavraficava estabelecido para sempre; o seu desenvolvimentoencontrava­se completo. Estes eram os mesmos princípios queos psicólogos atacados por Ach defendiam. Para ambos os lados,o ponto de partida da evolução dos conceitos constituía tambémo seu termo; só havia desacordo no tocante à forma como seiniciava o desenvolvimento da formação da palavra.

Na psicologia gestaltista (Psicologia da Forma), a situaçãonão era muito diferente. Esta escola era ainda mais consistentedo que as outras na tentativa de superar o princípio geral doassociativismo. Não satisfeita com uma solução parcial doproblema, tentou libertar o pensamento e a fala da lei daassociação e colocá­los a ambos sob o domínio da lei da gênesede estruturas. Surpreendentemente, nem esta escola — que é amais progressiva de todas as modernas escolas de psicologia —realizou quaisquer progressos na teoria da linguagem e dopensamento.

Por um lado, manteve a separação completa entre estasduas junções. A luz da teoria gestaltista, a relação entre opensamento e a palavra aparece como uma simples analogia,uma redução de ambos a um denominador estrutural comum.Encara­se a formação das primeiras palavras com significado porparte das crianças como algo semelhante às operaçõesintelectuais dos chimpanzés nas experiências de Koehler. Aspalavras entram na estrutura das coisas e adquirem um certosignificado funcional, duma forma bastante semelhante àquelacomo, para o chimpanzé, o pau se torna parte da estrutura deobtenção do fruto e adquire o significado funcional de

instrumento. Já não se encara a conexão entre palavra esignificado como uma questão de simples associação, mas comouma questão de estrutura. Parece ser um passo em frente, masse examinarmos mais de perto a nova abordagem, é fácil ver queo passo em frente é um passo em falso, ilusório, e que nãosaímos ainda do mesmo sítio. Aplica­se o princípio da estruturaa todas as relações entre as coisas, da mesma formaavassaladora como anteriormente se aplicava o princípio daassociação. Continua a ser impossível explicar as relaçõesespecíficas entre palavra e significado, pois à partida continua aconsiderar­se que em princípio são idênticas a todas as outrasrelações entre coisas. Os gatos continuam a ser tão pardos napoeira da psicologia gestaltista como nos primitivos nevoeiros doassociacionismo universal.

Enquanto Ach procurava superar o associonismo com a“tendência determinante”, a teoria psicológica gestaltistacombateu­o com o princípio da estrutura — mantendo noentanto os dois erros fundamentais da velha teoria: opressuposto da identidade de natureza de todas as conexões e opressuposto de que os significados das palavras não se alteram.Tanto a antiga como a nova teoria psicológica partem ambas dahipótese de que a evolução do significado de uma palavratermina mal esta emerge. As novas tendências da psicologiaproduziram progressos em todos os ramos, exceto no estudo dopensamento e da palavra. Neste domínio, os novos princípiosparecem­se com os antigos como dois gêmeos.

Se a psicologia gestaltista estagnou no campo dalinguagem, deu um grande passo à retaguarda no campo dopensamento. A escola de Wuerzburg, pelo menos, consideravaque o pensamento tinha leis próprias, ao passo que a escolagestaltista nega a existência de tais leis. Reduzindo a umdenominador estrutural comum as percepções dos animaisdomésticos, as operações mentais de um chimpanzé, asprimeiras palavras significativas das crianças e o pensamentoconceptual dos adultos, oblitera toda e qualquer distinção entrea percepção mais elementar e as mais elevadas formas depensamento.

Esta recensão crítica pode ser resumida como se segue:todas as escolas e tendências psicológicas descuram um pontofundamental: todo e qualquer pensamento é uma generalização.Assim, estudam a palavra e o significado sem fazerem qualquerreferência à evolução. Enquanto estas duas condiçõespersistirem em tendências sucessivas nas tendênciasposteriores, estas muito pouca relevância terão para o

tratamento do problema.

II

A descoberta de que o significado das palavras evolui tira oestudo do pensamento e da linguagem de um beco sem saída. Ossignificados das palavras passam a ser formações dinâmicas enão já estatísticas, transformam­se à medida que as crianças sedesenvolvem e alteram­se também com as várias formas como opensamento funciona.

Se os significados das palavras se alteram na sua naturezainterna, então a relação entre o pensamento e a palavra tambémse modifica. Para compreender a dinâmica dessa relação,teremos que complementar a abordagem genética do nossoestudo principal com a análise funcional e examinar o papel dosignificado da palavra no processo de pensamento.

Consideremos o processo seguido pelo pensamento verbaldesde o primitivo e difuso surgir dum pensamento até à suaformulação Neste momento pretendemos mostrar não a formacomo os significados evoluem ao longo de dilatados intervalos detempo, mas o modo como funcionam no processo vivo dopensamento verbal. A partir dessa análise funcional, poderemosmostrar também que, em cada fase do desenvolvimento dosignificado das palavras há uma relação particular entre opensamento e a linguagem. Como a forma mais fácil de resolveros problemas funcionais consiste em examinar a forma maiselevada de determinada atividade poremos por um momento departe o problema do desenvolvimento e consideraremos asrelações entre o pensamento e a palavra no cérebro que jáatingiu a maturidade.

A idéia diretriz da discussão que se segue pode serreduzida à seguinte fórmula: a relação entre o pensamento e apalavra não é uma coisa mas um processo, um movimentocontínuo de vaivém entre a palavra e o pensamento; nesseprocesso a relação entre o pensamento e a palavra sofrealterações que, também elas, podem ser consideradas como umdesenvolvimento no sentido funcional. As palavras não selimitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede àexistência. Todos os pensamentos tendem a relacionardeterminada coisa com outra, todos os pensamentos tendem aestabelecer uma relação entre coisas, todos os pensamentos semovem, amadurecem, se desenvolvem, preenchem uma função,resolvem um problema. Esta corrente do pensamento flui comoum movimento interno através de uma série de planos. Qualquer

análise da interação entre o pensamento e a palavra terá deprincipiar por investigar os diferentes planos e fases que umpensamento percorre antes de se encarnar nas palavras.

A primeira coisa que qualquer estudo revela é anecessidade de estabelecer a distinção entre dois planos dediscurso. Ambos os aspectos da linguagem, tanto o interno,significante, semântico, como o aspecto externo, fonético, têm assuas leis de movimento específicas, embora formem umaverdadeira unidade, mas que é uma unidade complexa e nãohomogênea. Alguns fatos do desenvolvimento lingüístico dacriança indicam a existência de movimentos independentes nasesferas fonética e semântica. Apontaremos dois dos maisimportantes.

Quando começa a dominar a fala exterior, a criançaprincipia por uma palavra, passando depois a ligar dois ou trêstermos entre si; um pouco depois, progride das frases simplespara outras mais complicadas, chegando por fim ao discursocoerente composto por uma série de frases dessas; por outraspalavras, progride da parte para o todo. Relativamente aosignificado em contrapartida, a primeira palavra da criança éuma frase completa. Semanticamente, a criança parte do todo,de um complexo significante e só mais tarde começa a dominaras unidades semânticas separadas, os significados das palavrase a subdividir o seu pensamento primitivamente indiferenciadonessas unidades. O seu aspecto externo e o aspecto semânticoda linguagem desenvolvem­se em direções opostas — o primeirodo particular para o geral, da palavra para a frase e o outro dotodo para o particular, da frase para a palavra.

Isto, em si, basta para mostrar como é importantedistinguir o aspecto fonético do discurso do seu aspectosemântico. Como se movem em sentidos opostos, o seudesenvolvimento não é coincidente, mas isso não quer dizer quesejam independentes um do outro. Pelo contrário, a suadiferença é o primeiro estádio de uma estreita união.

De fato, o nosso exemplo revela a sua conexão interna tãoclaramente como a sua diferença. O pensamento das crianças,precisamente porque surge como um conjunto amorfo eindistinto, tem que encontrar a sua expressão numa palavraisolada; à medida que o seu pensamento se vai tornando maisdiferenciado, a criança vai perdendo a possibilidade de seexprimir por meio de palavras isoladas e tem que construir umtodo compósito. Inversamente, a progressão da linguagem emdireção ao todo diferenciado numa frase, ajuda o pensamento da

criança a progredir de conjuntos homogêneos para partes bemdefinidas. O pensamento e a palavra não são talhados no mesmomodelo: em certo sentido há mais diferenças do que semelhançasentre eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir comonum espelho a estrutura do pensamento; é por isso que não sepode vestir o pensamento com palavras, como se de umornamento se tratasse. O pensamento sofre muitas alterações aotransformar­se em fala. Não se limita a encontrar expressão nafala; encontra nela a sua realidade e a sua forma. Os processosevolutivos da fonética e da semântica são essencialmenteidênticos, precisamente devido a seguirem sentidos inversos.

O segundo fato, que é tão importante como o primeiro,surge num período de desenvolvimento posterior. Piagetdemonstrou que a criança utiliza orações subordinadas em quefiguram porque, embora, etc., muito antes de compreender asestruturas significantes correspondentes a estas formassemânticas. A gramática precede a lógica. Também aqui, talcomo nos nossos exemplos anteriores, a discrepância não excluia unidade, antes lhe é necessária.

Nos adultos, a divergência entre o aspecto semântico e oaspecto fonético do discurso é ainda mais flagrante. A lingüísticamoderna que se guia pela psicologia, encontra­se familiarizadacom este fenômeno, especialmente no que toca ao sujeito e aopredicado gramaticais e psicológicos. Por exemplo, na frase “orelógio caiu”, a ênfase e o significado podem variar com assituações. Suponhamos que noto que o relógio parou e pergunto,porque terá isto acontecido. A resposta é: “o relógio caiu”. Osujeito gramatical e psicológico coincidem: “o relógio” é aprimeira idéia que existe na minha consciência; “caiu” é o que sediz do relógio. Mas se ouvir um barulho no quarto ao lado eindagar o que aconteceu, e receber a mesma resposta, o sujeito eo predicado psicológicos inverter­se­ão. Eu sabia que algumacoisa tinha caído — era disso que estávamos a falar. “O relógio”vem completar a idéia. Poder­se­ia trocar a frase por esta: “o quecaiu foi o relógio”. Então o sujeito gramatical e o sujeitopsicológico coincidiriam. No prólogo da sua peça O Duque Ernstvon Schwaben, Uhland diz: “cenas sinistras desenrolar­se­ãoperante os vossos olhares”. Psicologicamente, o sujeito é“desenrolar­se­ão”: o espectador sabe que vai ver o desenrolar decertos acontecimentos. A idéia adicional, o predicado, é “cenassinistras”. Uhland queria dizer: “Aquilo que se desenrolaráperante os vossos olhares é uma tragédia”. Qualquer parte deuma frase pode tornar­se o sujeito psicológico, a parte portadorada ênfase fundamental; por outro lado, por detrás de uma

estrutura gramatical podem ocultar­se significados totalmentediferentes. O acordo entre o sujeito gramatical e o sujeitopsicológico não é tão predominante como tendemos a presumir ­­antes pelo contrário, é um requisito raramente satisfeito. Não sãosó o sujeito e o predicado que têm os seus duplos psicológicos,pois também o gênero, o número, o caso, o tempo, o modo, ograu gramaticais o possuem. Uma exclamação espontânea, quedo ponto de vista gramatical é errada, pode ter encanto e valorestético. A correção absoluta só se consegue para lá dalinguagem natural, na matemática. A nossa linguagemquotidiana oscila constantemente entre os ideais da harmoniamatemática e os da harmonia imaginativa.

Vamos ilustrar a interdependência dos aspectossemânticos e gramaticais da linguagem citando dois exemplosque nos mostram que as variações da estrutura formal podemarrastar consigo alterações do significado de grande alcance.

Na tradução que fez da fábula “La Cigale et la Fourmi” (vi)de La Fontaine, Krylov substituiu a cigarra de La Fontaine poruma libelinha. Em francês, cigarra é uma palavra feminina,sendo portanto, adequada para simbolizar uma atitude leviana edespreocupada. A nuance perder­se­ia numa tradução literal,pois cigarra em russo, é masculino, Ao decidir­se por libelinha,que em russo é feminino, Krylov menosprezou a tradução literalem favor da forma gramatical necessária para dar o pensamentode La Fontaine (vii)

Tjutchev fez o mesmo na sua tradução do poema de Heinesobre um abeto e uma palmeira. Em alemão, abeto é umapalavra masculina e palmeira é uma palavra feminina, e o poemasugere o amor de um homem por uma mulher, mas em russoambas árvores são femininas. Para manter a implicação,Tjutchev substituiu o abeto por um cedro, masculino.Lermontov, na sua tradução mais literal do mesmo poema,destituiu­o destes matizes poéticos e deu­lhe um significadoessencialmente diferente, mais abstrato e mais generalizado. Umpormenor gramatical pode, em certas circunstâncias, modificartodo o propósito do que se diz.

Por detrás das palavras, há a gramática independente dopensamento, a sintaxe dos significados das palavras. A maissimples exclamação, não reflete uma correspondência rígida econstante entre som e significado, é, na realidade, muito pelocontrário, um processo. As expressões verbais não podem nascercompletamente formadas, têm que se desenvolver gradualmente.Este complexo processo de transição do significado para o som

tem também que se desenvolver e aperfeiçoar. A criança tem queaprender a distinguir entre a semântica e a fonética e acompreender a natureza da diferença entre uma e outra coisa. Aprincípio, começa por utilizar o pensamento e as formas verbaise os significados sem ter consciência deles como coisas distintas.Para a criança, a palavra é parte integrante do objeto que denota.Tal concepção parece ser característica da consciência lingüísticaprimitiva. Todos conhecemos a velha história do rústico queafirmava que não lhe surpreendia que os sábios, com todos osinstrumentos que possuíam, pudessem calcular o tamanho dasestrelas e as suas trajetórias — o que lhe fazia espécie era comoeles conseguiam saber o nome das estrelas. Algumasexperiências simples mostram que as crianças em idade pré­escolar “explicam” o nome dos objetos pelos seus atributos.Segundo elas, um animal chama­se “vaca” porque tem cornos,bezerro, quando os seus cornos ainda são pequenos, cão”,porque é pequeno e não tem cornos; chama­se “carro” adeterminado objeto porque não é animal. Quando se lhespergunta se poderia trocar os nomes das coisas, chamando porexemplo, “tinta” a uma vaca e “vaca” à tinta, respondem que não,“porque a tinta é para escrever e a vaca dá leite”. Trocar osnomes significaria trocar as características específicas de cadaobjeto, tão inseparável é a conexão de ambos no espírito dacriança. Numa experiência disse­se às crianças que emdeterminado jogo se chamaria “vaca” a um cão. Eis a seguir umexemplo típico de perguntas e respostas que ocorreram:

— Mas as vacas têm cornos?

— Têm.

— Mas então não te lembras que os cães é que são vacas?Ora vê bem: os cães têm cornos?

— Pois claro. Se são vacas, se lhes chamamos vacas, têmque ter cornos. Têm que ser uma espécie de vacas comcorninhos.

Podemos ver pois como, para as crianças, é difícil separaro nome de um objeto dos seus atributos, que aderem ao nomemesmo quando este é transferido, como as coisas possuídasseguindo o seu dono.

A fusão dos dois planos da imagem, o plano semântico e oplano vocal, começa a desarticular­se à medida que a criançacresce e a distância entre um e outro vai aumentandogradualmente. Cada estádio no desenvolvimento das palavras

implica uma inter­relação específica entre os dois planos. Acapacidade da criança para comunicar através da linguagemencontra­se diretamente relacionada com a diferenciação dossignificados das palavras no seu discurso e na sua consciência.

Para compreendermos isto teremos que recordar umacaracterística fundamental da estrutura dos significados daspalavras. Na estrutura semântica de uma palavra estabelecemosa distinção entre referente e significado: correspondentemente,distinguimos o nominativo de uma palavra da sua funçãosignificante. Quando comparamos estas relações funcionais eestruturais nos diversos estádios de desenvolvimento, isto é, noestádio primitivo, no estádio intermédio e no estádio maisdesenvolvido, deparamos com esta regularidade genética: aprincípio só existe a função nominativa; e, semanticamente, sóexiste a referência objetiva; a independência entre a significaçãoe a nomeação, assim como a independência entre o significado ea referência só surgem posteriormente e desenvolvem­se segundoas trajetórias que tentamos detectar e descrever.

Só quando este desenvolvimento se encontra completo éque a criança se torna totalmente capaz de formular o seupensamento e compreender o pensamento dos outros. Até essaaltura, a utilização que dá às palavras coincide com a que lhesdão os adultos na sua referência objetiva, mas não no seusignificado.

III

Temos que levar a nossa investigação a planos maisprofundos e explorar o plano do discurso interno que se encontrapor detrás do plano semântico. Examinaremos aqui alguns dosdados que obtivemos em experiências especialmente dedicadasao assunto. Não poderemos compreender integralmente a relaçãoentre o pensamento e a palavra em toda a sua complexidade senão tivermos uma compreensão clara da natureza psicológica dodiscurso interno. No entanto, de todos os problemas relacionadoscom o pensamento e a linguagem, este é talvez o maiscomplicado, sobrecarregado como se encontra de toda a espéciede mal entendidos terminológicos e doutro gênero.

Tem­se aplicado a expressão discurso interior ou endofasiaa vários fenômenos, e autores há que discutem entre si acerca decoisas diferentes e têm­se travado muitas discussões entreautores que chamam o mesmo nome a coisas distintas.Originalmente, parece que se chamava discurso interior àmemória verbal: exemplo disto, seria a recitação silenciosa de

um poema sabido de cor. Nesse caso, o discurso interno difere doexterno apenas da mesma maneira que a imagem ou idéia de umobjeto difere do objeto real. Era neste sentido que entendiam odiscurso interior os autores franceses que tentaram descobrircomo as palavras são reproduzidas pela memória — comoimagens auditivas, visuais, motoras ou sintéticas. Veremos que amemória das palavras, a memória verbal é realmente uma dascomponentes, um dos elementos constituintes do discursointerior, mas não o único.

Numa segunda interpretação, vê­se o discurso interiorcomo um discurso externo truncado — como “linguagem semsom” (Mueller) ou “discurso sub­vocal” (Watson). Bekhterevdefiniu­o como um reflexo do discurso inibido da sua partemotora. Tal explicação não é suficiente. A “locução” silenciosadas palavras não é equivalente ao processo integral do discursointerior.

A terceira definição, pelo contrário é demasiado ampla.Para Goldstein (12)(13)(12, 13), a expressão recobre tudo queprecede o ato motor da fala, incluindo os “motivos do discurso”de Wundt e a indefinível experiência discursiva não motora, nãosensível — isto é, todo o aspecto interior do discurso, dequalquer atividade discursiva. É difícil aceitar a identificação dodiscurso interior com uma experiência interior não articulada, naqual os planos estruturais separáveis e identificáveisdesapareceriam sem deixar traços. Esta experiência central écomum a toda e qualquer atividade lingüistica e só por estarazão, a interpretação de Goldstein não é adequada a essafunção específica, única e exclusiva que merece o nome dediscurso interior.

Levada até ás suas últimas conseqüências lógicas, o pontode vista de Goldstein conduzir­nos­ia à tese segundo a qual odiscurso interior não é de maneira nenhuma linguagem, masantes uma atividade intelectual e volitiva­afetiva, pois engloba osmotivos do discurso e o pensamento que se exprime porpalavras.

Para obtermos uma descrição adequada do discursointerior, temos de partir do pressuposto de que se trata de umaformação específica que tem as suas leis próprias e mantémrelações complexas com as outras formas de atividadelingüística. Antes de podermos estudar a relação entre o discursointerior e o pensamento, por um lado, e a linguagem, por outrolado, teremos que determinar as características e as funções quelhe são próprias.

O discurso interior é um discurso para o próprio locutor; odiscurso externo é um discurso para os outros. Seria na verdadesurpreendente que uma diferença de funcionamento tão radicalnão afetasse as estruturas de ambos os tipos de discurso. Aausência de vocalização, por si só, não é mais do que umaconseqüência da natureza específica do discurso interior e não é,nem um antecedente do discurso exterior, nem a sua reproduçãona memória, antes é em certo sentido, o contrário do discursoexterior. Este último consiste em verter os pensamentos empalavras, consiste na sua materialização e na sua objetivização.Com o discurso interior, pelo contrário, o processo é invertido: odiscurso volta­se para dentro, para o pensamento. Porconseqüência as suas estruturas têm que ser diferentes uma daoutra.

O domínio do discurso interior é um dos mais difíceis deinvestigar. Manteve­se praticamente inacessível até se teremencontrado formas de aplicar os métodos genéticos deexperimentação. Piaget foi o primeiro investigador a preocupar­secom o discurso egocêntrico das crianças e a ver a suaimportância teórica, mas continuou cego à característica maisimportante do discurso egocêntrico — a sua relação genética como discurso interior — e isto veio distorcer a sua interpretação dassuas funções e estrutura. Fizemos dessa relação problemacentral do nosso estudo, e isso permitiu­nos investigar anatureza do discurso interior com invulgar exaustão. Um certonúmero de observações e considerações levou­nos a concluir queo discurso egocêntrico é um estádio de desenvolvimento queprecede o discurso interior. Ambos preenchem funçõesintelectuais; as suas estruturas são semelhantes; o discursoegocêntrico desaparece por alturas da idade escolar, quando odiscurso interior começa a desenvolver­se. De tudo isto inferimosque se transformam um no outro.

Se esta transformação se dá, então o discurso egocêntricofornece­nos a chave para compreendermos o discurso interior.Uma das vantagens que advêm de se utilizar o discursoegocêntrico para abordar o discurso interior é a de que aquele éacessível à observação e à experimentação. É ainda um discursovocalizado, audível, isto é, um discurso externo no seu modo deexpressão, mas é ao mesmo tempo um discurso interno na suafunção e na sua estrutura. Para estudarmos um processointerno temos que exteriorizá­lo experimentalmente,relacionando­o com outra qualquer atividade; só então serápossível a análise funcional objetiva. Na realidade, o discursoegocêntrico é uma experiência natural deste tipo.

Este método tem ainda uma outra grande vantagem: comoo discurso egocêntrico pode ser estudado no momento em quealgumas das suas características se estão desvanecendoenquanto outras novas se vão formando, estamos em condiçõesde avaliar que traços são essenciais para o discurso interior eque traços são apenas temporários, determinando assim oobjetivo deste movimento que progride do discurso egocêntricopara o discurso interior — isto é, a natureza do discurso interior.

.Antes de passarmos aos resultados obtidos por estemétodo, examinaremos rapidamente a natureza do discursoegocêntrico, sublinhando as diferenças entre o nosso método e ode Piaget. Piaget defende que o discurso egocêntrico da criança éuma expressão direta do egocentrismo do seu pensamento, oqual, por seu turno, é um compromisso entre o autismo primáriodo seu pensamento e a sua socialização gradual. À medida que acriança cresce, o autismo definha e a socialização desenvolve­se,levando a um desvanecimento do egocentrismo no seupensamento e no seu discurso.

Segundo a concepção de Piaget, a criança, pelo seudiscurso egocêntrico, não se adapta ao pensamento dos adultos.O seu pensamento mantém­se integralmente egocêntrico; istotorna a sua conversa totalmente incompreensível para os outros.O discurso egocêntrico não tem qualquer função no pensamentoou na atividade realística da criança — limita­se a acompanhá­los. E, como é uma expressão do pensamento egocêntrico dacriança, desaparece simultaneamente com o seu egocentrismo.Do seu auge de desenvolvimento no começo do desenvolvimentoinfantil, o discurso egocêntrico cai a zero no limiar da idadeescolar. A sua história caracteriza­se mais pela involução do quepela evolução. Não tem futuro.

Na nossa concepção, o discurso egocêntrico é umfenômeno de transição entre o funcionamento inter­físico e ofuncionamento intra­físico, quer dizer, da atividade social ecoletiva da criança para a sua atividade mais individualizada —modelo de desenvolvimento este que é comum a todas as funçõespsicológicas mais elevadas.

O discurso de si para si tem origem na diferenciação dodiscurso para os outros. Na medida em que a trajetória principaldo desenvolvimento psicológico da criança é uma trajetória deprogressiva individualização, esta tendência reflete­se na funçãoe na estrutura do seu discurso.

Os nossos estudos experimentais indicam que a função do

discurso egocêntrico é a mesma da do discurso interior: não selimita a acompanhar a atividade da criança: está ao serviço daorientação mental, da compreensão consciente; ajuda­a a venceras dificuldades; é discurso de si para si, que se encontra íntima eutilitariamente relacionada com o pensamento da criança: o seudestino é muito diferente daquele que lhe consigna Piaget. Odiscurso egocêntrico desenvolve­se segundo uma curvaascendente e não segundo uma curva descendente: segue umaevolução não uma involução. No termo dessa evoluçãotransforma­se em discurso interior.

A nossa hipótese tem várias vantagens sobre a de Piaget:ela explica a função e o desenvolvimento do discurso interior e,em particular, o seu súbito incremento, quando a criança sedefronta com dificuldades que exigem consciência e reflexão —fato que as nossas experiências puseram a nu e que a teoria dePiaget não pode explicar. Mas a maior vantagem da nossa teoriaconsiste no fato de nos proporcionar uma resposta satisfatória auma situação paradoxal descrita pelo próprio Piaget. Para Piaget,a diminuição quantitativa do discurso egocêntrico à medida quea criança vai crescendo significa o desaparecimento dessamesma forma de discurso. Se assim fosse, seria de esperar queas suas peculiaridades estruturais declinassem também: é difícilacreditar que o processo só afetasse a sua quantidade e não asua estrutura interna. O discurso da criança torna­seinfinitamente menos egocêntrico entre os três e os sete anos. Seas caraterísticas do discurso egocêntrico que o tornamincompreensível para os outros têm realmente as suas raízes noegocentrismo, deveriam tornar­se menos patentes à medida queesta forma de discurso se vai tornando menos freqüente; odiscurso egocêntrico deveria ir­se assemelhando ao discursosocial, tornando­se progressivamente mais inteligível. Mas o queé que acontece? Será a fala de uma criança de três anos maisdifícil de seguir do que a de uma criança de sete anos? Pelasnossas investigações chegamos à conclusão de que os traços dodiscurso egocêntrico, responsáveis pela sua ininteligibilidade seencontram no seu ponto de desenvolvimento mais baixo aos trêsanos, atingindo o seu maior desenvolvimento aos sete anos.Desenvolve­se em sentido inverso ao discurso egocêntrico.Enquanto este último vai diminuindo e atinge uma incidêncianula por alturas da idade escolar, as características estruturaistornam­se progressivamente mais e mais pronunciadas

Este fato lança uma nova luz sobre a diminuiçãoquantitativa do discurso egocêntrico, que é a pedra de toque dateoria de Piaget.

Que significa esta diminuição7 As característicaspeculiares do discurso de si para si e a sua diferenciaçãorelativamente ao discurso exterior aumentam com a idade. Quediminuirá então? Apenas um dos seus aspectos: a vocalização.Quer isto dizer que o discurso egocêntrico como um todo seencontra em vias de desaparecer'? Estamos em crer que tal nãose passe, porque, nesse caso, como poderíamos explicar odesenvolvimento das características funcionais e estruturais dodiscurso egocêntrico? Por outro lado, tal desenvolvimento éperfeitamente compatível com a diminuição da vocalização — naverdade, clarifica até o seu significado. O seu rápido declínio e orápido desenvolvimento das outras características só naaparência são contraditórios.

Para explicarmos isto vamos partir de um fato inegável,experimentalmente demonstrado. As qualidades funcionais eestruturais do discurso egocêntrico tornam­se mais marcadas àmedida que a criança se desenvolve. Aos três anos a diferençaentre o discurso social e o discurso egocêntrico da criança énula. Aos sete anos, temos um discurso que pela sua estrutura epela sua função é totalmente diferente do discurso social. Deu­seuma diferenciação dos dois discursos. Isto é um fato — e sabe­sebem que os fatos são de difícil refutação.

Uma vez isto aceite, tudo o resto daqui decorreautomaticamente. Se as peculiaridades funcionais e estruturaisdo discurso egocêntrico o vão isolando progressivamente dodiscurso exterior, então o seu aspecto vocal deverá desvanecer­se; e é isto, precisamente, o que acontece entre os três e os seteanos de idade. Com o progressivo isolamento do discurso de sipara si a sua vocalização torna­se desnecessária e perdesignificado e, dado que as suas peculiaridades estruturais se vãodesenvolvendo, também impossível. O discurso de si para si nãopode achar expressão no discurso externo. Quanto maisindependente e autônomo o discurso egocêntrico se torna, maisdebilmente se desenvolve nas suas manifestações externas. Notermo do processo, separa­se integralmente do discurso para osoutros, deixa de ser vocalizado e parece nessa altura que está amorrer.

Mas isso é uma ilusão. Interpretar o coeficiente deprofundidade do discurso egocêntrico como um sinal de que estetipo de discurso está a morrer é como dizer que a criança deixade contar quando cessa de utilizar os dedos para passar acalcular mentalmente. Na realidade., para lá dos sintomas dedissolução, oculta­se um desenvolvimento progressivo, onascimento de uma nova forma de discurso.

O declínio da vocalização do discurso egocêntrico é sinal deque a criança se vai progressivamente abstraindo do som, e vaiadquirindo uma nova capacidade, a faculdade de “pensar aspalavras” em vez de as pronunciar. Tal é o significado positivo dograu de aprofundamento do discurso egocêntrico. A curvadescendente significa uma evolução em direção do discursointerior.

Podemos ver que todos os fatos conhecidos relativamenteàs características funcionais, genéticas e estruturais do discursoegocêntrico apontam para uma e mesma coisa: tal discursoevolui para o discurso interior. A história do seu desenvolvimentosó pode ser compreendida como um progressivo desabrochar dascaracterísticas do discurso interior.

Estamos em crer que tal fato corrobora a nossa hipóteseacerca da origem e da natureza do discurso egocêntrico. Paraconvertermos a nossa hipótese numa certeza, temos queidealizar uma experiência suscetível de nos mostrar qual dasduas interpretações é a correta. Quais são os dados de quedispomos para esta experiência crítica?

Formulemos de novo as teorias sobre as quais temos detomar uma decisão. Piaget crê que o discurso egocêntrico égerado pela insuficiente socialização do discurso e que só se podedesenvolver de uma maneira: diminuindo e acabando pormorrer. O seu ponto culminante fica para trás, no passado. Odiscurso interior é algo de novo, importado do exteriorparalelamente à socialização. O seu ponto culminante está porvir. Evolui para o discurso interior.

Para obtermos provas a favor ou contra um ou outro dosdois pontos de vista, temos que colocar a criança alternadamenteem situações experimentais que encorajem o discurso social eem situações que o desencorajem, observando como asalterações afetam o discurso egocêntrico. Consideramos estaexperiência um experimentum crucis pelas seguintes razões.

Se a fala egocêntrica da criança resulta do seu pensamentoegocêntrico e da insuficiência de socialização, então qualquerdebilitamento dos elementos sociais no quadro experimental,qualquer fator que aumente o isolamento da criançarelativamente ao grupo conduzirá necessariamente a um súbitoaumento do discurso egocêntrico. Mas se este último resulta deuma insuficiente diferenciação entre o discurso para si próprio eo discurso para os outros, então as mesmas alteraçõesconduzirão ao seu declínio.

Tomamos como ponto de partida para a nossa experiênciatrês observações do próprio Piaget: 1) o discurso egocêntrico sósurge na presença de outras crianças implicadas na mesmaatividade, e não quando a criança está sozinha; isto é, nummonólogo coletivo. 2) a criança tem a ilusão de que este discursoegocêntrico que não é dirigido para ninguém, é compreendidopelos que a cercam. 3) o discurso egocêntrico tem o caráter dediscurso exterior. Não é inaudível nem murmurado. Estascaracterísticas não são com certeza fruto do acaso. Do ponto devista da própria criança, o discurso egocêntrico ainda não sediferencia do discurso social. Ocorre nas condições objetivas esubjetivas do discurso social e pode ser considerado como umequivalente de insuficiente isolamento entre a consciênciaindividual da criança e o todo social.

Na nossa primeira série de experiências (46)(47)(46, 47),tentamos destruir a ilusão da criança de que era compreendida.Após termos medido o grau de egocentricidade do discurso numasituação semelhante à das experiências de Piaget, pusemos acriança numa situação diferente e nova: com crianças surdas­mudas ou com crianças que falavam uma língua estrangeira. Oquadro experimental mantinha­se inalterado relativamente atodas as outras condições. O coeficiente de discurso egocêntricotornou­se nulo na maioria dos casos e nos restantes, desceu emmédia para um número que era um oitavo do primitivo. Istoprova que a ilusão da compreensão não é um simplesepifenômeno do discurso egocêntrico, antes se encontrafuncionalmente correlacionado com aquele. Os nossos resultadosdevem parecer paradoxais do ponto de vista das teorias dePiaget: quanto mais débil é o contato entre a criança e o grupo(quer dizer, quanto menos a situação social a força a ajustar osseus pensamentos aos outros e a fazer uso do discurso social)mais livremente deverá manifestar­se o egocentrismo do seudiscurso e do seu pensamento. Mas, do ponto de vista da nossahipótese, o significado destas descobertas é claro: o discursoegocêntrico, que resulta do insuficiente grau de diferenciaçãoentre o discurso para si próprio e do discurso para os outros,desaparece quando o sentimento de ser compreendido, que éessencial para o discurso social, se encontra ausente.

Na segunda série de experiências, o fator variável era apossibilidade do monólogo coletivo. Após termos medido ocoeficiente de discurso egocêntrico de cada criança em situaçõesque permitiriam o monólogo coletivo, colocamo­las numasituação que o tornava impossível — num grupo de crianças quelhe são estranhas ou então numa mesa separada num canto da

sala; noutros casos deixava­se a criança trabalharcompletamente só, fazendo­se com que o próprio experimentadorabandonasse a sala. Os resultados desta série estão emconcordância com os primeiros resultados. A impossibilidade domonólogo coletivo teve por conseqüência uma queda docoeficiente de egocentricidade e do discurso, embora não deforma tão flagrante como no primeiro caso — raramente setornou nulo e em média baixou para um sexto do número inicial.Os diferentes métodos de impossibilitar o monólogo coletivo nãotiveram a mesma eficácia no respeitante à redução do coeficientede discurso egocêntrico. No entanto, a tendência para a reduçãodesse coeficiente era patente em todas as variantes daexperiência. A exclusão do fator coletivo não libertoucompletamente o discurso egocêntrico pelo contrário, inibiu­o. Anossa hipótese foi mais uma vez confirmada.

Na terceira série de experiências, o fato variável era aqualidade vocal do discurso egocêntrico. Do lado de fora da salaonde a experiência se desenrolava, encontrava­se instalada umaorquestra que tocava tão alto ou fazia­se tanto barulho, que nãosó todas as outras vozes, mas também a da própria criançaficavam afogadas numa variante de experiência, proibia­seexpressamente à criança falar alto, permitindo­se­lhe apenas quemurmurasse. Mais uma vez o coeficiente de discurso egocêntricobaixou, sendo a relação entre o seu número e o número primitivode 5:1. Também neste caso os diferentes métodos não tinham amesma eficácia, mas a tendência de base encontrava­seinvariavelmente presente.

O propósito de todas estas séries de experiências eraeliminar as características do discurso egocêntrico que seassemelham com o discurso social. Chegamos à conclusão quetal levava invariavelmente a um abrandamento do discursoegocêntrico. É portanto lógico pressupor que o discursoegocêntrico é uma forma que se desenvolve a partir do discursosocial e que ainda não se encontra separada desta nas suasmanifestações, embora já seja distinta nas suas funções eestrutura.

A discordância existente entre nós e Piaget no tocante aesta questão tornar­se­á clara com o seguinte exemplo: estousentado na minha secretária e falo para uma pessoa que seencontra colocada por detrás de mim, não me sendo possível vê­la; se essa pessoa sair da sala sem eu dar por ela, continuo afalar, julgando que ela continua a ouvir­me e a compreender­me.Externamente, estou a falar de mim para mim, maspsicologicamente o meu discurso continua a ser social. Do ponto

de vista de Piaget passa­se o contrário com a criança: o seudiscurso egocêntrico é um discurso de si para si; apenas tem aaparência de um discurso social, tal como o meu discurso dava aimpressão de ser egocêntrico. Do nosso ponto de vista, asituação é muito mais complicada: subjetivamente, o discursoegocêntrico da criança já possui a sua função específica — nessamedida é independente do discurso social; no entanto, a suaindependência não é completa, porque não é sentido como umdiscurso interior e a criança não o distingue do discurso para osoutros. Também objetivamente é diferente do discurso social,mas também neste caso tal não se verifica completamente, pois odiscurso só funciona em situações sociais. Mas tanto subjetivacomo objetivamente, o discurso egocêntrico representa umatransição entre o discurso para os outros e o discurso de si parasi. Já tem a função do discurso interior, mas, pela suaexpressão, continua a ser semelhante ao discurso social.

A investigação do discurso egocêntrico preparou o terrenopara a compreensão do discurso interior, que passaremos aanalisar seguidamente.

IV

As nossas experiências convenceram­nos de que se deveencarar o discurso interior, não como um discurso sem som,mas como uma função discursiva totalmente diferente. O seutraço principal é a sua sintaxe muito particular. Em comparaçãocom o discurso exterior, o discurso interior parece desconexo eincompleto.

Esta observação não é nova. Todos os que estudaram odiscurso interior, mesmo os que o abordaram dum ponto de vistabehaviourista notaram esta característica. O método de análisegenética permite­nos ir além de uma simples descrição dessacaracterística. Aplicamos este método e verificamos que, àmedida que o discurso interior se desenvolve, evidencia umatendência para a forma de abreviação totalmente específica:nomeadamente, a omissão do sujeito de uma frase e de todas aspalavras com ele relacionadas, embora preservando o predicado.Esta tendência para a predicação surge em todas as nossasexperiências com tal regularidade que somos forçados a admitirque se trata da forma sintática fundamental do discurso interior.

Para compreendermos esta tendência poderá ser­nos útilrecordarmos certas situações em que o discurso exteriorapresenta uma estrutura semelhante. A predicação pura ocorreno discurso exterior em duas circunstâncias: quando se trata de

uma resposta ou quando o sujeito da oração já é conhecido deantemão de todos os participantes da conversa. A resposta àpergunta: “Quer uma chávena de chá?” não é nunca: “Não, nãoquero uma chávena de chá”, mas um simples “Não”.Obviamente, tal sentença só é possível porque o sujeito já éconhecido de ambas as partes. À pergunta: “O teu irmão leu estelivro?” ninguém responde “Sim, o meu irmão leu este livro”. Aresposta é um curto “Leu”, ou “Sim, leu”. Imaginemos agora queum grupo de pessoas está à espera do autocarro: ninguém dirá,ao ver que o autocarro se aproxima: “O autocarro de que estamosà espera aproxima­se”. O mais provável é a frase consistir numabreviado: “Vem aí”, ou qualquer expressão do gênero, pois osujeito é evidente, dada a situação. Muito freqüentemente, asfrases abreviadas são causa de confusão. O ouvinte poderelacionar a frase com um sujeito que lhe ocupa o espírito dumaforma predominante e não com um sujeito que o emissor quersignificar. Se os pensamentos das duas pessoas coincidirem,pode­se conseguir um perfeito entendimento pelo uso dossimples predicados, mas se estiverem a pensar em coisasdiferentes, o mais certo é haver um mal­entendido entre eles.

Nos romances de Tolstoy encontramos exemplos muitobons de condensação do discurso exterior e sua redução apredicados: tais exemplos freqüentemente incidem sobre apsicologia do conhecimento: “Ninguém ouviu claramente o queele disse, mas Kitty compreendeu­o. Compreendeu­o porque oseu espírito estava constantemente a observar as suasnecessidades” (Anna Karenina, Parte V, Cap. 18). Poderíamosdizer que os seus pensamentos ao seguirem os pensamentos domoribundo, continham o sujeito a que a sua palavra se referia eque ninguém mais compreendeu. Mas talvez o exemplo maisflagrante seja a declaração de amor entre Kitty e Levin porintermédio das letras iniciais:

“Há muito que desejava perguntar­lhe uma coisa.

— Faça favor.

— É o seguinte — disse ele, escrevendo as iniciais Q r: n ps, q d n m o n?. Estas letras queriam dizer: “Quando respondeu:não pode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?” Pareciaimpossível que ela pudesse compreender a complicada frase.

— Compreendo — disse ela.

— Que palavra é esta? — perguntou ele, apontando para on que significava “nunca”.

— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas não é verdade.Levin apagou rapidamente o que tinha escrito, estendeu­lhe o gize levantou­se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.

A sua face resplandeceu: tinha compreendido. A frasesignificava: “Naquele momento, não poderia ter respondidodoutra maneira”.

Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p e e p o q s t p.Isto queria dizer: para que pudesses esquecer e perdoar o que setinha passado.

Ele tomou o giz com mãos tensas e trêmulas, quebrou­o eescreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho nada a esquecer e aperdoar. Nunca deixei de te amar”.

— Compreendo — sussurrou ela.

O rapaz sentou­se e escreveu uma longa frase. Elacompreendeu­a integralmente sem lhe perguntar se estava a irbem, pegou no giz e respondeu­lhe imediatamente. Ele esteve umlongo intervalo sem compreender o que tinha sido escrito emanteve olhar fixo no dela O seu espírito encontrava­se tonto defelicidade. Sentia­se completamente incapaz de deduzir aspalavras que ela indicava; mas nos olhos radiantes e felizes darapariga leu tudo o que precisava de saber. E escreveu trêsletras. Não tinha ainda acabado de escrever e já Kitty estavalendo por sob a sua mão e escrevia a resposta: “Sim”. Tinhamdito tudo na conversação que tinham mantido: que ela o amava eque diria ao pai e à mãe que ele haveria de dirigir­se­lhes namanhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap. 13).

Este exemplo tem um interesse psicológico extraordinário,porque. tal como todo o episódio entre Kitty e Levin, Tolstoy oextraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta maneira queTolstoy comunicou a sua mulher o seu amor por ela. Estesexemplos mostram claramente que quando os pensamentos dosinterlocutores são os mesmos, o papel da fala se reduz aomínimo. Noutro ponto, Tolstoy assinala que entre pessoas quevivem num estreito contato psicológico, tal comunicação pormeio do discurso abreviado se torna a regra, e deixa de ser aexceção.

“Agora, Levin habituara­se a exprimir o seu pensamentointegralmente sem qualquer problema sem se preocupar emvertê­lo nas palavras exatas. Ele sabia que a sua mulher, nosmomentos plenos de amor como este, compreenderia o que ele

queria dizer, bastando­lhe um indício; e ela compreendia, defato” (Anna Karenina, parte VI, Cap. 3).

A tendência para a predicação que surge no discursointerior quando os dois interlocutores sabem do que se trata écaracterizada por uma sintaxe simplificada, pela condensação epor um número de palavras extremamente reduzido. Asconfusões plenas de comicidade que se dão quando ospensamentos das pessoas seguem direções diferentes estão emcompleto contraste com este tipo de compreensão. A confusão aque isto pode levar é bem dada por este pequeno poema:

Dois surdos são julgados por um surdo juiz.“Este roubou­me a minha vaca”, um deles diz,

“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”

E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!“A culpa não é vossa, é da rapariga”.

A conversação de Kitty com Levin e o julgamento do surdosão casos extremos, quer dizer, são na realidade os dois pólosextremos do discurso exterior. Um deles exemplifica acompreensão mútua que se pode conseguir através de umdiscurso completamente abreviado quando o sujeito que ocupaos dois espíritos é o mesmo; o outro, exemplifica aincompreensão total, mesmo com um discurso completo, quandoos pensamentos das pessoas vagueiam em diferentes direções.Não são apenas os surdos que não conseguem compreender­se;tal acontece também com quaisquer duas pessoas que dão umsignificado diferente à mesma palavra ou que defendem pontosde vista diferentes. Como Tolstoy notou, aqueles que estãoacostumados ao pensamento solitário e independente nãoapreendem facilmente os pensamentos de outrem e são muitoparciais relativamente aos seus próprios: mas as pessoas quemantêm um contato estreito apreendem os significadoscomplicados que transmitem mutuamente por meio de umacomunicação “lógica e clara” levada a cabo com o menor númerode palavras.

Depois de termos examinado as abreviaturas no discursoexterior, podemos agora, enriquecidos, debruçar­nos sobre omesmo fenômeno no discurso interior, em que não é a exceção,mas a regra. Será instrutivo comparar as abreviaturas nosdiscursos orais, interiores e escritos. A comunicação por escritorepousa sobre o significado formal das palavras e, paratransmitir a mesma idéia, exige uma quantidade de palavrasmuito maior do que a comunicação oral. Dirige­se a um

interlocutor ausente que raramente tem presente no espírito omesmo sujeito que quem escreve. Por conseguinte, terá que serum discurso completamente desenvolvido; a diferenciaçãosintática atinge a sua máxima expressão e utilizam­seexpressões que soariam como não naturais na conversação oral.A expressão de Griboedov “ele fala como escreve” refere­se aoefeito estranho provocado pelas construções elaboradas quandoutilizadas na linguagem na fala do dia a dia.

A natureza multifuncional da linguagem, que tem atraído aatenção aturada dos lingüistas, já tinha sido assinalada porHumboldt no tocante à poesia e à prosa — duas formas muitodiferentes pela sua função e também pelos meios que mobilizam.Segundo Humboldt, a poesia é inseparável da música, ao passoque a prosa depende inteiramente da linguagem e é dominadapelo pensamento. Consequentemente, cada uma destas formastem a sua própria dicção, a sua própria gramática, a sua própriasintaxe. Esta concepção é de primeiríssima importância, emboranem Humboldt, nem os que desenvolveram o seu pensamentotenham compreendido completamente todas as suas implicações.Limitavam­se a estabelecer a distinção entre poesia e prosa e,nesta última, entre a troca de idéias e a conversação vulgar, istoé, a simples troca de informações ou a cavaqueira convencional.Há outras importantes distinções funcionais no discurso. Umadelas e a distinção entre monólogo e diálogo. O discurso interiore o discurso escrito representam o monólogo; o discurso oral, namaioria dos casos, representa o diálogo.

O diálogo pressupõe sempre, da parte dos interlocutores,um conhecimento do assunto suficiente para permitir o discursoabreviado e, em certas condições, as frases puramentepredicativas. Também pressupõe que todas as pessoas estão emcondições se ver os seus interlocutores, as suas expressõesfaciais e os gestos que fazem e de ouvir o tom de voz. Jádiscutimos as abreviaturas e passaremos a considerar nesteponto apenas o aspecto auditivo, utilizando um exemplo clássico,extraído do “Diário de um Escritor”, de Dostoyevski, paramostrar o quanto a entoação ajuda a compreender asdiferenciações sutis dos significados das palavras.

Dostoyevski relata uma conversação de bêbadosinteiramente constituída por uma palavra irreproduzível porescrito:

Uma noite de domingo aconteceu ter­me abeirado de umgrupo de seis jovens trabalhadores bêbados, tendo ficado a unsquinze passos deles. Subitamente apercebi­me de que

conseguiam exprimir todos os seus pensamentos, sentimentos eaté todo um encadeado de raciocínios por meio dessa únicapalavra, que, ainda por cima, é extremamente breve. Um dosjovens disse­a de uma forma rude e enérgica para exprimir o seucompleto desacordo com algo de que todos tinham estado a falar.Outro responde com o mesmo nome, mas num tom e numsentido totalmente diferentes — exprimindo as suas dúvidassobre os fundamentos da atitude negativa do primeiro. Eis senãoquando um terceiro se exalta contra o primeiro, irrompendoabruptamente na conversação e gritando excitadamente amesma palavra, mas desta vez como se fora uma praga ou umaobscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou a interferir, zangadocom o terceiro, o agressor, retendo­o, como querendo dizer: “Tensalguma coisa que te pôr às marradas? Estávamos a discutir osassuntos calmamente e logo vens tu, metes­te, e começas logo apraguejar!” E disse todo este pensamento numa só palavra, amesma venerável palavra; só que desta vez também levantou amão, pondo­a sobre o ombro do companheiro. Subitamente, umquarto, o mais novo do grupo, que até àquele momento se tinhamantido silencioso, como provavelmente tivesse encontradorepentinamente uma solução para a dificuldade inicial dondepartira a discussão, levantou a mão num transporte de alegria egritou ... Eureka, será isto? Terei encontrado a solução? Não,nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”, repetiu a mesmapalavra irreproduzível, uma palavra, uma simples palavra, mascom êxtase, numa explosão de comprazimento — manifestaçãoessa provavelmente um pouco exagerada, porque o sextomembro do grupo, o mais velho deles, sujeito de aparênciasoturna, não gostou da coisa e cortou cerce a alegria infantil dooutro, dirigindo­se­lhe num tom de baixo solene e exortativo erepetindo ... sim, repetindo exatamente a mesma palavra, amesma palavra proibida em presença de senhoras mas quenaquele momento queria dizer claramente “Para que são essesberros sem sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhumapalavra, nem uma sequer, repetiram aquela elocução queridaseis vezes de enfiada, seis vezes sucessivas e entenderam­seperfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).

A inflexão revela o contexto psicológico em que se devecompreender determinada palavra. Na história de Dostoyevsky,tratava­se de uma negação de desafio, num dos casos, de umadúvida, noutro, de ira, no terceiro. Quando o contexto é tão clarocomo neste exemplo, torna­se realmente possível transmitirtodos os pensamentos, todos os sentimentos e até toda umacadeia de raciocínios com uma só palavra.

No discurso escrito, como o tom de voz e o conhecimentodo assunto não são possíveis, somos obrigados a utilizar muitaspalavras e a utilizarmos essas palavras mais exatamente. Odiscurso escrito é a forma de discurso mais elaborada. Algunslingüistas consideram que o diálogo é a forma natural dodiscurso ora!, a forma em que a linguagem patenteiacompletamente toda a sua natureza, e que o monólogo é emgrande medida artificial. A investigação psicológica não nos deixagrandes dúvidas de que, na realidade, o monólogo é a forma maiselevada, mais complexa, a forma que historicamente sedesenvolve mais tarde. No momento presente, contudo, só nosinteressa estabelecer qualquer comparação no tocante àtendência para a elipse.

A velocidade do discurso oral não se propicia a umprocesso complicado de formulação — e não deixa tempo paradeliberações e opções. O diálogo implica a expressão imediatanão pré­determinada. É constituído por respostas e réplicas: éuma cadeia de reações. Em comparação com isto, o monólogo éuma formação complexa dando ao seu autor tempo e vagar parauma cuidada e consciente elaboração lingüística.

No discurso escrito, ao qual faltam os apoios situacionais,tem que se conseguir a comunicação por recurso exclusivo àspalavras e suas combinações. Isto exige que a atividadediscursiva assuma formas complicadas — e daí o emprego dosrascunhos. A evolução dos rascunhos para a versão finalreproduz o nosso processo mental. O planeamento tem umafunção importante no discurso escrito, mesmo quando não nossocorremos dum verdadeiro rascunho. Habitualmente, dizemos anós próprios o que vamos escrever; trata­se também de umrascunho, embora apenas em pensamento. Como tentamosmostrar no capítulo precedente, este rascunho mental é umdiscurso interior. Como o discurso interior funciona comorascunho não só para o discurso escrito mas também para odiscurso oral, passaremos agora a comparar ambas estas formascom o discurso interior, no tocante à tendência para a elipse epara a predicação.

Esta tendência, que não existe no discurso escrito e sómuito raramente surge no discurso oral, aparece sempre nodiscurso interior. A predicação é a forma usual do discursointerior; psicologicamente, este é exclusivamente constituído porpredicados. A omissão dos sujeitos é uma lei do discursointerior, exatamente na mesma medida em que a obrigatoriedadeda presença do sujeito e do predicado constitui uma lei dodiscurso escrito.

Este fato experimentalmente estabelecido tem umaexplicação: é que os fatores que facilitam a pura predicaçãoencontram­se invariável e obrigatoriamente presentes nodiscurso interior. Sabemos aquilo em que estamos a pensar —isto é, sabemos já sempre quais são o sujeito e a situação.Psicologicamente, o contato entre os interlocutores numaconversação pode estabelecer uma percepção mútua que conduzà compreensão do discurso elíptico. No discurso interior, apercepção “mútua” está sempre presente, numa forma absoluta;por conseguinte, dá­se, regra geral, uma comunicaçãopraticamente sem palavras mesmo quando se trata dospensamentos mais complicados.

A predominância da predicação é um produto dodesenvolvimento. De início, o discurso egocêntrico é, pela suaestrutura, idêntico ao discurso social, mas no seu processo detransformação em discurso interior vai­se tornando menoscompleto e coerente, à medida a que passa a ser regido por umasintaxe totalmente predicativa. As experiências mostram­nosclaramente como e porque razão a sintaxe predicativa vaicomeçando a dominar As crianças falam das coisas que vêem,ouvem ou fazem em determinado momento. Em resultado disto,tendem a deixar de lado o sujeito e todas as palavras que com elese relacionam, condensando progressivamente o seu discurso atéque só ficam os predicados. Quanto mais diferenciada se torna afunção específica do discurso egocêntrico, mais pronunciadas setornam as suas peculiaridades sintáticas — a simplificação e apredicação. A vocalização corre a par com esta modificação.Quando conversamos de nós para nós precisamos ainda demenos palavras do que Kitty e Levin. O discurso interior é umdiscurso quase sem palavras.

Reduzida a sintaxe e o som ao mínimo, o significado passaa ocupar um lugar mais do que nunca proeminente. O discursointerior opera com a semântica e não com a fonética. A estruturasemântica específica do discurso interior também contribui paraa elipse. A sintaxe dos significados no discurso interior não émenos original do que a sua sintaxe gramatical. A nossainvestigação estabeleceu três peculiaridades semânticas dodiscurso interior.

A primeira, que é essencial, é a preponderância do sentidodas palavras sobre o seu significado — distinção que devemos aPaulhan. Segundo este autor, o sentido de uma palavra é a somade todos os acontecimentos psicológicos que essa palavradesperta na nossa consciência. É um todo complexo, fluido,dinâmico que tem várias zonas de estabilidade desigual. O

significado mais não é do que uma das zonas do sentido, a zonamais estável e precisa. Uma palavra extrai o seu sentido docontexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentidomuda também. O significado mantém­se estável através de todasas mudanças de sentido. O significado de uma palavra tal comosurge no dicionário não passa de uma pedra do edifício dosentido, não é mais do que uma potencialidade que tem diversasrealizações no discurso.

As últimas palavras da já mencionada fábula de Krylov “ACigarra e a Formiga” constituem uma boa ilustração da diferençaentre sentido e significado. As palavras: “Pois agora dança'” têmum significado fixo e definido, mas no contexto da fábulaadquirem um sentido intelectual e afetivo mais vasto. Passam asignificar simultaneamente: “Diverte­te” e “Perece!”. Esteenriquecimento das palavras pelo sentido que adquirem nosdiferentes contextos é a lei fundamental da dinâmica dossignificados das palavras. Num determinado contexto, umapalavra significa simultaneamente mais ou menos do que amesma palavra tomada isoladamente; significa mais, porqueadquire um novo contexto; significa menos, porque o seusignificado é limitado e estreitado pelo mesmo contexto. Osentido de uma palavra, diz Paulhan, é um fenômeno complexo,móvel, protéico; modifica­se com as situações e consoante osespíritos e é praticamente ilimitado. As palavras extraem o seusentido da frase em que estão inseridas, e esta, por seu turno,colhe o seu sentido do parágrafo, o qual, por sua vez, o colhe dolivro e este das obras todas do autor.

Paulhan prestou ainda outro serviço à psicologia,analisando a relação entre a palavra e o sentido e mostrando quea independência entre um e outra é muito maior do que a queexiste entre a palavra e o significado. Há muito já se sabe que aspalavras podem mudar de sentido. Recentemente, houve quemassinalasse que o sentido pode modificar as palavras, ou melhor,que as idéias por vezes mudam de nome. Tal como o sentidoduma palavra se encontra relacionada com o conjunto dapalavra na sua totalidade, e não apenas com os seus sonsisolados, também o sentido duma frase se relaciona com aglobalidade da frase e não com as suas palavras tomadasisoladamente. Por conseguinte, uma palavra pode muitas vezesser substituída por outra sem se dar nenhuma modificação dosentido. As palavras e os seus sentidos são relativamenteindependentes uns dos outros.

No discurso interior, a predominância do sentido sobre osignificado, da frase sobre a palavra e do contexto sobre a frase

constitui a regra.

Isto conduz­nos a outras peculiaridades do discursointerior. Ambas dizem respeito à combinação das palavras entresi. Um desses tipos de combinação será antes como que umaaglutinação — uma forma de combinar as palavras bastantefreqüente em muitas línguas e relativamente rara noutras. Alíngua alemã forma freqüentemente um substantivo a partir dediversas palavras ou de frases. Em certas línguas primitivas, taledição de palavras constitui regra geral. Quando diversaspalavras se fundem numa única, a nova palavra não se limita aexprimir uma idéia bastante complexa, designa também todos oselementos separados contidos nessa idéia. Como a tônica recaisempre no radical ou na idéia principal, tais línguas são de fácilcompreensão. O discurso egocêntrico da criança patenteia umfenômeno semelhante. À medida que o discurso egocêntrico sevai aproximando da forma do discurso interior, a criança começaa utilizar a aglutinação cada vez mais como modo de formarpalavras compostas que exprimem idéias complexas.

A terceira peculiaridade semântica fundamental dodiscurso interior é a forma como os sentidos das palavras secombinam e congregam — processo que é regido por leisdiferentes das que regem as combinações de significados. Naaltura em que observamos esta forma singular de unir palavrasno discurso egocêntrico, chamamos­lhe “influxo de sentido”. Ossentidos de diferentes palavras confluem numa outra —“influenciam­se” literalmente ­ de forma que as primeiras estãocontidas nas últimas e as influenciam. Da mesma forma, umapalavra que continuamente se repete num livro ou num poemaabsorve por vezes todas as variantes de sentido neles contidas ese torna de certa maneira equivalente à própria obra. O título deuma obra literária exprime o seu conteúdo e completa o seusentido num grau muito mais elevado do que o título de umquadro ou de uma peça de música. Títulos como Dom Quixote,Hamlet ou Anna Karenina ilustram isto com toda a clareza; todoo sentido da obra se encontra contido numa palavra, num nome.Outro excelente exemplo é a obra Almas Mortas, de Gogol.Originalmente, o título referia­se aos servos mortos cujo nomenão fora removido das listas oficiais e que podiam continuar aser comprados e vendidos como se estivessem vivos. É nestesentido que as palavras são utilizadas durante todo o livro, que éconstruído em torno deste tráfico com os mortos. Mas, pela suaíntima relação com o conjunto da obra, estas duas palavrasadquirem uma nova significação e um sentido infinitamente maisvasto. Quando chegamos ao fim do livro, a expressão “Almas

mortas” significa para nós não só os servos defuntos, mastambém todos os personagens da história que estão fisicamentevivos, mas espiritualmente mortos.

No discurso interior, o fenômeno atinge a sua máximaincidência. Cada palavra isolada encontra­se tão saturada desentido, que, para a explicar no discurso exterior seriamnecessárias muitas palavras. Não é pois de surpreender que odiscurso egocêntrico seja incompreensível para os outros.Watson diz que o discurso interior seria incompreensível, mesmoque fosse possível gravá­lo. A sua opacidade acentua­se devido aum fenômeno que, diga­se de passagem, Tolstoy notou nodiscurso exterior: no seu livro, Infância, Adolescência eJuventude, descreve como, em pessoas que se encontram emcontato psicológico muito íntimo, as palavras adquiremsignificados especiais que só são entendidos pelos iniciados. Nodiscurso interior, desenvolve­se o mesmo tipo de idioma — o tipode idioma que é difícil de traduzir para a fala oral.

Com isto, concluímos o nosso relance sobre aspeculiaridades do discurso interior, com que nos defrontamospela primeira vez ao investigarmos o discurso egocêntrico.Quando fomos procurar comparações no discurso externo,descobrimos que este último já contém, pelo menospotencialmente, os traços característicos do discurso interno: apredicação, o declínio da oralidade, a predominância do sentidosobre o significado, a aglutinação, etc., aparecem também emcertas condições já no discurso externo. Estamos em crer queisto é a melhor confirmação da nossa hipótese, segundo a qual odiscurso interior tem origem na diferenciação do primitivodiscurso das crianças.

Todas as nossas observações indicam que o discursointerior é uma função autônoma da linguagem. Podemosconfiantemente encará­lo como um plano distinto dopensamento verbal. É evidente que a transição do discursointerior para o discurso externo não é uma simples traduçãoduma linguagem para outra. Não pode ser conseguida apenaspela simples oralização do discurso silencioso. É um processocomplexo, dinâmico que envolve a transformação da estruturapredicativa, idiomática do discurso interior em discursosintaticamente articulado, inteligível para os outros.

V

Podemos agora voltar a debruçar­nos sobre a definição dodiscurso interior que propusemos antes de iniciarmos a nossa

análise. O discurso interior não é o aspecto interior do discursoexterno — é uma função em si próprio. Continua a ser discurso,isto é, pensamento ligado por palavras. Mas enquanto opensamento externo se encontra encarnado em palavras, nodiscurso interior é, em grande medida, um pensamento feito designificados puros. É uma coisa dinâmica, instável, e derivante,que flutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentesmais ou menos estáveis, mais ou menos solidamente delineadosdo pensamento verbal. Só se pode compreender a sua verdadeiranatureza e o seu verdadeiro lugar, após se ter examinado o planoseguinte do pensamento verbal, o plano ainda mais profundo doque o discurso interior.

Esse plano é o próprio pensamento. Como dissemos, todosos pensamentos criam uma conexão, preenchem uma função,resolvem um problema. A corrente de pensamento não éacompanhada por um desabrochar simultâneo do discurso. Osdois processos não são idênticos e não há correspondência rígidaentre as unidades de pensamento e de discurso. Isto éparticularmente verdade quando um pensamento aborta —quando como Dostoyevski diz, um “pensamento não entra naspalavras”. O pensamento tem a sua própria estrutura e atransição entre ele e a linguagem não é coisa fácil. O teatrodefrontou­se, antes da psicologia, com o problema dospensamentos ocultos por detrás das palavras. Ao ensinar o seusistema de representação, Stanislawsky exigia dos autores quedescobrissem o “subtexto” das suas réplicas na peça. Na comédiade Griboedov “O Espírito traz a Infelicidade”, à heroína queafirma nunca o ter esquecido, o herói, Chatsky, diz: “Três vezesabençoado quem tal acreditar. A fé aquece o coração”.Stanislawsky interpretou esta passagem como querendo dizer:“Acabemos com esta conversa”, mas poderia também serinterpretada como querendo dizer: “Não acredito em si. Diz issopara me reconfortar”, ou: “Não vê que me está a atormentar? Eubem queria acreditar em si. Seria uma benção...”. Todas estasfrases que proferimos na vida real possuem uma espécie de sub­texto, um pensamento oculto por detrás delas. Nos exemplos queatrás demos da ausência de concordância entre o sujeito e opredicado, não levamos a nossa análise até ao fim. Tal como umafrase pode exprimir muitos pensamentos, um mesmopensamento pode ser expresso por meio de diferentes frases. Porexemplo, a frase “O relógio caiu”, como resposta à pergunta:“Porque é que o relógio parou?” poderia significar: “Não tive culpade o relógio se ter estragado; caiu”. O mesmo pensamento, que éuma auto­justificação, poderia assumir a forma seguinte: “Não émeu hábito mexer nas coisas das outras pessoas. Só estava a

limpar o pó aqui”, ou muitas outras frases.

Ao contrário do discurso, o pensamento não é constituídopor unidades separadas. Quando desejo comunicar opensamento de que hoje vi um rapaz descalço de camisa azul acorrer pela rua abaixo, não vejo cada elemento em separado: orapaz, a camisa, a cor desta última, a corrida do rapaz, aausência de sapatos. Concebo tudo isto num só pensamento,mas exprimo o pensamento em palavras separadas. Uminterlocutor leva por vezes vários minutos a expor um sópensamento. No seu espírito o pensamento encontra­se presentena sua globalidade num só momento, mas no discurso tem queser desenvolvido por fases sucessivas. Podemos comparar umpensamento com uma nuvem que faz cair uma chuva depalavras. Como, precisamente, um pensamento não temcorrespondência imediata em palavras, a transição entre opensamento e as palavras passa pelo significado Na nossa fala,há sempre o pensamento oculto, há sempre o sub­texto. Houvesempre lamentos acerca da inexpressibilidade do pensamentodevido ao fato de ser impossível uma transição direta dopensamento para a palavra:

Como poderá o coração exprimir­se?Como poderá outro compreendê­lo?

(F. Tjutchev)

A comunicação direta entre os espíritos é impossível, nãosó fisicamente mas também psicologicamente. A comunicação sóé possível de uma forma indireta. O pensamento tem que passarprimeiro pelos significados e depois pelas palavras.

Chegamos assim ao último passo da nossa análise dopensamento verbal. O pensamento propriamente dito é geradopela motivação, isto é, pelos nossos desejos e necessidades, osnossos interesses e emoções. Por detrás de todos ospensamentos há uma tendência volitiva­afetiva, que detém aresposta ao derradeiro porquê da análise do pensamento. Umaverdadeira e exaustiva compreensão do pensamento de outremsó é possível quando tivermos compreendido a sua base afetiva­volitiva. Ilustraremos isto por meio de um exemplo que já temsido utilizado: a interpretações dos papéis de uma peça. Nassuas instruções para os atores, Stanislawsky enumerava osmotivos subjacentes nas palavras dos seus personagens. Porexemplo:

TEXTO DA PEÇA

MOTIVOS SUBJACENTESSofia:Ah, Chatsky, como estou contente por teres vindo!Tente ocultar a atrapalhação.Chatsky:Estás tão contente! Que simpático! Mas alegrias dessas nãoentendo bem! Pois antes me parece que ao fim e ao cabo. Ao virpor aí à chuva mais o meu cavalo. A mim me contentei e a maisninguém.Tenta fazê­la sentir­se culpada.“Não tens vergonha?!”Tenta forçá­la a ser franca!Liza:Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar. Há uns cincominutos, não, nem há tanto, não. Vosso nome ouviríeis bem altosoar!Ah Menina! Dizei­lhe que tenho razão!Tenta acalmá­lo. Tenta ajudar Sofia numa situação difícil.Sofia:Assim é, nem mais, nem menos!Que quanto a isso, sei que não tendes nada que me censurar!Tenta serenar Chatsky.Não sou culpada de nada.Chatsky:Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!Três vezes louvado quem tiver fé!Pois a fé o coração aquece!Acabemos com esta conversa, etc..

Para compreendermos o discurso de outrem, não bastacompreender as suas palavras — temos que compreender o seupensamento. Mas também isto não basta — temos que conhecertambém as suas motivações. Nenhuma análise psicológica deuma frase proferida se encontra completa antes de se teratingido esse plano.

Chegamos ao fim da nossa análise; passemos os seusresultados em revista. O pensamento verbal surge­nos comouma entidade dinâmica e complexa e a relação entre opensamento e a palavra no seu interior aparece­nos como ummovimento que abarca uma série de planos. A nossa análiseseguiu o processo desde o seu plano mais externo até ao seuplano mais interno. Na realidade, o desenvolvimento dopensamento verbal segue uma trajetória oposta: do motivo quegera um pensamento à modelação do pensamento, primeiro nodiscurso interior, depois nos significados das palavras e

finalmente nas palavras. Seria no entanto errado imaginar queeste é o único caminho do pensamento para a palavra. Odesenvolvimento pode deter­se num ponto qualquer da suacomplexa trajetória; é possível uma infinidade de movimentosprogressivos e recessivos, uma grande variedade de evoluçõesque desconhecemos ainda. O estudo destas multifacetadasvariações não cabe no âmbito da nossa tarefa presente.

A nossa investigação seguiu um percurso bastanteinvulgar. Desejávamos estudar a forma como internamenteoperam o pensamento e a linguagem, formas essas que seencontram ocultas à observação direta. O significado e todo oaspecto interior da linguagem, a sua faceta que se encontravoltada para a pessoa e não para o mundo exterior temconstituído até hoje um território desconhecido. Sejam quaisforem as interpretações que lhes sejam dadas, as relações entreo pensamento e a palavra foram sempre consideradas como algoconstante e imutável, estabelecido para sempre. A nossainvestigação mostrou que tais relações são, pelo contrário,relações mutáveis entre processos, que surgem durante odesenvolvimento do pensamento verbal. Não queríamos nempodíamos esgotar o assunto do pensamento verbal. Tentamosapenas dar uma concepção geral da infinita complexidade destaestrutura dinâmica — concepção que parte dos fatosexperimentalmente documentados.

Para a psicologia associacionista, o pensamento e apalavra encontram­se unidos por laços externos, semelhantesaos laços existentes entre duas sílabas sem sentido. A psicologiagestaltista introduziu o conceito dos nexos estruturais, mas, talcomo a velha teoria, não entrou em linha de conta com asrelações específicas entre o pensamento e a palavra. Quanto àsoutras teorias, agrupavam­se em torno de dois pólos — quer opólo do conceito behaviourista segundo o qual o pensamento élinguagem sem o ponto de vista idealista, defendido pela escolade Wuerzburg, e Bergson, segundo o qual o pensamento poderiaser “puro”, isto é, pensamento sem qualquer relação com alinguagem, pensamento que seria distorcido pelas palavras. Afrase de Tjutchev “Uma vez dito um pensamento torna­sementira”, poderia muito bem servir de epitáfio para o últimogrupo. Quer se inclinem para o puro naturalismo quer seinclinem para o idealismo mais extremo, todas estas teoriascomungam dum mesmo traço — o seu pendor anti­histórico.Estudam o pensamento e a palavra sem fazerem qualquerreferência à sua História genética.

Só uma teoria histórica do discurso interior poderá tratar

cabalmente este complexo e imenso problema. A relação entre opensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasceatravés das palavras. Uma palavra vazia de pensamento é umacoisa morta, e um pensamento despido de palavras permaneceuma sombra. A conexão entre ambos não é, no entanto, algo deconstante e já formado: emerge no decurso do desenvolvimento emodifica­se também ela própria. À expressão bíblica “Noprincípio era o Verbo”, Goethe faz Fausto responder: “Noprincípio era a ação”. A intenção desta frase é a de diminuir ovalor da palavra, mas podemos aceitar esta versão se lhe dermosoutra acentuação: no princípio era a ação. A palavra não é oponto de partida — a ação já existia antes dela; a palavra é otermo do desenvolvimento, o coroamento da ação.

Não podemos encerrar o nosso relance sem mencionarmosas perspectivas abertas pela nossa investigação. Estudamos osaspectos internos da linguagem que eram tão desconhecidospara a Ciência como o outro lado da Lua. Mostramos que aspalavras têm por característica fundamental serem um reflexogeneralizado do mundo. Este aspecto da palavra conduz­nos aolimiar de um tema muito mais profundo e mais vasto — oproblema geral da consciência. As palavras desempenham umpapel fundamental, não só no desenvolvimento do pensamentomas também no desenvolvimento histórico da consciência comoum todo. Cada palavra é um microcosmos da consciênciahumana.

Notas(i) — Por “percepção quase ao mesmo tempo” Koehler

entende situações em que instrumento e objetivo foram vistosjuntos pouco tempo antes, ou quando foram usadosconjuntamente tantas vezes numa situação idêntica que são,para todos os fins, psicologicamente apreendidossimultaneamente (18)(18, p. 39).

(ii) — Vygotsky não descreve o teste em pormenor. Aseguinte descrição é extraída de Conceptual Thinking inSchizophrenia, de E. Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 9­10).

O material utilizado nos testes de formação dos conceitosconsiste em 22 blocos de madeira de várias cores, formas,alturas e larguras. Existem 5 cores diferentes, 6 formasdiferentes, 2 alturas (os blocos altos e os blocos baixos), e 2larguras da superfície horizontal (larga e estreita). Na face

inferior de cada figura, que não é vista pelo sujeito, está escritauma das quatro palavras sem sentido: lag, bik, mur, cev.Desprezando a cor ou a forma, lag está escrita em todas asfiguras largas e altas, bik em todas as figuras largas e baixas,mur em todas as altas e estreitas, e cev nas baixas e estreitas.No inicio da experiência todos os blocos, misturados quer nascores, tamanhos e formas, são espalhados numa mesa defrontedo sujeito ... O examinador vira um dos blocos (a “amostra”),mostra e lê o seu nome ao sujeito, e pede­lhe que retire todos osblocos que pensar puderem pertencer ao mesmo tipo. Após osujeito o ter feito ... o examinador vira um doa blocos“erradamente” selecionado, mostra que é um bloco de um tipodiferente e encoraja o sujeito a prosseguir nas tentativas. Apóscada nova tentativa, outro bloco erradamente retirado é virado. Àmedida que o número de blocos virados aumenta, o sujeitoobtém gradualmente uma base para descobrir a quecaracterísticas dos blocos se referem as palavras sem sentido.Mal faça esta descoberta, as ... palavras ... começam a fixar­seem tipos definidos de objetos (ou seja, lag para blocos largos ealtos, bik para largos e baixos), e novos conceitos, para os quaisa linguagem não fornece nenhum nome, são então formados. Osujeito encontra­se então preparado para completar a tarefa deseparação dos quatro tipos de blocos indicados pelas palavrassem sentido. Então, o uso dos conceitos tem um valor funcionaldefinido para o fim requerido por este teste. Se o sujeito utilizarrealmente o pensamento conceptual na tentativa de resolução doproblema ... poder­se­á inferir da natureza dos grupos queconstrói e do seu procedimento na sua construção queaproximadamente cada etapa do seu raciocínio é refletida na suamanipulação dos blocos. A primeira abordagem do problema, omanuseamento da amostra, a resposta à correção, a descobertada solução, todos estes estádios da experimentação podemfornecer dados que podem servir como indicadores do nível depensamento do sujeito.

(iii) — A seguinte análise das observações experimentais étirada do estudo de E. Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 30­31):

Em muitos casos o grupo, ou grupos, criados pelo sujeitotêm quase o mesmo aspecto que numa classificação coerente, e acarência de uma verdadeira fundamentação conceptual sótransparece quando o sujeito se vê na contingência de pôr àprova as idéias que consubstanciam o seu agrupamento. Istoacontece no momento da correção quando o examinador vira umdos blocos erradamente selecionados e mostra que a palavra nele

escrita é diferente da do bloco de amostra, por exemplo, que nãoé mur. Este é um dos pontos críticos da experiência...

Sujeitos que abordaram a tarefa como um problema declassificação respondem imediatamente à correção de uma formaperfeitamente específica. Esta resposta é adequadamenteexpressa na afirmação: “Ah! Então não se trata da cor” (ouforma, etc.)... O sujeito retira todos os blocos que tinha colocadojunto à amostra e começa à procura de outra possívelclassificação.

Por outro lado, o comportamento exterior do sujeito noinício da experiência pode ter sido o de tentar conseguir umaclassificação. Pode ter colocado todos os blocos vermelhos juntoà amostra, procedendo com bastante segurança... e declarar quepensa que aqueles blocos vermelhos são os murs. Então oexaminador vira um dos blocos escolhidos e mostra que tem umnome diferente... O sujeito vê­o retirado, ou mesmo retira­o elepróprio obedientemente, mas é tudo quanto faz: não faznenhuma tentativa para retirar os outros blocos vermelhos dejunto da amostra mur. À questão do examinador se é que aindapensa que aqueles blocos devem estar juntos, e são mur,responde peremptoriamente. “Sim, devem manter­se juntosporque são vermelhos”. Esta réplica demolidora revela umaatitude totalmente incompatível com uma verdadeira tentativa declassificação e prova que os grupos que ele tinha formado eramna realidade pseudo­classes.

(iv) — Deve ficar bem claro neste capítulo que as palavrastambém desempenham uma importante, embora diferente,função nos vários estádios do pensamento por complexos.Contudo, consideramos o pensamento complexo um estádio nodesenvolvimento do pensamento verbal, à diferença de muitosoutros autores (21, 53,55) que alargam o termo complexo paraincluir o pensamento pré­verbal e mesmo o instinto primitivo dosanimais.

(v) — Idênticos desenhos foram mostrados a dois grupos decrianças em idade pré­escolar de idades e nível dedesenvolvimento semelhantes. Pediu­se a um grupo pararepresentar o desenho — o que indicaria o grau da imediataapreensão do seu conteúdo; ao outro grupo pediu­se para onarrar por palavras, tarefa requerendo uma capacidade decompreensão conceptualmente mediada. Verificou­se que os“atores” forneceram o significado da situação representada, aopasso que os narradores enumeraram objetos separados.

(vi) — “A cigarra e a formiga”. Em francês no original.

(vii) — O exemplo dado por Vygotsky perde parte do seuimpacto em português, devido às diferentes relações entre osgêneros na língua portuguesa e na língua russa.

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