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Jorge Rubem Folena de Oliveira A R CE D I T O R

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ABRINDO PORTASREFLEXÕES SOBRE O BRASIL

Jorge Rubem Folena de Oliveira

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Copyright © Jorge Rubem Folena de Oliveira 2014

1a Edição

Capa: Aline Tavares BezerraProjeto Gráfico e Diagramação: Aline Tavares Bezerra

Editoração Eletrônica: Aline Tavares BezerraRevisão: Verlene Tavares

CIP-Brasil. Catalogação na FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Abrindo PortasReflexões Sobre o Brasil

Jorge Rubem Folena De OliveiraEditora: ARC EDITOR

Categoria: Ciência PolíticaIdioma: Português

ISBN: 978-85-89140-25-6

160p Oliveira, Jorge Rubem Folena de, 1968 Portas abertas/ Jorge Rubem Folena de Oliveira.– Rio de Janeiro: ARC Editor, 2014

160p.; 18cm

ISBN: 978-85-89140-25-6 1. Literatura brasileira. 2. Política. 3. Brasil. 4. Reflexões

1. Título CDD: 869

CDU: 82.92

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Apresentação___________________________________________________________________

Introdução_____________________________________________________________________

CAPÍTULO I: A DEMOCRACIA LIBERAL_______________________________________________

1. Todo poder emana do povo?_________________________________________________

2. O plebiscito, o referendo e sua usurpação pelo parlamento_________________________

3. O desprezo pelo povo ______________________________________________________

4. Democracia e direitos sociais_________________________________________________

5. Alerta à nação_____________________________________________________________

6. A saúde na república________________________________________________________

7. Liberdade de expressão e informação__________________________________________

8. A pobreza segundo o IPEA ___________________________________________________

SUMÁRIO

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9. Ato secreto nunca mais ____________________________________________________

10. Pacificar o quê?____________________________________________________________

11. O endividamento dos aposentados_____________________________________________

12. O desenvolvimento sustentável _______________________________________________

13. Lei delegada 4/1962: a quem interessa sua revogação? ____________________________

CAPÍTULO II: AS RIQUEZAS DO PAÍS ________________________________________________

1. O monopólio do petróleo ___________________________________________________

2. Exploração do pré-sal – projeto de lei inconstitucional _____________________________

3. Exportação do pré-sal ______________________________________________________

4. Os royalties e o pré-sal______________________________________________________

5. Royalties do petróleo do Estado do Rio de Janeiro ________________________________

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6. O governador e os royalties__________________________________________________

CAPÍTULO III: POR QUE PRIVATIZAR?_______________________________________________

1. A privatização da Infraero___________________________________________________

2. A privatização da água _____________________________________________________

3. Cabral e o Tom Jobim_______________________________________________________

4. A Vale ainda é nossa ______________________________________________________

CAPÍTULO IV: LEMBRANÇAS DA COLÔNIA __________________________________________

1. A família real ____________________________________________________________

2. A anistia e o PNA _________________________________________________________

3. Revelações da crise _______________________________________________________

4. A lei Kandir, o PAC e outras estórias ___________________________________________

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5. Uma injusta e inconstitucional reforma tributária________________________________

6. Sociedade anônima _______________________________________________________

CAPÍTULO V: DIREITO OU JUSTIÇA_________________________________________________

1. Liberdade, paz e justiça_____________________________________________________

2. Efetividade de justiça_______________________________________________________

3. O projeto de lei 5.099/2009 e a empresa de única pessoa _________________________

4. Teria o STF competência originária para julgar ministro de estado? __________________

5. A desconsideração da personalidade jurídica e o projeto de lei 4.298/08 _____________

6. O ECAD_________________________________________________________________

7. A excogitável execução fiscal administrativa e suas inconstitucionalidades ____________

8. A indevida utilização do depósito judicial pelo fisco ______________________________

9. 21 anos da Constituição_____________________________________________________

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APRESENTAÇÃO

Este trabalho é fruto da reunião de reflexões que fiz ao longo dos últimos três anos, a partir de 2007, no exercício de minha profissão de advogado e como cidadão militante.

Confesso que minhas observações e inquietações decorrem do inconformismo com uma sociedade brasileira injusta e já acostumada a conviver com impasses e indiferenças, que, a princípio, poderiam ser solucionados com um pouco de vontade política, na medida em que existem recursos materiais e culturais no País para que todos possam viver com o mínimo de dignidade.

Com efeito, não tive a pretensão de fazer um trabalho isento, seguindo as regras e as for-mas acadêmicas, mas procurei, de forma direta e objetiva, questionar personagens e posturas adotadas em nosso meio político e social.

Acredito que as situações apresentadas não constituam novidades para os leitores, di-ante do cenário em que vivemos. A intenção é reafirmar a necessidade de pensarmos o Brasil e seus problemas e tentar criar a esperança de dias melhores.

Março de 2010.

O Autor

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INTRODUÇÃO

Como pensar a formação de uma Constituição, a lei máxima de organização de uma sociedade, que não reflita a origem de seu povo?

A Constituição como norma deve estar baseada nos princípios norteadores de uma sociedade. A organização do povo é fundamental. Na História do Brasil, apenas as Constitu-ições de 1946 e 1988 tiveram uma discussão mais aprofundada. Neste ponto, a “Constituição Cidadã” de 1988, hoje deformada por mais de sessenta emendas, foi a que mais participação despertou na população.

Mesmo assim, não se pode afirmar que os interesses do povo brasileiro estejam genu-inamente representados neste texto político. Avanços de verdade ocorreram, particularmente quanto aos direitos e garantias fundamentais.

Todavia, na prática, mesmo depois de mais de vinte e um anos, os avanços ainda não se transformaram em realidade para o povo. Ao contrário, muitos direitos foram solapados, como os previdenciários, e se tenta a todo custo restringir os direitos dos trabalhadores.

Uma Constituição de verdade deve refletir a vontade popular, porque toda a estrutura de poder na sociedade liberal está assentada neste princípio fundamental, qual seja: “todo poder emana do povo”. Mas será isto uma realidade?

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A Constituição como texto legislativo é avançada. Contudo, na prática, vivemos em uma sociedade onde impera um grau de miséria incompatível com um estado democrático de direito - princípio fundamental da República, previsto no artigo 1.º da Constituição de 1988, porém muito longe ainda de ser alcançado, uma vez que muitas crianças não têm es-cola de qualidade, o sistema único de saúde é muito bom no papel, mas a população não tem um serviço médico de qualidade e gratuito.

Como superar estes impasses, existentes no Brasil e comuns a toda a América Latina, espoliada em conseqüência do processo de colonização europeu e à mercê do imperialismo americano do século XX?

Vale lembrar que os países latino-americanos apresentam idênticas heranças da coloni-zação: expropriação das suas riquezas; pobreza da população e dirigentes conservadores.

O Brasil tem potencialidades (naturais e culturais) que podem ser relevantes para o seu desenvolvimento e que poderiam ser também compartilhadas com os outros países do continente.

A Constituição Federal orienta para a formação de uma comunidade latino-ameri-cana de nações (art. 4.º, parágrafo único). Porém, existem dificuldades para essa integração: ausência de uma política nacional de desenvolvimento; exportação de riquezas estratégicas; tentativa de hegemonia sobre as demais nações do continente e o alinhamento com os países desenvolvidos.

| Introdução

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CAPÍTULO IA DEMOCRACIA LIBERAL

Por que o homem, único ser capaz de transformar tudo, não consegue conviver harmo-niosamente? Ao dominar o fogo, o homem também conquistou o controle sobre a natureza. Ele administra as fontes de energia necessárias à sua manutenção e dos demais seres vivos.

Em razão disso, o homem sempre se impôs, fazendo valer a “lei do lobo: matar ou morrer”, como manifestou o escritor americano Jack London, em seu livro “Caninos Brancos”.

Contudo, na busca por uma vida harmoniosa e visando a acomodação do quadro so-cial, o homem desenvolveu a democracia, que para os gregos era “o governo do povo”.

A democracia se desenvolveu numa sociedade deformada, uma vez que, na antiga Grécia, nem todos os homens eram considerados seres humanos (titulares de direitos e deveres), sendo que muitos eram tidos por coisas, como os escravos.

Desta forma, a democracia, que evolui com o estado liberal, é típica de sociedades onde prevalecem os melhores, os mais capacitados e os vencedores, sendo próprio do regime con-viver pacificamente com diferenciações e injustiças, na medida em que o homem combate a si mesmo, como verdadeiro “lobo”, capaz de matar até mesmo os seres da sua própria espécie para se manter no controle da situação.

Daí a existência de tantas ignomínias na sociedade atual, como tentaremos demonstrar a seguir.

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Capítulo 1 TODO PODER EMANA DO POVO?1

Em 07 de outubro de 1962, Osny Duarte Pereira finalizou o seu livro “Quem faz as leis no Brasil?” com a seguinte indagação: “Quando passará o povo a ser voz dominante no Congresso?”

Toda organização social contemporânea deveria estar fundada na vontade popular, como orienta o pensamento de Rousseau, no “Contrato Social”.

O poder popular é transferido por mandato: 1) ao Parlamento, para a elaboração das leis; 2) ao Executivo, para o cumprimento das leis; e 3) ao Judiciário, para interpretar as leis.

O documento jurídico mais importante de uma sociedade, a Constituição, decorre ex-clusivamente da vontade do povo, como expresso no preâmbulo da Carta Política brasileira de 1988, quando os constituintes declararam: “Nós, representantes do povo brasileiro”.

Mas será que na sociedade brasileira a vontade do povo tem sido atendida e confirmada?

1 Tribuna da Imprensa, de 31/07/2008, p. 04.

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Autores como o mestre Osny, na obra citada acima, e René Armand Dreifus, em “1964: a conquista do Estado”, concluíram que não.

Na maioria das vezes prevaleceram os interesses de grupos privados estrangeiros, em detrimento dos nacionais, conforme farta documentação apresentada por Dreifus em seu livro, e também confessado por militares que estiverem à frente do País durante o regime militar instalado de 1964 a 1985, como apurou o jornalista Hélio Contreiras, em seu livro “Militares Confissões - Histórias Secretas do Brasil”.

Na Constituição promulgada em 05/10/1988, segundo um dos seus relatores, muitos artigos não foram submetidos à deliberação dos constituintes, o que levou o Governador Leonel de Moura Brizola, em artigo publicado no “O Globo”, de 09/10/2003, a manifestar: “Fraude, e agora? A insólita revelação do Sr. Nelson Jobim de que na promulgação da Constituição de 1988 ele próprio participou de uma fraude para introduzir no texto constitucional artigos que não foram votados pelos constituintes, deixou o hoje ministro do Supremo em posição ética e jurídica delicada, para não dizer insustentável como integrante da mais alta Corte Constitucional do país. Como pode alguém que, deliberada e conscientemente, violou, no nascedouro, a Carta Magna, ser agora aquele que vai julgar no Supremo Tribunal Federal as questões constitucionais?”

A absurda declaração do então Ministro do Supremo Tribunal Federal deu origem a pedido de seu impeachment, apresentado no Senado Federal, e que, estranhamente, foi in-

Capítulo I - Todo Poder Emana do Povo? |

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deferido liminarmente pelo Presidente José Sarney, sem submeter o caso aos demais senadores nem abrir um regular procedimento para apuração da denúncia, conforme despacho publica-do no Diário do Senado Federal de 5/11/2003:

“Os fatos narrados na Petição n. 12, de 2003, não tipificam o crime de responsabilidade previsto no artigo 39 da Lei n. 1.079/50, pois são apenas comentários sobre fatos ocorridos nos idos de 1987 a 1988 quando o Ministro NELSON JOBIM ocupava o mandato de Deputado Federal.

Portanto, o Ministro NELSON AZEVEDO JOBIM, homem cuja trajetória é um testemu-nho de honradez, integridade e trabalho, que integra o Supremo Tribunal Federal desde 1997, nem em tese cometeu qualquer transgressão, razão pelo qual indefiro a petição e determino o seu arquivamento.”

O constituinte e deputado federal, ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso, e da Defesa, no Governo do Presidente Lula, atuou nas três esferas da representação popular: no Parlamento, no Executivo e no Judiciário.

Como ficou a voz do povo no exercício destes amplos mandatos? Será que o Senador José Sarney, ex-presidente da República e do Congresso Nacional, teve a acuidade com os in-teresses do povo, ao atestar a honradez, a capacidade e a integridade de um político que, ao se expressar, não pensou sequer na responsabilidade inerente aos importantes cargos que ocupou?

| Capítulo I - Todo Poder Emana do Povo?

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Capítulo 1 O PLEBISCITO, O REFERENDO E SUAUSURPAÇÃO PELO PARLAMENTO1

O inesquecível comício das “Diretas Já”, realizado em abril de 1984, na esquina das avenidas Rio Branco e Presidente Vargas, na Cidade do Rio de Janeiro, teve um momento mágico quando o advogado Sobral Pinto, do alto do palanque, manifestou, com toda sabe-doria: “todo poder emana do povo e em seu nome deverá ser exercido”.

A Constituição Federal, em no artigo 1.º, parágrafo único, assegura que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Deste modo, é certo afirmar que o poder popular somente “em seu nome (do povo) será exercido”, ao contrário do que pensam e pela forma como agem alguns dirigentes políticos.

O povo não é subalterno aos propósitos daqueles a quem outorgou o poder. Os representantes da vontade popular atuam por mandato e, sendo assim, os integrantes dos

1 Revista do Instituto dos Advogados Brasileiro, n. 96, ano XXXV, 2º Semestre de 2007 e Tribuna da Imprensa, de 28/08/2007, p. 04.

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Poderes da República (o Presidente da República, os 513 Deputados, os 81 Senadores e os 11 Ministros do Supremo Tribunal Federa) devem lealdade aos seus patronos, sob pena de usurpação do poder da vontade geral coletiva.

No atual estado democrático de direito, a manifestação direta do povo é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, e por meio do plebi-scito, do referendo e da iniciativa popular, conforme consagra o artigo 14 da Carta Política.

Portanto, assuntos ligados ao interesse do país, com forte relevância nacional, tais como a concessão de terras na Amazônia e a transposição das águas do Rio São Francisco, não po-dem depender da vontade exclusiva do Poder Executivo e do Congresso Nacional.

Em razão disto, a redação do artigo 3.º da Lei 9.709/98, ao estabelecer que “nas questões de relevância nacional”, o plebiscito e o referendo, formas de manifestação democrática di-reta, somente serão convocados mediante decreto legislativo, por iniciativa, de no mínimo um terço dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, está em desacordo com as normas dos artigos 1.º, parágrafo único, e 14 da Constituição Federal.

Ao assim determinar, o artigo 3.º da Lei 9.709/98 limitou a soberania popular, consagrada na Constituição Federal, que deu poderes ao povo para se manifestar diretamente sobre assuntos de seu relevante interesse.

| Capítulo I - O Plebiscito, o Referendo e sua Usurpução pelo Parlamento

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Questões dessa natureza exigem a expressa vontade popular, uma vez que muitas delas envolvem a soberania nacional e o destino de todos. São, portanto, indelegáveis, cabendo exclusivamente ao povo decidir sobre as mesmas.

Caso contrário, não teria sentido a Constituição Federal consagrar a democracia direta no seu art. 1.º, parágrafo único, e reafirmá-la, no seu artigo 14, por meio do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular.

Se fosse outra a intenção do constituinte originário, bastaria manter a forma de manifestação democrática representativa, exercida pelo Congresso Nacional, como se dava na ordem constitucional anterior.

Na verdade, ao prever em seu artigo 14 a regulamentação dos instrumentos da participação popular democrática, a Constituição não quis limitar o alcance daquela atuação nem pretendeu dar exclusividade ao Congresso Nacional, como se pretende pela leitura isolada do artigo 49, XV, da Constituição, para estabelecer os temas sobre os quais o povo poderia se manifestar.

Ao impedir o conjunto de cidadãos de encaminhar os assuntos que considera de rele-vante interesse, a Lei 9.709/98 (artigo 3.º) restringiu a norma Constitucional.

Capítulo I - O Plebiscito, o Referendo e sua Usurpução pelo Parlamento |

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Todavia, isto não significa que a lei não possa dar aplicação imediata ao plebiscito e ao referendo, na forma estabelecida na Constituição.

Para tanto, interpretando-se a lei segundo a Constituição Federal, bastaria que fosse observada a regulamentação do encaminhamento de projeto de lei de iniciativa popular, prevista no seu art. 13.

Desta forma, a sociedade civil poderia dirigir ao Congresso Nacional o assunto a ser de-liberado, mediante a assinatura de um por cento do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Assim, o povo brasileiro seria convocado a se manifestar, seja para iniciar (plebiscito) ou para confirmar (referendo) ato legislativo ou administrativo referente à questão relevante objeto da consulta.

Portanto, a norma do art. 3.º da Lei 9.709/98 está em desacordo com a Constituição e deve ser julgada inconstitucional, conferindo-se à aludida lei interpretação no sentido de permitir que o plebiscito e o referendo sejam encaminhados por meio da regra do seu artigo 13 e não apenas pelo artigo 49, XV, da Constituição Federal.

| Capítulo I - O Plebiscito, o Referendo e sua Usurpução pelo Parlamento

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Capítulo 1

Parece que realmente o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) não tem nen-hum apreço pelo povo ou por suas manifestações. Tanto é que, em 21 de junho de 2007, propôs no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3908, re-lator Ministro Joaquim Barbosa, por meio da qual pretendia eliminar, se possível fosse, a manifestação popular prevista na Constituição quanto ao referendo, em relação a atos ad-ministrativos. Pasmem!

O fundamento da ação é de que a vontade da maioria tem limitação e não deve ser atendida em sua plenitude, rotulando que o plebiscito e o referendo são formas de manifes-tação da democracia “semi-direta”, quando se sabe que tais instrumentos constituem a forma direta do povo se manifestar, sem intermediários, pois estes, uma vez eleitos, não representam os interesses de seus mandatários.

Ora, eles acreditam que a vontade do povo não pode revogar um ato jurídico “per-feito”, mesmo que contrário às leis e à soberania popular.

O DESPREZO PELO POVO

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Esta ação apresentada ao STF revela o desprezo que os dirigentes do PSDB têm por sua gente e seu país. A agremiação partidária tem em sua denominação o termo “DEMOCRACIA” e entre seus objetivos “o exercício democrático participativo” (art. 2º do seu Estatuto), onde se incluiu o referendo.

Pelo visto, o PSDB, com a propositura da medida judicial, deixou de levar em conta não apenas o seu Estatuto, como também a vontade das pessoas de seu País, esquecendo que “todo poder emana do povo e em seu nome deverá ser exercido”.

Surpreendentemente, no curso do processo foi revelado um fato gravíssimo, que levou o relator, Ministro Joaquim Barbosa, a determinar o seu arquivamento, sob o fundamento de que “a presente ação direta presta-se exclusivamente à defesa de interesses particulares concretos.”

Um partido político, que recebeu pela Constituição de 1988 (art. 103, VIII) o múnus de propor ação direta de inconstitucionalidade para defender a coletividade ou a ordem so-cial, não poderia jamais patrocinar questões particulares, como registrou o relator do proces-so, uma vez que está em jogo interesse “concreto e delimitável: a sustentação de alvará concedido pelo Município de Fortaleza à empresa Jereissati Centros Comerciais S/A.

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Além disso, conhecer da presente ação seria trazer à Corte uma discussão que está sendo trata-da pela Justiça do Ceará. Não me parece existir qualquer razão para interceptá-la neste momento.

Anoto ainda que a legitimação processual dos partidos políticos só é ampla e irrestrita, na interpretação dessa Corte, quando atuam, no rito processual da ação direta, ‘como corpos intermediários, posicionando-se, nessa particular condição, entre a sociedade civil e a sociedade política’ (ADI 1.096-MC, rel. min. Celso de Mello, RTJ 158/441). A legitimação ampla não pode resultar na transformação desta Corte em um tubo de ensaio para a afirmação de interesses concretos ou individuais.

Do exposto, indefiro a inicial (art. 4.º, Lei 9.868/1999).”1

Portanto, a propositura da ação judicial atentou contra os princípios da moralidade e impessoalidade, resultando igualmente numa agressão direta ao artigo 1.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95), que dispõe que eles devem defender os direitos fundamentais defini-dos na Constituição. Entre estes se destaca o referendo (artigo 1.º, parágrafo único, c/c artigo 14, II), instrumento da democracia participativa, o que conduz a conclusão de ser o autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade um Partido distante do povo.

1 Decisão proferida em 30/10/2008, publicada no DJE n.º 210, de 05/11/2008.

Capítulo I - O Desprezo pelo Povo |

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Capítulo 1

A democracia consiste na participação de todos nas decisões políticas tomadas pela sociedade organizada e o estado de direito é o respeito às ordens emanadas pelos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário).

O estado democrático de direito é a base da sociedade contemporânea, sendo um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 1.º da Constituição).

Todavia, como se pode dizer que vivemos num estado democrático de direito, quando os direitos inerentes à pessoa humana não são respeitados?

O artigo 6.º da Constituição prevê que são direitos sociais a educação, a saúde, o tra-balho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência social.

Na verdade, nenhum destes direitos fundamentais é respeitado no País. Não há escola pública de qualidade. Os trabalhadores são mal remunerados. O déficit de habitação é

DEMOCRACIA E DIREITOS SOCIAIS

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gigantesco, particularmente nos centros urbanos, com a população vivendo de forma insalubre em favelas e com altíssimo índice de tuberculose e leptospirose, como ocorre na Rocinha, no Rio de Janeiro (O Globo, 25/03/09, p. 11).

O lazer é destinado apenas aos que podem pagar, sendo ínfimas as opções gratuitas ou com preços razoáveis que possibilitem ao trabalhador ter acesso às belas artes ou programas esportivos.

Vivemos num estado policial em que o cidadão pobre é marginalizado e perseguido pelos agentes públicos que deveriam garantir a segurança. A violência doméstica é uma tôni-ca, seja diante de mulheres ou filhos indefesos, aliada à ausência de proteção à maternidade e à infância. Às vezes até o homem é maltratado pelas mulheres e filhos, mas não encontra proteção no Poder Público.

A Previdência e Assistência Social dos trabalhadores foi degradada, transferindo-se suas receitas para empreendimentos diversos do interesse dos segurados, inclusive com a maciça concessão de isenções de contribuições sociais sem contrapartida de reposição.

Diante deste quadro, como é possível se afirmar que vivemos numa sociedade em que impera o “Estado Democrático de Direito”, uma vez que em nenhum momento o povo é

Capítulo I - Democracia e Direitos Sociais |

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chamado a debater os destinos do País, em temas diretamente relacionados aos seus interesses?

Na estrutura liberal vigente, o povo é tutelado, por meio de representações políticas, expressas nas decisões dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, quando deveria ser ed-ucado para ter condições de se manifestar e compreender o processo político.

O sistema, na verdade, privilegia os mais ricos. Não há espaço para uma disputa eleitoral, livre e aberta, em que representantes das diversas camadas sociais disputem em grau de igualdade. O poder do capital prevalece no sufrágio.

É a comprovação de que inexiste democracia, mas um estado de direito em que a ordem é fazer valer o poder da minoria que detém o controle dos meios de produção.

Como disse o presidente dos Estados Unidos da América do Norte, Barack Obama: “precisamos de Wall Street para vencer a crise” (O Globo, 25/03/09, p. 21). Ou seja, é a confirmação de que o capital é a base da democracia ocidental, mesmo causando perdas e prejuízos aos trabalhadores de todo o mundo, inclusive do próprio país da América do Norte.

| Capítulo I - Democracia e Direitos Sociais

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Capítulo 1

A Tribuna da Imprensa noticiou, em 19/09/2007, p. 07, que, na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU, ocorrida no dia 18/09/2007, o relator especial da entidade para o combate ao racismo (o senegalês Doudou Diène) denunciou que partes do Estado, do Judiciário e da sociedade civil brasileira resistem a medidas de combate ao racismo.

Segundo o relator da ONU, as comunidades mais pobres do país são as mesmas que historicamente foram discriminadas, negros e índios, identificando o racismo como uma conseqüência do período da escravidão e apontando que o governo tenta enfrentar essa herança.

Diz ele que “viajar pelo Brasil é como mover-se entre dois planetas: um das ruas, com cores vivas e raças misturadas, e outro dos corredores brancos dos poderes políticos, social, econômico e da mídia.”, apontando que uma mudança intelectual e cultural será necessária para combater a discriminação, sendo “a democracia racial a máscara da ideologia da elite brasileira para não dizer que há racismo”, chamando atenção ainda que “o Judiciário é muito conservador e com preconceitos raciais”.

Inegavelmente, estamos, no país, nos últimos dois anos, diante de uma cruzada cívica

ALERTA À NAÇÃO

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pela moralidade, quando, então, resolvemos passar a limpo nossa trajetória política, numa tentativa de expelir do cenário nacional “mensaleiros” e “sanguessugas”, como se isto fosse coisa nova. Estes mesmos “mensaleiros” e “sanguessugas” têm idêntica origem, representam os mesmos interesses.

Mas a questão principal tem sido evitada, que é a fragilidade em que se encontra a maioria do povo brasileiro, que ao nascer é condenada à miséria pela ausência de oportuni-dades e, mesmo quando de forma tímida e imprópria pelo assistencialismo, se tenta fazer algo para mudar este estado de coisa, surgem ataques e medidas precipitadas de alguns setores.

A história brasileira registra que se busca, na verdade, no período de moralismo exagerado, a consolidação do poder pelo meio mais perverso da restrição de direitos.

Em razão disso, a sociedade deve ficar atenta a qualquer tentativa de inversão da ordem democrática, mesmo que seja pela via constituída.

Desta forma, neste momento de fragilidade política e às vésperas das eleições1 , a nação deve se manter alerta na defesa do estado democrático de direito, visando garantir os direitos individuais e de livre escolha do povo, invitando a inversão dos seus reais interesses por uma minoria.

1 Texto escrito antes do primeiro turno da campanha presidencial de 2006.

| Capítulo I - Alerta à Nação

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Capítulo 1

Como em todos os dias, e hoje não foi diferente, a imprensa noticiou que “Elizângela Ferraz, 28 anos, de João Pessoa, tinha problemas no coração e precisava ser operada urgentemente. Tentou marcar a operação na rede pública de saúde, mas não conseguiu. Sem atendimento, a pa-ciente morreu. (...) Na semana passada, Elizângela, em entrevista à imprensa, demonstrava seu receio pelo pior. ‘Não sei se estarei aqui amanhã. ...”.1

Esta é a situação da saúde no país. Elizângela, provavelmente dotada de poucos recursos, procurou a rede pública de saúde a fim de realizar a imprescindível cirurgia para se manter viva, mas, pelas diversas razões de conhecimento geral, não encontrou o que é apregoado na Constituição da República, ou seja, a saúde como “ um direito de todos e dever do Estado”.2

Sabedora de que a letra da Lei Maior está divorciada da dura realidade, e que o desman-

1 Coluna Fato do Dia, Tribuna da Imprensa, 21/08/07, p. 2.

2 Art. 230 da Constituição Federal.

A SAÚDE NA REPÚBLICA

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telamento e agravamento da saúde pública vêm de longa data, parte da população passou a contratar seguro de saúde, com o intuito de fugir das agruras vividas pelo “povão”.

Porém, apesar de as prestações serem pagas por anos a fio, às vezes sem qualquer utilização do serviço, como ocorre particularmente com os mais jovens, no momento em que o contratante mais precisa da seguradora de saúde, ele é informado de que seu plano não lhe dá cobertura disso ou daquilo, remetendo-o à leitura de miúdas letras constantes no contrato de adesão firmado com a operadora, que tudo lhe promete para conseguir sua assinatura, inclusive ampla cobertura, mas depois ...

Neste instante, o usuário do serviço entra em pânico e sente, na própria pele, o lado mais cruel daquilo em que se transformou a medicina, ou seja, um mero comércio em detri-mento da manutenção do bem maior do homem, que é a própria vida.

Este lado negativo da medicina, censurado por Platão, na sua República, é um dos mais graves males presentes na nossa, atingindo, sem piedade, a todos.

| Capítulo I - A Saúde na República

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Capítulo 1

Em todo o mundo tem se percebido a “invasão” de grupos multinacionais de especu-lação financeira no controle dos veículos de comunicação, inclusive com o sugestivo título de “Grupo de Defesa da América.”

O assunto me fez relembrar as palavras de Osny Duarte Pereira de que “o país que dominar a imprensa de outro tem o controle sobre a opinião pública, porque se o povo for erroneamente informado pela rádio, pelas revistas e jornais, fará seus julgamentos também erradamente, visto que o poder de adivinhar não existe.” (Quem faz as leis no Brasil?)

Não se discute que é fundamental a liberdade de expressão, assegurada constitucionalmente (artigos 5.º, IX e 220). Todavia, muitas vezes, por trás dela se escondem poderosos interesses contrários à nação, sob o patrocínio de grupos multinacionais ou de seus bem remunerados representantes locais.

Se antes agiam disfarçadamente, agora atuam livremente, sem qualquer constrangimento, temor ou pudor. Temos que dizer não a estas violações à Constituição e a essa intromissão.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO

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Com efeito, Laurentino Gomes, em seu livro 1808, esclareceu que o Correio Braziliense, considerado o primeiro jornal brasileiro, de Hipólito José da Costa, que era considerado vigoroso defensor da “liberdade de expressão e ideais”, era subsidiado por D. João VI para fazer prevalecer os interesses da Corte Portuguesa no Brasil, enfraquecendo os movimentos de independência.

A História registra diversos casos em que os meios de comunicação foram empregados para atacar governantes que apenas se colocaram contrários à entrega das riquezas nacionais e à exploração de seu povo.

A propósito, por que será que a maioria dos grandes veículos de comunicação1 não divulgou o resultado do julgamento do caso da Vale do Rio Doce no Superior Tribunal de Justiça, que foi decidido no voto de Minerva do Ministro Francisco Falcão?2

Ressalte-se, portanto, que esta importante questão judicial passou despercebida por muitos brasileiros, que sequer souberam do andamento, resultado e desdobramento, que não foram informados regularmente pelos meios de comunicação social.

1 Excetuando-se o Jornalista Hélio Fernandes e sua brava Tribuna da Imprensa.

2 Voto proferido na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 09/04/2008, no julgamento da Reclamação nº. 2.259-PA.

| Capítulo I - Liberdade de Expressão e Informação

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Capítulo 1 A POBREZA SEGUNDO O IPEA1

Não se discute o poder da informação, sendo certo que, bem manipulada, pode trans-formar números relativos em verdades absolutas. Foi justamente o que aconteceu na edição de seis de agosto de 2008 dos principais jornais brasileiros, que noticiaram com destaque que o país passou a ter menos pobres e mais ricos. Segundo o Jornal do Brasil (primeira página), chegou “A vez da classe média. Estudos mostram que o Brasil exibe nova pirâmide social com menos pobres e mais ricos.”

O sonho de qualquer nação é diminuir a pobreza, pois o que confirma o grau de desen-volvimento de um país são seus indicadores sociais e econômicos. Todavia, as pesquisas do IPEA – Instituto de Economia Aplicada e da Fundação Getúlio Vargas, que serviram de base para a propalada notícia, abrangeram apenas as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre. Ou seja, foi avaliado apenas um quarto da popu-lação brasileira, segundo informação dos referidos institutos.

Como pode uma pesquisa, limitada a seis capitais, ser categórica em afirmar que a pobreza no Brasil diminuiu, e valendo-se de dados colhidos em apenas 25% da população? Ironicamente, conforme destacou a Tribuna da Imprensa do mesmo dia (p. 7), “Recife e Salvador apresentaram as maiores taxas de pobreza: Recife com 43,1% e Salvador com 37,4%.”

1 Tribuna da Imprensa, de 08/08/2008, p. 04, e Monitor Mercantil, de 14/08/2008, p. 2.

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Vê-se que justamente as duas cidades fora do eixo Sul-Sudeste exibiram o menor grau de diminuição da pobreza. Nessas condições, como não foram incluídas na pesquisa as de-mais capitais do Nordeste, do Centro-Oeste e do Norte do país, regiões historicamente menos desenvolvidas, não se pode afirmar, com tanta ênfase, que tenha ocorrido a sonhada diminuição da desigualdade social.

Os números apresentados são risíveis, pois o IPEA define como pobre quem tem ren-da per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. Ora, pobre é quem consegue suprir com dignidade suas necessidades mínimas (alimento, habitação, vestuário, saúde, educação, transporte etc.), o que é impossível de se alcançar até mesmo com o salário mínimo vigente.

Quem ganha meio salário mínimo deveria ser considerado miserável, na medida em que não dá para suprir as necessidades fundamentais de uma única pessoa, ainda mais quando o custo dos alimentos da cesta básica subiu 14,8% em um ano, como divulgou a Associação Brasileira de Supermercados – Abras (Tribuna da Imprensa de 31/07/2008, p. 7).

Em patamares reais, quem ganha menos que um salário mínimo deveria ser consider-ado indigente. Mas, de acordo com a pesquisa, o adjetivo se aplica apenas a quem tem renda per capita até um quarto do salário mínimo.

Tais números servem para comprovar como um pensamento pode ser manipulado, conduzindo à crença de que tudo vai bem no país.

Mas o que se vê nas ruas são crianças sem escola, obrigadas a trabalhar ao lado de idosos, em meio à violência crescente. Assim, temos o perfeito retrato de que tudo vai mal, independentemente da força da propaganda.

| Capítulo I - A Pobreza Segundo o IPEA

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Capítulo 1

Na atual ordem constitucional, estabelecida sob a primazia do “estado democrático de direito”, o que se vê é o desprezo à população e às instituições, uma vez que a ética e o decoro não são atributos de muitos agentes políticos.

Prevalece ainda o ideário colonizador descrito por João Capistrano de Abreu em seus Capítulos de história colonial, que vem sendo transmitido de geração em geração. Esse é um dos problemas do País, que nos lega “representantes” com um sentimento de posse (literal) da coisa pública.

Parcelas do poder político são exercidas por pessoas sem compromisso com a sociedade, tomadas de preconceitos e que usam o poder público para concretizar interesses privados. A população não é educada para se manifestar e compreender o processo político. Não há espaço para a disputa eleitoral igualitária, prevalecendo o poder do capital.

A Constituição estabelece os princípios que regem os atos da administração pública, entre eles o da publicidade. Assim, não se pode tolerar a prática de atos secretos, como os praticados pela Administração do Senado Federal, porque o povo tem o direito de saber o que se passa nas suas instituições.

ATO SECRETO NUNCA MAIS

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A prática de ato secreto vai contra os princípios da administração pública, pois é proibido negar publicidade aos atos oficiais, devendo os agentes envolvidos responder com o ressarcimento integral do dano ao erário, perda da função pública e suspensão dos direitos políticos.

A Lei 1.079/50 dispõe que são crimes de responsabilidade contra a probidade adminis-trativa omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo e expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição.

Ora, os parlamentares devem “zelar pelo aprimoramento da ordem constitucional e legal”, sendo incompatível com a ética e o decoro “a prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes” (Resolução 20/93 do Senado Federal), o que poderá conduzir à perda do mandato e à inelegibilidade, nos termos da Lei Complementar 64/90.

Desta forma, não se pode confundir voto secreto (garantia da cidadania) com atos se-cretos, que não encontram amparo no regime vigente no País. Então, não se pode tolerar a prática de tais atos, que devem ser banidos com todas as conseqüências para quem os praticou e\ou acobertou.

| Capítulo I - Ato Secreto Nunca Mais

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Capítulo 1 PACIFICAR O QUÊ?1

Não é possível pacificar sem transformar. O Governador não sabe o que faz, sua postura é agressiva e tenta acomodar as coisas. No passado fizeram a remoção das favelas para a antiga Zona Rural (hoje Oeste) da Cidade do Rio.

Não houve melhorias nas condições de vida das pessoas nem lhes foram assegurados alguns direitos fundamentais. Por exemplo, o péssimo serviço de transporte coletivo faz com que os moradores daquelas comunidades continuem levando duas a três horas para se deslo-carem de Campo Grande ao centro da cidade.

Mas a classe média da Zona Sul do Rio, incomodada, grita “BASTA”. “Basta” de que? De desgovernos? De falta de compaixão, de crianças sem escolas de qualidade, de hospitais para atender os pobres e até mesmo a classe média, que não tem dinheiro para pagar planos de saúde, de idosos que têm de trabalhar diariamente para se manterem vivos?

Não vejo nenhum movimento contra a corrupção financeira e principalmente moral,

1 Comentário feito ao artigo do Jornalista Hélio Fernandes, sob o título “Droga marginal, invencível, droga intelectual, científica”, em 24 de outubro de 2009, www.tribunadaimprensa.com.br.

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que invadiu o coração das pessoas. Pouco valor é dado à vida. Se uma pessoa fora do extrato social mais elevado morre, paciência, foi mais um entre muitos que caem todos os dias. Assim, a vida perdeu o sentido, porque não se respeita o homem (independente de sua origem social), o único ser capaz de criar e transformar tudo.

Por outro lado, “os viciados do mercado” são protegidos diariamente pelos governos Federal, Estadual e Municipal. Sabe-se que o comércio de drogas movimenta bilhões. Esta quantidade de dinheiro não fica guardada em casa. Logo, tem que estar em algum “banco”. Então, o sistema financeiro é viciado, não apenas em cobrar juros exorbitantes dos corren-tistas e prestar maus serviços, porém desse dinheiro ilegal, que vem de todos os lados: das drogas, da jogatina, da corrupção etc.

Mas o Governador Cabral Filho sabe disso. É um jovem senhor já experiente na arte da política brasileira. Sua Excelência joga em favor dos ricos, protegendo a classe média (de onde se originou) e declarando “guerra” aos pobres, pois assim está cumprindo a sua missão. Quem sabe, não é criado, na sua gestão, um plano estadual de saúde para incentivar as mulheres pobres a não engravidarem?

Seu parceiro, o também jovem senhor Prefeito da Cidade, implanta semelhante projeto no Município do Rio. Já está construindo “barreiras de proteção de som”, para os moradores das favelas “terem mais qualidade de vida”. Estas cercas foram feitas para esconder a vergonha que muitos têm ao desembarcar no aeroporto Tom Jobim, pois os faz lembrar que moram no

| Capítulo I - Pacificar O Quê?

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Rio de Janeiro (no Brasil) e não em Copenhague (na Dinamarca), onde gostariam de viver. Mas lá o povo foi transformado. Tem escolas, hospitais e transportes públicos de qualidade. E aqui?

Não há dúvida de que os jovens senhores cumprem fielmente os seus respectivos papéis: encurralando os pobres, a fim de deixar a turma do andar de cima mais confortável. Sabemos que a cocaína não é refinada na favela, nem a maconha é plantada lá. Os grandes consumi-dores não estão nos morros, mas no asfalto.

Então, Governador, por que a “guerra declarada”? Por que a pacificação e não a trans-formação da vida desta gente? Por que a ausência do Estado em tudo? Até a merenda das escolas querem privatizar. Se fosse possível, seria decretado hoje que o povo pobre, explorado e sofrido não poderia mais circular pelas áreas nobres da cidade, devendo ficar confinado em seus guetos. Basta disso!

Presidente Lula, veja o quadro em que estamos. Reveja suas alianças. Sei que é dificíli-ma a governabilidade na forma prevista na Constituição. O senhor tem carisma e força para transformar o Brasil, mas precisa rever suas alianças, caso contrário poderá ficar com a mesma marca de seu antecessor, não por entregar declaradamente as nossas riquezas, mas por perder a grande oportunidade de transformar a vida da população, com um projeto de desenvolvi-mento que favoreça a todos e não apenas aos de sempre.

Capítulo I - Pacificar O Quê? |

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Capítulo 1 O ENDIVIDAMENTO DOS APOSENTADOS1

Por meio da concessão dos denominados “empréstimos consignados”, estão sendo per-petrados abusos contra trabalhadores, aposentados e pensionistas, principalmente estes úl-timos, que, dispondo de poucos recursos, estão se endividando e ficando em frágil situação perante as instituições financeiras.

A lei do empréstimo consignado proporcionou aos bancos fugir da restrição à penhora sobre salários e pensões e deixou-os em melhor condição para a auto-satisfação de seus crédi-tos. Em razão dos abusos cometidos contra os assalariados, os bancos foram derrotados nos tribunais pela indevida apropriação de valores emprestados a título de limite de crédito, por meio do cheque especial, que abatiam diretamente das contas dos devedores.

Sob o argumento de reduzir a taxa de juros, as casas bancárias se articularam para aprovar a “lei do empréstimo consignado”, além de investir em campanhas publicitárias para atrair os aposentados e pensionistas.

Todavia, ao contrário da propaganda, os aposentados e pensionistas estão tendo pe-sadelos e infelicidades, pois atingiram o máximo da sua capacidade de endividamento, não podendo, conseqüentemente, adquirir os alimentos e remédios necessários à sobrevivência.

1 Tribuna de Imprensa, de 04/09/2007, p. 04.

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Por serem geralmente pessoas idosas, está mais que na hora do Governo intervir nessa grave situação, porque “o Estado tem o dever de amparar as pessoas idosas”, conforme prevê o art. 230 da Constituição, determinando, de imediato, a suspensão dos denominados “em-préstimos consignados”.

A Lei que instituiu o aludido empréstimo (10.820/2003) ofende garantias fundamen-tais do trabalhador, uma vez que o salário, em razão de sua natureza alimentícia, recebe proteção especial na Constituição, devendo atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família, não podendo, em função disso, sofrer qualquer espécie de constrição ou lim-itação, mesmo que autorizado o seu desconto em folha de pagamento.

Com efeito, sendo bloqueados, na fonte, 30% da renda do trabalhador para pagamento de uma dívida bancária, com certeza faltará o recurso necessário para suprir a sobrevivência, contrariando tudo o que a Constituição buscou estabelecer como proteção ao salário.

Portanto, prevalecendo as condições da mencionada lei, o trabalhador e o beneficiário da previdência social ficarão presos e dependentes do seu rentista, sendo obrigados a ampliar e a prolongar a todo tempo o valor do empréstimo tomado, que aumentará feito bola de neve e dificilmente será quitado, contrariando princípios básicos de uma sociedade que deveria zelar pelas crianças e idosos.

Este triste e lamentável fato não é compatível com uma nação que se diz civilizada, mas que, ao contrário, trata com desrespeito os que ajudaram a construí-la, derramando seu suor nos melhores anos de suas vidas. Com isso, conclamamos os jovens de hoje a defender os direitos dos idosos que serão amanhã

Capítulo I - O Endividamento dos Aposentados |

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Capítulo 1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL1

O tema não é novo, porém tem sido apresentado sob a ótica da manutenção do status quo, disfarçado na necessidade de meio ambiente saudável. Mas o que se pode observar é a contínua destruição das riquezas naturais em decorrência da busca desenfreada do lucro, que concentra cada vez mais a riqueza global nas mãos de pouquíssimas pessoas.

O desenvolvimento sustentável visa uma melhor qualidade de vida para as gerações pre-sente e futura, com uma ampliação das atividades econômicas que leve em conta a preservação ambiental. Desta forma, objetiva eliminar as mazelas sociais causadas pela industrialização.

Em resumo, o desenvolvimento sustentável deve realizar-se de forma que o crescimento de hoje não ponha em perigo as gerações futuras, possibilitando ao homem os meios para suprir suas necessidades fundamentais, como alimentação, abrigo e educação.

Aqui se inicia o primeiro grande desafio: como encorajar os mais ricos a distribuir parte de suas riquezas e poluir menos o ambiente em que todos vivem?

Para o tema tornar-se real, o egoísmo deverá ser banido, dando lugar à solidariedade.

1 Tribuna da Imprensa, de 13/02/2008, p. 04.

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Será isto possível? Esta é a grande questão a ser enfrentada pelo homem atual, sob pena de seu desaparecimento da face do planeta.

Não dá para viver num ambiente cada vez mais degradado, onde aumenta o grau de marginalização da população, que não dispõe de condições de vida salubre.

Em todo o mundo, o conflito entre ricos e pobres está cada vez mais acentuado. Os países ricos acham-se no direito desrespeitar a autodeterminação dos outros povos, impondo sua política e explorando as riquezas naturais e culturais alheias. Buscam manter inalterado o processo de colonização que espoliou as riquezas das nações hoje empobrecidas.

Os ricos, incomodados pela legião de marginalizados, optam por migrar para outro ponto do planeta. Mas será que neste novo lugar também não enfrentarão os mesmos prob-lemas? Preferem ignorar que a riqueza mal distribuída sempre atrairá a pobreza.

Para evitar este estado de coisas, a política de desenvolvimento sustentável deverá ter por meta: a) permitir o acesso de todos os indivíduos aos itens necessários à vida: alimen-tação, abrigo e educação; b) estancar a degradação ambiental; e c) ampliar a participação popular nas decisões políticas.

Portanto, é preciso acreditar na possibilidade de transformação social e num mundo melhor. Para isto temos que ter cuidado com falsos discursos de desenvolvimento, que nada apresentam de novo nem de sustentável, a exemplo daqueles que defendem o comércio de carbono e da água, mas não colaboram efetivamente para a eliminação da pobreza no mundo.

Capítulo I - O Desenvolvimento Sustentável |

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Capítulo 1

A Câmara dos Deputados aprovou Projeto de Lei de autoria do falecido deputado Ricardo Izar, que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sob o n. 68/2009, cujo objetivo é revogar a Lei Delegada n.º 4, de 1962, que “dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”.

Por que revogar esta lei? Na verdade, este projeto de lei é mais um símbolo da atual crise de representatividade, uma vez que a maioria dos integrantes do Parlamento não tem demonstrado interesse em defender aqueles de quem emana todo o poder, o povo (art. 1.º, parágrafo único, da Constituição).

Pela fundamentação apresentada pelo autor do projeto, o Estado, na atual Constituição, não deve intervir na ordem econômica, devendo desempenhar apenas o papel de agente normativo e regulador (art.174).

Isto é não é correto. O próprio artigo 174 da Constituição diz que “como agente nor-mativo e regulador da atividade econômica o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”. A redação deste artigo não é excludente da inter-

LEI DELEGADA 4/1962: A QUEM INTERESSA SUA REVOGAÇÃO?

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venção do Poder Público na economia, apenas aponta uma diretriz.

Tanto é assim que o Estado não está impedido de participar diretamente nos empreen-dimentos econômicos, desde que relacionados à segurança nacional e ao interesse coletivo (art. 173).

Ora, se o Estado tem a prerrogativa de agir como empreendedor, tem mais ainda o comando constitucional para intervir na economia nos casos de relevante interesse coletivo e preservação da soberania nacional, principalmente nos assuntos relacionados “à livre circu-lação de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo”, como dispõe o artigo 1.º da Lei Delegada n. 4/62.

Além disso, cabe à União legislar sobre requisições civis e militares, em casos de iminen-te perigo (art. 22, III, da Constituição). Ou seja, a mencionada lei encontra amparo na atual ordem constitucional, porque em situações excepcionais é necessária a intervenção do Poder Público, a fim de evitar qualquer ação tendente à desestabilização da ordem social, política, jurídica e econômica, como tentativas de desabastecimento que possam ser praticadas pela ação de grupos econômicos, o que a Lei Delegada visa coibir.

Com efeito, a Constituição consagra a livre iniciativa (art. 170). Contudo, isto não quer dizer que o Estado não possa intervir na ordem econômica, uma vez que existem princípios fundamentais que devem nortear a sociedade brasileira, como a dignidade da pessoa huma-

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na, os valores sociais do trabalho, a solidariedade, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (artigos 1.º, III e IV, 3.º, I e II, e 170). Daí a necessidade de se fazer uma interpretação sistemática da Constituição, e não de um artigo isoladamente.

Nessas bases, o capital não pode prevalecer a qualquer custo. Principalmente nos perío-dos de crise, econômica ou social, se faz indispensável para todos (trabalho e produção) a intervenção do Poder Público para pôr fim à convulsão.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:

“É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1.º, 3.º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.” (ADI 3512-ES, julgada em 15-02-06, sem grifos no original)

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Assim, a livre iniciativa não é absoluta, nem estão as empresas acima da sociedade. Daí não ser própria a justificativa de que o Poder Público não deve intervir na economia em situ-ações especiais, como as previstas na Lei Delegada n.º 4, de 1962.

Isto porque, por diversas vezes, constatamos a manipulação de preços, a destruição e o desperdício doloso de alimentos, a sonegação combinada de gêneros e produtos etc.

Ora, a Lei sancionada pelo Presidente João Goulart em 1962 permanece extremamente atual e necessária, sob o enfoque humano e solidário, particularmente no que toca à proteção ao trabalho, base de tudo. Como dito, estes princípios fundamentais são consagrados pela Constituição, nada havendo que possa justificar a inconstitucionalidade da lei.

A quem interessa, então, a revogação? Com a palavra o Presidente João Goulart, em seu último discurso proferido, na Central do Brasil, em 13 de março de 1964: “A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia anti-povo, do anti-sindicato, anti-reforma, ou seja, aquela que melhor serve ao grupo que eles servem e representam: a democracia dos monopólios privados nacionais e internacionais.”

E são estes mesmos monopólios que, recentemente, na chamada “crise financeira mun-dial”, exigiram do Estado o repasse de recursos para salvar seus negócios, utilizando a riqueza originada pelo esforço de milhões de trabalhadores.

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A Tribuna da Imprensa de 29/10/2008 foi reveladora ao noticiar na sua página 07: “Ricos querem ajuda dos pobres”. E na página 08: “Mundo já gastou 11% do PIB para salvar bancos.”

Na ocasião, foi informado também que: “os governos já gastaram mais de 11% do PIB mundial para dar liquidez e salvar os bancos desde abril, o equivalente a mais de quatro vez-es o tamanho da economia brasileira.” (p.08). O mais grave de tudo é que para acabar com a fome mundial seria necessário apenas a metade do que foi doado para os bancos ingleses (US$ 30 bilhões).

Então, na hora da crise do capital, o Estado deve atuar na economia, mas na crise de abastecimento, o Estado não pode se apresentar como interventor a fim de assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo?

Desta forma, a tentativa de revogar a Lei Delegada n.º 4, de 1962, é mais uma ofensa à democracia, praticada por uma parcela do Poder Legislativo que, reiteradamente, patrocina interesses contrários aos dos cidadãos.

Conclui-se que a referida lei não é anacrônica, como consta na justificativa do projeto de sua revogação, nem constitui parte de um “entulho legislativo”, sendo avançada para o seu tempo e permanecendo atual, como garantia dos princípios fundamentais de dignidade da pessoa humana e do trabalho, consagrados no art. 1.º da Constituição.

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CAPÍTULO IIAS RIQUEZAS DO PAÍS

Como disse Thomas Woodrow Wilson, ex-presidente dos Estados da América do Norte: “Um povo que entrega suas riquezas naturais para que outros povos explorem, está condenado a ser um povo de escravos e aguadeiros”1.

Em igual medida, Dom João Batista da Mota e Albuquerque, em mensagem enviada ao Seminário Sócio-econômico do Espírito Santo, em 08/08/1960, salientou que: “não é mais hora de permanecermos de pé, de chapéu na mão, mendigando auxílio do mais forte, de quem cresceu mais depressa do que nós. É hora de caminharmos com os próprios pés, de tomarmos nosso destino nas mãos. É hora de defendermos o que é nosso, guardar a riqueza de nossa terra da cobiça daqueles cuja ganância força o desequilíbrio entre os povos. Ponhamo-nos de pé, como um só homem, para nos ombrearmos com os povos maiores da terra. Olhemos ao redor, vejamos nossos erros e deficiências; somemos os recursos todos, da terra e do coração.”2 .

1 Citado por Osny Duarte Pereira, em Quem faz as leis no Brasil, 3ª edição, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1963, Cadernos do Povo Brasileiro, p. 153.

2 Osny Duarte Pereira, ob. cit, p. 153.

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O Jornal La Nación, em sua edição do dia 18/05/2008, p. 15, destacou a manifestação da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, em resposta ao representante da União Européia, o português José Manuel Durão Barroso: “a pobreza não veio à América Latina com o vento e a chuva, mas sim pela desapropriação de recursos desde que foi descoberta, somando ainda os erros dos dirigentes locais”. E conclui a dirigente argentina: “nós queremos uma negociação equilibrada. Não falo de ideologia, mas de números. Não está na União Européia a maior concentração de pobres, mas sim na América Latina”

Assim, o Brasil tem que defender o que é seu, sob pena de sermos um “povo de escra-vos”, como ressaltou o presidente Wilson, para que as crianças e os jovens possam ter esper-ança num Brasil melhor.

Contudo, é necessário reverter o atual triste cenário, uma vez que, segundo pesquisa Datafolha, “42% dos jovens brasileiros sonham em deixar o País para sempre e 18% não querem nunca mais voltar”, como registrou o jornalista Nogueira Lopes em sua coluna na Tribuna da Imprensa, de 05/08/2008, p. 11.

Daí a importância de lutarmos pelas riquezas do País.

| Capítulo II - As Riquezas do País

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Capítulo 2 O MONOPÓLIO DO PETRÓLEO1

Por duas oportunidades, no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), indaguei ao saudoso Heitor Pereira, ex-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), por quê a Emenda Constitucional n.º 9/95, que impôs o fim do monopólio do petróleo em favor da Petrobras, não teve sua constitucionalidade questionada no STF.

Na verdade, até onde tenho conhecimento, a AEPET articulou com o Governador Requião a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do petróleo (Lei 9.478/97), que teve sua validade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), particu-larmente quanto à propriedade da lavra extraída (art. 26).

A primeira vez foi no Centro Cultural do IAB e estávamos acompanhados do ex-pres-idente do Instituto, o advogado Celso Soares. A segunda foi num evento na sede da institu-ição, que contou com a participação do grande professor de sociologia jurídica da Faculdade Nacional de Direito, Nelson Maciel Pinheiro Filho.

1 www.tribunadaimprensa.com.br 26/05/2009

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A insistência na indagação decorria do fato de não entender por que foi submetida a inconstitucionalidade da lei do petróleo no STF, quando esta teve origem na Emenda Constitucional (EC) n.º 9.

Com efeito, quem revogou o monopólio que concedia a exclusividade das operações à Petrobras foi a Emenda Constitucional 9/95, e não a Lei 9.478/97.

O monopólio, previsto na redação original do artigo 177 da Constituição de 1988, era uma das formas de preservação da soberania nacional, que é um princípio fundamental da República (artigo 1.º, I, da Constituição).

A lei do petróleo nasceu de uma emenda à Constituição, que jamais poderia ter sido aprovada e menos ainda poderia ter revogado o monopólio, instituído em benefício da Petrobras, porque estava protegido por uma cláusula pétrea, uma vez que a soberania nacional é um direito e uma garantia do povo brasileiro (artigo 60, parágrafo 2.º, IV, da Constituição).

Vale lembrar que os direitos e garantias fundamentais não estão previstos apenas no artigo 5.º da Constituição, mas também em outros, “decorrentes do regime e dos princípios”

| Capítulo II - O Monopólio do Petróleo

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adotados pela Carta Política de 1988 (artigo 5.º, parágrafo 2.º), sendo certo que a soberania nacional, que é um Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil, está contem-plada nesta extensão.

É sob esta ótica que se persiste em acreditar que a Emenda Constitucional n.º 09/95 ne-cessita ter sua constitucionalidade submetida ao STF, pois, sendo declarada inconstitucional, restaura-se o status quo ante, ou seja, o monopólio da Petrobras, previsto na redação original do artigo 177 da Constituição.

Vale lembrar que na ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.366/DF constou que: “A EC 9/95 permite que a União transfira ao seu contratado os riscos e resul-tados da atividade e a propriedade do produto da exploração de jazida de petróleo e de gás natural, observadas as normas legais.”

Portanto, o STF apenas julgou a constitucionalidade da lei do petróleo, não enfrentan-do a Emenda n.º 9/95, que, julgada inconstitucional, arrastará pelo mesmo caminho a lei do petróleo, que nela tem seu supedâneo.

Capítulo II - O Monopólio do Petróleo |

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EXPLORAÇÃO DO PRÉ-SAL / PROJETO DE LEI INCONSTITUCIONAL1

O Como afirmou o Jornalista Hélio Fernandes, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acabou com o patrimônio nacional em apenas 8 anos: vendeu estratégicas empre-sas públicas por preço risível e, não tendo coragem de alienar diretamente a PETROBRAS, desmontou toda a sua estrutura de controle e poder de preservação da soberania nacional.

Isto porque, ao conseguir aprovar a Emenda Constitucional 9/95, pôs fim ao monopólio da PETROBRAS em toda a cadeia de produção, transporte e refino do petróleo no País.

A partir daí a nossa petroleira estatal equiparou-se a qualquer outra empresa privada. Sabe-se que as empresas públicas se submetem ao mesmo regime das privadas (art. 173, parágrafo 1.º, II, da Constituição), a não ser que a lei dê outra destinação ao seu estatuto jurídico.

Nessas condições, a PETROBRAS ficou na mesma posição que qualquer outra concorrente de seu ramo de atuação, inclusive tendo que se submeter, em grau de igualdade, nos diversos leilões das bacias sedimentares, patrocinados na era FHC e também na do Presidente Lula.

1 www.tribunadaimprensa.com.br 08/09/2009 14h59

Capítulo 2

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Com o show midiático do anúncio da suposta descoberta do Pré-sal, na época denun-ciado na Tribuna da Imprensa pelo Jornalista Carlos Chagas por seu caráter político e espe-culativo, que propiciou novos ganhos para alguns especuladores do “mercado”, o Presidente Lula e a Ministra Dilma anunciaram que estaria suspensa, temporariamente, a licitação sobre aquela região.

Pensei que, com este anúncio, o Presidente Lula iria então restabelecer a situação jurídi-ca anterior: o retorno do monopólio do petróleo, para ser explorado por uma empresa estatal com a integralidade das ações sob o controle do governo, uma vez que a PETROBRAS estava com suas ações pulverizadas no “mercado” das bolsas brasileira e americana.

Cheguei a escrever um artigo, publicado em 26/05/20092 , sob o título “O monopólio do petróleo”, criticando a postura da AEPET de nunca ter questionado a famigerada Emen-da Constitucional 9/95, de flagrante inconstitucionalidade, por violar a soberania nacional, princípio fundamental da República (art. 1.º, I).

Nunca entendi por que se atacou primeiro a Lei 9.478, ao invés da Emenda Consti-tucional 9, que dava supedâneo à lei. Assim foi feito pelo Governador Requião, que parece ter sido orientado pela AEPET, como manifestado pelos dirigentes da entidade, no programa “Faixa Livre” (Rádio Bandeirantes AM do Rio de Janeiro).

2 www.tribunadaimprensa.com.br

Capítulo II - Exploração do Pré-Sal: Projeto de Lei Inconstitucional |

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O STF, ao final do julgamento, mesmo com certa estranheza, como noticiado, fez valer o que estava na Constituição, ou seja, não existia mais o monopólio da PETROBRAS, ficando a estatal na mesma situação que as demais empresas: com exclusividade apenas sobre o petróleo por ela explorado.

Relembrei este fato para retomar a questão inicial. O Presidente Lula, como o senhor já nos respondeu, fez mais um grande show pirotécnico e, o mais grave, perdeu a chance de restabelecer a soberania nacional sem precisar emendar a Constituição. Para tanto, bastava criar uma empresa 100% nacional, sob o controle da União, para explorar o Pré-sal.

O monopólio do Petróleo é da União, que pode contratar a exploração desta atividade com empresa estatal, nos termos da lei (art. 177, parágrafo 1.º, da Constituição).

Um dos projetos de lei encaminhados ao congresso foi para a criação da questionada PETRO-SAL, que apenas fará a gestão dos contratos de partilha de produção da área do Pré-sal.

A PETRO-SAL poderia ser o resgate do monopólio estatal do petróleo, utilizando a estrutura jurídica plantada pela Emenda Constitucional 9/95 e tornando-se a empresa explo-radora exclusiva dos campos do Pré-sal, mediante delegação da União e com a possibilidade de subcontratar outras empresas para auxiliarem nesta empreitada.

Somente assim, repito, as reservas da União estariam preservadas em uma empresa

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100% brasileira. E como o óleo do Pré-sal, se de fato existir, vai levar algum tempo para jor-rar, este seria o período necessário para a consolidação da verdadeira PETRO-SAL.

Mas não foi isto o que fizeram. Achando que deveriam proteger a PETROBRAS, hoje não mais brasileira na sua essência original, o Presidente Lula encaminhou outro projeto de lei, no qual, para a exploração do Pré-sal e áreas estratégicas, a PETROBRAS será a operadora contratada para todos os blocos e poderá, em consórcio, operá-los com outras empresas.

Com efeito, a proteção dada à PETROBRAS atenta contra a Constituição, na medida em que ela tem a mesma situação jurídica das demais empresas de seu segmento. No dia se-guinte em que a lei for aprovada no Congresso, irão ao STF questionar essa esdrúxula posição de privilégio, sob os argumentos mais variados: quebra dos princípios constitucionais da isonomia, da livre iniciativa e concorrência.

Lembro-me que, na 8.ª rodada de licitação das bacias sedimentares, promovida na gestão do presidente Lula pela ANP, em que se tentou limitar a atuação da PETROBRAS, a AEPET conseguiu suspendê-la na justiça, na véspera, sob o argumento de que estaria sendo violado o princípio da livre concorrência.

Curiosamente, agora este mesmo princípio, base das constituições liberais, poderá ser utilizado contra a PETROBRAS por seus concorrentes, caso sejam aprovados os projetos de lei enviados pelo Presidente Lula ao Congresso.

Capítulo II - Exploração do Pré-Sal: Projeto de Lei Inconstitucional |

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EXPORTAÇÃO DO PRÉ-SAL1

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que “não haverá mais problemas de con-tas externas no Brasil”, uma vez que “a venda do petróleo da camada do pré-sal, localizado abaixo do leito marinho, será a base para o aumento das reservas internacionais de US$ 400 bilhões.” (Tribuna da Imprensa, de 30 e 31/08/08, p. 07)

O País ainda não definiu como e quando será explorado o suposto petróleo do “pré-sal”, mas importantes autoridades governamentais já manifestam que o óleo será destinado para o exterior.

Nestes últimos dias tem se debatido muita coisa: redistribuição dos royalties do petróleo, criação de uma nova empresa estatal e de um fundo soberano, mudança da legislação etc. Mas ninguém questionou a necessidade de ser criada uma reserva estratégica de petróleo, funda-mental à soberania do País.

1 Tribuna da Imprensa, de 10/09/2008, p. 4.

Capítulo 2

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Vale lembrar que toda a história de desenvolvimento do Brasil, até o início do século XX, alicerçou-se em ciclos econômicos monoculturais: pau-brasil, ouro, cana-de-açúcar, bor-racha, café e, hoje, a soja.

Parece que, agora, com a exploração do “pré-sal”, nossos dirigentes vão conduzir a política econômica do País para a exportação do petróleo. Sendo certo que o que for arreca-dado será destinado ao pagamento dos encargos da dívida mobiliária interna, de mais de R$ 1,2 trilhões.

Se existirem de fato as quantidades anunciadas, não será correto proceder à exportação do óleo como produto primário, que deverá ser utilizado para fortalecer as reservas estratégi-cas do país, a fim de atender ao crescimento da demanda interna, a exemplo do que fazem os Estados Unidos da América do Norte.

A esse respeito, Nordine Cherouati, diretor da agência de hidrocarbonetos da Argélia, grande produtor de petróleo e gás, manifestou que: “não podemos exportar gás enquanto as necessidades de nossa própria população não forem satisfeitas” (Valor, de 5 a 7 de setembro de 2008, p. A11).

O Brasil, sem sombra de dúvida, é muito rico em recursos naturais e culturais. Tem tudo o que é necessário para o crescimento de uma grande nação e para a prosperidade de seu

Capítulo II - Exportação do Pré-Sal |

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povo. O País tem minerais, água doce, diversas fontes de energia, terras abundantes e férteis e 189 milhões de habitantes.

A propósito, são oportunas para reflexão pelas autoridades brasileiras as palavras da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, ao lembrar que “a pobreza não veio à América Latina com o vento e a chuva, mas sim pela desapropriação de recursos desde que foi desco-berta, somando ainda os erros dos dirigentes locais”. (La Nacion, de 18/05/2008, p. 15)

Com efeito, o Ministro da Fazenda ou qualquer outra autoridade tem que agir buscan-do o melhor para o País, a fim de eliminar a herança perversa do processo de colonização, ainda baseado na expropriação das nossas riquezas.

Caso contrário, valerá a triste constatação do maestro Antonio Carlos Jobim, que afir-mou que “o Brasil não gosta do Brasil”, citando como exemplo que “o Japão é um país paupér-rimo, com vocação para a riqueza. Nós somos um país riquíssimo, com vocação para a pobreza.” (Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova, vol. 1, org. Ruy Castro)

Portanto, nossos dirigentes não podem continuar a repetir os erros do passado na con-dução da administração do País. Assim, em vez de anunciar a venda do que ainda não foi explorado, devem planejar a constituição de uma reserva estratégica que venha a beneficiar as gerações presente e futura.

| Capítulo II - Exportação do Pré-Sal

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Capítulo 2 OS ROYALTIES E O PRÉ-SAL1

Nos últimos dias o noticiário foi tomado pelo debate a respeito da necessidade de redis-tribuição dos royalties do petróleo, em conseqüência da suposta descoberta de novas jazidas na chamada camada de “pré-sal”.

Neste ponto, não está em discussão que a União é titular dos recursos naturais da plata-forma continental e dos recursos minerais (art. 20, V e IX, da Constituição), como disse o Presidente Lula, ao afirmar que “o petróleo não é do governo do Estado do Rio de Janeiro. Não é da Petrobras, é do povo brasileiro e precisamos discutir o destino deste petróleo”. (Tribuna da Imprensa, 13/08/08, p. 08)

Até o ex-presidente José Sarney se vestiu de verde e amarelo diante do petróleo (que ainda não se sabe quando e como será explorado) e manifestou que “outra coisa que tem de ser mexida diante da nova situação são os royalties, cuja lei foi promulgada durante o meu governo. Se nacional é a riqueza, nacional tem de ser sua distribuição” (JB, 15/08/08, p. A9).

Não se discute a necessidade de distribuição da riqueza nacional, principalmente entre

1 Tribuna da Imprensa, de 23 e 24/08/2008, p. 04, e no sítio eletrônico Migalhas, de 26/08/2008.

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os brasileiros das regiões mais pobres. Porém, outra coisa é querer subverter o justo motivo que levou à inclusão dos royalties do petróleo e da energia elétrica na Constituição de 1988 (artigo 20, parágrafo1.º).

Os referidos royalties foram criados, principalmente, para compensar a perda que os Estados produtores de petróleo, gás e energia hidroelétrica teriam com a desoneração do ICMS nas suas remessas para outros entes da federação (artigo 155, II, parágrafo 2.º, X, “b”, da Constituição).

Com efeito, os royalties pertencem aos Estados-membros e aos municípios onde são exploradas estas fontes de energia, porque é em seus territórios que ocorre uma série de de-gradações à população (que vão da perda da receita tributária até danos ambientais e sociais inerentes à atividade), o que não acontece em outros locais.

A propósito, nem o Tribunal de Contas da União tem o poder de fiscalizar aquelas verbas, como decidiu o plenário do Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança n.º 24.312.

Portanto, a tentativa de retirar ou restringir as receitas dos royalties, mesmo que para reparti-los com outros Estados e Municípios não produtores de petróleo, ainda que medi-ante proposta de emenda constitucional visando eventual reforma tributária, constituir-se-á flagrante agressão à própria federação brasileira, o que é proibido por se tratar de “cláusula pétrea” (artigo 60, parágrafo 4.º, I, da Constituição) e será prejudicial ao Estado do Rio de Janeiro, maior produtor de petróleo do País, e que tem perda da receita do ICMS.

| Capítulo II - Os Royalties e o Pré-Sal

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Capítulo 2 ROYALTIES DO PETRÓLEO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO1

É golpista a tentativa do Governo Federal de retirar os royalties do petróleo do Estado do Rio de Janeiro, com a cobiça despertada pelo “pré-sal”, sob o argumento da criação de um “fundo soberano” para distribuição da riqueza entre todos os brasileiros, visando “pôr fim às desigualdades nacionais”.

O mais grave é que isto aconteceu com a omissão e a subserviência do Governador do Estado do Rio de Janeiro e de grande parte da bancada legislativa federal, que somente agora estão se manifestando. Desde o final de 2007 tenho denunciado este grave fato aos políticos do Rio de Janeiro, seja por meio de artigos, palestras e trabalhos apresentados. Mas ninguém quis se expressar contra o movimento que estava em curso no Congresso Nacional, liderado pelos senadores José Sarney, Ideli Salvalti e outros, que apresentaram projetos de lei e de emendas à Constituição.

Chamamos a atenção para o Projeto de Lei do Senado n.º 279/08, de autoria da Senadora Ideli Salvatti, grande defensora do Governo Lula no Congresso Nacional. Com o

1 www.tribunadaimpresa.com.br 08/08/2009, 22h37 e www.porfiriolivre.com 09/08/2009

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referido projeto de lei, pretende-se alterar o critério geográfico utilizado pelo IBGE para o pagamento dos royalties do petróleo explorado no mar.

Vale lembrar que o Estado do Rio de Janeiro é o maior produtor de petróleo do País. Deveria ter vantagens em conseqüência disso, mas, na verdade, sofre perdas de receitas do seu principal imposto (o ICMS) que, nas operações destinadas a outros Estados da federação, não tem tributação, por força da não-incidência prevista no artigo 155, parágrafo 2º, II, “b”, da Constituição Federal.

Esta imunidade tributária, que vale para o petróleo e a energia elétrica, foi patrocinada pelo Estado de São Paulo, durante a Constituinte de 1986/1988, sob a liderança do então Deputado José Serra, uma vez que aquele Estado é o maior consumidor de energia do país. O mesmo José Serra, hoje Governador de São Paulo e possível candidato à Presidência da República, também se articula nos bastidores para retirar os royalties do Rio de Janeiro e transferi-los para seu Estado.

Veja a contradição: o petróleo e a energia elétrica recebidos por São Paulo não pagam ICMS ao Estado produtor, porém a mesma regra não se aplica ao álcool combustível, do qual aquele estado é um dos maiores produtores.

Como forma de compensar a perda de ICMS, o constituinte instituiu os royalties em

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favor dos Estados produtores de petróleo e energia elétrica (artigo 20, parágrafo 1.º, da Constituição Federal).

Portanto, os royalties são receitas originárias de titularidade dos Estados e Municípios, conforme previsto na Constituição Federal e reafirmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (Mandado de Segurança 24.312-1/DF).

Todavia, com o anúncio do Pré-sal, teve início um debate sobre a pretensa necessidade de distribuir os royalties entre todos os Estados da federação, o que causará grande perda de receita ao Estado do Rio de Janeiro e seus Municípios.

A esse respeito, o Presidente Lula manifestou: “o petróleo não é do governo do Estado do Rio de Janeiro. Não é da Petrobras, é do povo brasileiro e precisamos discutir o destino desse petróleo”.

Com efeito, esta manifestação do Presidente da República ocorreu em palanque arma-do no Aterro do Flamengo, quando do ato de doação do terreno da UNE no mês de agosto do ano passado, e o Governador do Estado ficou calado.

O argumento de que as riquezas do petróleo devem ser distribuídas entre todos os brasileiros é falacioso, na medida em que a não cobrança do ICMS oriundo dos estados pro-dutores já é uma forma de diminuir as desigualdades regionais, como decidiu o plenário do STF no Recurso Extraordinário n.º 198.088-SP.

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Esta é uma das formas pelas quais o Estado do Rio de Janeiro colabora com os demais estados, principalmente os das regiões mais pobres, uma vez que, por mais de vinte anos não tem recebido um centavo sobre o petróleo e derivados que saem de seu território, que con-centra mais de 80% da produção nacional.

Além disso, a legislação em vigor já prevê a existência de um Fundo Especial para repar-tir parcela dos royalties entre todos os Estados e Municípios do Brasil, independente de serem produtores ou não de petróleo (Lei 7.990/89, art. 7.º, e Lei 9.478/98, art. 49, II, “e”). Ou seja, os royalties já são ou deveriam ser distribuídos entre todos.

Segundo fontes da Secretaria de Fazenda e do Rio Previdência, o Estado do Rio de Janeiro recebe atualmente em torno de seis bilhões de reais, por ano, de royalties do petróleo, sendo grande parcela empregada no Fundo de Previdência dos servidores públicos.

Veja, então, que a cobiça sobre o “pré-sal” não está limitada à entrega das reservas de petróleo, mas se estende aos recursos de titularidade de Estados e Municípios produtores de petróleo, sendo certo que a utilização desses recursos na formação de um “fundo soberano” poderá representar mais uma tentativa de transferência da riqueza nacional para o exterior, a exemplo do que pretendem Inglaterra, França e Alemanha, diante dos “fundos soberanos do petróleo” dos países do Oriente Médio, que deveriam ser utilizados para cobrir a crise finan-ceira global, como noticiado no final de novembro de 2008.

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Capítulo 2 O GOVERNADOR E OS ROYALTIES1

Lendo, num primeiro momento, a principal manchete de hoje (domingo, 30/08/09) do “O Globo” (“Rio vai sugerir taxação para manter royalties no pré-sal”), parece que o Gover-nador do Estado está defendendo os interesses do povo fluminense.

Todavia, nas páginas 27 e 28 do mencionado jornal, diante de um texto mais incom-preensivo do que elucidativo, lê-se que o Governador, orientado por sua Secretaria de Desen-volvimento Econômico, irá propor a manutenção do atual regime de concessão, por meio de decreto para aumentar os percentuais das participações especiais.

Em igual sentido noticiou o Jornal do Brasil de 29/08/09 (p. A16), ao expor que “o Secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, Joaquim Levy, disse ontem que a adoção do sistema de partilha no pré-sal poderá criar conflitos futuros com áreas que já foram leiloadas e que continu-arão a ser regidas pelo sistema vigente, o de concessão.”

1 www.tribunadaimprensa.com.br 31/08/2009, 18h19

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O que a manutenção do atual regime de exploração (que permite que a lavra seja de propriedade do concessionário – art. 26 da Lei do Petróleo, proposta por FHC, e julgada constitucional pelo STF com voto de divergência iniciado pelo Ministro Eros Grau) tem a ver com a distribuição dos royalties? Digo que nada.

Uma coisa é o modelo de exploração, que pode ser por concessão (atualmente em vigor) ou de forma partilhada (sendo a União proprietária da lavra e dando uma participação para quem for explorar o petróleo), como parece que o Governo Lula irá propor.

Os royalties são receitas dos Estados e Municípios em razão das degradações geográficas, sociais e econômicas causadas pela exploração do petróleo e seu manuseio. Como manifestou o Ministro do Meio-Ambiente, Carlos Minc: “se houver um acidente, um vazamento, não vai ser em Mato Grosso” (O Dia, 29/08/09, p.22).

Desta forma, ou a longa reportagem do Globo (que mais parece defender a manutenção do atual regime em vigor), teve por fim confundir ainda mais o assunto, ou o Governo do Estado do Rio irá defender interesses diversos dos de seus cidadãos.

Na verdade, a manchete fala em “royalties no pré-sal”, mas não esclarece e nem deixa evidente uma possível defesa pela manutenção desta receita constitucional, assegurada ao Rio de Janeiro e aos demais Estados produtores de petróleo (art. 20, parágrafo 1.º da Constitu-ição e decisão do Plenário do STF, no Mandado de Segurança n.º 24.312-1/DF).

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Quando a manchete destaca que “Rio vai sugerir a taxação”, pensei que o Governador Sérgio Cabral (a exemplo do que fez anteriormente a ex-governadora Rosinha) estaria dispos-to a falar firme para o Presidente Lula: se vão diminuir os royalties do meu estado e dividi-los com outros, então deverá ser eliminada a imunidade do ICMS do petróleo e seus derivados (artigo 155, II, parágrafo 2.º, X, “b”, da Constituição), quando destinados a outros estados, passando parte do tributo a ser cobrado no estado produtor.

Isto porque o Estado do Rio produz mais de 80% do petróleo nacional e não recebe nada de ICMS, que vai para outros estados. Assim, o Estado poderia recuperar parte da receita do ICMS que deixou de arrecadar por mais de 20 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, sendo esta uma das grandes colaborações do Rio de Janeiro com o desenvolvimento dos demais estados, que cobram o imposto sobre o petróleo e derivados comercializados em seus territórios. Por que o governador não utiliza este argumento?

E mais, o Governador poderia falar ainda para o Presidente: se aprovada esta proposta, no dia seguinte, como Governador, e tenho legitimidade e poder para isto (artigo 103, V, da Constituição), proporei uma ação direta de inconstitucionalidade no STF.

Mas por que não se ouve uma palavra do Governador nesse sentido? Alguns parlamentares do Rio, recentemente, depois do debate iniciado, já se posicionaram pela

Capítulo II - O Governador e os Royalties |

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inconstitucionalidade da diminuição dos royalties do Estado, e até o presidente da FIRJAN se posicionou nesse sentido.

O Governador e seus assessores deveriam expor com clareza a questão. Se for certa a informação (p. 27 do O Globo) de que sinalizam a “disposição para negociar a saída do impasse” por meio de aposta no Congresso, até o presidente Lula considera risível este en-caminhamento, pois será “um tiro no pé”, porque se a idéia é partilhar os royalties entre todos os Estados – mesmo não produtores de petróleo – o Governo do Rio não terá força política para defender o que é direito do Estado, conforme a Constituição, e irá perder feio no debate político.

Portanto, o Governador Cabral Filho demorou mais de um ano para despertar para a importância do assunto e, agora, num show pirotécnico, ameaça não comparecer ao lança-mento do projeto de lei do governo sobre o marco regulatório do petróleo. Será que o Gov-ernador vai confrontar mesmo o presidente que diz ser tão seu amigo? O que se esconde por detrás da manifestação do Governador? Será que é a discussão do modelo de exploração/concessão ou da preservação do direito do seu estado sobre os royalties?

É muito barulho para quase nada, uma vez que já existe disposição legal sobre a criação de um fundo especial para repartição de parcela dos royalties entre todos os estados e mu-nicípios da federação (Lei 7.990/89, art. 7.º , e Lei 9.478/98, art. 49, II, “e”).

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CAPÍTULO IIIPOR QUE PRIVATIZAR?

A manchete da primeira página do Jornal O GLOBO, de 13/04/2008, é reveladora: “JUROS ALTOS ATRAEM MÁFIAS ESTRANGEIRAS PARA O BRASIL. A estabilidade econômica e os juros altos estão atraindo máfias estrangeiras para o Brasil. Os setores preferi-dos para investir e lavar dinheiro são construção civil e hotelaria.”

Na verdade, como diziam os antigos, todo cuidado é pouco nestas horas. Não podemos nos enganar por coloridas apresentações, cujo intuito é tirar do controle da sociedade tudo que foi criado pelo esforço e trabalho de muitas gerações, beneficiando pouquíssimos bra-sileiros.

A Revista Carta Capital n.º 452, de 11/07/2007, destacou na sua capa: “AO SAIR DO BC A VIDA É BARBADA. O cavaleiro é André Lara Resende, ex-diretor de Dívida Pública do Banco Central, que ficou milionário. História parecida com as de Armínio Fraga, Gustavo Franco, Tereza Grossi e muitos outros”. E adiante na página 20, a revista ressalta: “A RODA DA FORTUNA REPUBLICANA. Ex-dirigentes do BC alavancam carreira e negócios. O público e o privado confundem-se, sob a proteção das leis.” (p. 20)

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No mesmo sentido, a Folha Online, de 11/04/2008, noticiou: BNDES INVESTIGA SAÍDA DE DIRIGENTE PARA ATUAR NA VALE. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social abriu um processo interno de investigação para apurar se houve irregu-laridade na saída do ex-secretário-executivo da instituição, Luciano Siani Pires. No domingo, dia 6, ele encaminhou um e-mail a vários departamentos e diretorias do banco comunicando seu novo destino profissional: a diretoria de Planejamento Estratégico da Vale. Segunda-feira, dia 7, foi o primeiro dia de trabalho de Pires na Vale. O e-mail foi recebido com perplexidade por parte do corpo de funcionários do BNDES. Segundo técnicos do banco, que preferem não se identificar por temer represálias, Pires foi um dos principais negociadores da linha de crédito de R$ 7,3 bilhões que o BNDES colocou à disposição da Vale. O contrato de finan-ciamento foi assinado na terça passada, dia 1.º Trata-se do maior financiamento já aprovado pelo BNDES para uma empresa privada.

Pires é concursado do BNDES. Engenheiro formado pela PUC-RJ, fez pós-graduação na Stern School of Business, da New York University. Foi chefe do Departamento de Gestão e Acompanhamento da Carteira de Ações do BNDES e, indicado pelo banco, chegou a ocupar uma vaga no Conselho de Administração da Telemar. Aos 38 anos, considerado um profissional com ascensão meteórica, foi chefe de gabinete na gestão de Demian Fiocca, que presidiu o BNDES entre 2006 e 2007. Fiocca, depois de um período de “quarentena”, tam-bém se transferiu para a Vale, para a diretoria de Tecnologia da Informação e Gestão. Com a chegada de Luciano Coutinho à presidência do BNDES, Pires passou a ocupar o cargo, até então inexistente, de secretário-executivo da instituição.”

| Capítulo III - Por que Privatizar?

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As empresas públicas não foram criadas para gerar lucro, mas para satisfazer os interesses da coletividade e/ou da segurança nacional, como prevê a Constituição Federal (artigo 173).

Em consequência disso, estas empresas não podem ser entregues a grupos privados que desrespeitam a população, como se tem verificado no setor de telecomunicações, onde estão as maiores reclamações dos usuários do serviço público privatizado pelos péssimos serviços prestados, pela maioria das operadoras.

Então, é necessário que a sociedade fique alerta contra as tentativas de privatizações que ainda persistem no País e nos agentes públicos que as defendem sem fazer qualquer consulta popular (plebiscito) para conhecer a real vontade do povo (será que os agentes públicos têm medo da vontade popular?), principalmente em setores estratégicos como aeroportos e con-cessão de água, como demonstraremos a seguir.

Capítulo III - Por que Privatizar? |

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A PRIVATIZAÇÃO DA INFRAERO1

A imprensa tem noticiado a grave crise do setor aéreo que tomou conta do país.

Podemos recordar as circunstâncias da quebra da VARIG, que não recebeu qualquer ajuda oficial, apesar dos pedidos dos trabalhadores e da importância da empresa no trans-porte de passageiros e cargas.

A queda do avião da GOL, ocorrida em setembro de 2006, trouxe ao conhecimento público as péssimas condições de trabalho dos operadores de vôo e a insuficiência técnica do sistema de controle aéreo.

Nas festas de final de 2006, constatou-se a ausência de condições das atuais conces-sionárias (TAM e GOL) para atender com eficiência a demanda do mercado interno de passageiros.

1 www.pdt-rj.org.br/colunistas.asp?id=370 14/08/2007

Capítulo 3

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O acidente com o Airbus A-320 da TAM demonstrou a fragilidade do sistema aéreo nacional e também que “o poder público é um mero instrumento dos interesses privados”, isto porque as empresas áreas pressionaram os órgãos do governo para fazer valer seus interesses comerciais.

Diante da crise, os oportunistas de plantão iniciaram o discurso de privatização do controle de tráfego aéreo, dos principais aeroportos e da entrega da malha aérea interna às empresas estrangeiras.

É de se estranhar que deputados do PT e seus aliados proponham tal solução, como fez Maurício Rands, no programa Painel da Manhã, na Rádio Roquete Pinto FM do Rio de Janeiro, de 19/09/2007, e Delfin Neto, como noticiado na coluna Fato do Dia, de 06/08/2007, uma vez que durante a última campanha presidencial, no segundo turno, o Presidente da República polarizou o discurso entre a defesa do patrimônio nacional contra a sua entrega a particulares, por meio das privatizações.

Ressalte-se que os problemas apontados não decorrem da essência das empresas estatais, mas dos desvios de seus dirigentes, que não agem conforme os imperativos constitucionais da segurança nacional e/ou relevante interesse coletivo e se afastam dos requisitos da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.

Capítulo III - A Privatização da INFRAERO |

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Vale lembrar que os portos brasileiros foram privatizados em 1993 e, logo em seguida, em 1996, foi autorizada a navegação de cabotagem por navios de bandeira estrangeira, no rastro do sucateamento e da quebra da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, declarada extinta em outubro de 1997.

Este precedente, que em nada melhorou a situação da navegação no país, poderá se repetir no setor aéreo, o que atentaria contra a soberania nacional e seria contrário ao rele-vante interesse coletivo, por envolver segmento estratégico ao país e ao povo.

Ao contrário dos que defendem a privatização, o Governo Federal deveria apresentar proposta de criação de uma estatal para atuar no transporte aéreo, reparando a perda da VARIG, restabelecendo a competição com as concessionárias privadas e fortalecendo a so-berania nacional.

| Capítulo III - A Privatização da INFRAERO

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A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA1

Em 31/07/2007, o governador Sérgio Cabral deixou-se fotografar e fez divulgar, no Diário Oficial do Estado, que a “CEDAE começa a ser preparada para abertura de capital”. Naquela oportunidade foi oficializado o processo de privatização da empresa pública de águas e esgotos do Rio de Janeiro.

A abertura de capital possibilita que bancos estrangeiros, como J.P.Morgan Chase, e nacionais, como o Opportunity, de D. Valente Dantas, que visam apenas o lucro em suas operações, possam ditar o preço da água (bem essencial à vida e escasso para muitos).

A privatização da CEDAE não fez parte do programa de campanha do governador. Sua Excelência não tem respaldo popular para tomar esta decisão, sem submetê-la ao povo do Estado, por meio de plebiscito, sob pena de torná-la ilegítima e imoral.

1 Tribuna da Imprensa, de 24/07//08, p. 04.

Capítulo 3

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O governador e seus assessores não tiveram coragem de dizer ao povo fluminense que iriam privatizar uma empresa fundamental, pois temiam sofrer as mesmas rejeições que seus ex-aliados, que privatizaram o BANERJ, a CERJ, a FLUMITRENS e a CONERJ, entre outras estatais.

Dizem apenas que, por meio de “reestruturação” contratada à Fundação Getúlio Vargas, irão aprimorar a “nova” CEDAE para que esta dê lucros, que serão distribuídos, posteriormente, aos novos sócios.

Vale lembrar que a empresa pública não foi constituída para dar lucro, mas para atender aos relevantes interesses coletivos, como determina a Constituição Federal (artigo 173).

A água não pode ser tratada como mercadoria, cuja captação e distribuição visem o lucro a qualquer custo. O Poder Público tem a obrigação de assegurá-la a todos os cidadãos, mediante preço módico, com os mais ricos subsidiando os mais pobres.

Na Segunda Conferência Pelo Equilíbrio do Mundo, organizada pela UNESCO, em

| Capítulo III - A Privatização da Água

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janeiro de 2008, o colombiano Rafael Colmenares Faccini, Diretor Executivo da Ecofondo, falou sobre a grave situação do sistema de saneamento de seu país, onde foi realizada uma “reestruturação”, custeada por toda a população, que, agora, suporta os ônus da privatização, enquanto os titulares da concessão, que nada investiram, se aproveitam da estrutura elabora-da com recursos públicos.

Não será surpresa alguma se semelhante acontecimento se repetir com a nossa gente, que será incriminada, perseguida pela polícia e exemplarmente punida pela justiça, por fazer “gato” d’água.

Deve-se esclarecer que o suposto “aprimoramento” do sistema de águas e esgotos é feito com dinheiro público e, se causar prejuízo ao erário, pode caracterizar improbidade admin-istrativa.

A CEDAE não pertence ao governador nem ao seu presidente. Integra o patrimônio do Estado do Rio e de seus habitantes. Portanto, as aludidas autoridades não dispõem de legiti-midade para “capitalizar” ou tentar privatizar esta importante empresa pública, fornecedora de água, que deve estar a serviço de todos.

Capítulo III - A Privatização da Água |

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CABRAL E O TOM JOBIM1

Parece que o Governador Cabral Filho quer redescobrir o caminho para as privatizações, não negando, assim, suas origens tucanas. A sanha manifestada contra as empresas estatais não se limita à “reestruturação”, ou melhor, à privatização da CEDAE.

Ao comentar a necessidade de dinamização da estrutura e dos serviços aeroportuários prestados pela Infraero no Aeroporto Tom Jobim, o Governador manifestou que, “do ponto de vista da gestão dos aeroportos, eu acho que esse é um negócio para ser administrado pelo setor privado” (Tribuna da Imprensa, 30 de julho de 2008, p. 6),

No dia 11 de agosto de 2008, o Governo do Estado do Rio de Janeiro realizou debates na Assembléia Legislativa, com a presença, entre outros, do Governador, do Secretário de Transportes e do Presidente do Legislativo Estadual, para tratar da remodelação das ativi-dades do Aeroporto Tom Jobim.

1 Tribuna da Imprensa, de 14/08/2008, p. 04.

Capítulo 3

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Não está em discussão a necessidade de modernizar a infra-estrutura aeroportuária bra-sileira, inclusive a do Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim. Afinal, construído na década de 1970 e ampliado a partir de 1998, com a edificação do terminal 2, que necessita naturalmente de manutenção em sua estrutura, a fim de melhor atender aos usuários.

Com efeito, o Governador do Estado não tem legitimidade nem competência admin-istrativa para propagar a privatização do Aeroporto Tom Jobim, que está sob os cuidados da Infraero, empresa pública federal.

Vale lembrar que o poder público não pode ser mero instrumento dos interesses privados, devendo tutelar os interesses da coletividade.

Os cidadãos do Estado do Rio esperam a defesa veemente da revitalização do Aeropor-to, que vem operando bem abaixo de sua capacidade, além da cobrança de verbas do governo federal para melhorar suas instalações.

Por outro lado, é inaceitável a pressão, por parte das companhias aéreas, para revogar “uma portaria do antigo Departamento de Avião Civil – DAC, antecessor da Anac, que limitou

Capítulo III - Cabral e o Tom Jobim |

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o uso do Santos Dumont para rotas da ponte aérea” (Tribuna da Imprensa, 11 de agosto de 2008, p.8).

O problema não é o Galeão ser administrado por uma empresa pública, mas sim o con-strangimento que as empresas aéreas tentam exercer sobre a Anac, de modo a concentrar suas operações nos aeroportos de São Paulo (Guarulhos e, principalmente, Congonhas). Diga-se, de passagem, que a ponte aérea Rio-São Paulo é uma das rotas mais movimentadas e rentáveis do mundo.

O que o Aeroporto Tom Jobim precisa não é de privatização, mas sim retomar suas antigas operações, principalmente as internacionais. Este é o caminho para que o Rio de Janeiro volte a ser a porta de entrada para o Brasil. Desta forma, o Aeroporto tornar-se-á dinâmico e vivo como nos tempos da criação do “Samba do Avião”, que o tornou mundialmente conhecido.

Por fim, em vez de pregar a privatização, até mesmo de setores fora de sua área de com-petência, Sérgio Cabral Filho deveria ser mais duro com o Secretário de Segurança Nacional dos EUA, Michael Chertoff, que lhe sugeriu “mobilizar o setor privado a impor controles ainda mais severos sobre as cargas” movimentadas nos portos do Estado do Rio de Janeiro (Tribuna da Imprensa, 23 de julho de 2008, p. 06), o que representa, sem dúvida, uma interferência brutal na soberania do País, que o governador, como Chefe de Poder Executivo, deveria re-chaçar, visto que é um dos guardiães da Constituição da República.

| Capítulo III - Cabral e o Tom Jobim

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Capítulo 3

A venda da Companhia Vale do Rio Doce, levada adiante pelo governo Fernando Henrique, constituiu-se, na verdade, de mera transferência de papéis, ou seja, ações de titularidade do governo no capital social da empresa, que foram repassadas, em parte, a terceiros.

Os recursos minerais e o subsolo pertencem à União1, sendo a atual Vale do Rio Doce dona apenas da lavra do mineral extraído.

A CVRD explora os recursos minerais mediante concessão dada pela União, mais par-ticularmente pelo Ministério de Minas e Energia, como regulamentado pelo Código de Min-eração Brasileiro (art. 43 do Decreto-lei n.º 227, de 27 de fevereiro de 1967), que pode ser revogada.

Logo, os atuais controladores da empresa têm o controle do fundo de comércio, con-

1 Art. 20, IX, combinado com o art. 176, ambos da Constituição Federal.

A VALE AINDA É NOSSA

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stituído pelas instalações de infra-estrutura, e dos títulos de concessões para exploração das jazidas minerais, o que os torna proprietários da lavra mineral extraída.

Todavia, a sensação que ficou para os cidadãos brasileiros foi de que os adquirentes das ações se tornaram senhores em definitivo das reservas minerais, cuja exploração, repita-se, apenas foi concedida à CVRD.

Por se tratar de concessão, o Governo Federal poderá, caso queira, não renovar as autorizações para exploração das jazidas, uma vez que os recursos minerais e o subsolo explorados pela CVRD são da União, ou melhor, do povo brasileiro.

Nesse contexto, o Presidente da República deveria ser chamado ao debate para saber-mos, de forma clara, a sua opinião a respeito do tema, uma vez que cabe ao Poder Executivo a administração dos recursos minerais do país.

A propósito, o art. 42 do Código de Mineração permite que o Executivo recuse a autorização para exploração da lavra quando “for considerada prejudicial ao bem público ou comprometer interesses que superem a utilidade da exploração industrial, a juízo do

| Capítulo III - A Vale Ainda é Nossa

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Governo”, cabendo, apenas na última hipótese, indenização das despesas feitas em razão das pesquisas realizadas.

Ademais, registre-se, por oportuno, que o não cumprimento de quaisquer das obrigações assumidas pela Vale do Rio Doce em relação aos termos da concessão poderá levar à sua ca-ducidade, conforme o art. 63 do Código de Mineração.

Vale destacar que os atuais controladores da CVRD têm praticado uma série de atos equivocados, tais como a reclamação apresentada perante o Tribunal Internacional da OEA, contra o Governo brasileiro, como noticiado pela imprensa.

Tal fato, se confirmado, atenta contra a Constituição Federal, no que diz respeito ao princípio fundamental da soberania nacional, não podendo a empresa nacional deixar de se submeter às leis e aos tribunais brasileiros.

Afinal, a Constituição Federal (art. 176, parágrafo 1.º) somente autoriza a exploração de minerais por brasileiros ou empresas constituídas no país. A atual CVRD não é uma em-presa brasileira?

Capítulo III - A Vale Ainda é Nossa |

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Pode-se citar, igualmente, o descumprimento no pagamento de royalties aos índios, devidos pela exploração de minerais em suas terras, além de constantes violações ao meio am-biente, como apontado no Requerimento de Informação n.º 145, de 14 de março de 2007, apresentado na Câmara dos Deputados pelo Deputado Wladimir Costa.

Outra questão que se coloca é se o valor pago pela CVRD, em razão da exploração da lavra, remunera de forma justa e adequada a concessão da mesma pelo Estado.

Desta forma, o Governo tem legítimos e legais argumentos para rever a autorização de exploração dos minerais pela CVRD ou, então, fundar uma nova Companhia Vale do Rio do Doce, por serem os minerais de titularidade da União, preservando assim a nossa soberania nacional e retomando recursos minerais imprescindíveis ao desenvolvimento do país.

Por fim, é importante lembrar as palavras sábias do cacique Wai-wai, da tribo Waiãpi, advertindo os engenheiros da ICOMI (Indústria e Comércio de Minérios S/A), referindo-se à exploração exagerada do manganês, nas minas da Serra do Navio: “Faça como nós fazemos com o ouro, tirem de pouquinho, apenas o suficiente para comprar alguma coisa que a sua comu-nidade precisa, porque se tirar de muito como vocês estão fazendo, a terra vai adoecer. E se a terra adoecer, todos nós que vivemos e dependemos dela, vamos adoecer também.” (Ponte entre povos, org. Marlui Miranda, Sesc: SP, 2005, p. 15, sem grifos no original)

| Capítulo III - A Vale Ainda é Nossa

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CAPÍTULO IVLEMBRANÇAS DA COLÔNIA

Tão logo conquistou a presidência do Paraguai, Fernando Lugo manifestou que preten-dia rever o tratado que dispõe a respeito da Hidrelétrica de Itaipu.

O próprio governo brasileiro, por intermédio de seu chanceler, afirmou considerar justa a revisão, como noticiou O GLOBO, 22/04/2008, p. 01:

“Lula nega, mas Amorim admite renegociar o Tratado de Itaipu. O que prevê o acor-do entre os dois países:

1. O tratado foi assinado em 1973 e a revisão será somente em 2.023;

2. O Paraguai consome 5% da energia que lhe cabe;

3. O Brasil compra o excedente US$ 1,5 bilhão/ano;

4. O Paraguai paga ao Brasil pelo financiamento da construção da Usina US$ 1,1 bilhão/ano;

5. O Paraguai recebe líquido US$ 400 milhões/ano.”

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Como se vê, as bases do tratado são injustas, com um país, no caso o Brasil, explorando o outro, o Paraguai, que igualmente teve parte de seu patrimônio histórico cultural saqueado e ocultado após a Guerra da Tríplice Aliança, que durou de 1864 a 1870, e uniu de um lado, Brasil, Uruguai e Argentina contra o Paraguai.

Nesta guerra, dois terços da população do Paraguai foram eliminados, permanecendo vivos apenas idosos, mulheres e crianças e sendo devastada a economia daquele país, a mais pujante da região no período.

A respeito do tema e da dominação estrangeira sobre nossas nações é esclarecedora a entrevista do advogado Martín Almada, ao afirmar: “suspeito que o Brasil queira esconder o fato de que esta foi uma guerra imperial, comandada pela coroa britânica. Contesto a versão de que Brasil, Paraguai e Uruguai travaram a guerra porque tinham interesse na Bacia do Prata. Sim, claro que tinham, mas foram manejados pelos ingleses. Nesta época, tínhamos no poder Solano López, que era um ditador, mas patriota e progressista, foi nosso Fidel Castro. Éramos o único país latino que não se submetia à Inglaterra, não tinha banco inglês e tinha abolido a escravidão, enfim, um mau exemplo.”1

1 Jornal do Brasil, em 22 de julho de 2008, p. A27.

| Capítulo IV - Lembranças da Colônia

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Na América Latina, não se pode repetir entre os seus países a política de exploração de um pelo outro, pois esta foi a postura adotada, desde o seu descobrimento pelos dominadores europeus, sendo necessário, mais do que nunca, a união de todos para defendermos nossos interesses comuns e a soberania dos países da região, amplamente ameaçada.

A união dos povos latino-americanos é o objetivo a ser alcançado, pois é aqui que está uma grande concentração de pobres do mundo, e não na Europa colonizadora.

Infelizmente ainda prevalecem, no continente e particularmente no Brasil, os que pens-am de forma diversa, fazendo lembrar o ideal colonizador, representado por importantes veículos de comunicação social e autoridades, como se pode constatar no editorial do Jornal O Globo, de 25/04/2008, p. 06: “PESO DO SUPREMO. (...) Fez bem o ministro Gilmar Mendes em criticar o excesso de edições de medidas provisórias pelo Executivo, causa do estrangu-lamento do Congresso, cuja pauta de trabalho tem sido constantemente obstruída por essa forma de o governo governar sem o Poder Legislativo, uma prática antidemocrática. O mesmo deve-se dizer da referência feita à ação dos chamados movimentos sociais ‘na fronteira da legalidade’, uma alusão implícita ao vandalismo crescente com que têm agido os sem-terra. É irretocável o que disse Gilmar Mendes: ‘A agressão aos direitos de terceiros e da comunidade em geral deve ser repelida imediatamente com os instrumentos fornecidos pelo estado de direito, sem embaraços, sem tergi-

Capítulo IV - Lembranças da Colônia |

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versações, sem leniências. Ontem, ele foi ainda mais direto, ao dizer que as ocupações ‘já passaram dos limites constitucionais’.(...)”

Na mesma edição de O Globo, de 25/04/2008, p. 08: “... O ministro da Justiça, Tarso Genro, defendeu o governo (na posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do STF), ao afirmar que: O Governo trata com o mesmo respeito e vigor o movimento dos grandes fazendeiros e o refinanciamento de suas dívidas, assim como o MST. É um governo democrático, e não de repressão. Um governo que não faz confronto de classe. (...) Ele disse que os juízes não devem hesitar em determinar a liberação de terras ocupadas, mas recomendou cautela: uma invasão coletiva exige meios específicos (de desocupação). Já vivemos os problema de Eldorado do Carajás. Ninguém quer tragédias, mas é preciso que determinadas regras sejam respeitadas, citando o massacre em que 19 sem-terra foram mortos pela polícia do paraense. (...)”.

É evidente o jogo de forças contraditórias, inclusive com o benefício de um grupo sobre o outro, como se ainda vivêssemos numa Colônia.

| Capítulo IV - Lembranças da Colônia

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A FAMÍLIA REAL1

Será que temos reais motivos para comemorar os 200 anos de chegada da Corte Portu-guesa ao Brasil? Sob o aspecto institucional, até podemos encontrar algumas razões, como as que justificam a manutenção, ainda em nosso tempo, do ideário colonizador, como descrito por João Capistrano de Abreu em seus “Capítulos de história colonial”.

Quando D. João VI aportou no Rio de Janeiro, em março de 1808, os princípios e ideais por ele defendidos já estavam atrasados em relação ao seu tempo. Isto porque, com a declaração de independência dos Estados Unidos da América do Norte, em 1776, seguida da eclosão da Revolução Francesa, em 1789, e da abolição da escravatura no Haiti, em 1794, já tinha ocorrido a transposição do período histórico para a Idade Contemporânea.

Apesar de haver muitos que pensam e escrevem que o Brasil não existia há duzentos anos, a chegada da família real significou um retrocesso.

1 Tribuna da Imprensa, de 12/03/2008, p. 04.

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Nesse sentido, podem ser citados os conhecidos movimentos da Inconfidência Mineira, em 1789, e da Revolta dos Alfaiates, em Salvador, em 1798, que pregaram os ideais republi-canos, e a última revestida de caráter popular.

Para contestar a afirmação de alguns autores e historiadores de que o Brasil não existia antes da chegada da família real portuguesa em nossas terras, é importante citar o projeto “O Brasil que D. João VI encontrou”, desenvolvido pelo publicitário e advogado Roberto Wrencher, segundo o qual: “... D. João VI e a comitiva real desembargaram no Rio de Janeiro em 8 de março de 1808. Disseram alguns e dizem outros que o Brasil de fato começou nesse dia. Mas é apenas uma visão mercantilista: o Brasil como centro do império e das decisões do sistema comercial luso-brasileiro. Porque o Brasil verdadeiro, o Brasil de seu povo, já se fazia presente: na revolta dos Alfaiates, na Inconfidência Mineira e, principalmente, nas obras de alguns desses artistas, de seus poetas (Aleijadinho, padre José Maurício e Cláudio Manoel da Costa, entre muitos outros). ...”

Nestes dias festivos, vale lembrar uma verdade inconveniente: aquela nobreza praticava atos bárbaros contra os que dela discordavam, matando, esquartejando, salgando e expondo os restos em praça pública. Como se vê, a chegada da família real portuguesa apenas fez o Brasil retroceder, mantendo por mais de 80 anos a escravidão já abolida em outras nações e tornando-se o último país da América do Sul a proclamar a República.

| Capítulo IV - A Família Real

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A ANISTIA E O PNA1

O Ministério da Justiça, por meio da Comissão de Anistia, reduziu a nada o Programa Nacional de Alfabetização, idealizado pelo professor Paulo Freire, cuja proposta era extin-guir o analfabetismo no Brasil. À época, o Governo João Goulart selecionou, contratou e preparou muitos jovens para serem alfabetizadores, iniciando o programa pelo Estado do Rio de Janeiro.

O PNA era tão importante e necessário para a transformação do Brasil, que, segundo revelou a Central de Inteligência Americana - CIA, foi um dos primeiros alvos a serem com-batidos durante o regime militar. (O Globo, de 01/07/07, p. 36)

Depois de muitos anos, e após a reintegração no serviço público de vários participantes do PNA, nos governos Sarney até Itamar Franco, a Comissão de Anistia passou a seguir a mesma orientação adotada pelos consultores jurídicos do governo FHC, que, valendo-se de aforismos jurídicos, negaram idêntico direito àqueles jovens, hoje anciãos, sob o argumento de que o PNA não tinha caráter permanente, “por se tratar de um programa de governo”.

1 Monitor Mercantil, de 29/08/2008, p. 02, e no sítio eletrônico Migalhas, edição nº. 1.978, de 08/09/2008.

Capítulo 4

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A Comissão limitou-se a uma análise superficial, cujo objetivo principal é manter vivas as idéias neoliberais defendidas por FHC, que visam apenas diminuir os custos da administração pública, impedindo a reparação aos brasileiros reconhecidos pelo próprio órgão como tendo sido perseguidos politicamente.

Como pode a Comissão conceder anistia política aos integrantes do PNA, mas negar-lhes o direito à reintegração no serviço público? Reconhecer uma condição, sem conceder o direito dela decorrente é uma contradição política e um aleijão jurídico, em especial quando praticada por um governo que se diz democrático e progressista, mas que renega a História de seu povo.

Foi o que fez a Comissão, nos casos julgados em bloco a partir do primeiro semestre de 2008, quando se limitou a anistiar e determinou o pagamento de uma reparação equivalente a sessenta salários mínimos, para diversos ex-integrantes do PNA.

A propósito, com base em quê a Comissão estabeleceu que o PNA era provisório? O Programa era, sim, uma política de governo, como tantas outras, e só não foi adiante em razão do golpe militar de 1964, que tinha o PNA como um de seus principais alvos, con-forme admitido pela Comissão.

Na verdade, a Comissão está diante do dilema de Hamlet, uma vez que reconhece a existência de servidores oriundos do PNA, reintegrados ao Ministério da Educação (muitos

| Capítulo IV - A Anistia e o PNA

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já aposentados), porém nega o mesmo direito a outros em idêntica situação, em violação ao princípio da isonomia (art. 5º da Constituição).

Vale lembrar que todos os que ingressaram na administração pública sem concurso, especialmente durante a ditadura de 1964 a 1985, e até cinco anos antes da promulgação da Constituição de 1988, tornaram-se “estáveis no serviço público” (art. 19 do ADCT).

Dessa forma, o justo e correto seria também considerar estáveis os integrantes do PNA, aprovados em concurso público, mas que não puderam levar adiante suas atividades em razão do regime instalado a partir de 1.º de abril de 1964.

Se até os contratados sem concurso, durante o regime de exceção, tornaram-se estáveis no serviço público, muito mais íntegro seria reconhecer igual direito aos aprovados em pro-cesso seletivo na vigência de um estado democrático.

A esse respeito, a própria Comissão afirmou em seus pareceres que “no Rio de Janeiro realizou-se uma chamada pública para seleção de alfabetizadores, que após serem seleciona-dos, foram recrutados através da publicação de edital contendo lista dos aprovados”.

Portanto, não basta o Ministério da Justiça pugnar por anistia. Tem que, de fato, assum-ir uma postura digna em relação aos que o Ministério reconhece como “anistiados políticos”, mas aos quais não concede a devida reparação, consubstanciada na reintegração ao serviço público, que lhes é assegurada de direito.

Capítulo IV - A Anistia e o PNA |

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REVELAÇÕES DA CRISE1

A Tribuna da Imprensa de 29/10/2008 foi reveladora, ao noticiar na sua página 07: “Ricos querem ajuda dos pobres”. E na página 08: “Mundo já gastou 11% do PIB para salvar bancos.”

Na verdade, seria desnecessário comentar as referidas manchetes, porém vamos destacar alguns trechos das matérias publicadas para verificar o atual estágio da História universal

Gordon Brown, primeiro ministro inglês, com toda desfaçatez, foi direto no ponto. Não por escrúpulo, mas por imperiosa necessidade de tentar manter a política colonizadora britânica, que explorou durante séculos as riquezas dos povos na América, na África e na Ásia. Segundo ele, “Está claro que toda a comunidade internacional deve ter um interesse em parar esta crise para prevenir uma piora da desaceleração da economia global.” (página 07)

O premier britânico, porta-voz dos colonizadores, tenta repassar aos povos em desenvolvimento a mesma política do terror implantada pelos Estados Unidos da América do Norte após o 11 de setembro. Os países ricos atuam na esperança de transferir aos colonizados os prejuízos decorrentes da grave situação econômica em que se envolveram.

1 Tribuna da Imprensa, de 01 e 02/11/2008, p. 04.

Capítulo 4

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Nessas condições, tudo que foi dito até então sobre globalização não passou de uma grande farsa, porque as fronteiras existem sim, tanto que os países ricos mantêm suas barreiras alfandegárias e impõem suas duras regras aos demais.

A proposta discutida pelos países europeus, representados por Inglaterra, França e Ale-manha, visa a continuar o saque das riquezas. Para atingir seu objetivo, pretendem formar um “fundo global” com os recursos dos países emergentes. Estes, para serem aceitos no “clube dos desenvolvidos”, terão que pagar.

Como exigir tal sacrifício dos países pobres?

Como informou a Tribuna da Imprensa, “os governos já gastaram mais de 11% do PIB mundial para dar liquidez e salvar os bancos desde abril, o equivalente a mais de quatro vezes o tamanho da economia brasileira (...).” (p.08). O mais grave de tudo é que para acabar com a fome mundial seria necessário apenas metade do que foi doado para os bancos ingleses (US$ 30 bilhões).

Diante das contradições apresentadas, percebe-se que estamos frente a uma possível transposição de período histórico, cujo desfecho não se pode ainda apontar. Mas que o siste-ma está ruindo é um fato que não se pode negar.

Capítulo IV - Revelações da Crise |

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Nesse cenário, a América Latina passa a ter grande importância, na medida em que muitos de seus países têm acenado para profundas transformações.

Os países latino-americanos apresentam idênticas heranças da colonização, como a ex-propriação das suas riquezas e a pobreza da população, que se perpetua pela atuação de diri-gentes conservadores.

O Brasil tem potencialidades (naturais e culturais) que podem ser relevantes para o seu desenvolvimento e que poderiam ser compartilhadas com os outros países do continente, num intercâmbio comercial mais saudável.

A constituição nacional orienta para a formação de uma comunidade latino-americana de nações. Porém, existem impasses a essa integração: ausência de uma política nacional de desenvolvimento; exportação de riquezas estratégicas; tentativa de hegemonia sobre as de-mais nações do continente e o alinhamento com os países desenvolvidos.

Nesse processo, o Brasil deveria buscar o fortalecimento do Mercosul e da Unasul; associar-se à ALBA; e vincular-se, desta maneira, aos projetos de criação do Banco do Sul, da Petrosul, da TV Sul, Aerosul etc., buscando, assim, fugir da crise econômica e fortalecendo os países em desenvolvimento em todo mundo.

| Capítulo IV - Revelações da Crise

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Capítulo 4

Desde sempre, quando surge uma ameaça à economia, tornou-se hábito da classe em-presarial reclamar do chamado “custo Brasil”, que engloba o aumento da carga tributária e o custo do trabalho no país. Com a desculpa de reduzi-lo, há muito paira no ar a ameaça da reforma trabalhista, que pretende eliminar direitos sociais dos trabalhadores consolidados na Constituição de 1988.

Sob esse pretexto, por meio da “Lei Kandir”, a partir de 1997 foram concedidas is-enções de ICMS nas exportações, que criaram dificuldades para os Estados e os deixaram cada vez mais dependentes de repasses da União, enfraquecendo a autonomia federativa.

Posteriormente, visando diminuir ainda mais o custo das exportações, o governo is-entou tais operações das contribuições sociais referentes à seguridade social (PIS e Cofins), deixando, assim, de serem arrecadados recursos necessários à Previdência Social, à Assistência Social e à saúde.

A seguridade social deveria ser financiada por toda a sociedade, nos termos do art. 195 da Constituição Federal. Porém, a redução da carga tributária não é repassada aos preços das mercadorias e serviços e não tem proporcionado melhoria nas condições de vida da população.

Ao contrário, tomando como exemplo apenas a seguridade social, constata-se que não

A LEI KANDIR, O PAC E OUTRAS ESTÓRIAS

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existem hospitais em condições de atender com dignidade a todos os trabalhadores; os idosos continuam sem assistência e as crianças pobres não têm esperança de futuro.

O equívoco persiste com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), proposto pelo Governo Federal em janeiro de 2007, que concede isenção daquelas contribuições so-ciais e propõe a utilização do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para incre-mentar as obras de infra-estrutura, como estradas, portos, ferrovias etc., que poderão, depois de concluídas, ser privatizadas.

Além disso, todas as ações que visavam à redução do “custo Brasil” (programa de privat-ização, redução de tributos etc.), concretizados a partir de 1995, não geraram novos postos de trabalho, não propiciaram real aumento salarial nem favoreceram o crescimento econômico. Pelo contrário, a situação do trabalhador tem piorado a cada ano.

O desemprego e a informalidade têm a mesma origem: a concentração do poder econômico, que expurga os trabalhadores do mercado de trabalho, deixa-os sem os recursos financeiros para sustentar com dignidade suas famílias e os leva à marginalização e à violência.

Uma sociedade só pode ser considerada livre e democrática quando todos os seus inte-grantes conseguem suprir suas necessidades básicas. Como ensina o professor Nelson Maciel Pinheiro Filho, três são os itens essenciais para o homem: alimento, abrigo e educação. Os dois primeiros por serem imprescindíveis à vida. O terceiro porque é necessário à transfor-mação cultural e política. Atender a estas necessidades deve ser o ponto de partida para um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional

| Capítulo IV - A Lei Kandir, o PAC e Outras Estórias

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UMA INJUSTA E INCONSTITUCIONAL REFORMA TRIBUTÁRIA1

A Comissão Especial da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados aprovou no dia 20/11/2008 o parecer e o Substitutivo do Deputado Sandro Mabel (PR/GO), a respeito da PEC da Reforma Tributária, que tem o objetivo de alterar “profundamente” o sistema tributário nacional.

O substitutivo do relator da Comissão Especial deu um tratamento de regulamento, casuísta e semelhante à legislação tributária infraconstitucional, ao invés de apresentar uma estrutura abstrata e geral, como deve ser o texto da Constituição.

O relator, em seu parecer, além de sugerir a aprovação da PEC 233/2008, encaminhada pelo Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recomendou a aprovação de mais 09 PEC(s), sobre o mesmo assunto, que tramitavam na Câmara dos Deputados desde 2007, e também acolheu mais de 200 emendas substitutivas apresentadas durante os debates na Comissão.

Daí a prolixidade do texto apresentado, que se torna complexo diante de tantos temas polêmicos, dificultando a sua análise e aprovação sem uma ampla discussão com a sociedade civil.

1 Revista de Estudos Tributários nº. 66, março e abril de 2009 e Tribuna da Imprensa on line, de 09/12/2008.

Capítulo 4

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O texto a ser debatido no Plenário da Câmara dos Deputados, por si só conduziria, num processo legislativo verdadeiramente democrático, à necessidade da convocação de uma constituinte específica para examiná-lo, pois sua aprovação implicará uma profunda alteração do Sistema Tributário vigente, passando por cima de normas constitucionais protegidas por cláusula pétrea.

Ademais, será impossível a qualquer congressista analisar o amplo texto, de 182 pági-nas, com a indispensável profundidade, não sendo, portanto, lídima a sua aprovação imedi-ata, como pretende o Governo Federal.

Pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) encaminhada pelo Governo, bem como pelas alterações aprovadas na referida Comissão Especial, seria criado o Imposto Sobre o Val-or Agregado Federal (IVA-F), que teria como hipótese de incidência tributária as operações onerosas com bens e serviços (art. 153, VIII, do substitutivo).

Com efeito, está sendo criada a possibilidade de a União poder cobrar imposto sobre as mesmas operações em que Estados e Municípios já tributam os contribuintes brasileiros, por meio do ICMS e ISS.

Desta forma, está sendo ampliada a carga tributária de forma indireta, recaindo o custo da tributação sobre o preço das mercadorias e serviços pagos pelo povo no final da cadeia produtiva, na medida em que o novo imposto integrará a sua base de cálculo (art. 153, VIII, parágrafo 6.º, IV, do texto a ser aprovado), podendo ser cobrado “por dentro”, onerando mais ainda a parcela mais pobre e menos assistida pelo Poder Público.

| Capítulo IV - Uma Injusta e Inconstitucional Reforma Tributária

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Saliente-se que, que nesta hipótese, poderá surgir conflito de competência entre a União, Estados e Municípios, cabendo, então, à lei complementar dirimir tais conflitos (art. 146, I, da Constituição).

Porém, a tendência observada ao longo dos anos é de que a União fará prevalecer sua força política diante das demais entidades federadas, deixando claro que o Brasil é uma “república federativa” constituída por um Estado unitário, onde os outros entes dependem da União, principalmente em conseqüência do endividamento dos Estados e principais Mu-nicípios e ficam à mercê dos repasses das receitas tributárias (art. 159 da Constituição).

Esta situação revela que o novo IVA-F não corresponde, de forma alguma, ao sonhado imposto sobre valor agregado defendido por grande parcela dos doutrinadores brasileiros, uma vez em que, na forma apresentada na PEC 233 e no substitutivo aprovado na Comissão Especial da Reforma Tributária, há justaposição de impostos com a mesma hipótese de incidência tributária, quando se esperava que o IVA pudesse atender a expectativa dos contribuintes de pagar um único tributo, reduzindo a carga tributária e o custo da administração fiscal.

Porém, da forma apresentada, ele se constituirá tão somente em mais um imposto, num cenário tributário já complexo, excessivo e oneroso.

Além da ampla incidência sobre bens e serviços, o novo imposto possibilitará a extinção das contribuições sociais previstas nos artigos 195, I e IV, destinadas à Seguridade Social (par-ticularmente a COFINS e o PIS) e o salário educação, destinado a garantir o ensino público fundamental para crianças e adolescentes (art. 212, parágrafo 2.º, da Constituição), que serão

Capítulo IV - Uma Injusta e Inconstitucional Reforma Tributária |

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revogadas pela redação dos artigos 5.º e 30, III, do Substitutivo aprovado na Comissão de Reforma Tributária.

Com efeito, a criação de um novo imposto sobre o valor adicionado federal – que não vincula a arrecadação de sua receita, ao contrário das taxas e contribuições - atingirá direta-mente o combalido sistema de saúde, previdência e assistência social e a educação pública fundamental, que foram assegurados pelo constituinte originário (artigos 194 e 195 da Con-stituição), por meio da destinação especifica destas contribuições, que se pretende extinguir pela mencionada PEC.

Por mais que sejam repassadas parcelas da arrecadação do “IVA-F” à seguridade social, ao seguro desemprego e ao financiamento da educação fundamental, como consta na re-dação do art. 159 da PEC, a proposta em debate estará extinguindo uma receita vinculada e destinada especificamente a estas atividades fundamentais à população e que constituem verdadeiros direitos sociais, como definido no artigo 6.º da Constituição vigente.

Com efeito, as contribuições sociais cuja extinção está sendo proposta foram estabe-lecidas pelo constituinte originário como forma de garantir o custeio dos direitos sociais previstos no artigo 6.º, referentes à educação, à saúde, à previdência social, à proteção à ma-ternidade, à infância, à assistência aos desempregados, “na forma da Constituição”, como diz o mencionado artigo.

Ou seja, as contribuições que a Reforma Tributária pretende abolir estão relacionadas à garantias individuais, nas quais se incluem os direitos sociais, sendo, portanto, cláusula

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pétrea, que não se submete à proposta de emenda constitucional, nos termos do artigo 60, IV, da Constituição.

Em razão disso, não se pode, em hipótese alguma, extinguir estas importantes con-tribuições sociais, sob o risco de penalizar a combalida seguridade social destinada à classe trabalhadora, aos idosos, aos doentes e às crianças.

Como dito, o caput do art. 195 da Constituição Federal prevê que a Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, residindo nisto o espírito de solidariedade, um dos ob-jetivos e princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o art. 3.º da Carta Política.

Recordemos que, quando a Emenda Constitucional 42, de 2003, estabeleceu a co-brança da parcela previdenciária dos servidores inativos, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n.º 3.105/DF, utilizou o princípio da solidariedade como fundamento para exigir o pagamento da referida contribuição.

Por meio do projeto de emenda constitucional em questão verifica-se um paradoxo, pois quando se trata de cobrar dos trabalhadores, estes são chamados a contribuir solidaria-mente com toda a sociedade, aí incluídos os patrões. Porém, em sentido inverso, o mesmo princípio não é aplicado, uma vez que as contribuições patronais e que recaem sobre a folha de pagamento estão sendo extintas, o que revela o grau de desigualdade existente no sistema tributário nacional.

Como revelou o sítio eletrônico Consultor Jurídico, de 24/11/2008, com a aprovação

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do parecer da Comissão Especial da Reforma Tributária, se for aprovada a proposta de alter-ação da contribuição sobre a folha de pagamento, “o INSS perderá R$ 4 bilhões ao ano.” Isto é um duro ataque a um direito social que, repito, não pode ser alterado por meio de emenda à constituição. Fica evidente que a PEC, por meio de uma reforma tributária, tenta abolir direitos sociais, atingindo receitas destinadas à aposentadoria.

Portanto, os empregadores não podem ficar desonerados do pagamento da aludida contribuição social, na medida em que estão sujeitos à regra da universalidade do custeio do sistema previdenciário. Fazer recair o custeio apenas sobre a classe trabalhadora viola outras cláusulas pétreas relacionadas aos princípios fundamentais da solidariedade (art. 3.º da Con-stituição) e isonomia (art. 5.º da Constituição).

Com a reforma, os trabalhadores é que, ao final, suportarão os custos do IVA-F, de am-pla incidência sobre “operações com bens e prestações de serviços”, que recairá sobre tudo, diminuindo o poder de compra dos salários, o que, igualmente, será prejudicial ao setor pro-dutivo, porque reduzirá as aquisições de produtos.

A proposta de criação do IVA-F vai de encontro à crise financeira internacional, pois países como a Inglaterra estão adotando medidas para “reduzir impostos para a classe média e aumentar a carga sobre a elite e os lucros das empresas”. Segundo declaração do Primeiro Ministro Gordon Brown, “essa será a receita do Governo britânico para salvar sua economia e o Natal” (Tribuna da Imprensa, 25/11/2008, p. 8).

Por outro lado, sob o argumento de eliminar a “guerra fiscal”, a PEC da reforma

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tributária pretende tirar o poder de legislar dos Estados, unificando a legislação do ICMS e fortalecendo o Conselho de Administração Fazendária (CONFAZ), conforme a proposta de redação do artigo 155, II, parágrafo 2.º, incisos XIII e XV, apresentada no substitutivo.

A organização político-administrativa adotada no Brasil, por força dos artigos 1.º e 18 da Constituição Federal, é de natureza federativa, sendo a federação “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, os quais, ao lado da União Federal, são autônomos, inexistindo qualquer nível hierárquico entre os mesmos no âmbito de suas competências.

Os postulados básicos da federação estão assentados: a) na fixação das repartições das competências de cada um de seus membros; b) no poder dos seus entes de legislar livremente acerca dos assuntos de suas competências; c) na participação, por meio dos membros inte-grantes do Senado Federal, na esfera de decisão legislativa federal; e d) na capacidade de auto sustentar-se através do levantamento de receitas decorrentes de suas competências.

Tais postulados visam à preservação da plena autonomia dos entes federados, o que significa dizer que nenhum deles está em posição política superior a de qualquer outro.

A propósito, a Constituição Federal de 1988 preservou a manutenção do sistema fed-erativo, não podendo a federação ser abolida ou violentada, por nenhuma norma, inclusive emenda constitucional (art. 60, parágrafo 4.º, I).

Em decorrência disto, a emenda constitucional não poderia eliminar tributos previstos na Constituição de 1988, como se deu, por exemplo, através da emenda constitucional

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n.º 03/93, que extinguiu, numa só penada, o Adicional do Imposto de Renda (AIRE), de competência estadual, e o Imposto de Vendas a Varejo de Combustíveis (IVVC), de competência municipal.

A emenda constitucional 03/1993, ao eliminar impostos, interferiu no poder de tribu-tar dos entes da federação, reduzindo, assim, o poder de arrecadação de receita e enfraquec-endo a autonomia federativa.

De forma clara e direta, o substitutivo objetiva retirar a competência dos Estados-Mem-bros e do Distrito Federal de legislarem com autonomia sobre o ICMS, como previsto na redação do artigo 155, parágrafo 2.º, XIII.

O caput do artigo 155 da Constituição Federal dispõe, expressamente, que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir o ICMS, ou seja: o texto constitucional conferiu somente a tais entidades o poder de dispor e de tratar deste imposto.

Assim, apenas os poderes constituídos dos estados-membros e do Distrito Federal (Poderes Legislativo e Executivo), seguindo as diretrizes gerais traçadas pela Lei Complementar n.º 87/96 (norma geral de cunho nacional, oriunda dos artigos 146 e 155, II, parágrafo 2.º, XII, da Constituição Federal), podem legislar sobre o ICMS, bem como executar a sua cobrança.

Desta forma, a PEC apresentada, no tocante à tentativa de retirar dos Estados e do Distrito Federal o poder de legislar de forma autônoma sobre o ICMS, representa uma

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ameaça à federação brasileira, atingindo a autonomia dos Estados-Membros.

Outra grave ameaça de violação ao princípio federativo é a inclusão da previsão de intervenção federal em Estados, e destes em municípios (arts. 34, V, “c”, e 36, V do substitutivo), para reorganizar suas finanças, quando a unidade federativa “retiver parcela do produto da arrecadação do imposto previsto no art. 155, II (ICMS), devida a outra unidade da federação”.

A intervenção é matéria ligada à garantia da ordem federativa e, em razão disso, não pode ser incluída ou modificada por emenda, nos termos do artigo 60, parágrafo 4.º, I, da Constituição.

Verifica-se ainda que a inclusão do artigo 105, III, alínea “d”, apresentada no substi-tutivo, que fixou a competência do STJ para julgar questões relativas ao ICMS, na verdade procura retirar do STF o julgamento, em instância final, de matérias relacionadas ao aludido imposto, em flagrante violação a cláusula pétrea, prevista no art. 60, parágrafo 4.º, III, da Constituição, que proíbe emenda constitucional que atente contra a separação de poderes.

Por isso, o substitutivo do relator da Comissão Especial da Reforma Tributária não se apresenta de forma justa nem constitucional, devendo ser rejeitado, por ser prejudicial ao setor produtivo, à classe trabalhadora e às instituições consagradas na Carta Política de 1988 como cláusulas pétreas.

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SOCIEDADE ANÔNIMA1

A denominação diz tudo. Por detrás da S/A qualquer um, bom ou mau, pode se es-conder. A sociedade anônima representa o ápice do capitalismo, que tem no lucro o principal objetivo a ser alcançado.

A S/A de capital aberto é uma forma de captação de “poupança”, que busca parte sig-nificativa de seus recursos junto aos trabalhadores que, na falsa esperança de ascender social-mente, investem em ações das companhias.

Todavia, essa classe de investidores não tem controle sobre os meios de produção e, por conseguinte, não participa da administração e destino da sociedade anônima, sendo muitas vezes impedida de ingressar nas dependências da empresa da qual é co-proprietária.

Com efeito, grupos de investidores com menos da metade do capital social podem con-trolar a empresa, por meio de acordo de acionistas, sem dar satisfação à maioria dos sócios.

1 Tribuna da Imprensa, de 20/11/08, p. 04.

Capítulo 4

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Havendo quebra das empresas, os próprios trabalhadores suportarão os prejuízos, seja de forma direta pelo desemprego e pela desvalorização dos seus recursos, seja de forma indi-reta pela transferência via erário público, que poderá destinar grande quantidade de recursos para amenizar a crise de gestão.

Em determinados períodos, o poder público incentivou os trabalhadores a investir seus recursos nas sociedades anônimas, colaborando para o fortalecimento do caixa das empresas. Como exemplo, pode-se citar os governos Fernando Henrique e Lula, que estimularam a utilização do FGTS na aquisição de ações da Petrobras e da Companhia Vale do Rio Doce.

Esta foi uma das formas de conter a resistência social que poderia existir em razão das privatizações. Assim, o trabalhador assumiu uma preocupação que originalmente não era sua (o sobe e desce das bolsas de valores).

Não se pode esquecer que o capitalismo tem sua origem na Idade Moderna, com a formação dos Estados Nacionais, e tornou-se hegemônico com as Revoluções Americana e Francesa. O capitalismo sempre esteve atrelado ao Estado, dele também dependendo.

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Mas procura-se a todo momento desvincular Estado de Sociedade organizada (que somos todos nós) para fazer prevalecer os interesses privados em detrimento do bem comum, transformando o poder público em mero instrumento dos interesses do capital. Daí o controle do Estado pelo capital, que patrocina seus representantes a fim de preservar o poder político.

A atual crise financeira deixou evidente este quadro, bem como a fragilidade dos pequenos investidores, que são os únicos a suportar os riscos que o sistema vigente impõe.

A propósito, os pequenos investidores têm a possibilidade de exigir a responsabilização dos controladores e administradores pela má gestão, não podendo suportar isoladamente o risco inerente ao investimento.

O capital é dependente do trabalho e, sem este, o sistema não tem como prosperar. Resta saber, portanto, até onde vai o poder da especulação financeira, que atenta contra to-dos, prejudica o desenvolvimento dos países e se opõe, inclusive, à parcela significativa do capital representada pelo setor produtivo (indústria e comércio).

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CAPÍTULO VDIREITO OU JUSTIÇA

Nem sempre o que é direito é justo ou o que é justo é direito. O direito confunde-se com justiça, o valor supremo próximo do ético, que os homens julgam como correto.

Porém, o direito tem uma definição mais ampla. Ocorre quando alguém é chamado para intervir num conflito e decidir em favor de um ou de outro. Ou então, quando um grupo dita normas que devem ser observadas pelos demais integrantes de uma sociedade, sob pena de uma sanção.

O direito também pode ser analisado como um fenômeno de acomodação das relações conflituosas, pacificando e conciliando.

Com efeito, o direito não se confunde com a lei. É mais amplo, contempla as normas escritas, os costumes, as decisões judiciais (jurisprudência) e as manifestações dos estudiosos.

Para aplicá-lo existem técnicas de interpretação (gramatical, sistemática, teleológica) e de integração, como a analogia, a equidade e os bons costumes.

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Por outro lado, nem sempre o justo é direito, pois há normas, decisões judiciais e man-ifestações dos juristas que estão, muitas vezes, em desacordo com os interesses da sociedade. Quantas leis ou decisões judiciais são injustas? Quando isto ocorre, há um grave conflito entre o que está sendo imposto pelo direito e o que deveria acompanhar o comportamento ético, inerente a todos os homens.

A seguir, analisaremos alguns casos em que normas ou decisões judiciais conflitam com os interesses do povo.

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LIBERDADE, PAZ E JUSTIÇA1

A liberdade é a irmã mais velha da paz. As duas são filhas da justiça. Mas como promover a liberdade, a paz e a justiça? Sem liberdade, não há paz. E sem paz, não há justiça.

A todo momento é apregoado que vivemos numa sociedade livre. Será que esta liber-dade existe de fato?

A Constituição diz, em seu preâmbulo, que vivemos em “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”.

Se o direito fosse o instrumento maior da sociedade, ninguém teria o que reclamar. Porém, a experiência do dia-a-dia revela outra face, cruel e triste. A maioria da população vive em condições de insalubridade, principalmente nos grandes centros urbanos, onde residem mais de 80% dos brasileiros. Basta iniciar o verão para ficarmos preocupados com epidemias de dengue. A cada esquina se vê a ampliação de favelas e o empobrecimento dos bairros pro-letários.

Será que a simples circulação (o ir e vir) dos indivíduos e a capacidade de expressar um

1 www.labirintosdodireito.blogspot.com 16/02/2009.

Capítulo 5

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pensamento constituem a plena liberdade?

O que se ganha de salário mínimo mal dá para pagar o transporte para o trabalho. Daí a proliferação de pessoas dormindo debaixo de marquises, durante a semana, nos grandes centros urbanos.

Por outro lado, a informação não chega às pessoas de forma completa, sem recortes ou distorções. Por exemplo, você sabia que na América Latina apenas três países (Cuba, Vene-zuela e Bolívia) conseguiram erradicar o analfabetismo? O acesso ao conhecimento, mesmo o simples saber ler, é indispensável para se exercer a liberdade.

O direito à informação não é tão amplo, como garante a Constituição (art. 5º, XIV), uma vez que os veículos de comunicação censuram a notícia, restringem o seu conteúdo, deixando de levar ao conhecimento do povo fatos importantes relacionados ao seu próprio destino.

Como se falar, então, em liberdade, numa sociedade onde a maioria tem suas necessi-dades de alimentação, abrigo e educação supridas com precariedade?

Nessas condições, como se esperar a paz? Se a liberdade não existe, muito menos se pode exigir que a sua irmã esteja presente. Assim, fica desolada a mãe-justiça.

Para promover a paz é preciso, antes, assegurar liberdade em plenitude, garantindo aos homens os itens necessários a uma vida digna, o que é possível no Brasil, diante da imensa riqueza (natural e cultural), bastando vontade política. Feito isso, não há dúvida de que a paz reinará.

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Portanto, sem liberdade e paz não haverá justiça entre os homens, por mais boa vontade que alguns possam ter.

Nos dias atuais, não podemos ficar em função do que ocorre na Europa e na América do Norte. Temos que intensificar o conhecimento do que ocorre ao nosso redor, na América Latina, e promover uma ampla integração.

Não é na velha Europa nem na América imperialista que o novo ocorrerá. Nestes locais, o sistema está desgastado, como comprovam os acontecimentos recentes, com as fraudes fi-nanceiras e a exigência de capitalização dos gestores do sistema com o dinheiro público.

Se algo novo está acontecendo no mundo, ocorre aqui ao nosso lado. Os povos do sul da América têm se levantado contra anos de exploração, que só conduziram à pobreza e à marginalização da nossa gente, apesar da grande mídia tentar distorcer a verdade dos aconte-cimentos, criando mitos de ditaduras.

Mas será que as supostas ditaduras apontadas pelos meios de comunicação são tão duras quanto as que maltrataram, ceifaram a vida de jovens e ampliaram a desigualdade social?

Se deixarmos de lado os preconceitos, veremos que são governos respaldados pela vontade popular, integrados por pessoas que representam suas origens históricas e que estão lutando por sua soberania e autodeterminação.

Isto incomoda muita gente, habituada à discriminação, à indiferença e ao medo. Esta fórmula conduz ao desamor, à ausência de compaixão e de dignidade humana.

Capítulo V - Liberdade, Paz e Justiça |

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Os recentes governos populares eleitos na América Latina têm a missão de manter acesa a chama da esperança e da transformação. A mudança não acontecerá da noite para o dia, pois, como todo processo, requer tempo. Porém é necessário que tenha o seu início agora, em respeito aos nossos antepassados e às gerações futuras. Todos nós que sofremos estas agruras temos o dever de não deixá-las se perpetuarem.

Não podemos mais aceitar tanta pobreza numa terra tão rica, porém onde a riqueza não é compartilhada pela maioria. Somente uma mudança social profunda e verdadeira poderá trazer a liberdade e fazer prevalecer a paz e a justiça, de fato e de direito.

É preciso cessar a expropriação de nossas matérias-primas, que teve início na coloni-zação e continua com a transferência, a preços risíveis, de bens da América Latina para outros continentes. Os frutos da terra devem ser revertidos em favor da população local, para que esta finalmente tenha acesso a uma sobrevivência digna. Senão, continuaremos todos a recla-mar da violência e da ausência de paz.

Neste ponto, é grande a importância do direito e da jurisprudência, que podem apontar um caminho novo e participativo.

Os manuais de filosofia e de sociologia jurídica, sem exceção, afirmam que o direito é mero instrumento de manutenção da ordem social. É verdade, sim. Ninguém em sã con-sciência poderia afirmar outra coisa.

Mas os acadêmicos e os profissionais do direito necessitam despertar a consciência coletiva para um diferente enfoque na interpretação da legislação, a fim de que a justiça possa reinar.

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A face negativa da execução da lei é representada pelo direito punitivo, que atinge dire-tamente os mais pobres.

Hoje, o atual governo, por meio de uma reforma tributária, almeja revogar a con-tribuição social, prevista na Constituição de 1988 para custear a seguridade social (saúde, assistência e previdência social), sob o argumento de reduzir a folha de pagamento das empre-sas, criando, assim, um novo imposto que, se aprovado, será prejudicial ao setor produtivo e aos trabalhadores, pois aumentará a carga tributária e restringirá direitos sociais.

Se a saúde já é precária, a assistência social não protege o necessitado e a previdência paga o mísero salário mínimo, como ficará nossa gente?

Porém, se o direito é instrumento de controle social, como dizem os filósofos e sociólo-gos, acredito que poderia contribuir com o processo de mudança social.

Para isto, a jurisprudência é fundamental. O papel dos advogados é importante ao leva-rem as pretensões e reclamações aos Tribunais, fazendo com que os juízes se abram para ouvir a voz do povo. Não dá para ficar recolhido em “Palácios da Justiça”. É necessário estar próx-imo e caminhar junto à população, a quem os magistrados, sem exceção, devem bem servir.

Muito mais coisas podem e devem ser modificadas na atuação dos profissionais do direito. Há quem pense que é pedir muito, mas acredito, desta forma, que é possível transformar o país num Brasil para os brasileiros, onde a liberdade, a paz e a justiça existam em plenitude.

Capítulo V - Liberdade, Paz e Justiça |

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EFETIVIDADE DE JUSTIÇA1

É comum ao cidadão o conhecimento de processos judiciais que duram mais de 10, 20 e até 30 anos. Esta grave situação é prejudicial para todos. As pessoas desistem de postular seus direitos, pois sabem que a justiça é muito lenta. Os advogados são prejudicados porque seus possíveis clientes desistem de contratá-los, tendo em vista a demora da prestação juris-dicional, aceitando muitas vezes um acordo por valor inferior, haja vista o tempo de resposta para a satisfação do seu direito.

Não resta dúvida de que a lentidão do Judiciário conduz à ausência de justiça. Essa ap-atia não deveria mais existir diante da Emenda Constitucional n.º 45/2004, uma vez que os processos deveriam ter “razoável duração” e “celeridade em sua tramitação” (art. 5.º, LXXVIII, da Constituição). Foi ordenado que “não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal” (art. 93, II, “e”).

O Código de Processo Civil prevê que o juiz proferirá despachos de expediente em 2

1 www.oglobo.globo.com/opiniao 13/01/2009 12h31

Capítulo 5

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dias e decisões e sentenças em 10 dias (artigos 189, 281 e 456). Na prática, isto não é obser-vado. Os juízes dizem que há acúmulo de trabalho e, assim, justificam o não cumprimento da lei e da Constituição. Mas há muitos magistrados que são professores. Será que estes cum-prem os prazos determinados na lei?

O advogado que não observa os prazos processuais e causa prejuízos aos seus clientes é passível de punição disciplinar e reparatória de dano. E os magistrados que não cumprem a lei, em qualquer instância, também deveriam ser punidos, não apenas respondendo por per-das e danos, conforme prevê o artigo 133 do Código de Processo Civil, mas com o afastamen-to do cargo, na medida em que é dever da própria instituição exigir “eficiência”, princípio que também deve ser observado pelo Judiciário (art. 37 da Constituição).

Com a decantada “Reforma do Judiciário”, esperava-se que a Justiça fosse funcionar de forma ininterrupta (art. 93, XII da Constituição), sem recessos natalinos que duram mais de duas semanas. Acreditava-se ainda que os juízes passariam a ter 30 dias de férias como os demais trabalhadores, ao invés de 60 dias, e que, pelo acúmulo de trabalho existente e a necessidade de se promover a celeridade para a conclusão dos processos, como determina a Constituição, os magistrados passariam a ter a consciência de se dedicar exclusivamente às suas atividades, deixando de lado a possibilidade de acumularem a carreira de magistério, que estão autorizados a exercer (art. 95, parágrafo único, I, da Constituição).

Capítulo V - Efetividade de Justiça |

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O magistério é carreira nobre, mas que exige dedicação do profissional. Além das ativ-idades de sala de aula, é necessário preparar planos de trabalho, participar de projetos de pesquisa e extensão, orientar os alunos, ler os seus trabalhos, corrigir as provas etc.

Quem não conhece um magistrado que seja professor? Por exemplo, o atual presiden-te do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, conforme curriculum exibido na página do Tribunal, é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade de Brasília desde junho de 1995.

Será que dá para desempenhar as duas carreiras com prontidão e dedicação, mesmo a Constituição autorizando a acumulação desses cargos? Confesso que tenho dúvidas, mas talvez seja possível para alguns muito bem preparados. Mas para isto, o magistrado deverá observar fielmente os prazos que a lei impõe para o exercício de suas funções.

Vale lembrar que a atividade jurisdicional é um serviço prestado pelo Poder Público que cobra altíssima taxa da população, devendo, portanto, corresponder à altura dos que a mantêm.

Então, como se falar em democracia, com uma Justiça que persiste em ser lenta? Sem efetividade da justiça, não pode haver liberdade e paz.

| Capítulo V - Efetividade de Justiça

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O PROJETO DE LEI 5.099/2009 E A EMPRESA DE ÚNICA PESSOA1

Tramita na Câmara dos Deputados, em caráter conclusivo, o projeto de lei 5.099/09, do deputado Jefferson Campos (PTB/SP), que pretende autorizar que pequenas empresas prestadoras de serviço e profissionais autônomos possam ter a residência de seus titulares como suas sedes.

O projeto de lei, a princípio inofensivo e que tem como justificava “ampliar as possibilidades de geração de emprego no Brasil”, apresenta apenas dois artigos, que transcrevo para não deixar dúvidas: “art. 1.º Ficam as pequenas empresas prestadoras de serviços e os profissionais autônomos autorizados a manter como sede de sua empresa sua própria residência. Art. 2.º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Como se vê, sob o argumento de ampliar a geração de emprego, pode ser dado um grande passo para colaborar, de forma sutil, com a reforma trabalhista, que possibilitará a diminuição dos encargos sobre a folha de pagamento e a exclusão de direitos sociais conquistados com muita luta pelos trabalhadores.

1 www.porfiriolivre.com 10/08/2009

Capítulo 5

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Uma vez aprovado o projeto de lei em questão, com certeza o que hoje é praticado para favorecer muitas empresas e trabalhadores que aceitam o jogo da emissão de notas fiscais em vez da assinatura da carteira de trabalho, poderá ser uma realidade para a grande maioria dos trabalhadores, legalizando assim uma esdrúxula situação de negócio entre empresas ao invés de uma relação de emprego, regida pela CLT.

Como ocorreu com o FGTS, que deveria ser facultativo, mas tornou-se “obrigatório” em quaisquer contratações, para eliminar a estabilidade no emprego para os trabalhadores da iniciativa privada, poderá ocorrer, doravante, que os trabalhadores somente venham a ser contratados se tiverem constituído uma “pequena empresa” prestadora de serviço.

Com isso, a carteira de trabalho e os direitos sociais, como férias, 13º salários, FGTS, previdência social etc., deixarão de ser realidade e os trabalhadores ficarão reduzidos à indesejável condição de “patrões de si mesmos”, sendo obrigados por força da legislação fiscal, a ter que emitir notas fiscais ao invés de receberem seus vencimentos mediante a comprovação por meio de contracheques.

Com efeito, não só os trabalhadores perderão, mas toda a sociedade, com a possibilidade de se ampliar a evasão fiscal. O Globo, de 02/08/09, estampou na primeira página: “Compra de nota fiscal esconde sonegação na área da cultura”. E na página 02: “A cultura da sonegação”.

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Esta situação não tem ocorrido por acaso, como alertou o jornalista Hélio Fernandes, em artigo publicado no dia 14/07/2009 (“apresentadores, atores, atrizes e diretores com salários milionários podem substituir carteira de trabalho por notas fiscais?”), porque “tudo é orquestrado, determinado e controlado”.

No mesmo sentido, o Projeto de Lei 4.605/09, de autoria do Deputado Marcos Montes (DEM/MG), que pretende incluir no Código Civil (artigo 985-A) a figura da “empresa individual de responsabilidade limitada”.

Justifica o deputado que o projeto “objetiva instituir legalmente a sociedade unipessoal”. Ora, é verdade que o papel pode admitir tudo, até mesma a ficção de uma sociedade de uma só pessoa.

Porém, o conceito de sociedade pressupõe “conjunto de pessoas ou agrupamento de seres” (Dicionário Aurélio).

Como se vê, a vontade de ampliar os lucros chega ao ponto até mesmo de se fugir da verdade e da noção lógica dos termos. Como pode existir uma sociedade de uma só pessoa? Só

Capítulo V - O Projeto de Lei 5.099/2009 e a Empresa de Única Pessoa |

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a ganância e a exploração podem justificar estas iniciativas legislativas, contrárias ao interesse dos trabalhadores.

Daí, nesses dias intranqüilos, quando ouvimos em todo o mundo gravíssimas acusações contra instituições que parecem desmoronar-se, como o Parlamento e o Judiciário, não dá para deixar de citar Jack London, pela atualidade de suas palavras: “Eu tinha começado a explorar meus semelhantes. Tinha uma equipe sob comando de um só homem. Como capitão, ficava com dois terços da grana e dava à tripulação um terço, embora eles trabalhassem tão duro quanto eu e arriscassem tanto quanto eu suas vidas e sua liberdade. (...) O capitalismo toma os bens de seus semelhantes a título de reembolso, ou traindo a confiança ou comprando senadores e juízes de tribunais superiores.” (escritor norte-americano, nascido em 1876 e falecido em 1916).

Portanto, as grandes personalidades (apresentadores, atores, atrizes, diretores etc.) deveriam refletir melhor sobre seus atos, pois não basta ser um apresentador ou diretor milionário, uma vez que jamais deixarão de ser trabalhadores, que empregam seus talentos a quem lhes paga.

Por essas razões, os projetos de lei em questão deverão ser rejeitados, na medida em que poderão ser prejudiciais aos trabalhadores e a sociedade.

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TERIA O STF COMPETÊNCIA ORIGINÁRIAPARA JULGAR MINISTRO DE ESTADO?1

O STF tem competência para julgar mandado de segurança contra atos do Presidente da República (art. 102, I, alínea “d”, da Constituição).

Todavia, essa previsão constitucional de competência não foi observada no julgamento do mandado de segurança n.º 27.875, impetrado pela República da Itália contra ato do Ministro da Justiça (e não do Presidente da República), no processo administrativo n.º 08000.011373/2008-83.

A Constituição, na hipótese, dispõe que a competência para processar e julgar os mandados de segurança contra atos de Ministro de Estado é do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, alínea “b”).

Além disso, o mandado de segurança é um instrumento para assegurar direitos e garantias dos CIDADÃOS, de forma individual ou coletiva (art. 5.º, caput e inciso LXIX e LXX), e não de Estados estrangeiros, que dispõem de outros instrumentos para questionar atos de governos de países soberanos, no âmbito internacional.

O Estado estrangeiro tem assegurado na Constituição o direito de requerer a extradição

1 www.tribunadaimprensa.com.br 11/09/2009

Capítulo 5

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de seu nacional, no STF (art. 102, I, alínea “g”), não sendo a República Federativa do Brasil obrigada a aceitar o pedido.

O STF informou, em seu sítio eletrônico, a seguinte decisão para o MS 28.875 e a Extradição 1.085: “O Tribunal, por maioria, julgou prejudicado o pedido de mandado de segurança, por reconhecer nos autos da extradição a ilegalidade do ato de concessão de status de refugiado concedido pelo Ministro de Estado da Justiça ao extraditando.”

Ou seja, o ato do Ministro da Justiça foi considerado ilegal pelo STF nos autos da extradição, e não no mandado de segurança impetrado pela República da Itália, que foi julgado prejudicado.

Porém, de forma surpreendente, o STF ainda não concluiu o julgamento do pedido de Extradição n.º 1.085, que foi suspenso por pedido de vista do Min. Marco Aurélio. Como pode, então, o ato de um Ministro de Estado ser declarado ilegal num processo de extradição ainda não concluído?

Ora, se a Constituição diz que cabe originariamente ao STJ julgar atos de Ministros de Estado, o Supremo suprimiu instância ao julgar o ato do Ministro da Justiça, não no mandado de segurança em referência, mas nos autos da extradição.

Desta forma, o Mandado de Segurança n.º 27.875 deveria ter sido encaminhado primeiro ao STJ, para processamento e julgamento da legalidade do ato do Ministro da Justiça, e somente depois é que poderia ser julgado pelo STF o pedido de Extradição, sob pena de nulidade processual, por se tratar de competência absoluta.

| Capítulo V - Teria o STF Competência Originária para Julgar Ministro de Estado?

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICAE O PROJETO DE LEI 4.298/081

O Deputado Federal Homero Pereira (PR/MT), em 12/11/2008, apresentou, no Plenário da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n.º 4.298, que tem por objeto “estabelecer normas para desconsideração da personalidade jurídica nos processos de execução civil, trabalhista e fiscal”.

O deputado, na sua justificativa, manifestou que “a falta de um regramento processual adequado tem permitido uma prática muitas vezes abusiva de magistrados, em total prejuízo do direito de defesa e do contraditório.”

O projeto de lei, com a devida vênia, na forma em que foi apresentado, representará um retrocesso ao dinamismo da atuação do Judiciário, sendo prejudicial a todos os credores, aí incluído os bancos, os trabalhadores e o Fisco, pois instituir a obrigatoriedade da desconsideração da personalidade jurídica ser “declarada em procedimento incidental sumário” e “depois de intimadas as pessoas a serem alcançadas pela medida, que terão o prazo de dez dias para responder” (artigo 3.º), apenas servirá para dar mais tempo aos sócios da empresa, aos diretores contratados e até mesmo a procuradores constituídos para gerenciá-la, ou seja, a todos que tenham participação direta na fraude causada aos credores.

1 www.migalhas.com.br 21/11/2008, edição nº 2.032.

Capítulo 5

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Isto porque, se a pessoa jurídica não pagou a dívida ou está dificultando e criando embaraços ao seu pagamento, não podem os seus dirigentes ficar impunes, escondidos por detrás da entidade que integram.

Com efeito, não se pode atribuir à magistratura a responsabilidade pelos abusos praticados pelos devedores que não honram suas dívidas, sendo estas muitas vezes constituídas por meio de sentenças passadas em julgado depois de anos de tramitação processual, como é comum na Justiça do Trabalho.

O contraditório, como reconhecido pelo próprio deputado na sua justificativa, é garantido pelos meios processuais próprios, impugnações e embargos à execução, como é assegurado a qualquer devedor, sendo que neste último caso, pela reforma processual instituída pela Lei n.º 11.382/06, sequer necessita o devedor apresentar garantia para se defender (art. 736 do CPC2 ).

Por que, então, em casos de fraudes lastreadas pelo não pagamento da dívida, deve ser dado um tratamento diferenciado a devedores que se escondem na personalidade jurídica?

A desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida com o intuito exclusivo de combater a fraude perpetrada pelos maus pagadores diante do abuso de direito e do uso indevido da empresa, inclusive com a prática usual da transferência de bens para outras sociedades empresariais ou pessoas físicas.

2 ”Art. 736 – O executado, independentemente de penhora, depósito o caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos”.

| Capítulo V - A Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Projeto de Lei 4.298/08

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O Estado contemporâneo tem como uma de suas marcas a defesa ardorosa da livre iniciativa e comércio, sendo grande a mobilização dos homens de negócio por um judiciário mais ágil, que possa protegê-los em tempo hábil dos danos causados por indivíduos que não cumprem em dia com as suas obrigações.

Pode-se dizer, sem qualquer dúvida, que a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelo Judiciário nacional foi uma vitória dos credores, em especial das casas bancárias e das empresas que emprestam crédito.

Nesse sentido, o Judiciário Fluminense, antes mesmo de entrar em vigor o atual Código Civil3, vinha desconsiderando a personalidade jurídica nos autos da execução, sem necessidade

3 ”... O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente reconhecido possível a penhora de bens de sócios, por dívida de sociedades limitadas de que fizeram parte, quando os bens da sociedade tenham desaparecido, ou quando tenham eles encerrado suas atividades sem liquidação regular ...” (RE nº. 93.028-SP, rel. Min. Décio Meirelles de Miranda, RTJ 101/749).

“Responde o sócio pela dívida da sociedade, que deixou de funcionar, não mais sendo localizada, sem que tam-bém sejam encontrados seus bens, não tendo havido dissolução regular.” (TFR, 1ª. Turma, AC 38.586-SP, rel. Min. Lafayette Guimarães)

“Admite-se a execução contra um sócio por dívida da sociedade, se esta não mais exerce atividade, sem que tenha sido distratada, e não se encontrem os bens de sua propriedade.” (RT 500/194)

“Se a sociedade cessou de fato suas atividades, embora sem regular dissolução, desocupando seu estabelecimen-to, de modo que não se encontrem bens seus para penhorar na execução fiscal, torna-se cabível a citação pessoal dos sócios gerentes, assim como a eventual penhora de seus bens particulares, ressalvando-se-lhes a possibilidade de embargas à execução.” (TJERJ, 5ª. CC, AI 8.447, rel. Des. Barbosa Moreira)

Capítulo V - A Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Projeto de Lei 4.298/08 |

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de prévio processo de conhecimento que reconhecesse tal direito4, até mesmo com o STJ adotando a sua aplicação diretamente nos autos da falência5.

Desta maneira, muitos credores que antes encontravam dificuldades para recuperar seus créditos, devido à ausência de patrimônio ou pela não localização das pessoas jurídicas devedoras, finalmente conseguiram recuperar aqueles valores.

Sem dúvida, o texto atual do art. 50 do Código Civil é amplo e possibilita o redirecionamento da cobrança nos casos em que ocorrer “abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial”, sem qualquer restrição à aplicação do instituto em referência, sendo extensível não apenas às sociedades empresárias, mas também às associações, hoje com grande atuação por meio das Organizações Não Governamentais (ONGs), que recebem, na sua maioria, recursos públicos, devendo seus dirigentes, que causarem danos a terceiros, suportar, pessoalmente, os ônus de seus atos indevidos.

A propósito, saliente-se que, para tornar o país plenamente desenvolvido, devem ser busscados mecanismos de combate às fraudes, especialmente as que se materializam pela utilização de trabalhadores e desempregados, usados como “laranjas” ou “testas de ferro”, pois este tipo de expediente dificulta ou impossibilita às instituições bancárias e entidades congêneres o recebimento dos créditos por elas fornecidos, podendo, neste meio, indevidamente, ser

4 AI nº. 2000.002.12426- 18ª CC, rel. Des. Roberto de Abreu; AI nº. 2000.002.10767- 3ª CC, rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte; AI nº. 1999.002.08878, 8ª. CC, rel. Des. Paulo Lara.

5 STJ REsp 211.619-SP, rel. Min. Eduardo Ribeiro e REsp 370.068-GO, rel. Min.Nancy Andrighi.

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inseridas tais pessoas como controladoras da empresa, escapando os verdadeiros fraudadores das garras da constrição patrimonial.

Como exemplo, decidiu o STJ no Recurso Especial n.º 370.068-GO, ao manifestar, na ementa do acórdão, que: “está correta a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima falida, quando utilizada por sócios controladores, diretores e ex-diretores para fraudar credores”6, isto é, não só o sócio controlador deve ser responsabilizado, mas todos os sócios que perpetraram a fraude, inclusive ex-executivos contratados para administrar a empresa.

Portanto, é inaceitável tentar retardar a constrição patrimonial, interrompendo o curso da execução, por meio de prévio “procedimento incidental sumário”, com o fim de comprovar os “atos abusivos ou fraudulentos”, sob o falso argumento de que deve ser assegurado o contraditório e ampla defesa, quando o processo de execução já garante tais direitos individuais.

6 Julgado em 16/12/2003, quando em vigor o atual Código Civil.

Capítulo V - A Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Projeto de Lei 4.298/08 |

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Capítulo 5

O art. 99 da Lei 9.610/981, ao manter a atual estrutura centralizadora do Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (ECAD), atenta contra o princípio federalista, que emana da Constituição Federal e dá diretriz a toda estrutura associativa no país.

A Federação é princípio fundamental, previsto no preâmbulo e no artigo 1.º da Constituição Federal, devendo prevalecer sobre qualquer outro2, estando toda a estrutura jurídica nacional apoiada na descentralização de poder, contraposta à centralização, prevista no art. 99 acima citado.

Isto se verifica, por exemplo, na organização sindical, tanto da classe patronal como

1 “Art. 99. As associações manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais e literomusicais e de fonogramas, inclusive por meio de radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade, e da exibição de obras audiovisuais.”

2 Segundo a hermenêutica do STF, manifestada no julgamento da medida cautelar da ADI n.º 2.054-4/DF: “os princípios têm um peso diferente nos casos concretos e o princípio de maior peso é o que prepondera”. No caso, o princípio da descentralização, que tem suas bases na federação, deve preponderar, no exame da questão, ao princípio da centralização de poder exercido pelo ECAD

O ECAD

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da classe trabalhadora, que se assenta, dentro da estrutura federativa do país, por meio de sindicatos, federações e confederações.

Em igual sentido os partidos políticos, que estão organizados nacionalmente (art. 17, I, da CRFB), mas com atuação descentralizada por Estados e Municípios da Federação.

Da mesma maneira, estão organizadas as autarquias corporativas, como a Ordem dos Advogados do Brasil, com uma estrutura nacional, firmada no Conselho Federal, e descentralização pelas 27 unidades de federação, por meio de suas Seções, que têm ampla autonomia administrativa e política.

Além disso, o modelo atual centralizador do ECAD, além de estar em desacordo com princípio fundamental da Constituição, atenta também contra a lógica material do fenômeno cultural, que se manifesta como acontecimento regional, local.

Com efeito, dadas as suas dimensões continentais, o Brasil apresenta uma rica e variada diversidade de culturas, que sintetizam as muitas etnias que formam o povo brasileiro.

Por essa razão, não existe no país uma, mas várias áreas culturais com características específicas por região.

Capítulo V - O ECAD |

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Com relação à música brasileira não poderia ser diferente, pois reflete a diversidade cultural do país. Alguns gêneros musicais populares mais conhecidos são: o samba, o choro, o baião, o frevo, o forró, o maracatu, o sertanejo, o brega e a lambada.

Estes gêneros musicais são próprios de determinadas regiões do Brasil: o samba e o choro são do tipo popular urbano do Sudeste. O baião, o frevo e o maracatu são típicos da região Nordeste. A lambada e o brega são comuns na região Norte. A música sertaneja é comum na região Centro-Oeste, parte de Minas Gerais e no interior do Estado de São Paulo. Sem contar, no Rio Grande do Sul, a tradicional música gaúcha dos pampas.

Nessa conjuntura, seja sob a ótica jurídica ou da lógica da manifestação cultural, é lídima a organização da cobrança e a arrecadação dos direitos autorais nas respectivas regiões, de forma descentralizada, havendo um escritório por estado do país, de modo a possibilitar ao artista local a fiscalização e o controle do aproveitamento econômico de suas obras, como lhe é garantido pelo art. 5.º, inciso XXVIII, alínea “b”, da CRFB.

Por oportuno, esclarece-se que, na ADIN. 2.054-DF, o STF limitou-se a analisar a constitucionalidade do art. 99 da Lei 9.610/98 quanto aos incisos XVII3 e XX4 do art. 5.º da CRFB de 1988.

3 “XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vetada a de caráter paramilitar;”

4 “XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;”

| Capítulo V - O ECAD

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O Supremo Tribunal Federal, naquele julgamento, entendeu somente que a lei não impõe a associação compulsória, pois a não-filiação ao ECAD das associações constituídas pelos autores e titulares dos direitos conexos apenas os priva de participar da gestão coletiva da arrecadação e distribuição de direitos autorais, sem prejuízo de que o próprio titular defenda judicial ou extrajudicialmente seu direito autoral.

Naquela ação, não foi suscitada pelo autor, o Partido Social Trabalhista, pelos amigos da ação nem pelos julgadores, a questão jurídica da centralização de poder pelo ECAD em contraposição ao princípio constitucional da descentralização, de cunho federativo, que norteia o direito constitucional nacional.

Portanto, a descentralização, oriunda do princípio federativo, deve prevalecer sobre qualquer forma centralizadora de poder, como é a forma de arrecadação e distribuição dos direitos autorais exercida pelo ECAD, nos termos do art. 99 da Lei 9.610/98.

Concluí-se, então, que é necessário descentralizar a arrecadação dos direitos autorais, atendendo-se aos pressupostos que balizam a Federação, que é, repita-se, princípio fundamental da República (art. 1.º c/c art. 5.º, parágrafo 2.º, da CRFB), sobrepondo-se à centralização de poder, como consagrado no art. 99 da Lei 9.610/98, própria de um Estado unitário, inexistente na ordem jurídica brasileira.

Capítulo V - O ECAD |

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Capítulo 5 A EXCOGITÁVEL EXECUÇÃO FISCAL ADMINISTRATIVAE SUAS INCONSTITUCIONALIDADES1

Por meio de anteprojeto de lei que dispõe sobre a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, a Procuradoria da Fazenda Nacional2 está excogitando (palavra estranha como a proposta apresentada) a possibilidade de criar a “execução fiscal de natureza administrativa”, como prevista no artigo 3.º do anteprojeto de lei.

Antes, cabe esclarecer que as disposições da referida execução fiscal seriam aplicadas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e suas autarquias e fundações, sendo facultativamente estendidas aos Municípios e suas autarquias e fundações (art. 1.º).

Este esquisito anteprojeto de lei foi a forma engendrada pela Fazenda Pública para, previamente, sem autorização judicial, penhorar e arrestar bens do executado (artigos 6.º, parágrafo 4º, inciso III, e 10, incisos I e III) e fazer, por conta própria, a arrematação de tais bens (art. 20).

1 Texto publicado na Revista de Direito Administrativo IOB n.º 20, p. 20 e seguintes.

2 Encaminhou o referido anteprojeto de lei à apreciação do Ministro de Estado da Fazenda, através do Ofício n.º 624/PGFN.PG, de 14 de março de 2007.

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Em primeiro plano, há que lembrar que a Fazenda Pública é uma entidade que tem direitos e deveres iguais aos de qualquer outra parte no processo, não tendo posição de hegemonia, uma vez que, segundo a ordem constitucional vigente, ainda vivemos em um “estado democrático de direito” (caput do art. 1.º), sendo todos “iguais perante a lei” (caput do art. 5.º).

Além disso, registre-se que o suposto interesse público defendido pela Fazenda não pode sobrepor-se aos princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5.º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (art. 5.º, LV), que igualam as partes, em qualquer processo.

Desta forma, o Poder Público não dispõe de base constitucional para fazer predominar seu interesse sobre o do executado, muito menos tem poderes para conduzir seus interesses sobre a propriedade dos indivíduos, sem a necessária autorização judicial, por meio de uma artificiosa execução fiscal de “natureza administrativa”.

Saliente-se que a Constituição do Brasil, baseada na livre iniciativa, protege a propriedade (artigos 5.º, caput e inciso XXII, e 170, inciso II), sendo certo que a imposição de gravame ao patrimônio do executado, como se pretende pelo anteprojeto de lei em análise, constitui violação ao direito individual de não ter seus bens molestados sem o devido processo legal (art. 5.º, LIV, da CRFB).

Isto porque os atos de constrição patrimonial, como o arresto e a penhora, criam

Capítulo V - A Excogitável Execução Fiscal Administrativa e suas Inconstitucionalidades |

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restrições à propriedade, além de deixá-la vinculada à pretensa dívida excutida.

Com efeito, o ato que cria ônus à propriedade não pode partir da vontade isolada do credor, que pretende garantir ou satisfazer o seu suposto crédito sem antes submeter sua pretensão à análise do Judiciário.

Vale ressaltar que, na República, a função jurisdicional cabe ao Poder Judiciário, que a exerce de forma independente e harmônica em relação aos demais poderes (art. 2.º da CRFB), sendo o único autorizado a dirimir lesão ou ameaça a direito e a solucionar as controvérsias existentes (art. 5.º, XXXV, da CRFB).

Logo, como os atos de cobrança, por meio do processo de execução, repercutem de forma sumária e imediata sobre o patrimônio do executado, é imprescindível que o Judiciário analise previamente a pretensão do credor, a fim de evitar abusos ou ilegalidades, devendo ficar sob sua responsabilidade a prática destes atos, de competência exclusiva da justiça.

O início do processo de execução cria para os indivíduos embaraços de ordem material e moral, passando os seus nomes a constar no rol de inadimplentes.

Daí a necessidade de o Judiciário intervir desde o início da execução, não podendo o credor, seja o Poder Público (como previsto no anteprojeto de lei) ou o particular ser detentor desta autorização.

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A proposta da Fazenda Nacional equivale a retroagir ao tempo em que o credor, por sua conta e ordem, fazia a cobrança por seus próprios meios. Imagine se todos os credores passassem a agir desta forma?

Portanto, o fato de o anteprojeto, em seu Capítulo III, prever a possibilidade de acesso à Justiça depois de efetivado o arresto ou a penhora, não o torna constitucional, pois, antes que o Poder Judiciário julgue os embargos à execução, uma série de atos de restrição sobre a propriedade terão sido praticados pela Fazenda Pública, podendo acarretar lesões a direitos e prejuízos irremediáveis ao executado.

Vale esclarecer, por oportuno, que os atos de constrição patrimonial não podem, em hipótese alguma, ser confundidos com os atos de natureza meramente administrativa, que são próprios do Poder Executivo.

Ademais, há que se distinguir o atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos dos de cobrança de valores, inscritos em dívida ativa.

O primeiro restringe-se ao cumprimento do ato administrativo em razão do poder de polícia conferido à Administração Pública, fazendo cessar, de imediato, sem a intervenção judicial, a ilegalidade praticada pelo administrado na autodefesa do interesse social.

Todavia, isto não significa que o campo de atuação da Administração Pública seja

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livre. Ela deve observar as formalidades essenciais para o seu ato, tais como apresentação de notificação e lavratura de auto circunstanciado que comprove a ilegalidade e possibilite ao administrado a ampla defesa de seus direitos, em regular e devido processo legal.

O segundo, por se revestir de caráter de cobrança, é ato que exige a intervenção prévia do Judiciário, como se dá na cobrança de multa administrativa ou crédito tributário.

Contra as tentativas da Administração Pública de se auto-satisfazer de seus supostos créditos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, acolheu o voto do Min. Maurício Corrêa, que expôs o seguinte:

“É verdade que tanto a doutrina quanto jurisprudência têm entendido que certos atos são próprios do poder administrativo, na execução dos quais é irrecusável a auto-executoriedade, como os decorrentes do poder de policia.

Há, porém, determinados atos ´que lhe [ à Administração Pública] são impróprios e, por isso mesmo, dependentes da intervenção de outro poder, como ocorre com a cobrança contenciosa de uma multa, que em hipótese alguma poderia ficar a cargo exclusivo dos órgãos administrativos´ (Hely Lopes Meireles, Direito Administrativo Brasileiro, 23.ª ed., Ed. Malheiros, SP, p. 1.421).

(...)

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A apuração, porém, do fato culposo ou doloso, nas hipóteses que fogem às atividades específicas da Administração, deve ocorrer no âmbito da jurisdição civil, pois a Constituição reservou exclusivamente ao Poder Judiciário, a função jurisdicional (CF, artigo 5.º, XXXV). É o que ocorre, por exemplo, com a cobrança de dívidas fiscais e multas.”3

A Fazenda, por maior que seja o interesse público que represente, não tem o condão de, ao constituir um título executivo, por meio da inscrição na dívida ativa, invadir, por conta própria, o âmbito particular do indivíduo, levando constrição ao seu patrimônio, forçando-o, desta forma, a pagar uma dívida que pode ser questionável sob vários aspectos, inclusive em razão de sua interpretação perante o sistema jurídico vigente, como se deu, v.g., na questão referente ao caso da ampliação da base de cálculo do PIS e da COFINS, feita indevidamente pelo parágrafo 1.º do art. 3.º da Lei 9.718/98, que foi dirimida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal a favor dos contribuintes4.

A propósito, é oportuna a transcrição de parte da ementa do acórdão da lavra do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que bem retrata a hipótese em análise quantos aos abusos a que poderão ficar submetidos os cidadãos, diante da tentativa da Fazenda Pública de querer levar adiante a sua inusitada “execução administrativa”:

3 STF-Pleno, MS n. 24.182-9-DF, rel. originário Maurício Corrêa, rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes em razão do art. 38, IV, “b”, do RISTF, julgado 12/02/2004, DJ, de 03/09/2004.

4 RE nº. 346.084-PR, rel. para acórdão Min. Marco Aurélio, publicado no DJU, de 01/09/2006.

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“Não são absolutos os poderes que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem constitucionalmente, ao contribuintes e aos cidadãos em geral. (...) O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do ´privilège du pereálable´, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo poder público em sede de fiscalização tributária. (...) A circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do legítimo desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular. Os procedimentos dos agentes da administração tributária que contrariem os postulados consagrados na Constituição da República revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem de modo estrito, os limites-inultrapassáveis que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros.”5

Portanto, a Fazenda Pública não está acima de nenhum cidadão do país, não sendo

5 STF, Segunda Turma, HC 82.788/RJ, julgado, à unanimidade, em 12/04/2005, sem grifos no original.

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razoável a criação de um processo de execução “administrativo”, sem o crivo inicial do Poder Judiciário para realizar a constrição patrimonial, sob o risível argumento de que a atual “sistemática, pela alta dose de formalidade de que se reveste o processo judicial, apresenta-se como um sistema altamente moroso, caro e de baixa eficiência.”6

Ora, se existe ineficiência por parte do Fisco na arrecadação, não será criando uma esdrúxula cobrança que se resolverá este grave problema, pois a Administração Pública somente estará transferindo a morosidade que acusa existir no Judiciário para seus órgãos, que têm revelado igualmente não possuir adequada estrutura para representar os interesses do povo, estancando a grave evasão fiscal existente no país.

Vale relembrar, por fim, que os Poderes da República são independentes e harmônicos entre si (art. 2.º da CRFB), tendo o Executivo o papel de executar as leis e o Judiciário de proporcionar a sua aplicação, conforme a clássica lição de Montesquieu, no seu Do Espírito das Leis, sendo este equilíbrio a base do período histórico contemporâneo. Fora disso, é excogitação indevida, que não encontra amparo na Constituição do Brasil.

Pelo exposto, o anteprojeto de lei em questão deverá ser rejeitado, por estar em desacordo com a Constituição.

6 Como exposto pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, no item 21 de seu ofício n. 624/PGN.PG, de 14/03/2007.

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A INDEVIDA UTILIZAÇÃO DO DEPÓSITO JUDICIAL PELO FISCO1

O contribuinte, a fim de questionar a exigibilidade do crédito tributário, poderá efe-tivar o depósito integral do valor exigido pela Fazenda Pública, tanto na via administrativa quanto na judicial, impedindo, assim, a incidência de encargos moratórios, bem como o início da execução fiscal, regulada pela Lei 6.830/80.

Todavia, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário apenas terá lugar mediante o depósito do montante integral a ele correspondente,2 ou seja: a quantia total exigida no lançamento, acrescida de multa e encargos anteriores à sua constituição.3

Na esfera administrativa, o depósito integral tem como objetivo apenas evitar a in-cidência dos encargos moratórios decorrentes do crédito tributário constituído, possibilitan-do a sua discussão naquela via, garantida pelo direito de petição (art. 5.º, XXXIV, alínea “a”, da CRFB), sem o pagamento de qualquer taxa.

1 Texto publicado no Repertório de Jurisprudência IOB, vol. III, n.º 23/2007, p. 921, 1/23.779, como jurisprudência comentada.

2 STJ – RESP 64974-9/SP.

3 “O depósito integral do crédito ilide a aplicação de juros pela demora de pagar, bem como das penalidades dirigidas a sancionar o inadimplemento da obrigação tributária” (STJ – REsp 853.552-PR).

Capítulo 5

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Isto porque o contribuinte, exercendo seu direito de petição, poderá ter o crédito tributário suspenso mediante a apresentação de impugnação (reclamação) ou recurso, não ilidindo, contudo, a incidência de correção monetária e juros sobre a dívida fiscal.

Sendo o contribuinte vencedor na instância administrativa, o depósito poderá ser le-vantado. De forma contrária, o depósito será convertido em renda em favor do fisco, ex-tinguindo o crédito tributário mediante o pagamento (art. 156, VI, do CTN), ressalvada a possibilidade de propositura de ação judicial com o objetivo de se questionar a decisão administrativa que manteve o lançamento, uma vez “que só surge o direito ao crédito tributário após o lançamento em definitivo, isto é, o formado por decisão administrativa transitada em jul-gado e não impugnada pela via judicial”.4

A Lei de Execução Fiscal, em seu artigo 38,5 estabelece que, para o contribuinte propor ação anulatória do lançamento tributário, deverá efetivar o depósito integral da dívida consti-tuída, sob pena de a Fazenda iniciar a cobrança judicial do suposto débito tributário.

Não há controvérsia de que, sem o depósito integral do montante inscrito em dívida ativa, a Fazenda Pública pode executá-la. A ausência do depósito não significa impedimento à

4 STJ – AgRg no REsp 652.370-RS.

5 “Art. 38. A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.”

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propositura de qualquer medida judicial por parte do contribuinte para discutir a exação fiscal.6

Com efeito, nenhuma lei pode obrigar o contribuinte a fazer o depósito integral do débito fiscal, como condição para ingressar em juízo, como indevidamente condicionou o caput do art. 19 da Lei 8.870,7 de 15/04/94, com relação aos créditos tributários do INSS.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal, na ADI n. 1.074-DF julgou, à unanimidade, inconstitucional o aludido artigo por constituir “barreira de acesso ao Poder Judiciário”, contrariando, assim, o artigo 5.º, incisos XXXV e LV, da CRFB.8

Por outro lado, é desnecessário o contribuinte ingressar com medida cautelar prepa-ratória para efetivação do referido depósito, uma vez que este poderá ser efetivado nos autos da própria ação anulatória do crédito tributário ou do mandado de segurança, podendo ser

6 Nesse sentido, conferir a súmula 247 do antigo Tribunal Federal de Recursos, bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, manifestada nos Recursos Extraordinários 105.522 e 103.400.

7 “Art. 19 – As ações judiciais, inclusive cautelares, que tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS serão, obrigatoriamente, precedidas do depósito preparatório do valor do mesmo, monetariamente corrigido até a data de efetivação, acrescido dos juros, multa de mora e demais encargos” (grifos nossos).

8 “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 19, CAPUT, DA LEI FEDERAL N. 8.870/94. DISCUSSÃO JUDICIAL DE DÉBITO PARA COM O INSS. DEPÓSITO PRÉVIO DO VALOR MONETARIAMENTE CORRIGIDO E ACRESCIDO DE MULTA E JUROS. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 5.º, INCISOS XXXV E LV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O artigo 19 da Lei n. 8.870/94 impõe condição à propositura das ações cujo objeto seja a discussão de créditos tributários. Consubstancia barreira ao acesso ao Poder Judiciário. 2. Ação Direta de Inconstitucionali-dade julgada procedente” (ADI n. 1074, rel. Min. Eros Grau, j. 28/03/2007 [grifos nossos]).

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deferida, respectivamente, antecipação dos efeitos da tutela (art. 273, parágrafo 7.º do CPC) ou medida liminar (art. 7.º, II, da Lei 1.533/51) com idêntico objetivo, tratando-se de di-reito subjetivo do contribuinte.9

Esclarece-se que a hipótese não se refere à propositura de ação de consignação em pa-gamento, porque o que o contribuinte pretende, na verdade, é discutir o crédito tributário constituído pelo lançamento, e não pagá-lo, como se faz por meio daquela ação especial (art. 890 e seguintes do CPC e art. 164 do CTN). Ou seja, o depósito é efetuado como garantia do juízo para suspender a exigibilidade do crédito tributário.10

Portanto, efetivado o depósito integral, o Fisco não poderá dar início à execução fiscal nem exigir os encargos posteriores.11

9 “O depósito, em dinheiro, do montante integral do crédito tributário controvertido, a fim de suspender a exigibilidade do tributo, constitui direito subjetivo do contribuinte, prescindindo de autorização judicial e podendo ser efetuado nos autos da ação principal (declaratória ou anulatória) ou via processo cautelar, nada obstante o paradoxo defluente da ausência de interesse processual no que for pertinente ao pleito acessório. (Precedentes desta Corte: REsp 697370/RS, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, publicado no DJ de 04.08.2006; REsp 283222/RS, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, publicado no DJ de 06.03.2006; REsp 419855/SP, Relator Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, publicado no DJ de 12.05.2003; e REsp 324012/RS, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, publicado no DJ de 05.11.2001)” (STJ – REsp 466.362-MG [grifos nossos]).

10 STJ – REsp 639.093-MG.

11 “O depósito integral do crédito ilide a aplicação dos juros pela demora de pagar, bem como das penalidades dirigidas a sancionar o inadimplemento da obrigação tributária na data fixada em lei” (STJ – REsp 853.552-PR).

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Uma vez que o contribuinte seja vencedor na controvérsia, ele poderá levantar a quantia depositada; sendo vencido, a Fazenda já terá satisfeito o crédito, convertendo-o em renda em seu favor (art. 156, VI, do CTN).12

Por sua vez, independentemente do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 1.933 (rel. Nelson Jobim), e 2.214 (rel. Maurício Corrêa), persiste, ao nosso sentir, grave violação à Constituição Federal, que necessita ser revista, em relação ao depósito do montante integral no que diz respeito à Fazenda Pública federal, estadual ou municipal poder manejar a quantia acautelada pelo contribuinte em juízo, conforme prevêem as Leis 9.703/98, 10.819/03 e 11.429/06.

O Supremo Tribunal Federal partiu do pressuposto de “que os depósitos judiciais não são atos submetidos à atividade jurisdicional, tendo natureza administrativa, da mesma forma que os precatórios”. Entendeu também que “não existe a obrigação, o dever, a imposição de realizar o depósito judicial ou extrajudicial com o fito de suspender a exigibilidade do crédito tributário”. Isto tudo para afastar o questionamento sobre a violação do devido processo legal.

Além disso, a Suprema Corte entendeu que o direito de propriedade sobre o depósito em dinheiro efetivado pelo contribuinte permanece incólume, “uma vez que o bem do depositante

12 “Em reiterados precedentes, as Turmas de Direito Público deste Superior Tribunal de Justiça têm decidido que o deferimento de levantamento de depósito judicial, bem como a sua conversão em renda em favor da União, pressupõem o trânsito em julgado da sentença da ação principal. Precedentes: REsp nº 169.365/SP, Rel.Min. Garcia Vieira, DJ de 13/10/98; REsp nº 179.294/SP, Rel. Min. José Delgado, DJ de 07/02/00 e REsp nº 577.092/SE, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 30/08/04” (STJ – REsp 862.711-RJ [grifos nossos]).

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não lhe é retirado” [sic], afastando, assim, o caráter confiscatório da mencionada legislação.

As leis federais 9.703/98, 10.819/03 e 11.429/06 constituem flagrante inconstitucio-nalidade; atentam contra o devido processo legal (art. 5.º, LV, da CRFB) e invertem a lógica processual da caução (art. 827 e 828 do CPC), na medida que a quantia acautelada pelo contribuinte não é de titularidade do fisco, mas sim do suposto devedor, que o deu em ga-rantia, confiando sua guarda à administração do Poder Judiciário, a quem compete dirimir os conflitos entre as partes (art. 5.º, XXXV, da CRFB).

Em conseqüência disso, os depósitos judiciais que caucionam o montante integral do crédito tributário questionado são indispensáveis como forma de se prevenir um dano maior ao contribuinte, qual seja, a incidência de encargos moratórios. Daí a sua natureza cautelar específica (art. 826 e seguintes, do CPC), que tem o fim de afastar um risco de dano iminente e irreparável contra uma suposta exigência fiscal, muitas vezes ilicitamente constituída.

Nessas condições, não há como se negar o caráter processual do depósito e a neces-sidade de intervenção direta do Judiciário para analisar a respectiva pretensão, não tendo, assim, caráter meramente administrativo, como entendeu o Supremo Tribunal Federal, até porque o juiz pode negar o depósito, mesmo sendo direito subjetivo do contribuinte, se en-tender descabida a pretensão cautelar, autorizando a Fazenda a iniciar a execução fiscal.

O STF, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ao permitir que a Fazenda Pública possa utilizar o dinheiro depositado em juízo pelo contribuinte, afastou equivocadamente o princípio do devido processo legal (art. 5.º, LIV, da CRFB), que con-stitui garantia para evitar a subversão da ordem processual antes da sua conclusão, a fim de

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assegurar a igualdade de direitos entre as partes litigantes.

O fato de a legislação criticada dispor a respeito da devolução da quantia depositada e utilizada pela Fazenda Pública não dá segurança jurídica ao contribuinte de que venha efe-tivamente a receber o montante acautelado, na hipótese de ter sucesso em sua pretensão, ao contrário do manifestado pela Excelsa Corte.

A apropriação antecipada efetivada pela Fazenda, com autorização das referidas leis, constitui, igualmente, violação ao direito de propriedade (art. 5.º, XXII, da CRFB), pois enquanto não for definida a questão jurídica debatida, os valores são de titularidade do seu depositante.

Assim, não é crível dizer que o dinheiro depositado não é retirado do contribuinte, como afirmou o STF, pois se o montante pode ser utilizado pela Fazenda, é porque não está mais à disposição do depositante, que terá que se submeter à boa vontade do Fisco para sua recuperação, caso este não queira, espontaneamente, dar cumprimento à lei, cujo maior vi-olador é o próprio Poder Público, como se verifica pelo número de ações judiciais em curso nos Tribunais do país.

Com efeito, que certeza tem o Supremo Tribunal Federal de que o dinheiro depositado será integralmente devolvido ao contribuinte? Só para lembrar, em passado recente, impor-tantes entidades federativas declararam sua completa insolvência, como ocorreu com a Pre-feitura da Cidade do Rio de Janeiro, em finais da década de 1980.

A propósito, a Fazenda, sem ser titular do valor depositado, utiliza indevidamente uma

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quantia que não é sua, e não dá qualquer garantia ao contribuinte de resgatar o depósito feito para suspender a exigibilidade do crédito tributário, conduzindo-o, provavelmente, ao absurdo de ter que ingressar no precatório, caso seja vencedor na disputa acerca do crédito tributário questionado.

Ora, é risível acreditar que a Fazenda Pública tenha condições de ressarcir o que não lhe pertence, pois sequer paga os precatórios decorrentes de suas dívidas judiciais transitadas em julgado!

Neste ponto, existem diversos pedidos de intervenção federal contra estados-membros que não cumprem o precatório, que são negados pelo Supremo Tribunal Federal, sob a ale-gação de que a inexistência de recursos financeiros para fazer frente às obrigações não legitima a medida.13

Daí a contradição entre o resultado do julgamento das referidas Ações Direta de Incon-stitucionalidade e a realidade com que se depara o contribuinte quando intenta a recuperação de seus créditos diante do poder público, restando evidenciado o caráter confiscatório da uti-lização prévia do montante depositado para questionar a exação fiscal, formulado com base no artigo 152, II, do CTN.

Na verdade, para ter o crédito tributário suspenso, o contribuinte é obrigado a depositar integralmente o montante exigido, porém a Fazenda Pública, sem ter a certeza de que os valores

13 IF-AgR 506/SP e IF-AgR 2117/DF

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cobrados são efetivamente devidos, pode considerá-los como receita própria, manipulando-os como bem entender, antes de transitada em julgado a sentença da respectiva ação.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal, manifestado nas ADIs, é ainda contra-ditório ao se constatar que o levantamento do depósito judicial, seja em favor do contribu-inte, ou a sua conversão em renda para o Fisco, pressupõe o trânsito em julgado da sentença proferida na ação em que se questiona o crédito tributário que deu origem ao depósito.

Esse é o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete em última análise (art. 103, III, da CRFB), dar a interpretação ao artigo 151, II, do CTN.14

Portanto, fica demonstrado o choque entre o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, de forma casuística, e o sistema jurídico que regulamenta o depósito recurs-al e sua finalidade.

14 “Os depósitos só podem ser levantados pela parte após o trânsito em julgado da sentença a ela favorável e a União só pode converter os depósitos em renda após transitar em julgado a sentença que lhe favorecer. Recurso provido” (STJ- REsp. 169.365-SP, grifos nossos).

“Somente após o trânsito em julgado da sentença da ação principal poderá ser feito o levantamento ou a con-versão em renda da União do depósito efetuado para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário” (STJ- REsp 179.294-SP [grifos nossos]).Igualmente: REsp 862.711-RJ e 577.092-SE.

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21 ANOS DA CONSTITUIÇÃO1

Hoje, 5 de outubro de 2009, estamos comemorando 21 anos de promulgação da Constituição de 1988. Pelo texto aprovado, não há dúvidas de que se trata de um documento progressista, particularmente por resgatar e estabelecer direitos fundamentais, num momento de transição da história política do País.

Na Assembléia Nacional Constituinte, iniciada em 01/02/1987, todos os grupos representativos da sociedade tiveram ampla participação: empresários, trabalhadores, republicanos, monarquistas, presidencialistas, parlamentaristas etc.

Não se pode falar na Assembléia Nacional Constituinte sem citar o nome do seu relator geral, J. Bernardo Cabral que, em sua obra “O Poder Constituinte”2, revela a tentativa de desestabilizar e desacreditar o poder conferido aos constituintes para elaborar a nova carta política do País.

1 www.tribunadaimprensa.com.br 02/10/2009

2 Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, Coordenação de Publicações, Brasília, 1988.

Capítulo 5

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Considero que o livro de Bernardo Cabral deveria ser estudado com profundidade nas universidades, em todos os cursos relacionados às ciências sociais, a exemplo também da obra “Quem faz as leis no Brasil?”3, de Osny Duarte Pereira, por explicarem, de forma objetiva e profunda, como se desenvolve o processo político, que conduz a ordem jurídica que nos governa.

Por fim, aproveito a oportunidade, para prestar homenagem a todos os que participaram direta ou indiretamente nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, que culminou na atual Constituição, a que mais tempo vigorou em nosso país num regime de tranqüilidade institucional, apesar de muitas de suas conquistas ainda não terem sido implementadas por falta de regulamentação, e outras que, a todo custo, pretendem ver revogadas, como os direitos e garantias individuais e os direitos sociais.

3 Editora Civilização Brasileira, Cadernos do Povo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1963.

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“Abrindo portas” é uma coletânea de artigos sobre temas de interesse geral da sociedade, que evocam de maneira especial os ideais de cidadania e democracia.

Neles o autor nos fala do exercício do poder, abarca os direitos sociais e a privatização e nos explica, em uma linguagem direta e objetiva, a discussão acerca dos royalties do petróleo e do pré-sal, entre outras matérias.

O mais importante é que Jorge Folena nos apresenta uma visão diferenciada sobre assuntos aparentemente esgotados pela grande mídia, mas sua abordagem original nos permite uma reflexão e, talvez, uma revisão de nossos conceitos e preconceitos.

Trata-se de uma obra de conteúdo, que nos permite compreender temas polêmicos da atualidade.