Post on 23-Jul-2020
GRUPO EDUCACIONAL UNINTER
CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINI
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE
Curitiba
2017
CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINI
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito do Grupo Educacional Uninter como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.
Área de concentração: História do Direito e Jurisdição
Orientador: Prof. André Peixoto de Souza
Curitiba
2017
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, os maiores amores da minha vida a quem eu dedico todas as minhas vitórias.
A minha filha Yasmin, pela compreensão e carinho.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao Grupo Educacional Uninter pela concessão da
gratuidade do curso de Pós-graduação Strictu Sensu em Direito o que possibilitou o
meu ingresso nesta jornada.
Agradeço ao meu orientador André Peixoto de Souza pela paciência,
cooperação e disponibilidade em me assessorar no decorrer do desenvolvimento
deste trabalho.
Agradeço ao professor Luiz Fernando Coelho por também ter me auxiliado e
pela disponibilização da bibliografia que tornou modelo para esta pesquisa e a todos
os professores que desta jornada participaram, transmitindo o conhecimento
necessário que muitas vezes esclareciam, e em outros, instigavam, colaborando
sempre para nossa evolução.
Agradeço aos colegas de mestrado que compartilharam comigo esses
momentos de aprendizado.
“A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.”HANNAH ARENDT
RESUMO
As transições democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio a
vários estudos sobre a democratização. No campo político, essas teorias
enfatizaram os processos transicionais a partir da atuação dos agentes políticos
relevantes. Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano.
Ao mesmo tempo, no campo jurídico, era formulado uma outra perspectiva de
análise, inserindo no centro da discussão a formulação de mecanismos que
possibilitassem a transição de regimes não autoritários para regimes democráticos
que pudessem proporcionar uma transição com justiça. Estes mecanismos serviram
de paradigma para a justiça de transição brasileira, movendo esforços para a sua
efetivação. Diante desta intensa atividade surgiram várias discussões com
entendimentos antagônicos exigindo a elaboração de teorias jurídicas, doutrinários e
de decisões políticas. Neste circunstancia fez-se necessário á busca por caminhos
viáveis dentro da realidade brasileira. Diante das antinomias surgidas aflora a
proposta elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho como via possível de
interpretação: o principio in dubio pro humanitate.
Palavras-chave: transições democráticas, democratização, justiça de transição,
antinomias, principio in dubio pro humanitate.
ABSTRACT
The democratic transitions that occurred in late 1980s
initiated several studies on democratization. In the political field, these theories
emphasized the transitional processes from the performance of the relevant political
agents. Thus, other fields like the social, were pushed it aside. At the same time, in
the juridical field, another perspective of analysis was formulated, inserting in the
center of the discussion the formulation of mechanisms that would allow the
transition from no-authoritarian regimes to democratic regimes that could provide a
transition with justice. These mechanisms served as a paradigm for the transitional
justice in Brazil, moving efforts towards its implementation. Faced with this intense
activity, several discussions arose with antagonistic understandings requiring the
elaboration of legal, doctrinal, and political decision theories. In this circumstance it
became necessary to search for viable paths within the Brazilian reality. Faced with
the antinomies that arise, the proposal developed by Professor Luiz Fernando
Coelho emerges as a possible interpretation: the principle in dubio pro humanitate.
Key words: democratic transitions, democratization, transitional justice, antinomies,
principle in dubio pro humanitate.
LISTA DE SIGLAS
ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADCT - Ato de Disposições Constitucionais Transitórias
CNV - Comissão Nacional da Verdade
CISA - Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica
CEMDP - Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
CIE - Centro de Informações do Exército
CONADEP - La Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas
CORTEIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos
CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos
DOI - Destacamento de Operações de Informações
MRE - Ministério das Relações Exteriores
ONU - Organização das Nações Unidas
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
PSOL - Partido Socialismo e Liberdade
PIC - Pelotão de Investigações Criminais
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
STF - Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
PARTE I – TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA 15
1 IMPLICAÇÕES DO REGIME NÃO DEMOCRÁTICO PARA A DEMOCRACIA
16
1.1 REGIMES TOTALITARIOS: O TOTALISTAMOS E O DOMINIO
REAL
16
1.2 REGIMES AUTORITÁRIOS: UMA SINTESE DA EXPERIENCIA
BRASILEIRA
18
1.3 IMPLICAÇÕES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSIÇÃO 22
2 REGIME DEMOCRÁTICO 24
2.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER
E DAHL
25
2.2 INFLUÊNCIA DAS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NA
TRANSIÇÃO
30
3 TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA 32
3.1 LIBERALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO 33
3.1.1 Ondas democráticas 34
3.1.2 Transição por transformação, substituição e “transplacement” 36
PARTE II – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO LATO SENSU 45
1 CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO 45
1.1 GENEALOGIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 48
1.1.1 Primeira fase: Justiça Pós-guerra (1945) 49
1.1.2 Segunda fase: Justiça Pós-guerra Fria 51
1.1.3 Terceira fase: A justiça “estável” 53
1.2 PILARES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 54
1.3 TIPOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 62
PARTE III – OS CAMINHOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL 66
1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO EM SENTIDO ESTRITO 66
1.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTIÇA CERCEADA 68
1.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS
POLÍTICOS
72
1.3 INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIAÇÃO DA COMISSÃO
ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS
73
1.4 ELABORAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS
HUMANOS
77
1.5 EIXO DA REPARAÇÃO: COMISSÃO DA ANISTIA 81
2 ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS
83
2.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008 86
2.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS.
94
2.3 UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE AS DECISÕES DO STF E DA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS?
102
3 CRIAÇÃO DE COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE PARA APURAÇÃO DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
108
3.1 ARGENTINA: LA COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA
DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP)
110
3.2 OUTRAS COMISSÕES 112
3.3 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NO
BRASIL E SUA ATUAÇÃO
116
3.3.1 Obstáculos à atuação da Comissão Nacional da Verdade 123
4 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO: ADPF 320 125
PARTE IV – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE
128
1 OLHANDO A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO DE “BAIXO PARA CIMA” 131
2 ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
133
3 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS 136
4 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO 136
HUMANITATE CONCLUSÃO 143
INTRODUÇÃO
As transições democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio
a vários estudos sobre a democratização. No campo político, essas teorias
enfatizaram os processos transicionais a partir da atuação dos agentes políticos
relevantes. Buscando uma sistematização dos processos de democratização, estes
estudos analisaram a transição exclusivamente em sua acepção temporal
elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias
dos atores relevantes e na atuação das elites políticas.
Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimensão moral dos reclamos por justiça das vítimas foi relativizada sendo mais importante conseguir efetivar a
transição e consolidação democrática do que abrir questões que fizessem com que
o regime militar recuasse na sua decisão de abertura política. A presença da cautela
e da prudência se justificava pelo medo de que, caso a transição não ocorresse, um
pior cenário de regressão autoritária poderia surgir.
A análise desses conceitos é importante para que possamos entender como
se deram essas transições, quais as implicações do regime anterior no processo de
transição, e para que possamos extrair conceitos sobre o desenvolvimento da teoria
da democracia, essencial para a compreensão do desenvolvimento de outro campo
nos estudos sobre transição a ser desenvolvida na segunda parte deste trabalho.
Assim na Parte I buscamos realizar uma análise descritiva dos processos
transicionais na perspectiva política verificando o seu desenvolvimento e a sua
relação com as demandas por justiça que foram surgindo no desenvolvimento de
outra perspectiva sobre essas transições.
Ao mesmo tempo, no campo jurídico foi inserindo no centro da discussão a
formulação de mecanismos que possibilitassem a transição de regimes não
autoritários para regimes democráticos que pudessem proporcionar uma transição
com justiça.
Esta construção metodológica relacionada à necessidade de respostas a
problemas concretos, desenvolvemos na Parte II deste trabalho, utilizando-se da
proposta elaborada por Ruti Teitel (2011). Nesta perspectiva então, a justiça de
transição indica uma atividade focada na superação de legados de abusos dos
direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social severo,
incluindo genocídio ou guerra civil, a fim de construir um processo mais democrático,
justo e um futuro pacífico desenvolvendo medidas a serem apreendidas como o
resgate a memória e a verdade, efetivação da justiça, reparação das vítimas e
reforma das instituições repressoras.
Estes mecanismos serviram de paradigma para a justiça de transição
brasileira, movendo esforços para a sua efetivação. No Brasil, a busca pela
efetivação destes mecanismos foi e continua sendo intensa. Desde a implantação do
silêncio marcado pela aprovação da Lei de Anistia de 1979, diversas disputadas
contra esta imposição já foram realizadas. Vítimas e seus familiares, Organizações
de Direitos Humanos e a sociedade não medem esforços para que este período da
história não caia no esquecimento.
Na parte III deste trabalho, desenvolvemos os caminhos que a justiça
transicional vem percorrendo desde a aprovação da Lei de Anistia de 1979, onde
uma cultura do silencio sobre os fatos da ditadura foram implantadas, até o
momento atual, onde se rediscute a não realização do Controle de
Convencionalidade pelo Supremo Tribunal Federal na ação de Arguição de
Descumprimento Fundamental n° 153.
Diante desta intensa atividade surgiram várias discussões com entendimentos
antagônicos passaram a exigir da doutrina a elaboração de teorias jurídicas que
tornassem possível o encontro de caminhos viáveis dentro da realidade brasileira.
Diante das antinomias surgidas aflora a proposta elaborada pelo professor Luiz
Fernando Coelho como via possível de interpretação: o principio in dubio pro
humanitate que será desenvolvida na Parte IV deste trabalho.
Neste sentido, propõe-se uma análise zetética e crítica da Justiça de
Transição, utilizando da hermenêutica para solucionar a antinomia então presente
no nosso ordenamento jurídico brasileiro. Assim, ao invés realizar a análise sob uma
perspectiva restrita e dogmática, propõe-se resolvê-la pela aplicação da Teoria Geral
do Direito. Este critério hermenêutico favorece a análise das violações sistemáticas
contra os direitos humanos estabelecendo que o terrorismo de Estado e a crueldade
contra o povo devem motivar a reação dos governos democráticos.
15
PARTE I - TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA
Este capítulo pretende realizar uma abordagem descritiva dos estudos
elaborados sobre os processos de transição e consolidação democrática na América
Latina a partir de uma abordagem política. No fim dos anos 1980 a América Latina
passou a vivenciar vários processos de restauração democrática. Bolívia (1982),
Argentina (1983), Uruguai (1985), Brasil (1985) e Chile (1990), deixaram de ser
governados por ditaduras e passaram a adotar procedimentos democráticos para a
escolha de seus governantes.
Estes processos de transição deram ensejo à elaboração de várias teses
sobre a construção democrática, em especial, a transitologia e a consolidologia.
Buscando uma sistematização dos processos de democratização, estes
estudos analisaram a transição exclusivamente em sua acepção temporal
elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias
dos atores relevantes e na atuação das elites políticas. Neste sentido, outras
questões como as econômicas, sociais e culturais acabaram ficando em segundo
plano.
A análise desses conceitos, porém, é importante para que possamos
entender como se deram essas transições, quais as implicações do regime anterior
no processo de transição, e para que possamos extrair conceitos sobre o
desenvolvimento da teoria da democracia, essencial para a compreensão do
desenvolvimento de outro campo nos estudos sobre transição a ser desenvolvida no
capitulo 2.
Deste modo, este capítulo aborda sobre os pressupostos mínimos para a
compreensão sobre as transições políticas, trazendo primeiramente a leitura da
política para que depois possamos desenvolver a leitura do direito, a justiça de
transição, que surge no mesmo contexto, mas, como produto de uma demanda pela
mudança do entendimento da relação entre direito e justiça.
16
1 IMPLICAÇÕES DO REGIME NÃO DEMOCRÁTICO PARA A DEMOCRACIA
Nesta sessão iremos desenvolver a abordagem sobre dois principais regimes
não democráticos ocorridos no século XX, o totalitarismo e o autoritarismo. Objetiva-
se a partir desta análise extrair suas principais características e suas implicações
para a transição democrática.
1.1 REGIMES TOTALITÁRIOS: O TOTALITARISMO E O DOMÍNIO TOTAL
A análise da obra “As origens do totalitarismo” de Hannah Arendt é essencial
para esclarecer sobre a experiência totalitária que eclodiu na Europa do século XX
lançando desafios para a frágil democracia do século XXI, tornando possível a
reflexão das condições para a ação política, a partir de uma ordenação social alheia
à política, no qual o terror e a ideologia tomaram lugar.
O totalitarismo se desenvolveu através da evolução do antissemitismo para o
racismo, e do marxismo para o despotismo, sendo um regime que “pode destruir não
só o mundo ocidental, mas toda a civilização humana” (ARENDT,2012, p.147)
O surgimento deste regime não-democrático começou da derrota da
Alemanha na Primeira Guerra Mundial onde grandes potências europeias assinaram
o Tratado de Versalhes (1919) pretendendo devolver a paz à Europa. Neste,
impuseram penalidades excessivamente penosas à Alemanha como, a perda de seu
território, o enfraquecimento de seu potencial bélico, além do pagamento de altas
indenizações. Tais penalidades somadas à crise economia que assolou o país
trouxeram um forte sentimento nacionalista no qual o movimento nazista explorou
para ascender ao poder. Quando da hegemonia do regime nazista na Alemanha o
poder do Estado não estava limitado à esfera pública, este passou a penetrar em
todo o tecido social, “destruindo todas as tradições sociais, legais e políticas do país”
(ARENDT, 2012, p.391).
A descoberta das atrocidades nazistas nos campos de concentração
trouxeram reflexões sobre o surgimento de estruturas de poder voltadas para a
dominação total sendo este, um fenômeno novo que se diferenciou essencialmente
17
de outras formas de opressão política, como o despotismo, a tirania e a ditadura
(ARENDT, 2012). O totalitarismo instaurou um novo regime baseado na ideologia e
no terror, na busca de destruir toda e qualquer forma de poder, de eliminar o
pluralismo político, social ou econômico em nome do domínio total. O domínio
totalitário não se contenta apenas com o isolamento dos homens e das suas
capacidades políticas, “destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na
experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e
desesperadas experiências que o homem pode ter” (ARENDT, 2012, p.406), isto é,
promove esforços para controlar e regular todos os aspectos da vida pública e
privada ancorando-se no uso da propaganda massiva para reforçar seu modelo
ideológico.
É um regime que se instala em grande escala, com grandes massas
supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de
despovoamento. As massas são compostas por “pessoas neutras e politicamente
indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto”
(ARENDT, 2012, p. 280) sendo essenciais para o sucesso totalitário. Essa
experiência não aconteceu como efeito da loucura de poucos, chegou ao poder em
uma sociedade onde o sentimento de xenofobia e o antissemitismo1, estavam
fortemente presentes. Não havia diferenças étnicas e de classe para instaurar o
processo de exclusão e domínio de pessoas consideradas de raças inferiores.
Além destes fatores o totalitarismo ao utilizar dos movimentos de massa tem
a forte capacidade de transformar, a qualquer momento, o indivíduo em algo
supérfluo e descartável, representando “uma contestação frontal à ideia do valor da
pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica” (LAFER,
1997, p.57). Há um centro de poder monista, ideologia exclusiva, autônoma, com a
qual o grupo dominante ou o líder são a alma da nação. A participação popular é
encorajada, exigida e compensada, desta forma a autora afirma, “no cinturão de
ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos, aquele Um, que
invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da
natureza” (ARENDT, 2012, p.397).
1 Nesse sentido, trazendo para a atualidade, leia-se que qualquer tipo de descriminação pode gerar novas
18
Todas as leis são lei do movimento, ou seja, é a lei imposta através do terror
porque “pressionando os homens uns contra os outros, o terror total destrói o
espaço entre eles” (ARENDT, 2012, p.396).
Portanto o regime totalitário possui as seguintes características:
I. No totalitário não há pluralismo econômico, social ou político significativos;
II. Há a imposição de uma ideologia que articula uma utopia alcançável;
III. A vida privada é fortemente criticada. A mobilização extensiva ocorre em
torno de um vasto rol de organizações compulsórias organizadas pelo regime.
I. A liderança totalitária governa sem limites definidos e com grande
imprevisibilidade para os membros e não-membros dessa liderança
(LINZ;STEPAN, 1999)
1.2 REGIMES AUTORITÁRIOS: UMA SINTESE DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
O regime autoritário, por sua vez, é um regime político onde há a falta de
democracia, mas ainda resta um mínimo pluralismo. O pluralismo ao qual nos
referimos é a existência de um complexo corpo societário formado pela diversidade
de partido e movimentos políticos, organizações sociais e formações autônomas de
poder (WOLKMER, 2001). Os regimes autoritários são sistemas políticos no qual um
líder ou, ocasionalmente, um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites
formalmente mal definidos, mas realidade, bem previsíveis (LINZ, 1979).
Portanto se associa com governos excessivamente centralizadores que
estabelecem um regime de exceção decorrente de golpes de Estado no qual a
mobilização política é fortemente repreendida e o pluralismo existente é limitado na
medida em que o seu exercício só ocorre através de aparelhamentos autorizados.
Há o esforço em se criar a apatia política e a obediência passiva da sociedade em
relação às questões públicas, e geralmente tais medidas são asseguradas através a
imposição da força militar.
A América Latina foi controlada por regimes militares entre os anos de 1960
e 1970. O fim da Segunda Guerra Mundial significou a divisão do mundo em dois
blocos dominantes: Estados Unidos e União Soviética. A diferença ideológica entre
estas duas superpotências resultou na criação de mecanismos dos dois lados para
19
combater a expansão de suas influências. O acirramento da Guerra Fria ocasionou
a criação da Doutrina da Segurança Nacional pelos Estados Unidos no qual orientou
as suas ações perante as “ameaças comunistas”. A divisão geopolítica que a Guerra
Fria ocasionou interferiu veemente na política de vários países, principalmente na
América Latina, que foi dominada por sucessivos golpes de Estado e instauração de
regimes autoritários. O mundo ficou dividido entre o capitalismo e o comunismo.
Neste contexto o Brasil visando o desenvolvimento econômico do país firmou
aliança com os Estados Unidos absorvendo a ideologia proposta de combate ao
comunismo. Isto gerou um grande movimento tanto das elites, quanto da própria
sociedade civil, para salvar o país da “subversão”. Neste período, o Brasil
permaneceu na órbita da diplomacia norte-americana, assim como o restante dos
países latino-americanos,
Os países da região que haviam participado com tropas na Segunda Guerra Mundial, como o Brasil, lutaram como aliados dos Estados Unidos e sob seu comando militar, iniciando aí uma cooperação operacional que avançaria nas décadas seguintes, gerando unidade de doutrinas, treinamento conjunto na formação de quadros e estreita identidade ideológica em política e diplomacia, como, por exemplo, a criação do bloco dos países não-alinhados, a partir de 1955, o cisma sino-soviético dos anos 1960 e a resistência de Charles De Gaulle a uma liderança absoluta dos Estados Unidos ao longo do período (BRASIL. COMISSÃO ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p.19).
O Paraguai (1954), Brasil (1964), Chile e Uruguai (1973) e na Argentina
(1976) tornaram-se regimes autoritários. A Doutrina de Segurança Nacional2 passou
a vigorar nesses países pautando-se no combate a figura do inimigo público interno
no qual os militares eram os únicos que estariam aptos devolver o terreno de
tranquilidade que os subversivos haviam inquietado. Segundo Condato (2005) o
regime autoritário no Brasil durou 25 anos (1964 – 1989) passando por seis
governos e pode ser divida em cinco fases.
A primeira fase foi a constituição do regime militar nos governos Castello
Branco, e Costa e Silva entre março de 1964 e dezembro de 1968. O ato
institucional n°1, de 9 de abril de 1964, lançou a ditadura militar que derrubou o
governo democrático de João Goulart. A organização política do país foi abalada
pelo “movimento revolucionário”, que se investindo de Poder Constituinte legitimou-
se por si mesma. Expurgos políticos, militares e administrativos começaram a
2 No Brasil foram decretadas três versões da Lei de Segurança Nacional: Decreto Lei 314/1967, Decreto Lei 510/1969 e Decreto Lei 898/1969.
20
ocorrer no país3. Em outubro de 1965, o governo promulgou o Ato Institucional n°2
prevendo outras medidas de exceção, dissolvendo todos os partidos políticos e
estabelecendo eleições indiretas para Presidente da República e Governadores. Em
1966 o Congresso Nacional foi convocado para votar e promulgar o projeto
constitucional que revogava a Constituição de 1946. Em 1967, a nova Constituição
foi promulgada dando amplos poderes ao Presidente da República, que a partir de
então passou a editar todas as normas em forma de atos institucionais (AI).
Em 1968, iniciaram os “anos de chumbo” através do AI-5. O Presidente da
República passou a ter poderes para suspender os direitos políticos de qualquer
cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e
municipais. As garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e
estabilidade foram suspensos. O habeas corpus também foi suspenso, retirando dos
perseguidos políticos seus meios de defesa4. Ademais, o AI-5 excluiu da apreciação
judicial todos os atos alcançados por ele e por seus atos complementares.
A segunda fase foi a consolidação do regime militar no Governo Medici entre
1969 e 1974. O aparato repressivo se institucionalizou e as violações sistemáticas
de direitos humanos tornaram-se prática comum do Estado. Incontáveis casos de
tortura, homicídios, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, incinerações
de corpos, prisões arbitrárias se intensificaram em toda a América Latina. A política
de Estado se voltou a eliminação dos seus opositores5. Os principais setores da
sociedade civil como sindicatos, organizações profissionais, igrejas e partidos
começaram a estar sob vigilância constante. A repressão política foi exercida
3 No dia 10 de abril, foi divulgada a primeira lista de cassados, que já indicava o largo espectro de personalidades e instituições visadas pelos militares. Continha 102 nomes, entre os quais 40 congressistas, militares, governadores, sindicalistas, diplomatas e os ministros mais progressistas de Jango. As cassações atingiram o PTB em cheio: 19 dos 40 deputados que perderam seus mandatos pertenciam à sigla trabalhista (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.98). 4 A partir de então, como não havia mais o instrumento de Habeas Corpus, os advogados passaram comunicar as prisões arbitrárias por meio de petições simples, no qual conseguiam oficializar o reconhecimento por parte dos militares de que o preso estava sobre a sua tutela. Desta forma conseguiam garantir que o preso não seria morto ou que ele desaparecesse. O que era muito comum. 5 “Com Médici, o regime ditatorial-militar brasileiro atingiu sua forma plena. Criara-se uma arquitetura legal que permitia o controle dos rudimentos de atividade política tolerada. Aperfeiçoara-se um sistema repressor complexo, que permeava as estruturas administrativas dos poderes públicos e exercia uma vigilância permanente sobre as principais instituições da sociedade civil: sindicatos, organizações profissionais, igrejas, partidos. Erigiu-se também uma burocracia de censura que intimidava ou proibia manifestações de opiniões e de expressões culturais identificadas como hostis ao sistema. Sobretudo, em suas práticas repressivas, fazia uso de maneira sistemática e sem limites dos meios mais violentos, como a tortura e o assassinato”. (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014 p. 102).
21
através de uma combinação de instituições distintas como as Forças Armadas,
Polícia Civil, Polícia Militar, inclusive, civis que financiavam, ou apoiavam as ações
repressivas.
A repressão não ficava restrita a apenas o âmbito interno. Segundo relatório
da Comissão Nacional da Verdade (CNV) o Estado brasileiro participou de graves
violações de direitos humanos no exterior.
A ditadura não se preocupava apenas com seus opositores no Brasil: o inimigo interno não podia ser descuidado, mesmo quando fora do território nacional. Potencialmente, incluíam-se nessa categoria não só os que foram afastados da política pelo Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964, ou identificados pelos órgãos da repressão ao longo dos anos seguintes, mas também todos aqueles que deixavam o país por discordarem da ditadura. Suspeitos, precisavam ser vigiados (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.176).
Perante os organismos internacionais o Ministério das Relações Exteriores
(MRE) articulou a cobertura e a dissimulação negando sistematicamente a
ocorrência desses crimes.
A terceira fase foi a transformação do regime militar no governo Geisel entre
1974 e 1979. O golpe de 1964 completava dez anos no momento em que Geisel
assumiu a Presidência da República promovendo o debate da oposição quanto a
prolongada intervenção militar e a necessidade do retorno da democracia no país.
Neste contexto foi iniciada a liberalização controlada que pretendia realizar o retorno
à democracia de forma “lenta, gradual e segura”. Em 1978 a aprovação da emenda
constitucional n°11 aboliu o AI-5 “extinguindo a autoridade do presidente para
colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares ou privar os cidadãos dos
seus direitos políticos” (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014,
p.106). O habeas corpus foi restabelecido e as penas da Lei de Segurança Nacional
tornaram-se mais brandas. A distensão pelo governo Geisel permitiu a suspensão
da censura prévia, os resultados eleitorais foram permitidos, os protestos dos
empresários contra o modelo econômico foram admitidos.
A quarta fase foi a desagregação do regime militar no governo Figueiredo
entre 1979 e 1985. O governo manteve o projeto de distensão iniciado no governo
Geisel. Em 1979 a Lei de Anistia – L.6.683/1979 – foi aprovada concedendo anistia
a todos aqueles que no período entre 1961 e 1979 havia cometido crimes políticos.
Neste momento havia forte movimentação para a aprovação da emenda “Dante de
22
Oliveira” que estabelecia as eleições diretas para presidente em 1985, com forte
atuação do movimento “Diretas já”. Apesar da ampla concordância da população
esta emenda não foi aprovada pela Câmara dos Deputados, sendo promovida em
1985 a eleição indireta para presidente entre os candidatos Tancredo Neves e Paulo
Maluf. E a quinta e ultima fase foi à transição do regime militar para um regime
liberal-democrático. Após a queda do regime e o inicio da abertura política,
processos de transição para o regime democrático começaram a ocorrer. Porém,
muitas destas transições partiram dos próprios regimes autoritários ocasionando
grande insatisfação dos movimentos de direitos humanos e das vítimas que se
sentiram injustiçadas com a impunidade dos agentes de Estado, o qual será objeto
de discussão do próximo capítulo sobre Justiça de Transição.
Em suma, as principais características do regime autoritário foram:
II. Sistema político com pluralismo político limitado e não responsável.
III. Costuma ter algum lugar para uma semi-oposição;
IV. É um sistema político sem ideologia complexa ou idealizadora;
V. Não há mobilização política, salvo em alguns momentos do seu
desenvolvimento;
VI. É um sistema político onde os lideres ou um pequeno grupo exerce o poder
dentro de limites formalmente mal definidos, mas com normas bastante
previsíveis (LINZ;STEPAN, 1999)
1.3 IMPLICAÇÕES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSIÇÃO
As características do regime não-democrático possui um ampla implicação no
processo de transição e consolidação democrática. Dentre estas cabe ressaltar duas
implicações quanto às vias para a transição democrática (LINZ;STEPAN, 1999).
A primeira implicação ocorre quanto ao estabelecimento de reformas e
rupturas pactuadas. Para que ocorram os pactos é necessário que haja a abertura
política do regime não-democrático para dialogar com a oposição democrática. No
caso do autoritarismo a reforma pactuada é possível entre os moderados do regime
e a oposição democrática moderada, enquanto no regime totalitário não há espaço
23
para uma oposição democrática organizada, portanto, a realização de pactos não é
possível
A segunda implicação decorre da influência da hierarquia militar no poder. No
autoritarismo, se o regime for governado por uma hierarquia militar e os militares
enquanto instituição se sinta ameaçados, interna ou externamente, pode haver
pressão para que estes deixem o poder, substituindo-se por um governo civil
estabelecido por meio de eleições. Caso o regime não-democrático for liderado por
militares não-hierárquicos a imposição do controle civil democrático torna-se mais
fácil, podendo acarretar em julgamentos. No regime totalitário não é possível que a
hierarquia abra mão do poder porque a primazia do partido e o papel ilimitado dos
líderes torna impossível o governo de uma hierarquia militar.
Em relação às tarefas mínimas para completar a transição e consolidação
democrática Linz e Stepan (1999) estabelecem cinco condições necessárias: 1. A
existência de um Estado de direito e liberdade da sociedade civil; 2. Autonomia da
sociedade política; 3. A existência de normas constitucionais que aloquem o poder
de forma democrática; 4. Uma burocracia estatal aceitável e utilizável pelo governo
democrático e ; 5. A existência de uma autonomia suficiente para a economia e para
os atores econômicos, para assegurar o pluralismo na sociedade civil, na sociedade
política e na sociedade econômica.
Como no totalitarismo inexiste o estado de direito e grande parte do aparato
legal serve como instrumento para o movimento do partido e as liberdades civis são
mínimas, deve haver o afastamento de todo o sistema totalitário para que haja o
recomeço de um novo regime. Neste sentido as liberdades civis devem ser
legalizadas, desenvolvidas e protegidas, a posição de domínio do partido em todas
as áreas da sociedade e sua situação e recursos privilegiados devem ser
desmontados, deve haver a elaboração de uma nova constituição haja vista que a
constituição do regime totalitário não foi projetada para uma sociedade democrática,
há a necessidade da criação de uma burocracia não-politizada e o desenvolvimento
de uma reforma fundamental da economia.
No autoritarismo há uma tradição do estado de direito e de sociedade civil,
porém estas se encontram apenas na ideia de estado de direito formal. Dessa
forma, as liberdades civis devem ser ampliadas e protegidas de fato, a livre
24
competição entre partidos deve ser criada, a constituição deve ser restituída,
emendada ou revogada, a burocracia existente pode ser reformada havendo alguns
expurgos entre os burocratas, e a economia pode, ou não, ser reformada. Em outras
palavras, um regime autoritário em seu estado tardio necessita ter “uma sociedade
civil forte, uma cultura legalista que propicie o constitucionalismo e o estado de
direito, uma burocracia estatal eficiente, que opere dentro das normas profissionais,
e uma sociedade econômica razoavelmente institucionalizada” (LINZ;STEPAN,
1999, p. 77). Para O’Donnell (1988, p.83) “a dinâmica da transição de um regime
autoritário não se resume a meras disposições, cálculos ou pactos das lideranças”.
Podemos verificar, portanto, que a depender do regime não-democrático
institucionalizado o processo de transição e consolidação democrática resulta em
implicações e exige tarefas mínimas distintas. Para a justiça de transição – que será
objeto de estudo no segundo capítulo – tais contextos políticos influenciam na
escolha das medidas que devem ser tomadas pelo novo governo a respeito dos
acontecimentos relacionados ao regime anterior.
2 REGIME DEMOCRÁTICO
Contemporaneamente apesar de haver o consenso sobre a validade e
legitimidade da democracia em detrimento de outros regimes não democráticos, o
significado do que esta representa ainda encontra-se em debate. A crise da
representação política nos países de democracia consolidada e o resultado da
falência dos regimes autoritários no Leste Europeu, Ásia e América Latina geraram
incertezas quanto às possibilidades de consolidações democráticas (GAMA, 2009)
incentivando a produção de inúmeros estudos sobre a sua representação. Desta
maneira, para que possamos abordar sobre as transições democráticas é
necessário delimitar a definição de democracia que iremos utilizar neste trabalho.
25
2.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER E DAHL
A concepção minimalista de Joseph Schumpeter (1961) para determinar o
conceito de democracia real tornou-se o modelo hegemônico que influenciou e deu
ensejo a outros estudos no mesmo campo. Este autor desenvolve sua teoria a partir
de uma forte crítica a teoria clássica da democracia. A doutrina liberal clássica do
século XVIII define a democracia como o “arranjo institucional para se chegar a certas decisões políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER, 1961, p.300), ou seja, pressupõe a
existência de indivíduos plenamente conscientes, com forte interesse pela política, e
que desejam participar ativamente do controle dos negócios públicos orientados pela
busca do bem comum.
Para o autor, o conceito clássico de democracia encontra várias barreiras práticas para efetivá-la. Em primeiro lugar, não há “um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou possa aceitar por força de argumentação racional”, isso porque o conceito de bem comum pode resultar em inúmeras interpretações dependendo do contexto em que o indivíduo está inserido, fato que os “domínios da lógica” são incapazes de prever. Em segundo lugar, mesmo que o bem comum pudesse ser definido este não conseguiria trazer “soluções igualmente definidas para os casos individuais” restando sempre um espaço para novas divergências. Em terceiro lugar, tentar determinar a “vontade do povo” é algo difícil de ser alcançado “pois esse conceito pressupõe um bem inequivocamente determinado e compreendido por todos”, ainda esta vontade pode ser artificialmente fabricada durante os processos políticos (SCHUMPETER, 1961, p. 301-303).
Deste modo Schumpeter (1961) elabora a teoria minimalista da democracia trazendo uma percepção da política instrumental e elitista “marcadamente influenciada pelas teorias sociológicas de Max Weber sobre a racionalidade e o desenvolvimento da sociedade capitalista ocidental” (GAMA, 2009, p. 2), pois, em uma sociedade complexa como a
26
que vivemos não há espaço para a participação democrática da forma como exige a teoria clássica. Assim como Schumpeter (1961), Norberto Bobbio
(2000) também entende que ninguém tem condições de definir precisamente o
interesse comum ou coletivo, a não ser confundindo interesses grupais ou
particulares com o interesse de todos.
Tratando sobre a “natureza humana na política” o autor explica que na
segunda metade do século XIX gradualmente a ideia de unidade homogênea da
personalidade humana começou a desaparecer. O estudo da “psicologia das
massas” realizada pelo sociólogo francês Gustave Le Bon6, em 1886, desconstruiu
as teorias da natureza do homem que sustentavam o modelo clássico de
democracia (SCHUMPETER, 1961, p. 307) passando a afirmar que quando um
indivíduo é inserido nas multidões adquire um sentimento de poder invencível de tal
maneira que a sua atividade consciente acaba sendo substituída pela ação
inconsciente das multidões, isto é, as pessoas quando inseridas em massas não
conseguem elaborar um pensamento racional, deixando fluir os seus instintos
primitivos gerando um lapso dos freios morais.
Todos os parlamentos, todos os comitês, todos os conselhos de guerra formados de generais sexagenários revelam, por menor que seja o grau, alguns dos aspectos que surgem tão claramente no caso da ralé7, e, em particular, menor senso de responsabilidade, grau mais baixo de energia mental e maior sensibilidade a influências não-lógicas. Ademais, esses fenômenos não estão limitados à multidão no sentido de aglomeração física de numerosas pessoas. Leitores de jornal, audiências de rádio, membros de partidos políticos, mesmo quando não fisicamente reunidos, podem ser facilmente transformados psicologicamente em multidão e levados a um estado de frenesi, no qual qualquer tentativa de se apresentar um argumento racional desperta apenas instintos animais (SCHUMPETER, 1961, p.308).
O comportamento das pessoas inseridas nessas grandes massas torna-se
imprevisível. Partindo dessa premissa, de que existem vícios da natureza humana,
Schumpeter (1961) se afasta da concepção clássica para filiar-se a Teoria das elites
6 Ver: Le Bon, Gustave. Psicologia das Multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 7 “O aparecimento dessa ralé foi observado desde o início do Capitalismo e seu crescimento foi registrado por diversos estudiosos. Mas o que os estudiosos não viam, por estarem preocupados com o fenômeno em si, era que a ralé não podia ser identificada com o aumento da classe trabalhadora industrial nem com o povo em geral, pois a mesma era um refugo de todas as classes. Contudo, a ralé não é apenas o refugo, mas também o subproduto da sociedade burguesa, gerado pela sua normalidade e inseparável de si mesma. Em alguns círculos, esta ralé chega a ser elogiada, seu modo de vida transformado em matéria-prima para a literatura, o cinema e o teatro. O cinismo e a descrença dessa ralé são características importantes na construção de algumas experiências totalitárias. [...] o Capitalismo, além de produzir capital excedente, produz homens excedentes. Daí surge a noção de associação entre o capital e a ralé. Associação que é a base material do Imperialismo”. (BARBOSA, 2009, p. 163-164).
27
– pensamento fundado por Gaetano Mosca, Vifredo Pareto e Robert Michels –
definindo a democracia de forma estritamente procedimental. O processo
democrático é, portanto, “um método político, isto é, um certo tipo de arranjo
institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa)”
(SCHUMPETER, 1961, p.291), ou seja, um conjunto de regras que estabelecem
como devem ser escolhidos aqueles que irão realizar as decisões políticas. Na
mesma linha Bobbio (1997, p.65) afirma que “o que distingue um sistema
democrático dos sistemas não democráticos é um conjunto de regras do jogo”.
A concepção schumpeteriana desarticula o protagonismo no povo para
demonstrar que nas sociedades modernas o papel central da participação e da
tomada de decisões por parte destes é empiricamente irrealista, uma vez que é
evidente que “o povo, como povo, não pode jamais governar ou dirigir realmente”
(SCHUMPETER, 1961, p.296).
Logo, a democracia é o “governo dos políticos” (SCHUMPETER, 1961, p.
339). Este repúdio a participação advém da impossibilidade de ampla participação
política na crescente complexidade das sociedades modernas, e ainda, da reflexão
de que as pessoas comuns além de não possuírem interesses por assuntos
políticos, ao serem inseridos na grande política, tornam-se irracionais,
irresponsáveis e de fácil manipulação (QUADROS, 2015), podendo ser facilmente
influenciados pela propaganda política, por exemplo. Cabe às elites, portadoras de
racionalidade política, a tomada de decisões e ao povo incumbe uma participação
passiva.
Deste modo o autor toma uma preocupação procedimental com as regras de
tomada de decisões elevando-a a um método para a constituição de governos. Toda
ação política deve se pautar em estratégias de maximização do voto, definindo a
competência política daqueles que irão governar da maior, ou menor, capacidade de
atender às expectativas dos eleitores e capturar adeptos (HOLLANDA, 2011). Em
outras palavras, a democracia se torna uma grande disputa entre os concorrentes ao
cargo político para arrecadar o maior número de votos e assim adquirir o poder por
meio do processo eleitoral.
Deste modo se estabelece alguns critérios importantes para que haja o
efetivo funcionamento da democracia: 1) A liderança política deve ser dotada de alta
28
qualidade e possuir a vocação para a atividade política; 2) Devem observar as
limitações do domínio real nas decisões políticas; 3) Deve possuir um corpo técnico-
burocrático eficiente; 4) Deve haver o autocontrole democrático e as normas devem
ser respeitadas;
A contribuição deste autor para a teoria da democracia foi de suma
importância, pois afastou a incompatibilidade entre elites e democracia defendendo
que a existência de indivíduos vocacionados para a complexa vida política é
essencial no processo democrático. Sua análise propôs que a democracia está
subordinada a situações concretas ligadas aos resultados, e não ao ideal
democrático (QUADROS, 2015). A vontade da maioria (e não da vontade do povo) é
determinante para a escolha dos representantes considerados mais capacitados
para elaborar um plano de governo que atenda a expectativas, porém, a sua
participação direta na vida política não é necessária e nem viável. Afirma o autor que
as pessoas possuem uma grande capacidade para resolver as questões do
cotidiano, mas, quando encarregadas de temas públicos estas apresentam pouco
senso de realidade analisando e argumentando o problema público de forma infantil.
Esse reduzido senso de realidade explica não apenas a existência de um reduzido senso de responsabilidade, mas também a ausência de uma vontade eficaz. O indivíduo fala, deseja, sonha, resmunga. E, principalmente, sente simpatias e antipatias. Mas, ordinariamente, esses sentimentos não chegam a ser aquilo que chamamos de vontade, o correspondente psíquico da ação responsável e intencional. De fato, o cidadão privado que medita sobre a situação nacional não encontra campo de ação para sua vontade nem tarefa em que ela possa se desenvolver. Ele é membro de um comitê incapaz de funcionar — o comitê formado por toda a nação — e é por isso mesmo que emprega menos esforço disciplinado para dominar um problema político do que gasta numa partida de bridge.(SCHUMPETER, 1961, p. 312).
Assim, entende que o êxito democrático decorre da qualidade existente
entre aqueles que se dispõem à participação ativa, ou seja, a existência de
profissionais altamente qualificados para a tomada de decisões.
A partir da concepção de democracia como método político, Robert Dahl
(2005) encontrou o quadro referencial para a elaboração da sua teoria. Neste
sentido Dahl (2005, p.11) trata “do problema da democratização, definindo-a como
um processo de progressiva ampliação de competição e da participação politica”,
trazendo critérios para a classificação dos regimes políticos. Denominando a forma e
o modo como funcionam os regimes democráticos de “poliarquia”, tendo em vista
29
que para este “nenhum grande sistema no mundo real é plenamente democratizado”
(DAHL, 2005, p. 31) afirmou que a democracia seria um ideal enquanto a poliarquia
corresponderia ao regime democrático que realmente existe.
Um dos elementos presentes em democracias de grande escala como a que
temos atualmente seria a representatividade. Deste modo além da capacidade da
elite em competir pelo voto popular, o governo deve ser responsivo as preferências
dos seus cidadãos, e estes últimos, devem ter oportunidades plenas de formular,
expressar e de ter igualmente suas preferências consideradas pelo governo.
Para que isso seja possível devem existir diversos grupos políticos e sociais
que algumas vezes cooperam, e em outras se combatem, mas que de certo modo
se equilibram e representam a pressão da base. Em outras palavras, deve existir o
pluralismo societal, onde nenhum grupo social possui privilégio sobre os recursos de
poder. Deste modo, o autor não se atém a apenas entender como o sistema
democrático funciona, mas sim, busca promover a democracia através da análise
das condições que aumentam ou diminuem as chances de democratização, e dos
fatores que aumentam ou diminuem as chances de contestação pública num regime
fortemente inclusivo.
A democratização é formada por pelo menos duas dimensões, a
contestação pública e direito de participação. Assim, quanto maior as oportunidades
de expressar, organizar e representar preferências políticas, maior será a variedade
de interesses passíveis de representação, pois a multiplicidade de centros de poder
complementam a presença de minorias concorrentes ligados por um acordo mínimo
sobre as regras do jogo. Uma democracia representativa existe quando constatamos
oito garantias institucionais que tornam possível medir o grau de democratização
dos regimes políticos: 1) Liberdade de formar e aderir a organizações; 2) Liberdade
de expressão; 3) Direito ao voto; 4) Direito de líderes políticos disputarem apoio; 5)
Fontes alternativas de informação; 6) Elegibilidade para cargos políticos; 7) Eleições
livres e idôneas; 8) Relação de dependência entre as ações de governo e as
eleições ou outras formas de manifestações de preferência da população (DAHL,
2005, p.27).
Podemos deste modo, perceber que apesar de Schumpeter e Dahl
compreenderem a democracia como método político, o primeiro reduz a concepção
30
de democracia restringindo-a a disputa entre grupos políticos no poder, enquanto o
segundo busca promover a democracia, a partir do conceito de poliarquia, como
mecanismo de avaliação empírica de modelos de governo no qual convivem vários
centros de poder. Em outras palavras, se para Schumpeter a democracia é aquela
em que as elites competem pela adesão e condução das massas, onde a
participação do governado fica restrita à escolha de seus governantes. Para Dahl
“as poliarquias podem ser pensadas então como regimes relativamente, mas incompletamente, democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública” (DAHL, 2005, p.31)
A definição de poliarquia no qual a democratização consiste em um
processo de progressiva ampliação de contestação, participação política, existência
de uma livre competição pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis
fundamentais, apesar de ser uma visão minimalista sobre o que seria um regime
democrático se tornou referência para as discussões sobre transição de regimes
políticos.
2.2 INFLUÊNCIA DAS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NA TRANSIÇÃO
Analisando as democracias da América do Sul Stepan (1988) complementa
a abordagem de Schumpeter e Dahl inserindo a questão das relações civis-militares.
Deste modo desenvolve um esquema analítico que possibilita verificar a influência
dos militares em qualquer regime e a segurança do processo democrático a partir
das prerrogativas militares e do nível de contestação militar às ordens civis.
As prerrogativas militares referem-se aos espaços sobre os quais, existindo
ou não contestação, os militares como instituição pressupõem ter o direito de
exercer um controle efetivo considerando-se no direito de controlar ou mesmo de
estruturar as relações entre o Estado e a sociedade (STEPAN, 1988). Através da
proposição das prerrogativas o autor buscou formular um modelo analítico para
verificar essas relações classificando-as em prerrogativas militares baixa, moderada
e alta intensidade. Nesse sentido quanto maior for a tutela militar sobre o poder
político, maiores são as prerrogativas militares e menor será o controle democrático.
31
Altas prerrogativas implicam na inexistência de facto, assim como de jure, de
controle civil democrático sobre os militares (ZAVERUCHA, 1998). Deste modo as
sociedades com baixas prerrogativas e um baixo nível de contestação militar podem
ser consideradas democracias,
Portanto, o que se espera de um país democrático é a erradicação de tais prerrogativas, caso se queira estabelecer um controle civil democrático sobre os militares, e, consequentemente, um regime democrático. Até porque altas prerrogativas militares se correlacionam com alto grau de autonomia castrense, no sentido dos militares serem capazes de impor, frequentemente, seus interesses aos civis via canais legais ou quando ocorram resistências (ZAVERUCHA, 1998, p.2).
Jelin e Hershberg (2006) comparando às experiências democráticas da
Argentina e do Brasil afirmam que a Argentina possuía prerrogativas baixas e alta
contestação no Governo Alfosín, passando para prerrogativas e contestações baixas
na administração Menem. No Brasil durante o governo Sarney as prerrogativas eram
altas e havia uma media contestação militar. Já nas administrações de Collor e
Itamar Franco as prerrogativas passaram a ser médias e contestação militar atingiu
um baixo nível. Porém verifica-se que mesmo com o processo de redemocratização
as prerrogativas militares continuaram sendo mantidas8.
Deste modo a baixa contestação militar não significa que estes não possuam
participação nos processos de decisão política. Conforme afirma Zaverucha (1998,
p.33) “a democracia brasileira é tão conservadora com os interesses castrenses que
os militares não se sentem impulsionados a contestarem os governos civis”. Esta
questão explica a abertura política “lenta, gradual e segura” imposta pelo regime
militar brasileiro em oposição à transição “ampla, geral e irrestrita” movida pela
sociedade. Nesse sentido Stepan (1988) afirma que o que ocorreu foi mais para uma
8 Zaverucha identifica 17 prerrogativas:1- Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem; 2. Militares controlam principais agencias de inteligência; 3. Militares na ativa ou da reserva participam do gabinete governamental; 4. Inexistência do Ministério da Defesa (Em 1999 foi criado no Brasil o Ministério da Defesa, para muitos um avanço nas relações civil-militares). ; 5. Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa nacional; 6. Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais; 7. Polícia Militar sob parcial controle das Forças Armadas; 8. Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas; 9. Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados por tribunais comuns; 10. Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares mesmo que cometam crimes comuns ou políticos; 11. Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandado judicial e sem flagrante delito; 12. Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida pelos militares; 13. Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução durante intervenção interna; 14. Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do presidente e vice-presidente da República; 15. Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial, navegação, aviação etc.); 16. Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente ao Tesouro; A política salarial do militar é similar a existente durante o regime autoritário. (ZAVERUCHA, 1998, p. 2-3).
32
liberalização do regime ditatorial do que a democratização do sistema político. A
distensão promovida durante a abertura política permitiu a continuidade excepcional
do autoritarismo gerando altos custos para a transição política, no qual, até hoje não
conseguimos efetivar.
3 TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA
A queda dos regimes militares durante os anos 1980 estimulou uma série de
estudos sobre as transições dos regimes autoritários para os regimes democráticos.
Debruçando-se sobre o problema da transição, vários autores buscaram estruturar
modelos que explicassem como e porque essas mudanças de regime ocorreram.
Essas explicações, que se tornaram clássicas na Ciência Política, priorizaram a
atuação das elites, bem como os “arranjos políticos-institucionais” (TRIBESS, 2014,
p. 172). Isso porque os debates sobre a natureza e as possibilidades da transição
mantinham vínculos estreitos com os debates políticos sobre as oportunidades e
estratégias.
Neste sentido era salientada a necessidade de separar as questões de
procedimento das questões que fossem substantivas e relevantes para o processo.
Deste modo a consolidação dos novos regimes democráticos apoiou-se
basicamente nas questões políticas fundadas em procedimentos e em instituições
democráticas deixando de “recorrer à dimensão substantiva, historicamente contida
nos programas populistas ou desenvolvimentistas” (KECK, 2010, p. 22).
A transição é conceituada como o movimento de uma coisa para outra,
representando o intervalo entre dois regimes, e seu encerramento acontece quando
a anormalidade não constitui traço principal da vida política
(O’DONNEL;SCHMITTER, 1988). Portanto a transição política é,
[...] um momento histórico em aberto, marcado por um processo complexo e não linear, em que diversas forças sociais concorrem por imprimir um destino comum à coletividade. Nesse processo, inexiste uma escala de estágios ou pontos de passagem definidos de antemão (QUINALHA, 2013, p. 30).
33
As normas que surgem neste processo passam a definir quais são os canais
que irão ser utilizados para promover o acesso a cargos de governo, os meios
legítimos que poderão ser utilizados para a solução de conflitos e os procedimentos
para a tomada de decisões, ou seja, serão definidos quais são as “regras do jogo”
que todos deverão observar. Deste modo a transição democrática é permeada por
um amplo conjunto de estratégias e escolhas realizadas pelas elites políticas e
militares a fim de promover os processos de mudança política.
3.1 LIBERALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO
As transições não ocorrem da mesma maneira em diferentes países e nem
mesmo seguem um curso determinado ou sugerem uma resposta definida. Estas
podem se arrastar no tempo reunindo um conjunto de fatores complexos e de
questões diversas a depender do contexto em que são propostas. Apesar disso é
possível identificar alguns elementos constitutivos da transição política: a
liberalização e a democratização.
A liberalização do regime não-democrático é o ponto de partida do processo
de transição desencadeando a “redefinição e extensão de direitos, em que apenas
algumas liberdades parciais e restritas, típicas do liberalismo clássico, seriam
salvaguardadas” (QUINALHA, 2013, p.124) ou seja, o regime autoritário passa a ser
menos repressivo aceitando um grau tolerável de liberdades de expressão,
organização e participação políticas. Para Linz e Stepan a liberalização,
pode implicar uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, tais como menos censura da mídia, um espaço um pouco maior para a organização de atividades autônomas da classe trabalhadora; a introdução de algumas salvaguardas jurídicas para o indivíduo, como o habeas corpus; a libertação da maior parte dos presos políticos; o retorno dos exilados; talvez algumas medidas visando a melhoria da distribuição de renda e, o que é mais importante, a tolerância à oposição (LINZ;STEPAN, 1999, p.21-22)
Trata-se, portanto, da concessão da “liberdade negativa” que promove a não
interferência do Estado sobre as questões individuais. A liberalização ocorre sem
diminuir necessariamente a força política do regime repressivo, mas gera mudanças
institucionais que possibilitam em um primeiro momento uma abertura superficial e
pontual. As lideranças políticas passam a negociar os processos de transição
podendo resultar na migração para o regime democrático, ou por vezes, acabar
34
elevando o nível de repressão no caso do recuo das forças repressoras. A
liberalização é a “medida de intensidade da transição” (QUINALHA, 2013, p. 126),
podendo ocorrer em maior, ou menor, grau, visando aliviar a tensão política e a falta
de legitimidade do regime não-democrático.
Após a liberalização, segue o próximo processo que é o da democratização.
Este é “um momento mais avançado e expressivo do ponto de vista da garantia de
direitos e de liberdades públicas comparativamente à liberalização” (STEPAN, 1988,
p.13). Neste sentido há a substituição das regras e procedimentos encontrados nas
instituições públicas oriundas do regime autoritário, sendo observadas as regras e
procedimentos voltados a cidadania que devolvem o exercício destas garantias aos
cidadãos.
Por fim, somam-se também “temas e instituições que previamente não
estavam sujeitas a participação dos cidadãos” (O’DONNEL e SCHMITTER: 1988, p.
22). Portanto na democratização não basta que haja apenas uma atuação limitada
da oposição política como ocorre na fase da liberalização, é necessário haver
espaço para a contestação aberta em relação ao controle do governo através de
eleições livres. Deste modo a democratização esta relacionada a ações de
afirmação e transformação removendo os impedimentos à participação grupos antes
excluídos visando corrigir as desigualdades.
Um regime político pode ser liberalizado sem que haja de fato a
democratização. Isso porque a democratização não ocorre automaticamente com a
queda de um regime autoritário. Deste modo a interferência do militares na política
do governo pode gerar percalços para a consolidação democrática produzindo uma
série de consolidações democráticas incompletas, assim como ocorreu no Brasil.
3.1.1 Ondas democráticas
Conforme Huntington (1994) as ondas de democratização e ondas reversas
são manifestações de um fenômeno geral que ocorrem em determinados momentos
históricos de maneira mais ou menos simultânea em diferentes países e/ou sistemas
políticos. Para o autor três ondas de democratização ocorreram no mundo moderno.
35
A primeira onda de ocorreu no período entre 1828 a 1926. Neste momento, o
sufrágio foi ampliado de maneira que nos Estados Unidos metade da população
adulta, do sexo masculino e de cor branca passou a contar com o direito ao voto. Na
Inglaterra o sufrágio já atingia a trinta por cento entre os maiores de vinte e um anos
na segunda metade dos anos 1980. Nos anos seguintes outros países ampliaram o
sufrágio, introduziram o voto secreto e aumentaram a responsabilidade dos
governantes em relação à sociedade. Podemos verificar que a democratização da
primeira onda transformou as “oligarquias competitivas em quase-poliarquias”
(DAHL, 2005, p. 33). A primeira onda reversa ocorreu entre 1922 e 1942 nos países
que haviam implantado a democracia logo após o fim da Primeira Guerra Mundial,
eclodindo uma série de países autoritários e totalitários. A ascensão de Mussolini na
Itália, de Hitler na Alemanha, de Stalin na União Soviética, os golpes militares na
Lituânia e Polônia, o Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil.
A segunda onda coincidiu com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra
Mundial (1945) e a consequente ascensão dos Estados Unidos e da União Soviética
como superpotências no qual deram inicio à Guerra Fria. Neste contexto promoveu o
retorno das instituições democráticas primeiramente na Alemanha Ocidental, Japão,
Àustria, Itália e Coreia, e ao final dos anos 1940, na Turquia, Grécia, Costa Rica,
Brasil9, Argentina, Perú, Colombia e Venezuela. O auge democrático ocorreu em
1962 com trinta e seis países governados democraticamente. Sua onda reversa
aconteceu entre 1958 e 1975 marcada pela ascensão dos regimes autoritários na
América Latina. Pelo contexto da Guerra Fria o combate ao comunismo ensejou a
instauração de ditaduras militares. O autoritarismo começou no Peru em 1962 e
chegou ao Brasil em 1964, seguido de outros países latino- americanos como
Argentina, Chile e Uruguai, ao todo foram trinta e oito países que possuíam
governos originados de Golpes de Estado.
A terceira onda de democratização instalou-se a partir da “revolução dos
cravos” (1974) ocorrida em Portugal ocasionando a queda do regime salazarista.
Logo se propagou para a América latina, Ásia e Europa gerando a queda dos
regimes autoritários que eclodiram na segunda reversa de democratização. A
9 O breve período de 1946 a 1964, que trouxe o alento das causas humanitárias reacendidas no segundo pós-guerra, esteve mais para uma “democradura” do que para uma democracia: o Partido Comunista foi novamente tornado ilegal, pessoas a ele filiadas ou que simpatizam com sua visão polí- tica eram presas e perseguidas e a tensão institucional a favor de uma ditadura ia se tornando cada vez maior. As instituições democráticas eram demasiado frágeis. (SILVA, 2010, p. 193)
36
terceira onda – que perdura nos dias atuais – é o período onde mais temos a
prevalência de regimes democráticos, ou seja, um total de sessenta e cinco
democracias no mundo10. Estas novas democracias surgidas na terceira onda têm
enfrentado grandes problemas de transição no sentido de buscar resolver questões
complexas sobre o que fazer sobre os grupos políticos que apoiaram o regime
autoritário, como elaborar a reforma das instituições, a construção da memória e da
verdade, e a efetivação da justiça.
3.1.2 Transição por transformação, substituição e “transplacement”
A transição da democracia brasileira ocorreu na “terceira onda” de
democratização identificada por Huntington. O´Donnell e Schmitt (1988, p.108)
comparam o processo de transição democrático a um “jogo de xadrez de níveis
múltiplos” jogado por vários atores. Neste jogo são inventadas regras que podem ser
impostas tanto unilateralmente pelo ator dominante “devendo os demais jogadores
obedecer – por medo ou respeito – ou, ser elaboradas multilateralmente por acordos
implícitos ou pactos explícitos” (O’DONNELL; SCHMITT, 1988, p. 111).
Portanto o “jogo” transicional não decorre de um processo linear, e nem
garante por si só a finalidade da instauração democrática. Pode criar regras
meramente políticas que permitem mudança de regime, mas também garantem que
o regime autoritário saia do jogo sem sofrer arranhões. Para isso usam de
mecanismos jurídicos legítimos – porque ainda são de fato os detentores do poder –
para promover essa mudança.
Dentre todos os países da América Latina o Brasil foi o que mais teve
dificuldade na busca da consolidação democrática. Como vimos anteriormente, as
relações civis-militares influenciaram na escolha das regras do jogo brasileiro
10 Nos dados coletados por Huntington até o período de 1992: Haiti, Sudão, Suriname, Bulgária, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Mongólia, Namibia, Nicarágua, Panamá, Papua Nova Guiné, Romênia, Senegal, Nigéria, Bolívia, Brasil, Equador, Índia, Coréia do Sul, Paquistão, Peru, Filipinas, Turquia, Botswana, Costa Rica, Gambia, Israel, Jamaica, Malásia, Malta, Sri Lanka, Trinidad e Tobago, Venezuela, Alemanha Oriental, Polônia, Portugal, Espanha, Argentina, Checoslováquia, Grécia, Hungria, Uruguai, Chile, Austria, Bélgica, Colômbia, Dinamarca, França, Alemanha Ocidental, Itália, Japão, Holanda, Noruega, Australia, Canadá, Finlândia, Islândia, Nova Zelândia, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos da América. (HUNTINGTON, 1994).
37
minando grande parte das possibilidades de transição. As condições restritivas
impostas pelos militares para deixar o poder afetaram tanto a origem do novo
governo quanto o seu desempenho (LINZ;STEPAN, 1999).
Huntington (1994) entende que a transição democrática pode ocorrer de três
maneiras a depender do equilíbrio relativo de poder entre a elite governante e a
oposição. E durante a consolidação democrática os países podem passar por
problemas na transição, problemas contextuais e problemas sistêmicos. Os
problemas na transição correspondem às regras que irão compor o processo que
institucionaliza o novo regime, como, o procedimento a ser seguido para as eleições
e as modificações que irão ser realizadas nas instituições autoritárias. Os problemas
contextuais estão relacionados a questões de cunho social no momento da
transição, como o anseio da oposição na instauração do processo democrático, as
pressões populares e a resistência daqueles que ainda defendem o regime
autoritário. Os problemas sistêmicos relacionam-se com a questão das lideranças na
transição. Por consolidação democrática seguimos a definição de Linz e Stepan:
Uma transição democrática está completa quando um grau suficiente de
acordo foi alcançado quanto aos procedimentos políticos visando obter um
governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto
do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de
gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, criados pela nova democracia, não têm que, dejure, dividir o
poder com outros organismos (LINZ;STEPAN, 1999, p.21).
Para o autor as democracias consolidadas precisam necessariamente ter
estabelecido cinco campos de interação: 1. Condições para o desenvolvimento de
uma sociedade civil livre a ativa; 2. Uma sociedade política relativamente autônoma
e valorizada; 3. Um estado de direito que assegure as liberdades políticas; 4.
Burocracia estatal que possa ser usada pelo novo regime; 5. Sociedade econômica
institucionalizada.
Agora que sabemos a definição de transição e consolidação democrática
podemos seguir a análise das formas de transição e se houve uma consolidação
democrática.
A primeira forma de transição é a transformação (transformation) do regime
através de controle da liberalização pelo regime autoritário, ou seja, o processo de
38
abertura democrática é iniciado pelo próprio regime não democrático e estritamente
controlado por este. A transformação que ocorre não está relacionada ao retorno da
legalidade ou com a ruptura com o regime autoritário, mas sim, com a alternância do
poder daquele que detêm para a oposição. Deste modo não significa que ambos não
irão partilhar do exercício do poder, pois a interferência no processo de transição
normalmente acarreta a continuidade do regime repressivo gerando um alto custo
para o regime democrático insurgente.
Nesta forma de transição, a qual é a mais partilhada entre regimes militares,
há um deslocamento gradual na substituição do sistema político, pois o regime
autoritário possui mais força política e institucional do que a oposição, que se
encontra enfraquecida pelo longo período de repressão imposto. Deste modo todas
as regras do processo transicional como tempo, prazo, etapas e condições, acabam
sendo determinadas pelo regime militar que possuem “poder suficiente para
controlar o ritmo da transição e extrair um alto preço por se retirar do poder”
(LINZ;STEPAN, 1999, p.205).
Oito estratégias são comumente utilizadas durante a transição por
transformação (HUNTINGTON, 1994): 1. A base política deve ser protegida
posicionando os apoiadores da democratização em posições estratégicas; 2.
Utilizando-se de procedimentos estabelecidos pelo regime não democrático deve-se
manter a estrutura de legitimidade e tranquilizar os grupos conservadores através de
concessões simbólicas. Nesse sentido deve agir com parcimônia, um passo a frente
e dois para trás; 3. Deve-se mudar gradualmente o seu próprio círculo eleitoral para
reduzir sua dependência de grupos governamentais que se opõem às mudanças; 4.
Esteja preparado para as ações extremas, como um golpe de Estado, devendo
ataca-los implacavelmente isolando e renegando os adversários mais extremos. 5.
As iniciativas e processos de democratização devem ser mantidos sob controle.
Deve-se agir a força não cedendo aos grupos de oposição; 6. Deve-se manter
baixas expectativas ao invés de incentivar um utopia democrática totalmente
elaborada; 7. Deve-se incentivar o desenvolvimento de um partido de oposição que
os setores chave aceitarão como um governo alternativo plausível; 8. Deve-se criar
uma sensação de inevitabilidade sobre o processo de democratização para que este
se torne amplamente aceito como um fator necessário e natural.
39
O processo de transição brasileiro ocorreu via transformação. A liberalização
do regime autoritário iniciou no governo Geisel ante a inexistência do combate aos
movimentos de guerrilha que sustentavam o regime de exceção. Partindo do regime
autoritário a transição foi iniciada através um complexo processo de abertura política
controlada pelo governo propondo uma transição “lenta, gradual e segura”. Esta
liberalização foi vinculada a aprovação de uma Lei de Anistia que perdoou
indistintamente os crimes políticos e conexos a estes cometidos pelos opositores do
regime autoritário que lutaram pelo retorno da democracia e os militares. Com a
imposição dessa forma de transição o processo de alternância de poder perdurou
por anos.
A primeira vai de março de 1974 a março de 1985, e abrange os dois
últimos governos militares, as presidências dos generais Geisel (1974-1979)
e Figueiredo (1979-1985). A segunda etapa – a construção da democracia –
desenvolve-se durante o governo civil de José Sarney (1985-1990). Quanto
ao processo de consolidação do novo regime democrático, uma espécie de
segunda transição, ela inicia-se com a presidência de Fernando Collor de
Mello em março de 1990 (eleito por sufrágio universal e afastado do poder
por um processo de impeachment em dezembro de 1992), e encontra-se
ainda em andamento. (ASTURI, 2001, p.6).
A transição controlada pelo regime anterior gerou uma forte continuidade
dos mecanismos autoritários em nossa sociedade. Isso porque quanto maior o apoio
político detido pelo regime autoritário no inicio da transição, mais gradual e
controlado este se torna, dificultando a consolidação democrática (ASTURI, 2001).
Durante grande parte deste período a Constituição de 1967 – elaborada
para legalizar e institucionalizar o regime militar originado do Golpe de 1964 –
continuou em vigor. O movimento pela anistia “ampla, geral e irrestrita” movida pelos
setores populares foi amplamente controlado pelos setores militares. Como
mostrada nas oito estratégias elucidadas por Huntington, o Brasil elaborou a lei de
anistia justamente durante o período de decadência do regime autoritário para
assegurar que os militares que cometeram crimes em nome do regime ficassem
impunes. O fracasso do modelo político-econômico mergulhou o país em uma crise
que resultou em altas taxas de inflação e endividamento externo, fazendo com que
setores antes apoiadores da instauração do regime militar encontravam-se
insatisfeitos. Mudanças eram reivindicadas, como a campanha “Diretas já”,
40
movendo multidões as ruas para promover as eleições diretas para presidente. Mas
a eleição para o Presidente da República em 1985 continuou sendo conduzida pelo
Colégio eleitoral através de eleições indiretas e somente em 1989 as eleições
diretas para presidente ocorreram.
Atualmente podemos notar a força política que os militares ainda exercem
sobre a atuação do governo. Tomamos por exemplo a aprovação em 2009 da
terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) que previu a
Criação Nacional da Verdade. Na 11° Conferência Nacional de Direitos Humanos,
realizado em dezembro de 2008, foi proposta a criação de uma Comissão Nacional
da Verdade e Justiça para apurar os crimes de lesa humanidade e violação de
direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar.
Esta questão gerou grande polêmica11 no seio político visto que os militares
entenderam que a criação de uma comissão desta forma animaria espíritos
revanchistas. A assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas
de demissões do ministro da Defesa e de Comandantes das Forças Armadas como
forma de pressionar o governo a suprimir a própria criação dessa comissão.
Rapidamente o governo retirou do texto o trecho que previa a apuração das
violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar, ficando restrita a
apenas a apuração dos fatos. Ainda, suprimiu o termo “Justiça” passando a ser
então uma “Comissão Nacional da Verdade”. Desde a aprovação do PNDH-3 ainda
as negociações para a criação da CNV se estenderam durante mais dois anos,
sendo aprovada apenas em 2011.
Além da forte influência dos setores militares, ainda podemos constatar os
resquícios do antigo regime repressor na democracia instaurada. A Constituição de
1988 apesar de trazer significativas mudanças não recebeu as devidas alterações
quanto às questões referentes às Forças Armadas, Polícia Militar e segurança
pública. A violência policial no país ainda continua alarmante com a prevalência de
práticas discriminatórias e repressivas. As escolas públicas ainda são de baixa
qualidade com métodos de ensino restritos e os currículos de educacionais estão
longe de ser democráticos. Há forte resistência na mudança de leis instauradas
11 Ver: Arruda, Roldão. Vannuchi e Jobim travam disputa de bastidor por Comissão da Verdade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15.nov.2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,vannuchi-e-jobim-travam-disputa-de-bastidor-por-comissao-da-verdade,466682>. Acesso:05.11.2017.
41
durante o regime ditatorial que apesar de legitimamente criadas, não observaram um
fator essencial, a proteção dos direitos humanos.
Se formos analisar a definição de democracia consolidada elaborada por
Linz e Stepan o caso brasileiro é claramente uma situação de democracia não-
consolidada. Além do controle exercido pelo regime militar no processo de transição,
outras questões como a forte crise econômica rapidamente vieram a se tornar mais
importantes do que as questões propriamente políticas. Entre os anos 1991 e 1992 o
apoio ao regime democrático havia decrescido, gerando uma perigosa avaliação por
parte da população de que o desempenho do regime militar no passado foi melhor
do que o regime democrático no presente. E ainda, que este poderia ser uma
preferência para o futuro. (LINZ;STEPAN, 1999).
Diferentemente do modelo por transformação, segue o segundo modelo
apresentado por Huntington (1994) que é o modelo pautado na substituição
(replacement) ou “transição por ruptura”. Ocorre quando a proposta de mudança
parte dos opositores do regime não democrático, de tal maneira que acabam
promovendo o colapso, ou mesmo a derrubada pela força.
Neste tipo de transição há uma ruptura brusca com o regime anterior. Deste
modo pode ocasionar altos graus de conflito e violência. Culmina na
responsabilização dos máximos líderes da ditadura militar através da promoção de
julgamentos e expurgos. O exemplo é a o processo de transição ocorrido na
Argentina (HUNTINGTON, 1994). Esta transição contou com duas crises que
desestruturaram o regime autoritário. A primeira crise ocorreu com o fracasso
argentino na “Guerra das Malvinas” em 1982. E a segunda crise ocorreu com
colapso econômico e a insatisfação generalizada dos setores populares.
Mesmo após a derrota na Guerra das Malvinas o regime autoritário ainda
tentou manter a sociedade sob sua tutela, porém, “a população percebeu a
manipulação exercida pelos meios de comunicação, que abundavam detalhes sobre
a vitória da Argentina na guerra das Malvinas, em realidade inexistente” (SANTOS,
2016, p. 176). Em 1983, Raúl Ricardo Alfonsín foi eleito democraticamente e seu
governo foi pautado no esclarecimento dos fatos e punição das violações de direitos
humanos, estabelecimento de igualdade perante a lei e a formulação de um política
que gerou uma linha divisória em relação ao passado em busca de promover uma
42
transição que se desvinculasse de todo o aparato do regime anterior e consolidasse
a democracia emergente.
Durante o governo de Alfonsín, importantes Tratados Internacionais foram
assinados como a Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional
de Direitos Civil e Políticos, Pacto Internacional de Direito Economicos, Sociais e
Culturais, e a Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (SANTOS, 2016). Em consonância com entendimento
internacional de direitos humanos sobre leis que promovem autoanistias a Argentina
revogou as duas leis que anistiavam os crimes cometidos na ditadura - “Lei do Ponto
Final” e a “Lei de Obediência Devida”, - possibilitando a continuidade da persecução
penal dos crimes cometidos pelos agentes de Estado. Este modelo de transição é o
que mais se aproxima aos mecanismos propostos pela Justiça de Transição no qual
iremos abordar no seguinte capítulo deste trabalho.
O terceiro modelo de transição, chamado “transplacement”, ocorre da
combinação das suas primeiras formas constituindo uma democracia negociada
entre o regime não democrático e a oposição para estabelecer a mudança de regime
(HUNTINGTON, 1994). Um exemplo é o modelo de transição do Uruguai.
O Uruguai teve um regime autoritário entre 1973 e 1985. No início foi
dominado de facto pelos militares, e a partir de 1976, governado de jure por militares
hierarquicamente comandados. Em 1985, “uma organização militar unida entregou o
poder a um presidente democraticamente eleito” (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187).
O processo de transição no Uruguai ocorreu entre os anos 1980 e 1984
tendo como marco inicial o plebiscito convocado pelos militares para aprovar o
projeto de reforma constitucional. Para a surpresa dos militares que contavam com a
aderência da população, o projeto foi rejeitado pela sociedade uruguaia
demonstrando ao regime militar que a abertura política não iria ocorrer sem que
houvesse a negociação com os partidos políticos. Entendia-se que o Uruguai não
precisava de uma Constituição de autoria dos militares. O poder de barganha dos
militares foi reduzido, pois, naquele momento não havia o perigo de uma ameaça
interna, como a guerrilha, porque esta já havia sido eliminada quando da posse dos
militares no poder. Ainda soma-se a falta de alianças com a sociedade civis e a
promessa de respeitar a decisão proferida no plebiscito (LINZ;STEPAN, 1999). Não
43
restou outra opção as Forças Armadas senão uma retirada segura do poder a fim de
impedir os julgamentos dos agentes repressivos, da mesma maneira que estava
ocorrendo na Argentina.
Em 1984 foi firmado o “Pacto do Clube Naval” entre as Forças Armadas e os
dirigentes dos Partidos Políticos no qual foi realizado o acordo para a transferência
do poder aos civis. No mesmo ano eleições foram convocadas com livre participação
dos partidos (CABRAL, 2012), porém com restrições quanto aos candidatos que
poderiam concorrer ao cargo à presidência. Em 1989 foi realizada mais uma eleição
onde foi permitida a participação de todos os candidatos, havendo ampla
participação da população uruguaia (LINZ;STEPAN, 1999).
Para Linz e Stepan (1999) o Uruguai foi o único país a se tornar uma
democracia consolidada dentre todos que passaram por regimes autoritários na
América Latina. Isso porque em termos conceituais o caso uruguaio se encaixa no
esquema teórico sobre democracia consolidada.
De 1973 a 1985, teve um regime autoritário, sendo dominado de facto pelos militares e, a partir de 1976, governado de iure por militares hierarquicamente comandados, até que, em 1985, uma organização militar unida entregou o poder a um presidente democraticamente eleito (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187).
Os demais países, principalmente o Brasil, ficaram estagnados no processo
de democratização estando longe de efetivá-la. Assim cabe apontar algumas
considerações quanto à concepção minimalista da democracia abordada até o
momento. As conceituações desenvolvidas neste primeiro capítulo privilegiam a
dimensão procedimental de democracia consistente em um processo de progressiva
ampliação de contestação, participação política, existência de uma livre competição
pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis fundamentais. Estas análises que
colocam em primeiro plano as estratégias seguidas pelas elites dirigentes ignorando
as demandas sociais trouxeram grandes consequências para a democracia
insurgente, como a continuidade de práticas autoritárias nos países latino-
americanos. A limitação em definir a consolidação democrática como um conjunto
de regras e procedimentos para alternância de poder, não considerou outras
questões importantes como os “processos de transformação social, com os anelos
de emancipação e justiça substantiva e com as vivencias quotidianas das grandes
maiorias populares” (VITULLO, 2005, p.26).
44
Para Vitullo (2006) é essencial o resgate das dimensões não contempladas
nos trabalhos até então elaborados sobre a transição e consolidação democrática
para entender melhor o processo de crise estrutural que sofrem as instituições
democráticas. Quinalha aponta três problemas principais quanto à teoria da
transição e consolidação elaboradas sem a inclusão das demandas sociais,
O primeiro é a ideia de que a democratização deve, necessariamente, decorrer de uma conexão entre o autoritarismo e a democracia, como se a ausência do primeiro levasse de modo mais ou menos natural à segunda. Outro aspecto criticado é o fato dessa tradição desvincular o autoritarismo dos problemas de constituição do Estado moderno, ou seja, desconsiderar a relação estreita entre formas modernas de racionalidade política e formas contemporâneas de autoritarismo. Por fim, uma última crítica é a de que as relações entre Estado e sociedade não devem ser concebidas apenas enquanto continuidade, como faz crer essa literatura. Isso faz perder de vista as ações sociais de caráter coletivo e solidário, que têm impacto no sistema político (QUINALHA, 2013, p.138-139).
A democracia não pode ser vista como uma alternativa civilizada frente às
violações de direitos humanos que ocorreram durantes os regimes militares
(VITULLO, 2005). Se não considerarmos os outros elementos na conceituação de
democracia, como por exemplo, a necessidade de se realizar uma transição que
observa não apenas as questões políticas, mas também as questões de justiça para
as vítimas, dificilmente poderemos refletir sobre o tipo de democracia que vêm
sendo construído em nossa sociedade.
Deste modo, seguindo esta ideia de que o processo democrático deve se
atentar também a outros fatores como a justiça, iremos abordar no próximo capítulo
outro campo que emergiu sobre transições democráticas. Este novo campo
chamado Justiça de Transição possibilita o confronto com o passado como meio
para gerar uma maior transformação política, atentando aos anseios por justiça que
emergem durante os períodos de transição de um regime não democrático para um
regime democrático.
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PARTE II – A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO LATO SENSU
1 A CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO
As experiências totalitárias da Segunda Guerra Mundial e os regimes
autoritários que eclodiram na América Latina, Ásia, África e Europa nos deixaram
importantes lições. Se antes a democracia como forma de governo foi considerada a
“pior das boas e melhor das más” (BOBBIO, 2003, p. 142), contemporaneamente
estamos convencidos de que a paz só pode ser perseguida com a democratização,
e que esta deve observar a proteção dos direitos humanos.
Como pudemos ver no capítulo anterior, os estudos sobre as transições e
consolidações democráticas refletiram sua atenção na análise dos procedimentos
políticos adequados para facilitar o processo de mudança dos regimes autoritários
para a democracia. Nestes estudos os fatores substanciais, como o anseio das
vítimas por justiça, foram excluídos devido ao contexto em que a abertura política foi
proposta. Neste momento o que se evitava era por em cheque a efetiva
reconciliação por meio de um acordo político entre o regime autoritário e a oposição.
Esse cenário de incertezas quanto à transição e consolidação democrática
decorreu do forte controle que os regimes militares ainda possuíam no momento da
abertura política, no qual impuseram a transição para a democracia de forma “lenta,
gradual e segura”. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimensão moral dos reclamos por justiça das vítimas foi relativizada sendo mais
importante conseguir efetivar a transição e consolidação democrática do que abrir
questões que fizessem com que o regime militar recuasse na sua decisão de
46
abertura política. A presença da cautela e da prudência se justificava pelo medo de
que, caso a transição não ocorresse, um pior cenário de regressão autoritária
poderia surgir. (QUINALHA, 2013).
Diante dessa lacuna deixada por esses conceitos surge um novo campo de
estudos denominado de Justiça de Transição. Nesta nova forma de análise o papel
da justiça em tempos de transição é considerado tão importante quanto o
procedimento para a transição em si, ilustrando a “impossibilidade de retomar a
convivência democrática do momento em que ela foi interrompida, sem que haja um
olhar especialmente voltado aos elementos do passado que persistem no presente”
(QUINALHA, 2013, p. 83). Neste sentido, a Justiça de Transição é uma reação
crítica que busca verificar se as regras, princípios e práticas respondem às
expectativas e às necessidades das populações que antes haviam sido objeto de
terrorismo do Estado (COELHO, 2014).
Seguindo esta linha, entende-se que não basta a derrubada de uma ditadura,
a instalação de uma Assembleia Constituinte para a elaboração de uma nova
Constituição, nem o retorno dos exilados para que possamos afirmar que houve a
promoção de uma reconciliação nacional. Os mecanismos transicionais baseados na
cultura do silencio e do esquecimento através da imposição de autoanistias não
condiz com a construção de um Estado Democrático de Direito. A transição
democrática não pode ser pautada em um discurso consensual. Para que seja
efetivamente democrática, esta deve observar os anseios da sociedade, que deve
poder participar desse processo.
Com a abertura política na América Latina entre os anos 1980 e 1990 uma
série de conferências12 foram organizadas para discutir as dinâmicas da transição
para a democracia e as experiências vivenciadas no Cone Sul. Ativistas e
acadêmicos foram convocados para discutir como os governos sucessores deveriam
lidar com os crimes dos regimes antecessores, objetivando analisar as implicações
morais, políticas e jurídicas dos “recentes julgamentos, comissões de inquérito,
expurgos e outras medidas que buscaram responsabilizar antigos regimes pelo
12 Na conferência realizada pelo Aspen Institute em 1988, denominada “Crimes de Estado: Punição ou Perdão”, na conferência “Justiça em Tempos de Transição”, realizada pela Chapter 77 Foundation em Salzburg, na Áustria, em 1992, e na conferência “Lidando com o Passado”, realizada em 1994 pelo Institute for Democracy in South África (IDASA), na África do Sul, ativistas de direitos humanos, atores políticos e observadores de vários lugares do mundo foram convocados com o objetivo de comparar experiências e discutir opções. (ARTHUR, 2011, p. 77).
47
sistemático abuso aos direitos humanos, bem como promover a transição para a
democracia” (ARTHUR, 2011, p.74).
Esta construção metodológica relacionada à necessidade de respostas a
problemas concretos nós podemos encontrar a partir da proposta de Ruti Teitel, Niel
Kritz, e outros autores (ARTHUR, 2011). A justiça de transição indica uma atividade
focada na superação de legados de abusos dos direitos humanos, atrocidades em
massa ou outras formas de trauma social severo, incluindo genocídio ou guerra civil,
a fim de construir um processo mais democrático, justo e um futuro pacífico
(BICKFORD, 2004). Desta forma desenvolve medidas a serem apreendidas no
processo transicional como o resgate a memória e a verdade, efetivação da justiça,
reparação das vítimas e reforma das instituições repressoras.
O estudo da Justiça de Transição é fundamental compreender os processos,
mecanismos, formas de transição e consolidação democrática em países que
passaram por momentos autoritários, como o Brasil. Isto porque a justiça não se
instaura necessariamente com a transição política. É necessário atentar meios para
que a esta ocorra. Portanto este capítulo se concentrará no desenvolvimento teórico
e a aplicação desses mecanismos de transição, e em especial, abordará como a
justiça de transição ocorreu no caso brasileiro.
Conforme os estudos de Jon Elster (2004) as transições de sistemas políticos
bem como a escolha de medidas que modificam o pensamento político hegemônico
não são novidades da contemporaneidade. Em seu livro Closing the books:
transitional justice in historial perspective apresentou algumas de transições de
regimes ocorridas no passado, como por exemplo, a restauração democrática em
Atenas (411 a.C), e mecanismos que poderiam caracterizar uma Justiça de
Transição. Porém, tais processos transicionais não se relacionam com o conceito de
justiça de transição no qual iremos trabalhar. Posto que, estamos nos referindo a
uma série de mecanismos legais para o enfrentamento da herança autoritária cujo
significado remete às experiências vividas no século XX.
Luiz Fernando Coelho traça alguns contornos sobre o tema:
No estudo dos direitos humanos, especialmente quanto ao problema da eficácia da legislação que os declara e os garante, uma situação particularmente relevante se apresenta: como lhe dar com a necessidade de preservá-los na plenitude de seus princípios quando um governo autoritário, em face da iminente restauração do Estado de Direito e consequente
48
substituição por um governo democrático, trata de impedir a investigação, processamento e punição dos delitos contra os direitos humanos praticados na vigência do regime opressor. Este e outros problemas resultantes da passagem de um sistema autocrático para uma ordem democrática exigem soluções jurídicas que repercutem no contexto ético, político e social do novo regime. É um conjunto interdisciplinar que vem sendo caracterizado como justiça de transição. (COELHO, 2014, p.233)
Deste modo a justiça de transição moderna, tal qual conhecemos, possui o
recorte histórico partir do final da Segunda Guerra Mundial com a instituição do
Tribunal de Nuremberg para julgar o alto escalão nazista pelos crimes de guerra e
crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). Isso porque só recentemente as
medidas que chamamos de justiça de transição foram justificadas por meio de
apelações às normas universais, como os direitos humanos.
Conforme o relatório S/2004/616, resultado das reuniões do Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) realizadas em 2003, a noção
de Justiça de Transição
Compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos. (ANNAN, 2009, p.325).
Portanto a justiça de transição moderna discute sobre os “processos judiciais,
resgate da verdade, transformação dos aparatos de segurança de um estado
abusivo e a reabilitação ou compensação de danos” (ARTHUR, 2014, p.115).
A Justiça de Transição é, portanto, um modelo de justiça que pretende a
reconciliação nacional com o seu passado, manifestando-se por meio de medidas
como, a construção da memória e da verdade, a devida responsabilização dos
responsáveis pelas violações de direitos humanos e a reforma das instituições
perpetradoras e coniventes com estes atos, com vistas a impedir que novas
violações sistemáticas de direitos humanos possam ressurgir.
Em um parâmetro geral sobre a Justiça de Transição a autora Ruti Teitel
(2011) elaborou uma genealogia da justiça transicional nos ofertando um importante
estudo estruturando-a em fases como veremos a seguir.
49
1.1 A GENEALOGIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Ruti Teitel (2011, p. 136) visando traçar a busca histórica pela justiça em
tempos de mudança política propôs a elaboração de uma genealogia para
demonstrar através do tempo a relação entre a “justiça que se almeja e as restrições
políticas relevantes”. Deste modo analisando o desenvolvimento dos acontecimentos
políticos ocorridos, a partir da segunda metade do século XX, estruturou a
genealogia em três fases distintas: 1° fase: pós-Segunda Guerra Mundial; 2° fase:
pós-Guerra Fria; 3° fase: Contemporaneidade.
O estudo proposto apresenta uma abordagem indutiva, construtivista e
contextualizada que define a Justiça de Transição como “a concepção de justiça
associada a períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito
jurídico, que tem o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes
opressores do passado” (TEITEL, 2011, p. 135).
Trata-se, portanto, na implicação em processar os perpetradores das
violações de direitos humanos, revelar a verdade histórica sobre os fatos ocorridos,
fornecer às vítimas a devida reparação (financeira e simbólica) e promover uma
verdadeira reconciliação nacional sob a perspectiva das vítimas.
1.1.1 Primeira fase: justiça Pós-guerra (1945)
A primeira fase da genealogia da justiça de transição está associada ao
modelo de justiça conduzido pelos Aliados logo após o término da Segunda Guerra
Mundial. Através do Acordo de Londres (1945) foi determinada a formação de um
Tribunal Militar Internacional – conhecido por Tribunal de Nuremberg - para julgar os
responsáveis pelos crimes cometidos durante a guerra.
Neste sentido três acusações foram tipificadas: 1. Crimes contra a Paz, sendo
a participação direta ou indireta, na preparação e execução de guerras violando
tratados, acordos e garantias internacionais; 2. Crimes de Guerra, no qual há a
violação aos costumes e leis de guerra; 3. Crimes contra a Humanidade, no qual
50
englobam o assassinato, extermínio, escravidão, deportação e outros atos
desumanos cometidos contra a população civil, bem como, perseguições civis,
raciais e religiosas.
Cabe observar que os Crimes contra a Humanidade foram aplicados pela
primeira vez nos julgamentos ocorridos no Tribunal de Nuremberg, dado que a
compreensão tradicional carecia de respostas à nova forma de dominação que
eclodiu na Europa: o Totalitarismo. Assim, os Crimes contra a Humanidade
representaram uma inovação ao Direito Internacional estabelecendo um novo
sistema constituído pelo Direito Humanitário.
Sem dúvida o Tribunal de Nuremberg constituiu o maior símbolo da primeira
fase da justiça transicional. Neste momento o objetivo central da justiça era delinear
os parâmetros a ser seguidos para punir a Alemanha e se tais as medidas deveriam
ser deixadas a cargo dos agentes nacionais, ou se deveriam ser realizadas pelos
agentes internacionais (TEITEL, 2011). A justiça de transição da primeira fase
ganhou um forte caráter internacional e punitivo deslocando a competência para
julgar a Alemanha nas mãos dos Aliados.
Isso porque neste momento havia grande hesitação na capacidade da
jurisdição nacional, pautada no positivismo jurídico, em estar processando e
julgando o regime nazista. Esta dúvida parte da experiência vivida pós-Primeira
Guerra Mundial onde Tribunais nacionais falidos não conseguiram “evitar a futura
matança ocorrida na Segunda Guerra Mundial” (TEITEL, 2011, p. 140). Nesse
sentido o Direito Penal Internacional foi usado para atingir diretamente os indivíduos,
permitindo responsabilizar os mais altos escalões do Reich pelos crimes cometidos.
Verifica-se, portanto, que estas condições foram consideradas uma garantia para se
efetivar o Estado de Direito através da reforma das instituições e responsabilização.
Desta primeira fase da justiça transicional a autora tece algumas
considerações:
a) O Tribunal de Nuremberg criou um precedente histórico do poder cogente do
direito internacional no qual influenciou na formação da estrutura central do
Direito Humanitário contemporâneo;
b) Apesar de o objetivo ser a responsabilização pelos crimes cometidos na
guerra, a inovação trazida nesta fase está no uso do Direito Penal
51
Internacional e o seu alcance. Os julgamentos de Nuremberg permitiram
atingir o individuo;
c) A primeira fase foi marcada pelo internacionalismo e a criação de Tribunais
ad hoc. O importante abandono das respostas transicionais nacionalistas
prévias e a proximidade de uma política de internacionalismo foram
considerados uma garantia de Estado de Direito;
d) A aplicação da justiça internacional acarretou irregularidades que tencionaram
o Estado de Direito, especialmente dado seu objetivo liberalizador;
e) O Tribunal de Nuremberg criou precedentes importantes, porém limitados,
visto que foi possível somente no contexto da superação de uma nova forma
de dominação: o Totalitarismo. Desde modo foi um modelo sui generis.
Deste modo o desenvolvimento deste modelo elaborado na primeira fase da
Justiça de Transição se exauriu logo após os julgamentos de Nuremberg. O legado
deixado pelo julgamento da Segunda Guerra13 possibilitou a incorporação de
convenções internacionais como a Convenção contra o Genocídio (1948) no qual se
consolidou o que o genocídio é um crime contra o Direito Internacional, contrario ao
espírito e aos fins das Nações Unidas e do mundo civilizado.
1.1.2 Segunda fase: justiça Pós-guerra Fria
As transições da segunda fase da transição situadas entre 1970 e 1989,
apresentaram como pano de fundo uma ordem mundial em plena mutação. O seu
início se deu no término da Guerra Fria com o declínio da União Soviética e a
emergência de um mundo multipolar que provocou a onda de liberalização na
América do Sul, estendendo-se para a Europa do Leste e América Central. Sendo
um período de acelerada democratização e fragmentação política (TEITEL, 2011).
Diferentemente da primeira fase onde a transição ocorreu com a intervenção
de atores internacionais, na segunda fase os processos transicionais foram iniciados
13 Até o precedente dos Julgamentos do Tribunal de Nuremberg não havia possibilidade no direito internacional de punir assassinatos em massa ordenados pelo Estado. Uma falha que havia se evidenciou neste julgamento quando dez dos vinte e dois nazistas acusados de graves crimes de guerra foram libertados ou receberam penas leves.
52
e executados pelos próprios regimes autoritários. Segundo Teitel (2011, p.144) “não
havia clareza se o ajuizamento de ações contra os responsáveis no estilo
Nuremberg seria seguido com êxito” devido ao contexto em que essas transições
ocorriam. Apesar dos regimes autoritários estarem enfraquecidos devido as
sucessivas crises econômicas e sociais que foram surgindo durante os anos 1980
estes ainda possuíam o controle político do Estado. Esses processos de transição
política controlados pelo Estado resultaram na produção de uma série de Leis de
Anistia no qual o regime perdoou a si próprio, ou seja, leis que promoveram a
autoanistia.
Assim como a primeira fase da justiça transicional esta segunda fase também
não poderia ser transportada para outros “contextos de soberanias radicalmente
diferentes” (TEITEL, 2011, p. 145).
Essa segunda fase foi marcada pelas seguintes características:
a) Em alguns países as transições políticas controladas pelos Estados
autoritários ocorreram na esfera nacional, onde comumente Leis de Anistia
foram elaboradas assegurando a impunidade dos agentes de Estado que
cometeram crimes contra os direitos humanos. Os conceitos de perdão e
reconciliação foram comumente utilizados como recursos necessários para a
transição.
b) O interesse das vítimas na invalidade das leis de anistia geraram dilemas que
incluíam “a retroatividade da lei, alteração e manipulação indevidas de leis
existentes e um alto grau de seletividade na submissão de processos e um
poder judicial sem suficiente autonomia” (TEITEL, 2011, p.146).
c) A tensão entre punição e anistia se complicou com a admissão e
reconhecimento dos dilemas inerentes aos períodos de mudanças políticas;
d) A justiça neste período se vinculou a uma concepção de justiça imparcial e
imperfeita, gerando a questão: o que é justo e equitativo em circunstancias
políticas extraordinárias?
e) A viabilidade de buscar a justiça através da esfera internacional, como as
condenações contra os crimes de lesa humidade julgados pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (IDH), dependeu de critérios como: a
53
escala dos crimes cometidos, da sua sistematização e do efetivo patrocínio
do Estado repressor.
f) O entendimento sobre justiça nas transições é mais bem compreendido
quando analisamos o contexto político da transição considerando as
contingencias políticas, jurídicas e sociais.
g) Como meio alternativo a impossibilidade julgamentos penais outros
mecanismos foram buscados como: reparação e o estabelecimento das
Comissões da Verdade.
Observa, portanto, que no contexto da segunda fase surgiu um modelo
alternativo que buscou na restauração uma forma de se buscar a justiça, por meio
da construção da verdade histórica dos acontecimentos ocorridos durantes os
regimes repressores. Nesse sentido busca-se oferecer uma perspectiva histórica
ampla, refutando versões oficiais sobre as mortes, perseguições, prisões arbitrárias,
torturas, estupros e demais crimes contra os direitos humanos praticados pelos
agentes de Estado. O direito à “verdade e a memória” passou a ser o direito de toda
a sociedade saber sobre o que realmente aconteceu neste período sombrio da
história através de audiências públicas, publicações de relatórios, livros, filmes,
criação de museus, e demais mecanismos que gerassem ampla publicidade de
modo a evitar, através da conscientização, a repetição desses acontecimentos em
gerações futuras.
1.1.3 Terceira fase: a justiça “estável”
A terceira fase da justiça transicional corresponde a contemporaneidade no
qual a autora afirma ser a “justiça transicional em todo momento” (TEITEL, 2011, p.
164). A justiça transicional estável está relacionada a expansão e normalização
deste ramo para aplicação de seus mecanismos não apenas em condições
extraordinárias, mas sim, em tempos normais (guerras em tempo de paz, Estados
frágeis e conflitos constantes).
A Justiça de Transição torna-se jurisprudência a ser seguida pelos Estados,
em consonância aos valores que atualmente entendemos indispensáveis: Estado de
54
Direitos, Democracia, Paz e Direitos Humanos. O símbolo da normalização da
jurisprudência da transição nós encontramos com a consolidação do Tribunal Penal
Internacional (TPI) estabelecido pelo Estatuto de Roma em 1998. Este Tribunal
simboliza a consolidação do modelo de Nuremberg: a criação de um Tribunal
internacional permanente para julgar os autores de crimes de guerra, genocídio e
crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). O Tribunal Penal Internacional iniciou
as suas atividades em 2002, e sua competência é para julgar indivíduos (exame de
litígios entre Estados é julgado pela Corte Internacional de Justiça). Conta com a
participação de cento e vinte e dois Estados-parte: 34 africanos, 27 latino-
americanos e caribenhos, 25 países ocidentais e outros,18 da Europa do Leste e 18
da Ásia e Pacífico.
O Direito Internacional Humanitário incorpora a relação entre o indivíduo e o
Estado como modelo jurídico (TEITEL, 2011) possibilitando julgar indivíduos
responsáveis pelos atos de guerra, genocídio e crimes de lesa humanidade.
Também permite identificar as falhas na ação do Estado e pressionar que este
respeite os direitos humanos.
Apesar dos avanços para o Direito Humanitário e o seu fortalecimento perante
a comunidade internacional, devemos nos atentar ao poder que esse mecanismo
possui. O uso dos discursos de proteção aos direitos humanos somados a um
contexto de existência de uma “aparente guerra permanente” (TEITEL, 2011, p. 167)
pode ressuscitar a opressão ao invés de trazer proteção. Os direitos humanos
direcionados a apenas alguns, não como direito de todos, como no caso do combate
ao terrorismo, cria novamente um terreno sombrio onde tudo é justificável em nome
de um ideal. Isso aconteceu na Segunda Guerra, aconteceu nas ditaduras militares,
e pode tornar a acontecer na contemporaneidade. Deste modo devemos nos atentar
com o uso inadequado desses mecanismos.
Evidenciado o conceito de Justiça de Transição e as suas respectivas fases
conforme a genealogia proposta por Teitel (2011) cabe dar seguimento a nossa
abordagem pronunciando-se a respeito dos pilares que a constituem. Os pilares da
Justiça de transição visam a recomposição do Estado e da sociedade trazendo
parâmetros mínimos que devem ser observados no processo de restauração social.
55
A elaboração desses pilares é resultado da agenda ativa da Justiça de
Transição na busca de mecanismos para lidar com o passado repressivo, podendo
ser pautados em modelos judiciais e não judiciais como veremos à seguir.
1.2 PILARES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
A Justiça de Transição é formada por mecanismos de enfrentamento dos
fatos passados objetivando a superação das massivas violações de direitos
humanos para que estas não se repitam no futuro. Para que isto ocorra é de suma
importância o estabelecimento de parâmetros para que as novas gerações possam,
primeiramente, conhecer sobre o seu passado e, através desta, reformular sua
concepção sobre a história. Neste sentido, podemos constatar a intrínseca relação
entre o passado, o presente e futuro. Isto porque só as pessoas que têm direito a
reconhecer plenamente seu passado podem ser verdadeiramente livres para decidir
seu futuro.
Deste modo, este tipo de justiça engloba alguns pilares ou dimensões que
refletem as obrigações do Estado no qual ainda encontram-se calçadas em quatro
dimensões indispensáveis: i. fornecimento da verdade e construção da memória; ii.
Reparação; iii. Reforma das instituições perpetradoras de violações contra os
direitos humanos; iv. Regularização da justiça e restabelecimento da igualdade
perante a lei. (TORELLY, 2011, p. 215).
Deste já ressaltamos que esta não se trata de uma lista fechada de
mecanismos, mas sim, o passo inicial para a consolidação de uma política
direcionada a atenção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dado que, este
campo possui grande versatilidade no que condiz aos caminhos que cada país
escolhe para a superação do seu passado.
a) Direito à verdade e a memória
56
Diante das ditaduras que ocorreram na América Latina surge o apelo a um
Direito à memória e à verdade em relação a todos os fatos ocorridos neste período.
Esta expressão “vem preenchendo as pautas de reivindicação política e encontrando
eco na promoção de mecanismos transicionais e na implementação de políticas de
memória relacionadas aos eventos traumáticos vivenciados coletivamente” (SILVA,
2010, p.213).
A verdade que nos apoiamos está relacionada ao interesse de buscar a
verdade que está na própria realidade, que depende da plena manifestação dos
fatos e dos acontecimentos, no qual é possível através do acesso à informação e
disponibilização dos arquivos no período da ditadura. Deste modo o direito à
verdade seria o direito ao desvelamento14 – o ente em seu descobrimento – sendo o
direito de “tirar o véu” no processo da justiça de transição de todo discurso falacioso
que se construiu durante a ditadura, primeiramente para constituí-la e depois para
mantê-la como regime de Estado (SANTOS, 2016). Este pensamento está pautado
no que é prevalecente no direito internacional em meio a reflexões sobre como lidar
com práticas de um período de violência política extraordinária, praticadas por
agentes de Estado. Nas palavras de Torelly (2010):
Neste contexto de alta complexidade, a simples alteração formal de leis não é suficiente para garantir a consolidação de uma democracia substancial limitada exclusivamente pelas garantias fundamentais originadas dos direitos humanos. É necessária a promoção de uma nova cultura política, que seja capaz de transformar o espólio autoritário e o legado de violações individuais em aprendizado para a democracia, valendo-se tanto da memória consciente (aquela que o agente ou grupo sabe possuir, ou seja, lembra-se), quanto da memória não-consciente (aquela que se acumula de forma arcaica na experiência de vida do indivíduo ou grupo), fomentando um senso comum democrático que oriente o agir. É assim que surge a necessidade de afirmação e avivamento de memórias sociais que somem as vivências individuais de violações passadas ao processo reflexivo de superação do legado autoritário e consolidação do Estado Democrático de Direito, fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogar com o autoritarismo, promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que, por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia desde um ponto de vista prático (e não estritamente jurídico) e possibilitando que os elementos não conscientes de memória não sejam vinculados com a violência do passado. (Torelly, 2010, p.104).
14 SANTOS (2016, p.60) aborda o direito à verdade a partir do pensamento de Martin Heidegger utilizando a concepção de verdade como desvelamento. Nesse sentido “a verdade somente pode ser o que é no elemento da clareira, pois somente com a abertura será possível o desvelamento ou desencobrimento do ente”. Isso porque Heidegger estuda a verdade a partir da etimologia grega alétheia no qual significa que algo não pode ser oculto, escondido ou dissimulado. O desvelamento do ente é “tirar o véu” do ente por meio da clareira ou abertura do seu comportamento.
57
O direito à verdade e a memória é o direito relacionado à atenção as vítimas.
É o direito que estas possuem de saber o que realmente aconteceu neste período
sombrio da história, onde pessoas desapareciam e tudo o que restava eram
certidões de óbito forjadas. Homícidios cometidos pelos agentes de Estado eram
constantemente alterados nos relatórios das instituições para suicídio. Isso quando
era possível saber o que foi que aconteceu com os perseguidos políticos. Em muitos
casos nem mesmo uma resposta se tinha a respeito. A criação do direito à verdade
se relaciona com a percepção de que essas graves violações de direitos humanos,
muitas das quais ocorreram em um período de violência extraordinária, requerem
mecanismos específicos de tratamento. Silva afirma que no caso brasileiro,
As violências cometidas pelo regime militar não ganharam a dimensão pública e transparente que seriam necessárias para a concretização desse direito. As investigações para apurar os fatos ocorridos foram continuamente abortadas sob o efeito multiplicador da anistia política praticada no Brasil a partir de 1979. [...] Ela revelou-se, igualmente, uma auto-anistia, pois serviu de pretexto para que não se realizasse nenhum tipo de investigação e apuração das responsabilidades dos agentes do regime ditatorial por seus atos ilegais e aviltantes (SILVA, 2010, p.214).
Busca-se desta maneira uma verdade que traga à tona todos os fatos
ocorridos neste período. Conforme entendimento da Organização das Nações
Unidas (ONU): “todo povo tem o direito inalienável de saber a verdade sobre
acontecimentos passados, relacionados à perpetração de crimes aberrantes e sobre
as circunstâncias e motivos que levaram, por meio de violações massivas ou
sistemáticas, à perpetração desses crimes” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 2005, principle 2). Deste modo o reconhecimento da memória e da
verdade é um direito fundamental de todo ser humano,
[O] conhecimento, por um povo, da história de sua opressão, o que constitui parte de seu patrimônio e, por isso, deve ser conservado, adotando medidas adequadas em favor do dever de recordar incumbido ao Estado, para preservar os arquivos e outras provas relativas às violações dos direitos humanos e do direito humanitário, e para facilitar o entendimento/conhecimento de tais violações. Essas medidas devem ser encaminhadas no sentido de preservar a memória coletiva contra o esquecimento e, em particular, evitar que surjam teses revisionistas e negacionistas. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005, principle 3).
A memória também está intrinsicamente ligada à ideia de verdade. Neste
sentido, criar uma memória é lidar com tanto com a verdade quanto com o
esquecimento imposto no propósito de reconciliação da transição brasileira. Busca a
superação da anistia como “amnésia” abrindo espaço para refutar os fatos e
58
reescrever a história. A memória e o esquecimento, operando dialeticamente,
possibilitam o estabelecimento de confluências e dissidências narrativas que,
ademais de permitirem a constituição de uma “versão histórica” sobre determinados
acontecimentos que influenciam fortemente percepções individuais e sociais de
mundo significando que “lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica,
portanto, em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro”
(TORELLY, 2010, p. 107), uma vez que o que lembramos do passado é fundamental
para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos
no tempo.
O direito à verdade tem ultrapassado os limites dos desaparecimentos
forçados e evoluído em direção a outras graves violações de direitos humanos.
Conforme afirma a Comissão Nacional da Verdade (2014) desde a Conferência
Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, tem-se atrelado o tema
das graves violações de direitos humanos ao aspecto do combate à impunidade. Os
Principios Joinet, aprovados em 1997, remetem ao direito de saber, de natureza
tanto individual como coletiva, relacionado ao dever do Estado de recordar, com a
finalidade de prevenir o revisionismo ou o negacionismo, na medida em que se
considera que a história de opressão de um povo pertence ao seu patrimônio e
assim deve ser preservada.
Santos (2016, p.71) conceitua a memória como “o direito fundamental de
acesso, utilização, conservação e transmissão do passado e dos bens materiais e
imateriais que compõem o patrimônio cultural de determinada coletividade”. O direito
à memória relativa às graves violações dos direitos humanos cometidos pelos
agentes do Estado pode ser ocorrer através da implementação de políticas públicas
que fomentem a investigação história dos fatos ocorridos, garantam o amplo acesso
aos documentos oficiais, criem museus ou espaços públicos dedicados às vítimas,
formulem pedidos oficiais de desculpas às vítimas e à sociedade como um todo,
promovam debates a respeito dos atos de violência e de mecanismos para que
possamos evitar a repetição de atos contra os direitos humanos (SOARES, 2011).
59
No Brasil podemos dizer que o pilar da memória e da verdade15 começou a
ser construído a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação da
Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos políticos através da Lei 9.140/1995.
Ainda cabem mencionar a criação da Comissão da Anistia (L.10.559/2002) e da
Comissão da Verdade (12.528/2011), mecanismos importantes que possibilitaram
um conjunto de ações para que a atenção às vítimas finalmente pudesse ser
implementada. Sobre esses mecanismos nós iremos abordar mais adiante neste
trabalho especificando como cada um nos ajuda a estar cada vez mais próximos ao
tipo de sociedade que queremos alcançar. Aquela em que os indivíduos possuem
direitos fundamentais inerentes à sua condição humana que devem ser veemente
protegidas para que atos de violações sistemáticas não se repitam manchando mais
uma página da história da humanidade.
b) Direito à reparação
O direito à reparação das vítimas tem por objetivo reparar devidamente os
danos causados. Estas reparações podem ser tanto materiais como: indenizações,
aposentadorias, medidas de reabilitação e reintegração ao serviço público,
restituição de direitos políticos. Quanto simbólicos: pedidos oficiais de desculpa,
divulgação da verdade dos fatos, registro oficial de mortos e desaparecidos
(SANTOS, 2016).
No caso brasileiro o direito à reparação teve início com a aprovação da Lei de
Anistia de 1979 (L.6.683/1979) grande marco do inicio da transição política para a
democracia. Através desta lei as vítimas tiveram seus direitos políticos restaurados,
puderam reintegrar ao trabalho nos quais estavam afastados, e através da
concessão do perdão puderam retornar ao Brasil. Com a Emenda Constitucional
26/1985, no qual convocou a Assembleia Nacional Constituinte, foi acrescentada a
15 “Na dimensão do fornecimento da verdade e construção da memória também produziram- se avanços. Além do livro Direito à Memória e à Verdade, os dois principais projetos de memória são o projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos, que inclui uma exposição fotográfica itinerante e a publicação de uma série de livros temáticos sobre a ditadura no Brasil, e o Projeto Marcas da Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que inclui audiências públicas; financiamento a projetos e ações culturais propostos e executados pela sociedade civil organizada; a publicação de obras sobre memória, anistia e justiça de transição; e iniciativas de preservação da memórias oral sobre o período” (TORELLY, 2011, p. 224).
60
previsão de restituição dos direitos políticos aos dirigentes e representantes de
organizações sindicais ou estudantis. Na Constituição de 1988 a reparação passou a
fazer parte das garantias constitucionais16 (TORELLY, 2011).
A partir de então vieram outras várias iniciativas de reparação: Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), Comissão da Anistia (2002),
projeto Direito à Memória e à Verdade (2007), projeto Marcas da Memória I (2010), II
(2011), III (2012) e IV (2013), Caravanas da Anistia (2012), projeto Memórias
Reveladas no qual possui um vasto banco de dados para pesquisa pública, criação
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Lei de Acesso à informação
(L.12.527/2011) e o Memorial da Anistia17. Nas palavras de Torelly (2011):
Podem-se extrair algumas conclusões sobre o processo reparatório no bojo da efetivação da justiça de transição brasileira. A primeira conclusão importante, extrai-se do art. 8º do ADCT, cujo texto explicitamente se traduz em genuíno ato de reconhecimento dos direitos dos perseguidos políticos e entre eles o direito de resistir à opressão. A segunda é a de que, no Brasil, desde a sua origem, a anistia é ato político que se vincula à ideia de reparação. A terceira conclusão é a de que a anistia é concedida pela Constituição àqueles que foram perseguidos, e não aos perseguidores. Por fim, pode-se ainda afirmar que existe no Brasil a implantação de uma rica variedade de medidas de reparação, individuais e coletivas, materiais e simbólicas (TORELLY, 2011, p. 223).
Todas essas iniciativas movem a agenda política do país para além da
reparação. Estas constituem importantes mecanismos para a construção de uma
nova história, descontruindo as verdades oficiais criadas a partir do regime militar.
c) Direito à reforma das instituições
A reforma das instituições envolve uma série de modificações institucionais
com o objetivo de descaracterizar a cultura de repressão existente nos órgãos
estatais mudando-as radicalmente e em alguns casos dissolvendo-as.
16 CF/1988. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
17 Disponível para consulta no endereço: http://memorialanistia.org.br/
61
Neste sentido, cabe às Comissões da Verdade fazer sugestões em seus
relatórios finais para a mudança legal, administrativa e institucional visando evitar a
repetição de crimes sistemáticos. Ao governo, realizar depurações e saneamento
administrativo nos órgãos públicos visando afastar as pessoas que cometeram
violações aos direitos humanos ou participação em corrupção, esses programas
também “podem contribuir para estabelecer a responsabilidade não penal por
violações dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais resulta
impossível processar todos os responsáveis” (ZYL, 2011, p. 54).
Temos como exemplos de reformas nas instituições no Brasil a extinção de
órgãos de repressão18 como o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR),
Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Aeronáutica
(CISA), Serviço Nacional de Informações (SNI), Destacamento de Operações de
Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS) e outros órgãos que atuavam em consonância a
ditadura militar.
Ainda cabe observar que a reforma não é apenas para excluir pessoas ou
extinguir órgãos. Esta também tem a função de criar novas instituições para garantir
a nova ordem democrática.
d) Direito à justiça
Quando buscamos o direito à justiça estamos nos referindo a obrigação do
Estado em investigar, processar e punir na esfera penal cada pessoa responsável
pelos crimes cometidos sistematicamente contra os direitos humanos. O que se
busca é evitar a repetição de novas violações sistemáticas cometidas por agentes
de Estado, além de servir como uma resposta ao anseio das vítimas por justiça.
Neste contexto enquadra-se o chamado crime contra a humanidade. O
conceito de crime contra a humanidade surgiu do Acordo de Londres (1945) que
instituiu o Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes cometidos pelo regime
nazista. Conforme explica Gomes e Mazzuoli crimes contra a humanidade são:18 Disponível para consulta no endereço: https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/2-orgaos-de-informacao-e-repressao-da-ditadura/
62
O assassinato, extermínio, escravidão, a deportação e qualquer outro ato desumano contra a população civil, ou perseguição por motivos religiosos, raciais ou políticos quando esses atos ou perseguições ocorram em conexão com qualquer crimes contra a paz ou em qualquer crimes de guerra (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p.88).
Esses crimes são considerados pelo direito internacional dos direitos
humanos imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis, o que significa dizer que
não podem deixar de ser processados e julgados devido a leis de anistia, por
exemplo. Neste sentido, é de entendimento internacional que tais leis, que
funcionam como impeditivo para que seja efetuada a justiça, devem ser invalidadas.
Os crimes contra a humanidade faz parte do costume e do jus cogens
internacional. Portanto são normas imperativas no qual nenhum tratado ou norma de
direito interno se sobrepõe. De acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados (1969), assinada pelo Brasil em 23 de maio de 1969 e ratificada pelo
Decreto 7.030/2009, uma parte não pode invocar as disposições de seu direito
interno para justificar o inadimplemento de um tratado, e ainda, os tratados
incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional (jus cogens):
Artigo 53.º É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza. (grifo nosso).
Neste sentido afirma-se que quando um país firma um tratado internacional a
sua soberania passa a ser relativizada, portanto, as condenações internacionais
advindas de violações aos direitos humanos devem ser cumpridas pela justiça
nacional.
No entanto, Paul Van Zyl (2011, p. 50) faz uma observação importante, “os
sistemas da justiça penal estão desenhados para sociedades em que a violação da
lei constitui exceção e não a regra”. Neste sentido a justiça penal não é suficiente
quando tratamos de violações sistemáticas e generalizadas de direitos humanos,
isso porque tais demandas exigem uma designação significativa de tempo e
recursos19. Desta forma, para além da busca dos julgamentos penais, devemos
19 Em um comparativo o autor afirma que “a Corte Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia
emprega mais de 1100 pessoas e tem um gasto de 500 milhões de dólares desde a sua criação em
1991. Desde essa data conseguiu menos de 20 condenações”. (ZYL, 2011, p.50).
63
fortalecer todos os outros mecanismos da justiça de transição em busca do
enfrentamento de um passado marcado por sistemáticas violações aos direitos
humanos.
1.3 TIPOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
As transições podem gerar diversas formas de respostas às graves violações
de direitos humanos. Dentre estas, quatro formas merecem destaque:
a) Vingança:
A vingança privada representa um sistema primitivo de justiça onde o culpado
é punido pela própria vítima e/ou por outros integrantes que se julgam injustiçados,
unindo-se para depreciar o acusado. Pode ocorrer, na maioria das vezes, pela
inércia do Estado em efetivar uma resposta coletiva ou institucionalizada a respeito
das violações aos direitos humanos das vítimas ou quando esta resposta e
considerada insuficiente por estas (SANTOS, 2016).
O discurso da vingança vem desde o Tribunal de Nuremberg sendo
gradativamente afastado. Não resolve o problema e em um sistema de direito a
vingança privada é algo não tolerável. E é justamente por isso que o direito deve
oferecer uma resposta adequada. Se o direito falha em sua função negando justiça
às vítimas de graves violações de direitos humanos, este falha na aplicação da lei e
não na aplicação da vingança.
A invés da vingança, a resposta cabe ao Poder Judiciário por ser “o recurso
mais válido que a sociedade tem para declarar o que considera justo e injusto"
(HUHLE, 2005, p.18)20.
b) Esquecimento:
20 "En un Estado moderno de derecho, hasta ahora, y pese a muchos deseos de tener otros mecanismos tal vez más humanos, el castigo judicial es el recurso más válido que tiene la sociedad para declarar lo que considera justo e injusto”.
64
A transição pelo esquecimento ocorre quando mecanismos são utilizados
para impor o esquecimento dos fatos. É o caso das Leis de Anistia que autoanistiam,
a falta de informações sobre os fatos ocorridos, ocultação de documentos emitidos
durante o período, o silencio, e qualquer movimento que impeça que a sociedade
lembre a respeito dos crimes cometidos.
O processo de transição brasileira se encaixa perfeitamente neste tipo de
transição. A abertura política controlada pelo regime militar impôs à sociedade
brasileira uma reconciliação que exigiu como moeda de troca o esquecimento dos
fatos ocorridos naquele período através do que muitos afirmam ter sido um acordo
político.
Ocorre, pois, que para a justiça transicional esta forma de transição ignora os
anseios das vítimas e seus familiares, impondo à força a superação de um passado
violento e perpetuando a impunidade dos agentes violadores de direitos humanos.
c) Julgamento:
A transição através do julgamento é feita por órgãos judiciais, ou quase-
judiciais, permitindo a responsabilização dos agentes do Estado atendendo as
reivindicações das vítimas. Ademais, promovem a publicidade dos fatos e
conscientizam as futuras gerações de que tais atos não podem se repetir. Este é o
exemplo da transição ocorrida na Argentina, que logo após a queda dos regimes
militares, se propôs a processar e julgar os agentes violadores de direitos humanos.
Cabe observar que o julgamento nem sempre é possível devido a
impedimentos jurídicos e políticos que vão surgindo durante o processo de
transição. Ademais, muitas transições acabam posteriormente seguindo um modelo
restaurativo em substituição dos modelos retributivos ou punitivos, pois caso
contrário, é difícil conseguir que agentes perpetradores de violações de direitos
humanos se proponham a revelar os verdadeiros fatos ocorridos durante o regime
de exceção. Desta forma, a construção da memória e da verdade através das
65
Comissões da Verdade tornam-se importantes instrumentos na busca pela
reconstrução dos fatos normalmente encobertos ou distorcidos pelo regime militar.
d) Conhecimento:
A transição via conhecimento significa trazer a luz fatos obscuros sobre o
período repressivo sem necessariamente exigir que processos criminais ocorram.
Busca-se uma justiça restaurativa, onde a busca da verdade passa para o primeiro
plano. Conforme dito anteriormente, as Comissões da Verdade criadas para
investigar os fatos ocorridos na repressão, no qual, rechaçam informações oficiais
elaboradas sobre os acontecimentos são um grande exemplo desta forma de
transição. Em sua atuação as Comissões da Verdade realizam uma análise
minuciosa em documentos, testemunhos e oitivas dos opressores, para reconstruir a
história. Ainda, outros meios simbólicos como a mudança de nome de ruas, criação
de museus, lançamento de livros e filmes, são implementados possibilitando que a
sociedade tenha acesso a este período da história reforçando o combate a repetição
desses atos pelas gerações futuras.
66
PARTE III - OS CAMINHOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
Neste capítulo vamos realizar a análise da justiça de transição em seu sentido
estrito, ou seja, justiça de transição apresenta-se como uma plataforma de
justificação, a partir do qual se realizam avaliações críticas sobre o passado.
Neste sentido insere-se a abordagem dos caminhos que a justiça de transição
percorreu (e ainda continua percorrendo) no Brasil, desde a promulgação da Lei de
67
Anistia, em 1979, até o atual momento com a propositura da Ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 320.
1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO EM SENTIDO ESTRITO
O Brasil, assim como outros países da América Latina, passou por um longo
período de ditadura militar desde o início da década de 1960.
Com a eclosão da Revolução Cubana em 1959, que abalou a influência
hegemônica dos Estados Unidos na América Latina, pacotes de ajuda econômica
foram lançados objetivando promover o desenvolvimento econômico em países
latino-americanos e ao mesmo tempo evitar que a nova configuração política de
Cuba servisse como exemplo para as outras nações (TOSI; SILVA, 2014).
Nessas circunstâncias o governo passou a robustecer a sua política frente
às ameaças comunistas desencadeando a eclosão do regime militar através de um
golpe de Estado. Os militares envolvidos no golpe justificavam as suas ações
assentadas na ideia de combate à ameaça da ordem capitalista e da segurança
nacional. Mas não foram apenas os militares os responsáveis pelo golpe. A elite
política, os conservadores, a imprensa e os empresários também fizeram parte
deste movimento. Temos como exemplo a “Marcha da Familia com Deus pela
liberdade”, onde cerca de quinhentas mil pessoas foram às ruas para apoiar a
deposição de João Goulart.
Durante a ditadura militar diversos atos institucionais21(AI) foram decretados
buscando legitimar o estado de exceção no país, iniciando uma série de
perseguições políticas contra os que passaram a ser considerados subversivos
perante o regime então instaurado. Os cidadãos tiveram as suas liberdades e
direitos civis negados pelo Estado sendo os setores da oposição veemente
reprimidos pela lei de segurança nacional22.
21 Normas elaboradas no período de 1964 a 1969, durante o regime militar. Foram editadas pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional.22 A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva.
68
Os anos de chumbo foram inaugurados pela edição do Ato Institucional n°5
(DL 477/1969), que proclamou o fim do livre pensamento nas universidades e
bancos escolares, e da possibilidade organização e mobilização política dos
movimentos sociais. (SILVA, 2010). Marcou a realidade brasileira com práticas
sistematizadas de tortura, homicídio, perseguição política, prisão arbitrária,
ocultação de cadáveres, desaparecimentos forçados, incineração de corpos
humanos em usinas de cana de açúcar (COELHO, 2014) executadas nos porões do
Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI)23. Estima-se que no período de exceção,
pelo menos, 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos, além de ainda constar cerca de 140 desaparecidos políticos. (PNDH-3, 2010, p.173)
Conforme a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
(CEMDP) o Brasil foi o único país da América Latina que não trilhou procedimentos
penais para examinar as violações de direitos humanos cometidos sistematicamente
pelo Estado durante o período de ditadura militar, mesmo tendo oficializado, com a
lei 9.140/1995, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e
desaparecimentos forçados ocorridos neste período. Tudo isso devido à
obstaculização criada pela Lei de Anistia em 1979 que implantou a interpretação do
perdão de “dupla via”, concedendo benefícios recíprocos aos agentes estatais e aos
opositores políticos (BRASIL; CEMDP, 2007).
Foram vinte e um anos de governo comandado pelas Forças Armadas e
elites políticas que atuando sob o regime ditatorial institucionalizou praticas de
violações sistemáticas de direitos humanos que perduram até hoje, como por
exemplo, a tortura e as execuções sumárias praticadas pelas polícias. Não há
dúvida de que este período da história é uma zona cinzenta na qual restam muitos 23 O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) surgiu em janeiro de 1970 e atuou sob comando dos militares com respaldo financeiro das Polícias Estaduais. Somente no estado de São Paulo, o departamento contou com cerca de 250 agentes, com parte desse efetivo composto por militares. Normalmente, militantes políticos, após serem capturados pelas forças de repressão, seguiam para esse local, onde sofriam sessões de tortura durante interrogatório: “Em cada jurisdição territorial, os DOI-CODIs passavam a dispor do comando efetivo sobre todos os organismos de segurança existentes na área, sejam as Forças Armadas, sejam das polícias estaduais e federal.” Além do DOI-CODI, a repressão política contou também na sua estrutura com o Departamento de Ordem Política e Social. (Comissão Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 74)
69
fatos a serem revelados. Deste modo abordaremos adiante o processo de Justiça de
Transição brasileiro.
1.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTIÇA CERCEADA
A Lei de Anistia foi o marco inicial da justiça de transição brasileira. Foi
promulgada durante o governo do presidente João Baptista Figueiredo para reverter
punições pautadas nos Atos Institucionais dos opositores políticos. Por ela, ficava
extinta a punibilidade a todos os que haviam cometido crimes políticos ou conexos
com estes, garantindo o retorno dos exilados ao País, o restabelecimento dos
direitos políticos e a volta ao serviço de militares e funcionários da administração
pública, excluídos de suas funções durante a ditadura.
Apesar do movimento em busca da anistia24 já existir desde o início da
ditadura, esta se fortaleceu entre 1974 e 1975 através de um intenso processo de
mobilização da sociedade civil, em especial o liderado por mães, esposas e
familiares de desaparecidos, presos e exilados políticos. Em fevereiro de 1978 o
Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) - composto por advogados, estudantes,
militantes de partidos e organizações de esquerda, familiares de presos e de mortos
e desaparecidos, setores progressistas da Igreja Católica, grupo dos parlamentares
autênticos no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), jornalistas, professores, e
intelectuais - foi fundado para coordenar as ações na luta pela anistia, defendendo o
perdão imediato dos presos e perseguidos políticos, o fim das torturas, a volta de
todos os exilados, cassados e banidos políticos, além do esclarecimento a respeito
dos desaparecidos políticos e a revogação da Lei de Segurança Nacional
(MEZAROBBA, 2006).
24 O primeiro a reclamá-la foi Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde. Em dezembro de 1964, durante entrevista a uma emissora de rádio carioca, o escritor católico apelou por anistia ao presidente Castello Branco. Em seguida foi a vez do general Pery Constant Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar (STM), defender a adoção do expediente. Em 1967, um manifesto da Frente Ampla, organizada por líderes da oposição como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, pediria "anistia geral, para que se dissipe a atmosfera de guerra civil que existe no país”.
70
A luta era por uma transição “ampla, geral e irrestrita”25. Nesta primeira fase
se buscava o resgate das liberdades públicas civis e políticas (ABRÃO; TORELLY,
2015), organizando os movimentos de oposição em torno de uma plataforma de
lutas democráticas que almejava o reestabelecimento da democracia, a volta do
Estado de Direito e principalmente, o reconhecimento e respeito aos direitos
humanos. Para esses militantes, não era aceitável uma anistia que pactuasse com o
regime, que não fosse um instrumento de justiça e que não trouxesse garantias
realmente democráticas para todos. Deste modo a anistia deveria se pautar no
reconhecimento de mortes e desaparecimentos, na responsabilização dos agentes
de Estado e na não reciprocidade. Neste contexto foram elaborados dois projetos de
Lei de Anistia, um projeto elaborado pelo regime militar e o outro projeto de iniciativa
popular.
Apesar da ampla mobilização popular e a elaboração de um projeto de
anistia visando estes propósitos, o projeto aprovado foi o elaborado pelo regime
militar. Com a Lei 6.683/1979 – Lei de Anistia – foi estabelecida uma abertura
política “lenta, gradual e segura” na qual se promoveu uma reciprocidade do perdão
e esquecimento. Isso porque não havia nenhum interesse do governo em promover
rupturas com o passado que pudessem geram um movimento de revanchismo
contra os agentes de estado. A votação da Lei de Anistia ocorreu em um Congresso
Nacional composto majoritariamente por políticos que apoiavam a ditadura militar –
os chamados “senadores biônicos”26 - sendo afastada a ampla participação e o
anseio da sociedade.
A anistia beneficiou mais de cem presos políticos e permitiu o retorno de
cento e cinquenta pessoas banidas e duas mil exiladas ao país (CNV, 2014). Mas
nem todos foram beneficiados pela anistia. Presos que estavam detidos por crimes
25 “Enquanto em países como a Argentina e Chile a anistia foi uma imposição do regime contra a sociedade, ou seja, uma explícita autoanistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se referia originalmente aos presos políticos, tendo sido objeto de manifestações históricas que até hoje são lembrada. É preciso ressaltar que a deturpação da lei de anistia de 1979 para abranger a tortura perpetrada pelos agentes de Estado jamais fez parte dos horizontes de possibilidades da sociedade civil atuante à época, até mesmo porque a tortura não era uma prática reconhecida oficialmente e seu cometimento não era visível publicamente em razão da censura aos meios de comunicação” (ABRÃO; TORELLY, 2010, p.30).26 Senadores e governadores eleitos indiretamente ficaram conhecidos como “biônicos”. O termo era uma referência ao seriado de televisão O Homem de Seis Milhões de Dólares, que fazia muito sucesso na época. O personagem principal da produção norte-americana, exibida então pela TV Bandeirantes, havia sido mutilado em um acidente e teve o corpo reconstituído por meio de implantes “biônicos”. Como não eram escolhidos por voto popular, governadores e senadores "biônicos" eram considerados um artifício para interferir nos rumos políticos do país (PAGANINE, 2017).
71
de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal não foram beneficiados,
mantendo-se presos até a alteração da Lei de Segurança Nacional em 1983.
Desta forma se ignorou todo o contexto no qual a ditadura militar se
instaurou, onde os revolucionários foram aqueles que lutaram contra um regime
ilegítimo imposto a partir de falsos discursos de promoção da democracia. Os
revolucionários foram vítimas, e não os algozes. Na anistia, estes não foram
apresentados como “partidários de um movimento ostensivo” (BORGES, 2012,
p.72), mas sim, como terroristas que seriam finalmente perdoados por terem
cometidos os crimes contra o Estado. Verifica-se, portanto, que o processo de
transição para a democracia ocorrendo de forma controlada pelo regime repressor,
além de corroborar para a manutenção da prisão de vários resistentes ao excluir os
chamados “crimes de sangue”, implantou na conjuntura social uma Lei de anistia
“amnésia”, porque se o Estado estava disposto a esquecer todos os crimes
cometidos contra este, então todos deveriam esquecer os atos de Estado.
Da ausência de ruptura entre o regime ditatorial para o regime democrático
insurgiu a ideia de um acordo que promovesse a reconciliação nacional. Este
posicionamento fica claro quando atualmente vemos as decisões dos ministros em
relação a esta parte da história brasileira, como a interpretação realizada pelo
Supremo Tribunal Federal na ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n° 153 na qual reafirmou a validade da lei de anistia desconsiderando todo o
contexto no qual este período ocorreu, ignorando toda construção internacional que
ocorre em torno da proteção dos direitos humanos no qual crimes contra a
humanidade são imprescritíveis e, portanto leis que buscam manter tal impunidade
são inválidas.
A transição pautada no esquecimento dos fatos retirou das vítimas a
possibilidade de decidir quando e como poderiam de fato perdoar, ou não, todas as
atrocidades cometidas contra elas e seus familiares. O perdão foi imposto como um
“mal necessário” projetado para lidar com a violência contínua ou em massa
(PAYNE;ABRÃO;TORELLY, 2011) tornando-se moeda de troca para que
perseguidos pudessem retomar as suas vidas.
Cabe ressaltar que o perdão concedido pela Lei não partia da perspectiva das
vítimas para os seus agressores. Nesta interpretação eram os agressores quem
72
estavam perdoando os setores da sociedade que lutaram contra o regime militar. O
que se percebe é o propósito de “colocar no mesmo saco” aqueles que golpearam e
os que foram golpeados, o que não é nem jurídica e nem moralmente aceitável
(GENRO, 2009). Isso porque se formos comparar os agentes de estado com os
opositores, resta claro uma grande desproporcionalidade entre estes, mesmo
considerando o fato de que uma parte da oposição optou pela luta armada como
meio para combater o regime.
No caso brasileiro não há como se aplicar a ideia de que houve uma “guerra”
no qual então os dois lados precisam ser considerados (REIS, 2000), porque para
isto haveria a necessidade do combate ter corrido entre duas forças iguais, ou ao
menos parecidas, no qual ambas as partes possuem a capacidade de combate. O
que tivemos foi um aparato sistematizado utilizado pelo Estado para combater
estudantes, professores, políticos – sem distinção entre crianças, mulheres, idosos
ou o que for – como pudemos constatar nos relatórios elaborados pela Comissão da
Verdade. Apesar da existência de alguns movimentos de luta armada estas foram
facilmente trucidadas pelo aparato estatal. Um exemplo disto é o que aconteceu na
Guerrilha do Araguaia, fato pelo qual o Brasil foi condenado atualmente – em 2010 -
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Lei de Anistia representou o início da transição para a democracia, mas
pelo fato de ter sido uma transição controlada pelo regime militar e pela falta de real
ruptura entre um regime e outro, transformou-a em um grande obstáculo para a
concretização do pilar da justiça no processo de transição.
Atualmente o conceito de anistia está em disputa. Na década de 1960 a luta
era em busca da liberdade aos presos políticos e o restabelecimento do regime
democrático. Após a reabertura política do país a anistia passou a significar uma
espécie de impunidade dos agentes de estado haja vista as vítimas não
conseguirem processá-los pelos atos ocorridos na ditadura. Atualmente, a luta
encontra-se na adequação da interpretação da Lei de anistia à luz dos preceitos
internacionais, no qual a anistia não pode significar o esquecimento ou a
impunidade, a anistia é direcionada as vítimas, deve significar o reconhecimento de
que estas não devem ser punidas por terem lutado contra um regime repressor.
73
A anistia reverteu a punição de todos os cidadãos brasileiros que entre os
anos de 1961 e 1979 foram considerados criminosos pelo regime militar, ou seja,
opositores políticos e militares foram anistiados aos mesmo tempo. Isso porque os
partidários da ditadura viam os crimes cometidos pelos opositores como uma
autêntica guerra revolucionária. E havendo uma guerra, todos os lados devem ser
considerados (REIS, 2005, p.42)
1.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS POLÍTICOS
Com a restauração do estado de direito a nova constituição (1988) precisa
estabelecer regras de mutação. Através dos Atos Dispositivos Constitucionais
Transitórios (ADCT) se estabelece regras de transição entre o antigo ordenamento
jurídico e novo ordenamento instituído pelo poder constituinte originário, em outras
palavras, buscou-se a harmoniosa transição do regime constitucional anterior (1969)
para o novo regime constitucional (1988). Depois da Lei de Anistia de 1979 a
primeira oportunidade para que o Estado de Direito promovesse a reparação das
vítimas da ditadura foi a Constituição de 1988 (TOSI;SILVA, 2014) através das
disposições transitórias:
TÍTULO X - ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS
Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n.º 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto Lei n.º 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Veja que neste momento a Constituição Federal de 1988 apenas tratou de
assegurar o do reconhecimento da condição de anistiado político estendendo o
prazo da sua aplicação para o período de 18 de setembro de 1946 até a data da
promulgação da Constituição. Desta forma esta não se pronunciou sobre a
74
revogação ou reabertura da lei de anistia imposta pelo regime militar (TOSI;SILVA,
2014).
Através da persistência dos familiares27 de mortos e desaparecidos foi iniciado
o movimento da agenda política em busca de mudanças a respeito do silencio
implantado sobre os fatos da ditadura. Em dezembro de 1995 durante os governos
de Fernando Henrique Cardoso houve um grande processo de discussão entre
esses familiares, o Ministério da Justiça e o Poder Legislativo Federal em torno da
responsabilidade do Estado brasileiro pela morte dos opositores políticos do regime.
Isso porque em nenhum momento durante a ditadura e mesmo após o seu fim as
autoridades militares haviam reconhecido oficialmente a responsabilidade pelos atos
cometidos por seus agentes neste período28.
Em cumprimento a determinação contida no artigo 8º do ADCT foi aprovada a
Lei n.º 9.140/1995 no qual instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos. Sua finalidade foi proceder ao reconhecimento de pessoas mortas
ou desaparecidas em razão de graves violações de direitos humanos cometidos pelo
Estado, a localização de seus corpos, emitir parecer sobre os requerimentos
relativos à indenização devida aos familiares das vítimas.
1.3 O INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS
Após a concessão da Anistia no ano de 1979 e os desdobramentos por ela
causados, como a abertura política, os movimentos sociais e de direitos humanos
passaram por um momento de reorganização no campo político que promoveu o
fortalecimento da sociedade em relação a importantes conquistas para a
democracia. Em 1995, devido ao comprometimento da campanha eleitoral do
presidente Fernando Henrique Cardoso com as famílias das vitimas e a grande
pressão internacional em torno da questão, o Ministro da Justiça Nelson Jobim 27 Nesse período, a luta dos familiares ganhou notoriedade a partir da descoberta da vala de Perus, da conseqüente CPI da Câmara Municipal de São Paulo e da liberação dos arquivos do DOPS, através da promulgação da Lei 8.159/91. (SANTOS, 2008, p. 134). 28 “No final de 1973, D. Paulo Evaristo Arns começou a colecionar nomes e vestígios que documentassem uma lista de ‘desaparecidos’. (...) Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres sumiam sem deixar vestígios” (GASPARI, 2003, p.388).
75
informou que a causa dos desaparecidos políticos teriam reconhecimento do
governo. Um projeto de lei para a criação da comissão foi elaborado, porém não
atendia ao todo os pedidos dos familiares29 das vítimas em atendimento ao acordo
realizado com os militares (SANTOS, 2008).
Apesar de todas as críticas30 elaboradas pelos familiares das vítimas a
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP) em relação ao projeto de
lei proposto pelo governo a Lei 9.140/1995 foi aprovada, sendo o primeiro passo
para o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e
desaparecimento ocorridos na ditadura. Segundo o 1° da Lei 9.140/1995:
São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. (BRASIL, 1995).
O trabalho da Comissão iniciou logo após a edição da Lei 9.140/1995, sendo
composta por sete membros indicados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso,
pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, pelas Forças Armadas, pelo
Ministério Público Federal e pela Comissão de Familiares.
Conforme artigo 4° da referida lei cabe à Comissão averiguar o caso de
pessoas:
a) desaparecidas;b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas;c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público; d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público; (BRASIL, 1995)
29 “Segundo Nilmário Miranda: eles concordavam com as nossas emendas, mas depois veio a orientação de que não podia mexer, que tinha um acordo com os militares, onde a lei não poderia ser mexida”. (SANTOS, 2008, p. 142). 30 1.Esclarecimento detalhado (como, onde, porque e por quem) das mortes e dos desaparecimentos ocorridos. 2. Reconhecimento público e inequívoco pelo Estado de sua responsabilidade em relação aos crimes cometidos. 3. Direito de as famílias enterrarem condignamente seus entes queridos, visto caber ao Estado, e não a elas, a responsabilidade pela localização e identificação dos corpos. 4. Inversão do ônus da prova: é dever do Estado, e não dos familiares, diligenciar as investigações cabíveis, buscando provar não ser ele o responsável direto pelos assassinatos. 5. Abertura incondicional de todos os arquivos da repressão sob jurisdição da União. 6. Compromisso de não nomear e de demitir de cargos públicos todos os envolvidos nos crimes da ditadura. 7. Inclusão de todos os militantes assassinados por agentes do Estado no período de 1964 a 1985. 8. Indenização como direito e, principalmente, efeito de todo o processo de luta. (SANTOS, 2008, p.142)
76
Da promulgação desta lei foram reconhecidos imediatamente como
desaparecidos políticos 136 pessoas baseado dossiê dos mortos e desaparecidos
políticos31, elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
Políticos, e que havia sido entregue ao Ministro da Justiça Nelson Jobim. A partir de
então inaugurou o ciclo de trabalhos realizados pela Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos em conjunto com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República.
Durante a sua primeira etapa apreciou 480 pedidos de reparação e
reconhecimento Entre estes, 362 foram deferidos, ou seja, as causas ou
circunstâncias de morte ou desaparecimento por força do arbítrio instalado e
perpetrado pela ditadura militar (1964-1985), pelo Estado ou por seus agentes,
foram oficialmente reconhecidas. Destes, 136 constaram do anexo da Lei nº
9.140/95. Os outros 118 foram indeferidos. (CEMDP, 2007).
Do reconhecimento da responsabilidade do Estado foi garantida a
indenização reparatória calculada a partir da expectativa de vida de cada um dos
mortos e desaparecidos, ou seja, o pagamento de valor único igual a três mil reais
multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de sobrevivência
do desaparecido no qual foi estabelecido em uma tabela própria anexa a Lei. Esta
reparação somente foi regulamentada em 2002 pela Lei 10.559/2002.
Da mesma forma que a Lei de Anistia de 1979 não abordou sobre a
possibilidade de punições aos agentes do Estado a lei que criou a Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos também não, recebendo inúmeras críticas dos
familiares das vítimas que se viam impossibilitados de buscar a punição dos agentes
do Estado.
Porém o trabalho da Comissão Especial trouxe um grande avanço na
construção da verdade e da memória no processo de transição. Na primeira etapa
de seus trabalhos, encerrada em 2006, concluiu a fase de analise, investigação e
julgamento dos processos relativos aos casos de mortos e desaparecidos. Em 2007
durante o segundo mandato do Presidente Lula foi publicada a obra “Direito à
memória e à Verdade”32 no qual relatou todos os casos averiguados pela Comissão
31 Para saber mais acessar o “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964”, disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/dossiers/dh/br/dossie64/br/dossmdp.pdf32 Obra disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/a_pdf/livro_memoria1_direito_verdade.pdf
77
Especial ao longo de onze anos sinalizando a busca do sentimento de reconciliação
e os objetivos humanitários que a movem, registrando-os para os anais da história.
A partir do fechamento desta primeira etapa, a Comissão Especial de Mortos
e Desaparecidos Políticos, iniciou em setembro de 2006, a coleta de material
genético de familiares de desaparecidos políticos para a criação de um banco de
DNA que irá ajudar na identificação de possíveis corpos ainda a serem encontrados,
e ainda, em consonância com o disposto no inciso II do Artigo 4° da Lei 9.140/1995,
se comprometeu “a sistematizar informações sobre a possível localização de covas
clandestinas nas grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento de
militantes na área rural”. (VANNUCHI; BARBOSA, 2007, p. 17).
Outro fato importante para o processo de transição brasileiro ocorreu em 2001
com a Medida Provisória n° 2151-3 que criou a Comissão da Anistia do Ministério da
Justiça - sendo reeditada pela Medida Provisória n° 65/2002 e convertida em Lei
10.559/2002 em 13 de novembro de 2002 – finalmente regulamentando o direito
previsto no artigo 8° ADCT. Além de prever direitos como a declaração de anistiado
político, a reparação econômica, a contagem do tempo e a continuação de curso
superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior, instituiu a
Comissão de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça, para a apreciação e
julgamento dos requerimentos de anistia e exame de requerimentos de reparação
econômica.
1.4 A ELABORAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH)
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) surgiu através do
compromisso assumido pelo Brasil durante a 1° Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos (Convenção de Viena) ocorrida em junho de 1993. Esta conferência
buscou reafirmar o empenho de todos os Estados em cumprirem as suas obrigações
quanto à promoção, proteção e respeito aos direitos humanos e liberdades
individuais dispostos na Carta das Nações Unidas ensejando a cooperação
internacional para percorrer esse fim.
78
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a lançar um programa nacional
para direitos humanos. Em meio ao massacre a trabalhares rurais sem terra,
ocorrido durante uma operação realizada pela Polícia Militar em Eldorado dos
Carajás no Pará, o governo de Fernando Henrique Cardoso lançou em 1996 o
Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-I) através do Decreto
1.904/1996. Este foi elaborado a partir de ampla consulta à sociedade, de
organizações não-governamentais (ONG’s), universidades e centros de pesquisa no
qual algumas dezenas de entidades e centenas de pessoas formularam sugestões e
críticas, participaram de debates e seminários. (PINHEIRO;NETO, 1997).
Nas palavras do então Presidente Fernando Henrique Cardoso o objetivo das
propostas elaboradas neste importante documento são,
[...] estancar a banalização da morte, seja ela no trânsito, na fila do pronto socorro, dentro de presídios, em decorrência do uso indevido de armas ou das chacinas de crianças e trabalhadores rurais. Outras recomendações visam a obstar a perseguição e a discriminação contra os cidadãos. Por fim, o Programa sugere medidas para tornar a Justiça mais eficiente, de modo a assegurar mais efetivo acesso da população ao Judiciário e o combate à impunidade (PNDH-1, 1996, p.2)
O PNDH-1 enfatizou a atenção aos direitos civis e políticos. Para tanto contou
com duzentas e vinte e oito propostas de ações governamentais voltadas à
integridade física, liberdade, cidadania e discriminação, afirmando a importância da
proteção aos direitos humanos e que estes devem ser protegidos em todos os
Estados e nações (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).
Dentre as propostas de ações governamentais estão:
i. Políticas públicas para proteção e promoção dos direitos humanos no
Brasil: Proteção do direito à vida e liberdade;
ii. Proteção do direito a tratamento igualitário perante a Lei;
iii. Educação e cidadania como bases para uma cultura de direitos humanos;
iv. Ações internacionais para a proteção e promoção de direitos humanos:
ratificação de atos internacionais, implementação e divulgação de atos
internacionais, apoio a organizações e operações de defesa de direitos
humanos; implementação e monitoramento do PNDH;
Trata-se, portanto, de um quadro referencial para a concretização das
garantias do Estado de Direito em uma ação conjunta entre o Estado e a
79
comunidade, transformando indivíduos e coletividades em beneficiários das
garantias e da proteção do direito internacional dos direitos humanos. Da mesma
forma garantiu o acesso o organismos internacionais para a proteção nos sistema
global (Organização das Nações Unidas – ONU) e regional (Organização dos
Estados Americanos – OEA).
Apesar de não dispor sobre os mecanismos de incorporação das propostas
nos instrumentos de planejamento e orçamento brasileiro e a maior parte das suas
propostas se colocarem de maneira pouco afirmativa (CICONELLO;PIVATO;FRIGO,
2009), o PNDH-I significou um importante instrumento na construção da verdade e
da memória (PNDH-II, 2002):
i. Houve o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão
de participação política (Lei nº 9.140/95), onde o Estado brasileiro
reconheceu a responsabilidade por essas mortes e concedeu indenização
aos familiares das vítimas;
ii. A transferência da justiça militar para a justiça comum dos crimes dolosos
contra a vida praticados por policiais militares (Lei 9.299/96), que permitiu
o indiciamento e julgamento de policiais militares em casos de múltiplas e
graves violações como os do Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos
Carajás;
iii. A tipificação do crime de tortura (Lei 9.455/97), que constituiu marco
referencial para o combate a essa prática criminosa no Brasil; e a
construção da proposta de reforma do Poder Judiciário, na qual se inclui,
entre outras medidas destinadas a agilizar o processamento dos
responsáveis por violações, a chamada ‘federalização’ dos crimes de
direitos humanos.
Em 2002 foi lançado o PNDH-II por meio do Decreto 4.229/2002. Neste
sentindo ofereceu a oportunidade de fazer um balanço dos progressos alcançados
desde 1996, das propostas de ação que se tornaram programas governamentais e
dos problemas identificados até então. A ênfase neste momento foi a atenção aos
direitos econômicos, sociais e culturais, sendo então incorporadas ações como,
direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à
moradia, a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim
80
como propostas voltadas para a educação e sensibilização de toda a sociedade
brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de respeito aos
direitos humanos (PNDH-II, 2002).
Uma importante novidade foi criação de novas formas de acompanhamento e
monitoramento das ações contempladas no PNDH, por meio da relação entre a
implementação do programa e a elaboração dos orçamentos nos níveis federal,
estadual e municipal (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).
Em 2008, ocorreu um grande debate nacional na 11° Conferência Nacional de
Direitos Humanos sobre quais seriam as prioridades que o Estado brasileiro deveria
assumir ao longo dos próximos anos de modo a dar mais efetividade ao PNDH.
Foram realizados debates em todos os vinte e sete estados da federação, com mais
de quatorze mil participantes (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).
Em 2009, por meio do Decreto 7.037/2009, foi lançado o PNDH-3. A terceira
versão do Programa Nacional de Direitos Humanos gerou grande polêmica entre a
sociedade, o Estado e os militares. Isso porque no Eixo Orientador VI reconheceu o
direito à memória e à verdade como direito humano da cidadania e dever do Estado.
Estabeleceu na Diretriz 23 o objetivo de promover a apuração e esclarecimento
público das violações de direitos humanos praticadas durante a repressão política no
período fixado no artigo 8° do ADCT.
Para tanto foi proposta a criação de uma “Comissão da Verdade e
Justiça”. Esta questão gerou grande polêmica visto que os militares entenderam que
a criação de uma comissão desta forma animaria espíritos revanchistas. A
assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas de demissões do
ministro da Defesa e de Comandantes das Forças Armadas como forma de
pressionar o governo a suprimir a própria criação dessa comissão. As negociações a
respeito da Comissão da Verdade perduraram até 2011 quando então a Lei
12.528/2011 finalmente criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O PNDH-3 ainda previu questões importantes à mudança da cultura de
esquecimento que restou com a transição política no Brasil. Na Diretriz 24
estabeleceu a preservação da memória histórica e a construção pública da verdade,
e na Diretriz 25, a modernização da legislação relacionada com a promoção do
direito à memória e à verdade como meio de fortalecer a democracia.
81
Deste modo o PNDH-3 (2009) previu as seguintes ações programáticas:
1. Designou Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do
Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de
2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade no qual esta
comissão teria ação em conjunto com o Arquivo Nacional, Comissão da
Anistia; Comissão Especial criada pela Lei 9.140/95, Comitê interinstitucional
de Supervisão, e o Grupo de Trabalho instituído pela Portaria n° 567/2009 do
Ministro da Defesa;
2. Financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão
política, em todos os estados, com projetos de valorização da história cultural
e de socialização do conhecimento por diversos meios de difusão;
3. Criação de Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o
Congresso Nacional, iniciativas de legislação propondo: revogação de leis
remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos
Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações; revisão
de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos
Humanos em geral e no direito à memória e à verdade.
Este ultima ação programática no qual foi proposta a revogação de leis
remanescentes do período de 1964 a 1985 resultou na Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) n°153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) em 2008 no qual iremos abordar mais adiante.
1.5 EIXO DA REPARAÇÃO: COMISSÃO DA ANISTIA
A Comissão da Anistia iniciou as suas atividades através da medida provisória
2.151-3/2001, posteriormente convertida na Lei 10.559/2002, regulamentando o
direito a reparação dos perseguidos políticos estabelecido no artigo 8° do ADCT. É
um órgão vinculado ao Ministro da Justiça, tendo por finalidade examinar e apreciar
os requerimentos de anistia possibilitando a concessão da anistia e reparação
econômica.
82
É composta por no mínimo vinte Conselheiros designados mediante portaria
do Ministro de Estado da Justiça no qual prestam serviço de relevância social sem
qualquer tipo de remuneração, verificando todos os casos ocorridos entre 18 de
setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988.
Desde o inicio do seu funcionamento até 2007 a Comissão de Anistia recebeu
mais de cinquenta e sete mil requerimentos dos quais vinte e nove mil foram
apreciados, concluindo em 2016 a apreciação dos processos em primeiro grau
(GENRO; ABRÃO, 2009).
A declaração de condição de anistiado político foi direcionada às pessoas que
por motivação exclusivamente política:
Art. 2° . São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram: I. atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção na plena abrangência do termo; II. punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência; III. punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas; IV. compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o cônjuge; V. impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica no S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e no S-285-GM5; VI. punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes o' ciais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (BRASIL, 2002, p.1)
As pessoas declaradas anistiadas políticas passaram a ter o direito a dois
tipos de indenização. A primeira é a reparação econômica em prestação única no
valor de trinta salários mínimos por ano de perseguição econômica, observados o
teto legal de cem mil reais, dirigido aos perseguidos políticos que não puderem
comprovar vínculos com a atividade laboral como, por exemplo, estudantes,
profissionais autônomos, etc. A segunda é a prestação mensal permanente e
continuada. Esta é dirigida a aqueles que comprovarem o vinculo laboral
interrompido à época da perseguição. O valor é estabelecido de acordo com as
provas oferecidas pelo requerente. Nesse sentido a grande dificuldade da Comissão
de Anistia para a efetivação do direito à reparação foi a assimetria existente entre os
valores reparatórios percebidos por diferentes anistiados durante o período anterior
à criação da Comissão da Anistia. Até 2009 a Comissão da Anistia havia concedido
83
a declaração de anistiado a mais de trinta mil pessoas, concedendo algum tipo de
reparação econômica a pelo menos dez mil pessoas (GENRO; ABRÃO, 2009)
Apesar de ser uma comissão de reparação a atuação da Comissão da Anistia
possibilitou a mudança na concepção de anistia como esquecimento, pois a
concessão da condição de anistiado político requereu uma ampla apresentação de
documentos e narrativas sobre os fatos ocorridos nas sessões de julgamento
promovidas por esta comissão. Ainda como meio de promover à memória e a
verdade desde 2007 a Comissão passou a promover projetos de educação,
cidadania e memória deslocando, através do projeto Caravanas da Anistia, as
sessões de apreciação dos pedidos aos locais onde ocorreram as violações de
direitos humanos. Entre os anos de 2008 e 2011 ocorreram cinquenta Caravanas da
Anistia percorrendo o Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Curitiba, Caxias do Sul,
Belo Horizonte, Salvador, Maceió, Brasília, e demais cidades do Brasil.
Uma das Caravanas que podemos destacar foi a Caravana do Araguaia. No
dia 17 de junho de 2009, a Comissão de Anistia julgou os processos de camponeses
que foram perseguidos pelo exército brasileiro durante a Guerrilha do Araguaia
(SILVA, 2010). Conforme afirma Silva:
A instrução desses processos foi algo muito difícil, visto que até a edição da Lei 9.140/95 o Estado brasileiro não admitia a ocorrência da Guerrilha, refletindo o forte empenho dos militares em varrer da história do país um exemplo de resistência de tão grandes dimensões. Assim, ao contrário das demais perseguições políticas empreendidas, como no caso das guerrilhas urbanas, por exemplo, não vieram à tona documentos oficiais produzidos sobre o episódio. O que se tem são apenas alguns relatórios até hoje não admitidos pelas Forças Armadas e que já foram objeto de reportagens e livros. (SILVA, 2010, p.216).
Então para poder averiguar os acontecimentos a prova testemunhal assumiu
um ponto central. Foram promovidas audiências abertas ao publico, as histórias
contadas foram compiladas e disponibilizadas no Memorial da Anistia.
Documentários, exposições artísticas e fotográficas, palestras, musicias, restauração
de filmes, preservação de acertos, locais de memória, produções teatrais e materiais
didáticos foram constantemente fomentados. Deste modo promoveu além da
reparação individual às vítimas, a reparação coletiva na medida em que permitiu que
a sociedade pudesse conhecer os fatos ocorridos durante a ditadura militar no
Brasil.
84
2 A ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
O fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição de 1988
anunciaram novos caminhos para a sociedade brasileira em relação à proteção dos
direitos humanos. A ideia de direitos humanos, diretamente ligada à necessidade de
proteção as ingerências do Estado e de seus agentes, tornou-se tema central
introduzindo um “indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e
direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira”
(PIOVESAN, 2013, p.84).
Os direitos e garantias fundamentais passaram a ser o suporte axiológico de
todo o sistema jurídico sustentando a noção de estado democrático de direito. Deste
modo, as relações fundamentadas no princípio da prevalência dos direitos humanos
passaram a reforçar o reconhecimento do Estado brasileiro da existência de limites e
condicionamentos à noção de soberania estatal transformando todo o arcabouço de
suas regras jurídicas.
Fundamentado neste princípio os principais tratados de proteção aos direitos
humanos, como, os Pactos das Nações Unidas sobre direitos humanos, a
Convenção contra a Tortura e a Convenção sobre os Direitos da Criança, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura, dentre outros, passaram a ser aderidos pelo Brasil
ocasionando também no reconhecimento da jurisdição de vários mecanismos
internacionais judiciais para sua efetivação. Conforme André de Carvalho Ramos,
Dentre esses mecanismos estão o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, de Comitês diversos de tratados internacionais de direitos humanos, do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, do Tribunal permanente de Revisão do Mercosul, demonstrando como o Brasil avançou no trato do Direito Internacional (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175).
Segundo este autor a existência desses tribunais internacionais contribuiu
para que o “truque de ilusionista” perante o plano internacional pudesse ser
combatido através da fiscalização e controle das condutas dos Estados. Isto porque
no campo dos direitos humanos “era fácil o ilusionismo” no qual era possível que um
Tribunal Superior invocasse as garantias processuais penais à luz da Convenção
85
Americana de Direitos Humanos sem que citasse um precedente de interpretação
desta Corte (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175). Portanto, passou a ser afirmada a
necessidade da jurisdição internacional e a nacional a dialogarem entre si, afirmando
uma relação de interdependência entre estes sistemas.
Neste sentido Mazzuoli esclarece que o principio do domestic affair (ou da
não ingerência) evoluiu para o princípio do international concern, ou seja, o gozo dos
direitos e garantias fundamentais pelos cidadãos passou a ser uma questão de
direito internacional, não cabendo apenas aos juízes internos exercer essa proteção.
Em suas palavras, “estes últimos já não tem mais a última palavra quando se trata
de amparar um direito humano ou fundamental” (MAZZUOLI, 2011, p. 56).
A Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa
Rica (1969) – foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto 678 de 6 de novembro de 1992,
sendo a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão
internacional responsável pela aplicação e interpretação da convenção, somente
reconhecida após a aprovação, no Congresso Nacional, do Decreto Legislativo n°
89, de 3 de dezembro de 1998. A promulgação deste reconhecimento pelo Poder
Executivo ocorreu com o Decreto 4.463 de 08 de novembro de 2002, afirmando ser
“obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado” a competência da Corte
Interamericana para os fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José da Costa
Rica, é um órgão judicial internacional autônomo do sistema da Organização dos
Estados Americanos (OEA) que dispõe de competência contenciosa e consultiva
podendo conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das
disposições da Convenção Americana sobre Direitos humanos.
No plano consultivo exerce o seu papel de interprete ultima da Convenção
Americana emitindo pareceres que devem ser respeitados pela jurisdição nacional
no exercício do controle de convencionalidade. No plano jurisdicional, a Corte
Interamericana realiza o julgamento de casos relacionados aos Estados-partes da
Convenção Americana, que por força do artigo 62 da Convenção reconheceram
expressamente a sua competência.
A Corte Interamericana, na sua atuação, exerce o controle de
convencionalidade das leis apreciando a compatibilidade dos dispositivos internos –
86
inclusive as normas constitucionais originárias – com os textos internacionais de
direitos humanos. Este controle também deve ser exercido internamente, pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) e os juízos locais, zelando pelo cumprimento dos
dispositivos convencionais e depurando as normas nacionais que conflitem com as
normas internacionais de proteção aos direitos humanos (CARVALHO RAMOS,
2011).
Porém, a ratificação e incorporação de um tratado internacional de direitos
humanos pelo Estado nem sempre significa o efetivo diálogo entre as jurisdições
nacionais e internacionais. Um exemplo disso é a decisão proferida pelo STF na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 e a posterior
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e
outros Vs. Brasil, ambas proferidas em 2010.
Desta forma, analisaremos neste tópico, o posicionamento do STF e o da
Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito da interpretação da Lei de
Anistia e os principais impactos desses entendimentos para a justiça de transição
brasileira.
2.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008
Em 2008, a Comissão de Anistia, apoiada por mais de 30 entidades
internacionais de diretos humanos, promoveu uma audiência pública para discutir
sobre os limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes
violadores de direitos humanos durante o estado de exceção no Brasil (PAYNE,
ABRÃO, TORELLY, 2011), recolocando em pauta o questionamento sobre o alcance
e a interpretação da Lei de Anistia (L. 6.683/1979).
Como fruto dessa discussão, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil promoveu no mesmo ano a Arguição de Descumprimento de Preceito
87
Fundamental (ADPF) n° 153 questionando a anistia oferecida aos representantes do
Estado – policiais e militares – que praticaram os crimes de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro, e
atentado violento ao pudor contra os opositores políticos ao regime militar.
Na respectiva ADPF 153 a OAB afirmou não ser possível, consoante o texto
da Constituição do Brasil, considerar válida a interpretação segundo o qual a Lei n.
6.683 teria anistiado vários agentes públicos responsáveis pelos delitos acima
citados, sendo tal entendimento violador de vários preceitos fundamentais da
Constituição. Deste modo afirmou que o dispositivo legal foi “redigido
intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir sub-repticiamente, no âmbito da
anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns
contra os opositores políticos” (BRASIL, 2008, p. 9), não podendo ser aceita pela
nova ordem constitucional que preza pelo Estado de Direito e proteção aos direitos
humanos.
Invocando os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5°,
caput), direito à verdade (art. 5° XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art.
1°, parágrafo único) e da dignidade da pessoa humana (art.1°, III), a OAB contestou
o § 1° do artigo 1° da Lei 6.683/1979 que considera conexos os crimes de “qualquer
natureza” relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política
durante a ditadura militar.
Deste modo, a previsão do §1° do art. 1° da Lei 6.683/1979 operou no
esvaziamento do conceito da anistia como perdão somente aos crimes efetivamente
políticos, fazendo valer no nosso ordenamento uma forma de “anistia-amnésia”,
onde os atos da resistência e os atos dos agentes de Estado foram colocados no
mesmo pacote, distorcendo o conceito de crimes políticos, e o alcance dos crimes
conexos a estes, no momento em que estendeu a aplicabilidade da lei a crimes
comuns e aos crimes contra a humanidade (SANTOS, 2016).
O crime político seria um delito próprio que exige que, tanto a motivação,
quanto o bem jurídico tutelado, seja necessariamente político. Ainda, são crimes que
devem provocar uma situação de ofensa real ou potencial a integridade territorial e à
soberania nacional. Em contrapartida, o crime de motivação política é um crime
político impróprio, ou seja, embora apresente uma lesão jurídica de índole comum,
88
causa um dano potencial ou abstrato ao Estado. Os crimes conexos a estes são
infrações penais dependentes do delito principal, entendido como infrações
cometidas para realizar ou ocultar o proveito, ou impunidade, do delito principal
(SANTOS, 2016).
Dentre os principais crimes praticados pelos agentes de estado durante a
ditadura militar enquadram-se a usurpação do poder e destituição do governo eleito
democraticamente, homicídio, ocultação de cadáver, sequestro, cárcere privado,
tortura, violência arbitrária, abuso sexual e estupro, prisão arbitrária, abuso de
autoridade, extravio ou inutilização de documento, desaparecimento forçado de
pessoas, corrupção passiva, crime de extermínio e crime de genocídio. Ou seja, os
crimes cometidos pelos agentes de estado contra os opositores políticos não
afetaram a integridade do Estado ou a soberania nacional, mas sim, foram crimes
cometidos em nome do Estado para assegurar a permanência do regime ditatorial
então implantado.
Isto fez com que a anistia perdesse sua característica – estar vinculada aos
crimes políticos – para se tornar uma medida de ordem subjetiva e pessoal,
aplicando-se inclusive a crimes comuns e perpetuando a impunidade.
Segundo Carvalho Ramos (2011) entre os precedentes internos que
aplicaram a citada lei da anistia está o homicídio do jornalista Vladimir Herzog
ocorrido nas dependências do DOI/CODI de São Paulo em outubro de 1975. A
tentativa de persecução penal dos responsáveis pela sua morte foi proposta pelo
Ministério Público de São Paulo que, em 1992, requisitou a abertura de inquérito
policial para apurar as circunstancias do homicídio, refutando a versão oficial de que
o jornalista havia se suicidado nas dependências do Destacamento. No entanto, o
Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o trancamento inquérito policial por
considerar que tais atos ilícitos foram anistiados pela Lei 6.683/197933.
Os crimes cometidos pelos agentes de Estado não se encaixam no conceito
de crimes políticos, crimes por motivação política e muito menos de crimes conexos
a estes. Portanto, para a OAB seria irregular estender a anistia aos agentes de
Estado. O objetivo da respectiva ADPF n°153 não buscou declarar a nulidade da Lei
de Anistia, mas sim, obter o posicionamento do STF de que esta lei deveria ser
33 TJSP, HC 131.798.3/4-01, j. 13.10.1993.
89
interpretada conforme a Constituição de 1988, declarando que a anistia concedida
não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de estado.
Portanto a procedência da ação proposta pela OAB “afastaria um dos
principais argumentos a favor da continuidade da impunidade dos agentes de
repressão: a de que eles foram anistiados” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 180).
Porém, o STF decidiu em 2010 pela improcedência da ação afirmando que a
interpretação da ADPF 153 é compatível com a Constituição de 1988. Acontece que
a interpretação concedida a Lei de Anistia operou em “um esvaziamento do conceito
de anistia enquanto perdão geral, predominando a anistia enquanto esquecimento
juridicamente comandado” corroborando para que esta continuidade da impunidade
continue vigorando (SANTOS, 2016, p. 163). Vejamos um trecho do voto do Ministro
Relator Eros Grau:
A inicial ignora no momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autentica batalha. Toda a gente que conhece a nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei n°6.683/79. A procura dos sujeitos da História conduz à incompreensão da História. É expressiva uma visão abstrata, uma visão intimista da História, que não se reduz a uma estática coleção de fatos desligados uns dos outros. Os homens não podem fazê-la senão nos limites materiais da realidade. Para que a possam fazer, a História, hão de estar em condição de fazê-la. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu, resultam fustigados os que manifestam politicamente em nome dos subversivos, inclusive a OAB de hoje contra a OAB de ontem (STF, 2010, p.21).
Podemos verificar que esta análise carrega um discurso fortemente
conservador e de caráter histórico e político, prevalecendo a perspectiva da anistia
como um pacto que não poderia ser mexido sem que se comprometesse a
estabilidade democrática. Para este “romper a boa fé dos atores sociais e os anseios
das diversas classes e instituições políticas” significaria prejudicar o “acesso à
verdade histórica” (STF, 2010, p.21). O relator rejeitou todas as preliminares
arguidas pela OAB afirmando que a revisão da Lei de Anistia não caberia ao STF,
mas sim, ao Poder Legislativo. Para este “o Poder Judiciário não está autorizado a
alterar, a dar outra redação, diversa nele contemplada, a texto normativo” (STF,
2010, p. 58). Ainda, acrescentou que o acordo teria sido amplo viabilizando o
consenso entre a oposição e os agentes do regime militar.
90
No entanto, segundo relatório da Comissão de Anistia “o nome de cada
anistiado era publicado formalmente no Diário Oficial da União, ao passo que
nenhum agente da repressão política teve seu nome incluído nesses anúncios”
demonstrando que na verdade a anistia não incluía o perdão aos crimes cometidos
pelos Agentes de Estado (BRASIL;CEMDP, 2007, p. 31).
O voto do relator Ministro Eros Grau foi acompanhado pelos Ministros Carmen
Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio e Celso de Mello.
Conforme o entendimento do Procurador Regional da República Marlon
Weichert (2015) a respectiva decisão do STF enveredou por um caminho
inadequado na avaliação da validade da anistia aos agentes do Estado que
praticaram graves violações de direitos humanos. Ao tratar apenas dos fundamentos
históricos da lei e dos reflexos decorrentes da sua suposta interpretação, a Suprema
corte deixou de realizar o “indispensável juízo de constitucionalidade da norma
editada pela Lei 6.683/79, em face do parâmetro constitucional que vinculava a
atividade legislativa no momento do seu exercício” (WEICHERT, 2015, p. 120).
Explica o autor que, no exame do controle de constitucionalidade da Lei de
Anistia o parâmetro de análise a ser adotado deveria ter prestigiado a possibilidade,
ou não, da elaboração desta lei conforme a Constituição democrática de 1946. A
Constituição outorgada pelo regime militar em 1967, não serviria como paradigma
para esta análise. Isso porque “é incompreensível que se pretenda avaliar a validade
constitucional de uma norma legal sobre proteção de direitos fundamentais com a
utilização de um parâmetro decorrente de uma ordem jurídico-constitucional
outorgada por ditadores” que desde a sua implantação buscou socorrer-se
formalmente do direito como instrumento para legitimar os seus atos. Seguindo esta
lógica, as normas que tratam de assuntos diretamente ligados à sustentação do
regime de força, careceriam de legitimidade porque são incompatíveis com os
valores constitucionais de um Estado de Direito. Portanto, inclusive em matéria
penal, o intérprete constitucional não pode adotar como critério de valor para
aferição da validade material de uma norma infralegal de direitos fundamentais o
ordenamento constitucional outorgado pelos ditadores (WEICHERT, 2015).
Conforme afirma Weichert (2015, p. 124) “o Estado de Direito é quem fornece
os instrumentos para o combate à criminalidade. Fora desses limites, é o agente
91
público quem envereda pelo caminho do crime, praticando a violência arbitrária”. Por
este motivo, as anistias elaboradas como artifícios para a manutenção da
impunidade destes atos não poderiam prosperar. Seguindo este exame, a Lei de
Anistia de 1979 não passaria pelo filtro da constitucionalidade, pois o
reconhecimento da anistia aos excessos praticados pelos agentes da repressão,
além de ser incompatível com os princípios republicanos e do Estado de Direito,
ainda fere a autoridade do Estado de Direito, na medida a impunidade indica à
sociedade que o Estado pode praticar qualquer ato sem que este esteja adstrito às
consequências da Lei.
Já na perspectiva do direito internacional Carvalho Ramos segue a crítica
(2011, p. 183-185) tecendo algumas considerações sobre os votos desfavoráveis à
revisão da interpretação da Lei de Anistia. Para o autor o voto do relator, Ministro
Eros Grau, não considerou a Convenção Americana de Direitos Humanos, “que
poderia auxiliar a reflexão sobre a não recepção da interpretação de extensão da
anistia a agentes da ditadura”, realizando apenas a transcrição da opinião de Nilo
Batista que considera o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos
sobre a invalidade das leis de anistia um “fantasma” que pode ser afastado, pois, o
reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana pelo Brasil ocorreu apenas
em 1998. Neste sentido, o autor esclarece que há precedentes na jurisprudência da
Corte Interamericana “que reconhecem o caráter permanente de determinadas
violações de direitos humanos, sendo inútil a alegação de que os fatos ocorreram
antes do reconhecimento da jurisdição da Corte pelo Estado réu”.
Ainda, nenhuma palavra sobre o papel do Judiciário local e da aceitação da
jurisprudência da Corte Interamericana foi dita. Na ADPF 153 não houve a reflexão
“sobre a necessidade do judiciário brasileiro interpretar a lei de anistia conforme os
direitos humanos internacionais, preferindo remeter o problema ao nosso Poder
Legislativo”. No voto da Ministra Ellen Gracie, que acompanhou o voto do relator,
também “não houve a menção a dispositivo internacional dos direitos humanos”, e
ainda, parte a fundamentação colidiu com os precedentes internacionais sobre leis
de anistia ao afirmar que “a anistia foi o preço que a sociedade brasileira pagou para
acelerar o processo pacífico de redemocratização”. O voto do Ministro Celso de
Mello, que “desconsiderou a existência do direito internacional consuetudinário de
combate à impunidade dos violadores bárbaros de direitos humanos”, ainda afirmou
92
que o entendimento da jurisprudência internacional sobre leis de anistia seriam
aplicáveis somente a casos de leis de autoanistia, o que não seria o caso brasileiro
já que a transição foi fruto de um acordo político entre os dois lados (CARVALHO
RAMOS, 2011, p. 186-189).
Por outro lado, dois Ministros votaram pela procedência da ação, Ricardo
Lewandowski e Carlos Britto. Para Lewandowski há a ausência de conexão entre
crimes comuns praticados pelos agentes de Estado e os crimes políticos afirmando
a necessidade de afastar a incidência da Lei de Anistia.
O mesmo se diga quanto ao delito de tortura. Embora este crime tenha sido formalmente tipificado apenas a partir da Lei 9.455/1997, a sua prática, evidentemente, jamais foi tolerada pelo ordenamento jurídico republicano, mesmo aquele vigente no regime de exceção. Não bastasse a previsão da lei penal ordinária, que sancionava, dentre outros crimes, as lesões corporais e os maus-tratos, a Lei 4.898/1965, definia – e ainda define, por continua e vigor -, em seus arts. 3° e 4°, e as hipóteses de abuso de autoridade, arrolando, dentre elas, o atentado à incolumidade física ao indivíduo e de submissão de pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado em lei [...] Ainda que se admita, apenas argumentar, que País estivesse em uma situação de beligerância interna ou, na dicção do Ato Institucional n°14/1969 – incorporado à Carta de 1967, por força da EC n° 1/1969 – enfrentando uma “guerra psicológica adversa”, “guerra revolucionária” ou “guerra subversiva”, mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumido pelo Brasil desde o inicio do século passado (STF, 2010, p. 19).
O Ministro Carlos Ayres Britto ainda complementou considerando que a
anistia não foi “ampla, geral e irrestrita”, estando a referido parágrafo 1° do artigo 1°
da Lei 6.683/1979 de fato em colisão com a Constituição Federal. Os agentes
estatais não estariam automaticamente contemplados pela anistia porque “para a
coletividade perdoar certos infratores, é preciso que o faça por modo claro,
assumido, autêntico, não incidindo jamais em tergiversação racional, em
prestidigitação normativa, para não dizer em hipocrisia normativa” (SOARES, 2009,
p. 148).
Se considerarmos os aspectos históricos do contexto de aprovação da Lei de
Anistia podemos afirmar que esta não foi fruto de um pacto político democrático
entre a oposição e os militares. Embora o processo pela busca da anistia tenha
iniciado pelo movimento dos familiares das vítimas da repressão, é sabido que este
processo foi altamente controlado pelo regime militar sendo a respectiva lei
elaborada por um Congresso Nacional composto majoritariamente por políticos
apoiadores do regime. Não havia espaço para um verdadeiro consenso a respeito
93
deste tema, que inclusive, continuou sendo um “tabu” durante muitos anos após o
fim da repressão.
Apesar de a lei ter sido extremamente importante para que a oposição
pudesse retornar do exílio e para que alguns presos políticos pudessem ser
libertados, a interpretação da anistia que colocou no mesmo pacote os atos de
repressão e os atos de resistência. Dentre os votos indeferindo o pedido da OAB,
podemos verificar inclusive o trecho em que os atos cometidos pelos agentes
públicos e os crimes cometidos pela resistência encontram-se comparados,
reforçando a existência da “Teoria dos dois demônios”,
Se é verdade que cada povo acerta as contas com o passado de acordo com sua cultura, com os seus sentimentos, com sua índole e com a sua história, o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia. E diria, se pudesse, mas não posso, concordar com a afirmação de que certos homens são monstros, que os monstros não perdoam, só o homem perdoa. Só uma sociedade superior, qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos da humanidade, é capaz de perdoar, porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é mais do que seus inimigos, é capaz de sobreviver (STF, 2010, p. 204).
Ao igualar a atuação dos agentes de Estado e dos opositores durante a
ditadura, os Ministros passam a ignorar o contexto de forte repressão aos
movimentos contrarrevolucionários impostos pela Guerra Fria. Tal comparação “faz
crer que todos os sequestros, mortes, estupros e desaparecimentos cometidos
contra opositores foram resultados de ações terroristas, ataques a bombas, assaltos
e sequestros de diplomatas” (MACHADO, 2011, p. 252-253). A afirmação de que
houve uma luta entre dois grupos rivais durante a ditadura militar desvalorizou a
busca pela verdade sendo este entendimento veemente reprovado pela
jurisprudência internacional.
Conforme entendimento do Ministério Público Federal a omissão cúmplice do
sistema de justiça com a violência praticada nos centros clandestinos e oficiais da
repressão política ditatorial contribuiu para que todos esses atos fossem
acobertados “por meio de laudos falsos, sindicâncias dolosamente preparadas para
eximir os agentes e noticias de crimes jamais apuradas”. (BRASIL, 2017, p.88)
Ainda, cabe lembrar que o pacto imposto pelo governo militar para a
sociedade foi uma condição para apaziguar o regime repressor e consequentemente
possibilitar o retorno dos presos políticos à sociedade, não sendo havendo na
verdade um contexto em que uma negociação pudesse ser realizada. A validade
94
deste acordo é questionável na medida em que o pacto afrontou nitidamente a
“dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro” (BORGES, 2012, p. 89).
Acertadamente afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski que a Lei de Anistia “longe
de ter sido outorgada dentro de um contexto de concessões mútuas, obedecendo a
uma espécie de acordo tácito [...] foi editada em meio a um clima crescente de
insatisfação popular contra o regime autoritário” que após ter exterminado a
oposição política já não possuía razão para se manter no poder (STF, 2010, p. 107).
Por sete votos a dois, o STF foi contra a revisão da Lei de Anistia julgando
improcedente o pedido realizado pela OAB na ADPF 153, mantendo a interpretação
de que a Lei de Anistia de 1979 teria assegurado anistia ampla, geral e irrestrita
indistintamente. Podemos destacar a decisão do STF da seguinte forma,
(a) a Lei da Anistia abrangeu quaisquer crimes praticados com motivação política, o que inclui os delitos praticados pelos agentes do Estado na repressão; (b) a anistia foi, portanto, bilateral; (c) a lei teve efeitos instantâneos, não sendo possível rever sua aplicação após 30 anos; (d) deve ser privilegiada uma interpretação compatível com o momento histórico, que leve em consideração a intenção do legislador da época; (e) houve um pacto político entre o governo militar e entidades da sociedade civil, que teriam anuído com a anistia aos agentes estatais para viabilizar a liberdade de presos políticos e o retorno do exílio de milhares de perseguidos do regime; (f) não seria legítimo rever esse acordo, especialmente por decisão judicial; (g) o Brasil tem tradição de conceder anistias dessa natureza, após conflitos políticos; (h) não houve autoanistia, dada a bilateralidade do benefício penal, sendo inaplicável a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que reputa inválidas normas legais instituidoras de anistia dessa natureza; e (i) a edição e a aplicação da Lei nº 6.683/79 não se sujeitam à Corte Interamericana por serem anteriores ao reconhecimento, pelo Brasil, de sua jurisdição, válida apenas para fatos ocorridos após dezembro de 1998. Portanto, o Supremo Tribunal Federal não precisava temer uma condenação internacional (WEICHERT, 2015, p. 119-120).
1
Com esta decisão o STF denegou às vítimas o direito à justiça, como
também, “reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir
legitimidade político-social à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma
reconciliação nacional” (PIOVESAN, 2011, p. 82).
Como veremos adiante, a decisão do STF foi ao desencontro do
posicionamento consolidado na Corte Interamericana que afirma a obrigatoriedade
dos Estados em investigar, processar e punir os atos contra os direitos humanos
cometidos pelos agentes da ditadura. A resistência do STF na ADPF 153 em se
adequar ao entendimento internacional sobre direitos humanos demonstra a imensa
dificuldade que ainda encontramos de harmonizar a teoria com a prática. Aceitar a
95
primazia da norma mais favorável ou benéfica a pessoa humana é de extrema
importância para a construção e consolidação do Estado Democrático de Direito.
2.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL (GUERRILHA DO ARAGUAIA)
Em 07 de agosto de 1995 o Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL)
e a Human Rights Watch/América propuseram à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos uma petição contra o Brasil a respeito do desaparecimento de
membros da Guerrilha do Araguaia entre os anos de 1972 e 1975. A Guerrilha do
Araguaia foi um movimento político radial organizado pelo Partido Comunista do
Brasil (PCdoB) que abrangeu a região sul e sudeste do Estado do Pará e o oeste do
Estado do Maranhão, nos meados da década de 1960, para organizar um grupo de
resistência contra a ditadura militar. Tal propositura foi baseada na demora
injustificada e na impossibilidade de se fazer justiça no plano interno, onde desde
1982, os familiares aguardavam uma resposta do Poder Judiciário brasileiro34 sobre
a localização dos corpos dos guerrilheiros, a elucidação das circunstâncias das
mortes, e a entrega das informações que estavam sob guarda das Forças Armadas.
Na referida petição foi alegado que os fatos ocorridos na Guerrilha do
Araguaia constituem violações dos direitos garantidos pelos artigos I (Direito à vida,
à liberdade, à segurança e à integridade da pessoa), XXV (Direito de proteção
contra prisão arbitrária) e XXVI (Direito a processo regular) da Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada “Declaração
Americana” ou “Declaração”) bem como pelos artigos 4 (Direito à vida), 8 (garantias
judiciais), 12 (Liberdade de consciência e religião), 13 (Liberdade de pensamento e
de expressão), e 25 (Proteção judicial) conjugados com o artigo 1(1) (obrigação de
respeitar direitos) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CORTEIDH,
2001).
34 Esta ação tramitou na justiça ordinária por 25 anos, entre a petição inicial (fevereiro de 1982) e o trânsito e julgado da sentença (junho de 2007), sem que as vítimas pudessem auferir por justiça.
96
Durante o trâmite ante a Comissão, as organizações postulantes – CEJIL,
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) e a Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo (CFMDP-SP) identificaram,
além dos aspectos referentes à negação da verdade e justiça, obstáculos como, à
falta de devida diligência nas poucas investigações não penais realizadas, a não
colaboração das Forças Armadas e as medidas administrativas e legislativas que
impediram o acesso às informações, gerando um efeito direto nas medidas estatais
para esclarecer a verdade e localizar os restos mortais dos desaparecidos
(AFONSO; ROCHA, 2009).
Em 20 de maio de 1996 a Comissão ainda recebeu mais duas novas
informações mediante comunicação dos peticionários correspondentes à criação da
Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos no qual o Estado brasileiro passou a
reconhecer a responsabilidade pelos desaparecimentos provocados entre setembro
de 1961 e agosto de 1979 e, a produção de várias matérias jornalísticas que
identificaram alguns locais de sepultamento dos corpos dos guerrilheiros.
Em 06 de março de 2001, a Comissão Interamericana expediu o relatório de
admissibilidade n° 33/01, e após exaustivo processamento perante a Comissão foi
emitido o Relatório de Mérito 91/2008, nos termos do art. 50 da Convenção,
contendo determinadas recomendações35 ao Estado brasileiro. A Comissão
Interamericana concluiu,
35 “A CIDH recomendou ao Estado: 1. Adotar todas as medidas que sejam necessárias, a fim de garantir que a Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) não continue representando um obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade; 2. Determinar, através da jurisdição de direito comum, a responsabilidade penal pelos desaparecimentos forçados das vítimas da Guerrilha do Araguaia, mediante uma investigação judicial completa e imparcial dos fatos com observância ao devido processo legal, a fim de identificar os responsáveis por tais violações e sancioná-los penalmente; e publicar os resultados dessa investigação. No cumprimento desta recomendação, o Estado deverá levar em conta que tais crimes contra a humanidade são insuscetíveis de anistia e imprescritíveis; 3. Realizar todas as ações e modificações legais necessárias a fim de sistematizar e publicar todos os documentos relacionados com as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia; 4. Fortalecer, com recursos financeiros e logísticos, os esforços já empreendidos na busca e sepultura das vítimas desaparecidas cujos restos mortais ainda não hajam sido encontrados e/ou identificados; 5. Outorgar uma reparação aos familiares das vítimas, que inclua o tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de atos de importância simbólica que garantam a não repetição dos delitos cometidos no presente caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento das vítimas e o sofrimento de seus familiares; 6. Implementar, dentro de um prazo razoável, programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas brasileiras, em todos os níveis hierárquicos, e incluir especial menção no currículo de tais programas de treinamento ao presente caso e aos instrumentos internacionais de direitos humanos, especificamente os relacionados com o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura; e 7. Tipificar no seu ordenamento interno o crime de desaparecimento forçado, conforme os elementos constitutivos do mesmo estabelecidos nos instrumentos internacionais respectivos” (CIDH, 2009, p. 8).
97
que o Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além disso, a CIDH conclui[u] que, em virtude da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia), promulgada pelo governo militar do Brasil, o Estado não levou a cabo nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia; que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito ao acesso à informação desses familiares; e que o desaparecimento forçado das vítimas, a impunidade dos seus responsáveis, e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 7).
O Brasil foi notificado em 21 de novembro de 2008 sendo outorgado o prazo
de dois meses para que o Estado informasse sobre as ações executadas a fim de
implementar as recomendações da Comissão. Diante da falta de uma
implementação satisfatória pelo Estado brasileiro, em 26 de março de 2009,
conforme o disposto nos artigos 51 e 62 da Convenção Americana, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos submeteu o caso à jurisdição da Corte
Interamericana, com o fim de forçar o Estado brasileiro a adotar medidas de
reparação – observa-se que a Comissão Interamericana é um órgão consultivo e a
Corte Interamericana detém competência consultiva e jurisdicional.
Para a Comissão, o Brasil deve responder pela detenção arbitrária, tortura e
desaparecimento forçado de setenta pessoas, entre membros do Partido Comunista
do Brasil (PCdoB) e camponeses da região do Araguaia enfatizando que esta seria
“uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre
as leis de anistia com relação aos desaparecimentos forçados e à execução
extrajudicial e a consequente obrigação dos Estados de dar a conhecer a verdade à
sociedade e investigar, processar e punir as graves violações de direitos humanos”
(CORTEIDH, 2010, p. 3).
Na fase processual, o Estado brasileiro exerceu o seu direito de defesa
alegando perante a Corte Interamericana três exceções preliminares: a)
incompetência da Corte para examinar supostas violações que teriam ocorrido antes
da competência contenciosa do Tribunal, ou seja, fatos anteriores a 10 de dezembro
de 1998; b) falta de esgotamento dos recursos internos e; c) falta de interesse
processual da Comissão e dos representantes. Ainda em audiência pública alegou
como exceção preliminar a regra da quarta instancia com relação a um fato que
98
qualificou como superveniente. Todas as alegações foram indeferidas pela Corte
Interamericana.
Quanto à alegação de ausência de jurisdição da Corte para os fatos
anteriores a 10 de dezembro de 1998, a Corte considerou que em respeito ao
princípio da irretroatividade a Corte interamericana somente pode analisar os fatos
ocorridos após o respectivo reconhecimento pelo Estado da sua jurisdição. Porém,
conforme jurisprudência consolidada, no caso de atos de caráter contínuo ou
permanente a sua competência para julgar prevalece na medida em que estes atos
perduram durante todo o tempo em que o fato continua. Assim, a Corte decidiu que
poderia analisar todos os fatos e omissões ocorridos após 10 de dezembro de 1998,
ou seja, a falta de investigação, julgamento e sanção das pessoas responsáveis
pelos desaparecimentos forçados e execução extrajudicial, a falta de efetividade dos
recursos judiciais de caráter civil para obter informações sobre os fatos, as restrições
ao direito de acesso à informação e o sofrimento dos familiares.
Quanto à suposta falta de esgotamento dos recursos internos – requisito
essencial para propor uma ação perante a comunidade internacional – o Estado
brasileiro teve a oportunidade de ter alegado a suposta falta de esgotamento dos
recursos internos na etapa de admissibilidade do procedimento perante a Comissão,
porém, as alegações brasileiras relativas à Arguição de Descumprimento, à Ação
Civil Pública, à possibilidade de interposição de uma ação penal subsidiária e às
diversas iniciativas de reparação, foram expostas pelo Brasil somente na fase de
Contestação perante a Corte (MAZZUOLI, 2011) contrariando o entendimento
consolidado de que não é tarefa da Corte, e nem da Comissão, identificar ex officio
quais são os recursos internos a serem esgotados.
Quanto à falta de interesse processual a Corte se manifestou afirmando que a
“responsabilidade internacional do Estado se origina imediatamente após ter sido
cometido um ato ilícito segundo o Direito Internacional, e que a disposição de
reparar esse ato no plano interno não impede a Comissão ou Corte de conhecer um
caso” (CORTEIDH, 2010, p. 14). O Tribunal considerou, portanto, que as ações que
o Estado afirmou que adotou para reparar as supostas violações cometidas no
presente caso, ou evitar sua repetição não têm efeito sobre o exercício da
competência da Corte para dele conhecer.
99
Em relação à regra da “quarta instância”, a Corte estabeleceu que possui uma
clara doutrina demonstrando que a mesma não é um tribunal de apelações e nem
uma quarta instância. A sua legitimação encontra-se na revisão de supostos erros
de fato ou de direito cometidos pelos tribunais nacionais. Deste modo, a Corte
afirmou que a demanda apresentada pela Comissão Interamericana “não pretende
revisar a sentença do Supremo Tribunal Federal”, mas sim, estabelecer se “o Estado
violou determinadas obrigações internacionais dispostas em diversos preceitos da
Convenção Americana, em prejuízo das supostas vítimas”. Para a Corte, “o
esclarecimento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas obrigações
internacionais” pode acarretar no exame de processos internos, inclusive das
decisões dos Tribunais Superiores. Neste sentido, a Corte não pretende realizar o
controle de constitucionalidade, mas sim, realizar o controle de convencionalidade,
analisando a incompatibilidade das leis nacionais com as “obrigações internacionais
do Brasil contidas na Convenção Americana” (CORTEIDH, 2010, p. 20).
A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos foi
proferida em 24 de novembro de 2010 decidindo que:
O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma (CORTEIDH, 2010, p. 113).
Seguindo os seus precedentes, tais como o caso Castillo Páez versus Peru, o
caso Bairro Altos versus Peru, a caso Almonacid Arellano e outros versus Chile, e o
caso La Cantuta versus Peru, a Corte Interamericana condenou duramente o Brasil.
A sentença prolatada, por unanimidade, decidiu:
a) Violação ao direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas
A Corte ainda decidiu que o Estado foi responsável pela violação do direito à
integridade pessoal previsto no art. 5.1 da Convenção em prejuízo dos familiares
das vítimas. A Corte afirmou que se pode presumir um dano à integridade psíquica e
moral dos familiares diretos de vítimas de certas violações de direitos humanos,
aplicando uma presunção juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e filhos,
esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes.
100
b) A responsabilidade do Estado pelo desaparecimento forçado: uma violação
permanente:
A Corte reiterou que o desaparecimento forçado de pessoas tem caráter
permanente e persiste enquanto não se conheça o paradeiro das vítimas ou que
seja encontrado os seus restos mortais. A omissão do Brasil referente a esses fatos
consistiu em uma infração ao dever de prevenção de violações dos direitos à
integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5° (direito à integridade
pessoal) e 4° (direito à vida) da Convenção Americana, ainda na hipótese em que os
atos de tortura ou de privação da vida destas pessoas não possam ser
demonstrados no caso concreto. A Corte ainda concluiu que o desaparecimento
forçado também implica a vulneração do direito ao reconhecimento da personalidade
jurídica (art. 3° da Convenção) e da liberdade pessoal (art. 7° da Convenção), uma
vez que o desaparecimento busca não somente uma das mais graves formas de
subtração de uma pessoa de todo o âmbito do ordenamento jurídico, mas também
negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo ou situação de
indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado.
c) Superação das alegações de prescrição e a falta de tipificação penal
prévia:
Os representantes expuseram para a Corte que a Lei de Anistia, alegações
de prescrição e a falta de tipificação penal, são três obstáculos legais à investigação
e à punição dos fatos ocorridos durante a ditadura militar. Neste sentido, a Corte
indicou que os atos de caráter continuo ou permanente, como os desaparecimentos
forçados, perduram durante todo o tempo em que o fato continua, sendo este
entendimento reconhecido reiteradamente pelo Direito Internacional de Direitos
Humanos. A falta de tipificação desse crime viola o art. 2° da Convenção impondo
ao Estado a obrigação de adotar as providencias de toda índole para que ninguém
sejam privado da proteção judicial e do exercício do direito. Deste modo, o principio
da legalidade não deve prejudicar o julgamento e a sanção dos atos considerados
delitos pela comunidade internacional.
d) Violação ao direito à verdade:
A Corte condenou o Brasil pela violação do direito da liberdade de
pensamento e de expressão previsto no art. 13 da Convenção, pois, foi negado aos
101
familiares das vítimas o direito de buscar a verdade quanto aos fatos ocorridos
durante a Guerrilha do Araguaia. Deste modo a Corte Interamericana ressaltou a
importância da instituição e do funcionamento de uma Comissão da Verdade
integrando o conjunto de medidas de promoção do acesso à informação e revelação
da verdade.
e) A negação da anistia a todos os agentes de repressão da ditadura militar:
A Corte considerou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 que
impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são
incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. É de
entendimento da Corte que,
Quanto à alegação das partes a respeito de que se tratou de uma anistia,
uma auto-anistia ou um “acordo político”, a Corte observa, como se
depreende do critério reiterado no presente caso (par. 171 supra), que a
incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves
violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas
“autoanistias”. Além disso, como foi destacado anteriormente, o Tribunal,
mais que ao processo de adoção e à autoridade que emitiu a Lei de Anistia,
se atém à sua ratio legis: deixar impunes graves violações ao direito
internacional cometidas pelo regime militar. 252 A incompatibilidade das leis
de anistia com a Convenção Americana nos casos de graves violações de
direitos humanos não deriva de uma questão formal, como sua origem, mas
sim do aspecto material na medida em que violam direitos consagrados nos
artigos 8 e 25, em relação com os artigos 1.1. e 2 da Convenção
(CORTEIDH, 2010, p. 65).
Após a sentença de improcedência do STF na ADPF 153 sobre a invalidade
da interpretação da Lei de Anistia, a Corte Interamericana afirmou que o Brasil é
responsável de forma permanente pelos desaparecimentos forçados executados
durante a ditadura militar. A Corte no exercício do controle de convencionalidade
declarou que a Lei de Anistia carece de efeitos jurídicos em relação aos crimes de
graves violações de direitos humanos, não podendo continuar representando um
obstáculo para que os fatos deste período sejam devidamente investigados,
processados e julgados pelo ordenamento jurídico nacional.
Deste modo, a Corte ressaltou a importância do Estado brasileiro em adequar
o seu ordenamento jurídico nacional, retirando-se da condição de ilegalidade frente
102
ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirmando a importância da
prevalência desses direitos frente às tentativas de perpetuar a impunidade dos
crimes cometidos.
Diante do que foi exposto, denota-se um aparente conflito entre os
entendimentos do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo
anunciada à sentença, ressoaram na mídia algumas declarações dos Ministros do
STF rejeitando-a, afirmando que a decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos somente valeria “no plano moral”, “só no plano internacional”, “só no
campo de convencionalidade”, “só no plano político” (MAZZUOLI, 2011, p. 52).
Segundo afirma Mazzuoli (2011, p. 52) tais declarações dos Ministros do STF
encontram-se equivocadas e se explicam em razão da tradicional conivência de
setores do Judiciário Brasileiro com a chamada “legalidade autoritária”.
Tais declarações partem da premissa de um ordenamento jurídico dualista,
onde o direito interno não possui nenhuma relação com a ordem internacional. Tal
entendimento tem sido rechaçado pela comunidade internacional, sobretudo, a partir
da entrada em vigor da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969,
que adota nitidamente o sistema monista internacionalista. Para esta teoria o direito
é uno e indivisível e conforme previsão do Artigo 27 da Convenção de Viena “uma
parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o
inadimplemento de um tratado”. Desta forma, quando um Estado é parte de tratados
internacionais, cabe aos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – observar
o seu efetivo cumprimento não podendo se escusar de tal obrigação (MAZZUOLI,
2011).
O cumprimento da sentença da Corte Interamericana proferida no Caso
Gomes Lund poderá representar um grande passo para a concretização da justiça
de transição brasileira. Ineditamente o cumprimento desta sentença representa uma
ação conjunta entre os três poderes do Estado, que deverão mover esforços para
adequar nosso ordenamento e efetivar a promoção dos direitos humanos. Esta
sentença representa muito além da busca pela efetivação da justiça, representa o
nosso interesse de que tais atrocidades nunca mais aconteçam em nossa
sociedade.
103
2.3 UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE AS DECISÕES DO STF E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS?
Como podemos constatar as decisões proferidas pelo STF e pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos seguem em lados opostos. De um lado, o STF
no exercício do controle de constitucionalidade decidiu que a interpretação da Lei de
Anistia é constitucional e, de outro, a Corte Interamericana exercendo o controle de
convencionalidade afirmou que leis de autoanistia são inválidas na medida em que
promovem a impunidade das graves violações de direitos humanos.
Foi dito também, que o cumprimento da sentença Gomes Lund é uma
obrigação do Estado brasileiro, cabendo aos três poderes dar cumprimento das
obrigações de fazer contidas na respectiva sentença e ao Ministério Público a tarefa
de atuar no caso de inércia desses poderes.
Ao Poder Executivo incumbe boa parte das obrigações de fazer impostas na
sentença. Recai no Ministério da Justiça o dever de investigar os desaparecimentos
forçados e outros atos de violação de direitos humanos cometidos pelos agentes da
repressão, assim, deve o Poder Executivo formar uma equipe de trabalho,
supervisionado pelo Ministério Público Federal, para apurar os fatos. Ainda, deve o
Poder Executivo ocupar-se da entrega dos arquivos e documentos da ditadura, para
que os restos mortais dos desaparecidos possam ser encontrados e para que
possamos saber o que aconteceu durante este período. Também incumbe a este
órgão a disponibilidade do tratamento médico adequado aos familiares das vítimas,
a publicação da sentença da corte e a edição de um livro eletrônico, dando
publicidade aos fatos ocorridos (CARVALHO RAMOS, 2011).
Ao Poder Legislativo cabe a aprovação de uma lei instituindo a Comissão da
Verdade, a fim de promover a apuração e esclarecimento público das graves
violações de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado, e ainda, a
tipificação do delito de desaparecimento forçado. E ao Poder Judiciário cabe dar o
cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana negando as tentativas
dos autores das graves violações de direitos humanos de interromper tais esforços,
atuando em consonância com a jurisprudência internacional sobre direitos humanos
(CARVALHO RAMOS, 2011).
104
Apesar de contrárias as decisões, ambas são plenamente válidas no
ordenamento jurídico brasileiro. Diante disso, como devem atuar os agentes
nacionais encarregados de dar cumprimento à condenação da Corte?
Primeiramente incumbe destacar que a adesão do Brasil à Convenção
Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdição obrigatória da
Corte Interamericana foi um ato soberano e voluntário do Estado brasileiro que,
através da Presidência da República e do Congresso Nacional, decidiu integrar o
sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Incumbe adicionar que tal
decisão não decorreu apenas de uma vontade política em se adequar aos
parâmetros internacionais de proteção a esses direitos, mas também, do
cumprimento de uma exigência prevista na própria Constituição Federal de 1988.
Conforme afirma Weichert (2011) a aceitação da jurisdição e da competência
da Corte Interamericana concretiza seguintes preceitos constitucionais: art. 4°, II ( A
República Federativa rege-se nas suas relações internacionais pelo principio da
prevalência dos direitos humanos); art. 5° §2° (Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados ou dos tratados internacional em que o Brasil seja parte); e o art. 7°
dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (O Brasil propugnará pela
formação de um tribunal internacional de direitos humanos).
O ato soberano do Estado brasileiro em aceitar a jurisdição da Corte
Interamericana, limitando a competência do STF, não afronta a Constituição, mas
sim, dá efetivo cumprimento ao que nela está prevista.
A Corte Interamericana - órgão máximo para interpretação da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos – em sua competência contenciosa age de
forma complementar ao ordenamento nacional quando da sua transgressão ou
omissão quanto às normas contidas na Convenção. Deste modo, a sua atividade
ocorre na falta do amparo do Estado à proteção dos direitos humanos.
No exercício da sua jurisdição, a Corte não revogou a decisão proferida pelo
STF na ADPF 153. O que se verificou foi à falta do exercício do controle de
convencionalidade pelo respectivo tribunal, desconsiderando as obrigações
internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas
estabelecidas nos arts. 8° (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção
105
Americana, em relação com os arts. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos e
liberdades nela reconhecidos) e 2 (dever de adotar as disposições quanto o
exercício dos direitos e liberdades) do mesmo instrumento.
Na sua analise verificou-se que a decisão proferida pelo STF na ADPF 153
não estava em consonância com a jurisprudência internacional que reiteradamente
vem afirmando que as leis de autoanistia promovem a impunidade, portanto, devem
ser invalidadas e carecem de valor jurídico.
Quando um Estado se recusa a dar cumprimento a uma sentença da Corte
Interamericana após ter aceitado voluntariamente a sua jurisdição, está atuando
contrariamente ao princípio da boa fé. Neste sentido o Tratado de Viena (1969) é
claro ao afirmar que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito
interno para justificar o inadimplemento de um tratado.
O caminho para que o STF possa recusar a autoridade da Corte
Interamericana seria pela existência de algum vício na constitucionalidade dos atos
de ratificação, aprovação e promulgação da Convenção e da aceitação da jurisdição
internacional no plano interno. Ou seja, o STF teria que demonstrar que o Presidente
da República não possuía competência para ratificar e promulgar a Convenção e
tampouco o Congresso Nacional para aprová-la, o que não se verificou, pois o Brasil
seguiu todos os requisitos constitucionais (WEICHERT, 2011).
Ainda mais, para sustentar que a jurisdição da Corte Interamericana não é
obrigatória, teria o Brasil que denunciar integralmente a Convenção Americana
retirando o país do sistema interamericano de direitos humanos, o que é geraria um
enorme retrocesso.
Mesmo com a denúncia, o Brasil ainda continuaria obrigado ao cumprimento
das sentenças já proferidas pela Corte Interamericana por força da previsão do art.
78 da Convenção, e ainda, responderia por todas as sentenças de casos propostos
por violações ocorridas até um ano após a data da denuncia (WEICHERT, 2011).
Conforme entendimento de Carvalho Ramos,
Do ponto de vista do direito brasileiro, entendemos que a denuncia da Convenção seria, por sua vez, inconstitucional. De fato, a Convenção tem a natureza de norma materialmente constitucional. Logo, seria aplicável a proibição do retrocesso cuja essência é prevista no art. 60, §4°, IV, da própria Constituição: não se admite sequer emenda constitucional que tenda
106
a abolir os direitos e garantias individuais. Assim, o efeito cliquet ou proibição do retrocesso impediria que a denuncia brasileira (em consequência natural da postura negacionista) pudesse ser feita sem que fosse gerado verdadeiro trauma na coerência da interpretação dos direitos humanos no Brasil (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 216).
Na mesma linha Mazzuoli (2011, p. 61-65) afirma que mesmo que a denuncia
seja tecnicamente possível, “esta seria totalmente ineficaz sob o aspecto pratico,
uma vez que seus efeitos continuam operando no nosso ordenamento jurídico, pelo
fato de eles serem clausulas pétreas do texto constitucional”. Desta forma, com o ato
de denuncia o Estado passa a não ter responsabilidade apenas no plano
internacional, mas no plano nacional nada muda “uma vez que eles já se
encontrarão petrificados no nosso sistema de direitos e garantias”.
Um caminho possível a ser seguido para solucionar o conflito aparente
desses dois entendimentos pode ser encontrado na proposta de Carvalho Ramos
(2011). Segundo o professor de direito internacional da Universidade de São Paulo
(USP) o conflito entre as decisões é apenas aparente podendo ser solucionado
através da hermenêutica. Em sua teoria o autor propõe o uso de dois critérios para
a análise.
O primeiro seria um critério preventivo o qual o autor chamou de “diálogo das
Cortes ou fertilização cruzada”. O autor entende que o STF ao tomar as suas
decisões deve observar a jurisprudência da Corte Internacional uma vez que ambas
cumprem a mesma missão de assegurar o respeito à dignidade humana e aos
direitos fundamentais, evitando assim, o surgimento de divergências entre a
jurisprudência nacional e a internacional. Deste modo, o autor sugere a instalação
de foro ou de uma secretaria permanente “unindo os Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário, além do Ministério Público Federal, Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Conselhos nacionais do Ministério Público e da Justiça”
para a sua implementação (CARVALHO RAMOS, 2009, p. 283).
No caso Gomes Lund não é mais possível usar este critério porque a
divergência já existe. Deste modo, passamos ao segundo critério o qual o autor
chamou de “Teoria do Duplo Controle ou duplo crivo”.
De acordo com este critério um ato interno para ser considerado válido, teria
que passar por um duplo controle, ou seja, é reconhecida a atuação em separado do
controle de constitucionalidade e do controle de convencionalidade. Assim, para que
107
um ato possa ser considerado válido este precisaria passar pelo controle de
constitucionalidade realizado de forma concentrada pelo STF e também pelo
controle de convencionalidade da Corte Interamericana. Para o autor esta separação
de atuações possibilita dirimir o conflito aparente entre a decisão do STF e da Corte
Interamericana.
Complementando essa ideia, Weichert (2011) afirma que para que os órgãos
internos de persecução penal possam discernir qual das decisões seguir, estes
devem observar os limites da competência de cada um dos Tribunais. Assim,
quando estivermos diante de violações de direitos humanos a decisão a ser seguida
deve ser o da Corte Internacional dada sua especial competência. Para os delitos
que não se refiram aos direitos humanos, prevalece o efeito vinculante do
julgamento da ADPF.
Com relação à anistia, a própria Corte Interamericana não considerou inválida
a Lei de Anistia para “qualquer violação de direitos humanos”, mas sim, para
aquelas consideradas “graves violações de direitos humanos” (WEICHERT, 2011, p.
230). Assim, quando os fatos se tratarem, por exemplo, de atos de tortura, execução
sumária ou desaparecimento forçado, o entendimento da Corte Interamericana deve
ser observado.
Esta é a posição institucional que vem sendo adotada pelo Ministério Público
Federal (MPF) para dar cumprimento à sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no Caso Gomes Lund.
Conforme relatório elaborado em 2017 pela instituição sobre as atividades de
persecução penal desenvolvido pelo MPF em matéria de graves violações de
direitos humanos cometidos por agentes do Estado durante o regime de exceção a
afirmação é de que no caso da Lei de Anistia o STF efetuou o controle de
constitucionalidade desta norma, não se pronunciando a respeito da compatibilidade
da causa de exclusão da punibilidade com os tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil (BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017).
Isso porque, conforme entendimento de Carvalho Ramos (2011), o controle de
convencionalidade não era objeto da ação da análise,
O STF, que e o guardião da Constituição [...] exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153, a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da ditadura militar e a interpretação adequada da
108
Lei de Anistia e esse formato amplo de anistia e que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a Corte de San Jose e a guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei de Anistia não e passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Mais: sequer as alegações de prescrição, bis in idem e irretroatividade da lei penal gravior merecem acolhida. Com base nessa separação vê-se que e possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de San Jose. [...] No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destrocada no controle de convencionalidade. Por sua vez, as teses defensivas de prescrição, legalidade penal estrita etc., também deveriam ter obtido a anuência dos dois controles. Como tais teses defensivas não convenceram o controle de convencionalidade e dada a aceitação constitucional da internacionalização dos direitos humanos, não podem ser aplicadas internamente (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 217-218).
Assim, este autor destaca que não cabe alegar coisa julgada ou efeito
vinculante para obstar as ações penais que visam cumprir a sentença da Corte
Interamericana justificando a não rescisão ou nulidade da decisão da ADPF 153.
Segundo o “Documento 1” de 21 de março de 2011, homologado pelos
membros da 2° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, para não cumprir as
obrigações de persecução penal seria necessário suscitar no STF a declaração de
inconstitucionalidade do reconhecimento da jurisdição da Corte ou pedir
interpretação conforme à Constituição, objetivando de definir se as sentenças da
Corte só devem ser cumpridas se estiverem alinhadas com a interpretação do STF
(BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017). O que geraria o esvaziamento
da proposta de adesão à jurisdição da Corte Interamericana, pois suas sentenças
tornar-se-iam meras confirmações, caso estivesse em consonância com o
entendimento do tribunal nacional, ou seriam rechaçadas caso fossem contrárias,
restando enfraquecidas as propostas em torno da proteção aos direitos humanos.
A proposta de uma Corte Internacional surgiu justamente para evitar que os
tribunais nacionais atuassem distorcendo a aplicação dos tratados internacionais de
direitos humanos criando uma “Convenção Americana de Direitos Humanos
paralela” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 176).
Deste modo é importante que as instituições insistam no cumprimento da
sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos limites de
sua respectiva aplicabilidade, buscando dar cumprimento efetividade ao
109
compromisso assumido pelo Brasil na busca da adequação do ordenamento jurídico
nacional ao que consta na jurisprudência internacional sobre direitos humanos.
3 A CRIAÇÃO DE COMISSÕES DA VERDADE PARA APURAÇÃO DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
Apesar do primeiro exemplo da instituição de uma Comissão da Verdade ter
ocorrida na Uganda através da criação da “Comissão para Investigação de
Desaparecimento de Pessoas” em 1974, o desenvolvimento do seu modelo ocorreu
principalmente na América Latina na década de 1980 após as sucessivas
restaurações democráticas surgidas com a queda dos regimes militares.
A busca pela verdade tornou-se essencial para “fomentar o desenvolvimento
da democracia e reforçar o principio republicano” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009,
p.250). Neste sentido passou a ser entendido que verdade não deveria ficar restrita
apenas às vítimas e aos seus familiares. Construiu-se o fomento do “direito à
verdade” no qual a sociedade passa a ter acesso aos verdadeiros fatos ocorridos
durante os períodos de exceção visando evitar a repetição dessas praticas
sistemáticas contra os direitos humanos pelas gerações futuras.
As Comissões da Verdade são organismos oficiais temporários criados pelo
governo nacional para promover a apuração e esclarecimento público das graves
violações de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado durante um
período específico. Esses mecanismos oficiais de apuração de graves violações de
direitos humanos são normalmente aplicados em países emergentes de períodos de
exceção ou guerras civis (WEICHERT, 2011). Constituem um mecanismo importante
para a construção da memória e da verdade trazendo fatos que até então eram
desconhecidos ou eram divulgados conforme versões oficiais que não condiziam
com a verdade. Desde modo as Comissões da Verdade possibilitam oferecer uma
perspectiva histórica ampla no qual elaboram relatórios a partir de documentos,
testemunhos. Conforme exposto no relatório da Comissão Nacional da Verdade:
Para o exercício de seu mandato, uma comissão da verdade deve realizar diligências nos lugares de interesse para suas investigações; promover, perante órgãos competentes, a proteção de testemunhos; e assegurar a
110
produção e conservação de provas, cabendo especial atenção às provas de interesse da Justiça. Devem ser adotadas medidas técnicas e sanções penais para impedir subtração, destruição, dissimulação ou falsificação dos arquivos, de modo a evitar a impunidade dos autores das graves violações de direitos humanos. Deve ainda ser sublinhada a importância de preservação dos arquivos das próprias comissões, evidenciando-se as condições que regem o acesso e, em caráter excepcional, a determinação da confidencialidade. No que se refere ao poder de nomeação dos responsáveis pelas graves violações, a comissão da verdade deve referir-se a todas as pessoas envolvidas, sejam aquelas que as ordenaram ou as que as cometeram, na condição de autores ou cúmplices. Nesse contexto, aos nomeados deve ser conferida a oportunidade de expor sua versão dos fatos (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2012, p. 33).
Deste modo podemos extrair que dentre as atribuições das Comissões da
Verdade estão: receber testemunhos, informações e dados; requisitar informações e
documentos; convocar entrevistas de pessoas que possam saber sobre os fatos;
determinar a realização de perícias e diligencias para recuperar informações,
documentos e dados; promover audiências públicas; e promover parceria com
outros órgãos para o intercambio de informações, dados e documentos para auxiliar
na investigação dos fatos.
O trabalho de uma Comissão da Verdade permite identificar as estruturas da
violência, suas ramificações nas diversas instâncias da sociedade – forças armadas,
polícia, poder judicial, igreja, etc –, entre outros fatores imensos nesta problemática
(SALMÓN, 2011, p.248). Para tanto os seus membros devem possuir garantias
como a inamovibilidade e imunidade durante o mandato, e as vitimas possuem a
assistência psicológica e social, sendo-lhes oferecida a opção de confidencialidade.
Não há uma única maneira de lidar com o passado marcado por graves
violações enquanto a verdade não for totalmente revelada, sendo diversas as
formas de expressão do direito à memória e à verdade.
Antes que abordarmos sobre a Comissão Nacional da Verdade no Brasil,
iremos abordar primeiramente sobre a Comissão Nacional sobre Pessoas
Desaparecidas (CONADEP), criada na Argentina, pois esta foi a primeira comissão
da verdade da América Latina e seus mecanismos tornaram-se paradigma para
outras comissões.
3.1 ARGENTINA: LA COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP)
111
A primeira Comissão da Verdade estabelecida no Cone Sul foi a La Comisión
Nacional Sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com sede no Centro
Cultural de San Martin na Cidade de Buenos Aires / Argentina. A CONADEP foi
criada através do Decreto 187/83 pelo governo Raúl Alfonsín, em 1983, como parte
da política do Estado instituída para esclarecer o passado violento que havia
assolado a Argentina. A criação da CONADEP foi uma das medidas do presidente
Alfonsín para concluir o processo de transição política da Argentina atendendo as
demandas por verdade e justiça das vítimas.
Dentre as funções específicas dessa Comissão estão:
a) receber reclamações/denúncias e provas sobre aqueles eventos e enviá-los imediatamente à justiça se estiverem relacionadas com os alegados cometimentos de crimes; b) averiguar o destino e paradeiro das pessoas desaparecidas, bem também qualquer outra circunstância relacionada com a sua localização; c) determinar a localização de crianças raptadas da tutela de seus pais ou guardadores sob alegação de repressão ao terrorismo, e fornecer uma intervenção apropriada aos tribunais ou organismos de proteção à criança; d) denunciar à justiça qualquer tentativa de ocultamento, subtração ou destruição de provas relacionadas com os direitos que se pretende esclarecer; e) emitir um relatório final com uma explicação detalhada dos feitos investigados, cento e oitenta (180) dias a partir de sua constituição (ARGENTINA. DECRETO LEI 187/83, p. 1).
A Comissão tinha o poder para requerer ao Poder Executivo, aos seus
organismos dependentes, entidades autárquicas e das forças armadas e de
segurança, o fornecimento de informações, dados e documentos, bem como o
acesso a lugares importantes para a elucidação dos fatos. Ainda ressaltou que os
funcionários e os organismos estão obrigados a atender ao requerimento da
Comissão quando solicitado.
Ernesto Sábato, escritor argentino, foi eleito o presidente da Comissão sendo
encarregado de enfrentar a tarefa de promover suas atividades. Cinco secretarias
foram criadas: 1. Secretaría de Recepcíon de Denuncias; 2. Secretaría de
Documentación y Procesamiento; 3. Secretaría de Procedimientos; 4. Secretaria de
Asuntos Legales; 5. Secretaria Administrativa. Além desta estrutura ainda as
organizações de direitos humanos e os organismos internacionais como a
Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos
(OEA) forneceram recursos humanos e técnicos. Durante o período de um ano a
CONADEP realizou audiências públicas, entrevistas e mesas-redondas, contando
112
com forte presença da mídia para que seus atos fossem divulgados. Mais de mil e
trezentos ofícios foram expedidos, cem entrevistas foram concedidas pelo
presidente da Comissão, trinta audiências públicas e sessenta coletivas de imprensa
(CONADEP, 2013).
Em 1984 foi publicado o relatório final Nunca Más, dividido em seis capítulos:
I. A ação repressiva; II. Vítimas; III. O Poder Judiciário durante o período que
ocorreu o desaparecimento forçado de pessoas; IV. Criação e Organização da
Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas; V. O respaldo legal da
repressão; VI. Recomendações e Conclusões.
Durante a investigação foi constatado uma metodologia repressiva projetada
para produzir sequestros, desaparecimentos e torturas foram sistematicamente
aplicados. O relatório afirmou que 62% dos sequestros ocorriam do domicílio da
vítima, 24,6% em locais públicos, 7% eram sequestrados no trabalho, 6%
sequestrados no local de estudo. Cerca de 600 pessoas foram sequestradas antes
do golpe militar de 1976 e que 8960 pessoas encontravam-se desaparecidas desde
então. Os sequestros ocorriam em forma de detenção nos períodos da noite ou ao
amanhecer antes que os membros da família pudessem agir. Um grupo entre cinco
a seis agentes eram enviados as casas para executar as operações, fortemente
armados, intimidando tanto as vítimas quanto seus familiares. Crianças também
foram sequestradas e entregues a adoção. A tortura foi sistematicamente aplicada
nos 340 centros de detenção clandestinos existentes no país, onde faltava comida e
as condições sanitárias eram precárias36 (CONADEP, 2013).
Apesar desta Comissão não possuir competência para julgamentos, a
investigação da CONADEP resultou em provas comprobatórias sobre os crimes de
lesa humanidade cometidos durante o regime culminando em diversas ações
judiciais. A Comissão foi dissolvida no momento da apresentação do relatório final.A
partir da iniciativa da CONADEP outras comissões da verdade foram instaladas
como a do Chile, África do Sul e Peru.
36 As condições durante o tempo de detenção eram deploráveis. Os sequestrados permaneceram amontoados em colchões sujos com sangue, urina, vômitos e transpiração. Em alguns casos, eles tiveram que atender suas necessidades em baldes, que foram posteriormente removidos.
113
3.2 OUTRAS COMISSÕES37:
Escolhemos abordar sobre algumas outras comissões além da Argentina,
como a do Chile, da África do Sul e do Peru, apenas para termos um panorama de
como as outras Comissões ocorreram depois do caso argentino. Isso não quer dizer
que só houve essas comissões. No mundo nós tivemos comissões da verdade na
Alemanha, Bolivia, Canadá, Chade, Colombia, Congo, Coreia do Sul, El Salvador,
Equador, Estados Unidos, Gana, Granada, Guatelama, Haiti, Ilhas Maurício, Ilhas
Salomão, Indonésia, Iugoslávia, Libéria, Marrocos, Nepal, Nigéria, Panamá,
Honduras, Paraguai, Quenia, Ruanda, Serra Leao, Sri Lanka, Timor Leste, Togo,
Uganda, Zimbábue. Porém como não são objeto de nossa pesquisa não iremos
abordá-las neste trabalho.
a) Chile: Comissão da Verdade e Reconciliação (Comisión Verdad y Reconciliación, Comisión Rettig e Comisíon Valech)
A Comissão da Verdade e Reconciliação (Comisión Rettig) chilena foi
instituída após as eleições de 1989 apurando os fatos ocorridos durante o regime
militar de Augusto Pinochet, através do Decreto Supremo n° 355 de 25 de abril de
1990. O principal objetivo foi esclarecer a verdade sobre as violações de direitos
humanos cometidos entre 11 de setembro de 1973 e em 11 de março de 1990. Após
nove meses, em 8 de fevereiro de 1991, a Comissão entregou ao ex-presidente da
República, Patricio Aylwin Azócar, o Relatório da Comissão Nacional de Verdade e
Reconciliação. Foram recebidas 3550 reclamações dos quais 2296 casos foram
considerados aceitos.
Em 2003, outra Comissão foi instituída no governo do Presidente Ricardo
Lagos Escobar, a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (Comisíon
Valech). A Comissão ouviu trinta e cinco mil testemunhos e anunciou em 2004 vinte
37 Vide: Comissões de Memória e Verdade Mundo. Disponível em: <http://dhnet.org.br/verdade/mundo/index.htm>.
114
e oito mil casos de vítimas oficiais. O relatório elaborado por esta Comissão restou
em dez capítulos: 1. Apresentação; 2. Funcionamento da Comissão; 3. Contexto; 4.
Prisão política e Tortura; 5. Métodos de Tortura; 6. Locais de detenção; 7. Perfil das
vitimas; 8. Consequencias da prisão e da tortura; 9. Propostas de Reparação; 10.
Palavras finais.
Em 2011, durante o governo do Presidente Sebastián Piñera a Comissão
Nacional sobre Prisão Política e Tortura (Comisíon Valech) entregou mais um
relatório que atualizou o de 2004, acrescentando nove mil e oitocentas vítimas
oficiais. Deste modo o número de vítimas oficiais do período da ditadura de Pinochet
para quarenta mil, duzentos e oitenta pessoas.
b) Africa do Sul: Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation Commission)
O primeiro passo para a instauração do processo de justiça de transição na
África do Sul ocorreu em 1992 com a realização do plebiscito que contou apenas
com a participação de pessoas brancas. Este aprovou a revogação das leis raciais.
Em 1994 ocorreram as primeiras eleições multirraciais elegendo Nelson Mandela.
Duas conferências foram realizadas após as eleições. A primeira discutia o dossiê
Dealing with the past: truth and reconciliations in South Africa onde especialistas do
leste europeu e da America Latina compartilharam suas experiências. Na segunda
conferência aconteceu após a instauração de inquéritos de investigação sobre
abusos de direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional nos campos de
exílios (PEREIRA, 2016). Neste momento se estabeleceu que a verdade iria ser
apurada através da Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation
Commission)
Com o fim do regime de apartheid38 Nelson Mandela, em 1995, instituiu a
Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation Commission). A 38 O Apartheid estava correlacionado com o exacerbado racismo, dominação militar e econômica, além da dominação branca. Ele foi institucionalizado em 1948, quanto o Partido Nacional toma o poder, tornando legal um sistema totalitário, de descriminação racial, espacial, jurídico, político, econômico, social e cultural. Em 1961 a Assembleia Geral da ONU criou o Comitê Especial Contra o Apartheid, marco institucional que foi vital para que os governos e as ONGs pudessem praticar ações antiapartheid.(PEREIRA, 2016, p. 96)
115
Comissão serviu como principal instrumento transicional africano adotando o modelo
restaurativo, ao invés do modelo retributivo ou punitivo, como meio para buscar a
verdade. Este modelo de Comissão apresentou características diversas daquelas do
âmbito latino-americano porque enfatizou a reestruturação social e deixou as
punições em segundo plano. Em suas atividades foram ouvidas vinte e três mil
vítimas e testemunhas sobre o período compreendido entre 1960 e 1994. No
processo de busca pela verdade prestigiou-se a concessão de anistia individual para
aqueles que confessassem todos seus crimes políticos, rompendo com a forma
clássica de anistia generalizada (PEREIRA, 2016). Essa comissão perdurou até
1998 resultando em um relatório de sete volumes de testemunhos, fatos e verdades.
c) Peru: Comissão de Verdade e Reconciliação (La Comisión de La Verdad y Reconciliación)
Em 1995 foram promulgadas leis de autoanistia no Peru. Com a queda do
governo de Alberto Fujimori, em 2000, o governo de transição presidido por Valentín
Paniagua foi instalado. A Comissão de Verdade e Reconciliação (La Comisión de La
Verdad y Reconciliación) foi criada em 2001 por meio do Decreto Supremo
065/2001-PCM. Seu objetivo foi investigar e fazer publica verdade sobre vinte anos
de violência política. Apesar da luta armada no Peru ter ocorrido desde 1980, a
Comissão de Verdade e Reconciliação considerou como período de exceção os
anos de 1992 até 2000, tempo em que as instituições foram dissolvidas e o governo
comandado via decretos-lei. No mesmo ano a Corte Interamericana de Direitos
Humanos julgou o caso Barrios Vs. Peru, afirmando que leis de autoanistia não
possuem efeito. Essa sentença gerou a condenação de Fujimori em 2009. Os
trabalhos da Comissão da Verdade e Reconciliação durou pouco mais de dois anos
e foi acompanhado por organizações de direitos humanos, vítimas e demais setores
da sociedade (MACHADO, 2007).
Em 2003 foi lançado o Informe Final constando nove Tomos: Tomo I: Primeira
parte: O processo, os direitos e as vítimas; Tomo II: Os atores do conflito; Tomo III:
Os atores políticos e Institucionais. As organizações sociais; Tomo IV: Os cenários
da violência; Tomo V: Historias que representam a violência; Tomo VI: Os crimes e
116
as violações de Direitos Humanos; Tomo VII: Os investigados pela Comissão da
Verdade e Reconciliação; Tomo VIII: Os fatores que tornaram a violência possível;
Tomo IX: Recomendações da Comissão.
Nesse informe foram constatadas mais de sessenta e nove mil vítimas
oficiais. Foram investigados casos de assassinatos e massacres, desaparecimentos
forçados, execuções arbitrárias, tortura e tratamentos crués, desumanos ou
degradantes, violência sexual contra a mulher, violações do devido processo legal,
sequestros, violências contra crianças e, violações de direitos coletivos. O Informe
Final trabalhou com o tema de gênero, o que era incomum em países Latino-
americanos.
3.3 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NO BRASIL E SUA ATUAÇÃO
No ano de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu no caso
Gomes Lund que a criação de uma Comissão de Verdade no Brasil – no qual o
processo de instauração já estava em andamento através Projeto de Lei 7.376/2010
– integra o conjunto das medidas de promoção do acesso à informação e revelação
da verdade (essenciais no aprimoramento das instituições de segurança pública e
para a contribuição do principio da não repetição) formando um importante
instrumento na efetivação da Justiça de Transição.
Neste sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos se manifestou
sobre a comissão da verdade:
297. Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção e preservação da memória
117
histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato (CORTEIDH, 2010, p. 107).
A sua atuação permite a exposição pública dos verdadeiros fatos ocorridos
durante o regime de opressão, constituindo a possibilidade da sociedade em
compreender o que ocorreu e, desta maneira, trazer ganhos significativos para a
democracia.
Em 26 de outubro de 2011 o projeto de Lei instituindo a Comissão da Verdade
foi aprovado, por unanimidade, pelo Plenário do Senado Federal, sendo sancionada
pela Presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011 dando origem a Lei
12.528/2011.
Três fatores foram determinantes para a sua criação: 1. A elaboração do
PNDH-3 que determinou a criação de uma comissão da verdade para investigar os
fatos ocorridos durante a ditadura; 2. A decisão do Supremo Tribunal Federal na
ADPF n°153; 3. A sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Gomes Lund e Outro vs. Brasil (SANTOS, 2016).
A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi instituída com o propósito de
examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticados no
período estipulado pelo artigo 8° ADCT, ou seja, 18 de setembro de 1946 até a data
da promulgação da Constituição de 1988.
A sua criação se deu dentre muitos impasses e discussões. A proposta
original para a criação de uma Comissão da Verdade incluía, além da promoção da
verdade e esclarecimento dos fatos, a efetivação da justiça para as vítimas. A
proposta do Decreto 7.037/2009 possuía a seguinte redação:
Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade.c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos.f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão.
118
Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c) Propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham sido atribuídos.d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985. (Grifo nosso)
A proposta original buscava criar uma Comissão da Verdade que pudesse
realizar a justiça em relação aos crimes apurados. Isto gerou um grande “mal estar”
entre o governo e os militares, pois os segundos estavam temerosos pelo que
chamaram de política “revanchista”. Neste momento uma séria disputa entre o
Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e o Ministro
da Defesa Nelson Jobim foi travada. De um lado a Comissão da Verdade seria uma
resposta aos anseios das famílias vítimas da ditadura, e de outro, argumentava-se
que a criação da Comissão da Verdade poderia criar atritos desnecessários com as
Forças Armadas (SANTOS, 2016). Diante da resistência dos militares a proposta
elaborada pela sociedade através do Decreto 7.037/2009 esta foi alterada pelo
Decreto 7.177/2010 passando a ter a para a seguinte redação:
Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade.c) Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover, com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos.f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre graves violações de direitos humanos ocorridas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c) Fomentar debates e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores.d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil sobre casos que envolvam graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988.
A criação da CNV marcada pela resistência dos militares retirou da proposta
original as expressões: “repressão ditatorial”, “regime de 1964-1985”, “resistência
popular à repressão”, “pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade” e
“responsabilização criminal sobre os casos que envolvam atos relativos ao regime
119
de 1964-1985” (SANTOS, 2016), limitando a atuação da CNV para o esclarecimento
dos fatos ocorridos entre 1946 e 1988.
Percebe-se então que a forte influência dos setores ligados ao regime
autoritário estabeleceram parâmetros para a criação de uma Comissão da Verdade
que pudesse atender de maneira limitada e parcial aos interesses das vítimas e da
sociedade na busca da verdade.
Na opinião de muitos familiares das vítimas e militantes de direitos humanos,
a criação da Comissão da Verdade funcionou como uma “cortina de fumaça” para
desviar a atenção do cumprimento da sentença da Corte Interamericana que havia
determinado também a necessidade de processar, julgar e punir os responsáveis
pelas violações de direitos humanos ocorridos na ditadura (SANTOS, 2016, p. 222).
Feitas as respectivas alterações, a CNV foi finalmente criada através da Lei
12.528/2011 – 30 anos depois do fim da ditadura - com o objetivo de promover a
apuração e esclarecimento das graves violações de direitos humanos ocorridos no
Brasil durante o período de 1946 a 1988. Ficou estabelecido o prazo de dois anos
para que a Comissão apresentasse o relatório final com os resultados das
investigações deste período.
Registre-se que o fato da Comissão Nacional da Verdade ter sido criada por
lei constituiu uma importante diferença em relação às outras Comissões da Verdade
constituídas na América Latina – através do ato exclusivo do Poder Executivo –
desfrutando de maior poder operativo para desempenhar suas atividades (CNV,
2014).
No mesmo ano da aprovação da Comissão Nacional da Verdade, a Lei
12.527/2011 (Lei de acesso à informação pública) também foi aprovada, sendo
determinante para assegurar aos cidadãos o direito de obter informações que estão
sob a responsabilidade da Administração Pública sem a necessidade de justificar os
motivos da respectiva solicitação.
A Lei 12.527/2011 regulamentou o artigo 5°, inc. XXXIII, o art. 37, §3°, inc. II,
e o art. 216, § 2°, da Constituição Federal. Esta lei subordina todos os órgãos da
Administração Pública a exercerem a transparência ativa, ou seja, promover a
120
divulgação de informações de interesse público independentemente de solicitações,
e também a transparência passiva divulgando as informações demandadas.
Antes desta lei o acesso à informação era severamente restrita, sendo às
informações classificadas em ultras-secreto, secreto, confidencial e reservado. Entre
as informações ultras-secretas estavam os dados ou informações referentes à
soberania e à integridade territoriais nacionais e os planos e operações militares
(SANTOS, 2016). A Lei de acesso à informações públicas se tornou essencial aos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade pois possibilitou o acesso as
informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação
aos direitos humanos praticados por agentes públicos ou a mando de autoridades
públicas.
A Comissão foi composta por sete membros, integrados em Colegiado e
nomeados pelo presidente da Republica, além de duzentos e dezessete
colaboradores, incluindo assessores, servidores públicos, consultores,
pesquisadores, auxiliares técnicos e administrativos, estagiários e voluntários. Os
membros indicados para a composição da Comissão Nacional da Verdade foram:
Claudio Lemos Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Langaro Dipp,
ministro do Superior Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, advogado, defensor de
presos políticos e ex-ministro da Justiça; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e
ex-ministro da Justiça; Maria Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio
Pinheiro, professor titular de Ciência Polícia da Universidade de São Paulo (USP) e
Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada criminal e defensora de presos políticos
Com a renúncia de Claudio Lemos Fonteles, em setembro de 2013, sua vaga foi
ocupada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, advogado e professor titular de
Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da USP (CNV, 2014).
Em dezembro de 2012 a atividade de pesquisa da Comissão Nacional da
Verdade foi iniciada sendo organizada em treze grupos de trabalhos: 1) ditadura e
gênero; 2) Araguaia; 3) contextualização, fundamentos e razões do golpe civil-militar
de 1964; 4) ditadura e sistema de Justiça; 5) ditadura e repressão aos trabalhadores
e ao movimento sindical; 6) estrutura de repressão; 7) mortos e desaparecidos
políticos; 8) graves violações de direitos humanos no campo ou contra indígenas; 9)
Operação Condor; 10) papel das igrejas durante a ditadura; 11) perseguições a
121
militares; 12) violações de direitos humanos de brasileiros no exterior e de
estrangeiros no Brasil; e 13) o Estado ditatorial-militar.
Na sua atuação a Comissão da Verdade poderia estão receber testemunhos,
informações, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente;
fazer requisição de informações dados e documentos de órgãos e entidades do
poder público; convocar para entrevistas pessoas que possam guardar qualquer
relação com os fatos; realizar perícias e diligências para coleta ou recuperação de
informações, documentos e dados; promover audiências públicas; promover
parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais,
para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e requisitar auxílio de
entidades e órgãos públicos (Art. 4° da Lei 12.528/2011).
Ao longo da sua atuação, a Comissão Nacional da Verdade realizou
inúmeras audiências públicas colhendo os depoimentos das vítimas das graves
violações de direitos humanos emitindo diversos relatórios preliminares de pesquisa.
O primeiro relatório preliminar foi apresentado em 18 de fevereiro de 2014
divulgando as instalações militares utilizadas para cometer os crimes de tortura,
nome das vítimas e formas de tortura. A metodologia empregada pela comissão
para poder elaborar o relatório teve como ponto de partida a identificação dos casos
de tortura de ex-presos políticos que receberam o pagamento de indenização por
parte do Estado pelos processos deferidos pela Comissão de Anistia e pela
Comissão Especial de Indenização às vítimas de tortura – instituída pela Lei
Estadual 13.187/1999 – integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de
Minas Gerais da Secretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais. Para pesquisar
sobre os presos políticos mortos a CNV utilizou os processos deferidos pela
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos criada pela Lei
9.140/1995 e ainda, contou com os depoimentos prestados ao Ministério Público
Federal.
No segundo relatório apresentado em 27 de fevereiro de 2014 a CNV expôs o
caso Rubens Paiva. Rubens Paiva era deputado federal por São Paulo pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi cassado pelo Ato Institucional n°1, exilando-se na
embaixada da Iugoslávia no Rio de Janeiro, depois na França e Inglaterra. Retornou
ao Brasil em 1965, sendo detido pelo Centro de Informações de Segurança da
122
Aeronáutica (CISA) em 20 de janeiro de 1971. Foi conduzido para o Destacamento
de Operações de Informações (DOI) passando a ser interrogado sob tortura por
agentes do DOI e do Centro de Informações do Exército (CIE) ocasionando à sua
morte. O relatório concluiu que o Comandante do DOI general Belham estava ciente
das torturas, e que somente este poderia esclarecer o destino do corpo de Rubens
Paiva, assim como o nome dos agentes envolvidos na tortura, morte e ocultação do
cadáver.
O terceiro relatório elaborado em 25 de março de 2014 tratou da “Casa da
Morte” de Petrópolis, Rio de Janeiro. Através do depoimento de Inês Etienne Romeu
– única sobrevivente da casa da morte – serviu como ponto de partida para a
elaboração deste relatório. A Casa da Morte foi uma estrutura criada pelo Centro de
Informações do Exército (CIE) em 1971 para intensificar o combate dos opositores
executando práticas de extermínio e desaparecimento forçado.
O quarto relatório elaborado em 07 de abril de 2014 tratou dos centros
clandestinos de violações de direitos humanos atuantes entre os anos 1970 e 1975
nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Pernambuco,
Sergipe, Ceará, Pará e Distrito Federal sob responsabilidade da Marinha do Brasil e
do Exército Brasileiro.
O quinto relatório elaborado em 22 de abril de 2014 tratou do caso Juscelino
Kubitschek investigando as circunstancias do acidente do ex-presidente Jucelino
Kubitschek e seu motorista Geraldo Ribeiro ocorrido em agosto de 1976 no qual
concluiu que estes morreram mesmo em virtude de um acidente de trânsito.
O sexto relatório apresentado em 29 de abril de 2014 tratou do caso
Riocentro, ocorrido em 1981. Este foi um caso de explosão premeditada de duas
bombas de fabricação artesanal durante um show de musica popular brasileira que
reuniu cerca de vinte mil jovens. Porém a bomba que era para ser instalada
provavelmente no palco estourou antes da hora dentro do veículo no colo do
sargento Rosário que morreu instantaneamente. Sua conclusão foi de que as
explosões no Riocentro estavam relacionados a ação do DOI-Codi e ao SNI.
O sétimo relatório apresentado em 09 de junho de 2014 tratou do caso Stuart
Edgar Angel Jones. Stuart foi um militante político, sequestrado e preso
arbitrariamente em 1971. Os relatórios apresentados afirmaram que este foi
123
torturado até a morte para revelar o paradeiro de Carlos Lamarca. O
desaparecimento de Stuart é um dos mais conhecidos da ditadura militar, tanto no
Brasil, quanto no exterior.
O oitavo relatório e ultimo relatório foi apresentado em 29 de agosto de 2014
tratando do caso Epaminondas Gomes de Oliveira foi militante, preso em agosto de
1971, sofrendo torturas no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) vindo a falecer
no mesmo ano.
Todos os relatórios elaborados pela Comissão da Verdade contestaram as
informações oficiais elaboradas pelo regime militar. Conforme seu entendimento
casos de tortura, desaparecimentos forçados, homicídios, foi alterado nos relatórios
oficiais para fuga, suicídio, ou outras causas de morte que não condiziam com a
verdade. Ademais, muitos casos de desaparecimento forçado não foram
solucionados e, nem mesmo encontrados os restos mortais ocultados pelos agentes
de Estado.
O relatório final elaborado pela Comissão da Verdade foi entregue no dia 10
de dezembro de 2012 em uma cerimônia oficial realizada no Palácio do Planalto à
ex-presidente Dilma Rousseff.
Este foi dividido em três volumes. O primeiro volume relatou as atividades
desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade descrevendo os fatos
investigados e apresentando as devidas conclusões e recomendações. Este volume
foi dividido em cinco partes e 18 capítulos, apresentando a criação da Comissão
Nacional da Verdade, sua atuação, as estruturas repressivas do Estado e as graves
violações de direitos humanos ocorridos no Brasil.
No segundo volume foi reunido um conjunto de textos originados das
atividades desenvolvidas pelos grupos de trabalhos constituídos no âmbito da
comissão integrando vítimas, familiares, pesquisadores e demais interessados.
Neste é mostrado como diferentes grupos sociais foram afetados pela ditadura e a
repressão, e o papel destes na resistencia política.
E no terceiro volume é realizada uma compilação de todos os mortos e
desaparecidos políticos atingidos pelo regime militar expondo os cenários de horror,
até então restritos à memória das vítimas e seus familiares, à sociedade brasileira.
124
Os relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade constituem um
importante material para esclarecer os acontecimentos durante o período da
ditadura militar. As recomendações da Comissão Nacional da Verdade em seu
relatório final foram essenciais para a adoção de medidas gerais de caráter
institucional pelo Ministério Público Federal.
3.3.1 Obstáculos à atuação da Comissão Nacional da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade sofreu inúmeras limitações institucionais e
operacionais durante a sua atuação.
Dentre as limitações institucionais enquadram-se o número reduzido de
membros para executar a complexa tarefa de esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticados entre 1946 e 1988, o processo de seleção e escolha
dos membros da Comissão que não precedido de um amplo processo de consulta
pública, a falta de autonomia e independência da Comissão e os entraves temporais
ocasionados pela demora da instauração da comissão - mais de vinte anos após a
promulgação da Constituição de 1988, marco do reestabelecimento democrático – a
amplitude do período de apuração dos fatos e o mandato limitado da Comissão
Nacional da Verdade para realizar todas as suas atividades.
Conforme a Lei 12.528/2011 a Comissão Nacional da Verdade seria
composta por sete membros brasileiros, com reconhecida idoneidade e conduta
ética. Mesmo com o auxilio de assessores e colaboradores, é evidente que esse
número pequeno de membros para executar a árdua tarefa de esclarecer as graves
violações de diretos humanos ocorridos em um período de quarenta e dois anos de
praticas sistematizadas conduzidas pelo Estado é demasiadamente complicado.
Desta forma, em 2013, o pequeno quadro de integrantes da Comissão foi ampliado
pelo Decreto 7919/2013 remanejando temporariamente cargos em comissão o
exercício das suas atividades.
Neste sentido, Santos (2016) critica a quantidade inicial de membros
designados para a composição da Comissão e a demora – um ano após o inicio das
atividades da Comissão – para a ampliação deste quadro. Segundo a autora, a
125
legislação deveria ter contemplado em sua origem um número maior de membros e
assessores para que as atividades da Comissão não restassem prejudicadas.
O Processo de seleção e escolha de integrantes da Comissão também foi
outro ponto fortemente criticado por esta autora. No caso brasileiro a escolha desses
representantes não foi precedida de um processo de consulta pública. Neste
sentido, é destacada a necessidade de um processo escolha que possibilite a
participação de diferentes setores da sociedade, principalmente “das vítimas e
outros grupos marginalizados” (SANTOS, 2016, p. 242).
Outro ponto essencial a ser destacado foi à possibilidade de participação de
integrantes das Forças Armadas na composição da Comissão Nacional da Verdade.
Tal previsão foi ao desencontro da neutralidade necessária para promover a
investigação dos fatos cometidos justamente por esta categoria, e por seus
apoiadores, durante o regime de exceção. Acertadamente, nenhum membro da
Forças Armadas foi indicado pela Presidente da República, atendendo aos anseios
das entidades de direitos humanos e familiares das vítimas da repressão. Isso
porque, é de conhecimento a grande dificuldade já existente em extrair informações
desses agentes que prezam pelo silêncio em detrimento da verdade.
A Comissão, ainda, careceu de autonomia e independência, na medida em
que, as suas atividades ficaram restritas pela própria legislação que a criou. Por
exemplo, a comissão não possuiu poderes para requisição coercitiva das
testemunhas, foi determinada a manutenção do sigilo de alguns documentos e das
informações em contradição com a finalidade desta comissão e, houve a
necessidade de autorização judicial para a realização de determinadas diligencias e
requisições pela comissão (SANTOS, 2016).
Dentre as limitações operacionais sofridas pela Comissão da Verdade estão:
a dificuldade de estruturação e organização interna – a comissão demorou cerca de
sete meses para se estruturar -; as divergências internas surgidas quanto ao objeto
de estudo da respectiva comissão – se deveriam ser investigados apenas os atos
dos agentes de Estado ou se deveriam abranger também os atos praticados pelos
opositores -, e quanto à forma de condução dos trabalhos; a alta rotatividade dos
coordenadores das atividades da comissão que ocorreu no primeiro ano da sua
instituição; e a falta de cooperação das forças armadas que mantendo o pacto de
126
silêncio negavam constantemente a pratica de torturas e violações de direitos
humanos por parte da sua instituição.
Apesar de todos esses percalços, a instituição de uma Comissão Nacional da
Verdade constituiu um importante mecanismo para a elucidação dos fatos e um
grande passo na recuperação da verdade e da memória histórica que até então
estava restrita na memória daqueles que viveram este período sombrio da história
brasileira. O maior êxito da criação da Comissão Nacional da Verdade foi ter
colocado na pauta social a discussão sobre a temática, fomentando o trabalho de
outras comissões da verdade nos planos estaduais, municipais e setoriais, que
perfazem uma rede ativa na produção de novas pesquisas sobre este período.
4 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO: ADPF 320
Em 2010, através do exercício do controle de convencionalidade a Corte
Interamericana julgou o Brasil no Caso Gomes Lund e outros condenando a
manutenção de leis que promovem a autoanistia e afirmando o dever do Estado em
processar, julgar e punir os crimes de lesa humanidade pelo seu caráter
imprescritível.
Desde então o MPF tem movido esforços para dar efetividade à decisão da
Corte Interamericana, porém, esbarra com decisões contrárias proferidas pelo
judiciário brasileiro que atuam em consonância com o entendimento do STF sobre a
validade da Lei de Anistia.
Em 2014, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) propôs a ADPF 320
questionando os efeitos da Lei de Anistia confirmados pela decisão proferida pelo
STF. De acordo com o partido, desde a publicação da sentença pela Corte
Interamericana, em 2010, esta ainda não teria sido cumprida, pois o Supremo em
sua decisão, não analisou o caráter permanente de alguns dos crimes cometidos
pelos agentes públicos contra opositores políticos ao regime militar, notadamente a
ocultação de cadáver.
127
Neste sentido, busca-se a adequação à interpretação internacional que afirma
a obrigatoriedade dos Estados em processar, julgar e punir os crimes de lesa
humanidade cometidos pelos agentes de Estado durante a ditadura.
O Procurador-geral da República Rodrigo Janot enviou parecer ao STF
favorável defendendo a revisão da interpretação da Lei de Anistia no qual foi
enviado para a análise do relator da ação no STF Ministro Luiz Fux.
O Procurador-geral da República utilizou-se da Teoria do Duplo Controle,
criada por André de Carvalho Ramos, para explicar que no atual ordenamento
jurídico brasileiro predomina a necessidade de ser realizada a compatibilização
vertical dos atos normativos, que devem obedecer tanto a Constituição, quanto os
tratados internacionais de direitos humanos.
Neste sentido afirmou o procurador,
Não é admissível que, tendo o Brasil se submetido à jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, por ato de vontade soberana
regularmente incorporado a seu ordenamento jurídico, e se comprometido a
cumprir as decisões dela (por todos os seus órgãos, repita-se), despreze a
validade e a eficácia da sentença em questão. Isso significaria flagrante
descumprimento dos compromissos internacionais do país e do mandado
constitucional de aceitação da jurisdição do tribunal internacional (BRASIL.
PARECER PROCURADORIA-GERAL DA REPUBLICA, 2014, p. 52)
A ADPF 320, até o fechamento desta pesquisa, ainda continua tramitando no
STF, pesando grandes expectativas das vítimas e da sociedade ao desfecho que se
dará.
128
PARTE IV – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE
Diante do que foi exposto até o momento, podemos constatar que a atuação
da justiça de transição no Brasil tem encontrado uma agenda ativa. Após a transição
para o regime democrático, simbolizado pela promulgação da Constituição da
República de 1988, diversos princípios de proteção aos direitos humanos foram
sendo incorporados vislumbrando a emergência de um novo paradigma jurídico.
O reconhecimento da anistia aos perseguidos políticos através do art. 8° do
ADCT, a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, a elaboração do
Programa Nacional de Direitos Humanos, a criação da Comissão da Anistia e a
criação da Comissão Nacional da Verdade demonstram o esforço do Estado
brasileiro na efetivação dos mecanismos transicionais visando principalmente à
atenção das vítimas e o enfrentamento com o passado autoritário. Esta
129
movimentação, mesmo que esteja ocorrendo a passos lentos, afasta a permanência
do esquecimento para dar lugar à construção da verdade e da memória.
Deste modo, a justiça de transição parte do pressuposto de que para que
possamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, conforme prevê a nossa
Carta Constitucional, precisamos acertar as contas com o passado, não sendo
possível fazer “desaparecer” pela imposição da anistia política o passado histórico
marcado pela violação sistemática aos direitos humanos.
Provavelmente, em virtude desta consciência de uma trágica realidade
histórica ocorrida no país, o Brasil prontamente tenha aderido a todos os tratados
internacionais relacionados à proteção dos direitos humanos cristalizando a ideia de
que o indivíduo merece proteção e que este deve ser assegurado pelo Estado.
Neste sentido a adesão pelo Brasil da Convenção Americana de Direitos Humanos,
em 1992, e a aceitação da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humano,
em 1998, estabeleceu garantias judiciais institucionalizando o processo como meio
de assegurar os direitos humanos. (COELHO, 2014).
Assim, os direitos humanos passam a contar com a proteção em duas
esferas: primeiramente no plano nacional onde os Estados devem observar a
prevalência dos direitos humanos rechaçando toda e qualquer norma que vise a sua
violação e, em segundo plano, a proteção internacional, que no caso do Brasil é
regido pela jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos atuando de
forma complementar na falta ou omissão dessa proteção pelos Estados.
Todavia, os legados autoritários (STEPAN, 1988; ZAVERUCHA, 1998)
deixaram resquícios do regime burocrático-autoritário que se projetam no tempo,
mesmo após tantos anos término do regime de exceção. Deste modo, constata-se
que somente a transferência do poder político para atores democráticos não é
suficiente para que possamos superar estes legados. Um dos grandes resquícios
desta continuidade é a interpretação da anistia recíproca imposta pelos militares
como condição para a abertura política do país.
Esta interpretação presente na atualidade fortalece a crença de que os
acontecimentos da ditadura devem ser esquecidos em nome da lógica da
reconciliação nacional (MEZZAROBBA, 2009), transformando em revanchismo
qualquer movimentação contrária a esta convicção.
130
Após a condenação do Brasil no Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia),
uma nova perspectiva foi afirmada, exigindo do país a sua adequação a
jurisprudência internacional que não aceita leis que buscam promover a impunidade
e impedem a investigação de graves violações de direitos humanos.
Porém, a ratificação do Brasil aos tratados internacionais de direitos
humanos, a aceitação formal à competência da jurisdição da Corte Interamericana, e
ainda, a afirmação do caráter supralegal das normas internacionais que tratam de
direitos humanos conforme o art. 5° §2° da Constituição, não foram suficientes para
que houvesse uma interpretação que buscasse compatibilizar a jurisprudência
nacional e a internacional.
A existência de duas decisões plenamente válidas no ordenamento nacional –
a decisão o STF que valida à interpretação da Lei de anistia recíproca e a decisão
da Corte Interamericana invalidando a Lei de anistia – criou uma situação onde as
iniciativas do Ministério Público Federal em dar cumprimento à decisão da Corte
Interamericana em relação à responsabilização penal dos agentes de Estado
envolvidos em graves violações de direitos humanos são constantemente negadas
pelo judiciário brasileiro com decisões que afirmam a ocorrência de prescrição ou
anistia dos fatos imputados, dando cumprimento ao entendimento do STF.
Conforme Luiz Fernando Coelho (2012, p. 6) quando “as soluções propostas
para tais entraves estão em oposição, sendo todas elas fundamentadas e com
pressupostos igualmente válidos, geram-se situações de conflito designadas
antinomias”. Essas antinomias podem ser principiológicas ou ideológicas. ,
As antinomias principiológicas ocorrem ao nível dos princípios gerais de direito declarados na Constituição ou a ela subjacentes. As ideológicas se verificam entre os comandos mais gerais do ordenamento e constituem antecedentes dos próprios princípios. Essa divisão é meramente didática, pois na verdade todos os valores e crenças refletidos na ordem jurídica são redutíveis a princípios. A ideologia do direito envolve preceitos de natureza religiosa, ética e política, e mesmo científica, como é o caso dos pressupostos do ordenamento considerados racionais (COELHO, 2012, p. 6).
Na Justiça de Transição estas antinomias ocorrem ao mesmo tempo
contrapondo o acesso à justiça das vitimas da opressão, a devida assistência e um
mínimo de satisfação, com a impunidade dos agentes opressores salvos pela
anistia-amnésia.
131
Apesar da justiça de transição em seu conceito amplo propor a realização da
justiça em momentos de afirmação democrática abrangendo um conjunto de
providencias que englobam o campo jurídico, político e social, é a análise mais
restrita deste conceito que vem prevalecendo. Ou seja, a análise dogmática onde
“prevalece à confrontação entre as soluções preconizadas pelo direito interno de
cada país com a legislação internacional” (COELHO, 2014, p. 235) conforme
demonstramos no capitulo II deste respectivo trabalho.
Na sua análise sobre a Justiça de Transição, Coelho (2014) propõe o uso das
ferramentas da teoria geral do direito para executar uma investigação zetética e
crítica desse campo de estudos. Assim, inverte a ordem epistemológica passando a
examinar o direito sob o ponto de vista da sociedade.
O pensamento zetético ou investigativo é uma abordagem que tem por
objetivo caracterizar o horizonte das questões no campo jurídico. Assim, busca a
investigação e a dissolução, através de questionamentos, de uma opinião já
formada. Para tanto, esta envolve um conjunto interdisciplinar formado pela filosofia
do direito, pela sociologia jurídica e a histórica do direito, fornecendo substratos para
flexibilizar, adaptar e revisar os dogmas, tratando os enunciados jurídicos como
elementos tentativos e questionáveis. Podemos então afirmar que a investigação
zetética exerce um papel crítico sobre os pressupostos dogmáticos explorando suas
vulnerabilidades lógicas a fim de melhorar as fundamentações e a construção em
que a dogmática se ampara (ROESLER, 2013).
Assim, afirma o autor que, do ponto de vista zetético, a interpretação das leis
da transição democrática deve ocorrer “dentro de um contexto transdisciplinar que
requer sua adequação a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos, como
a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justiça material e
outros”. (COELHO, 2014, p. 236). Desta maneira é possível ir além dos textos
legais, inclusive afastando-os, para fazer prevalecer esses valores.
1 OLHANDO A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO DE “BAIXO PARA CIMA”
132
Utilizando-se do conceito amplo de justiça transicional podemos seguir da
análise do tema sob a perspectiva da teoria geral do direito. Seguindo do ponto de
vista zétetico e crítico podemos então elaborar um panorama em que o aspecto da
transição democrática é visto “de baixo para cima”, ou seja, da perspectiva da
sociedade perante o direito.
Como afirmamos anteriormente, esta visão adequa a transição democrática
baseando-se em pressupostos metaéticos essenciais para a análise. Nestes são
considerados princípios importantes como a dignidade da pessoa humana, a
solidariedade, a paz social, a justiça material, como ponto de partida.
A partir do conceito amplo de justiça de transição podemos afirmar que esta
“extravasa o referencial que liga a expressão ao Poder Judiciário, com alcance do
entendimento de uma justiça criminal” (COELHO, 2014. p. 237). Deste modo esta se
refere a vários tipos de justiça: justiça penal, histórica, reparatória, administrativa,
constitucional e restaurativa.
Este movimento envolve o Estado como um todo na busca de efetivar
plenamente as recomendações dos órgãos internacionais de proteção aos direitos
humanos segundo o qual o Estado possui o dever de investigar, processar e punir
os agentes que violem esta proteção.
Deste modo falar sobre justiça de transição envolve a referência ao menos a
quatro pressupostos:
a) a transição institucional de um Estado autoritário, geralmente dirigido por uma cúpula ditatorial, para o estado de direito, liderado por um governo democrático e constitucional;
b) que o regime anterior tenha praticado, por meio dos seus agentes, atos contra os direitos humanos, como tais definidos pelo direito internacional, na nova constituição e outras fontes, inclusive contra o sentimento moral da nação;
c) que haja a vontade política do novo governo de tentar corrigir as distorções do autoritarismo e impor medidas saneadoras que restabeleça a ética e o respeito ao conteúdo mínimo de um estado de direito;
d) a participação do povo, a intersubjetividade das vontades no sentido da condenação, ao menos moral, do despotismo anterior. É necessário que as medidas as serem tomadas pelo novo governo respondam aos anseios, necessidades e expectativas não somente das vítimas e cidadãos diretamente interessados, como de toda a população, ao menos das parcelas da sociedade que não tenham ficado alienadas ao terrorismo de estado praticado (COELHO, 2014, p. 238).
133
Verifica-se através destes pressupostos que a justiça transicional então deve
ocorrer na plenitude do estado de direito no qual a democracia e os direitos
humanos são o panorama mínimo para a superação do regime opressivo.
A justiça de transição é um novo instituto que busca meios de resolução de
divergências na sociedade, apresentando outras, específicas, a delimitá-lo como
categoria jurídica e política (COELHO, 2014). Neste sentido, o Estado passa a ter os
instrumentos essenciais para lidar com o regime anterior ao mesmo tempo em que
dedica atenção ás vítimas e a seus familiares.
Uma das características dessa justiça é o uso da informalidade.
Conforme afirma Coelho (2014, p. 240), esta pode ser bem compreendida no
contexto de uma tendência generalizada de atenuação das dicotomias
características da modernidade, especialmente a oposição do formal e informal.
Assim afirma que “a diluição das dicotomias nas formas de controle social e das
oposições no seio da sociedade civil é um fenômeno que a observação sociológica
detecta na organização social pós-moderna e na elaboração dos meios de controle
social” fazendo com que os dois polos da vida social se encontrem, ou seja, a
comunidade civil e o Estado.
A burocracia é atenuada, abrindo espaço para outros meios de solução como
a mediação, a conciliação e a arbitragem, instituindo meios mais “simples e popular
de solução de questiúnculas do dia a dia na convivência social” (COELHO, 2014, p.
241). Assim, a justiça de transição consciente da limitação do estado – preparado
para solução de conflitos jurídicos e não para resolver conflitos sociais – faz o uso
desses vários instrumentos informais para fazer justiça.
2 ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
Apesar da lei de anistia ter sido elaborada e aprovada pelos militares, esta foi
recepcionada pelos governos democráticos, e configurou uma resposta ás
reinvindicações de opositores da ditadura e seus familiares sanando os efeitos do
controle extremo do Estado. Contudo, ao mesmo tempo esta lei descortinou
sucessivas injustiças ao inviabilizar a punição dos agentes repressores violadores de
134
direitos humanos deixando as vítimas sem a efetiva proteção que o Estado de
Direito deveria promover.
Já no seio do regime democrático, a Comissão de Anistia foi criada com a
responsabilidade de apreciar e decidir sobre os requerimentos de anistia, afirmando
o pedido de perdão do Estado pelos atos de seus agentes. Apesar de admitir o erro
do Estado, o núcleo da impunidade se manteve intocável.
Em 2011, a criação da Comissão Nacional da Verdade retomou as tentativas
de imposição de justiça, porém foi novamente abafada pelos setores militares, que
alegando revanchismo, limitou as atividades da Comissão da Verdade ao mero
esclarecimento dos casos terrorismo, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação
de cadáver, dentre outros crimes cometidos no regime de exceção. Apregoando que
para se buscar a verdade era preciso uma Comissão que não instituísse a vingança.
Ou seja, todo o aparato elaborado em busca da justiça foi veemente afastado,
e mais, no interior de um regime democrático. O comando internacional de direitos
humanos foi completamente ignorado admitindo a impunidade calcada no principio
da irretroatividade da lei penal em detrimento dos princípios básicos do direito
humanitário: a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade e o da
“universalidade apriorística” (COELHO, 2014, p. 253).
Do ponto de vista dogmático, a lei de anistia impera porque seus efeitos foram
sanados quando da data da concessão de anistia. Porém, na análise da sociedade
para o direito, pode-se questionar se “após a Constituição de 1988, definida como
cidadã, tudo deveria continuar como os militares havia planejado” (COELHO, 2014,
p. 254). Afinal, seria aceitável que um regime opressor, após ter cometido inúmeros
crimes contra os opositores políticos, pudesse perdoar a si mesmo?
O Brasil não viveu o terrorismo. O “terrorismo estatal e o terrorismo
revolucionário”, argumentos justificativos da opressão militar, não se aplicam a
realidade brasileira, pois são fenômenos da história contemporânea restrita a
territórios e povos bem definidos como, a Palestina. A luta revolucionária armada
não fazia “parte da índole do povo brasileiro”. A “ameaça comunista” não passou de
uma ideia fantasiosa, manipulada pelos Estados Unidos, para poder depor o
presidente João Goulart, pois na época, o “partido comunista era inexpressivo”. A
maior expressividade da esquerda na época seria a atuação da “doutrina social da
135
igreja” que pregava “uma igreja para os pobres, ambiência que convergiu para a
teologia da libertação”. A ameaça comunista era, portanto, o fato da “igreja deixar de
ser dos ricos para aproximar-se dos pobres”. A inspiração advinda da Revolução
Cubana de 1959 “não passava dos grêmios estudantis e de círculos intelectuais de
esquerda”. Desde modo, onde estava a ameaça comunista? (COELHO, 2014, p.
256-260).
Parece que o objetivo da anistia concedida desde o seu inicio é ilegítima. O
seu objetivo oculto foi “etiquetar para sempre” as ações da oposição como terroristas
(COELHO, 2014, p. 260).
A concessão de autoanistia é condenável juridicamente e moralmente, pois
ao mesmo tempo em que vai ao desencontro com os princípios norteadores da
sociedade, ainda implantam a ideia de que o Estado pode tudo, o que não deve ser
aceitável. Uma ditadura não pode perdoar a ela mesma.
Seguindo esta ideia, a doutrina de direitos humanos determina que crimes
considerados de lesa humanidade merecem tratamento diferenciado, pois são
crimes cometidos sistematicamente pelo Estado contra a própria sociedade. Neste
sentido, o Estado perde o seu objeto, pois ao invés de amparar e proteger, utiliza o
aparato institucional para reprimir e eliminar a população.
Enquadram-se como de lesa humanidade os crimes de assassinato,
escravidão e prisão violando as normas internacionais, violação, tortura, partheid,
escravidão sexual, prostituição forçada e esterilização compulsória, e ainda, como
tipos penais de guerra, o homicídio internacional, a destruição de bens não
justificada pela guerra, a deportação e o ato de abrigar um prisioneiro a servir em
forças inimigas. Igualmente o principio do “nunca mais” – expressão utilizada pelos
países latino-americanos que passaram pela experiência de governos repressivos
traduzida na ideia de não repetição das atrocidades cometidas pelos agentes de
Estado – foi desconsiderado (COELHO, 2014).
São crimes considerados imprescritíveis porque dentro da lógica de proteção
de direitos humanos, não existe a possibilidade de dispor desses direitos para dar
espaço a critérios que seriam aplicados em tempos normais, como a prescrição.
Assim, os crimes de lesa humanidade podem ser analisados a qualquer tempo
visando à justiça a aqueles que foram injustiçados.
136
Fazendo uma análise de viés filosófico o autor afirma que, o estrito
cumprimento da lei, também foi o argumento utilizado pela defesa dos réus no
julgamento de Nuremberg. Neste julgamento, a condenação dos nazistas foi
sustentada com fulcro na tese da universalidade dos direitos humanos e na noção
de crimes contra a humanidade, remetendo a doutrina do direito natural,
Ou seja, tal qual a história literária e filosófica atribuiu a Antígona, exigia-se
dos nazistas que tivessem resistido às ordens do tirano, pois havia uma lei
superior que deveria ser obedecida. Do mesmo modo impunha-se aos
títeres da modernidade que se abstivessem de atos contra os regramentos
do direito natural (COELHO, 2014, p. 255).
Esta análise mais ampla não é realizada, ficando restrita ao debate sobre um
possível conflito de lei entre normas nacionais e internacionais. Para o autor, a
justiça de transição deve ser analisada no contexto dos princípios gerais dos direitos
humanos, dos quais já existe um consenso internacional que integram o nosso
ordenamento jurídico nacional.
3 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS
A repercussão das violações de direitos humanos pelo mundo ganhou maior
notoriedade após o processo de globalização. Atualmente, recebemos notícias em
tempo real, tendo acesso a informações ocorridas em praticamente qualquer lugar
do mundo. Este fator contribuiu para que cada vez mais pessoas engajassem na
ideia de proteção aos direitos humanos na atualidade, sendo este conceito
conhecido por muitos.
Isso tornou a questão da universalidade desses direitos um discurso cada vez
mais utilizado pelos movimentos de direitos humanos, e inclusive pelos Estados, que
firmam tratados e convenções internacionais sobre estes direitos afirmando o seu
compromisso com este paradigma.
Seguindo a ideia de universalidade, a titularidade dos direitos humanos
passou a ser definido como absoluto, devendo ser observado tão somente pela
condição de ser humano. Essa compreensão deriva da teoria do direito natural
137
constantes nas declarações de direito das revoluções americana e francesa do final
do século XVIII (COELHO, 2014). Neste sentido, o direito humanitário hoje existente
parte dessa construção do direito natural incorporando na consciência da
humanidade a sua importância para a construção de uma sociedade justa.
A constitucionalização das garantias processuais para os direitos humanos foi
essencial para que vários países latino-americanos aderissem a Convenção
Americana de Direitos Humanos e a jurisdição consultiva e contenciosa da Corte
Interamericana de Direitos Humanos provendo, desta forma, uma ampliação dos
mecanismos processuais de proteção aos direitos humanos. Deste modo, o direito
internacional dos direitos humanos foi sendo enriquecido com declarações formais
que afirmavam o compromisso dos países perante a comunidade internacional de
agir em boa-fé para a concretização desses valores.
Assim, emerge um novo campo do direito que se desenvolve nos planos
normativo e doutrinário. No plano da normatividade emerge a tarefa de
sistematização de um international bill of human rights buscando suprir as
deficiências da legislação interna. No plano teórico elabora-se uma teoria geral dos
direitos humanos constituídos pelos seguintes princípios: a) Princípio da dignidade
da pessoa humana; b) Principio da alteridade; c) Principio da universalidade; d)
Principio da aprioricidade; e) Principio da fundamentalidade constitucional; f)
Principio da irreversibilidade; g) Principio da imprescritibilidade dos delitos contra os
direitos humanos; h) Principio da competência judiciária universal; i) Principio do in
dubio pro humanitate (COELHO, 2014).
A dignidade da pessoa humana constitui o “tronco ontológico” de todos os
outros princípios, sendo o valor jurídico supremo da ordem jurídica nacional e
internacional (COELHO, 2014, p. 163-164). No Brasil, a Constituição de 1988 o
estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito (Art. 1°, III,
CF). No plano internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos
estabelece, já no seu preâmbulo, a necessidade de proteção da dignidade humana
por meio da proclamação dos direitos elencados naquele diploma, estabelecendo,
em seu art. 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e
direitos” (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 74). Assim, essa proteção deriva de uma
138
única condição: ser pessoa. Essa proteção é direcionada para todos os seres
humanos, independentemente do reconhecimento de cidadania.
Este principio também é afirmado nos dois Pactos Internacionais (Sobre
direitos civis e políticos e sobre os direitos sociais, econômicos e culturais) e na
Convenção Americana de Direitos Humanos. Conforme afirma Carvalho Ramos,
Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio geral ou fundamental, mas não como um direito autônomo. De fato, a dignidade humana é uma categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético. Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato material para que os direitos possam florescer. Diferentemente do que ocorre com direitos como liberdade, igualdade, entre outros, a dignidade humana não trata de um aspecto particular da existência, mas sim de uma qualidade inerente a todo ser humano, sendo um valor que identifica o ser humano como tal. Logo, o conceito de dignidade humana é polissêmico e aberto, em permanente processo de desenvolvimento e construção (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 76).
Deste modo a dignidade da pessoa humana é um principio que limita do
poder do Estado ao mesmo tempo em que existe a sua atuação para garanti-lo.
O principio da alteridade é corolário do principio da dignidade consistindo no
direito à diferença, ou seja, na aceitação do outro. Este princípio busca combater
simultaneamente a intolerância e a busca da exclusão legítima do outro sendo o laço
de intersubjetividade que une os participantes de um estrato social visando a
unidade cultural. Assim, a alteridade é fonte do multiculturalismo, determinando que
devemos respeitar a diversidade cultural, religiosa, de crença, etc.
A universalidade apriorística declara que a universalidade dos direitos
humanos não está restrita as fronteiras geopolíticas dos Estados, são normas
válidas e vigentes em todos os lugares. A universalidade consiste no
reconhecimento de que os direitos humanos são direitos de todos, não fazendo
distinção de raça, cor, credo, casta, afirmando a essencialidade dos direitos
humanos como valores indispensáveis que devem ser observados e protegidos por
todos.
Coelho (2014, p. 172-269) adjetivou o termo “apriorista” para referir-se à ética
kantiana “que atribuía validade a priori ao imperativo categórico”. Por apriorismo
entende-se que os direitos humanos “não dependem de sua definição jurídico-
positiva para configurarem como tais”. Deste modo as constituições, tratados e leis
exercem a função de declarar e dar certo grau de eficácia, pois os direitos humanos
139
são naturais. Uma vez incorporada essa garantia na constituição e tratados
internacionais sua validade “é e deve ser vista como apriorística,
independentemente de sua elaboração histórica”. Assim a dignidade humana e o
respeito aos direitos humanos são conquistas irreversíveis do ser humano e os atos
atentatórios a esses direitos constituem crimes contra a humanidade.
A fundamentalidade constitucional remete a distinção entre os direitos
humanos e os direitos fundamentais. Os direitos humanos são aqueles inerentes a
toda e qualquer pessoa independentemente da cidadania. Os direitos fundamentais
são aqueles internacionalizados no ordenamento jurídico nacional através da
Constituição. Neste sentido, o principio da fundamentalidade constitucional dispõe
que os direitos humanos devem constar na constituição e nos documentos básicos
do Estado como fundamentais (COELHO, 2014).
Os direitos humanos fundamentais são vistos pelos aspectos formal e
material. A fundamentalidade formal é a positivação dos direitos fundamentais na
Constituição, implicando obrigações de ordem positiva e negativa. A
fundamentalidade material dispõe que os direitos humanos são materialmente
constitucionais. No Brasil, as normas de direitos humanos materialmente
constitucionais possuem o caráter supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição
de 1988 e acima da legislação ordinária. Essa separação serve como critério para o
controle de legalidade e o controle de constitucionalidade da legislação.
O principio da irreversibilidade ou principio “nunca mais” remete à condição de
clausula pétrea das normas constitucionais que enunciam os direitos humanos.
Coelho (2014) utilizou-se do conceito “nunca mais” para homenagear o movimento
social ocorrido durante a ditadura militar na América Latina na luta contra a
repressão. Este principio tem alcance teórico e pratico. Na teoria “ele enuncia que o
mero fato de haverem sido invocados, em algum momento da opopeia das
instituições jurídico-políticas, torna os seres humanos para sempre incorporados ao
patrimônio moral da humanidade”. No campo prático, afirma que uma vez
incorporada à norma na legislação, esta não é mais passível de reforma.
Assim busca-se o não retrocesso de direitos humanos adquiridos ao longo da
evolução das sociedades, afirmando que estes uma vez conquistados não podem
mais ser excluídos ou ignorados pelos Estados.
140
O principio da imprescritibilidade criminal e a competência judiciário universal
afirmam a imprescritibilidade dos delitos cometidos contra os direitos humanos,
afirmando que estes podem ser julgados a qualquer tempo e por qualquer
autoridade que possua competência para exercer o poder jurisdicional. Deste modo,
qualquer juiz ou Tribunal pode processar e julgar os crimes de lesa humanidade.
Também é consequência deste principio a limitação dos Estados em conceder
anistia aos crimes de lesa humanidade.
O último principio que iremos abordar é o princípio do in dubio pro humanitate.
Esta tese fundamental elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho trouxe um
novo paradigma para reger a hermenêutica dos direitos humanos no que tange a
imprescritibilidade e competência judiciária. Conforme o autor trata-se de um
“aforisma que deve ser aplicado dentro de uma limitação: só deve ser considerado
quando se trata de praticas coletivas, por parte de um governo ou grupo no poder,
atos cometidos sistematicamente” (COELHO, 2012, p. 18). Esta tese abrange todas
as situações que se referem a eficácia dos direitos humanos, inclusive as definidas
como justiça de transição.
4 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE
Seguindo o estudo da justiça de transição sob a perspectiva zétetica e crítica
passamos a analisar o tema utilizando um conceito mais amplo, ou seja, “um
conjunto de medidas que, ao abrigo da legislação pós-autoritária, passa atenuar os
efeitos do autoritarismo e assim responder à questão da eficácia do direito em
períodos de metamorfose política” (COELHO, 2014, p. 235), no qual a transição
democrática passa a ser analisada “de baixo para cima”.
Neste sentido, a questão sobre a compatibilidade ou não do ordenamento
nacional com o internacional – que é uma abordagem mais restrita da justiça de
transição – deu espaço para um analise voltada mais ao aspecto da justiça do que
ao processo de transição em si. Ou seja, saímos da análise dogmática para
discutirmos sobre a prevalência dos princípios gerais dos direitos humanos.
141
São pressupostos e ao mesmo tempo fundamentos para uma política de
transição do autoritarismo para a democracia respeitando a ideia de que uma
ditadura não pode, moralmente, julgar outra, pois a participação do povo, a
intersubjetividade das vontades no sentido da condenação, ao menos moral, do
despotismo anterior, é outro pressuposto inarredável (COELHO, 2012).
A tese fundamental in dubio pro humanitate elaborada pelo professor Luiz
Fernando Coelho (2014) é essencial para que possamos solucionar a questão que
hoje prevalecente no país sobre o conflito entre a interpretação da Lei de Anistia de
1979 realizada pelo STF e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
e outros conflitos que possivelmente surgirão ao longo do tempo.
Do ponto de vista zetético a interpretação das leis da transição democrática
deve ocorrer dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequação a
alguns valores tidos como pressupostos metaéticos como, a dignidade da pessoa
humana, a solidariedade, a paz social e a justiça material. E essa adequação pode
insurgir no afastamento da dogmática jurídica, que ao ser contestada, não se
adequou a esses pressupostos. Afinal, a perspectiva utilizada é da sociedade para o
direito e não ao contrário.
O principio in dubio pro humanitate enuncia que todos os direitos que dizem
respeito à humanidade se sobressaem a quaisquer outros direitos. Neste sentido, o
seu enunciado sugere a analogia com as máximas in dubio pro reo, in dubio pro
operário e in dubio pro natura, ou seja, a intepretação da norma em questão deve
ser compreendida de maneira a tornar mais proveitosa e melhor viabilizar a
prestação jurisdicional que protege os direitos humanos. Seguindo este raciocínio,
nenhuma norma interna poderia afastar essa proteção, devendo o ordenamento
jurídico nacional afastar de imediato uma possível violação.
Essa tese fundamental possui uma limitação: somente deve ser aplicado aos
casos em que forem constatadas práticas coletivas e sistemáticas de violações aos
direitos humanos cometidos por parte de um governo ou um grupo no poder, e não
para processar e julgar delitos individuais de direitos humanos. Fora deste contexto
não deve ser utilizada para julgar outras espécies de crimes, por mais hediondos
que sejam.
142
Este critério hermenêutico favorece a análise das violações sistemáticas
contra os direitos humanos estabelecendo que “o terrorismo de Estado e a
crueldade contra o povo” devem motivar a reação dos governos democráticos. Além
de projetar-se sobre todos os demais princípios, este ainda se “interliga com outro
invocado no âmbito do direito constitucional, em especial no que tange às
antinomias constitucionais”. É o principio da razoabilidade ou proporcionalidade
(COELHO, 2014, p. 188).
Aplicando o principio in dubio pro humanitate para solucionar o conflito de
intepretação entre as decisões do STF e as decisões da Corte Interamericana de
Direitos humanos, a decisão da Corte Interamericana prevaleceria. Não apenas
porque ratificamos a Convenção de Viena ou aceitamos a jurisprudência da Corte
Interamericana, mas sim, porque na análise da antinomia existente entre esses dois
entendimentos, a norma mais favorável aos direitos humanos consta da decisão que
afasta a validade da Lei de Anistia de 1979.
Em síntese, o principio in dubio pro humanitate surge como um mecanismo
que reforça o campo hermenêutico e a tese da universalidade apriorística dos
direitos humanos, servindo como um instrumento de tríplice função: “É informadora
para o legislador, normativa para a solução de antinomias e interpretadora como
critério para a magistratura e os operadores do direito em geral” (COELHO, 2014, p.
188). A utilização da hermenêutica jurídica para interpretar as questões de antinomia
entre normas que dizem respeito à humanidade desprende-se dos aspectos
dogmáticos possibilitando dar outra interpretação a norma utilizando-se do critério
mais favorável à humanidade. Assim, a antinomia é solucionada com base nas
regras gerais de interpretação jurídica e nas específicas da hermenêutica
constitucional auxiliando na resolução de conflitos entre duas normas igualmente
válidas.
143
]
CONCLUSÂO
Os processos de transição ocorridos logo após o termino da ditadura militar
impuseram Leis de Anistia que implantaram o perdão recíproco para agentes do
estado que cometeram crimes de graves violações de direitos humanos. Quando
analisamos de uma perspectiva política a transição da forma como ocorreu era o
único meio possível, já que havia grande receio em que o processo transicional
ficasse prejudicado caso as forças militares decidissem recuar na liberalização
política.
Ao mesmo passo que a Lei de Anistia implantou o esquecimento quanto aos
acontecimentos ocorridos na ditadura impossibilitando que ações penais contra os
agentes corressem, este foi um grande passo para que os presos políticos
retornassem a vida em sociedade sem o risco de serem mortos ou perseguidos.
144
A justiça transicional se desenvolveu no Brasil a passos lentos buscando
efetivar mecanismos que pudessem atenuar os efeitos gerados pelos regimes não
democráticos afirmando que o processo transicional deve ocorrer observando
também os parâmetros da justiça.
Assim, a construção da memória e verdade, reparação das vítimas, reforma
das instituições e justiça passaram a ser exigidas como forma de concretização do
processo democrático.
Neste percurso, antinomias surgiram. De um lado o Supremo Tribunal Federal
afirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, e de outro, a Corte
Interamericana proferiu decisão diversa da nossa Corte Maior.
Conforme verificamos neste trabalho, a discussão em torno desta
problemática ocorre no plano dogmático, restringindo os caminhos e gerando
embates entre o Ministério Publico que atua em cumprimento a sentença da Corte
Interamericana, enquanto o judiciário nega tais pedidos em consonância com o
entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Neste embate o professor Luiz Fernando Coelho sugere outra perspectiva.
Uma análise mais ampla que se utiliza da Teoria Geral do Direito. Deste modo, a
justiça de transição é analisada pela ótica da zétetica e da critica, sugerindo a
utilização da hermenêutica como possível solução.
Assim, o principio in dubio pro humanitate é uma tese fundamental para reger
a hermenêutica dos direitos humanos no que tange à imprescritibilidade e
competência judiciária. Deste principio emerge com uma tríplice função: Informadora
para o legislador, normativa para a solução de antinomias e interpretadora como
critério de orientação para aqueles incumbidos a interpretar e integrar os direitos
humanos (COELHO, 2012).
Deste modo, o in dubio pro humanitate reforça o campo hermenêutico
afirmando que no caso de crimes sistematizados cometidos pelo Estado que gerem
graves violações aos direitos humanos, os direitos que dizem respeito à humanidade
se sobrepõem a todos os outros devendo, portanto, ser observado.
145
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