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EDUCAÇÃO PARA MULHERES DE ELITE NO PERÍODO JOANINO: UM OLHAR PARA O LIVRO TRISTE EFEITO DE UMA INFIDELIDADE
Anelise Martinelli Borges de Oliveira (UNESP-Marília)
anelisemartinelli@hotmail.com
Mari Clair Moro Nascimento (UEL/UNESP-Marília)
mariclairmoro@hotmail.com
Maria Regina de Jesus Nascimento (UEL)
mari.jenasc@gmail.com
RESUMOA vinda de D. João VI e da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808 foi responsável pela implantação da primeira tipografia oficial, a Impressão Régia do Rio de Janeiro, que se ocupou da publicação dos primeiros livros de literatura. Durante o Período Joanino (1808-1821) foram impressos nove livros, em sua maioria direcionados para o público feminino da camada abastada, os quais deveriam zelar pela “religião, governo e bons costumes” (BRASIL, 1808). Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é analisar o enredo de um desses livros, o Triste efeito de uma infidelidade, no que tange à prescrição de condutas consideradas convenientes para uma mulher de elite, à medida que também censura comportamentos tidos como menos “dignos” de serem adotados por ela. A seleção deste livro ocorreu em decorrência de possuir uma linguagem direta e clara no que diz respeito à prescrição de condutas. Os resultados evidenciam que o enredo contido no livro Triste efeito de uma infidelidade vai ao encontro do que se esperava de uma mulher de elite em relação à educação durante o Período Joanino.
Palavras-Chave: Período Joanino, Triste efeito de uma infidelidade, Mulher de elite.
INTRODUÇÃO
Em sete de março de 1808, D. João VI e a Corte portuguesa desembarcaram
no Brasil, em decorrência da ameaça das tropas francesas de Napoleão Bonaparte
em invadir Portugal, contabilizando quinze mil pessoas.
A transferência ocasionou uma série de transformações no território brasileiro,
e, principalmente, na nova sede do Império Português, a cidade do Rio de Janeiro.
As modificações se deram tanto no aspecto físico, com a remodelação do espaço
urbano, quanto no aspecto sócio-instrutivo, com a implantação de instituições de
sociabilidade, educação e cultura.
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Implantada em 13 de maio de 1808, a Impressão Régia representou um
importante papel na difusão da cultura letrada durante os treze anos em que D. João
e a Corte permaneceram no Rio de Janeiro (Período Joanino), por imprimir diversos
tipos de textos: legislação (alvarás, decretos, cartas régias), documentos oficiais
(discursos, editais, ofícios), periódicos, poemas, orações religiosas, livros de
gramática, direito, medicina, matemática, economia política, filosofia, religião,
ciências naturais, e, os de literatura (CABRAL, 1881).
Antes de serem impressos, todos esses textos eram submetidos à
fiscalização da Mesa do Desembargo do Paço, órgão de administração judiciária
que foi instituído por Alvará Régio ainda em 1808, o qual tinha, dentre outras
funções, a de examinar os escritos submetidos à Impressão Régia (ABREU, 2001).
Concomitante a esse órgão, também foi estabelecida uma Junta de Direção
composta por três homens, cuja função era “examinar os papeis e livros que se
mandarem imprimir, e de vigiar que nada se imprima contra a religião, governo e
bons costumes; e que sempre seja informada a Secretaria de Estado, a cujo cargo
está este estabelecimento” (BRASIL, 1808). Fica, portanto, evidente que os textos
considerados contrários às determinações da ordem vigente, isto é, que pudessem
de alguma forma ameaçar o poder da Igreja Católica e do governo imperial joanino,
ficariam proibidos de serem impressos.
Assim como os textos editados em território brasileiro, a censura régia
também atuava sobre os livros vindos da Europa, para que não se propagasse
ideias políticas, filosóficas ou religiosas vistas como “perigosas” (PRADO, 2004).
No que diz respeito aos livros publicados pela Impressão Régia no período,
Cabral (1881), em pesquisa pioneira, catalogou aproximadamente trinta livros. É
necessário observar que, apesar de ter classificado essa quantidade, o autor afirma
não ter tido contato com os mesmos. Em estudo mais recente, Camargo e Moraes
(1993) também catalogaram uma quantidade semelhante. Posteriormente, Souza
(2007) evidenciou um total de nove, os quais foram localizados pela pesquisadora e
se constituem dos impressos considerados pelo presente trabalho. Assim, os nove
livros literários são: O diabo coxo: verdades sonhadas e novela de outra vida
traduzida a esta (1810); História de dois amantes, ou Templo de Jatab (1811); Paulo
e Virginia. História fundada em fato (1811); Aventuras pasmosas do célebre barão
de Munkausen (1814); As duas desafortunadas (1815); A filósofa por amor, ou
cartas de dois amantes apaixonados e virtuosos (1811), O castigo da prostituição
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(1815), Historia da donzela Theodora, em que se trata da sua grande formosura, e
sabedoria (1814), Triste efeito de uma infidelidade (1815).
Dos nove livros, cinco são originários da língua francesa (O diabo coxo,
História de dois amantes, Paulo e Virginia, As duas desafortunadas, A filósofa por
amor) um da alemã (Aventuras pasmosas do célebre barão de Munkausen) e três
são de autoria desconhecida (O castigo da prostituição, Historia da donzela
Theodora e Triste efeito de uma infidelidade).
Na medida em que esses impressos eram direcionados ao público feminino,
e, em especial, à mulher da camada abastada fluminense, o objetivo do presente
trabalho1 é analisar o enredo do livro Triste efeito de uma infidelidade em relação à
prescrição de comportamentos contrários à instrução e à boa educação do que se
esperava que uma mulher dessa estratificação social deveria ter, pois os mesmos
eram vistos como reprováveis do ponto de vista moral e religioso. Antes, porém, faz-
se necessário compreender o contexto no qual se encontrava inserida essa mulher
durante o período em que D. João VI e a Corte portuguesa estiveram no Rio de
Janeiro.
COSTUMES DA MULHER DE ELITE NO PERÍODO JOANINO
Os nove livros publicados pela Impressão Régia do Rio de Janeiro inserem a
produção, no Brasil, de um gênero literário específico, o romance, cuja ascensão se
deu nos séculos XVIII e XIX. O romance foi ganhando espaço não só na Europa,
onde se originou como também nas colônias europeias, “[...] ocupando lugar de
destaque na produção editorial, no comércio livreiro e nas leituras literárias”
(ABREU, et al, s/d, p. 1).
É interessante frisar que no início do século XIX o público leitor no Brasil era
predominantemente masculino e se constituía da camada abastada, esta formada
pela Corte transplantada, pelos comerciantes de grosso trato, proprietários rurais, e,
funcionários públicos reais. Desde 1808, muitos brasileiros passaram a ser
enobrecidos com graças honoríficas e altos cargos em decorrência de prestarem
algum tipo de serviço para D. João VI e para a Corte, como a doação de imóveis,
mobílias e até escravos.1 Este trabalho vincula-se à dissertação de mestrado defendida em 2009 pela Unesp, Campus Franca-SP, intitulada A arte dos bons costumes na corte brasileira (1808-1821), e teve por orientador o prof. Dr. Jurandir Malerba.
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Apesar da maior parte dos leitores ser composta pelo sexo masculino,
percebe-se que as obras literárias impressas pela Impressão Régia eram
direcionadas ao público feminino, e, em especial, à mulher da camada dirigente, fato
que pode ser constatado por meio do enredo dos mesmos2.
Luccock (1975), viajante inglês que chegou ao Rio de Janeiro meses antes da
Corte portuguesa, aqui permanecendo até 1818, observou que a leitura não era uma
prática muito comum das mulheres de elite, pois se restringia ao livro de rezas, fato
que evidencia a forte influência da religião católica na vida dessas mulheres. Para o
viajante, a restrição da leitura e o não hábito de se ler contribuíam para “a sua falta
de educação e instrução”, situação que passara a se modificar a partir da vinda de
D. João VI (Idem, p. 75).
O francês Ernst Ebel, (1972, p. 70), que esteve no Rio de Janeiro em 1824,
também verificou que “a educação das jovens é [...] desleixada”, uma vez que
recebiam a educação das mães, “não menos ignorantes”, e também das escravas.
De acordo com ele, o fato dos jovens da camada abastada conviverem diariamente
com os escravos e com seus filhos desde a infância contribuía para que crescessem
“preguiçosos e malcriados” (Idem, p. 71).
Durante seus dez anos de estadia no Brasil, outro aspecto que chamou a
atenção de Luccock (1995, p. 76) foi a idade com que as mulheres de elite se
casavam: “[...] cerca de doze ou treze anos de idade; época na qual costumam
assumir os cuidados de um lar, ou melhor, apesar de evidente incapacidade, o
caráter de matronas”. Aos dezoito, atingia a “plena maturidade”, tornando-se
“corpulenta e mesmo pesadona”, aos vinte e cinco anos “já se tronaram perfeitas
velhas enrugadas” (Idem, p. 76), em decorrência de raramente possuírem algum tipo
de atividade, pois cabia aos escravos as tarefas do lar, e, também, de não se
protegerem da luz solar.
Assim, para o inglês, a velhice prematura das mulheres de elite era
consequência “[...] em parte ao clima e em parte a uma constituição enfraquecida e
deteriorada pela inatividade, mas, acima de tudo, pela idade precoce, vergonhosa e
contra a natureza, com que permite às mulheres que casem” (Idem, p. 77).
2 Para uma breve síntese desses enredos, ver OLIVEIRA, Anelise Martinelli Borges. Considerações sobre os impressos literários publicados pela Impressão Régia do Rio de Janeiro (1808-1821). Revista Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 27, n. 2, p. 33-45, 2014.
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Antes da vinda da Corte a mulher abastada era bastante reclusa. Durante o
Período Joanino ela passa a ter mais opções de divertimento, mas, mesmo assim,
saía de casa apenas em certas ocasiões, como para ir à missa, aos eventos reais
(bailes de gala e peças teatrais), ou dias de visita. Elas dificilmente saíam sozinhas,
como mostra o relato do viajante prussiano Von Leithold que esteve no Rio de
Janeiro: “Pelo comum, as mulheres saem pouco e jamais são vistas a pé fora de
casa sem estarem acompanhadas de escravos e especialmente de escravas
(LEITHOLD, 1966, p. 28).
A vestimenta que a mulher de elite utilizava em casa muito se diferia da usada
socialmente. No ambiente doméstico, “[...] quando entre amigos íntimos, vêem-se
apenas de camisa, cingida à cintura pelos cordões da saia e com alças
frequentemente caindo de um dos ombros [...]. Os cabelos são compridos e em
geral despenteados [...]” (LUCCOCK, 1975, p. 75). Para Tollenare (1956, p. 24),
viajante francês, no interior das casas podia-se ver “[...] as mulheres brasileiras
seminuas, acocoradas ou deitadas sobre esteiras”.
Já nas festividades, usava enfeites de linho, seda, ouro, prata, xales, chapéu,
leques, pedras preciosas, perucas e outros ornamentos. Nestas ocasiões, não
apenas as mulheres, como os homens também se vestiam de forma opulenta: “A
grande ostentação dos homens e mulheres no Rio de Janeiro observa-se no teatro,
em noites de gala: eles, apresentam-se com bandas e crachás; elas, com joias,
pérolas e brilhantes” (LEITHOLD, 1966, p. 31). O francês Ebel (1972, p. 70) notou a
diversidade das joias usadas pela mulher de elite: “É um regalo para a vista a
grande quantidade de pedras preciosas: topázios, ametistas, esmeraldas, brilhantes
e outras, no geral bem lapidadas [...]”.
A diversificação no traje ocorria devido ao aumento do consumo de artigos de
luxo vindos da Europa durante o Período Joanino. A rua do Ouvidor, principal rua
comercial do Rio de Janeiro, recebia alimentos, objetos de decoração, mobílias,
transporte, instrumentos musicais, dentre outros, sendo bastante frequentada pela
camada abastada. Para o padre do período, Luís Gonçalves dos Santos (1943, p.
132), a rua do Ouvidor era um verdadeiro “clube ao ar livre”, onde se reunia
“elegante sociedade”: “A importância notável do seu comércio de modas, de
confecções e de luxo constitui um dos atrativos para as senhoras e senhores que
obedecem ao imperativo do último figurino”.
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O requinte no trajar da camada abastada fluminense não passou
desapercebido aos olhos de Leithold (1966, p. 29):
Há relativamente muito mais luxo aqui do que nas mais importantes cidades da Europa. Com dinheiro compram-se artigos de moda, franceses e ingleses; em suma, tudo. O mundo elegante veste-se, como entre nós, segundo os últimos modelos.
Se Leithold (1966) via na ornamentação alguma semelhança com as
vestimentas europeias, o mesmo não se pode dizer de Luccock (1975, p. 88), que a
considerava exagerada e não apropriada para o clima quente dos trópicos: “No uso
obrigatório das roupas, demonstravam forte tendência pelo excesso de enfeites de
mau gosto, e ao mesmo tempo que essa ornamentação pode coexistir com o
desasseio” . Também para Tollenare (1956, p.130), esta era uma característica das
mulheres abastadas: “O seu luxo é desprovido de gosto; cobrindo-se de penachos e
lantejoulas, pensam deslumbrar”.
Havia festividades em que as mulheres não poderiam participar, pois eram
consideradas masculinizadas, como as que ocorriam para se jogar bilhar ou gamão,
por exemplo. Nas chamadas “noites de sociedade”, a camada abastada se reunia
em partidas e assembleias, onde a mulher devia mostrar suas “qualidades” em
relação à dança, música e leitura em voz alta. Servia-se todo tipo de iguaria
europeia, como chás, refrescos e frutas secas. Nessas ocasiões, exigia-se o uso da
etiqueta.
As mulheres de elite que se desviassem da conduta exigida pela sociedade,
como por exemplo, ter uma vida social “mais ativa” ou estabelecer conversas com
homens que não os da sua família, eram normalmente enviadas para algum tipo de
recolhimento. No Período Joanino, o adultério era considerado grave por parte da
mulher, e caso o marido tivesse provas da infidelidade da esposa, poderia matá-la
que não sofreria nenhum tipo de punição (SILVA, 1978).
Ao tempo da publicação dos primeiros livros literários pela Impressão Régia,
e, em especial, Triste efeito de uma infidelidade, assim se delineava o cotidiano da
mulher de elite, permeado de restrições, tanto do ponto de vista moral quanto
religioso.
A CONDUTA DA MULHER DE ELITE EM TRISTE EFEITO DE UMA INFIDELIDADE
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A Impressão Régia do Rio de Janeiro representou um ponto de inflexão no
que diz respeito à leitura, por publicar milhares de textos, dentre eles, o livro Triste
efeito de uma infidelidade. Ele faz parte de um conjunto de nove obras que tiveram
como característica a publicação “[...] quase sempre, sem nome do autor, porém
com títulos sugestivos de maneira a tentar o provável leitor e principalmente as
leitoras. Contam histórias sentimentais ou morais, geralmente tristes [...]” (MORAES,
1993, p. XXIX).
Nesse aspecto, o livro Triste efeito de uma infidelidade possui um título claro
e direto em relação à sua trama, pois, sem se ter contato com o conteúdo do
mesmo, já se sabe, somente através da leitura do título, que o enredo gira em torno
de um adultério, e que esta conduta, vista como negativa para os padrões da elite
(uma vez que o público leitor é a camada abastada) vai acarretar em consequências
lamentáveis.
Triste efeito de uma infidelidade é de autoria desconhecida. Pode ter sido
originário da língua francesa, pois em sua capa consta a informação “traduzido do
francês”. Ele possui poucas páginas, apenas 30, e é de fácil leitura. Tais
características permitem pensar que tenha sido publicado com o intuito de atender a
uma grande quantidade de leitores, por meio de uma leitura rápida e que não fosse
considerada enfadonha. Na contracapa vem a informação “conto moral”, o que
evidencia seu caráter educativo, com o objetivo de transmitir algum tipo de lição.
Em Triste efeito de uma infidelidade o ensinamento recai sobre a mulher de
elite. É um livro prescritivo, no qual, antes de normatizar comportamentos tidos como
adequados para uma mulher de sua estratificação social, prescreve as condutas que
a mesma não deve ter.
A história se passa na França. Não se sabe ao certo o período, mas
subtende-se ser do século XVII, XVIII ou início do XIX, uma vez que o narrador da
história é denominado de Mosqueteiro, nome dado aos guardas de elite do exército
francês responsáveis pela segurança do rei.
A seguir, o enredo do livro.
Era meia noite quando Mosqueteiro voltava sozinho para casa. Procurara
uma carroça de aluguel, mas sem encontrar, decidiu ir a pé. Apesar de possuir
espada, “não fiquei muito contente, por me achar a tais horas pelas ruas” (TRISTE
EFEITO DE UMA INFIDELIDADE, 1815, p. 2), pois considerava a situação perigosa.
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Este trecho já mostra que o narrador da história era receoso quanto a estar
fora de casa à meia noite, fazendo pensar que esse não era um costume comum de
sua parte. Pelo contrário, compreendia que os frequentadores da rua eram
criminosos, já que “todos os dias se falava de mortes que se cometeram a noite”
(Idem). Aqui, percebe-se o narrador como um indivíduo de princípios, e que a
escolha do autor pelo nome Mosqueteiro não fora aleatória, pois estaria ligada ao
fato daquele considerar os guardas de elite do rei como pessoas íntegras, qualidade
essa que o narrador também deveria ter.
Quando Mosqueteiro estava bem próximo de sua casa, avista três mulheres,
e surpreende-se de vê-las “[...] em uma postura de tanto sossego a uma tal hora”.
Tal passagem evidencia que não era de bom tom que as mulheres ficassem fora de
casa naquele horário.
Ao perguntar se precisavam de algo, uma delas diz: “[...] segui vosso
caminho”. Ao proferir essas palavras, Mosqueteiro percebe não se tratar de uma
mulher, mas sim de um homem. Apesar dessa resposta, uma das outras duas
mulheres disse aceitar a ajuda, se ele revelasse sua identidade. Falou então seu
nome, e a mesma respondeu: “Se vós sois Mosqueteiro, eu não duvido que sejais
homem de honra: tende piedade de mim, Senhor, e dai-me algum socorro […] O
Senhor Mosqueteiro terá compaixão de uma desgraçada, que espera tudo de sua
generosidade” (Idem, p. 5). Este fragmento vem confirmar que o narrador é um
indivíduo virtuoso, uma vez que “piedade”, “compaixão”, “generosidade” e “honra”
são suas qualidades.
A mulher pede a Mosqueteiro que “a conduzisse a um lugar, onde ela
pudesse ter algum repouso sem ser conhecida” e ele então leva as três pessoas
para sua casa, onde morava sozinho e tinha alguns criados. Em sua casa,
Mosqueteiro verificou que as três pessoas tratavam de um religioso, uma criada e
uma jovem senhora de posses, que aparentava ter 17 anos. Esta última assim se
apresenta:
Permiti-me que por hoje vos oculte meu nome. Eu sou de uma das melhores famílias de Paris: eu tenho um amante que merece mil mortes; se me for infiel; mas bem digno de compaixão, se conservando-me a mesma ternura, ele ainda ignora minhas desgraças, e as suas. Minha fraqueza me tem feito consentir em seus desejos. Eu trago no meu ventre o fruto de nossos desgraçados amores (Idem, p. 9).
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O relato deixa claro que a senhora pertencia à camada abastada francesa, e
que, por ter um amante, sua conduta era contrária àquela preconizada por sua
estratificação social, e mais ainda, contrária ao comportamento esperado por uma
dama da alta sociedade. Sua identidade, pois, deveria ser preservada, evitando-se
assim sua exposição e a condenação da sociedade.
Quando diz “Minha fraqueza me tem feito consentir em seus desejos” a jovem
evidencia estar de certo modo arrependida dos seus atos, pois considera não ter tido
determinação para se opor às vontades do amante. A frase seguinte: “Eu trago no
meu ventre o fruto de nossos desgraçados amores” vem confirmar esse
arrependimento, pois o seu mau comportamento resultou na gravidez.
A dama continua o relato, dizendo que fugiu de casa porque seus dois irmãos
– que possuíram sua tutela depois da morte dos pais – descobriram a gravidez e
planejavam uma “cruel vingança”. Neste ponto percebe-se que o seu procedimento
afetara outras pessoas, e não somente a ela, e que a sua honra (ou a falta dela)
representava também a honra da família. Por isso, seus irmãos viam na sua morte a
resolução do problema.
Após essa conversa, a dama solicitou a Mosqueteiro que fosse descansar, e
pediu ao religioso que lhe relatasse os acontecimentos. Então, o religioso – um
padre – afirmou que os dois irmãos o levaram até a sua casa, afim de que a irmã se
confessasse antes de morrer. Chegando ao local, um deles disse à dama: “Vamos,
[…] é preciso expiar vossa loucura: acabai este grande tumulto, e procurai antes o
reconciliar-vos com o céu: para isto não tendes mais do que um quarto de hora”
(Idem, p. 13). Aqui, a morte aparece para os irmãos como a única solução
encontrada, a qual deveria ocorrer para que a irmã pagasse pelo seu pecado,
redimindo-se do erro e conservasse a reputação da família.
Os irmãos deixaram o padre com a dama e a criada, prometendo voltar no
horário estipulado. Uma vez sozinhos, o padre as encorajou da fuga, e iria levá-las à
casa de uma dama da sua confiança, quando Mosqueteiro os encontrou.
Na manhã seguinte, o padre voltou ao Convento, e as duas mulheres
permaneceram na casa de Mosqueteiro. Ao perguntar no que poderia ser útil, a
dama responde: “Meu maior desejo é de informar de tudo a meu amante. Ai de mim!
Se minha infeliz estrela não lhe tem mudado o coração, que dor vai ser a sua,
quando ele souber o que eu sofro por ele!” (Idem, p. 17). Aqui, a dama se mostra
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esperançosa em relação ao seu amante, pois acredita que se ele souber de sua
grave situação, tomará alguma providência.
Ela afirma que o mesmo é capitão no Regimento da Corte, e está em uma
guarnição há dois meses. Então, a dama solicita-lhe que leve até ao amante uma
carta, na qual explicaria os últimos acontecimentos. Aqui, a dama já releva seu
nome ao narrador, mas este o esconde do leitor afim de não “expor” sua família.
Sobre a possibilidade de entregar a carta, o narrador reflete: “[...] como eu
tinha somente um desejo sincero, e desinteressado de servi-la, pareceu-me que a
delicadeza de seu amante se ofenderia se a visse achar entre as mãos, e no poder
de um Mosqueteiro” (Idem, p. 18). Este fragmento vem reforçar as qualidades do
narrador assim como indicar a crença de que o amante era um homem de bem.
Desse modo, ficou decidido que o seu Escudeiro iria levar a carta ao amante.
Mosqueteiro informa que no mesmo dia, durante o jantar, ele e a dama
estabeleceram uma conversa que acabara caindo “[...] insensivelmente sobre as
consequências desgraçadas das mais queridas paixões” (Idem, p. 20). Fica, no
entanto, perceptível que para o autor, o fato dos dois personagens abordarem
justamente o assunto pelo qual a jovem se encontrava naquela situação não era
coincidência, deixando subtender que a paixão da dama poderia ter um infeliz
desfecho.
Ainda naquela ocasião, Mosqueteiro afirmou que a dama havia “[...] bem
previsto tudo o que lhe tinha sucedido; porém que não pudera resistir ao impulso de
sua inclinação [...]” (Idem, p. 20). O trecho mostra que a jovem tinha um
conhecimento prévio das más consequências do seu ato, mas, apesar disso, seu
desejo sobressaíra. Apesar disso, a dama se sentia confortada por “[…] ter um
amante que merecia todas as penas […]” (Idem, p. 20), deixando clara sua
confiança e esperança em uma possível atitude do rapaz.
Durante a conversa, a jovem também afirmara a Mosqueteiro que não teria
“[...] mais do que três, ou quatro meses de vida; porém sem terror esperava a morte,
porque ela mesma lhe tinha dado a causa [...]” (Idem, p. 20). A certeza da morte
ocorria porque esperava não sobreviver ao parto, pois tinha “[...] um temperamento
muito delicado [...]” (Idem, p. 20). Neste ponto, percebe-se que a própria dama via
na morte sua única saída, passando, agora, a concordar com seus dois irmãos. O
fato de acreditar que não sobreviveria ao parto evidencia a fragilidade do seu corpo,
pois em sua concepção ele não estava preparado para conceber um filho. Isso
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demonstra, igualmente, que o ato sexual foi precipitado, na medida em que o autor
deixa entender que uma mulher só pode manter relações sexuais se tiver como
finalidade a procriação, estando, para isso, casada.
Mosqueteiro a consolava “[...] com a esperança de um tempo feliz, que bem
depressa a uniria ao objeto de seus desejos” (Idem, p. 21). O narrador também
demonstra a sua satisfação com a futura chegada do amante, pois: “O retrato que
ela dele me tinha feito, me prevenia em seu favor; e eu não desejava menos que ela
a sua chegada, para ter mais um amigo” (Idem, p. 21).
Passaram-se alguns dias, e o Escudeiro de Mosqueteiro retornou da
guarnição sem a companhia do amante, mas, com uma carta do mesmo,
endereçada à dama. Mosqueteiro então lhe entrega a carta: “Ela abriu; e apenas
teria tempo para ler as primeiras linhas, quando caiu a meus pés. […] Mas quanto
melhor seria, se com este desmaio se tivesse terminado a sua vida!” (Idem, p. 22). A
dama se levanta com a ajuda de Mosqueteiro e tenta pegar sua espada que estava
sobre a cadeira, mas ele a impede. O relato evidencia que a resposta do amante
não foi a esperada por ela, e, em decorrência disso, tentara se matar:
Meu amante me abandona: o Sol não tem já mais esclarecido perfídia tão vil, e tão negra: o Céu o punirá, e me deve esta justiça. […] Sim, é certo que eu ia dar-me a morte; porém este mesmo pensamento me tem aberto os olhos sobre o excesso de minha loucura […]. Eu tenho feito em menos de um quarto de hora, mais reflexões do que eu tenho feito em toda a minha vida. Enfim, vós me vedes não somente resolvida a viver, mas a renunciar o amor, o ódio, e o Mundo […] (Idem, p. 24 e 25).
O fragmento anuncia que, apesar da jovem ter visto na morte uma alternativa
para a sua realidade, estava arrependida de tê-la tentado, e agora, estava disposta a
abdicar de todos os sentimentos humanos. Por isso, afirma querer ir para um
convento onde sua tia morava. Mosqueteiro considerou aquilo um “belo desígnio”,
mas a advertiu de que “[...] trazeis um peso, do qual é preciso primeiro vos
desembaraceis [...]” (Idem, p. 26). Aqui, a gravidez aparece como um obstáculo para
a execução do seu plano, tendo em vista que a dama poderia ir para o convento
somente se estivesse sem o filho. Decidiram, pois, que ela o teria antes da partida.
Depois da conversa, a dama solicitou sua retirada a fim de descansar. O
trecho seguinte sugere uma conduta contrária à que a jovem teria se prontificado
anteriormente: “Quem não se capacitaria, depois de um discurso tão tranquilo, e tão
sério, que esta desafortunada Senhora estava inteiramente em seu perfeito juízo?
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Nem é crível, que uma mulher, na força da sua paixão, pudesse dissimular tanto”
(Idem, p. 26). Nele, Mosqueteiro se referia ao fato da jovem ter se trancado sozinha
no quarto, e da sua porta escorrer gotas de sangue. Como bateu na porta e não
obteve resposta, o narrador arrombou a porta e percebeu que a mesma havia
perfurado o peito com o punhal de que tinha costume servir-se à mesa, estando já
sem vida. Ela havia deixado ao Mosqueteiro o seguinte bilhete:
[…] eu vos peço perdão de vos ter enganado: era-me impossível o executar de outra sorte a resolução em que estava de morrer. Vossa cega amizade por uma desgraçada vos impediria de ver que a morte lhe era necessária no horrível estado a que se via reduzida (Idem, p. 29).
A passagem revela que a dama nunca havia desistido de se matar, e ocultara
a verdade de Mosqueteiro por perceber que ele não concordaria com isso, pois
possuía muita afeição a ela. A jovem continua:
O Céu, que só castiga os crimes, terá piedade de minha alma. Nada mais me inquieta do que o desgraçado fruto, que trago em meu ventre. Persuado-me, que se me fizerem abrir prontamente depois de minha morte, ele se poderá batizar. Eu terei o cuidado de descarregar o golpe sobre o coração, para não sufocar logo este pobre inocente (Idem, p. 30).
Mais uma vez, a dama se mostra arrependida por ter se relacionado com o
amante. Ela não concebe a atitude de tirar a vida como um crime. Pelo contrário,
entende que representa um ato de coragem, o qual deve obter compaixão e
misericórdia religiosas. O fato de não ter apunhalado a barriga demonstra a tentativa
de salvar o filho da morte, uma vez que, em sua visão, ele era o resultado
involuntário de seus maus comportamentos, e não possuía culpa, devendo, portanto,
sobreviver. A preocupação em batizar o filho demonstra a crença na religião católica,
e, especificamente, a convicção de que o ritual de purificação seria fundamental
para que a criança pudesse se “limpar” das más condutas da mãe.
Com o objetivo de atender a última vontade da dama, Mosqueteiro chama um
médico, que retira o filho ainda vivo de sua barriga. Porém, não é batizado, pois vive
apenas por meia hora. O narrador enterra ambos no cemitério da cidade. O livro é
finalizado quando Mosqueteiro afirma: “[...] eu os fiz enterrar à minha vista em uma
mesma cova” (Idem, p. 30).
Mais do que prescrever atitudes consideradas dignas de serem apropriadas
pela mulher de elite no Período Joanino, Triste efeito de uma infidelidade evidencia,
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de forma clara e objetiva, as atitudes que essa mulher não deve ter, uma vez que,
ações consideradas incorretas, do ponto de vista moral ou religioso, tem
consequências lamentáveis.
Desse modo, evidencia-se que a educação da mulher abastada está
relacionada com as atitudes que se espera dela.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou analisar o enredo de Triste efeito de uma infidelidade,
obra publicada pela Impressão Régia do Rio de Janeiro em 1815. Foi constatado
que, antes de ser impresso, o livro passou pela inspeção da Junta de Direção, cuja
função era “[...] examinar os papeis e livros que se mandarem imprimir, e de vigiar
que nada se imprima contra a religião, governo e bons costumes [...]” (BRASIL,
1808). Portanto, evidenciou-se que o enredo contido no livro estava condizente com
as exigências impostas por D. João VI, ou seja, correspondia ao que era pregado
pelo governo, pela Igreja Católica e pelo que considerava ser de bom-tom para a
leitura da camada abastada, e, principalmente, da mulher de elite.
Por meio do relato de alguns viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil,
bem como da bibliografia sobre o tema, verificou-se que a mulher de elite possuía
um comportamento restrito em relação à vida social. Tal conduta vai ao encontro da
prescrição contida no livro publicado, pois este evidencia as atitudes que essa
mulher não deve possuir.
Especificamente sobre o enredo do impresso Triste efeito de uma infidelidade,
pode-se perceber que a mulher da alta sociedade teve um comportamento contrário
ao que se esperava dela, pois a conduta de ter um amante e manter relações
sexuais com ele era contrária à pregada pela sociedade para uma mulher dessa
estratificação social. Além de ser reprovada pela sociedade, essa conduta também
era condenada pela Igreja, na medida em que esta concebe as relações sexuais
somente durante o casamento, ou seja, mediante reconhecimento religioso. O fato
de a dama estar grávida do amante vem confirmar o seu erro, pois tomou grandes e
visíveis proporções, as quais seriam vivenciadas e lembradas por toda a vida.
Percebe-se que, mesmo antes de receber a resposta negativa do amante, a
dama já possui a certeza da morte. Neste ponto, fica claro como a resolução dos
seus irmãos de lhe tirar a vida não parece mais tão absurda. Ao enxergar na morte
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a solução mais viável para seu erro, a dama mostra que a única solução para uma
mulher que mantém relações sexuais com homens fora do casamento é dar fim à
própria vida, já que não é mais digna de viver entre as pessoas de bem da alta
sociedade. A morte, também, pode ser vista como uma fuga para não prestar contas
com a sociedade. Ao retirar a própria vida, a dama sugere que sua atitude foi tão vil
que nem os seus irmãos poderiam retirá-la, mas apenas ela.
Durante todo o enredo fica evidente o apoio do padre para com a dama,
mostrando que, apesar do mau comportamento, a Igreja é uma instituição
benevolente e, mesmo nas situações mais reprováveis, não abandona seus fieis,
como é o caso da dama. Na carta, quando a jovem solicita a Mosqueteiro que
providenciasse a retirada do filho do seu ventre, para salvá-lo e assim batizá-lo,
mostra compaixão para com o filho que fora vítima da sua ação considerada
impensada. A preocupação em batizar a criança mostra a crença na religião católica,
pois acredita que este rito de passagem iria purificá-lo dos pecados da mãe.
Assim, percebe-se como a educação da mulher de elite está associada à sua
formação moral, religiosa e emocional, pois se considera que uma mulher bem
educada deve possuir comportamentos condizentes à sua posição social.
Em acordo com a prescrição do livro e da sociedade, subtende-se que essa
mulher não deve se deixar ludibriar por homens que almejam somente conseguir o
seu intento – a relação sexual. A mulher de elite, portanto, deve ter forças suficientes
para evitar se entregar aos homens antes do casamento, uma vez que esta atitude
pode ter como conseqiuência os infelizes desdobramentos que ocorreram em Triste
efeito de uma infidelidade.
Verificou-se, portanto, que as prescrições contidas no livro Triste efeito de
uma infidelidade vão ao encontro do que se esperava do comportamento da mulher
de elite do Período Joanino em relação à educação.
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