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V ENCONTRO ANUAL DA ANDHEP
DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E DIVERSIDADE
Igualdade, Isonomia e Diversidade: Um estudo sobre o trabalho forçado no Brasil
Luma Cavaleiro de Macedo Scaff Mestranda em Direito Universidade de São Paulo
Grupo de Trabalho: GT 4 - Direitos Econômicos, Sociais e Políticas Públicas de Direitos Humanos
BELÉM - PARÁ
BRASIL
2009
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Igualdade, Isonomia e Diversidade: Um estudo sobre o trabalho forçado no Brasil Resumo: Este trabalho se propõe a estudar a normatização do trabalho forçado diante da diversidade brasileira. A pesquisa é dividida em três partes. A primeira visa delimitar os conceitos de diversidade, igualdade e isonomia a fim de compreender os diversos “Brasis” e suas peculiaridades. A segunda define o que é trabalho forçado e quais são as normas que o disciplinam no Brasil, especificamente a Constituição Federal, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal. A terceira está direcionada ao estudo de casos analisando de que maneira os Tribunais tratam esta diversidade ao aplicar as normas sobre o trabalho forçado. Com isso, objetiva-se verificar se existe no Brasil uma aplicação generalizada da norma como se as situações de trabalho forçado fossem iguais ou se é possível identificar um tratamento diferenciado para situações desiguais através de uma relativização da norma. Abstract: This research intends to study the legal system devoted to forced labour/bonded labour due to the Brazilian diversity. This article is divided in three parts. The first seeks to delimit the concepts of diversity, equality and isonomy in order to understand the several ones “Brasis” and its peculiarities. The second defines what is forced work and which are the norms that discipline it in Brazil, specifically the Federal Constitution, the Consolidation of the Laws of the Work and the Penal Code. The third is addressed to the case studies analyzing that it sorts out the Tribunals treat this diversity when applying the norms on the forced labour. So that the goal is to verify if it exists in Brazil a widespread application of the norm as if all the situations of forced work were exactly the same or if it is possible to identify a treatment differentiated for unequal situations through a relativization of the norm.
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Igualdade, Isonomia e Diversidade: Um estudo sobre o trabalho forçado no Brasil Luma Cavaleiro de Macedo Scaff1
“Na verdade, o Brasil o que será? O Brasil é um homem que tem sede ou quem vive na seca do sertão? Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo o que vai e o que vem na contramão? O Brasil é o que tem talher de prata ou aquele que só come com a mão? (Música: A Cara do Brasil de Vicente Barroso e Celso Viáfora)
Sumário Considerações iniciais: O Brasil ou os “Brasis”?
1. Igualdade, isonomia e diversidade: algumas considerações 2. Disciplina do trabalho forçado no Brasil
2.1. Constituição Federal (CF) 2.2. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 2.3. Código Penal (CP)
3. O trabalho forçado na doutrina brasileira 4. Análise da jurisprudência: Existe igualdade ou isonomia na aplicação das
normas de trabalho forçado? Considerações finais
CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O BRASIL OU “OS BRASIS”?
O estudo do trabalho forçado no Brasil importa em uma complexa análise das
relações sociais e econômicas, que leva em consideração o processo de construção
cultural da identidade do povo no contexto histórico. Pode ser considerado como um
problema econômico em razão do dumping social2. Pode ser caracterizado como um
fenômeno social a partir de uma relação de dominação. Ou como uma característica
cultural de determinadas regiões como o truck system no norte e os imigrantes
bolivianos trabalhadores das fábricas têxteis no sudeste. Ainda, um resquício da
escravidão. Todas estas situações podem ser consideradas como casos de trabalho
forçado; uma violação aos direitos fundamentais que alcança inclusive países
desenvolvidos.
Com isso, não existe uma forma única de se implementar o trabalho forçado no
Brasil. É uma prática que alcança diferentes realidades nos rincões dos Brasis. No
Brasil, residem vários Brasis, não apenas pela geografia, mas também pelas
diferenças econômicas, sociais e culturais. E a norma tem a finalidade de combater o
trabalho forçado em todos estes Brasis, observando as peculiaridades.
A disciplina legal – quer por estudos doutrinários, quer pela jurisprudência - do
trabalho forçado deve primar pela efetividade a fim de contribuir para a erradicação
desta prática. As leis brasileiras não trazem um conceito do trabalho forçado, mas
1 Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Advogada. 2 Uma prática muitas vezes preferida pelos países em desenvolvimento.
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determinam padrões mínimos para instituir o trabalho digno, o trabalho formal, o
trabalho decente3. Com isso, o conceito de trabalho forçado é objeto de uma
miscelânea de definições na doutrina, o que se reflete diretamente na aplicação das
normas pelos Tribunais. A norma abstrata trata todas as situações como se fossem
iguais e o direito positivo não institui parâmetros para diferenciá-las no caso concreto.
O ponto central é analisar se existe no Brasil uma aplicação generalizada da
norma como se as situações de trabalho forçado fossem iguais ou se é possível
identificar um tratamento diferenciado para situações desiguais através de uma
aplicação da norma com atenção às realidades envolvidas. Para tanto, esta pesquisa
está dividida em três partes: a primeira traça breves considerações sobre a
diversidade, a igualdade e a isonomia, a segunda se preocupa com a disciplina legal
do trabalho forçado e a terceira está direcionada ao estudo de casos analisando de
que maneira os Tribunais tratam esta diversidade ao aplicar as normas sobre o
trabalho forçado.
Afinal, no Brasil, estão contidos “os Brasis”. 1.IGUALDADE, ISONOMIA E DIVERSIDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Este artigo estuda a igualdade, a isonomia e a diversidade à luz da concepção
ética dos direitos humanos4, segundo a qual um indivíduo merece igual consideração
e respeito do que qualquer outro a fim de desenvolver sua liberdade e suas
capacidades5, orientado pela dignidade da pessoa humana6.
Todos são iguais porque são seres humanos, porém, os indivíduos são
diferentes entre si7. Existem diferenças naturais como o tamanho, o sexo, a cor do
cabelo e outros ou ainda, que algumas pessoas, ao nascerem, já são herdeiras de
impérios econômicos, ao passo que outras já nascem na miséria. A questão é que
muitas vezes estas diferenças são utilizadas como critérios para instituir
3 O trabalho decente é difundido pelo mundo através da atuação da OIT. 4 Para maiores considerações sobre a Ética e os Direitos Humanos, vale a leitura do artigo “A Ética dos Direitos Humanos” de Eduardo Bittar publicado no livro Direitos Humanos, Democracia e República. (p. 346-380). 5 Esta é uma referência à teoria do desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen. 6 Embora o conceito de dignidade da pessoa humana não seja objeto central deste trabalho, é um dos pontos principais dos debates em direitos humanos. Para tanto, vale leitura do livro “Ética - Direito, Moral E Religião No Mundo Moderno” de Fábio Konder Comparato. 7 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. P. 15.
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desigualdades ao longo da história8. Por exemplo: ninguém discute que homens e
mulheres são diferentes biologicamente, porém, este não pode ser um critério para
instituir desigualdades.
As desigualdades são também construídas e – muitas vezes asseguradas –
por instituições políticas e sociais como no caso de incipientes políticas estatais e da
corrupção que dificultam o acesso aos recursos e às oportunidades para a realização
de uma vida digna.
Assim, diferença9 e desigualdade não possuem o mesmo significado. Diante do
contexto de diversidades, o respeito à diferença e o reconhecimento de identidades10
são importantes para a redução de desigualdades, de maneira a conduzir para uma
“plataforma igualitária e emancipatória”11. A emergência conceitual do direito à
diferença e do reconhecimento de identidades é capaz de refletir a crescente voz dos
movimentos sociais e do surgimento de uma sociedade civil plural no marco do
multiculturalismo12.
Nos regimes democráticos, a igualdade é uma constante13. Dentre os
documentos internacionais, vale registro a Declaração Universal de Direitos Humanos
8 Ao longo da história as diferenças entre as pessoas foram utilizadas para implementar desigualdades a fim de demonstrar que o “eu” era superior ou inferior ao “outro”, violando direitos. É o caso dos displaced peoples, seres esvaziados de dignidade, pessoas supérfluas, pessoas-objeto de compra e venda (escravidão) ou em campos de extermínio. Todas estas práticas que violavam o próprio ser humano em sua identidade. (AREDNT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006) A violência e o conflito de identidades são recursos utilizados para dominação ao longo da história. É o exemplo de Ruanda e do Congo, além de árabes e palestinos, todos “guerras” que por certo deixaram marcas difíceis de serem apagadas. Neste sentido, Amartya Sen em sua obra Identità e Violenza alerta para que “(...) se à vero che um senso di identità può accogliere e unire lê persone, è vero anche che può escluderne moltre altre senza appello”. (SEN, Amartya. Identità e Violenza. Roma: Editori Laterza, 2006. p. 04). 9 Nos últimos anos, é muito importante para os mais variados movimentos sociais no Brasil que buscam investir no “respeito à diferença”, no “valor das diferenças”, no “convívio das diferenças”, e dentre outros, na “preservação das peculiaridades culturais”. 10 Identificar-se com o outro, mesmo diferente, mas semelhante em diferentes aspectos é uma das formas de se viver em sociedade. 11 PIOVESAN, Flavia. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional. In Direitos Humanos, Democracia e República. Maria Vitória Mesquita Benevides, Gilberto Bercovici, Claudineu de Melo (Org). São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 459-490 12 Sobre o multiculturalismo, algumas obras: KYMLICKA, W. Ciudadanía multicultural: Una teoría liberal de los derechos de las minorías. Buenos Aires: Paidós, 2002. TAYLOR, C. Multiculturalismo y la “política del reconocimiento” Fondo de Cultura Económica, México, 1992.
13 Segundo Comparato no artigo Igualdade, Desigualdades publicado na Revista Trimestral de Direito Público em 1993: “Desde a proclamação, no limiar da Revolução Francesa, o princípio da igualdade perante a lei tem sido qualificado como o triunfo do formalismo abstrato e hipócrita sobre a crua
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de 194814 que estabelece “todos nascem livres e iguais em direitos e dignidade”.
Observe que este “todos” aqui significa todos os membros da humanidade,
independente de parâmetros diferenciados como etnia, idade, gênero, sexo e etc.
No Brasil, a Constituição Federal institui o Estado Democrático de Direito e
assegura a igualdade a todos não apenas em seu Preâmbulo15, como também em
vários dispositivos. O art. 5, caput da Constituição dispõe que “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Veja que o
substantivo “todos” do texto, na verdade, está restrito aos “brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País”, ou seja, aqueles que estão sob a jurisdição do
Estado Brasileiro.
A igualdade formal16 instituída em lei tem um duplo objetivo: de um lado
propiciar garantia individual contra perseguições e de outro, tolher favoritismos17. A
igualdade formal deve se voltar para o legislador, para o aplicador da norma e para o
destinatário, pois já que todos são iguais, a norma deve alcançar-lhes de forma
idêntica. Com isso, o ordenamento jurídico pretende a impossibilidade de
equiparações fortuitas ou injustificadas.
A máxima de Aristóteles que se deve tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais18 não oferece parâmetros para identificar as diferenças
porque não estipula um critério entre o igual e o desigual.
Para Alexy, o preceito de que todos são iguais perante a lei revela que não é
suficiente tratar todos de forma absolutamente igual (igualdade formal) sob pena de
que situações esdrúxulas como que todos devem prestar o serviço militar, incluindo
evidência das realidades concretas”. (p. 69-78). A igualdade é consagrada em vários documentos internacionais como é o caso da Declaração de Independência Americana de 1776. 14 Que institui a concepção contemporânea de direitos humanos, veja os livros “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional” e o “Direitos Humanos e Justiça Internacional” da Flávia Piovesan. 15 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL 16 Outros exemplos do texto constitucional: art. 3, IV; art. 5, VIII e XLI; art. 7, XXX e XXXI 17 Segundo Pimenta Bueno “A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”BUENO, Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro, 1857. p. 424. 18 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. Livro V. p. 103-127.
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idosos e recém-nascidos19. Não basta que a lei determine “todos são iguais” se não
existem condições jurídicas e fáticas para que a sociedade desenvolva esta igualdade.
Dizer que todos são iguais significa que todas as situações de trabalho forçado são
iguais.
É preciso verificar em quais situações é possível estabelecer diferenciações,
daí a isonomia que traz consigo a urgência de que haja distribuição eqüitativa de
direitos e de recursos a fim de que as pessoas tenham condições de desenvolver suas
capacidades20. A isonomia não se restringe à mera distribuição de coisas ou bens a
pessoas em igual proporção aritmética21, mas sim a categorias distintas de pessoas
como brasileiros, crianças, trabalhadores, idosos e etc. Daí a necessidade da fixação
critérios e, com isso, estender a todos os direitos em igualdades de condições; e não,
unicamente à apenas alguns.
Conforme os ensinamentos de Bobbio,são três as perguntas fundamentais quando
diante de enunciados igualitários: 1. quem é considerado igual?; 2. Em relação a que
coisas? e 3. qual é o critério justo para que uma coisa seja atribuída a uma pessoa?22.
Ora, se deve tratar a todos com igual respeito e consideração e, se as pessoas não
são iguais, por certo, diferenciado será o tratamento despendido pelo Direito a estas
pessoas e situações.23. Daí a isonomia24.
19 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. (p. 381-418) 20 Para tanto, o constituinte de 88 não escolheu apenas um, mas vários critérios. É o caso do art. 170 que fundamenta a ordem econômica no trabalho humano ou do art. 5º, XXII que institui a função social da propriedade e, para tanto, criou objetivos fundamentais da República de erradicar a pobreza e construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I e III), além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (art. 3, IV). 21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 108-109 e 111. Neste capítulo, Aristóteles trata da justiça: distributiva e corretiva. Para tanto se refere à igualdade, pelo que interessa o excerto: “Igualdade implica pelo menos dois elementos. Portanto, o justo deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (justo para certas pessoas, por exemplo); como intermediário, deve estar entre determinados extremos (o maior e o menor); como igual, envolve duas participações iguais; e, como justo, ele o é para certas pessoas. (...) E a mesma igualdade será observada entre as pessoas e entre as coisas envolvidas, pois do mesmo modo que as últimas são relacionadas entre si, as primeiras também o são. Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é a origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais ou quando desiguais recebem partes iguais)” 22 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. (org. Michelangelo Bovero). Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 299 23 Não se pretende com isso que a norma seja aplicada de formas diferentes de acordo com cada situação. Explica Oscar Vilhena que “o princípio da igualdade converte-se, assim, mais num regulador das diferenças que numa regra de imposição da igualdade absoluta e em todos os planos. Em outras palavras, a função do princípio da igualdade é muito mais auxiliar e discernir entre desigualizações aceitáveis e desejáveis e aquelas que são profundamente injustas e inaceitáveis”.VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais: Uma leitura do STF. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 285.
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É o caso da norma que regulamenta o trabalho forçado como se todas as
situações fossem idênticas ou se deve levar em consideração as peculiaridades de
cada situação visando a efetividade. O problema é quando a lei possui conceitos
vagos, ambíguos ou abertos. Dificulta a ação do legislador para aplicar a norma com
igualdade25. Para o tratamento isonômico, é inadmissível discriminar pessoas ou
situações ou coisas mediante traço diferencial que não seja nelas mesmas
residentes26.
2. DISCIPLINA JURÍDICA DO TRABALHO FORÇADO NO BRASIL 2.1. CONSTITUIÇÃO FEDERAL (CF) A Constituição Federal27 não disciplina o trabalho forçado, tampouco o define.
Contudo, em seu art. 5 XLVII, c, veda penas de trabalhos forçados28. O direito ao
trabalho (art. 6) é um dos direitos fundamentais sociais, ao passo que o art. 7 prevê
em seus incisos um rol de direitos que serve de parâmetro para a legislação para
trabalhadores urbanos e rurais.
24 Vale o registro de Celso Antonio Bandeira de Melo em O Conteúdo Jurídico da Igualdade: “A dizer: o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma: qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e pessoas, sem quebra a agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?” p. 11. 25 Para Alexy, a “igualdad en la formulación del derecho”. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 383. 26 Sobre o princípio da isonomia, ensina Celso Antonio Bandeira de Mello em seu livro O Conteúdo Jurídico da Igualdade: “o principio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta”. P. 35. 27 A Constituição de 1824 previa que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um (art. 179, 13). Com o regime republicano, aumentou a preocupação com a isonomia entre os constituintes, daí dispunha a Constituição de 1891 que “todos são iguais perante a lei”. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as origens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho (art. 72, §2º). Apenas com a Constituição de 1981, a isonomia foi vista como algo diferente do privilégio de nascimento, a abarcar outros critérios de diferenciação, pelo que “todos são iguais perante a lei”. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. (art. 113, I). 28 A proibição de punições na imposição de trabalhos forçados foi também prevista no art. 112º, §2º do Estatuto da Criança e do Adolescente no que tange às medidas sócio educativas aplicáveis aos adolescentes infratores.
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Os princípios constitucionais também não mencionam especificamente o
trabalho forçado, porém se referem as circunstâncias e situações outras que
contribuem para a erradicação desta prática, ou ainda, para assegurar o trabalho
decente29. É o art. 1 que estabelece os fundamentos do Estado Democrático de Direito
a cidadania (art. 1, II), a dignidade da pessoa humana (art. 1, III) e os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa (art. 1, IV). E dentre os objetivos, destaca-se a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional e a
erradicação da pobreza e da marginalização e a redução de desigualdades sociais e
regionais (art. 5, I, II e III). Registra-se o art. 170 dispor que a ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
princípios da redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII) e a busca do
pleno emprego (VIII).
No que tange aos direitos fundamentais, o art. 5 veda a submissão a tortura e
a tratamento desumano ou degradante (inciso III) e também dispõe que é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII)30.
Esta proteção ao trabalho está prevista em outros dispositivos ao longo do
texto constitucional como é o caso do art. 19331, art. 20032, art. 20333; art. 20534 e,
dentre outros, do art. 21435.
29 Trabalho decente de acordo com a Organização Internacional do Trabalho. Outras terminologias podem ser adotadas também como trabalho digno. 30 O trabalho forçado no Brasil ganhou relevância internacional com o Caso José Pereira da Silva que foi levado à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, ocasião na qual houve um acordo. Neste caso, mas normas constitucionais sobre a dignidade e liberdade da pessoa humana foram aplicadas diretamente. 31 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
32 Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
33 Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; 34 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 35 Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à: IV - formação para o trabalho;
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2.2. CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (CLT)
A CLT não dedica um dispositivo ao trabalho forçado. Estabelece um
conjunto mínimo de regras para as relações individuais e coletivas de trabalho a serem
obedecidas por empregadores e por empregados que devem observar o disposto no
art. 7 da CF.
Nos termos do art. 444 da CLT, as relações contratuais podem ser objetos
de livre contratação entre as partes desde que não seja contrário às disposições de
proteção do trabalho, aos contratos coletivos e às decisões de autoridades
competentes. É o caso das anotações na CTPS (art. 13-56 CLT), da jornada de
trabalho de oito horas diárias ou de até quarenta e quatro horas semanais (art. 58-65
CLT), dos descansos (art. 66-72 CLT), do salário mínimo (art. 76-83) e, dentre vários
outros, das férias (art. 129-145 CLT).
Interessante notar que a CLT traz um capítulo dedicado à segurança e
medicina do trabalho e se preocupa com as condições do trabalho e com o meio
ambiente do trabalho.
Ainda que não haja um dispositivo específico, todas estas regulamentações
interessam ao trabalho forçado. O trabalho forçado não pode ser considerado apenas
como um trabalho em desacordo com a legislação pertinente. É uma conduta mais
grave porque atinge diretamente a liberdade e a dignidade do trabalhador através de
uma relação de dominação. O limite entre um e outro é bastante tênue porque o
trabalhador submetido ao trabalho forçado labora sem os direitos trabalhistas
assegurados, porém, o é concomitantemente submetido à coisificação da pessoa
humana. A CLT não estabelece um critério de diferenciação entre as duas espécies de
trabalho, o que contribui para a miscelânea na doutrina e para imprecisões na
jurisprudência.
2.3. CÓDIGO PENAL (CP)
O art. 14936 do Código Penal tipifica a conduta “reduzir alguém a condições
análogas às de escravo”, em outras palavras, o trabalho forçado, cujos bens tutelados
são a dignidade e a liberdades asseguradas pela Constituição, como já referido.
36 A redação anterior do Código Penal era: “art. 149: Reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Pena: reclusão de 02 a 08 anos”.
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Com a redação da Lei 10803/2003, o art. 14937 define a conduta de reduzir
alguém à condição análoga a de escravo que se configura como uma das seguintes
hipóteses: a) submeter alguém a trabalhos forçados; b) submeter alguém a jornadas
exaustivas; c) sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho; d) restringir, por
qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com empregador
ou preposto; e) cercear o uso de qualquer meio de transporte com o fim de reter o
trabalhador no local de trabalho; f) manter vigilância ostensiva com o fim de reter a
pessoa no local de trabalho; g) apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador com o fim retê-lo no local de trabalho.
A essência deste crime é a sujeição de uma pessoa a outra, ou seja, a
imposição de relação de submissão através do poder38, suprimindo ao indivíduo
subjugado a liberdade e a dignidade, deixando-o completamente submisso às ordens.
Estabelece-se uma relação entre sujeito ativo e sujeito passivo, na qual o sujeito ativo
é senhor e dono e detém a liberdade – o domínio - do sujeito passivo em suas mãos39.
Somente podem ser sujeitos passivos aqueles que se encontrarem em condição de
contratado, empregado, empreiteiro, operário (enfim, trabalhadores) do sujeito ativo.
Portanto, para a configuração do delito, é imprescindível que exista o “vínculo
trabalhista”.
“Reduzir” significa sujeitar uma pessoa à outra, em condição semelhante à
de escravo, isto é, a condição deprimente e indigna. Consiste em submeter alguém a
um estado de servidão, de submissão absoluta, semelhante, comparável à de escravo.
É a submissão total de alguém ao domínio do sujeito ativo, que o reduz à condição de
37 Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
38 Que pode ser poder econômico, benefício próprio da condição de hipossuficiente, força, coerção, coação, maus tratos e outros. 39 Segundo Cezar Roberto Bottencourt: “a relação que se estabelece entre os sujeitos do crime é, como diz o texto legal, análoga à existente entre senhor e escravo, pois a liberdade deste paira sob o domínio do outro”. (BITTENCOURT,. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial 02 – Dos crimes contra a pessoa. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 487). Observe que a expressão “senhor e dono” não significa que o sujeito ativo pode vender o sujeito passivo. Não se trata de escravidão, pois está foi abolida pela Lei Áurea. Assim, pessoa jurídica não pode ser sujeito passivo deste crime.
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coisa40. As formas e as maneiras utilizadas para coerção do trabalhador são das mais
variadas, não havendo uma limitação legal. Assim, a liberdade do art. 149 não se
limita à locomoção, mas sim a de impedir o estado de sujeição do trabalhador ao
domínio de outrem. Não se configura este crime apenas pelos maus-tratos ou por
encarceramento, mas, por exemplo, alguém obrigar o trabalhador a prestar serviços
extraordinários e pesados em excesso com a proibição de deixar a propriedade sem
liquidar os débitos pelos quais era responsável. É o caso da servidão por dívida.
Merece registro a nova redação de 2003 que ampliou as figuras típicas e
instituiu um rol taxativo das situações que compreendem o delito “reduzir alguém a
condição análoga à de escravo” com a finalidade de diminuir as interpretações
díspares desta “analogia” com a escravidão. Porém, permanece a analogia, o que
mantém o tipo aberto que dá margens para diversas leituras. O legislador limitou-se às
apontar estas condutas, mas o fez com redação vaga e ambígua, problema este que
se acentua se considerados os trabalhos forçados nos Brasis. A lei não fixou critérios
para diferenciar as situações previstas em lei, tampouco para distinguir quando se
trata de uma irregularidade trabalhista e quando é um ilícito penal41. E as condutas
hoje previstas no tipo são interpretadas – mutantis mutandis – à luz das normas de
direitos humanos42.
Ademais, outros dispositivos também são utilizados no combate ao trabalho
em condição análoga à de escravo como os art. 132, 203 e 207 do CP43 que, tratam
respectivamente, dos crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem44, de
frustração de direito assegurado por lei trabalhista45 e de aliciamento para fim de
40 BITTENCOURT,. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial 02 – Dos crimes contra a pessoa. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 487 41 A questão do trabalho forçado mescla aspectos trabalhistas e penais. Não existem critérios que diferenciem quando se trata de irregularidade trabalhista e quando se trate de ilícitos penais. Assim, regulamentar matéria trabalhista como se penal fosse é um problema como ocorreu com a greve. 42 O entendimento jusrisprudencial vem se modificando no sentido de que os tratados de direitos humanos – como é o caso das normas da Organização Internacional do Trabalho e da Organização das Nações Unidas sobre as formas de subjugação dos trabalhadores – possuem natureza supralegal, sobrepairando sobre as leis e se situando abaixo apenas da Constituição. Com efeito, os direitos e garantias previstos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte (art. 5, §2). O status constitucional poderia ser adquirido , entretanto, mediante o procedimento previsto no art. 5, §3. Ver STF 466.343/SP 43 Pela Lei 9777 de 1998 44 É causa de aumento de pena a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorrente de transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.
45 A modificação de 1988 estipula que incorre nas mesmas penas quem: Art. 203, I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço
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emigração46. Vale considerar outras iniciativas também como o caso da PEC nº 438 de
2001 que dá nova redação ao art. 243 da Constituição47, utiliza-se da designação
trabalho escravo, cuja constatação poderá figurar como nova hipótese de expropriação
de glebas48. Já no plano infraconstitucional, destaque para os mais importantes: o
projeto de Lei nº 5016/2005 do Senado Federal que visa modificar a tipificação dos art.
149, 159 e 207 do Código Penal; e acrescentar parágrafos ao art. 18 da Lei 5889/1973
que regulamenta o trabalho rural.
É importante registrar que não é qualquer descumprimento da legislação
trabalhista que motiva o trabalho forçado. Uma coisa é o não cumprimento da lei, pelo
qual há penalidades previstas na CLT, enquanto que outra coisa é o delito de trabalho
forçado que importa sanções civis, penais e administrativas. Para tanto, é preciso
observar com minúcias as condições de trabalho, o vínculo empregatício, os modos de
coerção ou de força, as pessoas envolvidas, o contexto e outros elementos, pois, caso
contrário, pode-se importar na banalização do trabalho forçado, enfraquecendo
sobremaneira uma violação aos direitos humanos.
em virtude de dívida; Art. 203, II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. É interessante observar a topografia do Código Penal neste particular, pois o crime referido de “Frustração de direito assegurado por lei trabalhista” é um crime contra a organização do trabalho, enquanto que o delito do art. 149 do CP que, é muito mais grave que aquele e, por consunção penal pode absorver aquele, além de ofender muitos outros bens jurídicos, está no capítulo dos crimes contra a liberdade individual. É causa de aumento de pena para os casos em que a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portador de deficiência física ou mental.
46 No caso deste artigo, a alteração legislativa modificou a pena cominada e criou importante figura equiparada que incrimina a conduta de “recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda não assegurar condições do seu retorno ao local de origem”. O mesmo ocorre com este dispositivo que instituiu causa de aumento de pena para os casos em que a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portador de deficiência física ou mental.
47 “Art. 243”. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas à reforma agrária, com o assentamento prioritário aos colonos que já trabalhavam na respectiva gleba, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e se reverterá, conforme o caso, em benefício de instituições e pessoal especializado no tratamento e recuperação de viciados, no assentamento dos colonos que foram escravizados, no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle e prevenção e repressão ao crime de tráfico ou do trabalho escravo. 48 A Constituição determina que a propriedade rural deve cumprir a sua função social (art. 5º, XXIII; 184; 186). Em 2004, o governo federal decretou a desapropriação de uma fazenda para fins de reforma agrária sob o argumento de que não cumpria sua função social-trabalhista e de degradação ambiental. Em duas ocasiões, foram identificados trabalhadores submetidos às condições análogas a de escravo na propriedade “Castanhal Cabeceiras”. O caso foi levado ao juridiciário no MS 25.260. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em 20 de agosto de 2008.
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3. O TRABALHO FORÇADO NA DOUTRINA BRASILEIRA Na doutrina são incontáveis as opiniões de estudiosos sobre a terminologia
mais adequada e a necessidade de um conceito para o trabalho forçado49. Ainda que
muitos50 autores já tenham se debruçado sobre o tema, não há uniformidade quanto à
adoção de a uma definição51.
Para alguns autores como Maria Cristina Cacciamali e Flávio Antonio Gomes
de Azevedo o trabalho forçado engloba uma variedade de situações desde as mais
tradicionais como a servidão por dívida e a escravidão, quanto as mais recentes como
o tráfico de seres humanos52.
Já para outros autores como José Claudio Monteiro de Brito Filho, o trabalho
em condições análogas às de escravo é a pior forma de superexploração do trabalho e
deve ser considerado como gênero do qual são espécies o trabalho forçado e o
trabalho em condições degradantes53. Para Luis Antonio Camargo de Melo, existem o
trabalho escravo ou o trabalho forçado e as formas degradantes de trabalho. O
trabalho escravo integra o imaginário popular, pois recorda a imagem do negro
49 Persistem questões como “o que é o trabalho forçado?”; “o que caracteriza esta prática?”; “há distinção entre trabalho forçado, trabalho escravo, trabalho precário entre outras terminologias?”; “há distinção entre o trabalho forçado do Norte como o truck system e aquele praticado nas fábricas de São Paulo?”; “é possível uma espécie de padronização do trabalho forçado diante das diversidades sócio-econômicas brasileiras?”. São indagações de difíceis respostas, porém, certamente são objetos instigantes à reflexão e ao debate. 50 Dentre outros, podemos citar alguns dos autores como José Claudio Monteiro de Brito Filho, Cesarino Júnior, Ronaldo Lima dos Santos, José de Souza Martins, Luís Antonio Camargo de Melo, Almara Nogueira Mendes, Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé, Evanna Soares, Maria Cristina Cacciamali, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Gabriel Velloso, Valena Jacob Soares, Flávia Piovesan. São mais variadas terminologias, o que culmina em uma verdadeira miscelânea de nomenclaturas utilizadas indistintamente: trabalho forçado, trabalho escravo, servidão, trabalho degradante, trabalho precário, trabalho penoso, escravidão contemporânea, trabalho em condições análogas à de escravo, trabalho indigno, trabalho decente, escravidão moderna dentre outras. 51 É como explica Neide Esterci em sua obra Escravos da Desigualdade: “a multiplicidade e variação dos termos utilizados indica que os critérios de classificação estão em discussão tanto no campo político-ideológico quanto no que diz respeito ao seu enquadramento na legislação trabalhista e nos códigos de defesa dos direitos humanos” e sustenta que “identificar os significados dos diferentes usos dos termos é, portanto, mais do que lidar com nomes: é desvendar as lutas que se escondem por detrás dos nomes – lutas estas em torno da dominação, do uso repressivo da força de trabalho e da exploração”. ESTERCI, Neide. Escravos da Desigualdade: Um estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: CEDI/Koinonia,1994. p. 10-12. 52 CACCIAMALI, Maria Cristina. AZEVEDO, Flávio Antonio Gomes. Dilemas da Erradicação do Trabalho Forçado no Brasil. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo. v.30. n.115. p.143-67. jul./set. 2004. Dos mesmos autores, veja também o artigo Trabalho Forçado ou Opção pela Inclusão. Disponível em: www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documento/artigo_f.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2008. 53 BRITO FILHO, José Claudio Monteiro. Trabalho Decente: Análise Jurídica da Exploração do Trabalho Forçado e Outras Formas de Trabalho Indigno. LTR: São Paulo, 2004. p. 70-72.
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acorrentado ainda sob a égide da Lei Áurea. Este trabalho forçado implica em trabalho
sob coação física ou moral para o qual o trabalhador tenha se oferecido
espontaneamente ou não, pois, em geral, o consentimento é eivado de vícios de
vontade54. E as formas degradantes de trabalho são as péssimas condições a que são
submetidas o empregado para o exercício do seu labor55.
Outros estudiosos como Sérgio Pinto Martins e Jairo Lins de Albuquerque
Sento-Sé conceituam o trabalho escravo contemporâneo como aquele em que o
empregado é submetido a condições de trabalho degradantes (aquelas de violam a
dignidade da pessoa humana prevista no art. 1, III da Constituição), inclusive em
relação ao meio ambiente e ao constrangimento físico e moral. E considera o ápice
desta prática quando há o cerceamento da liberdade pela imposição de dívidas
contraídas. Porém, é diferente do trabalho degradante que, segundo o autor, é aquele
aviltante e infamante56.
Outro autor atribui ao sistema econômico uma das causas do trabalho
forçado, uma vez que o trabalhador vende a sua força de trabalho e quem o explora se
beneficia, restando aquele o consumo de sua própria pessoa, sua energia e seu corpo.
Ronaldo Lima dos Santos entende que estas modernas práticas substituem a antiga
“propriedade sobre outrem” - como na escravidão romana – pela posse prática e
forçada cultivada pelo medo sobre o corpo em face da inferioridade do trabalhador.
Daí a transformação do homem-coisa (escravo) para o homem coisificado. Identifica
no trabalho forçado a violação a dignidade e a liberdade da pessoa pela submissão à
condições precárias de trabalho, cuja vontade, no início ou no fim da prestação do
serviço é manifestamente eivada de vícios. E, em tópico a parte, o autor estuda a
servidão por dívida. Nos casos de trabalho forçado, defende o autor que não existe
mais o homo faber, mas sim algo semelhante ao animal laborans, na medida em que o
homo mistura-se com os materiais por ele mesmo utilizados57.
54 Luis Antonio Camargo de Melo adota como conceito próprio o seguinte: “toda modalidade de exploração do trabalhador em que este esteja impedido moral, psicológica ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e pelas razões que entender apropriados, a despeito de haver, inicialmente ajustado livremente a prestação do serviço”. MELO, Luis Antonio de Carmargo. As Atribuições do Ministério Público do Trabalho na Prevenção e no Enfrentamento ao Trabalho Escravo. Revista LTR. Vol. 68, n 04, abril de 2004. p. 424-432. 55 Este item parece vago, mas o autor em seu artigo especifica dez situações que considera como formas degradantes de trabalho. 56 SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho Escravo no Brasil. São Paulo: LTR, 2000. p. 26-28. MARTINS, Sérgio Pinto. Trabalho Análogo ao de Escravo. Suplemento de Legislação e Doutrina IOB. Ano XXIV,, n 01, janeiro, 2005. p. 03-06. 57 O homo faber deve ser entendido no sentido explicado por Hannah Arendt, como aquele que cria, ao trabalhar sobre os materiais. Para esta autora, o animal laborans é o servo da natureza e da terra. Ronaldo
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Ainda que sejam díspares as interpretações, é possível identificar elementos
em comum; que o trabalho forçado envolve: a. a submissão de uma pessoa à vontade
de outrem através de coerção e coação; b. uma relação de trabalho mediante
condições pecarias; c. vícios de vontade; d. violação a dignidade e da liberdade.
4. ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA: EXISTE IGUALDADE OU ISONOMIA NA APLICAÇÃO DAS NORMAS DE TRABALHO FORÇADO?
Este item tem o propósito de realizar uma análise da jurisprudência brasileira
nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Superior Tribunal de Justiça58 a fim de
analisar se a aplicação das normas é igual para todas as situações de trabalho forçado
ou se leva em consideração as diferentes realidades, ou seja, os Brasis.
São dois os pontos centrais a serem verificados nesta pesquisa: 1. Se o
aplicador da norma observa a igualdade formal através da generalização; 2. Se o
aplicador da norma observa a isonomia através de interpretações conforme as
diferenças entre os Brasis; 3. Se o Direito concede ao aplicador da norma critérios
legais para identificar quando se trata de descumprimento das normas trabalhistas e
quando se trata de infração penal.
Além de questões ligadas ao conflito de competência entre Justiça Federal e
Justiça do Trabalho que não são objeto deste estudo59, são também freqüentes as
demandas envolvendo a legalidade da inscrição de empresas na “lista suja”60 e a
análise das condições de vida e de trabalho.
Independente da geografia do Brasil, em uma variedade de situações, é
possível identificar o trabalho forçado. No Rio Grande do Sul, o trabalho forçado com
extração de madeira para o fabrico de dormentes61. Na Bahia, o plantio e cultivo da
soja62. Em Minas Gerais, o trabalho em usinas63. Em São Paulo, o aliciamento de
Lima dos Santos empresta esta idéia para fundamentar que o animal laborans é também um servo, porém, que está subjugado à vontade de outrem. 58 Na seção “jurisprudência” ou “pesquisa de jurisprudência”, foram usadas as expressões “escravo”, “trabalho forçado”, “trabalho escravo”, “trabalho degradante” e “trabalho em condição análogas” para selecionar as decisões. 59 RE 507110 ED / MT - MATO GROSSO; RE 541627 / PA – PARÁ; RE 398041 / PA – PARÁ. Todos estes julgados do STF atribuem competência à Justiça Federal, ainda que já existam discussões sobre a competência criminal da Justiça do Trabalho mediante alteração no art. 114 da Constituição Federal. 60 Portaria 540/2004 61 Acórdão do processo 00019-2008-821-04-00-6 (RO); Vara do Trabalho de Alegrete – TRT 4 Região Rio Grande do Sul 62 RECURSO ORDINÁRIO Nº 00715-2006-661-05-00-8-RO TRT5 63 TRT/RO/00435-2008-042-03-00-5 TRT3
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trabalhadores para o exterior64. No Ceará, o corte de madeira65. Dentre outros, o
lenocínio e tráfico de pessoas66.
Outra peculiaridade é o truck system67que, embora mais freqüente na região
norte, também ocorre em outros lugares como na Bahia68. A jurisprudência determina
alguns elementos para a caracterização do truck system: apreensão de documentos;
presença de guardas armados e ‘gatos’ de comportamento ameaçador; dívidas
ilegalmente impostas, e características geográficas do local que impedem a fuga.
Observe que a maioria dos julgados se refere ao meio rural, todavia, é possível que
trabalho manual69 como o corte da cana no Mato Grosso70 seja realizado de forma
legal.
Diante desta diversidade de situações e da dificuldade de definir critérios
legais, a lei penal estabeleceu formas71 de submissão de outrem a condições análogas
a de escravo, porém, o fez com vagueza e ambigüidades. Veja o que decidiu o
Tribunal do Trabalho da 8ª Região (Acórdão.TRT 2ª RO 00611-2004-118-08-00-2) no
“CASO 01”:
ABSTER-SE DE EXIGIR TRABALHO FORÇADO DE SEUS EMPREGADOS: Pelo exame da prova dos autos, a hipótese não é de trabalho forçado, visto que todos os trabalhadores informam que poderiam se deslocar da Fazenda vistoriada quando queriam, para a localidade de Boa Vista, onde muitos deles residiam, inclusive a ajudante de cozinheira, que estudava à noite no dito povoado e os filhos do caseiro e sua esposa que trabalhavam há mais de um ano na Fazenda. As dívidas constatadas não configuram a possibilidade da hipótese de servidão por dívida, visto que os livros encontrados pela fiscalização, muitos deles se referem à época anterior à contratação dos trabalhadores que estavam na Fazenda e as cadernetas relativas a
64 PROCESSO TRT 15ª REGIÃO Nº 00305-2006-042-15-00-5 RO 65 00190/2009-025-07-00-0: - TRT 7. 00194/2009-025-07-00-8: - TRT7 66 Ext 725 / RFA - REPUBLICA FEDERAL DA ALEMANHA - STF 67 Ou “sistema do barracão” ou “aviamento”. Veja NÚMERO ÚNICO PROC: RO - 00227-2005-129-03-00-1 68 RECURSO ORDINÁRIO Nº 00610-2005-019-05-00-3-RO TRT 5. No mesmo sentido, Processo 01036-2007-000-05-00-8 MS, ac. nº 019059/2008, Relatora Desembargadora DALILA ANDRADE, SUBSEÇÃO II DA SEDI, DJ 13/08/2008. 69 Art. 7, XXXII CF 70DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO. CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO >. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. CORTE DE CANA. Embora árduas as tarefas desempenhadas pelo Autor, dispunha ele de ampla liberdade de ir e vir, sem qualquer espécie de cerceio à sua liberdade. Também não logrou comprovar as condições degradantes de trabalho alegadas na inicial. Recurso improcedente. RO - 00532.2008.071.23.00-4. TRT 23 71 a) submeter alguém a trabalhos forçados; b) submeter alguém a jornadas exaustivas; c) sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho; d) restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com empregador ou preposto; e) cercear o uso de qualquer meio de transporte com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho; f) manter vigilância ostensiva com o fim de reter a pessoa no local de trabalho; g) apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador com o fim retê-lo no local de trabalho.
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esse trabalhadores relacionavam, em sua expressiva maioria, contas pequenas, facilmente quitáveis, não estando os trabalhadores reféns do empregador por dívidas. Portanto, o exame das provas revela que os trabalhadores não estavam confinados em local ermo, e não tinham sua liberdade suprimida, não estando por esses motivo, reduzidos à condição análoga a de escravo. Assim sendo, confirmo o voto do Relator, julgando improcedente este pedido.
ABSTER-SE DE COAGIR E INDUZIR SEUS EMPREGADOS A UTILIZAREM ARMAZÉM OU SERVIÇOS MANTIDOS PELA FAZENDA; ABSTER-SE DE IMPOR SANÇÃO AOS TRABALHADORES DECORRENTES DE DÍVIDA E NÃO SE UTILIZAR DO SISTEMA TRUCK SISTEM. A prova dos autos não revela a existência de armazém nas dependências da Fazenda que, aliás, eram bastante precárias. Realmente a reclamada mandava adquirir algumas mercadorias que eram revendidas aos empregados que foram contratados para roço de juquira, cuja atividade é sazonal, dependendo das condições climáticas, apenas realizada no verão, mas essas mercadorias, pelo que informam os trabalhadores nos depoimentos, eram vendidas a preços módicos, e os mesmos não mencionam que ficavam endividados. Ao contrário, as dívidas que foram constatadas não ultrapassavam R$-20,00, sendo facilmente quitadas. Não havia o sistema de truck sistem QUE SE CARACTERIZA PELO TRABALHO A TROCO DE COMIDA OU GÊNEROS DIVERSOS e revela a existência do trabalho forçado.
E no CASO 2, outro julgamento também sobre trabalhadores submetidos à
condições análogas à de escravo, o mesmo Tribunal Regional do Trabalho (TRT 3ª /RO
00682-2003-114-08-00-9) decidiu:
Afirma que todas as autuações feitas no interior do Estado do Pará não levam em conta a realidade vivida pelos trabalhadores, pois o trabalho oferecido nas fazendas acaba sendo o único meio de subsistência da população pobre, na medida em que: são pessoas extremamente simples, que não têm qualquer outro ofício nem trabalho fixo, que aguardam ansiosamente pela época das derrubadas, onde podem prover a si e suas famílias das necessidades básicas que prescindem. [...]. Conclui afirmando que tal comportamento induz entendimento em prol da inexistência do trabalho escravo alegado pelo Parquet. Diante da constatação de tamanha prepotência é que se consegue compreender o porquê da grosseria cometida pelo reclamado, relatada pela digna procuradora do trabalho retromencionada, quando o Coordenador do Grupo de Fiscalização Móvel tentou um primeiro contato por telefone (vide fl. 43): ¿Sabe com quem está falando? Sou o prefeito de Unaí- MG, e o desprezo pela vida humana expressa no relato do trabalhador Sr. José Antônio Amorim (PEÃO É BICHO BRUTO E EU É QUE NÃO VOU FAZER HOTEL CINCO ESTRELAS PRA PEÃO). Assim, resta demonstrada a prática usual de contratação de trabalhadores e sua manutenção em condições análogas à de escravos.
O objeto de discussão nos dois casos é a identificação de elementos que
caracterizem “reduzir alguém a condições análogas à de escravo”. Note a curiosidade
no CASO 1 em que mesmo com o sistema do barracão através da obrigatoriedade da
venda de produtos aos trabalhadores, o Tribunal entendeu que não há servidão por
dívida porque os trabalhadores podem deixar a fazenda. Observe que no CASO 2
existe o truck system.
Um ponto bastante interessante é a semelhança dos fatos descritos, porém,
apenas no CASO 2 houve condenação. O CASO 1 primeiro ocorre em Redenção, ao
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passo que o segundo, em Unaí. Duas localidades periféricas, e pouco desenvolvidas.
No CASO 2, o juiz considera em seu julgamento a realidade vivida pelos trabalhadores
no Pará, o que instiga, muitas vezes, a prática deste tipo de labor. Já no CASO 2, os
valores da dívida descritos como irrisórios de R$ 20,00 podem ser quantia significativa
para os mais pobres.
Em ambos os casos, as normas de higiene e segurança do trabalho não são
observadas. É certo que os serviços de roço, pasto e na juquira são sazonais,
portanto, não é interessante ao empregador construir moradia, banheiro e demais
eventuais outras obras em razão do alto custo (note o grifo em destaque do CASO 2).
Contudo, é dever do empregador oferecer condições saudáveis para o desempenho
do trabalho conforme descrito na legislação pertinente. Muitas vezes são fazendas
situadas em regiões mais longínquas que dificultam atender a estas obrigações legais,
o que não pode servir de escusa, porém, as diferenças dos Brasis merecem atenção.
Outro ponto bastante delicado na jurisprudência é a jornada exaustiva pela
dificuldade de se precisar quantas horas e o valor de cada hora do fator-trabalho. Para
o judiciário paulista (Tribunal do Trabalho da 2ª Região), não pagar a sobrejornada
implica em trabalho gratuito conforme julgamento em destaque abaixo:
“2. HORAS EXTRAS. CLÁUSULA QUE CONDICIONA O PAGAMENTO À AUTORIZAÇÃO PRÉVIA DA SOBREJORNADA PELO EMPREGADOR. NULIDADE. É nula, por inconstitucional, cláusula de norma individual ou coletiva que condiciona o pagamento de horas extras à prévia autorização da empresa para a prorrogação de jornada. Irrelevante, pois, in casu, a falta de emissão pela reclamada dos time sheets, documentos destinados a estimar o tempo gasto na execução de um serviço para posterior cobrança ao cliente. Com efeito, provada a ativação em sobrejornada, o respectivo pagamento é um imperativo sob pena de se consagrar trabalho gratuito, em situação análoga à da escravidão. Sentença mantida, no particular”72 (grifos nossos)
Observe que um dos desafios é estabelecer quando se trata de jornadas
exaustivas. A CF limita a jornada de trabalho a 08 horas diárias e 44 horas semanais
(art. 7, XIII), sendo que a jornada extraordinária deve ser remunerada em 50% do valor
pago à normal (art. 7, XVI). E a CLT prevê jornada extraordinária de até 02 horas
diárias (art. 59) e estabelece remuneração de pelo menos 20% do valor pago à
normal. Além de se tratar de trabalho urbano porque menciona os times sheets, nota-
se que o julgador entende que esta sobre jornada pode caracterizar trabalho forçado,
72 TIPO: RECURSO ORDINÁRIO. DATA DE JULGAMENTO: 14/04/2009. RELATOR(A): RICARDO ARTUR COSTA E TRIGUEIROS. REVISOR(A): IVANI CONTINI BRAMANTE. ACÓRDÃO Nº: 20090271194. PROCESSO Nº: 02230-2008-051-02-00-0. ANO: 2009. TURMA: 4ª. DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/04/2009 – TRT 2
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ao que denomina de trabalho gratuito. É preciso atentar para que o eventual não
pagamento de jornada extraordinária (art. 59, §3 CLT) não pode caracterizar trabalho
forçado73.
A riqueza deste assunto é tamanha que a remuneração também pode ser
considerada como um critério, pois o não pagamento pode ensejar trabalho forçado74.
No caso de uma lide no judiciário paulista sobre vínculo empregatício e pagamento de
remuneração de ex-sócio:
“O contrato de trabalho da exeqüente, ora agravante, perdurou de 01.07.1989 a 06.06.2003. E o ora agravado integrou o quadro societário da executada no período de 24.05.1995 a 16.12.1999 (v. fls. 176/177). Significa, pois, que o ex-sócio, ora agravado, valeu-se da atividade desenvolvida pela trabalhadora. Assim, há responsabilidade pelo pagamento do trabalho que a agravante executou na reclamada. Na realidade, não há bônus sem ônus. Ou a admissão de trabalho sem remuneração. Como já foi escrito, historicamente, no Brasil, ocorre uma identificação muito forte de todo trabalho subordinado, com o trabalho escravo. Esse processo atávico é muito marcante na sociedade brasileira.” 75
Ora, o não pagamento de salário ou de remuneração é, sem dúvida, uma
violação às normas constitucionais (art. 7, IV, V, VI CF) e também aos art. 457 e s/s da
CLT, contudo, apenas esta irregularidade em um determinado caso não pode se
configurar como trabalho forçado. A discussão sobre a escravidão é grave demais –
coisificação do ser humano – para ser trazia a baila numa lide em que se discute
apenas a remuneração.
Durante a pesquisa de jurisprudência realizada nos TRT´s, um ponto bastante
delicado: a dificuldade de identificar critérios para considerar o trabalho forçado como
uma irregularidade trabalhista e como uma infração penal76. Enquanto alguns julgados
aproximam a escravidão do trabalho forçado77 para lograr a ilicitude da conduta, outros
decidem que não se configurou o cerceamento da liberdade de ir e vir, mas que havia
73 01828/2005-006-07-00-8: RECURSO ORDINÁRIO – TRT 7; 00138/2006-031-07-00-2: RECURSO ORDINÁRIO – TRT 7 74 É sabido que no Brasil não se remunerar trabalhador com bebidas ou fumo nos termos do art. 458 da CLT, porém, esta é prática comum nos alambiques de Minas Gerais. 75 PROCESSO TRT/SP Nº: 00322200325302000; ACÓRDÃO Nº: 20080481099; AGRAVO DE PETICAO - 03 VT de Cubatão. No mesmo sentido: proc. nº 00917-2007-432-02-00-5 (acórdão nº 20070914553; 11ª turma), proc. nº 00711-1994-009-02-00-0 (acórdão nº 20070836820, 11ª turma) no Tribunal do Trabalho da 2ª Região. 76 Este pode não ser o problema central deste artigo, porém, certamente influencia a aplicação das normas referentes ao trabalho forçado no que tange a isonomia, à igualdade e à diversidade.
77 Veja proc. 20000414292 (acórdão: 20010442353) no TRT2.
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o descumprimento das normas trabalhistas como no caso do RE 466508, o Min. Marco
Aurélio.78.
Esta pesquisa identificou um rol mínimo de direitos que, muitas vezes serve
como padrões jurisprudenciais para a caracterização do trabalho forçado79:
1. Falta de pagamento de salários; 2. Alojamentos em condições subhumanas (barracões) e inexistência de acomodações
indevassáveis para homens, mulheres e crianças; 3. Inexistência de instalações sanitárias adequadas; precárias condições de saúde e higiene 4. Falta de água potável e alimentação parca; 5. Aliciamento de trabalhadores de uma localidade para outra do território nacional ou fora
deste; 6. Truck system; 7. Inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e/ou cozinha adequada para o
preparo de alimentos; 8. Ausência de equipamentos de proteção individual e/ou coletiva; 9. Meio ambiente ao trabalho nocivo; 10. Coação física ou moral; 11. Cerceamento de liberdade (direito de ir e vir, locomoção pelas distâncias, possibilidade
de deixar o local de trabalho, vigilância pessoal); 12. Vigilância armada ou presença de armas na fazenda; 13. Ausência de registro na CTPS;80 Verifica-se que os Tribunais aplicam a norma por igual, ou seja, com base no
princípio da igualdade a considerar que todas as situações de trabalho forçado são
iguais, sem considerar as diferenças de Brasis. A jurisprudência busca delimitar
padrões a fim de conceder tratamento isonômico à questão, o que não é suficiente. E
como não há critérios definidos em lei, as variações pessoais dos julgadores são
inevitáveis, o que contribui para a banalização de uma prática que é gravíssima: o
trabalho forçado como uma violação aos direitos fundamentais.
78 RE 466508/MA. Ementa: TRABALHO ESCRAVO - DESCUMPRIMENTO DE NORMAS DE PROTEÇÃO AO PRESTADOR DE SERVIÇOS. O simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo, pressupondo este o cerceio à liberdade de ir e vir.
79 RO - 00329.2007.022.23.00-7 TRT23; RO 97927 – proc. 00045.2007.016.13.00-3 TRT 13ª; TRT-00657-2004-041-03-00-8-RO TRT3; RECURSO ORDINÁRIO Nº 00610-2005-019-05-00-3-RO TRT 5; 80 1. ORIGEM: 01ª VARA - ARAGUAÍNA/TO; 01-0073/2002 NA VARA DE ORIGEM DECISÃO: 30 05 2003; TIPO: RO NUM: 00073 ANO: 2002; REGIÃO: 10NÚMERO ÚNICO PROC: RO - TURMA: 2ª TURMA; 2. TRIBUNAL: 23ª Região DECISÃO: 12 06 2007 TIPO: RO NUM: 01291-2006-022-23-00-9NÚMERO ÚNICO PROC: RO - 01291-2006-022-23-00; 3. TRIBUNAL: 23ª Região DECISÃO: 10 04 2007 TIPO: RO NUM: 00878-2006-022-23-00-0NÚMERO ÚNICO PROC: RO - 00878-2006-022-23-00; 4. TRIBUNAL: 23ª Região DECISÃO: 13 02 2007 TIPO: RO NUM: 00976-2006-021-23-00-1NÚMERO ÚNICO PROC: RO - 00976-2006-021-23-00; 5. TRIBUNAL: 23ª Região DECISÃO: 12 12 2006 TIPO: RO NUM: 00514-2006-021-23-00-4NÚMERO ÚNICO PROC: RO - 00514-2006-021-23-00. STJ: MS 14017 / DF MANDADO DE SEGURANÇA 2008/0271496-6; MS 12905 / DF MANDADO DE SEGURANÇA 2007/0137319-5.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do contexto de diferenças, desigualdades, igualdade e isonomia – no
Brasil – é importante para a disciplina jurídica do trabalho forçado:
a. Diversidade de seres humanos. (uma pessoa é diferente da outra não
apenas por características naturais ou biológicas, mas também por fatores externos.
Isto não significa que um indivíduo seja superior ou inferior ao outro);
b. Pluralidade de espaços para a análise da igualdade e da isonomia no
contexto da diversidade (existe uma multiplicidade de variáveis como rendas, riquezas,
geografia, bens e etc);
As situações de trabalho forçado são diferentes umas das outras em contextos
desiguais. A aplicação da norma ocorre de acordo com a igualdade, como se todas as
situações de trabalho forçado fossem iguais. É necessário um pouco mais de isonomia
para que as diferenças sejam levadas em consideração81. Em outras palavras, os
julgadores devem atentar para que suas decisões tenham – além de decidir uma lide -
a finalidade precípua de contribuir com o Estado para que haja a distribuição eqüitativa
de direitos a fim de que as pessoas tenham condições de desenvolver suas
capacidades. Daí a necessidade da fixação critérios e, com isso, estender a todos os
direitos em igualdades de condições; e não, unicamente à apenas alguns. Isto porque
o trabalho forçado é uma problemática que atinge a humanidade. Não bastam
modificações na lei e vedações legais ao trabalho forçado, pois é imperioso garantir a
efetividade da norma, ou seja, assegurar condições fáticas para que as pessoas
tenham oportunidades suficientes para desenvolverem suas capacidades a partir do
acesso aos recursos.
A jurisprudência procura definir critérios legais a fim de lograr a isonomia. O
problema é que os critérios, além de vagos e imprecisos, carregam inevitáveis
variações subjetivas dos julgadores. Não se identifica uma “relativização da norma”, ou
seja, a aplicação da norma não observa as diferentes realidades dos Brasis. Este
quadro se agrava porque como não há previsão na legislação do trabalho, a maioria
81 Frisa-se o pensamento de Aldacy Rachid Coutinho no artigo “O futuro do trabalho ou o trabalho sem futuro?” publicado no livro O Direito e o Futuro do Direito. O Futuro do Direito: “Nós somos igualmente atemporais (eternos enquanto duramos), para além do consciente também somos aquele desconhecido inconsciente para o qual não há tempo”. Somos o que somos e o que nem sabemos o que somos, e o que criamos, pelo trabalho vivo e no trabalho morto. O trabalho vivo (sobre)viverá e com isso o homem que se faz presente e futuro (homo faber). Na vida e na morte, pelo e para o trabalho; trabalho concreto e abstrato. P. 118.
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das situações recai no âmbito penal, contribuindo para a banalização desta violação
aos direitos humanos.
Considerando que nem todo descumprimento da legislação do trabalho implica
em um ilícito penal de trabalho forçado, é importante observar dois pontos centrais: 1.
A aplicação da norma considera a igualdade formal; 2. As decisões não importam em
isonomia porque não observam as diferentes peculiaridades fáticas nos Brasis; 3. A
(in)existência de critérios legais para pautar a conduta do julgador a fim de identificar
quando se trata de descumprimento das normas trabalhistas e quanto se trata de ilícito
penal – o que influencia na não-uniformidade de julgados quando da aplicação da
norma, diminuindo a segurança jurídica.
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