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VII ENCONTRO ANUAL DO ANDHEP – DIREITOS HUMANOS,
DEMOCRACIA E DIVERSIDADE
23 a 25 de maio de 2012 – UFPR – Curitiba – PR.
Grupo de Trabalho: Mundialização, Tensões e Direitos
Humanos
“A Condição do Estrangeiro: cidadania e identidade”
Ms. Helisane Mahlke
UNILASALLE
Maio, 2012
O Direito dos Estrangeiros: cidadania e identidade
“Falaram-me os homens de humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si
Cada um separado do outro por um espaço sem homens
(Alberto Caeiro, Heterônimo de Fernando Pessoa, in Fragmentos)
O poema de Fernando Pessoa a que se faz referência foi usado com a
intenção de revelar a difícil arte de construir espaços comuns para além dos territórios;
construir comunidade para além do povo; construir humanidade para além da nação.
O objetivo desse artigo é discutir o tratamento dispensado aos estrangeiros no
Brasil, tendo como foco principal os imigrantes indocumentados e refugiados. A
intenção não é apenas contemplar as políticas governamentais e não-governamentais
que buscam assegurar os direitos humanos deste grupo de indivíduos, mas discutir
questões como cidadania, identidade, inclusão e justiça.
Para tanto, busca-se argumentos teóricos e filosóficos, que fundamentam o
reconhecimento e a proteção dos direitos desses indivíduos e sua relação, geralmente
controversa, com as fronteiras políticas e jurídicas do Estado. E, assim, propiciar uma
reflexão sobre a condição do estrangeiro no Brasil, de modo que ela possa contribuir
para uma revisão crítica da política adotada no país.
Podemos observar duas tendências atuais relativas ao reconhecimento dos
direitos do estrangeiro: os documentos internacionais de caráter universal que visam
assegurar os direitos humanos dessas pessoas, independentemente de sua
nacionalidade; e, por outro lado, uma auto-afirmação da soberania dos Estados ao
promoverem políticas migratórias restritivas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê em seu artigo XIII que
“Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras
de cada Estado”, e acrescenta, no § 2º: “Todo homem tem o direito de deixar qualquer
país, inclusive o próprio, e a este regressar”. A Convenção de Havana de 1928 sobre
os Direitos dos Estrangeiros obrigou os Estados a concederem aos estrangeiros
domiciliados ou de passagem em seu território as garantias individuais e os direitos
especiais que atribuem aos seus cidadãos. Disposições análogas encontram-se no
artigo 2° do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, nos artigos 2° e 26 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos, ambos concluídos em 1966 no âmbito das Nações
Unidas e no artigo 1° da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.
Especificamente na legislação pátria, o art. 5, caput de nossa constituição
salienta:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança”.
Contudo, essa disposição constitucional genérica não reflete a real diferença
de tratamento existente entre estrangeiros e nacionais, que é conferida pela lei
brasileira. Como veremos, alguns direitos são prerrogativa apenas de brasileiros natos
e, tanto brasileiros naturalizados quanto os estrangeiros, possuem restrições de
direitos1. Mas, antes, cabe diferenciarmos os diversos tipos de “estrangeiros” que
adentram o território nacional, em conceituação e perspectiva: o migrante econômico,
o refugiado e o apátrida.
Os movimentos migratórios e a transnacionalidade.
O imigrante é aquele que se dirige a outro Estado em busca de melhores
condições de vida, trabalho. Em geral, por não terem um direito subjetivo, como é o
caso dos refugiados, ficam sujeitos ao crivo das políticas migratórias do Estado
receptor. Não goza, o imigrante, do chamado “jus communicationis”, ou direito de
ingresso, ficando atrelado à decisão soberana do Estado.
O problema é definir que políticas migratórias e políticas sociais devem ser
adotadas no que se refere aos migrantes internacionais, nas suas três modalidades
consideradas: migrantes documentados, migrantes não-documentados e
refugiados/asilados.
Em termos mundiais, podemos observar, a partir da década de noventa, uma
tendência a movimentos migratórios mistos, ou seja, um deslocamento populacional
1No Brasil, a nacionalidade originária se estabelece mediante o critério do jus solis e somente poderá ser excluída nos casos previstos no art. 12, §4º da CF/88. A nacionalidade brasileira poderá ser adquirida por meio do processo de Naturalização, o qual representa um ato de concessão do país ao estrangeiro solicitante. Trata-se de um processo que segue os trâmites definidos pela Lei 6815/19801, também chamada de “Estatuto do Estrangeiro”, especificamente art. 111 e ss.
motivado por uma multiplicidade de motivos (conflitos, mudanças políticas e nas
cadeias produtivas, etc.).
O principal desafio se encontra na proteção e reconhecimento de direitos aos
imigrantes indocumentados, ou seja, aqueles que adentram no Estado receptor de
forma irregular. Esses indivíduos são os que estão em situação de maior
vulnerabilidade, pois se encontram à margem da proteção estatal e são,
frequentemente, vítimas das redes criminosas internacionais, ou da exploração de
mão-de-obra barata.
Stephen Castles2 discute o impacto que as migrações internacionais exercem
sobre a construção do Estado Nação soberano e a necessidade de revisar as políticas
adotadas por este na condução do problema:
“Estas nociones y tendencias contradictórias constituyen el telón del fondo del
drama contemporáneo que ha capturado la atención de los pueblos y de los
líderes: el surgimiento de la migración internacional como una fuerza para la
transformación social. Mientras que los movimientos de personas a través de
las fronteras han dado forma a estados y sociedades desde tiempos
inmemoriales, lo que és distinto en años recientes es su alcance global, su
caracter central para la política doméstica y internacional y sus enormes
consecuencias económicas y sociales. Los procesos migratórios se han vuelto
tan arraigados y resistentes al control gubernamental que emergerán nuevas
formas de control político. Esto no implica necesariamente la desaparición de
los estados-nación; en efecto, dicho prospecto es remoto. No obstante nuevas
formas de interdependencia, de sociedades transnacionales y de cooperación
bilateral y regional, están transformando rapidamente las vidas de millones de
personas, entretejiendo el destino del Estado y de la sociedad.”
Como marco jurídico importante na tentativa de estabelecer diretrizes para
desenvolver políticas migratórias mais eficazes e humanas, fazemos referência à
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Tal documento
ressalta os aspectos positivos da migração (geralmente negligenciados, especialmente
em época de securitização do tema); recomenda políticas que evitem a exploração
dos migrantes não-documentados e de proteção aos direitos humanos desses
indivíduos.3 Contudo, conforme Neide Patarra4, o grande desafio será encontrar meios
de tornar efetivos os compromissos assumidos internacionalmente, superando os
2 CASTLE, Stephen. La era de la migración: movimientos internacionales de población en el mundo moderno” de 2004, p. 12. 3 Em uníssono, a oportuna referência ao voto concorrente do Juiz Cançado Trindade na Opinião Consultiva nº 18 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, denunciando a “vedação de tratamento discriminatório oriundo da mera irregularidade da estadia do estrangeiro no território.” 4 Neide Lopes. “Migrações Internacionais de e para o Brasil Contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas”. In São Paulo em Perspectiva. Vol. 19. Nº3, (p. 23 – 33). Julho/set 2005.
conflitos que emergem do aparente antagonismo entre os direitos humanos dos
imigrantes, a soberania dos Estados, a democracia e o desenvolvimento social.
“Todas as constatações relevantes a respeito dos movimentos migratórios internacionais a partir de e para o Brasil indicam fortemente a urgência de tratamento de uma problemática emergente que demanda análise, entendimento e monitoramento. Isso significa reformulação e ampliação das políticas e ações frente à nova situação, para alterar seus pressupostos, tomar em conta as especificidades dos fluxos e dos grupos sociais envolvidos, defender os indivíduos de atravessadores, ampliar seu escopo para dar conta dos direitos humanos dos migrantes e de suas famílias.”
Considerando que o fluxo transnacional de pessoas e, consequente, o fluxo de
capitais, bens, informação, etc., que o acompanha são uma realidade inevitável e,
diria, necessária ao mundo globalizado, é completamente anacrônica a tendência dos
Estados ao recuo à sua postura clássica, baseada no reforço da soberania imposta
por barreiras físicas e jurídicas aos imigrantes. Mais eficazes e produtivas seriam as
políticas de cooperação a fim de promover o desenvolvimento e reduzir desigualdades
e não as políticas retrógradas de expurgo que relegam esses indivíduos a uma
situação de vulnerabilidade. Reproduz-se o pensamento de Abdelmalek Sayad5 para
reflexão
“A ordem da imigração e da emigração é tão tributária da ordem nacional, ou seja, das categorias ou dos esquemas de pensamento que constituíram essa ordem, que remete à heresia de todos os discursos, todas as práticas que não se conformam ou que não aderem imediatamente à representação espontânea, comum quase natural que se tem de ambas as ordens. É preciso uma ruptura verdadeiramente herética com relação a estas duas ordens para conceber e tornar concebível, para prever, fazer prever, para enunciar e anunciar um outro tipo de relação possível entre ambas.”
Se o “direito de migrar” não é reconhecido como um direito humano, ou é
rechaçado pelo Estado em defesa de sua soberania, é porque este direito escancara a
necessidade de construção de uma cidadania global. Ele consagra a universalidade
dos direitos humanos, rompendo com o paradigma da “nacionalidade” como o
fundamento para a proteção dos indivíduos e desafia o Estado a uma profunda
transformação para a qual não está (ou não quer estar) preparado, a despeito da
urgência e necessidade.
5 SAYAD, Abdelmalek. A Imigração: ou os paradoxos da alteridade”. São Paulo: Editora da Faculdade de São Paulo, 1998. p. 280.
A imigração no Brasil6 apresenta uma nova faceta, representada por uma
reversão no seu fluxo tradicional7. Antes um país exportador de imigrantes, hoje, o
Brasil tem se tornado um receptor para o fluxo estrangeiro, em virtude da estabilidade
política e econômica recentemente alcançada. Todavia, a política adotada pelo país,
no tratamento aos imigrantes é considerada anacrônica, cuja legislação remonta ao
período da ditadura militar, fortemente influenciada pela perspectiva de “segurança
nacional”.
Refugiados e Apátridas
Há duas categorias especiais de estrangeiros que detêm a proteção
internacional, fundamentada na proteção internacional dos direitos humanos.
Geralmente vítimas da perseguição, de conflitos, ou mesmo da exclusão, esses
indivíduos representam o símbolo da vulnerabilidade humana.
Segundo a Convenção Internacional sobre Refugiados de 1951 “um refugiado
ou uma refugiada é toda pessoa que por causa de fundados temores de perseguição
devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou
opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos
temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo.”.8
A concessão de refúgio é um ato declaratório por parte do Estado, com efeitos
ex tunc. Uma vez concedido o status de refugiado ao solicitante, ele recebe proteção e
amparo material do Estado que o recebe, até que seja possível e seguro retornar a
sua terra natal. É importante ressaltar, que o refugiado não está sujeito à extradição e
nem à reciprocidade. Respeita-se, também, o Princípio do non-refoulement (não-
devolução), ou seja, o refugiado não pode ser devolvido ao país de origem antes que
cesse toda ameaça que pesava sobre ele e que seja totalmente seguro e conveniente
propiciar o seu retorno.
6 A política migratória no Brasil é regulamentada pelo Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815/1980 e pelo CNIg (Conselho Nacional de Imigração) por ele criado, órgão presidido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com representação em outros Ministérios, organismos de classe e pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência. 7 Segundo o senso do IBGE de 2010, o número de imigrantes no Brasil praticamente duplicou em uma década. Se em 2000 eles eram 143,6 mil, decorridos dez anos passaram a perfazer um número de 268,4 mil pessoas. 8 As principais disposições do Direito Internacional sobre o tema encontram-se na Convenção de Genebra (1951), adotada pelo Brasil em 1960. O Estatuto da criação do ACNUR (1951). Estatuto dos Refugiados de 1951 e Protocolo de 1967, ambos ratificados pelo Brasil. Além disso, nosso país possui uma legislação específica sobre o tema: o Estatuto dos refugiados (lei 9474/1997).
Segundo a caracterização feita por André de Carvalho Ramos9, o refúgio
baseia-se em tratados universais de direitos humanos, que concedem ao solicitante de
refúgio um direito subjetivo de ingressar no território do Estado (sendo o único
estrangeiro que possui tal direito) até o momento da decisão final proferida pelo
Ministro da Justiça.
O Principal organismo internacional responsável pela proteção aos refugiados
é o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) criado pela
Assembleia Geral da ONU em 14 de dezembro de 1950 para proteger e assistir as
vítimas de perseguição, da violência e da intolerância. Desde então, já ajudou mais de
50 milhões de pessoas e ganhou por duas vezes o Prêmio Nobel da Paz (1954 e
1981).10
Os solicitantes de refúgio possuem situação diferenciada dos imigrantes
comuns, pois possuem Direito de ingresso Ex Jure. Segundo disposição da
Convenção de 1951, o refugiado possui um direito subjetivo de ingressar no Estado
receptor. Em consonância com a norma internacional, a Lei 9474 adotada pelo Brasil
em 1997, também reconhece esse direito aos refugiados
O Brasil vem se convertendo em um país receptor de refugiados nas últimas
décadas11, vindos em geral da África, América Latina e Oriente Médio. No país, a
solicitação de Refúgio é feita perante a Polícia Federal e autoridade migratória.
Comparecer à Caritas12 para identificação. Entrevista por membros do CONARE
(Comitê Nacional para Refugiados)13, informado o processo e submetido à apreciação
deste último, para conceder ou não o pedido. O parecer emitido pelo CONARE não é
definitivo, na concessão do refúgio, uma vez que a decisão final é do Ministro da
9 RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In 60 Anos de ACNUR: Perspectivas de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011. p.15 a 43. 10 Segundo Estatísticas do ACNUR, até o final de 2010, somam-se quase 34 milhões de pessoas ao redor do mundo, incluídos refugiados, solicitantes de refúgio, apátridas e deslocados internos. Especificamente: Refugiados, 10.549.686; deslocados internos, 14.697.804; apátridas, 3.463.070. 11 Segundo o CONARE, o Brasil abriga 4.432 refugiados, de 77 nacionalidades. 12 ONG, ligada à Igreja Católica que, no Brasil, trabalha em conjunto com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, no auxílio aos indivíduos solicitantes. 13O CONARE é o órgão colegiado, vinculado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade Civil e das Nações Unidas, e que tem por finalidade: analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição de refugiado; deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado; declarar a perda da condição de refugiado; orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e aprovar instruções normativas que possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97. Ele é composto de representantes do Ministério da Justiça, que o preside; do Ministério das Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; do Ministério do Trabalho e do Emprego; do Ministério da Saúde; do Ministério da Educação; do Departamento da Polícia Federal; da Caritas e do ACNUR.
Justiça.
A apatridia, por outro lado, visa oferecer proteção à pessoa que não é
considerada nacional por nenhum Estado, conforme legislação. Portanto, não tem os
direitos que cabem àqueles que detêm a cidadania de determinado país14. Segundo
estabelece o ACNUR15:
“A apatridia, que foi reconhecida pela primeira vez como um problema mundial na primeira metade do século XX, pode ocorrer como resultado de disputas entre Estados sobre a identidade jurídica dos indivíduos, da sucessão de Estados, da marginalização prolongada de grupos específicos dentro da sociedade, ou ao privar grupos ou indivíduos da sua nacionalidade. A apatridia está normalmente associada a períodos de mudanças profundas nas relações internacionais. O traçado de novas fronteiras internacionais, a manipulação dos sistemas políticos por parte de líderes nacionais a fim de alcançar fins políticos questionáveis e/ou a denegação ou privação da nacionalidade para excluir e marginalizar impopulares minorias raciais, religiosas ou étnicas, têm produzido apatridia em cada região do mundo. Nos últimos 20 anos, um número crescente de pessoas foi privado da sua nacionalidade ou não pôde obter uma nacionalidade efetiva. Se essas situações continuarem, o sentimento de exclusão nas populações afetadas poderá levá-las à deslocação.”
É importante ressaltar, que não é concedida a proteção às pessoas que
atualmente recebem proteção ou assistência de um órgão ou organismo das Nações
Unidas diferente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados,
enquanto estejam recebendo tal proteção ou assistência; nem àqueles a quem as
autoridades competentes do país onde tenham fixado sua residência reconheçam os
direitos e obrigações inerentes a posse da nacionalidade de tal país; e também às
pessoas que tenham cometido um delito contra a paz, um delito de guerra, ou um
delito contra a humanidade, ou que tenham cometido um delito grave de índole política
fora do país de sua residência, antes de sua admissão em tal país; ou que sejam
culpados de atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Da mesma forma que em caso de concessão de refúgio e asilo, uma vez sobre
a proteção do status de apátrida, o indivíduo não está sujeito à extradição, nem à
reciprocidade, a não ser que perca esta prerrogativa, por ter cometido ato que enseje
à autoridade estatal retirar-lhe o direito.
14 As principais normas internacionais sobre o tema são a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954 e a Convenção para a Redução dos casos de Apatridia, de 1961. O Brasil ratificou ambas convenções. 15 ACHIRON, Marilyn. Nacionalidade e Apatridia: manual para parlamentares. ACNUR. Outubro de 2009. Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2011/Nacionalidade_e_Apatridia_-_Manual_para_parlamentares
Entre o homem e o cidadão
A nacionalidade representa o vínculo político/jurídico de um indivíduo com
determinado Estado. Como tal, ele representa um fundamento para a garantia de
direitos. Assim, a nacionalidade é tida como um direito previsto pelo Direito
Internacional dos direitos humanos, art. 15 da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 1948, ““Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. Ninguém
pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de
nacionalidade”.
Contudo, no contexto do estrangeiro, do “outro”, a nacionalidade tem se
tornado um elemento de exclusão de direitos ao indivíduo que não usufrui desse
reconhecimento pelo Estado onde se encontre. É esse papel ambíguo que a
nacionalidade detém, que a torna ao mesmo tempo um direito e um fator de supressão
de direitos.
O problema do estrangeiro reside na questão dicotômica entre a nacionalidade,
parâmetro de restrição, e a universalidade, paradigma de inclusão de direitos
fundamentais. Todavia, o reconhecimento desses direitos encontra dificuldades,
sobretudo porque dependem da prestação do Estado (direitos sociais), ou da sua
abstenção (liberdades públicas). Como estabelecer ou tratar de forma igualitária
aqueles que não possuem o mesmo vínculo jurídico da nacionalidade, ou melhor,
Como estabelecer o parâmetro da igualdade.
Para tanto, talvez seja necessário refletirmos sobre a concepção de
nacionalidade. O historiador Eric J. Hobsbawm desenvolve um estudo com base nos
fenômenos históricos envolvidos na construção política do conceito de “nação”. A
construção artificial da “identidade nacional” estaria eivada pela insuficiência dos
argumentos objetivos (cultura, língua, etc), bem como dos subjetivos (sentimento de
pertencimento) para definir o tema. Segundo Hobsbawn16
“As tentativas de se estabelecerem critérios objetivos sobre a existência de nacionalidade, ou de explicar por que certos grupos se tornaram “nações” e outros não, frequentemente foram feitas com base em critérios simples como a língua, o território comum, a história comum, os traços culturais comuns e outros mais.(...)Todas as definições objetivas falharam pela óbvia razão de que, dado que apenas alguns membros da ampla categoria de entidades que se ajustam a tais definições podem, em qualquer tempo, ser descritos como “nações” nem possuem aspirações nacionais, ou sem dúvida as “nações” não correspondem aos critérios ou à sua combinação”
16 HOBSBAWN, Eric. Nação e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 3ªed. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1990. p. 15.
Hobsbawm estabelece alguns parâmetros norteadores de sua análise, a saber:
a) o uso do termo “nacionalismo”, tal como definido por Gellner, como o princípio que
sustenta que a unidade política e nacional deve ser congruente; b) a “nação” é um
fenômeno histórico recente, que deve ser relacionado à construção do Estado-nação
moderno, tendo sido criada por este e não o contrário; c) a “questão nacional” não
pode ser analisada fora do contexto das condições econômicas, políticas e sociais a
ela associadas; d) as “nações” são fenômenos duais, ou seja, são construídas não
apenas pelos governos, mas também pela ação das pessoas comuns; e) Inspirado em
Hroch, o autor observa que a “consciência nacional” desenvolve-se de maneira
desigual nos grupos sociais de um país e que a história dos movimentos nacionais se
desenvolve em três fases: 1ª) a fase que se desenvolveu na Europa do século XIX, de
conotação cultural e não política; 2ª) a fase em que a ideia nacional assume caráter
político; 3ª) quando a ideia nacionalista atinge o sentimento das massas.
A construção da Nação e, por conseguinte, sua qualidade ‘a nacionalidade’
serviu a propósitos de legitimação do poder soberano sobre o povo. Assim, as
“comunidades imaginadas”, na definição de Benedict Anderson, expressa a
artificialidade do seu conceito: “it is an imagined political community – and imagined as
both inherently limited and sovereign.”17
É irônico como o pertencimento à identidade nacional, assentada sobre bases
tão “artificialmente” sólidas, pode afetar de modo decisivo algo tão “naturalmente”
frágil: os direitos humanos inerentes a todo indivíduo e que, por essência, não
deveriam estar cerceados pela soberania estatal.
Diante desse contexto é que se expõe a problemática do estrangeiro, no
paradoxo artificialmente construído entre o homem e o cidadão, ou diria nacional18.
Segundo Jürgen Habermas19
17 “The nation is imagined limited because even the largest of them, encompassing perhaps a billion living human beings, has finite, if elastic, boundaries beyond which lie other nations.(…) It is imagined sovereign because the concept was born in an age in which Enlightenment and Revolution were destroying the legitimacy of the divinely-ordained hierarchical dynastic realm. Coming to maturity at a stage of human history when even the most devout adherents of any universal religion were inescapably were confronted with the living pluralism of such religions, and the allomorphism between each faith’s ontological claims and territorial stretch, nations dream of being free, and if under God, directly so. The gage and emblem of this freedom is the sovereign state. Finally, it is imagined as a community, because, regardless of the actual inequality and exploitation that may prevail in each, the nation is always conceived as a deep, horizontal comradeship . Ultimately It is this fraternity that makes it possible, over the past two centuries, for so many millions of people, not so much to kill, as willingly to die for such limited imaginings”. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Verso: London, 1991. p. 9. 18 Fazemos aqui a devida referência à distinção jurídica entre os termos cidadania e nacionalidade, segundo lição de André Ramos Tavares: “Tampouco se pode confundir o conceito de nacionalidade com
“É essa compreensão ético-política da nação que se vê afetada pela imigração; pois a afluência de imigrantes altera a composição da população também sob um ponto de vista ético-cultural. Isso explica a questão quanto aos limites do anseio por imigração: ele não esbarra justamente no direito a uma coletividade política a manter inata sua forma de vida político-cultural? E o direito à autodeterminação – sob a premissa de que a ordem geral do Estado, conformada de maneira autônoma está eticamente impregnada – não inclui o direito à auto-afirmação da identidade de uma nação? E isso também diante de imigrantes, que poderiam alterar a índole amadurecida ao longo da história de uma forma de vida político cultural?”
Infelizmente, a crescente tendência a tomar as políticas de imigração como
uma questão de segurança nacional, demonstra um movimento que se desenvolve na
contramão do reconhecimento dos direitos dos estrangeiros. A imigração é entendida,
nesse caso, como uma ameaça à soberania e integridade do Estado.
De fato, a relação direta entre direitos e identidade nacional permanece, sendo
que a nacionalidade e a cidadania são elementos fundamentais para a atribuição de
direitos. A contrário sensu, para aqueles que argumentam em favor de uma cidadania
global, a identidade nacional estaria perdendo sua centralidade no discurso em torno
do reconhecimento de direitos de cidadania. Segundo André de Carvalho Ramos20
“(...) O próprio conceito de ‘cidadão’, ampliado na era contemporânea para o de ‘nacional’, serve para excluir o outro, o não-nacional, amesquinhando seus direitos e constituindo-se em fonte inesperada de opressão a seres humanos, que não possuem a nacionalidade daquele Estado. Esse paradoxo do Estado de Direito é sentido na pele pelas legiões de estrangeiros indocumentados nos países desenvolvidos e também no Brasil.”
Condicionar o reconhecimento dos direitos dos estrangeiros às políticas
legislativas do Estado e ao seu conceito distorcido de soberania é contrariar a própria
essência dos direitos humanos universais que, aliás, não devem ser “constituídos”
pelo Estado, mas apenas “declarados”. Além disso, o reconhecimento desses direitos
representa a conformação do Estado às normas internacionais às quais aderiu e, por
conseguinte, tem o dever de cumprir. A legislação infraconstitucional tem um dever de
coerência para com as disposições constitucionais e as normas internacionais, que se
não observado, resulta em flagrante irresponsabilidade do Estado perante os
compromissos por ele assumidos.
o de cidadania. Cidadão é o indivíduo que reúne as condições necessárias para ter e exercer os chamados direito políticos. Pressuposto básico do cidadão é o de que seja nacional do respectivo Estado. Mas nem todo nacional possui a qualidade de cidadão. Portanto, o conceito de cidadão é mais restrito que o de nacional, que por seu turno, como visto, é mais restrito que o de integrante da população de um país.” TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2009. p. 754. 19 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. 3ª edição. Edições Loyola: São Paulo, 2002. p. 265. 20 RAMOS, André de Carvalho. “Direito dos Estrangeiros no Brasil: a Imigração, Direito de Ingresso e os Direitos dos Estrangeiros em Situação Irregular”. In Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2010. (p. 721 a 745). p. 732.
Para quem serve o direito?
Diante dessas reflexões e da necessidade de estabelecer políticas efetivas e
coerentes com a situação dos estrangeiros é necessário denunciar a discriminação e
desigualdade, perpetuada pelo estabelecimento de “barreiras invisíveis” à imigração.
Não se ignora, contudo a difícil inclusão do “outro”, aquele que possui uma identidade
diferente. Mas, propugna-se pela superação das políticas integracionistas, ou
assimilacionistas e pela construção de uma política de convivência.
Faz-se necessário constatar o óbvio: a convivência é uma realidade e, antes de
tudo uma necessidade. O respeito ao “outro” como prerrogativa do reconhecimento de
“si mesmo” deve ser um valor compartilhado. Mas como, considerando que valores
não são impostos, mas construídos? Talvez, cabe refugiar-nos na lição de Habermas21
“Porque um agir moral ‘por respeito à lei’ é incompatível com a objeção ética que exige o exame permanente da práxis, se ela se justifica ou não, como um todo, a partir da perspectiva do projeto de vida de cada um. Por motivos conceituais, o sentido categórico das obrigações morais só pode permanecer intacto na mesma medida em que é vedado ao destinatário retroceder, mesmo virtualmente, a partir da distância e da perspectiva da primeira pessoa, avaliar as vantagens e desvantagens de ser membro dessa comunidade. Do mesmo modo, também não há um caminho que leve inversamente da reflexão ética para a fundamentação moral.”
Mas, para tanto, um exame anterior se faz urgente: que lugar reservamos
àqueles relegados ao “não-lugar”? Como situá-los em nossa esfera de
reconhecimento, para que isso tenha a esperada conseqüência política e jurídica
decorrente? Quem é o sujeito? Ele existe sem um “poder” que lhe torne a existência
possível? Sobre essa questão discorre Giorgio Agamben22 ao ressuscitar do Direito
Romano, a figura paradoxal do homo sacer23, indivíduo excluído de todos os direitos
civis e que poderia ser morto, mas não sacrificado.
“Se a nossa hipótese está correta, a sacralidade é, sobretudo, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação ‘política’ originária, ou seja, a vida enquanto, na exclusão inclusiva, serve como referente à decisão soberana. Sacra a vida é apenas na medida em que está presa à exceção soberana, e ter tomado um fenômeno jurídico político (a insacrificável matabilidade do homo sacer) por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcaram no nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como aqueles sobre a soberania.”
21 Op. Cit. p. 36. 22 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010. p.86. 23 A figura obscura do homo sacer referia-se a um indivíduo que havia cometido um crime hediondo além da punibilidade. Literalmente, significa “sagrado” em sentido negativo, ou “amaldiçoado”
Tal concepção subverte a forma como entendemos a política, ou a relação do
homem com o poder instituído. Para Agamben, existem indivíduos que estariam à
margem da sociedade e, por conseqüência, do direito, como os refugiados, os
apátridas, os prisioneiros dos campos de concentração, etc. Esses indivíduos, à
margem do Estado, representam a necessidade básica pelo reconhecimento de
direitos, excluídos pela falta de reconhecimento deste, representam um desafio para
configuração do Estado Nação Clássico, ou do que o sociólogo Zygmunt Bauman24
chama de “mundo trinitário” (Estado+território+povo):
“The advent of the modern state coincided with the emergence of the ‘stateless persons’, the sans papier, and the idea of unwerts Leben, the latter-day reincarnation of the ancient institution of homo sacer, that ultimate embodiment of the sovereign right to exempt and exclude any human being as has been cast beyond the limits of human and divine laws and to make it into a being to whom no laws apply and whose destruction commands no punishment while ‘being’ is devoid of all ethical or religious significance”
Diante desses desafios, como solucionar o dilema entre o poder e a vida nua
(citando Agamben), entre o indivíduo e o Estado, entre os Direitos Humanos universais
e a soberania estatal? A hercúlea tarefa que se apresenta é a de tentar proteger e
assegurar direitos que dependem de uma estrutura para qual nem o Estado, nem o as
Instituições Internacionais estão plenamente preparadas. Os avanços são inegáveis,
mas a efetividade de políticas governamentais e internacionais está intrinsecamente
ligada a uma mudança de postura diante do problema, que está em curso, porém
ainda não consolidada a ponto de oferecer uma solução. Para Cançado Trindade25
Advances in this domain will be achieved, as already pointed out, in an atmosphere of human solidarity. Under this perspective, recent “constructions” of the type of “irregular” – or, worse still, “illegal” – migrants are quite negative, and do not assist at all in seeking durable solutions to the problems faced by migrants worldwide. Human beings are not deprived of the rights inherent to them as such, as a result of their migratory status or any other circumstance; one can envisage the human rights of the uprooted, and, – contrary to what some would appear to try to make one believe nowadays, – the principle of non-refoulement belongs to the domain of jus cogens. The discretionality of States has its limits, and their policies on deportation and expulsion ought to abide by the imperative norms of international law. On the positive side, there is nowadays a greater consciousness of the pressing needs of protection of migrants worldwide.”
Mesmo com a evolução do regime internacional dos direitos humanos que
conferem ao indivíduo direitos independentes de sua nacionalidade, a implementação
24 BAUMAN, Zygmunt. The Fate of Humanity in the Post-Trinitarian World. In Journal of Human Rights, vol. 1. Nº. 3, September, 2002. p. 283 – 303. 25 TRINDADE, Antônio Augusto. Umprootedness and the Protection of Migrants in the International Law of Human Rights. In Revista Brasileira de Política Internacional. Nº51 (I). 2008. p. 137 a 168.
desses direitos ainda dependem dos Estados. O Estado ainda detém o monopólio
sobre a “identidade” do indivíduo: a nacionalidade e a cidadania atribuída em função
dela.
Contudo, segundo Rossana Reis26, o Estado estaria se tornando impotente
diante do intenso fluxo da mobilidade humana e das demandas sociais, econômicas,
políticas e jurídicas que ele gera. As decisões sobre questões de fronteira não seriam
mais, portanto, decisões políticas, mas imperativos de Convenções internacionais
estabelecidos com base nos direitos humanos universais. Emerge, assim, a discussão
sobre o reconhecimento de uma “cidadania global”.
“O que o argumento em torno da cidadania mundial e da perda do controle das
fronteiras pelo Estado afirma é que, diante do novo contexto internacional, o
“nós” estaria perdendo essa capacidade de decidir sobre as identidades e os
direitos relacionados a elas. Ou seja, não só o Estado estaria se tornando
impotente diante da circulação de indivíduos entre fronteiras, como também a
identidade nacional estaria perdendo a centralidade como fonte do
reconhecimento de direitos e cidadania. Afirma-se que a decisão sobre as
fronteiras não é mais uma decisão política, mas que as fronteiras são
estabelecidas por convenções, tratados e legislações internacionais de acordo
com critérios relacionados aos direitos individuais universais.”
É justamente essa “identidade” construída a partir da relação entre
povo/Estado/território, que o processo migratório, em todas as suas categorias,
subverte. O regime internacional de proteção aos direitos humanos leva a uma perda
da autonomia do Estado sobre a capacidade de decidir sobre o fluxo populacional que
adentra seu território e sobre a possibilidade de estabelecer diferença entre o nacional
e o estrangeiro. As fronteiras do Estado se tornam permeáveis e a transferência de
direitos do cidadão para o indivíduo leva a pensar sob a perspectiva de uma cidadania
pós-nacional.
Pode-se dizer que a realidade internacional atual pressiona o arcaico sistema
de Estados a uma mudança. Porém, diante de nós estão escolhas políticas com
implicações profundas. Temos a oportunidade de superar o velho paradigma da
nacionalidade, reconhecendo direitos universais próprios da construção dessa
cidadania global.
Contudo, a arquitetura de um mundo mais humano encontra obstáculos nas
estruturas anacrônicas e em hábitos políticos retrógrados, que encerram o medo
reforçado pelo discurso político de perpetuação do poder. O papel das Instituições
26 REIS, Rossana Rocha. Soberania, Direitos Humanos e Migrações Internacionais. In Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19. Nº 55. Junho/2004. (p. 149 a 163). p. 161.
Internacionais é fundamental na arquitetura dessa transição a um novo paradigma
mais humano. Todavia, isso requer que, também elas sejam objeto de uma análise
crítica, que revele suas intenções políticas e dificuldades estruturais, de modo a tornar
mais claros para a comunidade internacional os critérios que pautam sua atuação,
fazendo com que uma vocação, verdadeiramente cosmopolita, seja consolidada.