-95856364545as-Estrelas-Mágicas-tarot

249
  Título: Angélica e a estrela mágica Autor: Anne e Serge Golon Título original: Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989 Publicação original: Gênero: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida

description

um guia para taro e astrologia

Transcript of -95856364545as-Estrelas-Mágicas-tarot

  • Ttulo: Anglica e a estrela mgica

    Autor: Anne e Serge Golon

    Ttulo original:

    Dados da Edio: Editora Nova Cultural 1989

    Publicao original:

    Gnero: Romance Histrico

    Digitalizao e correo: Nina

    Estado da Obra: Corrigida

  • O jogo foi um dos costumes mais arraigados que os europeus trouxeram

    para as terras do Novo Mundo. No Canad, durante os invernos rigorosos que

    os mantinham ilnados em suas cidades, a diverso nos sales ajudava a

    esquecer os perigos, a passar o tempo e a afastar a solido e o tdio das longas

    noites geladas.

    A paixo do jogo entre os colonos franceses, em especial o jogo de cartas,

    foi de tal intensidade que as autoridades chegaram a proibir a certa altura os

    jogos de azar de qualquer natureza: "sobretudo a basseta, o fara, o trinta-e-

    um, a roleta, o par ou perno, o quinze, e muitos outros", como ficou

    registrado nas atas oficiais da poca.

    Mas alguns colonos levaram tambm outros tipos de baralhos com outras

    finalidades. Foi num desses baralhos "diferentes", de 78 cartas e figuras

    simblicas, usado tanto para jogar como para ler a sorte, que Anglica foi

    buscar a chave de seu inquietante destino. Ainda que depois se recusasse a

    acreditar no que as feiticeiras videntes de Salem lhe -prometiam, nas

    misteriosas cartas do Taro...

    "A Mulher, a Beleza, o Amor!", suspira o Cavaleiro de Malta. "Voc

    iluminada pelos deuses!"

    No alto da falsia de onde se avistava o apanhado de casinhas e fortificaes

    de Gouldsboro diante do mar aberto, Anglica sentou-se com as feiticeiras de

    Salem para a leitura das cartas do Taro. Sobre uma lpide de granito saliente,

    uma a uma, a vidente disps as laminas encantadas que tirara de uma grande

    bolsa de veludo: a Carroa, o Louco, a Herona, o Arlequim, a Estrela-de-

    Davi... Ali estavam representadas todas as foras do Universo.

    Debruada sobre seu destino, Anglica divagava, e uma leve vertigem nasceu

    dessa contemplao. Finalmente, para onde a levaria aquela vida errante?

    Alcanaria a vitria e o sucesso?

    "Sua estrela bela", comentou a jovem maga. "Mas voc falar com um

    homem morto."

    nicas a perceber o hermetismo de suas profecias encantadas, as trs

    mulheres se inclinaram sobre a estrela mgica. Uma onda se quebrou beira

    da falsia e o vento espalhou uma garoa salgada em seus cabelos.

  • Ao longe, tudo se harmonizava nos contornos da Baa Francesa. As velas

    brancas dos navios e os barcos de pesca entre as ilhotas passavam devagar

    sobre o espelho de gua. Como num sonho...

    Anglica e a estrela mgica

    Anne e Serge Golon

    Tendo deixado a filhinha Honorina aos cuidados da Madre Madalena de

    Bourgeoys, no Convento de Ville-Marie de Montreal, Anglica retornara para

    junto do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que a esperava a bordo da nau-

    capitnia de sua frota, o navio Arc-en-Ciel, ancorado ao largo do povoado de

    Tadoussac, no esturio do rio Saguenay, fronteira da Acdia com o Canad.

    Os iroqueses estavam pacificados, o Grande Chefe Utak frente, depois de

    longas confabulaes e inmeros cachimbos da paz trocados.

    Os dois filhos maiores do casal, Florimond e Cantor de Peyrac, permaneciam

    na corte de Versalhes, onde defendiam com louvor os interesses da famlia

    junto ao Rei-Sol, Lus XIV.

    Uma ameaa, porm, pairava sobre o futuro de felicidade sonhado por

    Anglica e o amado esposo: seus dois maiores adversrios, o Padre Sebastio

    d'Orgeval e a Duquesa Ambrosina de Maudribourg, mortos ou vivos (pois,

    em se tratando de criaturas to diablicas no se podia afirmar nada com

    segurana), do meio das trevas continuavam a lhes opor uma resistncia

    encarniada.

    OS ESCRPULOS, AS DUVIDAS E OS TORMENTOS DO

    CAVALEIRO

    CAPITULO I

    Uma personagem lendria

  • Ele sabia que ela estava pensando em Honorina. E que apenas seu brao viril

    nos ombros dela, apertando-a fortemente contra ele, podia trazer algum alvio

    a seu desgosto. Calados, os dois andavam solenemente, ao longo do primeiro

    convs, vagamente embalados pelo movimento dolente do navio ancorado. As

    nvoas de vero, tpidas mas to densas quanto as do inverno, isolavam-nos

    em seu passeio, atenuando os rudos vindos da margem.

    Joffrey de Peyrac dizia-se que o humor de Anglica poderia parecer

    surpreendente a muita gente.

    Isso lhe agradava.

    Ela era assim.

    Um rei a esperava. Em seu palcio de Versalhes, um rei pensava nela.

    Em meio s honras e prpura de uma multido' palaciana, a preocupao

    primeira, oculta mas lancinante, daquele que era o mais poderoso monarca do

    universo ainda era por fora de uma pacincia qual estava resolvido a no renunciar e de uma generosidade que no media sacrifcios conseguir que Anglica um dia se dignasse, deixando os sombrios e frios antpodas da

    Amrica, reaparecer em sua corte.

    Mesmo ali, do outro lado do Saguenay, prximo aos confins boreais de uma

    natureza selvagem, um chefe iroqus, maquilado com suas pinturas brbaras,

    com a cimeira formada por seus cabelos orgulhosamente erguida, Utakewata,

    o adversrio mais encarniado da Nova Frana, apresentara-se diante de

    Joffrey de Peyrac e preenchera a maior parte do tempo destinado s parla-

    mentaes de guerra a falar-lhe dela, a quem ele chamava Kawa, a estrela

    fixa, invocando o testemunho de suas tropas de que aquela mulher cuidara

    dele e o curara de seus ferimentos em Katarunk, depois de t-lo salvado do

    escalpo de Piksarett, o abenaki, seu inimigo mortal.

    Mais importante que qualquer tratado de paz com a Governador Frontenac,

    parecia ter sido, envolta pela fumaa das fogueiras e dos cachimbos passados

    de boca em boca, a exposio de uma narrativa pica, composta j de

    mltiplos episdios e na qual Anglica, essa graciosa e encantadora mulher

    entristecida, que naquele momento caminhava a seu lado, se tornava uma

    perso-nagern lendria.

    Entre estes dois exemplos extremos o rei da Frana, na longnqua Europa, e o chefe ndio, que jurara exterminar todos os franceses do Canad

    , Joffrey de Peyrac no ignorava que havia no mundo uma multido de homens os mais variados, prncipes ou pobres, loucos ou sbios, resignados

    ou desesperados, mas que, por terem cruzado seu caminho, conservavam-lhe

    a lembrana como uma luz acesa em sua obscura esperana de felicidade. Por

  • terem ficado fascinados por sua beleza, comovidos por sua voz, alegrados por

    sua presena, jamais o curso de sua maj drasta existncia seria o mesmo.

    Ora, todos esses admiradores incondicionais teriam ficado muito pesarosos e

    surpresos se descobrissem o domnio exercido sobre aquele corao,

    considerado inacessvel, insensvel, descuidado, por uma menininha de sete

    anos, de cabelos cor de cobre sob um gorrinho verde, que ela havia deixado

    longe dali, brincando de roda.

    Joffrey de Peyrac partilhava sua nostalgia e no a subestimava. Um junto ao

    outro naquela noite, combinando os passos, deixavam-se debruar sobre

    tormentos de corao para os quais sua vida venturosa, perpetuamente

    entrecortada por responsabilidades futuras e por perigos, quase no lhes

    deixava tempo.

    Sentiam-se bem, juntos, dizia-se ele. E lembrava-se do desagrado que lhe

    causara aquela separao, a campanha do Saguenay, em que o tempo todo se

    sentira irritado com sua ausncia. Surpreso, perguntava-se como pudera,

    poucos anos antes, quando de sua chegada ao Novo Mundo, resolver-se a

    deix-la um inver-no todo em Gouldsboro, enquanto ele se enfiava, com seus

    homens, no interior das terras. Isso lhe parecia uma aberrao naquele

    momento... Perto dela, a vida se iluminava.

    Cingiu-a com mais fora.

    Subiram alguns degraus e chegaram ao segundo convs. Continuaram a

    subir e alcanaram o balco em forma de meia-lua na popa do Arc-en-Ciel.

    Uma tonalidade rsea que tingia a nvoa anunciava o poente, mas as brumas

    continuavam opacas, ocultando at as outras embarcaes de sua frota.

    Esta permanecia havia trs dias diante de Tadoussac, espera dos ltimos

    contingentes de soldados e de marujos que regressavam do lago Saint-Jean,

    escoltando os- mistassins e os nipissings, que no ousavam aventurar-se a

    descer o rio para comerciar sem sua proteo.

    E no entanto os iroqueses tinham se evaporado. Deixaram para Joffrey um

    "colar de contas de porcelana", um wampum em que estava escrito: "No

    faremos guerra aos franceses enquanto eles permanecerem fiis ao homem

    branco de Wapassu, Tecon deroga, meu amigo".

    Assim que obteve essa promessa, o conde retomara rapidamente a descida

    para o Saint-Laurent, impaciente por reencontrar Anglica, que chegava de

    Montreal, onde deixara Honorina com as madres seculares da Congregao de

    Nossa Senhora. Fizera mal talvez, quando a encontrara, ao interrog-la muito

  • a respeito da menina, mas era-lhe muito afeioado e comeava a sentir sua

    falta.

    Anglica cara numa profunda melancolia. Montreal era muito distante,

    disse ela, e estava arrependida por ter cedido s instncias de Honorina, que

    queria ser interna "para aprender a ler e a cantar".

    Por mais devotadas que fossem as religiosas da Congregao de Nossa

    Senhora, era um meio muito diferente daquele que a menina conhecera at

    ento, e ela sofreria.

    Mas que ideia foi essa a dela de querer sair de Wapassu?! exclamou subitamente Anglica, saindo de seu mutismo e erguendo para Joffrey seus

    olhos aflitos. To pequena, por que essa ideia de querer nos deixar? A mim, sua me! A voc, o pai que ela finalmente encontrou do outro lado do

    mundo! Ser que no mais lhe bastvamos? Ser que no ramos tudo para

    ela?

    Ele reteve um sorriso.

    Ali, na popa de um navio, nos limbos de uma neblina dourada pela

    aproximao da noite, egoisticamente, absurdamente feliz por t-la toda para

    si, sentiu-se tocado por sua ingenuidade feminina, essa candura que a

    maternidade confere s mulheres e que parece marc-las com um sinal de

    eterna juventude, como se, antes de serem investidas com essa glria

    misteriosa, no houvessem jamais vivido.

    Meu amor disse ele, aps refletir , por acaso voc esqueceu a lgica da infncia? A lgica de sua infncia?... No me contou que, com dez ou doze

    anos, quis partir para as Amricas e que empreendeu essa viagem com um

    bando de pequenos vagabundos, sem se preocupar nem um pouco, nem voc

    nem eles, com o desgosto e a perturbao que com certeza teriam seus pais,

    abandonados por vocs?

    E verdade.

    O encontro com seu irmo mais velho, Josselino, reavivara-lhe as

    lembranas. Ela se reconhecia de bom grado na Anglica' menina de

    Monteloup. As razes profundas no tinham mudado. Mas, ao lanar um olhar

    adulto sobre seu comportamento quela poca, compreendia melhor as

    preocupaes que havia causado a sua famlia.

    Creio disse ela que, impelida pela sede de aventura e liberdade, eu no tinha nenhuma conscincia do que representava aquela viagem, nem que isso

    implicava uma separao dos meus.

    E voc acredita que a pequena Honorina tenha alguma noo desta palavra que

    nos parte o corao: separao? Ela quer seguir seu caminho, tal como, num

    passeio, somos atrados pelas flores de um caminho desconhecido e decidimos ir

  • v-las, sem considerar que toda a nossa vida vai com isso ser modificada...

    Penso em mim quando cheguei adolescncia. Eu devia tudo a minha me: a

    salvao, a sade e principalmente a capacidade de andar, ainda que mancando.

    Minha primeira deciso, quando me vi apto a andar, foi aproveitar minha nova

    agilidade para m lanar aos mares em busca de aventura. Eu fui at a China.

    Foi l que conheci o Padre de Maubeuge. Meu priplo durou anos, trs pelo

    menos na primeira viagem, e no acho que eu tenha me preocupado muito,

    durante esse tempo, em mandar notcias minhas ao palcio de Toulouse. Teria

    ficado muito surpreso se me dissessem que, ao agir dessa forma com minha

    me, para a qual eu era tudo, eu lhe causara algum sofrimento ou inquietao.

    No s jamais duvidara de sua paixo por mim, de tal forma o vnculo que me

    prendia a ela me parecia indiscutvel, mas, triunfando sobre perigos e mordendo

    os melhores frutos da terra, parecia-me que ela deveria estar ciente de minhas

    vitrias e minhas felicidades. E agora, quando me debruo sobre aquele perodo

    louco e candente de minha juventude atravs do mundo, dou-me conta de que,

    na verdade, nunca me passou pela cabea que eu a deixara.

    O claro rseo se apagara. Nuvens passaram, tocando-os com um sopro mais

    frio. :

    A confidncia que seu marido acabara de fazer-lhe, ele, que to raramente

    falava de si mesmo, comovera Anglica, mas, por uma associao de ideias,

    cuja gnese escaparia fatalmente a Joffrey de Peyrac, suscitara-lhe tambm

    uma inquietao. Pois ela nunca pudera evitar a certeza de que Sabina de

    Castel-Morgeat, pela qual ele tivera certa inclinao durante sua estada em

    Quebec, se parecia com a me de Joffrey. A mulher do tenente-geral da Nova

    Frana, uma bela meridional de temperamento difcil mas de pupilas de fogo,

    busto opulento e desejvel, usava a cantante lngua d'oc do sul da Frana,

    linguagem hermtica dos gasces. Anglica ficara morrendo de cime, mais

    pela reminiscncia materna que Sabina podia despertar nele do que pelo que

    eventualmente teria havido entre eles. Ainda que houvesse sido ofensivo.

    Admirava-se por ter esquecido com tanta facilidade... como prometera

    prpria Sabina. Mas no gostava que alguma coisa fizesse Joffrey lembrar-se.

    E provavelmente tinha razo, pois, em seguida evocao que acabara de

    fazer de sua me, como se seus pensamentos tivessem acompanhado os de

    Anglica, ele pronunciou estas palavras execrveis:

    mesmo, voc conseguiu saudar os Castel-Morgeat quando passou por Quebec?

    Anglica sobressaltou-se e respondeu, meio rspida:

    Como poderia? Voc sabe muito bem que eles foram para a Frana, h dois anos j.

    Espantado e conciliador, ele concordou.

  • Tinha me esquecido. Teve notcias deles? Ele estava totalmente indiferente.

    No... Se nem dos presentes tive notcias, como poderia t-las dos ausentes? Quebec estava vazia. Todo mundo estava nos campos, e no tive

    nenhum prazer nessa viagem. De todo modo, voc no estava l... e era

    horrvel.

    Ele a envolveu mais uma vez num abrao apaziguador. Seu nervosismo

    desde sua volta no lhe passara despercebido. Havia nele alguma coisa alm

    de Honorina. Ela escondia uma decepo... ou uma inquietao. Sentira-o

    desde a primeira noite. Sabia que ela falaria quando achasse oportuno. Mais

    tarde.

    Ela deixou cair a cabea em seu ombro.

    Sem voc, nada mais tinha graa. Lembrei-me de nossa chegada a Quebec. No

    compreendo por que, naquela poca, eu tinha tanto medo de ser aprisionada

    pelas exigncias de meu ttulo de esposa do Conde de Peyrac. Tornei a pensar

    em tudo isso quanj do fui olhar de longe a pequena casa de Ville-d'Avray. Por

    que eu tinha ento tanta necessidade de me isolar, de me sentir livre?

    Suponho que estava cansada de ser a rainha de um bando de aventureiros que,

    no fundo das florestas ou nas margens selvagens, exigia sua ateno dia e noite,

    gente qual voc se dedicou de corpo e alma, um inverno e um vero inteiros,

    cuidando dos doentes, curando os feridos, reconfortando os aflitos, suportando

    seus humores... Isso eu compreendi, e aplaudi, em sua revolta e em sua

    sabedoria. Ao chegar a Quebec, voc podia conhecer uma existncia niais

    agradvel. Estava tambm diante de uma outra tarefa importante. Havia tomado

    uma deciso que se mostrava necessria, e na qual eu no teria talvez pensado,

    inconsciente de tudo o que lhe fora pedido, de desafio, a obrigao de conquist-

    los, que essa volta ao seio de seus compatriotas representava para voc. Para

    essa obra, voc tinha necessidade de se recolher, de reunir suas foras. Enfim,

    voc talvez estivesse um pouco, espero, cansada de um esposo que, por cime,

    fizera pesar sobre voc o jugo de sua violncia.

    No, eu queria, ao contrrio, que voc me pertencesse ainda mais, que nos

    reencontrssemos a ss e no sempre num palco de guerra ou de debates

    polticos, como estava acontecendo.

    Voc estava coberta de razo, e foi melhor assim. Muitos imponderveis ainda

    nos separavam, e eu me mostrara por demais insensvel a seu direito liberdade,

    meu belo pssaro selvagem. E voc, em sua sagacidade, adivinhava que nem

    voc nem eu ramos pessoas que se deixariam impressionar por compromissos

    aos olhos de uma sociedade mundana que era preciso seduzir e que ia disputar

    nossos favores; no confiando em meu amor, para pr prova minha fidelidade

    talvez, voc me devolvia tambm minha liberdade.

    E voc fez uso dessa liberdade?

    No mais que voc, meu anjo! replicou ele, com uma breve risada.

  • Mas ao mesmo tempo que lhe devolvia esse dardo, que lhe arremessava essa

    flecha-de-parto, destinada a faz-la entender que ele no deixara de ouvir

    certos rumores acerca de seu interldio com Bardagne, ele se inclinava para

    ela e pousava os lbios em seu pescoo, na altura dos ombros.

    O hlito de Joffrey, o poder de sua boca terna, vida e mgica, varriam os

    rancores que, havia muito, se tornavam insensivelmente sem objetivo entre

    eles. Depois de tantos anos de felicidade, a hora da verdade no significava

    mais nada. Ela no sabia resistir-lhe. Tudo se abolia e caa por terra. O

    milagre do desejo, que nunca se apagava entre eles, esse dom dos deuses que

    lhes fora concedido e que tantas vezes os salvara da ruptura, lembrava-lhes

    mais uma vez que, apesar das tempestades que, como para todos os demais,

    podiam assalt-los e abalar-lhes a f, um nico sentimento permanecia: no

    podiam mais sobreviver um sem o outro. Ele era tudo para ela. Ela, para ele,

    era o fim de seu horizonte, o objetivo irrestrito de suas ambies.

    Assim, encerrados na obscuridade do rio, da noite e das brumas, unidos

    como uma s pessoa e perdidos no encanto desses beijos, cada um dos quais,

    mais secreto e devorador do que o anterior, exprimia mil coisas no

    formuladas, inexprimveis, como confidncias ou gritos, protestos de amor ou

    confisses desvairadas, de um modo mais delicioso e verdadeiro que a menor

    palavra pronunciada, eles deixavam esta terra e abandonavam as mesquinhas

    querelas, os tristes combates do orgulho e da vaidade ferida, que fazem mais

    vencidos que vencedores, Causam mais feridas incurveis que benefcios.

    Ali onde se encontravam no havia mais explicaes a dar, perdes a

    pronunciar.

    Ao p do navio, um rudo de remos batendo na gua e em seguida se

    erguendo gotejantes veio arranc-los de seu deleite.

    Enquanto o halo de uma lanterna se aproximava, abrindo a obscuridade,

    viram embaixo uma chalupa deslizando com os seis remos levantados como

    fantasmas na neblina e que se aproximava e depois desaparecia para abordar

    o Arc-en-Ciel.

    Parece-me que vi o burel de um monge e as passamanarias de um uniforme.

    Talvez seja uma mensagem do Sr. de Frontenac.

    Oh! Senhor, por que no embarcamos antes? gemeu ela. Oxal ele no venha novamente pedir-nos socorro. Agora que j fiz meu sacrifcio por

    Honorina, estou com pressa de encontrar nossos conhecidos e nosso

    maravilhoso domnio de Wapassu.

    Aguaram os ouvidos e perceberam, por trs da neblina, que a noite que

    descia tornava azul-ardsia, opaca e estagnante, vozes e rudos de cordas e de

    uma escada sendo manobradas. Os clares surgiam e se apagavam logo como

    se tivessem dificuldade em aflorar, como se tudo quisesse recair

  • imediatamente no torpor de um fim de dia de vero com tristezas de

    novembro, como se, ao abrigo nos limbos cmplices de Tadoussac, se recu-

    sasse a se animar e a se ligar novamente a um mundo cheio de agitao e

    sobretudo de inimigos administrativos.

    Nos navios ou na margem, todos tiveram a mesma reao:

    O que ele estar nos enviando l de cima, de Quebec?! Mais complicaes?!

    Finalmente aurolas de claridade iam se firmando, e vislumbraram-se no

    portal silhuetas confusas que transpunham a balaustrada e se equilibravam

    no primeiro convs

    Bruscamente, Joffrey tomou Anglica novamente nos braos, estreitou-a

    com todas as suas foras e beijou-a nos lbios, fazendo-a quase perder o

    flego. Depois largou-a e afastou-a com um riso silencioso.

    Ele se vingava dos importunos que vinham mais uma vez submeter-lhe suas

    preocupaes e disputas. Ou estaria lhe instilando algum vitico?

    Joffrey retomou imediatamente sua atitude ao mesmo tempo despreocupada

    e distante de mestre do navio. Mas Anglica, reprimindo com dificuldade um

    acesso de hilaridade, levou mais tempo para reassumir a compostura. Ela

    afastava da fronte uma mecha inquieta, que persistia em escapar e se

    encrespar sob o perolado mido da bruma. Depois, tossiu fracamente para

    disfarar seu constrangimento e finalmente decidiu-se a olhar para os recm-

    chegados.

    CAPTULO II

    Um discurso inflamado

    luz das lanternas que os marujos carregavam, o Conde de Lomnie-

    Chambord estava diante deles.

    No primeiro momento Anglica viu apenas a ele. Em Montreal, tentara

    encontr-lo, mas soubera por Margarida Bourgeoys que ele fora ferido na

    viagem de Frontenac aos iroqueses. Mas, tendo procurado por ele em vo no

  • Hospital Joana Mance e nos sulpicianos, acabara por supor que o cavaleiro

    evitava encontr-la.

    Por esse motivo sentiu-se agradavelmente surpresa por tornar a encontr-lo

    entre os visitantes e adiantou-se para ele sorrindo. Depois, cumprimentou o

    Sr. d'Avrensson, o rnajor de Quebec, que trazia uma mensagem do Sr. de

    Frontenac, o qual, segundo ele dizia, estava prestes a voltar a Quebec. O Sr.

    Topin, acompanhado de seus dois filhos, conduzira os dois oficiais em sua

    grande chalupa de uma s vela, desde a capital.

    O religioso que os acompanhava era um recoleto que voltara para a misso

    de Restigouche, no golfo de Saint-Laurent.

    O Conde de Peyrac convidou-os a descer sala de jogos para tomar alguns

    refrescos antes de cearem em sua companhia.

    Anglica estendera a mo ao Conde de Lomnie-Chambord a fim de tomar-

    lhe o brao para que ele a conduzisse at o salo de jogos.

    Mas, como ele permanecesse hirto e plantado como um pedao de pau, seu

    gesto permaneceu inacabado. Sua primeira impresso penosa, quando o

    divisara de longe, confirmou-se. Seus passos no tinham mais a firmeza aliada

    leveza prpria dos guerreiros de estilo indgena que esse pas formava. Seu

    andar pareceu-lhe vacilante e mesmo pesado a ponto de hesitar em reconhec-

    lo nessa silhueta emagrecida, arqueada. Em suma, ele envelhecera. "Seu

    ferimento, provavelmente..."

    Ela parou igualmente e ficou junto a ele, deixando os outros se afastarem.

    Fale-me de seu ferimento disse ela.

    Ele estremeceu e levantou a cabea. Seu rosto, plido e marcado, que ela

    podia ver apesar da penumbra que voltara ao balco quando as luzes se

    apagaram, confirmou seus alarmes, mas, vendo que ela ia insistir em pedir-lhe

    notcias de sua sade, ele a interrompeu com um gesto imperativo.

    Sei que voc me procurou quando esteve em Ville-Marie disse num tom abrupto, que ela jamais o vira empregar. Eu lhe agradeo, Anglica, sua cortesia, mas no teria podido v-la naquela oportunidade e falar-lhe com

    sangue-frio. Todavia, mais tarde, soube que no podia deixar que se afastasse

    e que fosse embora da Nova Frana sem lhe dizer todas as palavras que me

    pesavam no corao. preciso que sejam ditas de uma vez por todas. um

    dever, uma dvida sagrada. Por isso, sem estar ainda curado, embarquei para

    descer o rio antes que sua frota transpusesse os limites da provncia do

    Canad.

    Ele dava a impresso de pronunciar um discurso repetido palavra por

    palavra, dias e noites, e que ele sabia de cor.

  • Enfrentei uma crise terrvel, mas agora tudo me parece claro e vou falar. Sei, ademais, Anglica, que voc de fato a mulher anunciada que devia pr-

    nos todos a perder. Reavivando algumas lembranas, pude desmontar seu

    mtodo hbil, de uma engenhosidade perturbadora. Voc fez do fato de ser

    amoral uma virtude. E, j que no tem nem noo do que seja isso, julgam-na

    isenta de pecado. Voc como Eva: inconsciente. Sem remorsos, pois no

    teve a inteno. Como segue apenas a seus dogmas, voc se absolve de

    transgredir aqueles que no estejam nas leis. Se no a aprova, desculpa a

    heresia e se mostra indulgente com o vcio, por esprito de justia, voc diz,

    caridade e alguns pretextos mais. E todos, todos, todos ns camos na

    armadilha. Somos impotentes diante de voc, como diante de crianas que

    pem fogo na casa. Ao mesmo tempo que as amaldioamos, no podemos

    querer-lhes" mal por isso: elas no sabem o que fazem!...

    "Deve ter ficado maluco!", reconheceu Anglica para si mesma, pasma, aps

    tentar inutilmente deter o fluxo de sua diatribe.

    Mais um vento de loucura que se levantava!

    Ele continuava, com uma voz monocrdia:

    Dir-se-ia que, to bela, to vivaz, voc nasceu para exaltar a felicidade, para nos

    devolver o paraso terrestre, e e.is que somos atirados a uma praia rida, tendo

    perdido o caminho da Salvao. Tarde demais para compreender

    queele, que voc, reunindo o encanto de sua inteligncia ao de sua graa,

    levando ambos uma existncia contrria nossa, insistem em quebrar as

    imagens que regem nossas sociedades e nos dita nossos deveres.

    Ora, voc quer se calar? ela conseguiu finalmente intim-lo com clera.

    Enquanto ele atacava somente a ela, no se deixou comover. No era a

    primeira vez que um apaixonado frustrado a injuriava e a acusava de todos os

    pecados bblicos. Mas no suportaria que ele atacasse Joffrey.

    Ele no levou em considerao sua injuno e continuou, com uma

    veemncia que se alimentara de agravos longamente abafados:

    Por sua vida, todos os dois ridicularizam nossos sacrifcios! Escarnecem de

    nossas renncias.

    Cale-se!... Que bicho o mordeu, senhor? Se fez a descida do rio para vir me

    dizer essas patacoadas, poderia economizar suas fadigas. Nem meu esposo nem

    eu mesma merecemos que nos trate assim. Est sendo injusto, Sr. de Lomnie,

    inutilmente ferino, e no perdoaria tais palavras nem tais pensamentos vindos de

    um amigo to querido e que eu julgava to certo, se no pressentisse que alguma

    coisa aconteceu que deve t-lo transtornado desta forma.

    Num sbito gesto de ternura, ela colocou dois dedos sobre sua face.

  • Fale, Cludio murmurou. O que est acontecendo, meu pobre amigo? Que foi que houve?

    Ele estremeceu.

    O que houve foi que... ele morreu!

    Cuspiu essas palavras num estertor, como o sangue de uma chaga interna.

    Ele morreu repetiu, com desespero. Morreu mrtir dos iroqueses... Eles torturaram seu corpo!... Comeram seu corao! O Sebastio, meu

    amigo!... Eles comeram seu corao! E eu, eu o tra!

    E, subitamente, ele explodiu em soluos terrveis, soluos de um homem

    extremamente infeliz e que se privou das lgrimas durante muito tempo.

    Anglica pressentia essa exploso.

    Os acontecimentos tinham tomado o rumo que ela receava. A notcia da

    morte do Padre d'Orgeval, perpetrada um ano antes nos confins do rio

    Hudson, s recentemente chegara oficialmente de Paris Nova Frana. A

    colnia estava sob o impacto da notcia, e Lomnie fora atingido.

    Ela se aproximou e abraou-o compassivamente. Ele ento voltou-se para

    ela e soluou, com a fronte apoiada em seu ombro. Ela o abraou fortemente

    sem dizer nada, esperando que ele se acalmasse.

    Sentia que ele se acalmava. E que fora um gesto de compaixo, de bondade

    e de ternura o que lhe faltara para suportar o anncio da morte de seu amigo.

    Ele se rendia.

    Pouco depois, tornou a erguer a cabea, confuso.

    Perdoe-me.

    No foi nada. Voc no aguentava mais disse ela. Perdoe sobretudo minhas palavras. Minhas acusaes contra vocs parecem-me

    subitamente fteis.

    E so de fato.

    ...E minhas suspeitas, insensatas.

    Com efeito.

    Sinto-me melhor. No sei o que foi que me deu. Voc uma amiga, uma amiga

    de verdade. Isso eu sei. Sinto-o. Sempre senti isso. Uma amiga encantadora. E

    nada me deixa mais acabrunhado do que julgar descobrir subitamente o avesso

    das aparncias e ouvir uma voz que denomina de traio a amizade que lhe

    devotei.

    Ele tapava os olhos e parecia aturdido como se tivesse recebido uns socos.

    Como no julg-la temvel? continuou ele, retomando finalmente o tom levemente humorado que era de praxe anteriormente entre eles. Vim para c, carregado de certezas e de rigor, dando razo a Sebastio pela desconfiana que

  • ele lhe manifestou, decidido firmemente a fustig-la com mil palavras que

    resolveriam para sempre, pela ruptura, a ambiguidade de nossa amizade, da

    simpatia que censuro a mim mesmo, tanto a que sinto por voc como a que o

    Conde de Peyrac me inspira. E yejo-me chorando em seus braos como uma

    criana.

    No se envergonhe de seu abandono, cavaleiro. Sem querer pregar num domnio

    que lhe mais familiar que a mim, eu gostaria de lembrar-lhe que o Evangelho

    nos mostra Cristo buscando junto aos amigos um conforto para seus conflitos

    interiores.

    Mas no junto a -uma mulher protestou Lomnie, que parecia um adolescente abatido, vencido por seus conflitos.

    ' Claro que sim, parece-me disse ela gentilmente. As mulheres tambm estavam l, no caminho do sofrimento. No apenas a Me, mas

    tambm as amigas, as amantes, a prostituta, Maria Madalena. Como voc v,

    estou em boa companhia... E, j que estamos falando de mulheres, posso

    perguntar-lhe se recebeu notcias de sua me e de suas irms? Espero que

    nenhum luto tenha vindo juntar-se a esse!...

    Lomnie respondeu que sua me e suas irms estavam bem de sade. No

    tivera tempo de ler com ateno suas longas missivas, pois, ao mesmo tempo,

    por esse correio dos navios da primavera, chegara-lhe a carta do Padre de

    Marville, falando-lhe dos ltimos momentos de seu amigo de juventude, e ele

    no se refizera ainda do choque.

    Ps a mo em seu gibo, como se o envelope que guardava junto ao peito

    lhe queimasse.

    Luciano de Marville repetiu-me as ltimas e terrveis palavras do moribundo... Ai de mim, contra voc, Anglica. "Ela

    a causa de minha morte." E desde ento isso me persegue. Talvez voc no

    soubesse dessas condenaes.

    Eu as conhecia disse ela.

    Anglica explicou-lhe que, encontrando-se em Salem, para onde o chefe

    dos mohawks enviara o Padre de Marville, estivera entre os primeiros a serem

    avisados. Apontando para ela, o jesuta repetira o grito acusador:

    " ela! ela! por causa dela que eu morro!"

    Prudentemente, Anglica evitou observar o quanto dejnprbi-do e falso havia

    em tal acusao. Quando se comeavam a discutir as justificativas da

    hostilidade do Padre d'Orgeval para com eles, e principalmente para com ela,

    os argumentos eram a favor e contra os dois lados. Ela sentiu que o cavaleiro

    ainda no estava em condies de reconsiderar os fatos sob uma luz menos fe-

    roz, e calou-se.

  • Depois de alguns instantes de silncio, Cludio de Lomnie revelou com

    uma voz cansada que o Padre de Marville enviara-lhe igualmente cartas e

    papis encontrados com o missionrio, e seu brevirio. J em Paris outras

    relquias do mrtir foram mandadas para a Igreja de Saint-Roch, pela qual o

    Padre d'Orgeval tinha devoo. Ainda no se possua a capela de viagem, mas

    sabia-se que ela fora salva pelos catecmenos iroqueses, que a haviam es-

    condido numa aldeia margem do Ontrio. Ela seria mandada ulteriormente a

    Quebec. E o crucifixo do Padre d'Orgeval? Essa cruz que ele usava ao pescoo e que

    diziam ser incrustada com um rubi?

    Os brbaros a guardaram. Depois, acreditando que, atravs daquele olho

    vermelho, Hatskon-Ontsi, como o chamavam, continuava a olh-los, enterraram

    o objeto.

    Ela o viu estremecer como um doente febril.

    Anglica apanhou a capa, que ele deixava com indiferena deslizar pelos

    ombros, e envolveu-o com gestos de me com o filho negligente.

    Voc est transido de frio. E eu tambm. Venha, mais tarde continuaremos nossa conversa, se fizer mesmo questo. Agora, porm, vamos

    pedir que nos sirvam uma boa xcara de caf turco. Voc, que do

    Mediterrneo, no pode desdenhar esse nctar. Talvez seja, como eu, sujeito

    s febres que se contraem nas viagens por aqueles lados. Isso lhe far bem.

    Quase carregando-o, ela o conduziu.

    Subindo ao encontro deles, a silhueta de Joffrey surgiu, destacando-se em

    sombra negra contra as luzes de grandes lanternas.

    Lomnie deteve-se, como que novamente assustado.

    Ele disse, numa voz cava. Ele, sempre to seguro de seu comando, to triunfante, to diferente de todos ns! Ele e voc!... Interrogo-me com angstia:

    vocs dois no teriam vindo para acabar conosco, com Sebastio e comigo? E o

    que por vezes me pergunto. No teriam vindo para vencer-nos?

    Que tipo de vitria? perguntou ela. E o que tambm me pergunto! Chega de discursos, cavaleiro. Vamos beber nosso caf, e pare de se atormentar.

    CAPITULO III

    Reflexes apaziguadoras

    Apesar das razes que apresentara a si mesma para ser indulgente com o

    Conde de Lomnie-Chambord, havia ainda assim duas ou trs reflexes e

  • admoestaes que Anglica tinha de fazer-lhe, pois seria prestar-lhe um favor

    coloc-lo diante de seus ilo-gismos e no deix-lo divagar demais.

    Pela manh, avistando-o de longe, quando ele saa da pequena capela de

    Tadoussac, cujo sino gelado anunciara a missa e soara o primeiro ngelus,

    fez-se conduzir praia.

    Sob o dia ensolarado, ela notou melhor a sbita ao do tempo em sua

    fisionomia. Os belos cabelos castanhos no haviam escanecido, mas seu

    brilho como que se estiolara. Ele pareceu-lhe mais tocante nessa espcie de

    lassido, com a magra silhueta envolta numa capa cinzenta, achatada no

    ombro por uma cruz bordada em tecido branco, emblema da Ordem de Malta.

    Ele foi a seu encontro com aquele sorriso de acolhida cheio de encanto que

    ela lhe conhecia to bem. Inclinou-se e beijou-lhe a mo, agradecendo-lhe sua

    bondade para com ele, o que provava que se lembrava confusamente da cena

    da vspera, mas que no guardara dela uma ideia suficientemente precisa para

    sentir-se constrangido, o que faria com que apresentasse suas desculpas. Mas

    ela julgou que no devia fingir-lhe esquecimento.

    No posso deixar de dizer-lhe, senhor cavaleiro, que o que mais me choca nos discursos que me dirigiu ontem noite e o esquecimento que

    parece demonstrar de certos testemunhos disse Anglica. A primeira vez que fomos a Quebec, suspeitavam que eu fosse a mulher

    diablica anunciada por uma viso da Madre Madalena, do Convento das

    Ursulinas de Quebec. Ora, dessa suspeita fui inocentada.. No sou aquela

    perigosa criatura que devia surgir para a desgraa da Nova Frana em geral e

    da Acdia em particular.

    Isso mais do que evidente.

    A Madre Madalena afirmou-o, e voc foi testemunha de sua declarao

    inequvoca.

    De fato. Fui um dos primeiros a me regozijar, com sua reabilitao, de que

    jamais duvidei.

    Aparentemente, ele parecia ter esquecido uma parte de suas desagradveis

    palavras da noite anterior. mais. Ela teria jurado que, no que se referia s

    acusaes que dirigira a ela, no se lembrava de nada. Desconcertada, sua

    vindita caiu por terra e ela no insistiu.

    Fale-me de seu ferimento, meu caro amigo. Ele foi pior, parece-me, do que me foi dado saber, no?

    Com um gesto, ele deu de ombros pergunta.

    Isso no nada! Uma flecha perdida. Mas tive de voltar para Lachine e Ville-

    Marie. Lamentei no ter podido acompanhar o Sr. de Frontenac a Cataracu.

    Pois, encontrando-me nas proximidades do pequeno burgo de Quint, margem

  • do lago Ontrio, teria podido recolher a capela de viagem desse soldado de

    Deus, Sebastio d'Orgeval, morto por sua f. Em vez disso, s, intil, imobili-

    zado na ilha de Montreal, entreguei-me a pensamentos sombrios.

    Que o confundiram. Disso eu creio que voc tem conscincia e que a razo, a

    verdadeira razo, da perseguio qual se entregou, em nosso encalo, at aqui,

    apesar de seu precrio estado de sade. E no a de vir me dizer coisas penosas.

    Refugiar-se junto queles que lhe so afeioados e que o compreendem no sig-

    nifica trair um amigo desaparecido. Cludio, somos mais prximos de voc do

    que muitas pessoas que o conhecem h mais tempo. Lembra-se de nosso

    primeiro encontro, em Katarunk. Da simpatia que experimentamos os trs uns

    pelos outros naquele dia. Apesar de voc ter vindo com seus aliados selvagens

    para nos massacrar e incendiar nossos estabelecimentos.

    Katarunk!... Oh, foi l que tudo comeou!

    Ele deu alguns passos, agitado. Contou como ouvira falar deles pela

    primeira vez e as razes da campanha de Katarunk. Encontrava-se em Quebec

    e recebera uma convocao urgente do Padre d'Orgeval, que se achava ento

    na misso acadiana de Nor-ridgewock, no sul de Kennebec. O jesuta pedia a

    seu amigo, cavaleiro de Malta, e por esse motivo um oficial de alto posto, que

    tomasse imediatamente a direo de uma expedio para deter a invaso de

    um perigoso contingente de aventureiros ingleses, dizia ele, hereges com toda

    a certeza, que se instalava nas regies semidesertas da imensa Acdia e que

    logo estaria nas fronteiras da provncia do Canad. Era preciso aproveitar a

    ausncia do pirata que os comandava para desferir um golpe decisivo,

    apoderando-se de seu mais importante posto no Kennebec, Katarunk. Sebas-

    tio d'Orgeval dirigia-se a seu amigo, o Conde de Lomnie-Chambord, porque

    o Baro de Saint-Castine, na foz do Penobs-cot, no Atlntico, havia se furtado

    a isso, pretextando a distncia.

    Ele lhe indicava senhores canadenses, oficiais de confiana, que deviam ser

    convocados com ele: Ponf-Briand, o Baro de Mau-dreuil, o Sr. de

    L'Aubignire e, entre os ndios batizados, Piksa-rett, o grande narrangasett, e

    suas tropas. Lomnie organizara rapidamente essa campanha, sem informar

    nada a Frontenac. E, desde ento, estava meio brigado com o governador.

    Ele chegara primeiro a Katarunk e se apoderara do lugar.

    Lomnie sacudiu a cabea como se quisesse expulsar uma reminiscncia

    insuportvel.

    ...Ele queria que, sem preliminares, de chofre, eu os abatesse, eu os apagasse.

    Suas diretivas, eu diria quase suas ordens, eram to instantes e inapelaveis que

    fiquei perturbado. Eu desejava pelo menos parlamentar com o Sr. de Peyrac e

    julg-lo antes de aniquil-lo. Foi o que fiz.

    E logo compreendeu que no ramos seus inimigos, que tnhamos sido feitos

    para nos entendermos e que sua vinda a essa terra de ningum seria proveitosa a

    todos.

  • Julguei conveniente seguir uma linha diplomtica mais apropriada. Tal como a

    situao se apresentava, o massacre teria sido impiedoso e recproco.-E destruir-

    nos mutuamente no me pareceu que beneficiaria quem quer que fosse da Nova

    Frana, da prpria Frana ou da Igreja e suas misses, que vocs

    tomavam sob sua proteo.

    E isso ele nunca nos perdoou.

    Eu acreditava poder explicar-lhe as razes de minha iniciativa e que ele se

    deixaria convencer... que ele compreenderia. Tnhamos sempre agido em

    conformidade um com a outro, no mais perfeito entendimento. Ora, dessa vez,

    subestimando seu julgamento,, eu o atingi mortalmente.

    Por que ento, quando nos encontrou em Katarunk, pela primeira vez a pureza

    de intenes de suas estratgias lhe pareceu duvidosa, maculada por uma sanha

    inexplicvel,.e-talvez... pela loucura?!... acrescentou ela a meia voz, espreitando-lhe a reao.

    O cavaleiro protestou com arrebatamento:

    No! Jamais supus que ele estivesse louco. Deus me livre. Acreditava apenas,

    asseguro-lhe, que os dados do acontecimento e as consequncias de sua

    destruio lhe escapavam, e... que ele compreenderia... que ele aprovaria. Eu era

    ingnuo...

    Voc no conhecia talvez tudo sobre ele. Compreendo que voc tenha sofrido

    uma decepo amarga. Ele teimou a manter seus projetos belicosos e quase

    suicidas. E isso o que o atormenta... que lhe causa agora sofrimento? O que

    chama de sua traio a ele?

    Lomnie deu alguns passos, imerso em pensamentos.

    Se voc soubesse... Se soubesse o que ele era para mim! ramos to unidos, e

    havia tanto tempo! Quando desejei acompanh-lo ao seminrio dos jesutas, ele

    me dissuadiu da ideia. Aconselhava-me a Ordem de Malta. Assim, durante toda

    a vida, continuaramos a nos completar. Ele seria meu guia espiritual. Eu seria

    seu brao armado... E, subitamente, pela primeira vez, nesse caso de Katarunk,

    eu me esquivava e recusava seu plano.

    Mesmo assim ele foi executado. Pelos cuidados de seus mais zelosos servidores:

    Maudreuil, L'Aubignire... Regozije-se. Katarunk desapareceu, incendiada...

    como ele desejava. E ns mesmos, no acha que foi um milagre termos

    conseguido escapar fria dos iroqueses, cujos chefes tinham sido assassinados

    sob nosso teto?

    Um milagre que vinha corroborar sua lenda de ser possuidora de poderes

    supraterrestres!...

    Mas ele sorria ao pronunciar essas palavras. Ele retomava p. Ela

    o apaziguara e o ajudara a ver aquele doloroso dilema com mais clareza.

    CAPTULO IV

  • Os encantos de uma inteligncia poltica Os mistrios do Saguenay

    No dia seguinte, quando a viu novamente, ele conservava o mesmo sorriso e

    parecia impaciente por abord-la. Surpreendeu-a com uma pergunta

    inesperada.

    Voc conheceu o Sr. Vicente de Paulo?

    O Sr. Vicente? fez ela, embaraada. O santo padre que foi conselheiro e confessor da rainha-me durante a

    menoridade de nosso soberano e que fundou tantas obras de caridade!

    Nessa poca eu era ainda muito jovem e vivia em minha provncia, tendo pois

    pouca oportunidade de encontrar uma personagem to importante. Mas

    verdade que o acaso colocou-me em sua presena...

    Onde foi isso?

    Por ocasio da passagem da corte por Poitiers. O cavaleiro pareceu encantado.

    Os fatos coincidem. Mas escute-me. E compreender por que lhe fiz essa

    pergunta. Quando eu era novio dos cavaleiros da ilha de Malta, na Lngua da

    Frana, tinha por condiscpulo um postulante como eu que se chamava Henrique

    de Rognier.

    Esse nome me lembra alguma coisa. Parece-me que me falaram dele

    recentemente... ou ento... No, uma lembrana que me veio num sonho... num

    pesadelo, parece-me. Mas continue... Voc me intriga.

    Ele me contava que sua vocao religiosa fora indiretamente determinada pelo encontro que teve com o Sr. Vicente, em circunstncias... Hum!...

    Cludio deLomnie-Chambord alisou o bigode, olhando-a com o canto dos

    olhos. Parecia que a histria que ia evocar o distraa de seus pensamentos

    sombrios.

    Ele tinha nessa poca dezesseis ou dezessete anos; como servia na corte junto

    rainha-me, estava em sua comitiva na cidade de Poitiers... Percorria as ruas a

    servio quando o acaso o fez encontrar uma adolescente de olhos verdes.

    Oh, o pajem!... sobressaltou-se Anglica. Aquele que me dirigiu galanteios.

    Ento era mesmo voc a jovenzinha de Poitiers de que falava tanto aquele

    cavaleiro? Devo prosseguir minha narrativa?

    Claro! Mas que coisa excitante! Se bem me lembro, esse pajem no me parecia

    muito disposto a entrar para as ordens.

    De fato!... Era um rapaz folgazo, tinha outras ideias na cabea.

  • Lomnie-Chambord ria.

    Ento era voc, Anglica, a fascinante menina que ele conduzia ao plpito de Nossa Senhora, a Grande, de Poitiers, para lhe roubar alguns beijos

    e talvez mais.alguma coisa... j que no conseguiu encontrar outro lugar na

    cidade, ocupada pela corte e sua comitiva. Brincadeiras que foram

    interrompidas pela apario do Sr. Vicente de Paulo, que, naquele dia,

    oficiava a missa.

    O santo padre passou um sermo nos dois jovens loucos.

    Anglica tambm ria, embora um pouco corada lembrana desse episdio

    de sua adolescncia. Lomnie continuou a narrar:

    Henrique de Rognier, consciente de ter vivido um momento fora do tempo, sob o olhar daquele santo homem, confessou-me que era menos o

    encontro com o Sr. Vicente que o daquela jovem desconhecida que presidira a

    sua metamorfose. Ele lutou durante muito tempo contra o domnio dessa

    recordao. Era uma recordao imorredoura, dizia ele. Ficou doente. Julgou-

    se enfeitiado. Um dia compreendeu que na pessoa da adolescente

    desconhecida, da qual s sabia o primeiro nome, Anglica, ele encontrara o

    verdadeiro amor. O cavaleiro continuou, depois de uma breve pausa: E, compreendendo tambm que jamais tornaria a encontrar esse amor, que

    nenhuma outra mulher poderia inspirar-lhe um sentimento semelhante quele

    e que, de qualquer maneira, era intil tentar encontr-la, pois nos meios

    seculares, entre as loucuras da corte, um tal amor no podia nem viver nem se

    preservar, decidiu unir-se ao servio Daquele que a fonte de todo Amor, e se

    fez cavaleiro de Malta. Muito bem! Eis uma histria edificante. Estou feliz em saber que no sou

    responsvel apenas por desordens, como voc pretende. Que fim levou ele?

    Oficial nas galeras de Malta, ele foi capturado durante um combate com os

    barbarescos e teve a mesma sorte que nossos irmos: foi apedrejado nas colinas

    de Argel.

    Pobre pajem querido! E acrescentou, sonhadora:

    Eu o tinha esquecido.

    Ah! fez Lomnie, com um sbito grito. E isso o que aumenta sua seduo: sua indiferena quase cruel. Como se es

    quece daqueles nos quais planta sua lembrana como uma adaga que eles no

    conseguem arrancar do corao! Voc descuidada, voc mesma o confessou.

    Menos de um!

    Ele a considerou com uma interrogao ansiosa no olhar.

    Para os outros, que voc?...

  • Depois, sem esperar a resposta, murmurou, com exaltao:

    Um sinal de contradio. Um apelo, um grito que nos arranca de ns mesmos,

    como aconteceu com esse jovem Rognier.

    Ah! No comece a se atormentar protestou Anglica. Vocs tambm, meus senhores, se afogam em contradies; para mim vocs so todos uns

    egostas e ingratos, e choram pelo que no tiveram, sem saber se alegrar com o

    que lhes foi concedido... Voc me fala como se eu tivesse passado a vida a

    destruir coraes, vontade, sem ter eu mesma sofrido por amor. Deus seja

    louvado que, de todos, somente a um pude amar de maneira inolvidvel. Nem

    sempre estava a meu lado, e eu sofria esses tormentos da separao que voc

    pensa ser o nico a sentir.

    Eu sei. Feliz aquele que voc no pde esquecer. O amor que os une daqueles

    que nos fazem crer no inexprimvel. A noite passada, eu os olhava um junto ao

    outro e sem cessar seus olhos se certificavam da presena um do outro ou se

    alegravam por se ver. A noite em que chegamos com o Sr. d'Avrensson, avistei

    suas silhuetas unidas num beijo, no balco do castelo de popa, e uma dor, cujo

    sentido me escapou, me apunhalou. Eu me julgava curado, imunizado por minha

    raiva contra voc. E aqui est! E novamente eu me sinto melhor e feliz de viver.

    Voc triunfa sempre com sua beleza loura. Triunfa sem sequer dar-se ao

    trabalho de conquistar. Inconsciente das rupturas que consumou, das tragdias

    que fez eclodir, dos destinos cujo curso mudou! Ele tinha razo de ach-la

    invencvel e destruidora de sua obra. Morreu no barrote de torturas,

    amaldioando-a, e voc no d importncia ao antema que lanou contra voc

    na hora da morte?

    Teria mesmo pronunciado esse antema?...

    Voc tacharia o Padre de Marville de mentiroso?...

    No, mas...

    Como comunicar-lhe a impresso, que nunca pudera evitar, de que uma

    mentira roa como um verme o interior daquele fruto?

    Apesar de seu lado trgico, a cena que se desenrolara na antecmara de Mrs.

    Cranmer, em Salem, deixava-lhe uma leve lembrana, a de ter assistido a uma

    comdia macabra, voluntariamente exagerada, se no fosse pelo jovem

    canadense Emanuel Labour, que cara vencido por um desmaio que no era

    fingido. Pouco depois ele morreu em circunstncias misteriosas. Exceto por

    isso, ter-se-ia acreditado estar num espetculo.

    E no mesmo instante teve de morder os lbios para no sorrir, pois, quanto

    mais pensava naquele confronto, tanto mais o lado risvel lhe aparecia. Dentre

    as personagens smbolo do papismo e do calvinismo puritano, o jesuta e o

    doutor em teologia bblica, Samuel Wexter, era difcil dizer quem excedia em

    fanatismo, enquanto um gigante selvagem iroqus, descalo no brilhante la-

    jeto preto e branco, tocava com o penacho de sua cabeleira eriada as traves

    bem enceradas de um borne da Nova Inglaterra, ao passo que, nos degraus da

    escada, como nas arquibancadas de um teatro, se escalonavam, sentadas, as

  • mulheres da casa, entre as quais duas quacres mgicas, Ruth e Nomia, e ela

    mesma, em roupas de parturiente.

    As imprecaes do jesuta tocaram-na menos que a surpreenderam. Elas se

    apagavam a ponto de cair no esquecimento. Foi a partir desse momento que

    ela sentira que o movimento da vaga, que no cessara de subir na direo

    deles atingindo-os com seus golpes, revertia, que o refluxo comeava, pois o

    que contava era a mensagem contida no wampum que o chefe das Cinco

    Naes iroquesas, Utak, enviara a Joffrey de Peyrac:

    "Seu inimigo no existe mais".

    Junto a ela, o cavaleiro de Malta, distrado por um instante pela histria de

    Henrique de Rognier, recaa em sua obsesso.

    Sebastio dizia: nosso objetivo fazer reinar em toda a terra uma s f. Eu deveria t-lo apoiado at o fim.

    Ela colocou a mo em seu pulso.

    Meu caro Cludio, ns somos, voc e eu, os herdeiros de quase dois sculos de

    guerras de religio que afogaram a Europa no sangue e que nada resolveram

    quanto a fazer reinar uma s f. No poderamos tentar construir o Novo Mundo

    em paz?...

    E podemos? verdade que voc bastante convincente. E no o nego... Se lhe

    dessem ouvidos... Era tambm o que Sebastio temia em voc: desviar os

    espritos da grande obra de evangelizao. Ele considerava um perigo o fato de

    sua seduo encobrir uma inteligncia poltica.

    Poltica?! exclamou ela.

    Ouvindo-a rir, ele voltou-se vivamente para ela, que lhe surpreendeu o

    verdadeiro olhar, brilhante e suave, cheio de interesse por tudo o que vinha

    dela, e essa expresso que ele s vezes tinha ao v-la, ao mesmo tempo

    sonhadora e fascinada, como se, descobrindo um aspecto inusitado da criao,

    ele se interrogasse sobre os caminhos desconhecidos, mas cheios de encantos,

    nos quais seu encontro o levava a se embrenhar.

    Seu riso! Ele parece lanar todos os nossos tormentos obscuridade e revelar-

    nos a vontade de amor de Deus para conosco.

    Isso magnfico. Mas, em vez de sempre me cumular, depois de poderes to

    negros, de influncias to santas, voc poderia pelo menos ficar num

    meio-termo, este que vou propor-lhe: considerar que nossa presena no

    Novo Mundo e nossa ingerncia, se assim a chama, trouxeram at aqui

    mais bem do que mal, mais paz e vitria do que perturbaes e desastres. O

    papel de um monge guerreiro no lutar pela paz dos povos e dos oprimidos?

    Assumir a guerra de defesa uma obra piedosa, e preciso considerar-lhe os

    objetivos e a necessidade com cuidado, e s decidir-se pela espada em ltima

    instncia, voc vai reconhec-lo. Inteligncia poltica, voc diz. Pois bem, se

    denomina poltica o fato de uma mulher se permitir refletir sobre a sorte do

    mundo e o futuro que os soberanos da terra preparam para nossos filhos, tem

    razo.

  • Era uma obrigao imperativa para uma mulher encarar em que sociedade

    iriam viver as crianas que ela ps no mundo. Anglica afirmou que a

    responsabilidade de uma mulher parecia-lhe maior ainda nesse domnio que a

    dos homens e, alis, que entre os iroqueses as mulheres tinham voz ativa.

    Mas, se o Padre d'Qrgeval, no que lhe dizia respeito, vira-a como algum

    que conduzia as tropas ao combate, no, esse tempo j pssara para ela.

    Nem por isso voc deixou de deter minhas tropas disse ele , atirando em meus homens no vau de Katarunk.

    Era uma questo de habilidade em atirar. A deciso de det-los vinha de meu

    esposo. Eu no conhecia nada sobre a Amrica, que eu julgava deserta, ai de

    mim, ou pelo menos povoada de refugiados, como ns, que no teriam gutros

    inimigos alm da natureza selvagem. Ai de mim! Eu estava completamente en-

    ganada. No bastavam a invernada e as rivalidades j bem estabelecidas entre a

    Frana e a Inglaterra. Era preciso tambm que medssemos foras com um

    santo. Sou apenas uma mulher, estou lhe dizendo.

    E uma mulher adorvel.

    Novamente perturbado diante dela, ele lhe beijou a mo rapidamente.

    Perdoe-me! Eu no passo de um pedante. Minha conduta imperdovel.

    Passaram desse modo uma parte dos dois dias seguintes a discutir, seja em

    terra, andando ao longo da praia, seja a bordo do Arc-en-Ciel, passeando pelo

    convs depois de uma refeio partilhada com o Conde de Peyrac e os

    oficiais, ou ao sair de um ofcio na pequena capela.

    Algumas vezes riam-se, reencontravam a convivncia de uma amizade j

    longa e que se criara espontaneamente, e por vezes Lomnie recaa em suas

    melancolias e angstias, como se despertasse subitamente a bordo de um

    precipcio.

    Havia um fantasma entre eles, mas, graas a essas conversas, Anglica

    conseguira faz-lo encarar a situao de modo mais lcido e sem subterfgios.

    Conseguiu faz-lo confessar que reconhecia que Sebastio d'Orgeval sempre

    professara em relao s mulheres um sentimento de desconfiana e, sob uma

    aparncia policiada, e por vezes encantadora para com elas, uma hostilidade

    fundamental.

    Ele era to feliz! suspirou Lomnie. rfo de me, eu soube, segundo confidncias suas, que sua infncia foi cercada apenas por horrveis criaturas

    femininas, grosseiras ou possudas pelo esprito do Mal, lbricas e at

    feiticeiras. Desconfiando da Mulher, ele desconfiava da Beleza e, mais ainda, do

    Amor...

    Uma trilogia qual ele parecia ter dedicado um dio impiedoso.

  • A palavra "dio" pareceu chocar Lomnie, mas ele evitou contradiz-la.

    Andavam aquela noite novamente em direo ao Saguenay, depois de um

    ofcio noturno que reunira para o rosrio da Virgem Maria ceifadores

    cansados e selvagens, novamente desembarcados do alto Saguenay com suas

    peles para o comrcio.

    No dia seguinte, o Conde de Lomnie retomaria o caminho para Quebec,

    enquanto a frota com os homens de Gouldsboro, depois de reunir seus

    tripulantes; ergueria velas para continuar a descer o rio-mar Saint-Laurent at

    o golfo do mesmo nome.

    Eles discutiam, menos para se convencer que para trocar suas impresses,

    confessar um ao outro a inquietao e a tristeza partilhadas.

    Voc uma criatura iluminada repetia o Conde de Lomnie , no pode compreender essa personagem.

    Mas voc tambm, Cludio, foi uma criana iluminada. E eu acho

    que foi por am-lo que esse sombrio adolescente do Dau-phin tinha

    necessidade de voc, que voc estivesse a seu lado para ilumin-lo. Ele o atraiu

    para o Canad para isso. No se deixe arrastar- s trevas de sua tumba.

    Como voc sabe que ele era do Dauph;ng? perguntou Lomnie, surpreso. Creio que algum me disse...

    Mas ela pensava que sabia muito mais sobre a infncia de Sebastio

    d'Orgeval do que o prprio Lomnie. E ele a considerou com uma mistura de

    inquietao e de admirao, parecendo novamente invadido pelo receio de

    que ela possusse poderes de adivinhao satnica ou de habilidade

    maquiavlica, como quisera convenc-lo D'Orgeval.

    Seja como for continuou ele , parece que sua apario fez morrer entre ns, ele e eu, esse entendimento, quebrou esse elo que nos unia desde nossa

    juventude e que nos ajudara at ento a viver e a engrandecer nossa vida pelos

    caminhos da conquista dos povos e do servio de Deus. Depois de uma pausa, ele continuou: Retornando a Ville-Marie aps o anncio de sua morte, vi minha desgraa. Eu perdera tudo. Voc me escapava enquanto mulher que

    inspirava meu corao, pois era a esposa de outro, ao qual era intil disput-la. E

    ele tambm me escapava, meu irmo que eu deixara, exilado ao longe, sem que

    eu elevasse minha voz para defend-lo. Proaunciando-me por voc, eu o havia

    ferido. No tentei explicar-me com ele. No podia dizer-lhe o quanto eu lhe

    devia... E ainda hoje sinto-me culpado por estar pronto a qualquer coisa para

    obter de voc um simples sorriso, um gesto de amizade como aquele que deu

    aquela noite comigo. Somente isso, eu lhe asseguro, e isso absurdo.

    Absurdo?!... Por qu? O absurdo se sentir culpado com to pouca coisa... Os

    gestos de amizade reaquecem o corao. E bom sentir-nos cercados por

    simpatia, assim como tambm natural sentir-nos feridos pela antipatia. No

    teramos direito seno aos desacordos, em nossas relaes com nossos

    semelhantes?... Em seu receio dos sentimentos afetuosos, seu rigorismo logo se

    tornar pior do que o dos puritanos, calvinistas, ou essa gente da Reforma que

  • voc censura tanto. __ A carne... comeou Lomnie. Mas Anglica explodiu numa risada, gritando:

    Basta, basta de sermes!... A carne... maravilhoso. Felizmente somos carne.

    E, puxando-o pela mo, ela o conduziu at a extremidade do promontrio. E agora, olhe...

    O qu?

    A falsia caa a pique sobre a superfcie da gua, que se alastrava na foz do

    Saguenay. Mais acima, as flotilhas de canoas haviam sido arrastadas para a

    margem na estreita praia. Mas daquele lado, totalmente aberto, o cu ainda

    estava claro, num tom amarelo de erva-cidreira, e a superfcie do rio brilhava

    como laca chinesa.

    Bastaria que vocs, religiosos, contemplassem a beleza deste horizonte para se

    comoverem. Mas h mais. Eu sinto que elas esto a.

    Elas, quem?...

    Espere...

    No mesmo instante, viram uma silhueta obscurecer o esturio, deslizando

    sob a gua e desaparecendo, depois outras, numa dana harmoniosa

    semelhante a um sonho, at a ecloso de um gotejante domo prateado que se

    arqueou como uma ilha brotando das profundezas do mar, para mergulhar de

    novo, dirigindo para o cu uma cauda imperiosa com nadadeiras gmeas em

    forma de asas.

    As baleias! O espetculo era raro. As baleias haviam fugido fazia mais de meio sculo.

    Mas acontecia de as mes retornarem em direo s profundezas geladas do

    Saguenay para desovar seus filhotes ou para ali brincar em paz, alegremente,

    com algumas companheiras.

    Anglica prometeu a si mesma que um dia voltaria com os gmeos, quando

    eles estivessem mais crescidos.

    CAPTULO V

    No abrao do rio Uma assembleia de amigos e

    outra de inimigos "O importante estar vivo"

    Na noite em que chegaram, Joffrey de Peyrac pediu a seus visitantes que

    ficassem para cear com ele no salo do Arc-en-Ciel, e o prprio recoleto

  • aceitara sem rodeios, assim como o truculento piloto do Saint-Laurent, o sr.

    Topin, e um de seus filhos, pois os viajantes estavam cansados de um dia

    inteiro de navegao no rio, que no era coisa simples para uma grande barca

    de uma vela, mesmo descendo a corrente.

    "Essa m... de rio", dizia Topin com "uma mescla de estima e de raiva; "um

    dia esse monstro vai acabar nos devorando..."

    Tendo mais uma vez escapado aos abismos, esses homens do rio

    expandiam-se sob o teto da grande sala de jogos, em torno de uma mesa bem

    provida, servida circunspectamente pelo despenseiro Tissot e seus ajudantes.

    O balano do navio tinha a medida exata para que se sentisse estar ancorado e

    no em terra, cuja estabilidade tem algo de duro e de inquietante; para que se

    percebesse que o rio continuava a rode-los, aquele monstro frio, aquela

    serpente, abaixo e em volta deles, mas apenas a embal-los como bebes em

    seus bercinhos, com um leve balano que fazia estremecer o vinho francs nos

    grandes clices de cristal e reverberar reflexos de rubis ou de ouro quando

    eles eram erguidos para beber sade uns dos outros e a felizes viagens.

    Quebrando as regras da etiqueta, que indicavam seu lugar de anfitri ou no

    centro da mesa, diante do Conde de Peyrac, ou numa das extremidades, com

    ele sentado na outra ponta, Anglica sentara-se a seu lado, como teria feito

    aquela noite, se no tivessem visitas.

    Acabara de reencontr-lo e queria ficar mais prxima a ele, aconchegar-se

    bem perto de seu calor, no perfume sutil de sua presena. Gostava de captar o

    odor de suas roupas em seus gestos, o odor tpido e refinado de seus cabelos

    quando ele mexia a cabea, o odor de seu hlito quando se voltava para ela.

    Experimentava ento o desejo de beijos secretos e prolongados, longe dos

    olhares de todos.

    Era evidente que ela se comprazia em se colocar no mbito de sua presena

    masculina. Mas pacincia!

    Quanto mais aprendia a viver ao lado dele, menos vontade sentia de partilh-

    lo com os outros. Ora, a existncia de ambos colocava-os a todo momento

    num pedestal, testa de uma vida pblica das mais movimentadas, e Anglica

    tinha de dar provas de obstinao e de imaginao para no ser requisitada a

    todo instante por deveres cerimoniais. Nisso Joffrey a ajudava, pois tambm

    ele cuidava de preservar o mximo possvel suas horas de intimidade. A

    viagem no rio, como um casal, lhes dera grandes esperanas. Mas ele no

    pudera deixar Tadoussac com rapidez suficiente, e eis que as pessoas o

    procuravam.

  • O Sr. de Frontenac enviava mensageiros para transmitir ao Sr. de Peyrac

    notcias de sua expedio e seus agradecimentos pela ajuda que lhe dera.

    Lomnie-Chambord vinha confiar-lhe seus tormentos e dvidas.

    Anglica decidiu beber para esquecer uma decepo que lhe entristecia o

    corao, no aquela, afinal mnima e passageira, de no poder estar por mais

    tempo sozinha com seu marido, mas, somada melancolia de ter deixado a

    filha, a preocupao de ter encontrado o Cavaleiro de Lomnie-Chambord to

    mudado e abatido...

    Tinha necessidade de algumas libaes para dissipar sua terrvel impresso.

    Seu corao ainda estava confrangido pelos soluos daquele homem, aquele

    guerreiro de corao puro e valente que derreara em seu ombro, e as palavras

    que ele pronunciara em meio s lgrimas eram como o eco de um lamento que

    um outro, invisvel e perdido, teria deixado escapar.

    Ela bem que gostaria de esquecer aquele outro de que tanto se falava, aquele

    Sebastio d'Orgeval que sempre ressurgia no momento em que comeavam a

    se reequilibrar e que, morto ou vivo, lhes suscitava incessantemente os piores

    aborrecimentos. Ela se sentia menos vontade ainda pelo fato de as

    confidncias de Lomnie lhe despertarem, a despeito de si mesma, piedade,

    ainda que soubesse que havia por trs disso uma armadilha de que precisava

    desconfiar. "Ele", o jesuta e Ambrosina sempre haviam tirado partido de sua

    generosidade, de sua bondade, para prejudic-la... E ela quase se deixara

    apanhar...

    Ela bebeu portanto, como teria engolido um remdio, um primeiro copzio

    de um vinho delicioso e, pouco depois, sentiu que sua alegria retornava.

    Poderia desempenhar-se melhor, interessar-se pelas histrias de D'Avrensson,

    dar a rplica ao exuberante Topin, que sempre tinha histrias de naufrgio

    para contar.

    Aquela noite num navio com hspedes de passagem e oficiais de sua tropa

    lembrava-lhe outro banquete naquele mesmo lugar, alguns anos antes, quando

    subiam o rio, dirigindo-se para a capital da Nova Frana: Quebec.

    Tinham festejado com fausto e loucura, " francesa", e cada um se sentira

    feliz o bastante para confessar segredos inconfessveis de sua vida, o que

    estreitara seu entendimento em meio neblina de novembro, espessa e glacial,

    enquanto continuavam a penetrar em surdina nas possesses do rei da Frana

    no Novo Mundo.

    Como outrora, ela elevou seu clice de cristal da Bomia, inesperado

    presente do Marqus de Ville-d'Avray, e, atravs dos rubis do vinho de

    Borgonha, viu o rosto de seus hspedes nessa noite, pessoas de boa sociedade

  • e que no mais constituam uma ameaa potencial para eles. Naquela noite

    todos no passavam de uma assembleia de franceses, bons amigos, que se

    regozijavam com seu reencontro nos confins da fronteira de seus imensos

    territrios respectivos, com uma poro de novidades para contar um ao outro

    e lembranas comuns a evocar. Bastava lembrar a famosa noite do ataque dos

    iroqueses a Quebec, durante a qual Anglica ajudara o Major d'Avrensson a

    salvar a cidade enquanto o Sr. Topin corria ao longo do rio para apagar os

    fogos que balizavam o contorno da praia.

    Ela via o Cavaleiro de Lomnie-Chambord animar-se contando a batalha do

    ri Saint-Charles, falando do convento dos reco-letos transformado em

    fortaleza. O monge, em seu burel, lembrava-se dos detalhes. Religioso

    simples, bem-comportado, j no Canad havia mais de vinte anos, ele pedira

    uma zurrapa para beber, o que no o impedia de se elevar ao nvel da joviali-

    dade geral.

    O Sr. d'Avrensson fora encarregado pelo governador de agradecer ao Sr. de

    Peyrac por ter-lhe prestado o insigne servio de vigiar e prevenir um eventual

    ataque iroqus a Quebec. Ele fez a seguir a narrativa da expedio do Sr. de

    Frontenac.

    Em Cataracu, no lago Ontrio, onde mandara construir um forte rebatizado

    com seu nome, estava em seu feudo, em suas terras.

    Naquele ano, como nos precedentes, Frontenac recebera sessenta chefes

    iroqueses para um encontro amistoso. Era j uma vitria t-los feito vir e se

    reunir. O iroqus generoso, mas obstinado.

    Entretanto, gosta de negociar tanto quanto de lutar. Era por isso que o

    governador da Nova Frana os segurava. Tratava com dureza, mas com

    generosidade, a esses soberbos iroqueses. O Sr. d'Avrensson, presente a suas

    manobras, no se cansava de descrever-lhe as sutilezas e as fases.

    Acabaram por arrancar-lhes a promessa de permanecer em paz com seus

    vizinhos, os utauais e os andastes, e de parar de massacrar sistematicamente

    os huronianos, ou o que deles restava.

    Frontenac tinha a capacidade de admoestar os ndios sem enfurec-los. Sua

    vivacidade, sua maneira de brincar alegremente com seus filhos os

    enterneciam. Eles morriam de rir quando o ouviam executar perfeitamente

    seus sassakuas,seus gritos de guerra, que congelavam o sangue nas veias.

    Para colocar-se em posio de conferenciar com sabedoria e lucidez, fizeram

    primeiramente dois grandes festins, desses festins em que no se comia nada,

    limitando-se a fumar, e que eles chamavam "festins" de devaneio". Cabe dizer

    que saam deles mais bbados e trpegos do que aps as mais desenfreadas

  • libaes, pois usavam um tabaco preto e duro que impregnava a garganta

    durante trs dias.

    Depois comearam os verdadeiros festins. A novamente notava-se a

    semelhana entre franceses e ndios, e principalmente iro-queses. "O gosto

    pelos festins", antes ou depois da.batalha.

    A cabea do maior co cozido foi dada ao Sr. de Frontenac, que a comeu at

    os olhos, o que no era a menor de suas aes hericas.

    Peixes diversos... Tomando-se o cuidado de no jogar as espinhas no fogo

    por causa dos espritos das guas, que poderiam ficar aborrecidos.

    Depdis de colocar numa grande fogueira o maior caldeiro que possuam e

    no qual haviam cozido pedaos enormes de carne, os trs grandes chefes,

    armados de um porrete, juntaram-se para empurr-lo e derrub-lo. Gesto

    simblico, virar o caldeiro de guerra significava: "A guerra acabou.

    Aceitamos a paz".

    Retirando com uma cabaa o cozido que ficara no fundo, os chefes

    acentuaram a solenidade de seu gesto, distribuindo essa bebida, muito

    encorpada e de gosto excelente, aos "principais" entre os franceses, de acordo

    com um costume que pedia aos antigos inimigos que se nutrissem da prpria

    rendio de seus adversrios, pois a chamavam de "caldo dos vencidos", e

    alguns insinuaram, numa brincadeira de mau gosto, que talvez estivesse

    temperada com ossos e carnes humanas dos recentes massacres, o que fez

    empalidecer os jovens oficiais recm-chegados ao Canad.

    Em suma, haviam enterrado o machado de guerra.

    Sob o teto de madeira de lei do salo do Arc-en-Ciel, os convivas

    aplaudiram.

    Mais uma vez, Frontenac mostrara-se audacioso e hbil a sua moda, que

    fazia tremer seus fiis, mas que visava sempre o interesse fundamental da

    colnia.

    Antes de deixar os iroqueses voltarem a seu vale nos Cinco Lagos, houve

    troca de wampums e de presentes.

    Eles recusaram o sal, um artigo precioso, no entanto, pois, diziam, ele

    provocava sede, e a gua os deixava pesados; cuidavam da flexibilidade de

    seus msculos, a fim de correr e puxar o arco melhor. Nunca sentiam sede.

    Seu insossosagamit de milho cozido, condimentado com pequenos frutos

    cidos, bastava-lhes.

  • Em compensao, aceitaram o presente, para eles luxuoso, de vrios sacos

    de farinha, pois apreciavam muito pes de trigo. Um padeiro os acompanharia

    at seus domnios, para fabricar-lhes, no incio do inverno, belas rodas de po,

    que seria conservado durante todo o mau tempo.

    Frontenac lhes deixou tambm um armeiro com dois companheiros, que os

    seguiriam at seus povoados de casas compridas para consertar suas armas de

    fogo e amarrar seus machados.

    Como bom gasco que apreciava a vida, o Sr. de Frontenac gostava muito

    desses selvagens.

    A alegria era geral em torno da mesa. A expedio anual fora bem-sucedida.

    Para Anglica, a presena de Nicolau Perrot entre eles evocava suas

    dificuldades iniciais de relacionamento no Novo Mundo, os perigos que

    tinham enfrentado. Em comparao, ficou surpresa com a obra admirvel que

    se realizara desde aquela poca. Pois nessa noite eram todos franceses

    reunidos para beber a seu soberano e ao xito das expedies do Governador

    Frontenac para estabelecer a paz do continente brbaro, para felicitar-se dos

    tratados que aproximavam, sob o manto de suas sombrias florestas j

    disputadas e divididas, povos desejosos de se compreender, de trabalhar

    juntos para uma vida um pouco melhor.

    Todos os seus esforos iriam ser questionados novamente pelo fato de, no

    fundo dessas mesmas florestas, ter-se perpetrado o fim funesto de um grande

    jesuta? O estandarte dele, sua bandeira de guerra, era marcado por cinco

    cruzes, uma em cada canto e a quinta no meio, cruzes cercadas de quatro

    arcos e flechas.

    Ela o vira flamular frente dos abenakis, enquanto eles se arremessavam ao

    assalto da aldeia inglesa.

    Que o Padre de Marville a desculpasse, mas isso no tinha nada de

    imaginrio. Ela ouvira igualmente o jesuta dar a absolvio, no

    acampamento, queles que iriam matar os "herticos" de Katarunk, isto ,

    eles, os recm-chegados. Ela fora entrevista montada em sua gua, que ela se

    esforava por reconduzir ao campo, e eis que esses espritos habituados aos

    milagres-e aos prodgios designavam, a pobre Wallis como a licorne malfica

    que anunciava as desgraas da Acdia. Assim comeara a surda e rdua luta.

    O Padre d'Orgeval fora um homem muito amado pelas pessoas simples,

    assim como pelos nobres penitentes,, e Anglica, lealmente, no procurara

    arranc-lo do corao de seus amigos nem macular-lhe a imagem. E, agora

    que sua morte era conhecida, seu culto parecia reassumir um novo impulso.

  • Lembravam-se apenas do antema pronunciado contra ela, esqueciam a

    perseguio de que tinha sido objeto, por desconhecerem seu encarniamento'.

    Essa desero, que ela sentia latente e sem garantia de poder evitar,

    aumentava o mal-estar que ela trazia de sua segunda viagem Nova Frana,

    apesar do inesperado encontro com seu irmo mais velho, Josselino de Sanc.

    Seus pensamentos tornavam-se lcidos e libertos do que tinham de triste.

    Dessa luta com o jesuta ela revia imagens muito belas, ordenadas e

    grandiosas como as de uma pera. Wallis, sua gua, encabritando-se na

    floresta de outono, o estandarte de cinco cruzes flutuando ao vento e a horda

    de selvagens urrando, expandindo-se na fmbria das florestas, percorrendo o

    vale em direo aldeia inglesa.

    Belas imagens para uma bela aventura! A aventura de sua vida comum na

    Amrica.

    Ela se voltava para Joffrey, como se ele pudesse ajud-la a dispersar o voo

    de seus pensamentos um pouco loucos. verdade que ele podia faz-lo. E,

    quando estava perto dele, ela escapava rapidamente a suas apreenses, que

    frequentemente eram exageradas ou pelo menos prematuras. Ele permanecia

    calmo e filosfico. Pois, dizia, ao mesmo tempo que se mostrava vigilante,

    no se podia passar o tempo construindo um futuro de catstrofes e traies.

    "Como me sinto bem quando estou ao lado dele!", repetia-se ela,

    aproximando-se ainda mais, quase tocando-o, e surpreendeu o olhar do Conde

    de Lomnie, a quem no escapava seu movimento carinhoso e amoroso de

    mulher, expandindo-se sombra do homem amado.

    Mas ela no podia deixar de olhar para ele, de voltar a ele, a esse perfil de

    uma virilidade to perfeita que para ela no havia homem que pudesse

    comunicar-lhe tal impresso de fora e tambm de proteo sem limites.

    Sua confiana nele era o fruto de seu amor total por ela, no qual ela acabara

    por acreditar e do qual sentia que ele estava habituado impregnado, dizia ele por vezes , que o levava a repetir-lhe com frequncia que ela era tudo para ele, o que era a nica coisa que lhe importava.

    Joffrey encontrava o jeito de beber, franca e alegremente, sem jamais fazer

    com que sentissem que o fazia para afastar uma preocupao ou, como alguns,

    para se vingar de um mundo que lhes desagradava, no qual s reconheciam

    amargura. Ele bebia para saborear a excelncia do fruto da vinha, dom de

    Deus, e se deixar levar a sua amvel vertigem, sem faz-lo por fraqueza.

    Bebia para fazer companhia a seus hspedes, para honr-los e torn-los

    felizes, pois a acolhida aberta e o bem-estar dispensado ao viajante faziam

    parte dos prazeres deste mundo, de uma arte de viver, de uma trgua

  • obrigatria, para compensar a hostilidade e crueza reinantes, por outro lado,

    pela maldita terra.

    Quando ele bebia, dir-se-ia que acolhia o vinho como acolhia todos, isto ,

    como um amigo com o qual nos alegramos e aprendemos a nos conhecer

    melhor.

    Apenas seus olhos brilhavam um pouco mais, apenas o calor de seu sorriso

    tornava-se mais comunicativo, sua expresso, mais mordaz, e mesmo

    sardnica, como se tivesse se posto a contemplar do alto a fraqueza humana,

    com um leve toque de zombaria, mas sem maldade.

    At onde podia lembrar-se, ele tinha sido sempre assim. J em Toulouse,

    vira esse brilhante prncipe das cortes de amor dedilhando seu violo, com

    seus olhos sorridentes por trs das fendas da mscara, presidindo reunio de

    homens e mulheres, nem todos heris de romances e princesas de

    pensamentos nobres, longe disso, mas que subitamente eram glorificados,

    transfigurados pelas magias conjugadas do canto, da filosofia cortes, dos

    vinhos seletos e do Amor, que, convocado ao banquete, distribua suas

    flechas.

    Ela conquistara o mais cobiado dentre eles, Joffrey de Peyrac. Podia dizer a

    si mesma: "Daqui a pouco, ficarei a ss com ele".

    No se cansava de contempl-lo enquanto ele permanecia atento,

    acompanhando as peripcias da conversa, na qualidade de perito nessa justa

    no menos importante que a das lanas ou das espadas, conhecendo o valor de

    cada palavra, cada sombra ou luz, crispao ou sorriso que perpassava pelos

    rostos.

    Havia nele, nessa espreita, alguma coisa do rei.

    Mas ele era mais forte que o rei, e mais livre.

    "Como eu o amo! O meu Deus, faa com que ele me ame sempre! Sem ele,

    eu morreria!"

    "Bebi demais! Fruto da vinha, que traio voc me fez! Ser que se pode

    ver? Todos ns estamos rindo. At Lomnie! Abenoado fruto da vinha! O

    importante estar vivo. E ns estamos vivos! Amanh vou dizer ao pobre

    conde trado que crie coragem. O jesuta morreu. E ele jamais soube como

    bom beber entre amigos. Ele viveu to-somente para as trevas. Eis por que

    perdeu. Senhor, perdoe-me! Eu deveria apiedar-me de um mrtir."

    No momento em que deixavam a reunio, sob a neblina estuante de mil

    gotculas cintilantes, ao se despedir, um pouco vacilante ao lado de seu mestre

    e senhor, Anglica leu ou julgou ter lido nas pupilas de Lomnie-Chambord

    um pensamento que o trespassou como um dardo ao v-los: "Esta noite eles

    vo se amar..."

  • Sua fisionomia se alterou novamente. Suas faces se encovaram. Nas mesmas

    circunstncias, a Diaba, vendo-os a sua cabeceira, to prximos e inseparveis

    em sua conivncia de amantes, soltara seu grito terrvel de desespero

    enciumado, seu grito de criatura danada para todo o sempre...

    CAPITULO VI

    Afetos inconciliveis

    Terminava a parada em Tadoussac. Seus visitantes iam novamente partir rio

    acima. Em dois ou quatro meses, o inverno voltaria para encerr-los com seus

    gelos.

    Anglica conversou ainda um pouco com o Cavaleiro de Lomnie-

    Chambord.

    Percebendo-lhe a fragilidade, ela evitava atorment-lo. Gostaria de sacudi-lo

    para acord-lo, como a uma pessoa afligida por um pesadelo.

    Ela procurou contentar-se com algumas palavras que ele deixava escapar:

    "Seus argumentos so justificveis...", "Eu no me enganei..."

    Mas essa era uma obra que devia ser recomeada a cada dia que passava.

    Certa vez, tirando do gibo uma carta que desdobrou com precauo, pois

    fora escrita numa casca de carvalho, ele quis ler-lhe passagens da ltima carta

    que o jesuta lhe enviara, havia j muito tempo, um pouco depois da partida de

    Quebec, pouco antes que suas notcias tivessem cessado completamente.

    Uma coisa estranha que nessa ltima carta a seu amigo de infncia o

    jesuta no cessara de se referir ao perigo que a Dama do Lago de Prata

    representava. Dir-se-ia que estava possudo por uma obsesso e ummedo:

    "...Dela, voc deve recear tudo, meu amigo! uma mulher de poder, uma mulher poltica..."

    Deus, que tolice!

  • Mas Lomnie continuava, numa voz suave e implacvel, a desfiar o rosrio

    dessas acusaes insanas, cada uma das quais, porm, carregava, sob a

    aparncia de mansuetude, de sbia advertncia, sua gota de veneno.

    "...Poder dos sentidos, desenvolvido ao mximo, e ao qual, como pude observar,

    voc no era insensvel, por mais piedosa que seja sua vida, mas que no a

    distinguiria das outras mulheres, no fosse duplicada por uma inteligncia que a

    leva a ambies de poder sobre o esprito dos homens e, o que mais perigoso,

    a se assenhorear de suas almas, o que sutil e insidioso, pois os conduz a uma

    liberalidade culposa em relao a disciplinas religiosas, a imperativos da lei

    santa ensinada pelo prprio Deus, um desconhecimento da natureza do pecado

    que pode levar gradativamente mais radical perda de sua salvao. Mas dei-

    xemos isso..."

    Tanto melhor! atalhou-o Anglica, que o escutava, taciturna. "...No falemos seno do poder poltico que se oculta sob aparncias

    encantadoras e como que ignorantes dos difceis arcanos com os quais se

    encontram comprometidos os homens encarregados de dirigir os povos.

    Responsabilidades que, colocadas em mos femininas, jamais deram resultados

    satisfatrios..."

    Isso algo que tem de ser pensado... A Inglaterra no teve motivos de queixa

    contra sua grande Rainha Elizabeth I.

    "...Mas das quais algumas se apoderam de modo insidioso" continuava o cavaleiro. "Ouvi dizer que nosso rei, dissuadido de confiar nas mulheres nesse domnio, por horror a essas 'frondosas' enraivecidas que haviam arrastado

    os poderosos do reino contra ele durante sua menoridade, no podia suportar que

    nenhuma mulher, nem a rainha, nem mesmo a mais influente de suas amantes,

    lhe dissesse a mnima palavra sobre os negcios do reino. Ora, eu soube de boa

    fonte que por causa dessa nica mulher, a Sra. de Peyrac, quando ela se

    encontrava em Versalhes, esposa de um outro fidalgo, o rei ps de lado seu

    mutismo e pediu-lhe muitas vezes sua opinio sobre questes de diplomacia,

    chegando at a confiar-lhe embaixadas junto a soberanos estrangeiros..."

    O Conde de Lomnie ergueu a cabea e examinou Anglica com uma

    mmica em que havia ao mesmo tempo surpresa e expectativa de um

    desmentido.

    Mas ela contentou-se em suspirar. Parece que seu jesuta sabia de tudo disse ela, aps um momento de silncio.

    Tudo... at isso.

    Sim, ele sabia tudo repetiu Lomnie, dobrando a carta com uma lentido sonhadora. Esse dom de adivinhao, de vidncia, no nos indica que estamos diante de um santo, cujas adjuraes pecaramos por desdenhar?

    Quem lhe falou de vidncia? disse ela, dando de ombros. Ele tinha opinies em toda parte...

    Poderiam ter discutido dois dias e duas noites sem chegar a um resultado

    satisfatrio, aquele que Anglica desejava alcanar: devolver ao Cavaleiro de

    Lomnie-Chambord a paz de esprito.

  • Eles giravam em torno do assunto. Ela esperou contudo que esses dilogos

    no tivessem sido inteis. No que lhe dizia respeito, essas discusses com

    Lomnie lhe haviam permitido delimitar melhor, ver de perto, essa

    personagem oculta que, mesmo morta, continuava a presidir seu destino, e

    conclura por uma opinio que a ajudava a manter a cabea fria, pois, mesmo

    nesse novo mito criado em torno dele, ela discernia menos fora e mais

    fraquezas. Com o que ela sabia agora a seu respeito, via essa personagem

    como um prisioneiro de sinistros mandatos, como o carneiro-guia, cuja beleza

    dos cornos retorcidos, sua glria, uma armadilha que causa sua perda

    quando eles se entrelaam nas moitas e no conseguem livrar-se delas.

    O que complicava tudo que ele havia pertencido ordem dos jesutas, uma

    ordem cujo poder no parava de crescer. Formada pela elite de todas as

    naes, era um partido, pela ao enrgica das ideias, das mudanas

    filosficas. Mas tambm, por sua defesa das leis estabelecidas, das

    intervenes divinas, o exercite de Deus, o exrcito de Roma, isto , do papa.

    Cada ordem reli giosa suscitada a cada sculo no havia representado esse

    "parti do" que traduzia o pensamento de sua poca e, podia-se dizer sua cor

    ideolgica? Para o sculo em que Anglica nascera, a ordem mestra era a dos

    jesutas.

    Neles se reuniam as evolues modernas e as recusas essenciais.

    Mas no final das contas, pensando nisso, no tinha certeza de que esse '

    'bastio d'Orgeval fosse um "verdadeiro" jesuta, como seu irmo Raimundo,

    por exemplo. Eles eram muito fortes e matreiros, mas. no to hipcritas e

    intolerantes.

    Ela antes o teria acusado de ter usado sua posio de jesuta como um

    disfarce.

    Via-o como que tecido por velhas razes. Estendia a sombra de antigas

    maldies sobre uma terra virgem, recusando por suas atitudes as correntes do

    futuro que podiam nascer desse Novo Mundo, e todo aquele que se deixasse

    absorver por essa sombra, que se queria ao mesmo tempo insinuante e tutelar,

    perdia sua oportunidade de alcanar a nova luz.

    Tinha sido uma luta entre o que eles traziam, Joffrey e ela, e o que ele

    defendia, num sobressalto de feroz autoridade pessoal.

    Dessas decises, o resto do mundo estava excludo. O que ele queria era a

    nica coisa que tinha o direito de ser preservada, sua vindita, a nica coisa a

    ser aprovada, e sua vingana, a nica a ser executada.

    Vingana contra quem?

    "Contra voc!... Contra voc!...", gritou-lhe uma voz interior. "Mas por qu?

    O que foi que eu fiz?..."

  • Sob a enganosa roupagem de santidade, Sebastio d'Orgeval travava um

    estril combate que s lhe dizia respeito e a seus prprios delrios, atrs do

    qual ela talvez fosse a nica a adivinhar seu orgulho incomentvel e a silhueta

    perniciosa da Diaba. "Ele julga t-la enviado a ns para seu servio... Mas foi

    o contrrio. Era ela que o dominava, que sempre o dominara desde a mais

    tenra infncia..."

    Ela pensou nesta expresso: "tenra infncia".

    E imaginava, com um arrepio, as trs crianas malditas nos va-lezinhos

    florestais do obscuro Dauphin. Tudo era escuro naquela histria.

    Aqueles que D'Orgeval e Ambrsina atraam para suas sendas retrocediam,

    perdiam-se...

    Ser que Lomnie no via isso? Pensou numa frase que cavaleiro de Malta

    pronunciara um dia a respeito de Honorina, a quem acabara de oferecer um

    pequeno arco e flechas.

    "Apreciamos mimar a inocncia. S ela o merece..."

    Tanta delicadeza, tanta finura num homem a enternecera. Hoje isso se

    estiolara, se evaporara. O jesuta estendia sua sombra como a de uma rvore

    venenosa sobre aqueles que ele queria reconquistar e atrair para seu tmulo.

    A poca de inverno de Quebec surgia-lhe como um perodo abenoado por

    amizade e liberdades sorridentes. Apesar de algumas provaes, erros e

    loucuras deste ou daquele, muita coisa boa adviera daquele tempo.

    Ela no estava certa de poder agir sem inabilidade. Ele era um esfolado vivo.

    As mnimas palavras ou aluses impensadas podiam faz-lo oscilar no

    sentido contrrio a