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João Batista de Andrade

Alguma solidão e muitas histórias

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Coleção Aplauso Cinema Brasil

Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

Coordenador Operacionale Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana

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Alguma solidão e muitas histórias(A Trajetória de um Cineasta Brasileiro)

João Batista de AndradeUm cineasta em busca da

urgência e da reflexão

por Maria do Rosário Caetano

São Paulo, 2004

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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Rua da Mooca, 1921 - Mooca03103-902 - São Paulo - SP - BrasilTel.: (0xx11) 6099-9800Fax: (0xx11) 6099-9674www.imprensaoficial.com.bre-mail: [email protected] 0800-123401

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado Caetano, Maria do Rosário

Alguma solidão e muitas histórias: a trajetória de um cineasta brasileiro,ou, João Batista de Andrade: um cineasta em busca da urgência e da reflexão/Maria do Rosário Caetano. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de SãoPaulo, 2004.

432p. : il. – (Coleção Aplauso Cinema Brasil)

ISBN 85.7060.239-1

1. Cinema–História–Brasil 2. Cineastas–Brasil 3. Andrade, João Batista de,– , Biografia I. Título. II. Título: João Batista de Andrade: um cineasta em buscade urgência e da reflexão. III. Série

CDD 791.430981

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907).

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Para meus pais, Fernando e Maria(in memoriam)

João Batista de Andrade

Para Jorge Artur e Guto, meus filhos

Maria do Rosário Caetano

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Introdução

A trajetória de João Batista de Andrade, mineirode Ituiutaba, constitui uma das mais sólidasreferências do cinema paulista e brasileiro. Eletinha 18 anos quando chegou a São Paulo, paraestudar Engenharia na Escola Politécnica da USP.Aos 26, com o média-metragem Liberdade deImprensa, um documentário, tornou-se cineastapor ofício e paixão.

Pela vida a fora, e já se vão 38 anos, Batistadedicou-se com igual entrega ao documentárioe à ficção. Dirigiu onze longas-metragens e umepisódio (O Filho da Televisão) no longa Em CadaCoração Um Punhal. Dirigiu, também, 49 curtase médias-metragens (para cinema e TV). Aliás,manteve com a televisão experiência das maisférteis.

Primeiro na TV Cultura, na companhia docineasta e jornalista Vladimir Herzog e deFernando Pacheco Jordão. Depois, no GloboRepórter (TV Globo), que sob o comando docineasta Paulo Gil Soares, renovou odocumentário televisivo, dando origem agrandes filmes de Eduardo Coutinho, MauriceCapovilla, Walter Lima Jr e, claro, do próprioJoão Batista. Wilsinho Galiléia e O Caso Norte ,

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que ele dirigiu, são hoje marcos da história docinema documental brasileiro.

Batista é homem de muitos instrumentos.Cineasta, professor de cinema (com doutoradona USP, universidade em que defendeu a teseO Povo Fala, publicada pela Editora do Senac) eescritor (dos romances Perdido no Meio da Rua,A Terra do Deus Dará, Um Olé em Deus, Portaldos Sonhos, e da peça teatral, Uma HistóriaFamiliar). O cineasta foi (e continua sendo)incansável agitador cultural. É longa sua folhade serviços prestada a instituições culturais(como a Apaci – Associação Paulista de Cineastas,a Cinemateca Brasileira, o MIS-SP - Museu daImagem e do Som, o FICA - Festival Internacionalde Cinema e Meio-Ambiente, o Icuman -Instituto de Cultura e Meio-Ambiente de Goiás,e o Cinemar - Instituto do Homem, Audiovisuale Meio Ambiente - São Paulo).

Neste longo depoimento, que a Editora daImprensa Oficial de São Paulo agora lança, JoãoBatista de Andrade soma memórias e ricainformação sobre seus filmes. Ao lê-lo, o leitorperceberá que a política é matéria-prima na vidado cineasta. Ele nunca foi vereador, deputadoou senador. Mas fez política, sem descanso,desde a juventude. Sua formação se deu napolitizada Casa da Politécnica, sete andares que

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abrigavam estudantes pobres (materialmente),mas fertilizados por muitos sonhos de mudança.Sendo ficcionista - e dos bons - Batista relembracom riqueza de detalhes sua infância eadolescência em Ituiutaba, cidade do TriânguloMineiro.

Ao avançar na leitura, nos deparamos comfascinante relato de dores da juventude dofuturo cineasta-romancista. Ao perceber - emmarço de 1964 (aos 24 anos) - que os sonhosrevolucionários sonhados na Casa da Politécnicae nas fileiras do Partidão (filiou-se ao PartidoComunista Brasileiro em 1962) se desmancharamno ar, o cineasta entra em transe. Vaga pelasruas como um cão sem dono.

O golpe do Golpe de 64 desnorteará, mas nãoabaterá, em definitivo, o futuro cineasta. Aocontrário. Depois de andar tonto e sem rumopelas ruas de São Paulo - em especial pelascercanias da Boca do Lixo - ele encontrará novoscompanheiros de caminhada. Entre ilusões edesilusões, seguirá firme na militância comu-nista.

Num dos capítulos mais impressionantes de seudepoimento, Batista lembrará sua participaçãono Congresso Estadual do Partidão, em 1967. OCongresso aconteceu cercado de tamanhos

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segredos e mistérios que, só décadas depois,descobriria (surpreso) que nele estavam os ultra-procurados Carlos Marighella (1911-1969) e LuizCarlos Prestes (1898-1990). Dois nomes de pontana hierarquia partidária, que Batista conheciapessoalmente. Pesquisador incansável daHistória brasileira, o cineasta só soube dasilustres presenças na perigosa reunião ao ler umlivro (sobre Marighella) escrito por EmilianoJosé. E mais: soube que o Congresso aconteceraem Campinas. Ele pensava que ocorrera emalgum bairro da imensa cidade de São Paulo.

A política tem espaço nobre neste livro porque- como já registramos - ela é matéria-prima,fonte seminal, do cinema de Batista. “Semprereagi com certa desconfiança quando afirmamque sou um cineasta político”, pondera. Paraadmitir, em seguida, que tem e sempre teve,“desde os tempos de universidade, o veneno dapolítica circulando em minhas veias”.

“Há nessa aproximação com a política”, cons-tata, “um tanto de história pessoal, a origemsocialmente baixa e conflituada pelas amizadescom colegas de famílias poderosas, há o próprioexemplo familiar, com meu pai às voltas com asperdas do passado, a riqueza de meu avô quemeu pai viu escoar pelas mãos finas de minhaavó viúva e incapaz de enfrentar a realidade

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bruta do mundo, longe de sua formação de eli-te”. E mais: “certa sensibilidade social que pos-so encontrar em minha própria infância, o sen-timento de revolta contra injustiças cometidascontra um amigo negro criado como escravo emcasa de meus tios. Há um pouco de tudo isso eacho que a política em mim emerge desse caldoformado por um tanto de revolta e um tantodo sentimento de dificuldade diante dos pro-blemas reais da vida”.

Batista admite que sempre foi “um sonhador”.Desde garoto, viveu “às voltas com problemasimaginários que poderiam estar substituindo osreais problemas de minha família, as dificul-dades econômicas, as privações que não via nascasas de meus amigos abastados. Fui crescendointeriorizado, como um bobo encantado diantede um mundo inexplicável. Uma adolescênciacarregada de dúvidas, de rebeliões juvenis comoo ateísmo, o espiritismo que substituía ocatolicismo de minha mãe, o agnosticismo, omaterialismo, tudo carregado de abstrações,emoções incontroláveis, equações matemáticasque buscavam soluções para tudo, teoremasinventados, sofismas, o álcool - uma crise pro-funda que quase arrasta minha adolescênciapara o nada, para o desastre pessoal, antes daUniversidade”. E pondera: “de certa forma, aUniversidade me possibilitou reencontrar a vida,

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não tanto pela instituição, mas pelo apren-dizado humano, pelo contato com informaçõesculturais mais sofisticadas, pela descoberta dapolítica”.

Sempre a política! Afinal, através da militância,ele aprendeu que “as idéias podem gerar movi-mentos, que a revolta de cada um pode sereconhecer num sentimento mais amplo deinquietação, que minha subjetividade poderiase reconhecer em projetos coletivos, carregadosde verdades consideradas científicas e capazesde mobilizar milhões de pessoas, de mudar ahistória, de realizar o sonho de uma sociedadeigualitária e de plena justiça”.

Batista confessa nunca ter se livrado das“perturbadoras inquietações” de sua juventude,fato que o forçava “a permanente esforço deracionalidade, de encontrar eu mesmo o meucaos interior, um discurso político objetivo,possibilitado pela militância e pelas leituras”. Apermanência dessa perturbação interior - eleacredita - “pode ser percebida pelo retorno deprofundas crises pessoais em vários momentosde desarticulação política, como em 1964, 1968e, mais tarde, com a queda do socialismo real(1989), momentos em que as perdas reais seconfundem com as dificuldades pessoais deenfrentar a vida”.

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Cinema & Política

O leitor desta viagem pela trajetória de JoãoBatista de Andrade (narrada por ele mesmo)encontrará muito de política e muito de cinema.

Ele, que preparou seu olhar cinematográficovendo filmes neo-realistas e obras dos polonesesAndrzej Wajda (Kanal e Cinzas e Diamantes) eJerzy Kavalerowicz (Madre Joana dos Anjos) -somados ao seu cult dos cults (Bandido Giuliano,de Francesco Rosi) - lembra que descobriu ocinema, “como aspirante a cineasta”, justa-mente “no primeiro período politicamentearticulado de minha vida, na Universidade,quando já militava no PCB e era diretor da UEE-SP (União Estadual de Estudantes)”. Mas sódescobriu “a verdadeira face” de seu cinema em1966, quando filmou seu primeiro trabalho solo,o Liberdade de Imprensa.

Ali, naquele ano de 1966, Batista percebeu que“os guias de seu cinema seriam a inquietação, abusca de algo indefinido mas forte, aexacerbação de conflitos, a dificuldade diantedos desafios e das injustiças”. Por baixo dequalquer proposta “racional”, organizada, queele mesmo se propusesse, “ferveria esse caldodominante de minha formação, marca não sóde meus filmes, mas de toda minha vida”.

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O cineasta viveu - e vive - “uma vida, desenhadano feitio de dunas de altos e baixos emocionais,de grandes alegrias e grandes sofrimentos”.Desta vida resulta “um cinema marcado por cer-ta urgência, pela atração por conflitos sociais,pelo desejo de revelar a opressão e as injusti-ças”. E pela “persistência da dificuldade de re-solver os desafios dessas revelações”.

Batista lembra que basta ver em Gamal, Delíriodo Sexo – seu primeiro longa ficcional – “oconflito entre, de um lado, o intelectual em crise,impotente. E, de outro, seu próprio demôniointerior, ostentando sua potência incontrolável.Até a fusão, na morte, morte que apenas realizaos desejos dos que os manipulam”.

Em Doramundo, melhor filme no Festival deGramado de 1978, Batista enfatiza “a pos-sibilidade de consciência do maquinista Pereira(Rolando Boldrin), destruída pela carga deemoção com que ele reage à possibilidade deque sua mulher (Irene Ravache) o tivesse traídocom o operário Raimundo (Antônio Fagundes)”.

Em A Próxima Vítima, que tem as eleições de1982 como pano de fundo, Batista trabalha “aconsciência, a descoberta do mundo dasinjustiças e manipulações vividas pelo repórterDavi (Antônio Fagundes), que não dão ao

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personagem a força necessária para mudar aHistória”.

Em O País dos Tenentes, “a crise pessoal do ex-tenente Gui (Paulo Autran) faz com que eletente parar a história marcada por erros emanipulações”. Em O Cego que Gritava Luz, nosdeparamos com “a impotência de Dimas (TonicoPereira), o velho contador de histórias diantede sua própria história”. Em O Tronco, acom-panhamos “o destino do coletor Vicente Lemes(Ângelo Antônio), cujas idéias carecem de forçasocial para transformar o mundo, fragilidadeque o coloca à mercê da guerra entre osverdadeiramente poderosos”. Ou em Rua 6, SemNúmero, no qual “nos deparamos com aobsessão de Solano (Marco Ricca) que, inquieto,infeliz, na contramão de seu tempo, busca umaoutra história para sua própria vida”.

Depois de avaliar a idéia primeira de cada umde seus filmes, ligados sempre à vertente docinema político (ou social) Batista constata“certa dificuldade, uma certa recusa até!,” emaceitar a definição simplificadora do termocinema político. “Talvez” - propõe - “meusfilmes sejam, apesar da aparência primeira,reflexões sobre a dificuldade da política ou,quem sabe, a de que a consciência, por si só,não é capaz de libertar”.

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“De propósito” – acrescenta – “não citei, entreos filmes de ficção, O Homem que Virou Suco(Medalha de Ouro no Festival de Moscou/1981)”.Não o fez por entender que “este é meu filme-síntese de todo esse auto-retrato, no qual sepode ver a identificação política com a luta sociale a vitória do personagem Deraldo (JoséDumont), intelectual que vence, depois deprocurar e se encontrar com seu sósia (naverdade seu outro lado “pura emoção”, comoem Gamal), o operário Severino (também vividopor José Dumont)”.

Para Batista, em O Homem Que Virou Suco dá-se “o momento de encontro pessoal, de crençana possibilidade de mudanças”.

Maria do Rosário Caetano

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I - 1964: Perdido no Meio da Rua

01. Trajetória de Migrante

“Você ainda acredita? - indaga Lúcia.Acredito em quê?Sei lá, acho que tudo está perdido...Júlio se admira. Ver coisas assim tão gravessaírem assim, de boca tão delicada.Como perdido?(Por que a pergunta se repete assim, como umeco, “perdido”?)Lúcia tranqüila, a mesma humildade.Delicadeza.Todo mundo diz isso, que tudo está perdido.Ninguém segura um golpe...Um vulto cresce rumo aos dois, passacambaleante. Um bêbado. Diz coisas inin-teligíveis, desvia por instantes a tensão maldissimulada da conversa.Tudo perdido?Júlio evita o olhar de Lúcia. Pensava estar tãoforte, decidido, convicto.Ela o acertara em cheio.Ninguém segura um golpe.Quem te disse isso? - as pessoas estão malinformadas...O eco, incômodo. O universo imenso, ribom-bando de perguntas e dúvidas.Todo mundo, Júlio... não há nada organizado.

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nem operários, nem estudantes. Ninguém pre-parado para enfrentar uma situação dessas...Não é verdade, - balbucia Júlio, indefeso.Lúcia ajeita os cabelos, olha-o com pena. Sorri,chega-se a ele amorosa, prendendo sua mão.Júlio em vão tenta afugentar o nevoeiro quevai se instalando em sua cabeça, tomando suavida.Não pode ser. Então estaria tudo desmo-ronando, no fim? O ruído seco da queda feresua imaginação. Tudo caindo. Neiva caindo,André, Lúcia, o futuro. Tudo despencando semreação, pateticamente.E o partido?- não, não pode ser verdade...”

Assim, com um diálogo de dois jovens colandocartazes “subversivos”, começo a falar do golpede 64 em meu romance Perdido no Meio da Rua,publicado pela Editora Global, em 1991. Noromance, revelo um dos elementos maisimportantes de minha formação como cidadãoe como cineasta: a terrível sensação de perda,de derrota em conseqüência do golpe militarde 64. O livro, apesar de ficcional, retrabalhatextos escritos por mim mesmo durante operíodo do golpe: o relato da agrura de seguirvivendo com o sonho perdido. São textosficcionais mas extremamente ligados aos fatose que retratam um jovem ingênuo e idealistacom a alma em frangalhos diante da força e da

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opressão que nada parecia poder segurar. Naverdade, eu nunca me livrei desse sentimentode perda.

É um sentimento que marca, em meus filmes, adificuldade da política (ou, quem sabe, da cons-ciência) diante dos fatos, diante da brutalidadee da manipulação.

Em 1964 eu já havia me iniciado em cinema,desde um ano atrás. E cursava a Escola Poli-técnica de Engenharia, na Universidade de SãoPaulo, matriculado no quinto ( e último) ano docurso de Engenharia de Produção. Muitos meperguntam, até hoje, como é que fui parar numcurso desses, numa das escolas mais conser-vadoras e técnicas da USP, apesar de minhaevidente vocação para as coisas do espírito, afilosofia, a matemática, a literatura e, ainda naescola, o cinema.

É uma longa história, coisa de migrante e deuma época em que as vocações deviam seadaptar ao mercado: podia-se escolher entre sermédico, engenheiro ou advogado. A vocaçãoficaria para o diletantismo, os espaços vagos noexercício da profissão. Me lembro, aqui, dapergunta de meu irmão mais velho quando eudisse, ainda em 63, que faria cinema: “e vaitrabalhar em quê?”. Eu vinha de uma trajetória

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bem de migrante, deixando Ituiutaba, minha ter-ra natal, para fazer o curso científico em Uberaba,na escola do escritor Mário Palmério, isso em 1956,com meus 16 anos. Eu era aluno brilhante, parti-cularmente em Física e Matemática. Os professo-res costumavam me levar para classes mais adi-antadas para esnobar seus alunos, resolvendoproblemas que eles não conseguiam resolver. Es-tudar, essa era realmente a única coisa que eufazia ali, sozinho, vigiado pela disciplina férreade meu irmão mais velho, Geraldo que, para es-tudar Odontologia, trabalhava como bedel daEscola do Mário Palmério.

Nós vínhamos de uma família de classe média,com a mãe professora, tipo leoa e o pai um la-vrador às voltas com seu passado, a falência dafamília com a morte de seu pai quando ele, omais velho dos filhos, tinha apenas 12 anos. Erapois com o minguado salário de professora queminha mãe nos sustentava: éramos seis filhose, pelo desejo inquestionável da leoa, todos de-veriam estudar e progredir na vida. Para issoela lecionava o dia inteiro e ainda cuidava dacasa, lavava roupa, cozinhava de maneiramagistral e fazia as quitandas mineiras como sóela sabia, minha mãe.

Apesar dessa forte presença de “super-mãe”, euainda encontrava espaço para contestar seu ca-

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tolicismo racionalista, tornando-me espírita,atraído pela áurea científica do espiritismo emUberaba.

Eu sofria bastante, morando em pensão, lon-ge de meus amigos de infância e tratado comoum adulto que deveria ser responsável e raci-onal. E com a obrigação de ser o melhor detodos. Na verdade, aos 16 anos eu ainda erauma criança emocionalmente imatura, a sen-sibilidade afogada em tantos deveres, vendoa infância escapar de minhas mãos. Essa insta-bilidade até hoje me afeta, muitas vezes meembargando a voz ou me levando às temíveisreações impensadas e emocionais diante decertos desafios. É um traço de minha persona-lidade e que pode ter várias explicações. Umadelas é que fui, por doze anos, filho caçuladesse casal ao mesmo tempo belo e reversode meu pai emocional - às voltas com as per-das do passado - e minha mãe, pura razão, àsvoltas com a conquista do futuro. Como caçu-la, ainda por cima miúdo, tinha apelidos cari-nhosos, tipo “carneirinho”, etc., e o tratamen-to emotivo de meu pai. Ele, que batia de cin-to em meus irmãos, nunca me endereçou qual-quer gesto de violência (eu cheguei, com 9anos, a fugir dele um dia, correndo pelas ruasde terra de minha cidade, por uma razão fú-til, simulando um medo de apanhar, como que

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buscando uma experiência igual a de colegasmeus, que apanhavam dos pais).

Em 1958 eu deixei Uberaba e fui para BeloHorizonte, morar com outro irmão, o destem-perado e bom Zizinho (Lázaro), numa Repú-blica cuidada por um primo. Eu estava com18 anos e a vida carregada de crises, sempremuito matizadas pela dificuldade adolescen-te de resolver minha vida, de saber o que fa-zer com ela. Nas férias de final de ano, emItuiutaba, eu me apaixonara loucamente poruma garota belíssima, de olhos verdes, comquem mal havia trocado algumas poucas pa-lavras. Era o começo das frustrações amoro-sas, coisa difícil de aprender e que ainda ha-veria de me levar, muitas vezes, quase ao fun-do do poço. Eu nem saberia dizer se aquelesolhos verdes tinham noção da intensidade demeu amor juvenil, paixão que se misturavacom as idealizações filosóficas, ao desejo deequacionar o mundo em algum teorema ma-temático.

E à excitação causada pela descoberta de umlivro do russo Oparin, A Origem da Vida. O livroera um chamado ao materialismo, a análise daformação da vida através do mundo inorgânico,a vida como um processo de evolução damatéria.

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Entre outras coisas citava a experiência de cria-ção de um organismo vivo, um “mosaico” a par-tir de substâncias inorgânicas.

O resultado é que eu vivia na mais atroz instabi-lidade e mesmo no delírio da filosofia pura, en-quanto sofria o amor não correspondido. Mevejo, hoje, como se às portas da loucura em ple-na juventude.

O materialismo de Oparin é absorvido nessasopa, como uma espécie nova de religião, umapossibilidade para meu espírito inquieto que jáhavia abandonado o breve encanto do espi-ritismo “científico” de Uberaba.

É minha fase da bebida: bebia “traçado” ( pingacom vermouth) de cair no chão, na volta dasaulas noturnas do terceiro ano do cursocientífico do Colégio Batista Mineiro. Nessetempo, anos 50, o vício ainda era essa ingênuamistura de filosofia com álcool.

Desligado, assomado por esse sofrimentoadolescente, eu já não era tão bom alunoquanto os próprios professores esperavam demim, frustração que gerava muitas cobrançase, claro, culpa.

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Finalmente, em 59, completando o difícil trajetode migrante, cheguei a São Paulo, o desafiomaior. Eu deveria me preparar para o vestibularde engenharia e, para isso, consegui uma bolsano Curso Anglo-Latino, graças principalmenteao professor Bloch, de matemática e ao que elesconsideravam um bom preparo meu, pessoal. Abolsa foi fundamental, pois eu vivia de umamagra mesada enviada por minha mãe, mesadaque servia apenas para pagar a pensão, nobairro do Paraíso. E nada mais.

Passei no vestibular, com ótima colocação enuma escola, a Politécnica da USP, que era umadas mais procuradas, com milhares de vesti-bulandos para pouco mais de uma centena devagas.

Eu tinha tanta certeza de que seria aprovadoque a emoção foi pouca. No trote improvisadoeu, um pouco tocado pela bebida mas realmentedirigido por uma decisão puramente racional,resolvi reverter o trote, me sujando de tinta eabraçando os veteranos para sujá-los.

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02. O CPOR e o marxismo

Só uma infelicidade pôde colocar em risco osucesso em meu vestibular: o serviço militar. Fuiconvocado ainda no cursinho, me apresentei,tentando uma dispensa mas acabei sendogarfado por essa absurda obrigatoriedade queme fez, justamente às vésperas do vestibular,freqüentar o quartel do CPOR (Centro dePreparação de Oficiais da Reserva), destinadoaos estudantes universitários. Acho que hápouca coisa mais odiável no mundo do que oambiente, a cultura militar.

Afeito ao sofrimento, do tipo que leva tudo asério e odeia ser subjugado, passei dois anosterríveis, já na universidade e tendo que dedicarmeus fins de semana àquelas sessões demasoquismo oficial fardado na Infantaria doCPOR.

Eu atraía a repressão dos oficiais, talvez peloincômodo facilmente identificável em meus ges-tos, olhares, palavras. Eu continuava emocio-nalmente infantil e, como em toda minha vida,combatia essa infantilidade incômoda com umdiscurso racional cada vez mais articulado.

O Capitão Togór, que comandava minha turma,era um tipo rústico, pele muito branca. Era um

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típico militar de evidente origem simples, pou-ca cultura e que se obrigava a uma dedicaçãoreligiosa ao exército que o acolheu e que lhehavia dado tanta autoridade. Era do tipo quese emocionava, engasgando nas palavras, aofalar da bandeira, da pátria, do soldado. Ele logome identificou, no meio daquela massa confor-mada. Eu era o número 215, da turma dos maisbaixos, pois o CPOR gostava de contratar jovensaltos para que brilhassem nos esportes. “Doisquinze” me chamava ele, na sala de aula onde

os oficiais tentavamridiculamente teo-rizar a “ciência mili-tar”.

“Você sabe o que émelancia?” Risosgerais. Eu me en-colhia na cadeira, orosto em fogo, ar-rependido de terfeito não sabia bemo quê de mal navida para merecertal opressão.

Melancia, todos sa-biam, era o cidadãoverde-amarelo por

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fora e vermelho por dentro: um comunista dis-farçado de nacionalista. “Eu quero que, para apróxima aula, você me traga um estudo sobre aestratégia russa na Segunda Guerra Mundial. Eusei que de Rússia você entende bem...”

O incrível - e sinal do nível de alienação de todosaqueles jovens - é que a classe toda ria, se diver-tia às custas de brincadeira tão pesada. Apesarde várias ordens desse tipo, eu nunca levavatrabalho algum e ficava tudo por isso mesmo. Oque o Capitão queria mesmo era me humilhar,me identificar como comunista, coisa que euainda nem beirava ser. Não sei como começouisso, talvez por alguma incontinência verbalminha nesse exato início dos anos sessenta,quando eu nada mais do que nutria uma certaadmiração pelo socialismo e pela românticarevolução cubana.

De certa forma eu me vinguei, no final do curso,já em 1961 ( o curso era de dois anos). Primeirofaltei ao desfile de 7 de Setembro, coisa que osmilitares não podiam aceitar, como se eu, aofaltar, tivesse afrontado a nacionalidade. Naverdade eu afrontava era o espírito de mandoe a cultura da subserviência do meio militar.

Desorientados, sem saber como agir diante detal ofensa, me obrigaram a marchar com o fuzil

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ao ombro, sozinho, o dia inteiro, dando voltasao pátio do odioso quartel enquanto resolviamo que fazer comigo. Não tocaram mais noassunto, felizmente.

O segundo momento de vingança se deu noacampamento final de minha turma, ondefizemos uma verdadeira greve contra ocomando militar.

Todos nós, alunos e oficiais, levávamos, comode costume, bebidas escondidas nas pesadasmochilas. Os mais abonados, e eram muitos, jáque eram todos universitários, levavam garrafasde uísque. Mas os oficiais fizeram uma blitz elevaram todas as nossas garrafas, numa espéciede brincadeira em que faziam um uso infantilde seu poder de chefes e aproveitavam para seproverem de bebidas mais finas do que a queeles podiam levar. Foi o sinal.

No dia seguinte, pela manhã, o acampamentoestava tomado pela revolta incitada, aliás,principalmente pelos donos das boas e carasgarrafas de uísque.

Nós nos recusamos a obedecer o toque derecolher e o de “entrar em forma”, esta-belecendo uma inusitada rebelião. O comandan-te geral, Major não sei o quê, foi chamado e se

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viu obrigado a uma negociação quase homem ahomem procurando retomar as atividades.

“Isso poderia ser caso para fuzilamento” eledizia, com um ar de ofendido. Ninguém deu amenor bola. Meus colegas, que não se mobili-zariam por nenhuma causa política, estavamprontos a defender direito igual para todos,quando o assunto era privilégio. Por fim,conseguindo nos reunir, informalmente, parauma conversa, o Major, emocionado, falandoda pátria, do dever, das qualidades do sersoldado - e quase chorando de tanta emoção -resolveu dizer que tudo seria esquecido a partirdaquele instante, que essa página negra nãoseria registrada nos relatórios, para não“manchar nossa passagem pelo glorioso ExércitoBrasileiro”. E, para mostrar seu senso de justiça,condenou-se a pagar vinte flexões no chão.

Enquanto o Major se jogava ao chão e exercitavaseu ridículo, nós contávamos, em voz alta, emcoro - e rindo - o número de flexões pagas.

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03. O Partidão

Antes mesmo de começarem as aulas, euprocurei um lugar para morar mais perto dafaculdade. A Poli, como era chamada a EscolaPolitécnica da USP, funcionava em três ou quatroprédios quadrados, antigos, no lado norte dacidade de São Paulo, num quarteirão que tinha,do lado esquerdo, a importante Av. Tiradentes.Em frente, o Quartel General da Polícia Militar.E do lado direito, uma Igreja Católica, em cujopáteo costumávamos provocar a ira dos padres,riscando o chão sempre com a mesma frase:“Deus morreu”...

Adequando a procura à magra mesada de minhamãe, acabei morando numa pensão do bairro,de onde eu podia ir a pé para as aulas. A pensão(acho que tinha o nome de N. Sra. das Graças)era de uma família negra: a mãe e suas duasfilhas já moças, gente extremamente simples,nos tratavam como filhos e irmãos, o que com-pensava a precariedade da moradia e a alimen-tação pobre.

Eu já estava acostumado com aquilo, depois demorar em várias pensões em Uberaba, em umarepública em Belo Horizonte e no Hotel (sic)Paraíso, em São Paulo, nos tempos de cursinho.

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O curioso nessa Pensão N. Sra. das Graças é queos pensionistas eram estudantes da Poli e polici-ais militares, já que havia vários quartéis na re-gião e o preço da pensão era compatível comnossas pequenas mesadas de estudantes e tam-bém com os baixos salários desses policiais.

A reserva inicial de nosso relacionamento foi sedesfazendo aos poucos e acabou gerando ami-zades antes impensáveis, já que os militareseram sempre considerados inimigos frontais dosestudantes, principalmente nessa quente décadade sessenta que se iniciava.

Eu soube depois que alguns daqueles policiaistiveram problemas políticos depois de 64,certamente por terem incorporado muitas denossas idéias políticas.

Eu estudava muito, nesses primeiros dois anos deescola, isso me fazia um ótimo aluno. Eu me em-penhava na luta para suprir o que eu descobriraser uma falha, uma espécie de atraso cultural, deberço, em minha formação: eu não conhecia qua-se nada de literatura, nada sabia de teatro e nadade cinema (o cinema era uma das paixões nas-centes desses anos, na juventude brasileira).

Então eu freqüentava, com sofreguidão, os ma-ravilhosos sebos (livraria de livros usados)

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paulistanos, no Lgo. São Francisco e na Pça. daSé. Dessas bibliotecas miseráveis, mas carregadasde cultura, eu levava para casa obras-primas daliteratura brasileira, apesar da falta de dinheiro.Quando eu podia, comprava. Quando nãopodia, surrupiava, mesmo que sem jeito eenvergonhadíssimo.

Um colega meu tinha um livro grosso de Enge-nharia preparado para esse tipo de ação: o livrotinha só o exterior, cortado por dentro com raraeficiência, transformando-se numa verdadeiramaleta onde podíamos acomodar um ou doislivros.

De uma maneira ou de outra eu levava tudoo que podia encontrar de Graciliano Ramos,Mário de Andrade, Guimarães Rosa, osurrealista Campos de Carvalho de A Vaca deNariz Sutil, Carlos Drummond, o Lima Barretomaravilhoso de Policarpo Quaresma e tantosoutras novidades nessa fase de tardia forma-ção cultural.

Dos estrangeiros, a aprendida paixão porThomas Mann, Balzac, Proust, Scott Fritzgerald,Hemingway, Tolstoi e os preferidos, Sthendal eDostoievski, com quem guardo ainda hoje umaemotiva identificação, talvez pela paixão comque os dois trataram a incomodatícia subser-

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viência humana e a luta desesperada de as-censão social em personagens como Julien Sorel(O Vermelho e o Negro) e Raskolnikof (Crime eCastigo).

Em Raskolnikof, de Crime e Castigo, o fosso peri-goso para as consciências individuais em buscade saída numa sociedade que primava pela faltade oportunidades para os jovens de classessubalternas.

Em Julien Sorel, a trajetória sofrida de um jovemda baixa sociedade que tudo faz, inclusivetornando-se a cada dia mais informado e culto,para ser aceito pela elite de seu tempo,trajetória de sucesso impossível: quanto maistenta ser aceito, mais será rejeitado e mais pertoestará de seu fim trágico e previsível.

Atendendo a uma vocação até ali não revelada,comecei a escrever. Em boa parte sob a forteemoção da leitura desses autores descobertostardiamente.

Escrevia o tempo todo: poesias, novelas, contose romances. Os textos iam se acumulando emcadernos, folhas soltas, pacotes guardados nofundo do armário, na falta de qualquerorientação e de qualquer senso crítico a respeitode seus valores literários.

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Eram textos que falavam, na verdade, de mimmesmo, personagens de ficção que em nadaescondiam os nós de minha própria vida comoum ser extremamente solitário, às voltas comuma indomável subjetividade e com uma sofridadificuldade de exteriorizar o que eu realmentesentia.

Só no segundo semestre de 62, já morando nacasa do estudante (Casa do Politécnico), é quecomecei a publicar meus textos num jornalzinhoda “escola literária” de que fui um dos criadores,a Escola Písico-Realista. Os textos, em geral emforma de contos, exibiam a busca de algumaracionalidade e consciência em meio à loucurade uma casa de estudantes pobres, vivendolonge de casa e num momento de rápidapolitização não só dos estudantes mas de todaa sociedade.

Na Pensão N. Sra. das Graças morava um estu-dante já veterano, Mário Grosbaum (o Marião),que foi meu primeiro amigo, na pensão e naPoli. Do tipo grandão, daí o apelido, o louroMarião era sempre bem-humorado e dono deironias finas que costumava destilar muitas vezescontra meu mau humor (marca registrada) emesmo contra certa tendência minha de ela-borar teorias altamente racionalizadas que, nofundo, escondiam emoções incontroláveis,

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também marca pessoal registrada. Sua ironiaajudava a desmontar a farsa ou o rancor. E abriacaminho para diálogos positivos, saudáveis. É umamigo de quem tenho muita saudade, que mefez muito bem. Uma pena que, ainda jovem,tenha ido embora, vitimado por um fulminanteataque cardíaco enquanto jogava seu esportefavorito (que era o meu também): o basquete.

Pois bem, o Marião não me perdeu de vista. E,puxando conversa, foi percebendo minhas ten-dências críticas: a visão materialista ainda maisque verde, a rebeldia, a paixão com que eu meenvolvia em discussões filosóficas e políticas bempróprias desse período. Ele logo me colocou numjogral, onde a gente recitava coisas tipo:

“Hoje é sábado, amanhã é domingoNão há nada como tempo para passarOs bondes andam em cima dos trilhosE Nosso senhor Jesus CristoMorreu na cruz para nos salvar.”

Grande Vinicius de Morais. E a gente se esforça-va, feito bons colegiais, um tanto crescidosdemais...

Eu já estava no segundo ano de escola, no final61, quando Marião (Mário Grosbaun) me convi-dou para entrar para a célula do Partido (ou

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Partidão, como era conhecido o Partido Co-munista Brasileiro) na Poli. O PCB, apesar de serclandestino, tinha uma atuação bem aberta en-tre os estudantes e, até aquele momento, exer-cia uma franca hegemonia no movimento uni-versitário. Contracenava com organizações ca-tólicas, como a JUC (Juventude Universitária Ca-tólica) e os chamados independentes, o“Grupão” que era sempre acusado, não sem umaboa dose de razão, de ser “linha auxiliar” doPartidão.

Antes do convite do Marião, eu já haviaparticipado da minha primeira ação políticaestudantil em 1961, nas passeatas e nas mani-festações contra o golpe que se armara com arenúncia do Presidente Jânio Quadros. Os mili-tares não aceitavam a posse do Vice-PresidenteJoão Goulart (Jango), considerado um perigosopró-comunista por causa de suas ligações comos sindicatos, criados por seu padrinho e chefepolítico, o já falecido Getúlio Vargas.

Foi um momento importante de minhaformação e, na verdade, da formação de todaminha geração. Ali explodia, com grande visibi-lidade, o conflito básico entre um projetodemocrático e popular de governo e sociedadecontra o tradicional golpismo militar, golpismoque sempre foi apoiado pelos imensos interes-

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ses norte-americanos no Brasil, nessa época de guer-ra fria. O movimento estudantil, nas ruas, de-fendendo a democracia, exigindo a posse le-gítima do vice-presidente eleito (que àquelaépoca era votado independentemente docandi-dato a presidente) - essa paisagem novanas grandes cidades marcava o início de umturbulento e rico período de participação es-tudantil, participação que cresceria, e muito,até o golpe de estado em 64 e que, depois dese retrair por dois anos, renasceria, de formatrá-gica, na luta contra a ditadura militar. Na-quele momento, velhas e novas denúncias denosso subdesenvolvimento, do arcaísmo daestrutura agrária, do elitismo da universida-de, passaram a ganhar as ruas e a repercutirna opinião pública.

Inflados pelo desenvolvimentismo dos anoscinqüenta, com a entrada do capital estrangeiroe pelo sonho de modernização, os setoresmédios da sociedade brasileira assumembandeiras públicas importantes, principalmenteatravés do grito dos estudantes. O Brasil arcaico,rural, dos velhos coronéis e suas oligarquias, dosjeca-tatus, tudo isso ofendia a esperança defuturo da juventude e merecia nosso repúdio.

Um repúdio à imagem do atraso e às forçasconservadoras que preferiam esse atraso à

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modernização dominada por novas forças soci-ais. O movimento estudantil entra de vez natrajetória da revolução brasileira, desenhando,pouco a pouco, o cenário de um país liberto,democrático, moderno e justo e, quem sabe,socialista.

É dessa época a eclosão de outro momentoimportante desse processo de conscientizaçãodo movimento estudantil: o da luta pelademocratização da universidade, denunciadacomo discriminadora, elitista, responsável pelaexclusão de milhões de brasileiros do mercadode trabalho e do acesso ao saber.

A luta pela democratização incluía o ineditismodemocrático da reivindicação de participar, comum terço dos representantes, nas congregaçõese conselhos universitários, órgãos extremamenteconservadores das universidades. Daí o nome de“Greve do 1/3” a esse movimento responsávelpela revelação de inúmeras lideranças, princi-palmente católicas. Desde esses movimentos, eranítida a ascensão de uma nova força católica,em parte advinda da conservadora JUC e emparte formada por quadros novos, tipo Wander(Wander Miranda Camargo, ex-presidente doGrêmio da Poli) e José Serra, meus colegas deFaculdade e que se tornaram dois dos mais ex-pressivos líderes estudantis da época.

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O Wander era um tipo de grande carisma, gran-dalhão, mais para o gordo e com uma liderançaimpressionante, capaz de discursos poéticos earrebatadores. Vinha das bases cristãs do movi-mento estudantil e pintava como o grande liderestudantil, com apoio de massa. Mas com acriação e crescimento rápido da AP (AçãoPopular), seu nome foi ficando para trás diantedo ascensão incrível de outro tipo de líder, oJosé Serra, mais articulador e que soube secolocar no topo da ascendente pirâmide de seunovo grupo político.

A AP (Ação Popular), de que um dos principaislíderes era justamente o José Serra, era uma dasfacetas das mudanças ideológicas ocorridas naaté então acomodada e reacionária IgrejaCatólica Brasileira, reacionarismo dominanteque ainda renderia, alguns anos mais tarde,pecados históricos do tamanho das Marchas comDeus, a Família e a Propriedade com ideais dareacionária TFP (organização paralela anti-comunista). O crescimento inflado da APprovocou uma disputa intensa com o Partidão,pela hegemonia do movimento estudantil.

O Partido vivia uma fase de acomodação muitogrande e nós todos, os militantes, víamos comuma boa dose de auto-suficiência essa eclosãode valores novos em nosso meio.

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Ridicularizávamos as tentativas de aproximaçãoao marxismo através de álibis tipo “pólo-domi-nante”, “pólo-dominado” escapando ao concei-to aberto de luta de classes.

Ridicularizávamos muito uma suposta “carolice”dessas novas lideranças, como na paródia provo-cativa da música Só danço o Samba: “Só leioMarx / Só leio Marx / ai ai ai ai ai / Já li a Bíbliaaté demais / Me cansei / Do tal de São Tomás...”

A verdade é que nós, os comunistas, fomos aospoucos sendo engolidos por essa nova onda quevinha como agregada e vanguarda mesmo dastransformações progressistas da Igreja católicano Brasil. Eu não posso me esquecer do JoséSerra, de assembléia em assembléia, na “Grevedo 1/3” lendo estatísticas da miséria brasileira.Era sempre aplaudido e seu nome ia crescendoproporcionalmente à sua imensa capacidade dearticulação em meio a essa nova liderança cristã.

O que aconteceu foi que em pouco tempo essemovimento empalmou a UEE (União Estadualde Estudantes) de São Paulo, justamente comJosé Serra na presidência. O Partido, apesar dertudo, pregava sempre a união e conformou-secom uma composição a menor, com dois dosnossos na diretoria presidida pelo José Serra. Umdos nossos era o estudante de arquitetura

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Raimundo Pascoal. O outro era justamente eu,indicado pelo então responsável pelo Partidopara a política estudantil, o Arnaldo Madeira.Assim, eu tive a oportunidade de conviver ali,com pesos pesados, além do próprio José Serra:Sergio Motta (futuro Ministro das Comuni-cações), o Egydio Bianchi (futuro presidente dosCorreios), Walter Barelli (depois, Ministro doTrabalho do Governo Sarney) e o Arnaldo Ma-deira, futuro deputado e líder do Governo FHCna Câmara dos Deputados.

Eu costumo receber com pouca surpresa as coisasboas ou ruins que me acontecem, como se, nofundo, eu já as esperasse.

E foi o que aconteceu quando recebi o convitepara ingressar no PCB. Na verdade eu pouco sa-bia de política e quase nada do Partidão comsuas reuniões clandestinas. Reuniões nas quaisa alegre presença do Marião aliviava as tensões.Com seu costumeiro bom humor, ele ironizavao excesso de objetividade “científica” usual emreuniões desse tipo.

Eu nunca me acostumei, de fato, com a buro-crática ordem das reuniões que, como numaespécie de culto, começavam sempre com asfamosas análises da conjuntura internacional,onde se dizia sempre que o capitalismo estava

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em crise e que já não faltava muito para que asmassas populares assomassem ao poder.

“O socialismo avança”, diziam sempre asanálises trazidas apelo “assistente”, o dirigentede um organismo superior que vinha participardas reuniões de base. No Brasil, também asmassas populares estariam avançando rumo aum regime “Nacionalista e Democrático”, decunho anti-imperialista e anti-latifundiário. Pelareforma agrária, pela reforma universitária, pelareforma urbana, pela lei de remessa de lucros,etc. Para isso era preciso alcançar uma amplafrente “nacionalista e democrática”, envolvendoo operariado, os camponeses, os intelectuais, osestudantes e os setores progressistas da entãochamada “burguesia nacional”.

Minha ascensão na estrutura do Partido foi rápi-da demais. Em pouco tempo eu estava na UEEe fazendo parte, junto com o Arnaldo Madeirado órgão de direção estadual do PCB na áreaestudantil.

Essa ascensão política, claro, tinha a ver comminha dedicação, minha relativa capacidadeteórica. Mas acho que tinha mais a ver comminha obstinação tradicional, que me leva apeitar quase que cegamente certos desafiosdesde que assumidos como compromissos.

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Eu estava longe de ser um bom político, um bomarticulador. Em 1963 eu acompanhei o José Ser-ra, ainda presidente da UEE-SP numa reuniãofundamental para sua campanha para apresidência da UNE: a reunião de presidentesde UEE em Vitória, no Espírito Santo. Eu ia emnome do Partido (SP) e era tímido, comdificuldade de articular, coisa que o José Serrafazia com maestria.

Eu era um sonhador, passava as reuniões dis-farçadamente escrevendo histórias. Mas muitasvezes tive que cumprir incômodos deveres decasa, como no episódio em que fui interventorna “base” do Partido na Faculdade de Filosofiada USP.

A Filosofia era a escola mais politizada de SãoPaulo e ali o embate ideológico era permanentee agudo, principalmente pela formação daPolop (Política Operária) de que faziam parte,entre outros, os irmãos Éder e Emir Sáder.

A Polop tinha uma grande capacidade teórica,publicava boletins com análises sofisticadas ebem mais radicais do que os textos do PCB. OPCB era, aliás, seu alvo número um. Pois bem,os comunistas da Filosofia eram sempre maisradicais, mais rebeldes e passaram a contestar adireção estadual.

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Eu fui designado para a intervenção, já que al-gumas vezes eu fizera a assistência das reuniõesdessa base. Confesso que foi uma coisa terrível,a sensação de que me colocavam diante de umdesafio maior do que eu podia enfrentar. Eu meesforcei, tive que coordenar a reunião e rebatertanto as críticas à direção política quanto aosquestionamentos teóricos. Ainda hoje relembroessa reunião como um pesadelo.

A verdade é que o preparo intelectual dos mi-litantes do PCB era muito baixo. E isso propi-ciava a multiplicação de organizações queavançavam sobre o terreno que julgávamosnossos. Na verdade o PCB era, naquele momen-to, uma espécie de representante oficial dofuturo, com carteirinha e tudo. E o que os ou-tros grupos faziam era, a cada dia mais desde-nhar dessa carteirinha oficial que nada maisgarantia.

Claro que a direção do PCB se preocupava comisso, mas essa preocupação mais atrapalhava doque resolvia. Burocrática, formada por funcio-nários públicos, operários do setor de serviços evelhos burocratas assalariados, o ComitêEstadual do PCB paulista nos obrigava a devoraras cartilhas soviéticas tipo Nikitin e o famosolivro verde, o Verdão, que era o supra sumo doesquematismo e do fatalismo histórico.

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Eu mesmo, como já era dirigente, fui obrigadoa freqüentar um curso na sede do Comitê Muni-cipal de São Paulo. O curso era ministrado poraqueles velhos e surrados burocratas para quemaquelas cartilhas eram o máximo em filosofia eteoria política. Esses burocratas, de origem hu-milde, se sentiam um pouco vingados e um tan-to orgulhosos de poderem dar lições de marxis-mo para jovens intelectuais como eu e outrosinfelizes. Em benefício próprio, cultivavam omito de que o povo é que sabe tudo, os intelec-tuais não sabem de nada.

Tentei abordar essa questão num projeto defilme, em 1981, Os Demônios, um roteiro queescrevemos juntos, eu e meu então amigo LauroCésar Muniz.

Na história, um líder de esquerda, intelectual,volta do exílio em 79 e vê que está completa-mente ultrapassado pela história brasileira. Seusliderados, de um grupo de esquerda, no entan-to, não querem saber de revisão crítica,absolutamente confiantes em suas teorias eprogramas para a “revolução brasileira”.

O personagem, que Othon Bastos teria feitomaravilhosamente bem, é obrigado a ouvirlições teóricas de operários e camponeses,militantes de fala empostada, enjoada, ditando

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regras do marxismo e da política e, como numrevertido exercício de poder, obrigando um in-telectual a ouvir a impostura de uma supostapalavra do povo.

O filme, infelizmente foi proibido antes de serfilmado, como ainda veremos.

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05. A política e o cinema

Bom, o cinema.

O cinema esteve sempre em minha vida. Naminha e, talvez, na da maioria dos jovens deminha geração. Não serei cabotino de ficar aquiligando o amor infantil ao cinema, o prazerimenso de assistir àquela magia no escurinho,nada disso, a uma pretensa vocação. E nem mes-mo às experiências, tão comuns, de tentar fazer‘cineminha” recortando figurinhas, furandocaixas de sapato e colocando velas para aprojeção, coisas que eu fazia com meus primos,para deleite de meu tio predileto, o Chiquito(Francisco Krüger), morto depois na maisextrema solidão, auto-exilado no interior de Ma-to Grosso (trajetória que eu mesmo segui depois,me auto-exilando por quase cinco anos, emGoiás e Mato Grosso, após o plano Collor,responsável pela inviabilização de meu filmesobre o Vlado).

Na adolescência, me lembro com prazer de doistipos de filmes, assistidos no cinema de minhacidade (Ituiutaba-MG): os seriados e as chan-chadas, com gente engraçada tipo Oscarito eGrande Otelo, mas principalmente com aspernas da Eliana Macedo enchendo a tela eminha imaginação.

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Dos seriados, me lembro de um protagonizadopor personagem que, se não me falha a memó-ria, se chamava Clyde Beaty. Era A Deusa de Joba,com homens voadores que o domador Clydematava ao espremer suas cabeças de andróides.O problema maior desses seriados (Fu-manchu,O Príncipe Submarino, etc) era o final dos capí-tulos, nos quais o herói ou a chata da namo-rada dele se via em perigo terrível e a gentetinha que esperar uma semana para, no domin-go seguinte, ver que o herói sempre se salva,sempre ganha, lição que fui desmontando emtoda minha vida, invadido pela dura e cruelrealidade social e política do Terceiro Mundo.

Só fui me interessar pelo cinema, como exercíciocriativo, depois de minha vinda para São Paulo,já na Universidade. Ali, início de 1963, em meioao imenso burburinho político, eu fui relegandoos estudos a um segundo plano, o que me doíabastante, alimentava uma culpa muito grande.Eu sabia do sacrifício de minha mãe ao mandarminha mesada, sabia do quanto significava paraela essa minha trajetória de bom estudante,universitário, cursando uma das mais cobiçadase famosas escolas do país.

Eu fazia parte de seu esforço em superar asdificuldades de sua própria origem, de ascendersocial e culturalmente. No entanto eu mais fazia

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política do que estudava. O apelo à justificativamessiânica não me ajudava muito. Dizer que eufazia aquilo em nome da Revolução pegava mal,eu não tinha coragem de dizer aquilo nem paramim mesmo.

E, para agravar as coisas, eu não fazia só política.A Poli, apesar de sua fama de reacionária, era aescola em que os estudantes mais se orga-nizavam em todos os setores: esporte, teatro,cinema. Nós tínhamos o Grêmio Politécnico, maso centro de todo o ativismo era a Casa doPolitécnico, para onde eu me mudei no iníciode 62, já militante do PCB.

Ali, com alguns colegas, fizemos o jornal literáriode nossa “escola literária písico realista”. ComFrancisco Ramalho Jr, futuro diretor e produtorde cinema, trabalhei como colaborador do jornaldo Grêmio, de que o Ramalho era editor: OPolitécnico, jornal que passou mesmo a ser co-nhecido como “o jornal vermelho”, entre osestudantes. Primeiro porque a gente conseguiauma inusitada regularidade de edições do jornale também um nível alto de debate político ecultural. O Politécnico chegou mesmo a ser dis-tribuído em banca de jornais.

E foi também através do Ramalho que eu meaproximei do cinema. O Ramalho tinha iniciado

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um grupo de cinema, de que já faziam parte,além dele, o José Américo Vianna (Batataes) e oClóvis Bueno. O primeiro, depois seguiu sua car-reira como engenheiro e Clóvis tornou-se umdos principais diretores de arte do cinemabrasileiro (além de co-diretor de Cafundó, comPaulo Betti/2004).

Esse grupo inicial tinha filmado, em super 8,uma história do próprio Ramalho, Menina Moça,que era estrelado pelo saudoso Antônio Bene-tazzo, anos mais tarde assassinado pelosmilitares como um dos líderes da ALN. Depoisdisso, já com minha participação, adquirimosuma câmera Paillard 16 mm, de corda e criamoso Grupo Kuatro de Cinema.

O nome Kuatro vinha da influência do cinemapolonês nesse nosso início de carreira. Os polo-neses Andrzej Wajda e Jerzy Kavalerowicztinham uma produtora chamada KADR cujonome aparecia, na abertura dos letreiros de seusfilmes, com o som duro de uma máquina deescrever ( coisa que nos influenciaria ainda, maistarde, quando em 68 eu e Ramalho criamos aTecla).

Nós começamos a filmar, nesse ano de 1963, doisprojetos quase que consecutivamente: umdocumentário sobre os catadores do lixão pau-

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lista e outro sobre o TPN - Teatro Popular Nacio-nal, criado pela Ruth Escobar e que apresentavaespetáculos de teatro numa estrutura ambulan-te montada numa “jamanta” (caminhão decarroceria tipo baú, muito grande).

Nós filmamos muita coisa do lixão, mas nãotínhamos muita noção de estrutura. O materialse acumulava, um pouco sem destino. O filmeficou inacabado, destruído na sede da UEEdepois da invasão promovida pelo CCC, oComando de Caça aos Comunistas, durante ogolpe militar. O filme era financiado por umapessoa muito especial: a Assunção Hernandes,em nome do Movimento de Cultura Popular, daUEE de São Paulo.

Quanto ao filme da Ruth Escobar, esse tambémficou inacabado. A Ruth patrocinava o filme, queserviria para ela procurar apoios financeiros parao projeto. Nós fomos filmando e ela ia pagando,devagar. E a gente ia continuando, seguindo a“jamanta” pelos bairros e nos divertindo comas palhaçadas e piadas do ator Ari Toledo, noAuto do Novilho Roubado, de Ariano Suassuna.

Tendo um material mínimo para uma primeiraedição, montamos o filme. A Ruth marcou entãoum dia para que mostrássemos o filme em suacasa: ali estariam várias autoridades (falava-se

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de Jânio, Faria Lima e outros pesos pesados). Ofilme chegou a ser exibido, numa improvisadabanda dupla com projetor e gravador.

E nós não conseguimos mais finalizar o filme. Ocopião montado ainda foi visto por gente comoo Jean-Claude Bernardet, que já era uma de nos-sas referências cinematográficas em São Paulo.Mas depois, com o abandono do projeto, o ma-terial foi literalmente mastigado pelas pequenasfilhas do Ramalho (que se casou cedo, aindaestudante, com a professora de história da arte,Mary Enice Ramalho de Mendonça - 1937/2003).

Nesse início, é claro, nós carregávamos muitasinfluências em nossos projetos. Uma delas eu jádisse, a do cinema polonês, um cinema pesado,crítico, carregado de sombras e indagações,como Kanal (1957) e Cinzas e Diamantes (1958),do Wajda, e filmes feitos com muita plasticidade,beleza, usando muito o corte, como em MadreJoana dos Anjos (1961), do Kavalerowicz.

Era um cinema denso, que fazia mais o meugosto pessoal, em contrapartida com outraspropostas que eu julgava mais “light”. Outrainfluência clara, não tanto em termos estéticos,mas em termos de formas de produção, foi aNouvelle-Vague com o delicioso Julles et Jim(1961), de François Truffaut, e O Acossado

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(1959), de Godard. No entanto, para mim, nesseinício de carreira, foi importante a influência deum cineasta latino-americano, o documentaristaFernando Birri, que conhecemos em São Paulo(publicamos em nossa revista de cinema Cader-nos da Poli uma entrevista com ele, feita peloRamalho). Nós tivemos notícia dele através dedois amigos: o jornalista e cineasta MauriceCapovilla e o jornalista Vladimir Herzog (1937/1975), o Vlado, com quem eu trabalharia maistarde, no início dos anos setenta, até sua trágicamorte.

Birri havia criado uma escola de cinema emSanta Fé, na Argentina, escola que eu visitei maistarde, em 1966, antes da montagem de meuprimeiro filme, o Liberdade de Imprensa. Oprojeto de Birri, um cinema que ele chamavade Cine-encuesta, ou Cine-pesquisa, de cunhoclaramente político-social, gerou filmes encan-tadores, como Tire-Dié (1958), filmado, com alu-nos de sua escola, com personagens e fatos liga-dos aos favelados argentinos, e Los Inundados(1961).

A proposta de Birri, que conhecemos antes daproposta do “Cinema Verité”, do Jean Rouch,requeria depoimentos diretos e um mergulhopoético na vida desses personagens, trazendodeles toda a beleza interior de suas vidas em con-

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traste com a paisagem miserável de sua reali-dade social. Era uma proposta política para ocinema, e uma proposta latino-americana. Co-mo não se envolver com ela?

É preciso não esquecer o cinema italiano, o Neo-Realismo. Eu, particularmente, sempre me ligueiàs propostas mais politizadas, um cinema comoo de Visconti (1906-1976), do Francesco Rosi. Des-se último, especialmente o filme O BandidoGiuliano (1962), que despertou curiosidade ge-ral no cinema brasileiro e, em mim, uma quaseobsessão. Eu sabia o filme de cor e salteado.Nessa época nós faziamos cineclubismo, pro-gra-mando filmes para a Faculdade de Filosofia, Fa-culdade de Arquitetura, Medicina, etc. Eu mes-mo programava muitas vezes, escolhia os filmes,imprimia alguns textos, exibia e depois promo-via debates. O filme mais exibido, claro, foi OBandido Giuliano.

O Bandido... retrata a questão da máfia na Itá-lia, seguindo a vida e a morte do bandidoGiuliano, suas ligações com o povo, a polícia, asinstituições políticas. E tudo isso num tom docu-mental altamente elaborado, usando atores nãoprofissionais para reconstituições. E filmado comuma plasticidade e uma força dramática impres-sionantes.

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Na verdade, o filme parecia tudo o que nós to-dos, do cinema brasileiro, queríamos fazer. Aliás,um outro filme, agora japonês, O Túmulo do Sol(1960), de Nagisa Oshima (que depois filmou oexplosivo O Império dos Sentidos - 1976), tam-bém nos influenciou bastante. Com seusprimeiríssimos planos de jovens e miseráveis,contrastando com os planos gerais da misériasocial e os sonhos imperialistas do Japão, o filmeimpressionou tanto que Alex Viany deu ao seunovo filme o título de Sol Sobre a Lama. Dizemque O Túmulo do Sol teria influenciado, tantoquanto O Bandido..., o cinema de Glauber.

Eu tinha um cartaz desse filme-paixão, O Túmulodo Sol, um cartaz maravilhoso, não sei onde foiparar.

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06. A alma em frangalhos

É difícil imaginar em minha vida, momento tãomarcante, tão sofrido, quanto o do golpe de 64.Dois outros momentos podem ser comparados.Um deles, ainda na infância, em 1950.

Em 1950, com meus 10 anos, eu era um torcedorfanático do Vasco e fã número 1 de seu atacante,o goleador Ademir Menezes, o Queixada, ape-lido que recebeu por causa do queixo proe-minente.

Eu conheci o Ademir, pessoalmente, numa ruade Belo Horizonte. Minha mãe (a professoraMaria Moraes), na luta para aumentar seusalário de professora, fazia um curso de espe-cialização em Belo Horizonte. Nós morávamosem pensão e eu estudava no Colégio deAplicação, pioneiro numa educação de van-guarda que depois só vim a conhecer com aeducação de meus próprios filhos. Nessa épocaeu estava com 9 a 10 anos e, como minha mãenão tinha tempo para me vigiar, eu fazia misé-rias naquela pequena Belo Horizonte que euconhecia feito a palma de minha mão, andandode bonde aberto sem pagar pois era capeta osuficiente para saltar do bonde andando,fugindo do cobrador e pegar de novo o mesmobonde mais atrás.

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Cheguei até mesmo a fazer parte de uma qua-drilha de moleques de classe média. O maiorfeito de nossa quadrilha foi entrar num grupoescolar, bater o sino, soltar umas bombinhas esair correndo para que a polícia não nospegasse... Bons tempos.

Pois nessa época minha mãe me presenteou comuma chance difícil para um interiorano como eu,conhecer pessoalmente o maior ídolo do futeboldo momento, o vascaíno Ademir Menezes, tam-bém atacante da seleção brasileira na copa de50. O Queixada ainda conversou comigo e pas-sou a mão em meu cabelo armado de brilhan-tina.

O fato de ser vascaíno e de conhecer Ademirme fazia ainda mais fanático pela copa de 50 eo mais seguro de nossa vitória.

Pois bem, no dia do jogo final da Copa de 50,eu já estava em Ituiutaba, na fazenda de umtio. Sem comunicação alguma, sem rádio,levantei-me bem cedo, tomei o leite de curral epeguei a estradinha da fazenda, caminhandoquase duas léguas (doze quilômetros) até aestrada principal, onde, duas ou três vezes porsemana, passava o caminhão “cremeiro”, dolaticínio “Fazendeira”, de Ituiutaba.

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O caminhão era peça fundamental de comu-nicação naqueles ermos, passando de fazendaem fazenda, levando e pegando encomendas,transmitindo recados, levando e trazendo cartase pegando o creme de leite, extraído do leiteatravés das curiosas desnatadeiras, cujas mani-velas eu tanto ajudei a tocar (o operador temque ir aumentando a velocidade da manivela,de início bem pesada, escutando o som de umacampainha até que ela deixasse de apresentarum som agudo e soasse abafada. A partir daíera só manter a velocidade, ajudada pela inérciade um pesado disco dentro da geringonça. Deum lado, saía o jorro grosso do soro, que só eraservido aos porcos. Do outro o fiapo amarelodo creme do leite).

Chegando à estrada, sozinho, pensando noperigo de onça, esperei ainda mais de uma hora,o coração agoniado, a ânsia em saber o resul-tado do famoso jogo Brasil x Uruguai. Minhatorcida tinha a dupla mão da torcida comobrasileiro e como vascaíno, já que o time do Vas-co era a base da Seleção Brasileira, com Ademire tudo.

Lá veio o caminhão, que eu divisei de longe, ocoração aos pulos. Eu tinha certeza, éramoscampeões, só faltava confirmar isso com omotorista e, depois, voltar correndo pela

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estrada, aos pulos de alegria e contaminar todaa gente da fazenda com essa felicidade. Fiz si-nal, o caminhão parou.

O motorista era um tipo ainda jovem, muito altoe magro, as costas já um pouco encurvadas paraa frente. Mal ele desceu fiz a pergunta fatídica.“E o jogo, como é que foi o jogo? Deus do céu.Como esquecer? O rapaz me olhou tristonho,fez um silêncio de alguns segundos que mepesaram como séculos. “Perdemo”, murmurouele.

Claro, hoje eu sei quantos milhões de brasileirospassaram por isso, quantos não têm uma históriaassim para contar. Mas ali o que contava eraeu, meu sofrimento. Eu não pensava em maisnada, o peito esmagado por tal fatalidade tãobem filmada depois pelo Jorge Furtado & AnaLuíza Azevedo, em Barbosa (1988).

A sensação de derrota é avassaladora, aindamais quando é impossível revertê-la, quando na-da do que você sabe ou quer poderá mudar oresultado da história. Eu, que era fanático peloVasco, nunca mais torci para um time de futebol.Tanto que, até hoje, de futebol eu só sei aescalação do Vasco até aquele dia: Barbosa,Augusto e Wilson / Eli, Danilo e Jorge /Tesourinha, Maneco, Ademir, Ipojucan e Chico.

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Dois outros momentos, um catorze anos depoise outro, vinte e cinco anos depois, em 75, conse-guiram ser mais dolorosos do que essa dor in-fantil por uma derrota: o primeiro, o golpe de64; o segundo a insuportável morte de meuamigo Vlado.

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07. O golpe de 64

Em 1964, catorze anos após a decepção da Copade 50, eu estava com 24 anos e ainda não pas-sava, emocionalmente, de um garoto, emboraa razão circulasse pelas teorias políticas, pelomarxismo, pela cultura universal, a literatura, ocinema. E embora esse garoto estivesse mer-gulhado até o pescoço numa perigosa briga degente grande.

A crise brasileira só se agravara, desde a renúnciade Jânio Quadros e a posse de Jango, garantidapelo movimento popular contra o golpe. A possede Jango alimentou o espírito de luta, pareciafinalmente possível deter os militares, impedirum golpe. Por todo lado se multiplicam as açõese organizações de todos os matizes de esquerda.No nordeste, lideranças carismáticas e mode-radas, como Miguel Arraes, ou então revolu-cionárias como o comunista Gregório Bezerra eradicais, como o advogado Francisco Julião esuas ligas camponesas. No sul, o arqui-inimigodos militares, Leonel Brizola, um dos principaisresponsáveis pela posse do cunhado JangoGoulart. Nos dois maiores centros, Rio e SãoPaulo, o movimento operário também seorganizava rapidamente, embora com poucaconsciência de classe, muitas vezes manipuladospelo sindicalismo pelego, herança de Getúlio

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Vargas e, agora, a serviço do novo presidenteda República, que usava e abusava dessa liga-ção, manipulando greves nas empresas estatais.

O país inteiro respirava esse confuso processode politização no qual a palavra “revolução” setornava uma irresponsabilidade, uma ilusãocotidiana, e a palavra “golpe” uma fatalidadejamais levada muito a sério.

O PCB, mesmo perdendo espaço no movimentoestudantil (principalmente em São Paulo) cresciamuito e tinha grande poder nos sindicatos,agindo quase sempre em conluio com opeleguismo, em particular com o pelego-mór,Dante Pelacani, presidente da CNT - Confe-deração Nacional dos Trabalhadores. Dante“Pelegani” como era chamado pelos críticosmais à esquerda, representava bem essa estru-tura sindical viciada, burocrática, sem renovaçãoe que agia sempre em consonância com osinteresses do governo trabalhista de Jango,iludindo os trabalhadores com pseudo-conquistas populistas, tipo salário mínimo, etc.

Os sindicatos e federações e mesmo entidadestipo PUA (Pacto de Unidade e Ação) nas mãosdo PCB, na verdade não eram muito diferentese nem agiam diferenciadamente dos sindicatospelêgos.

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Eu tenho uma história curiosa com um líder im-portante, Luis Tenório de Lima, o Tenorinho,quadro do Partido explosivamente revelado nacriação do PUA e de quem me tornei amigoainda na política estudantil. Muitos anos depois,por volta dos anos 80, vereador na cidade deSão Paulo e já sob o bombardeio de inúmerasacusações, Tenorinho me procurou para pedircópias de meus filmes Greve! e Trabalhadores:Presente!. Ele estava de viagem para a UniãoSoviética e gostaria de levar os filmes tanto paramostrar aos seus camaradas quanto para vendere “fazer finanças” para o Partido. E diante doalerta sobre minha dureza financeira garantiu:“eu vendo e te pago, por cada cópia, o preçode duas”. Eu entrei na dele, para nunca maisconseguir falar com meu ex-amigo, nem pes-soalmente, nem por telefone. Ele era muitoocupado.

O clima de agitação em 1963 e início de 64 eraincrível, de tal modo que os militantes podiamse sentir como “participantes de um momentorevolucionário”, privilégio de poucos e depoucas gerações. Era um clima contagiante, noqual o ufanismo invadia todas as barreiras daprudência e do realismo. Era bom, essa é que éa verdade. Era bom! Era bom sentir a sociedadetoda se mobilizando, era bom ter um relacio-namento tão aberto, de alto a baixo, entre lide-

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ranças de organizações as mais diversas, compersonalidades políticas de prestígio nacional ecom líderes de sindicatos, partidos políticos -tudo por que estávamos em pleno processo,digamos assim, pré-revolucionário. Um senti-mento que realismo algum podia aquebrantar.

Eu me lembro, com certa dose de ironia, mastambém com emoção, das festas populares, daalegria de tudo aquilo. Das presenças de músicosfamosos, de poetas de vanguarda, escritores,pintores, atores, atrizes, nessas manifestações,ajudando a universalizar seus significados,valorizando o esforço popular, conscientizando.Havia então o CPC, com suas peças “conscien-tizadoras”, polêmica que pouco interessa agora.O interessante é que as peças eram carregadasde um humor, engraçadas mesmo, em geralrepresentadas por estudantes, como o Auto doDescobrimento que se iniciava com o Pedro Ban-deira (hoje sucesso como autor de literaturajuvenil) correndo pelo palco, como D. João VI eperseguido por um “Napoleão” montado numcavalo de pau.

E, claro, a Canção do Subdesenvolvido, de Chicode Assis em parceria com Carlos Lyra, clássicodo CPC, com versos do tipo:

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“Aquela ilha velha não roubou ninguémPaís de pouca terra só nos fez um bemUm big bemBem, bem...Nos deu leite...Nos deu pão...Mas levou o nosso tesouro!Subdesenvolvido, subdesenvolvido”

ou, ironizando a Aliança para o Progresso, pro-grama do tipo assistencialista criado pelopresidente norte-americano John Kennedy:

“Leite em pó, leite em póQue tu me desteAcabou com a fome do Nordeste”

E as músicas, tipo

“Ô grileiro vem, pedra vaiDe cima desse morro ninguém saiConstruí meu barraco de madeiraEm cima desse morro pra morarVem um tal de grileiroRasteiroQuerer meu barraco derrubar.”

que reproduzo aqui de memória e devem serdo Carlinhos Lyra.

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Em São Paulo, um poeta popular, Pompílio Diniz,fazia o maior sucesso com suas poesias car-regadas de ironia política, como Isso não é nada,João, infeliz é o teu patrão onde, depois decontar as desgraças do pobre João, compara suahistória com a do patrão, às voltas com pratostipo “faisão dourado”, etc.

Ou na poesia sobre eleições, que conta a históriado eleitor que entra na cabine de votação depoisde ter se empanturrado de comida dada pelocoronel dono da região. Como ele demorasse,alguém bate na porta da cabine e, lá de dentro,com a voz espremida, o cabra responde : “temgente!”

Pompílio levava o povo ao delírio. Sua presençanas manifestações políticas exercia um fortepoder de atração popular. Era realmente bom.Uma pena que esse sentimento tivesse um grautão exagerado de ilusão.

Eu soube depois que Pompílio, que era funcio-nário dos Correios, fugiu do Brasil após o golpede 64, despreparado, desorientado, passandomomentos terríveis. Sua imensa popularidadedespencou a zero com o golpe.

Afinal, um golpe de estado é isso, uma tomadaviolenta do poder e o corte das interrelações

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políticas e culturais desenvolvidas dentro da so-ciedade como parte do processo que os golpistasbuscam destruir.

Os comunistas, da mesma maneira que no meioestudantil, atravessavam um momento degrande paralisia e ilusão, nessa antevéspera dogolpe, sem saber exatamente o que dizer àsmassas diante de um governo tão indecifrável eineficaz como o de Jango Goulart. Junto com ossetores trabalhistas, entramos de cabeça noprojeto das reformas de bases, que garantiriamuma democratização da vida brasileira eabririam caminho para um novo desenvolvi-mento.

A Reforma Agrária, que geraria empregos eanularia a força temível dos grandes latifúndios.A Reforma Urbana resolveria a crise demoradias. A Reforma Universitária democrati-zaria o acesso à escola e a própria direção dasestruturas de ensino, com a participação dosalunos nos órgãos colegiados. E a lei de Remessade Lucros, para por fim ao abuso das multi-nacionais. Tudo isso virava, na verdade, umamontoado de projetos sempre inviabilizadospela persistente oposição ao governo, oposiçãoclaramente de direita e que contava com asimpatia de amplos setores da classe média,temerosos com a ascensão da esquerda

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genericamente tachada de comunista. A Refor-ma Agrária jamais passaria num congressoreacionário, dominado pelas oligarquias. A Re-forma Universitária esbarrava no conser-vadorismo da própria estrutura universitária ena constatação de que tudo não mobilizava maisdo que uma elite universitária que, certa ouerrada, mais se alinhava na luta geral pela“revolução” do que propriamente em melhorare democratizar o ensino. A questão da remessade lucros mexia no vespeiro maior, os interessesdo capital norte-americano. Não só as empresasagiam contra, pressionavam, como o própriopoder político e militar norte-americano bufavae ameaçava.

No meio estudantil, a radicalização corria solta,a esquerda tomava iniciativa e os pequenosgrupos se alimentavam fazendo críticas aoPartidão. Ainda em 63, justamente na Poli,fizemos duas denúncias importantes, comrepercussão. Uma foi a da existência do CLACE,Centro Latino Americano de CoordenaçãoEstudantil, cujo líder era o politécnico Capo-bianco. Segundo as denúncias, feitas pelotambém politécnico, esquerda radical e inde-pendente, Ricardo Zarattini, o CLACE era umaorganização controlada pela CIA para se infiltrarno movimento estudantil e denunciar seuslíderes.

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A denúncia pegou, o DCE (Diretório Central dosEstudantes da USP) convocou uma assembléiaque contou até mesmo com o deputado AbreuSodré, político moderado e que depois seriagovernador de São Paulo.

A outra denúncia, não foi levada muito a sério,mas talvez tivesse significado menos pirotécnicoe mais profundo. Dirigentes do Grêmio da Polidescobriram que havia um controle, nas indús-trias, para a aceitação de estagiários. Esse con-trole seria exercido pelo IPES, Instituto DePesquisa e Estudos Sociais, orientado justamentepelo General Golbery do Couto e Silva, comoensaio do SNI.

Eu participava também, como representante daUEE paulista, da FMP, Frente de MobilizaçãoPopular, organização de âmbito nacional quereunia operários, partidos políticos, estudantes,com gente como o Brizola, o Almino Afonso, oNeiva Moreira e os mais importantes líderessindicais da época entre os quais eu já me sentiaà vontade.

Assim, em meio a um ativismo louco, escre-vendo, produzindo jornais, exibindo e discutindofilmes, filmando, estudando e fazendo política,minha vida ia correndo na velocidade da luz,sem tempo para reflexão alguma.

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Respirava essa agitação política, de promessas,vacilações, ameaças, vinte e quatro horas por dia.A participação política, ainda mais dentro de umpartido que parecia representar oficialmente arevolução, me dava o conforto de estar de bemcom a História, de que o futuro estava em mi-nhas mãos. A euforia da esquerda alimentavaessa ilusão.

Muita gente achava que a esquerda já estavano poder. Em outubro de 63, por exemplo, meunome aparece num ostensivo convite, publicadonos grandes jornais, para as comemorações doaniversário da Revolução Bolchevique. Eu estavalá, como líder estudantil, honrosamente ao ladodo grande Caio Prado Jr. e do misterioso CarlosMarighela. Eu fazia parte também, naquelemomento, da Comissão de preparação para oFestival da Juventude, iniciativa internacional dajuventude comunista e que naquele ano seriarealizada na Tchecoslováquia. Meus colegas deComissão eram o Caio Graco, o Caio Prado e oMarighela (que me dava assistência política paraessa tarefa do Comitê Central do Partido).

Era com essa pseudo-confiança que reagíamosàs ameaças golpistas e às marchas “da família”contra o comunismo, vala comum em queéramos jogados junto com os demônios Brizola,Jango, Prestes, Julião, Arraes.

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“É um sinal de democracia”, ironizava o dirigen-te comunista Odon Pereira, brincando de elogi-ar as mulheres burguesas que deixavam os sa-lões de beleza para desfilar suas feiúras pelasruas de São Paulo, rememorando o lado pior dachamada revolução de 32.

“Os golpistas terão suas cabeças cortadas pelaespada da legalidade”, dizia Prestes, ainda àsvésperas do golpe.

Era assim, embora com um indisfarçável mal es-tar, que reagíamos diante das ameaças de CarlosLacerda, o eterno golpista, com sua voz caver-nosa, orador maravilhoso que muitas vezesíamos provocar em suas conferências semprecarregadas, elas também, de provocação.

Nós o provocávamos, chamando-o de “corvo” eisso parecia servir de alimento para sua verveanti-comunista, tornando-o ainda mais bri-lhante, mais vitorioso, levando seu fanclube àloucura.

Eu reencontrei o Lacerda alguns anos mais tarde,já como cineasta, realizando meu primeiro filmesolo, o Liberdade de Imprensa (1966/67). O filme,produzido pelo movimento universitário, era umdos primeiros balanços críticos feitos, após ogolpe, pelo cinema brasileiro.

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Num tom exaltado, juvenil, anti-imperialista, aliestão as passeatas (que eu e Ramalho filmáva-mos, juntos), as imagens da Marcha da Família...,as cenas da repressão policial aos estudantes,etc. Naquele momento, dois anos após o golpemilitar, articulava-se uma frente anti-ditadura,frente que reunia os maiores líderes civis, comoJuscelino Kubistchek, Jango (exilado) e, pasmemos que não viveram essa época triste, o CarlosLacerda, ex- governador do Rio, arqui-anti-comunista e golpista de primeira hora. Lacerdahavia incentivado e apoiou o golpe. Durante ogolpe, quase foi morto por um grupo militaranti-golpista comandado pelo AlmiranteAragão, que ameaçava invadir o Palácio daGuanabara e “pegar” o governador. Pois bem,apesar de tudo, lá estava agora o nosso Lacerdase recompondo com Jango e Juscelino, na FrenteAmpla.

O motivo é que Lacerda esperava, após adeposição de Jango, ser candidato a Presidenteda República, mas os militares gostaram dopoder, cancelando as eleições e os registros dospartidos políticos. O “corvo”, agora, estava donosso lado e eu, fiel à minha formação política,fui falar com ele. Ele aceitou, marcou comigoem seu apartamento, um triplex no Flamengo,justamente perto da sede nacional da UNE, queeu freqüentara algumas vezes.

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Desci do elevador no primeiro lance do aparta-mento triplex, com minha equipe: o fotógrafoJosé Medeiros (1921-1990) e o técnico de somLuiz Antônio. Lacerda nos recebeu, com seuvozeirão agora ao vivo e frente-a-frente.

Eu não podia deixar de relembrar as tantas vezesem que eu participara das provocações a ele emSão Paulo, mas segui minha tarefa com profis-sionalismo. Ele, muito simpático, por detrás dosóculos grossos, resolveu primeiro me mostrar otriplex. Mostrou o primeiro lance, subimos parao segundo e depois para o terceiro, a cobertura.Era um salão aberto, grande, com uma vista defazer inveja, para o mar. E, por todos os cantose palmos de paredes, quadros de gente famosa,praticamente todos doados a ele por essa gente:Portinari, Di Cavalcanti, não me lembro dosoutros. E um cavalete, com um quadro inaca-bado, pintado por ele mesmo que, garantia,vendia antes mesmo de terminar: uma absolutaporcaria que, é claro, só era vendida por ser doLacerda, que contava com adeptos absolu-tamente fanatizados por ele, pelo seu carisma,sua liderança.

Eu me lembrava de que a imprensa carioca, umou dois anos antes, veiculara denúncias demoradores do prédio contra ele, justamenteporque ele se apossara do terraço do prédio,

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construindo ali o terceiro estágio de seu triplex.Ele, sem que eu tocasse no assunto, com a mai-or cara de pau, estendeu os braços, “varrendo”o ambiente e se defendeu, com sua voz caver-nosa: “Olha João Batista, algumas poucas pes-soas andaram me acusando de ter construídoesse salão no terraço do prédio. Mas aqui erauma sujeira danada, montes de tijolos velhos,madeira podre ainda com pregos, um perigo. Eeu limpei tudo, construí o salão. Não ficoubonito?”

Até hoje, quando passo de táxi no aterro doFlamengo, nunca deixo de olhar para aqueleprédio, com o último andar bem diferente dosoutros, onde vivi uma das primeira experiênciasmarcantes de minha vida como cineasta. Nofilme Liberdade de Imprensa, o Lacerda lá está,falando mal dos militares e da ditadura. Era aFrente Ampla falando. Mas eu não deixei deespicaçar minha ojeriza a ele, montando sua falacom entrevistas de populares que o acusamtanto de “corvo” e reacionário, quanto de tersido um dos principais responsáveis pelo golpe.

Vinte e dois anos depois, nas filmagens do longa-metragem Céu Aberto, eu reviví parte dessaexperiência, indo à casa do arqui-inimigo, operigoso General Newton Cruz, para entrevistá-lo alguns dias depois da morte de Tancredo

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Neves e a posse do primeiro governo demo-crático, o de José Sarney, em 1986. O sentidoaqui era outro, o de mostrar que a democraciatransformara aquele tigre em papel.

Até a ante-véspera do golpe militar, em 64, eujamais poderia imaginar que um dia estariafalando com meu inimigo Lacerda em suaprópria casa, dois anos depois. E nem, com orepresentante mais furioso dessa ditaduramilitar, vinte e dois anos depois, em seu ocaso.

Quando se deu o golpe, anunciado na madru-gada do dia primeiro de abril de 1964, pelo lídercivil Magalhães Pinto, governador mineiro, omundo desabou sobre minha ingenuidade.

Eu morava, então, na super-politizada Casa doPolitécnico e, mais do que isso, no sétimo andar,o andar dos que se consideravam a elite políticae cultural dos politécnicos e que, na verdade,era nada mais do que uma auto-proclamadarepublica de elite, soberba juvenil, fruto dapolitização mas também do delírio geral em queviviam os estudantes naqueles sete andares,entre dificuldades financeiras, revoltas pessoaisde todo o tipo, amarguras, solidão, miséria,caldo engrossado na veia, com a adrenalina darevolução e a sofrida abstinência sexual dos maistímidos, a maioria, como eu.

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E foi em meio a esse caldo emocional, difícil, quevivemos o início do pesadelo que duraria maisde vinte anos e levaria muitos de nós à loucurae à morte.

A TV do salão da Casa do Politécnico ficavaligada até a madrugada. Nós nos amontoávamosem volta do terrível aparelho, em busca denotícias. Um ou outro tinha o rádio ligado,baixinho e chamava nossa atenção quando seinsinuava algum noticiário. Nós queríamosnotícias de tudo. Principalmente do IV Exército,se havia aderido ou não; do II Exército, dogeneral Kruel, assediado pelo GovernadorAdemar de Barros; do III Exército, para saber seseu comandante ficaria com Brizola ou se aderi-ria ao golpe. E, claro, da tentativa do AlmiranteAragão em “pegar” Lacerda, possibilidade quequase nos levava ao êxtase. Ainda me lembro,num misto de sonho, melhor seria dizer pesa-delo, de assistirmos, pasmos, silenciosos, oGovernador Ademar de Barros, ao lado doGeneral Kruel, anunciando a adesão do generalà “revolução”.

Esses momentos estão assim no livro Perdido noMeio da Rua (págs. 17-24):“André espreme o pequeno rádio entre as mãos.O ponteiro se move, de lado a lado, o quarto seenche de ruídos agudos, vozes comuns músicas.

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Nada. Uma agonia, viver ali preso ao rádio, aúnica fonte de notícias confiáveis, quem sabealguma notícia da resistência.E o governador?- pergunta JúlioAté agora nada. O filho da puta vai acabaraderindo.Se aderir é o fim...De repente o rádio, como que se despertando.A musiquinha gaúcha, ritmada, o locutor queentra rasgado.A “Legalidade!” - todos se precipitam sobre obichinho falante.Entào a resistência continuava. Aliviados, os trêstentam entender qualquer coisa. Em vão. Umchiado cresce sem parar, microfonia.Interferência, diz Neiva.Alguém aí teria coragem de pegar em armas?pergunta o malicioso André.Se o Exército do Sul resolver distribuir armasquem vai pegar? Alguns malucos? E pra fazer oque? matar passarinho?Júlio evita polemizar com André. Sente-searrasado. Essa história de armas... Nunca pensaranisso, não esperava que um dia esse problemase colocasse assim. Loucura.Vozes de fora do corredor cortam as reflexõesde Júlio. batem na porta, chamam todos paraver. É o Governador que aparece na TV.Os três amigos disparam pelos corredores eescadas. Dezenas de estudantes se amontoam

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na mesma ansiedade diante da tela miúda. Aimagem contrastada do branco e preto. Ali ogordo Governador esparrama sua fala pastosa,entremeada pelas palmas forçadas de puxa-sacos. Aderiu. Filho da Puta, aderiu ele e aderiutambém o Comandante do II Exército, AmauryKruel. Cercado de militares que a câmerapercorre descritivamente, os olhares falsamenteseveros, o Governador. Bêbado, fala por todoseles. Jango que se foda. Vai embora, Jango,deixa de moleza, vai cuidar de tua Tereza. Filhoda puta”.

Lançamento do livro Perdido no Meio da Rua

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Consumado o golpe de estado, eu não podiamais ficar na Casa do Politécnico. Pelo menosera o que se imaginava. Eu tinha consciência denão representar qualquer mínimo perigo paraos militares, mas o medo e o senso deresponsabilidade me obrigaram a sair. Eu eradirigente, tinha contatos com a direção estadualdo partido e tinha que cuidar de minhasegurança. Além disso, corriam boatos sobre aação do CCC, o Comando de Caça aosComunistas.

Eu conhecia e era conhecido por alguns mili-tantes desse movimento claramente fascista.Esses me conheciam até mesmo antes de minhamilitância: tinham sido meus colegas no CPOR eeram justamente os maiores, mais atléticos - queformavam na frente, em meu pelotão. Eudescobri isso no salão de conferências daFaculdade de Direito do Largo São Francisco, emSão Paulo, em 63. O Paulo de Tarso, Ministro daEducação e Cultura, um democrata cristão tidopela direita como comunista, ali estava para umaconferência. Nós soubemos que o CCC tentariaimpedir a conferência. Convocamos um bomnúmero de estudantes e fomos para lá. Mal oMinistro entrou começou a confusão, um corre-corre com gritos de “Comunista!”. Alguns dosnossos protegiam o Ministro enquanto os outrostentavam barrar a ação dos musculosos da direi-

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ta. De repente eu me vi no meio de uma dessasconfusões, cercado pelo CCC. Alguém bateu deleve em minha cabeça: “Fica frio, dois-quinze,ninguém põe a mão em você...”

“Dois-quinze” era meu número no CPOR, onúmero 215 lido exatamente como fazia o meuopressor, o Capitão Togór. Eu logo reconhecimeu antigo colega de farda. Já em 64, poucoantes do golpe, eu não tive essa sorte.

Nós estávamos, da mesma maneira, tentandogarantir uma conferência do Miguel Arraes,Governador de Pernambuco. O CCC realmentechegou, como ameaçara. E a confusão se deuno portão de entrada do local, já não me lem-bro onde.Desta vez eu não consegui escapar, como provauma foto no jornal Folha de S. Paulo, onde sevê, em destaque, minha cara forçada para tráspela mão de não-se-vê-quem, mas que certa-mente não seria de nenhum de meus ex-colegasde CPOR. Levando tudo isso em consideração,eu resolvi que sairia da Casa.

Os colegas me procuravam, me cobrando no-tícias. Essa pressão me dava náuseas, de tantaimpotência. Eu não sabia de nada, o Partidose desfacelara da noite para o dia e meuscontatos ficavam a cada dia mais difíceis. E, o

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pior, inúteis, pois quando se realizavam, eurecebia informações erradas, como ordens demanter as bases organizadas porque nós ain-da venceríamos, que a resistência estava searmando, uma resistência de massa, etc. Eu,de início ainda transmiti esses informes, ape-sar do mal-estar e apesar do olhar de incredu-lidade de meus colegas. Muitos deles, de or-ganizações mais radicais, sabiam mais do queeu e por isso me provocavam o tempo todo,arrasando com a velha máquina burocráticado “Partidão”.

Antes ainda de minha saída da Casa, a direçãodo Grêmio da Poli convocou uma assembléiana Cidade Universitária (minha turma foi a pri-meira a, pouco-a-pouco, ir se mudando para aCidade Universitária). A Assembléia tinha bas-tante gen-te, marcada para um salão compri-do, ainda um tanto improvisado, com oassoalho de madeira. O clima era tenso, nervo-so. Os discursos eram cautelosos e nenhuma li-derança mais expressiva dera as caras, o queaumentava a insegurança. Eu estava lá, comuma missão e tinha que cumpri-la. Eu estavano fundo do salão, ten-tando me preparar psi-cologicamente, quando o Presidente da mesame convocou:“Vai falar João Batista de Andrade, em nomedos estudantes comunistas.”

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O chamado bateu como um martelo em meupeito. Era isso mesmo o combinado. O Partidoprecisava mostrar-se ainda organizado, ali-mentar a confiança dos estudantes. Mas foi ter-rível. Até hoje escuto o som de meus passos na-quelas tábuas, ecoando pelo salão em meio aum silêncio quase que absoluto de toda a as-sembléia. E o salão agora parecia ainda maiscomprido, sem fim, com meus passos ribom-bando em meus próprios ouvidos enquanto umapergunta martelava ainda mais insistente,incomodatícia: “Falar o quê? Falar o quê?”

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08. Perdido no Meio da Rua

Depois da Assembléia da Poli e com o fim daresistência no Sul, eu fui mesmo convencido efinalmente saí da Casa do Politécnico. Eucontava com a solidariedade de colegas maisamigos, que assinavam por mim as listas depresenças e colocavam meu nome em trabalhosescolares. Assim, eu deixei também de fre-qüentar as aulas. Por algum tempo, “até que ascoisas clareassem”... Mas as coisas nuncaclarearam.

E a verdade é que eu não tinha para onde ir. Eudeixei a Casa num dia à tarde, depois do almoçona Cantina do Grêmio, onde se podia comerrazoavelmente por um preço super-reduzido.

Eu tinha um encontro marcado com o Madeira.E o Madeira não apareceu, certamente tão atra-palhado quanto eu. E muito mais visado. Atristeza me dominou de uma vez, enquanto euperambulava feito um perdido pelas ruas, semsaber o que fazer.

Olhava as pessoas, elas pareciam seguir seueterno cotidiano, os mesmos trajetos. O mesmoViaduto do Chá atopetado de gente, os mesmosvendedores nas mesmas lojas, os mesmos ho-mens-placas anunciando compradores de ouro,

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inclusive dentes. Os mesmos office-boys apres-sados de um lado e de outro das ruas, as mes-mas mocinhas bem arrumadas.

Eu olhava pasmo para essa gente silenciosa quecontinuava agindo como se nada estivesse acon-tecendo.

A todo momento eu podia ver os caminhõesdo exército circulando pela cidade. Eram ca-minhões muito novos, de pintura nitidamen-te recente e eu imaginava que deveriam serdoações das multinacionais ao exército, aju-dando a garantir o golpe. Era uma visão deso-ladora.

E o som da cidade era um imenso silêncio hu-mano, só perturbado pelo som dos alto-falan-tes esparramados pelas ruas, tocando marchasmilitares, glorificando a “revolução” vitoriosa,o fim do perigo comunista.

Sem saber o que fazer, entrei num ônibus. Den-tro, a mesma apatia, o cobrador sonolento e aspessoas que me olhavam com seu olhar de purocotidiano. Sentado do lado da janela, eu nãosuportei mais. Chorei comvulsivamente, ten-tando, em vão, ocultar as lágrimas e os soluçoscom as mãos, cobrindo meu rosto.

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Eu ainda peguei um outro ônibus, para voltarao centro. Continuava atordoado, sem saber oque fazer, para onde ir.

Pensei em voltar para Ituiutaba, minha terra,ficar na casa de meus pais. Para isso, bastaria iraté à rodoviária com o pouco de dinheiro queainda me sobrara e comprar uma passagem paraas oito horas da noite. No dia seguinte, demanhã, eu estaria lá.

Cheguei a caminhar da Avenida São João até aRodoviária, que ficava perto da Estação da Luz.Mas a cada passo essa decisão ia se desfazendo,tal a culpa que eu sentia, imaginando o que eudeveria dizer a meus pais, principalmente àminha mãe. Ela me sustentara todos aquelesanos, certa de que seu sacrificado dinheirogarantiria a minha formação escolar. E eu, naverdade, gastava o dinheiro na política, sujeitoagora a perder tudo de uma vez, como num jogoruim. Cheguei perto da Rodoviária e recuei. Eunão podia voltar.

Dei meia-volta, continuava sem saber o quefazer, já no auge do desespero. Caminhava rentea um muro coberto de cartazes anunciandoshows e peças de teatro, quando ouvi quegritavam um nome que me era muito familiar.“Bacurau!”

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Bacurau era meu apelido de infância, adquiridona roda de amigos inseparáveis na pequenaItuiutaba do início dos anos cinqüenta, com suasruas de terra e seus incontáveis e imensosarmazéns de arroz que desenhavam sua pai-sagem urbana e lhe davam o título de CapitalBrasileira do Arroz.

Meus melhores amigos, eram justamentesobrinhos (Carlos e Luizinho) ou filhos (Márcioe Jandimar) do maior comerciante de arroz deItuiutaba, o poderoso Jandiro Vilela, cujo nomeextravasara as fronteiras ituiutabanas paraganhar respeito na Zona Cerealista de São Paulo.Essas amizades foram muito marcantes em mi-nha formação de adolescente, ajudando aalimentar um espírito de revolta e a tendênciaao sofrimento, à solidão.

De família pobre e do tipo sonhador, aprendicom meus amigos a diferença cruel entre afortuna e a pobreza, principalmente naconvivência com Márcio e Jandimar. Nossaamizade era realmente profunda, de um res-peito e de uma cumplicidade inigualáveis, coisaque deixou em mim, por outro lado, um sensode extrema valorização da amizade, não comofonte de favorecimento, mas como fraternidade,respeito, transparência e, mais que tudo,confiança sem limites.

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Mas a verdade é que a semente da revolta, deorigem social, estava plantada em meu próprioberço. Meu pai nos transmitia sua desesperadabusca de recuperação da fortuna (e posiçãosocial) perdida aos doze anos com a morte deseu poderoso e rico pai, com a mãe delicada,ex-Sacre-Coeur, incapaz de reter fazendas, terrase gado, assaltados pelos mais espertos e escoa-dos feito água no pagamento das dívidas quese avolumavam.

Meu pai trabalhava tudo o que podia, as mãoscalejadas, tocando lavouras inúteis ora quei-madas pelo sol, ora perdidas por excesso dechuva, ora assoladas pelas pragas que desde-nhavam das rezas, promessas e sofrimentos queainda pioravam nossa situação, com as eternasdívidas que levavam as poucas economias e,quantas vezes, nossa própria casa. Essa agoniajogou meu pai no misticismo espírita, originandoum conflito doméstico interminável com minhamãe.

Minha mãe, católica fervorosa, no fundo, nãoagia em direção tão diferente quanto aos fins.Só que ela, ao contrário de meu pai, vinha deorigem humilde, o rosto de pele quase negra emarcado pela rejeitada negritude. Para ela,então, o destino fatal da pobreza e margina-lização social deveria ser quebrado pela adoção

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de uma racionalidade: um objetivo claro perse-guido com retidão e planejamento, tarefa queela assumiu com obstinação, impondo a si mes-ma um padrão ético rígido e a valorização detodo esforço rumo à ascensão social e cultural.O objetivo deixava, assim, expostos os dois ex-tremos de sua equação: de um lado, a indesejá-vel pobreza, a marginalização; de outro, a as-censão social pelo reconhecimento público e acultura.

Eu, na infância, em parte contaminadogenéticamente, em parte envenenado pelaconvivência com a riqueza de meus bons amigos,não conseguia cultivar estratégia tão pacientee racional. Explodi muitas vezes de revolta, bebitanto desse veneno quanto da cerveja, da pingae do traçado, suaves e inocentes vícios de minhaadolescência.

Ainda criança já não parava em casa e, por isso,merecia uma surra por dia. Minha mãe não seconformava, quem sabe intuindo o mal queme corroía. Eu passava o dia na casa dos ami-gos, o quintal enorme cheio de frutas, a casaburguesa com todas as novidades, o prazer dasgarrafas de guaraná, as caixas de uvas, as cas-tanhas, o gosto refinado do melão, coisa tãodifíceis e caras naquele tempo, cinqüenta anosatrás.

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Ou então, com a turma de amigos, brincandonos armazéns do pai de meus amigos, salõesimensos que atravessavam quarteirões, atope-tados de sacos de arroz, as pilhas monumentais,a riqueza que tanto me fazia mal. Deus do céu,que ingenuidade!

Eu sempre penso nessa formação pessoalquando tento decifrar muitos de meus conflitosde personalidade, o esforço por uma certaracionalidade e a contaminação dessa raciona-lidade por uma emoção que certamente é maisforte do que meu poder de controlá-la. Muitasvezes invejei a frieza de muitos amigos, pessoascapazes de analisar os fatos, as dificuldades, comtranqüilidade, buscando saídas. Os conflitosvividos em minha formação pessoal vivem, naverdade, insepultos, prontos para entrar emcena, apenas disfarçados sob a capa de racio-nalidade.

Anos mais tarde, a família do Márcio e doJandimar se mudou para São Paulo. O pai,Jandiro, passava a cuidar mais dos negóciosdiretamente na Zona Cerealista paulista e abri-ria uma nova frente, uma indústria de auto-peças. Eu retomei o contato com meus amigose cheguei a morar com eles um tempo, antes deminha aprovação na Casa do Politécnico. Masaí os tempos já eram outros.

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Eu me politizara e me esforçava para direcionarmeus próprios conflitos numa nova raciona-lidade, não exatamente aquela desejada porminha mãe. Mesmo antes de me tornar mili-tante, isso ainda por volta de 61, eu tinha minhasidéias políticas, defendia Cuba com extremoentusiasmo e tinha coragem de defender aRevolução Socialista.

Márcio e Jandimar discutiam muito comigo, masa amizade conseguia superar as divergências.Já com o pai, Jandiro, o problema era mais sério.Parecia incômodo, para ele, conviver com um“comunista” dentro de sua própria casa. É claroque isso é compreensível: ele era um empresárioousado, com grande liderança e que acreditavaabsolutamente na livre iniciativa. O comunismoseria, então, a praga mais indesejável e perigosa.Imagine uma semente dessas dentro de casa,envenenando seus próprios filhos. É precisodizer, no entanto, que ele nunca passou dolimite, me agredindo. Era um tipo sisudo, depouca conversa e seu olhar de reprovação já doíao suficiente...

Pois bem, naquele dia, em pleno golpe, quemgritava meu apelido, na rua, era o Márcio, meuvelho amigo. Ele me vira, passando de carro e,segundo me contou depois, logo imaginou queeu devia estar em má situação por causa do

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golpe de estado. Eu não o via há muito tempo,na verdade desde em que me mudara para aCasa do Politécnico. Meu envolvimento políticoprogredira rápido demais e eu não via mais comomanter nossa amizade. Nesse tempo, seu irmãoJandimar havia falecido, seguindo um destinotriste: desorientado, assolado por insuportáveiscrises pessoais, fugiu de casa e dias depois seucorpo foi encontrado à beira de uma estrada deterra, em algum lugar ermo de Mato Grosso.Quando reconheci o Márcio, ele com o amisto-so e engraçado espalhafato de sempre, rindomuito - eu me senti aliviado.

Márcio foi extremamente solidário e decidido.Já dentro do carro contei a ele como eu estava,procurando não fantasiar qualquer perigomaior. Mas ele assumiu a preocupação deamigo. Primeiro propondo me levar para umafazenda de seu pai, em Goiás. Eu não podiaaceitar, queria ficar em São Paulo, perto de meusoutros amigos e à espera de um novo contatocom o Partido. O resultado foi que acabei indopara um apartamento de “viração”, uma kiti-nete na Boca do Lixo paulista, comprada pormeu amigo para suas aventuras amorosas. Eumorei nessa kitinete vários meses e, apesar detudo, guardo recordações agradáveis dessetempo.

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II - Na Contra-mão

01. Recomeçando a vida

A segunda metade dos anos sessenta começou,para mim, com meu casamento e, um ano depoiso primeiro filho, Fernando. Eu, ex-futuro-engenheiro, ex-militante, penava para ganhara vida.

Com alguns colegas, fizemos um cursinho depreparação ao vestibular. Eu lecionava desenhoe física. O cursinho, Albert Einstein foi um su-cesso no primeiro ano, apesar dos poucos alunos:todos foram aprovados nos vestibulares. Mas osegundo ano nos mostrou a força da publici-dade, do marketing: tivemos pouquíssimasmatrículas, tornando o curso inviável. Ramalhonessa época era professor e sócio do CursoUniversitário e nossos poucos alunos foram paralá. Nós ficamos com as dívidas do desmonte...

Depois foi a Fundação Cinemateca Brasileira. Aconvite do Rudá de Andrade, eu fui trabalharlá, fazendo releases para a Imprensa. Até quefuncionava, eu conseguia colocar nos jornaismuitas notícias sobre a Cinemateca. Ali eu co-nheci o Paulo Emílio Salles Gomes (1916/1977),com quem, aliás, nunca me envolvi muito,

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mesmo quando fomos colegas do corpo docen-te da ECA (Escola de Comunicações e Artes, daUSP), a partir de 68. Ele mesmo, no final dos anos70, fez um esforço de aproximação, me convi-dando, junto com o cenógrafo Flávio Impériopara um jantar em sua casa, com LygiaFagundes Telles. Apesar de me sentir, usual-mente, um tanto oprimido num ambiente socialsofisticado, como era o caso, a conversa foiagradável, Paulo Emílio era uma pessoasimpática, do tipo “catedral”, enorme, de muitasabedoria e inteligência.

Como conseqüência de meu trabalho na Cine-mateca, acabei sendo levado para a SAC, aSociedade Amigos da Cinemateca, um cineclubeque funcionava no Museu de Arte de São Paulo,ainda na Avenida 7 de Abril, no centro de SãoPaulo. A SAC era uma espécie de linha auxiliarda Cinemateca, levantando dinheiro e promo-vendo mostras e debates do cinema de todo omundo, inclusive o cinema brasileiro.

Era o principal cineclube de São Paulo, com umapresença muito grande na cultura cinemato-gráfica paulista. Nós fizemos mostras de cinematcheco, polonês, japonês, sessões de cinemainfantil com os fabulosos desenhos e animaçõesdos países do leste europeu. E inúmeros debatessobre o cinema brasileiro.

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Por exemplo, por iniciativa minha é que se pu-blicou o livro do Alex Viany, O Velho e o Novo,acho que ainda em 1965, no qual Alex analisa aeclosão do Cinema Novo brasileiro.

O trabalho na SAC era sempre inovador, capi-taneado pelo Rudá Andrade e que depoisavançou no sentido de alcançar o circuito exi-bidor, transformando o Cine Picolino em cine-ma de arte e, depois, (eu já não estava maisna SAC), transformando o cinema da esquinada Conso-lação com a Paulista, no inovadorCine Belas Artes, onde passou também a fun-cionar a SAC.

Nessa época é que eu mantive um maior contatocom o pessoal do Cinema Novo, principalmenteo Gustavo Dahl, o Cacá Diegues, o Leon Hirsz-man, já que a gente exibia os filmes deles naSAC, fazendo debates. Na verdade esse contatosempre padeceu de uma maior intimidade, mes-mo depois, nos anos 70, quando eu era um dosprincipais dirigentes do cinema paulista e tinhaque estar permanentemente discutindo a polí-tica cinematográfica com aqueles cineastas (emais o Joaquim Pedro de Andrade, o Luiz CarlosBarreto, o Zelito Viana).

Em São Paulo, nós, do antigo Grupo Kuatro,continuávamos batalhando cinema.

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Desde 63, um outro jovem se aproximou de nós:o amazonense Renato Tapajós, jovem poeta quese interessou pelo cinema. Renato era despacha-do e logo, em 1964, voltou de uma viagem aManaus com alguns rolinhos de filme 16 mmrodados num bairro de palafitas. Eu mesmomontei seu filme, Vila da Barca, usando um visor16 mm emprestado pelo Sérgio Muniz.

No ano seguinte, mostrando mais uma vez suatenacidade, ele conseguiu o patrocínio doGrêmio da Filosofia (USP) para um filme sobre aUniversidade: Universidade em Crise, um docu-mentário interessante e que mostra a desânimo,

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a falta de perspectiva dos estudantes após 64.Nós começamos a montar o filme em meu apar-tamento na R. Martinho Prado, tendo a Av. 9 deJulho ao fundo e, embaixo, um dos bares damoda, o Ferrus Bar.

Renato e eu usávamos um projetor 16 mm e tam-bém o visor, na maior precariedade. Foi engra-çado nosso encontro com Roberto Santos. Nósprojetamos o copião pré-montado para ele e,depois, expressamos nossa inquietação com oritmo do filme. O filme parecia não andar, ascenas exibiam uma lassidão terrível. O Robertofoi direto ao assunto: “o filme está é mostrandoo marasmo desses estudantes”. E pronto.

Um ano depois, em 1966, eu é que estaria fil-mando meu primeiro filme-solo, o Liberdade deImprensa, patrocinado também pelo movimentoestudantil. Agora, além do Grêmio da Filosofia,cujo presidente era o Arantes (depois assassina-do pelos militares), eu tinha também, como prin-cipal produtor, o Jornal Amanhã, criado pelomovimento universitário e tendo como editor oRaimundo Pereira, futuro editor do Opinião ede O Movimento.

Nessa época Ramalho e eu tínhamos já umaboa relação com o pessoal mais antigo do cine-ma paulista. Esse contato havia começado ain-

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da na universidade, através de nossa atividadecineclubista e da Revista de Cinema da Poli, naqual gente como Jean-Claude e Capovilla che-garam a escrever. Além desses dois havia oRoberto Santos (1928-1987) e o Person (LuizSérgio Person - 1936/1976), autor de São PauloS/A e O Caso dos Irmãos Naves, dois clássicos docinema brasileiro.

Ramalho e eu não perdíamos tempo. Logo àsprimeiras reações públicas contra a ditadura, nóslá estávamos, com nossa câmera Paillard 16 mm,de corda, registrando tudo. O material, que eume lembre, era quase todo levado para Cuba,

Filmagens de Liberdade de Imprensa

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revelado e copiado lá, como um “trabalho polí-tico”, já que se temia usar os laboratórios brasi-leiros por causa da repressão. Muitas vezes nóstentamos reunir todo o pessoal de cinema - enós éramos tão poucos - procurando incentivarum movimento, um projeto cinematográficoque pudesse nos unir e fortalecer. Eram discus-sões terríveis que nunca chegavam a nada. Eunão me entendia, politicamente nem com oCapovilla e muito menos com o Roberto Santos,apesar de minha admiração por ambos, comocineastas. Roberto era anárquico, falava muitoe de forma incisiva, sempre muito polêmico. Erasempre um discurso maravilhoso, apaixonado,

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mas que fazia as reuniões resultarem em gran-des polêmicas em que todos falavam ao mesmotempo sem chegar a nada.

O Capovilla era repórter do Jornal da Tarde efez uma reportagem conosco, acompanhandominhas filmagens do Liberdade de Imprensa. Amatéria, em vez de nos agradar, piorou nossasrelações. Ramalho e eu, homens casados, tínha-mos responsabilidades familiares. Ramalho tinhaduas filhas e eu o primeiro filho, o Fernando. Ea reportagem saiu com a manchete Os Garotosdo Cinema. Nós, chatos, ficamos grilados.

Uma de nossas terríveis reuniões se deu na casado produtor Jorge Teixeira (produtor de meusegundo filme, o Portinari, um Pintor deBrodowski, de 68).Nós chegamos quase a brigar, tal o nível dasdivergências, discutidas aos gritos, um exagerodifícil de explicar mas que é muito comum emreuniões de cineastas, o toque da anarquia, ochoque do que nos move, a vontade.

Eu nunca me esqueço de uma reunião emBrasília, onde tentávamos nos articular para umencontro com o Ministro Ney Braga. Ali estavatodo o cinema novo, Arnaldo Jabor, Cacá, Zelito,Leon, Joaquim Pedro, Barreto, Gustavo e cine-astas afins, como eu. A anarquia era impres-

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sionante. Zelito, desesperado, se ajoelhou pate-ticamente e, andando de joelhos, pedia peloamor de Deus para que as pessoas parassem defalar ao mesmo tempo...

Esse era o clima. E em São Paulo, o nosso mestremaior, Roberto Santos, nos impunha sua força,sua ira santa e anárquica. Talvez tenha sido esseo recado do Roberto, uma coisa do tipo“Cineastas, desuní-vos!”, uma ojeriza à organi-zação política.

Depois da filmagem do Liberdade de Imprensa,em 66, eu e Ramalho participamos, comoassistentes, do processo de montagem de umdos filmes produzidos pelo Thomaz Farkas, oótimo Subterrâneos do Futebol, do MauriceCapovilla.Desta forma nós nos aproximamos do Farkas ede dois outros cineastas baianos que construírambelas carreiras: Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares(1935-2000).

Com Paulo Gil, depois, eu trabalharia no GloboRepórter, programa dirigido por ele. Eu era umdos cineastas que realizavam esse belo progra-ma durante os anos 70 (até que os repórteresda Globo, mais dóceis, menos problemáticos,nos substituíssem). Os outros cineastas, além demim, eram o próprio Capovilla, o Eduardo

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Coutinho e o Walter Lima Jr. Também HermanoPenna e Wagner Carvalho chegaram a filmarpara o Globo Repórter.

Cena de Liberdade de Imprensa

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02. Rumo ao longa-metragem

No começo dos anos 60, enquanto no Rio, cine-astas de vários estados e cariocas faziam nascero Cinema Novo, o clima em São Paulo beirava adesolação. Ainda se respirava o ar viciado, car-regado de culpas e frustrações do fracasso daVera Cruz, sem dúvida o maior projeto de umcinema industrial no Brasil, tão carregado deequívocos quanto generoso e de qualidadeinquestionável.

De qualquer maneira a Vera Cruz alimentoumuitas esperanças, no início dos anos 50, criandodiretores novos, lançando atores e atrizes desucesso e formando uma geração de técnicosaltamente qualificados, coisa que fazia falta aonosso cinema. E toda essa gente, de repente, seviu sem trabalho, sem perspectiva.

O setor de publicidade é que se beneficiou, emuito, dessa geração formada na Vera Cruz.Em compensação, fazer cinema em São Pauloficou tremendamente mais difícil, com o des-gaste provocado pela falência e o fantasma dasdívidas.

As empresas de cinema funcionavam numaregião urbana deteriorada, que acabou sendoconhecida como Boca do Lixo.

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E o cinema comercial, decadente, ficou ali, meioque identificado com aquela paisagem degrada-da e sórdida. Funcionavam ali, em torno da R. doTriunfo, as distribuidoras estrangeiras e tambémas maiores produtoras e distribuidoras paulistas,como a Maristela do Mário Civelli, a Cinedistri,do veterano Oswaldo Massaini (1919-1994), pro-dutor de O Pagador de Promessas.

Muitas outras pequenas produtoras foram sefixando por ali, como se a dispersão causadapelo fim da Vera Cruz encontrasse ali seu mo-mento de reencontro, o reencontro do possí-vel, onde se produziam filmes baratos, bem aogosto dos exibidores que, aliás, financiavam amaior parte dessa produção. Financiavam e usa-vam nas brechas de programação, atraindo umpúblico crescente de baixa exigência, principal-mente ligado à temática sexual. Um públicofacilmente manipulável, que podia ser atraídomuitas vezes só pelo título do filme, sugerindosacanagens, mulheres peladas, trepadas. É noque deu o fim da Vera Cruz, onde, apesar dosequívocos, do artificialismo dessa implantaçãoexótica, podia-se respirar a cultura cinemato-gráfica, o respeito e mesmo o amor pelo bemfeito, a exigência de qualidade levada por ta-lentos como o brasileiro Alberto Cavalcanti eos muitos técnicos ingleses e italianos trazidospor ele.

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Cineastas como o Person e Roberto Santos, nos-sos principais veteranos ligados a uma idéia au-toral de cinema, eram a pequena ilha de um bomcinema e, assim mesmo, com grande dificulda-de de se realizar.

Para nós, esse clima só começou a mudar com apersistência e militância de nosso grupo, a partirde 63, trabalhando a idéia de um cinemaindependente em São Paulo. Depois, numgrande salto de qualidade, a produção super-profissional dos documentários de ThomasFarkas. E a geração de jovens cineastas com oprojeto de um cinema autoral feito na própriaBoca do Lixo, com Mojica, Candeias, CarlosReichenbach, Sganzerla e por onde aindacirculara gente como o Márcio de Souza, SylvioBack, David Neves.

Depois do Liberdade de Imprensa, Ramalho eeu resolvemos ir logo “pras cabeças”: criar umaprodutora de cinema profissional e levar adiantedois projetos de longa-metragem, um meu eoutro dele. O meu era um projeto super-interessante, com título provisório de O Saque,com a história de um líder populista que, paravencer os poderosos de sua terra - e conquistaro poder pelo voto - se alia a um aventureiro, declasse média, que tenta, a todo custo, suaascensão social, procurando para si um lugar

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entre os poderosos. A história era baseada emfatos, na ascensão de um líder populista de mi-nha terra, Ituiutaba e cuja história acaba em 64,sendo cassado juntamente com seu aliado(baseado na história, verdadeira, de meu irmão,também cassado em 64). Eu cheguei a convidaro fotógrafo Affonso Beato, que ainda hoje mecobra o convite...

O projeto do Ramalho era uma adaptação deum livro do Inácio de Loyola: Anuska, Manequime Mulher, vindo na onda de adaptações doLoyola iniciada com Bebel, Garota Propaganda,do Capovilla (filme no qual fui assistente de pro-dução). Criamos, então, a Tecla Produções Cine-matográficas Ltda. (Ramalho, eu, João SilvérioTrevisan, que fora meu assistente em Liberdadede Imprensa, e Sidney Paiva Lopes, que fora dire-tor de som).

O Ramalho, ao contrário de mim, sempre teve acabeça mais voltada para um cinema de mer-cado, e então fizemos um acordo: primeirofilmar Anuska, porque era, claro, um projetomais “comercial”. Ainda mais que teria comoastro principal a maior estrela de TV da época,o Francisco Cuoco. Depois, com o que certa-mente ganharíamos com Anuska, faríamos omeu filme.

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Quantas vezes, desde essa primeira aventuranossa, ouvi e vi cineastas com essa ilusão de pro-jetos infalíveis, comerciais!

Eu me lembro agora do Person, o talento deobras monumentais como São Paulo S/A e OCaso dos Irmãos Naves, decidir fazer um filme“comercial” para, com o resultado do filme,ajudar nossa distribuidora recém-criada e reali-zar seu sonho de filmar A Hora dos Ruminantes,baseado no romance do goiano J.J. Veiga e comroteiro do próprio Person e do Jean-ClaudeBernadet. Eu fui ver o Person filmar, ele filmavana maior fossa e o filme, Panca de Valente, alémde ruim, foi um fracasso, enquanto seus filmesautorais iam bem de bilheteria...

O fato é que Anuska, com Francisco Cuoco etudo, também não fez sucesso. Eu produzi o fil-me, pela Tecla, tendo na equipe de produção oJulinho Calaço e o Trevisan. Ramalho caprichouno filme, tínhamos grua e arcos voltáicos nasfilmagens. O filme ficou caro demais para aépoca, coisa de 130 mil dólares quando a pro-dução comercial da Boca não passava dos 30 mildólares. Nós ficamos com muitas dívidas, algu-mas delas com o próprio cursinho do Ramalho,o Curso Universitário. E nem eu, nem o Trevisan,nem o Sidney, podíamos fazer nada, éramos osabsolutamente duros do negócio.

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Eu, então, migrante, sozinho nessa megalópolis,nem pensar. O fracasso subiu à nossa cabeça,gerando um desgaste principalmente meu como Ramalho, que se julgava abandonado com asdívidas. Desgaste que, na verdade, nunca maissuperamos totalmente. Só agora, passados maisde trinta anos, voltamos a nos relacionar comoamigos, o que é bom, pois bem sei o que o Rama-lho significou para mim no início de carreira.

Nessa época, nós havíamos nos aproximado doPerson, uma de nossas referências brasileiras. Ecom ele, planejamos criar uma distribuidora, se-guindo a iniciativa dos cineastas cariocas, comBarreto na cabeça, que haviam criado a Difilm.

Acontece que os mercados de São Paulo e doRio sempre foram muito diferentes e a tendênciaera dos filmes paulistas irem mal no Rio e vice-versa. Nós propúnhamos, então, criar uma distri-buidora em São Paulo e intercambiar serviços.Pelo menos a partir de minha época, com ocinema paulista em crise, o cinema do Rio, sem-pre foi politicamente mais eficaz, com muitacapacidade de articulação com os diversos pode-res e mesmo criatividade diante de dificuldadesdo cinema brasileiro.

Isso sempre colocava o cinema paulista a rebo-que, correndo atrás para não desaparecer, obri-

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gado a repetir as experiências do Rio, mesmoque fazendo críticas quanto aos métodos e àcentralização da política cinematográfica no Rio.

E era o que acontecia naquele momento, quan-do eu e Person propusemos a distribuidora emSão Paulo.

O pessoal da Difilm não aceitava. E nós, imagi-nando ver a produção paulista recuperar fôlego,peitamos de criar nossa distribuidora, a RPI-Filmes Brasileiros em Distribuição. RPI vinha daidéia de “Reunião de Produtores Independen-tes”, formada de três empresas, duas delas deSão Paulo e uma do Rio. A do Rio era a Servicine,do Iberê Cavalcanti, que tinha ficado amigo doPerson. As de São Paulo eram a Tecla e a Lauper,produtora do Person e do Glauco (Glauco MirkoLaurelli, montador maravilhoso, também diretorde alguns filmes do Mazzaroppi e do primeirofilme de Sônia Braga, A Moreninha).

A RPI, claro, sem a força do cinema carioca daépoca, soçobrou, transformando-se em distribui-dora de filmes malditos, inclusive dois meusfeitos em 1969: Gamal e Em Cada Coração umPunhal (esse último, de três histórias: uma doSebastião de Souza, o Transplante de Mãe, outrado José Rubens Siqueira, o Clepsuzana e o últimoepisódio, O Filho da Televisão, meu).

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Além dessas duas loucuras, distribuímos outrosexemplares - aliás muito talentosos - da loucuranacional do cinema brasileiro da época: CaveiraMy Friend, de Álvaro Guimarães; A VirgemPrometida, de Iberê Cavalcanti; O Diabo Morano Sangue, de Cecil Thiré, produzido e interpre-tado pelo goiano João Bennio e a revelação deMeteorango Kid, Herói Intergalático, de AndréLuiz de Oliveira. Nós fomos pioneiros, chegamosantes do Sundance e sofremos pela antecipaçãohistórica... Só é preciso dizer que quem nos sus-tentava, isto é, quem sustentava nosso trabalhode distribuição, com escritório na Boca do Lixo(Rua dos Gusmões) eram os velhos filmes doMazzaroppi que o Glauco conseguiu. É isso aí.

De qualquer maneira nós conseguíamos colocaresses filmes no mercado. Quem se dedicava maisà distribuição éramos eu e o Person, com brigashoméricas com nosso principal exibidor, a SulPaulista, dirigida pelo Paulo Sá Pinto. Eles, osexibidores, como sempre, não tinham o menorrespeito pelos filmes brasileiros e tiravam osfilmes com a facilidade proporcional à dificul-dade com que os programavam. Eu tive meudia de vingança, com A Virgem Prometida, umdos maiores miúras que eu jamais vi (miúra éum jargão do mercado de cinema para filmesdifíceis, advindo da expressão “cu-de-touro”, on-de presumivelmente não entra nada).

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Eu acertei o lançamento do filme em dois cine-mas, um na Paulista (acho que o Belas Artes) eoutro no centro, o Olido. E com a garantia míni-ma de duas semanas. O filme derrapou comple-tamente e o exibidor tirou o filme, apesar demeus protestos. Eu então apelei para o INC(Instituto Nacional de Cinema). O INC fez duasreuniões de conciliação comigo, o representantedos exibidores era o Borba Vita, Presidente doSindicato dos Exibidores. O Vita não conseguiaacreditar em minha petulância, eu tinha a carade moleque, apesar dos 28 anos. Vita, de quemacabei amigo, mais tarde - era exaltado, de falarouca, ameaçador, mas do tipo que parecia des-denhar de sua própria braveza. Ele teve que con-ciliar comigo e o filme voltou aos cinemas.

Bons tempos!

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03. Com Prestes e Marighela, sem saber

Com a crise gerada pela frustração de nosso pro-jeto de engatilhar meu filme ao esperado suces-so do filme Anuska, eu fui entrando em para-fuso. O ano de 1968 é um ano difícil para todomundo, com o agravamento da crise políticabrasileira e pelo ressurgimento da oposição àditadura militar. Um ressurgimento tanto noCongresso Nacional quanto nas ruas, com aspasseatas estudantis e o crescimento das alasmais radicais, pró-luta-armada, dos grupos deesquerda.

Para mim, 68 significava um beco sem saída tan-to no cinema quanto na política. Eu voltei a tercontato com o Partido ainda em 65, um anodepois do golpe. E participei de uma “Confe-rência Municipal”, o congresso dos comunistasda cidade de São Paulo, em 66. Claro, o con-gresso era clandestino mas foi feito dentro dacidade, numa mansão toda cercada de árvoresaltas, bem protegida. Nesse congresso já sefalava, e muito dos conflitos internos do Partido,a pressão da ala esquerda no sentido da lutaarmada.

Eu fui eleito delegado ao Congresso Estadual,que se daria em 67. Num dia de manhã, noponto combinado, parou uma picape, com

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carroceria de lona. Me acenaram, eu entrei e, ládentro, mesmo sem a menor visibilidade, meordenaram que pusesse uma venda nos olhos.Eu obedeci, andamos assim mais de uma horaaté desembarcarmos numa chácara à beira deuma represa, eu achava que era Guarapiranga.Por disciplina, eu nunca quis saber onde e dequem era a chácara: saber as coisas, naqueletempo, representava um perigo. Ali começava,para mim, uma aventura kafkiana.

Estava claro, desde o primeiro dia, que asdivisões dentro do partido haviam chegado aum limite sem volta. Dois grupos disputavam osvotos e as adesões dos militantes. Um, maisligado a Prestes, mais moderado e que contavacom a maioria da máquina do Partido. Outro,mais radical, ligado a Marighella, tentando levaro Partido à luta armada.

Mas as posições já estavam tomadas e tudo sepassava nos bastidores, nas reuniões ultra-secretas de dirigentes. Os representantes dessasalas se degladiavam num silêncio terrível, dei-xando os militantes desnorteados. Eu nãoentendia nada.

Os vários temas dos debates, como “re-organização do Partido”, “análise da situaçãointernacional”, etc., eram discutidos nas reu-

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niões abertas como se estivéssemos todos empaz, num piquenique da unidade partidária,enquanto os “capas-pretas” (homens da altaburocracia do Partido), circulavam em outrasesferas de problemas e em outras dependênciasda chácara.

O clima era demasiadamente tenso, chegandoalgumas vezes ao perigo. Afinal, essa semprefoi uma tradição dos partidos comunistas, resul-tante de seu lado militar: as brigas internas sãoperigosas e, às vezes, mortais. Os adversários setransformam em inimigos e uns usam, contraos outros, de todas as armas de que dispõem. Aprimeira, terrível, é a desqualificação enquantorevolucionário e marxista, avançando rapida-mente para a denúncia de anti-soviético e atéagente do imperialismo. Essas denúnciasvisavam, primeiro, desonrar o dirigente, minara confiança de suas bases, para depois justificarsua eliminação política ou mesmo física. Eu melembro de alguém, justamente um que usavauma longa capa, dar um recado enigmático dePrestes aos “traidores”, ameaça respondida peloolhar furioso de um desses “traidores” que saiuda sala pisando duro, acompanhado de seugrupo.

Dois (ou três?) dias depois eu voltava para casa,dentro da mesma picape. Durante a hora e meia

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do trajeto, de olhos vendados, eu ainda tentavaorganizar essas impressões em minha cabeçaatordoada. Era impossível. Eu me perguntava,então, de que tipo de reunião eu havia par-ticipado e se tudo aquilo não teria passado deum enigmático pesadelo.

A verdade é que naquele Congresso se sedi-mentou a divisão do Partido, com a saída dogrupo de Marighela e Toledo (aliás, JoaquimCâmara Ferreira, meu conhecido dos tempospacíficos do Comitê Estadual paulista). Era ocomeço da luta armada no Brasil.

Leio agora, no livro de Emiliano José (CarlosMarighella, pág. 217) que aquele CongressoEstadual na verdade se deu em Campinas, emabril de 1967. Marighella era ainda secretário-geral do PCB paulista, “centro nervoso daatividade do PCB no Brasil”, afirma Emiliano. E,confirmando minhas impressões, segue suanarrativa: “O clima era tenso. O Comitê Central,ciente da força de Marighella no Estado, enviauma delegação chefiada pelo próprio Prestes,evidenciando a importância que a parcelahegemônica do partido dava ao encontro”. Deusdo céu! Eu não me lembro de ter visto - oureconhecido - nem Prestes e nem Marighella nes-se Congresso, apesar de conhecer os dois.

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Só uma coisa pode explicar isso: a rigidez dosesquemas de segurança dos dois líderes, agoraem confronto. Como eu já disse, as grandes deci-sões eram tomadas em salas fechadas, pelos“capas-pretas”. Prestes e Marighella, já em climade guerra, não circulavam perante os simplesmortais, como eu.

O processo de radicalização prosseguia,atingindo outras áreas da sociedade. Em Osasco,estoura uma surpreendente greve de metalúr-gicos. A greve ganhou as ruas, enfrentou arepressão do regime e rebateu, com ovos na ca-ra, a mediação do Governador Abreu Sodré,numa comemoração do Primeiro de Maio, naPraça da Sé.

O movimento estudantil também se radicaliza.As passeatas tornam-se a cada dia maisviolentas, alguns militantes chegam a participararmados. E a repressão aumentava, gerandomortes traumáticas como a do estudante EdsonLuiz (no Rio).

O meio cultural também se agita, tocado pelaradicalização de todas as matizes e visível nosfestivais de música onde, em contraste com arepressão e a rigidez militar, a juventudeexternava, até com exagero, seu desejo deliberdade e alegria.

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Na verdade tudo parecia extremamente con-fuso, com músicas que pareciam expressar, naverdade, um estranho conformismo, como emA Banda (1966) e as canções do Tropicalismo,nas quais os artistas (e seu público) afirmavamo desejo de expurgar a culpa e viver a vida talcomo ela se oferecia, em grande êxtase, semmais desejos do que o de ser feliz, de seproclamar “livre” para a vida.

A juventude, público preferencial desses movi-mentos, estava longe desse conformismo apenasaparente das músicas. A adesão emocional a es-sas propostas culturais serviam como afirmação,uma instintiva e necessária oposição aosmilitares.

Não é por acaso que o sensível Zé Celso, dogrupo do Teatro Oficina, rompendo com oexcelente, mas bem comportado, teatro deesquerda feito até ali, reinterpreta ChicoBuarque, colocando sua música Roda Viva nopalco, como expressão do descontamento e dacrítica. A invasão, pelos militantes do CCC, doTeatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada,é uma das marcas desse tristemente inesquecívelano de 68.

Não é por acaso, também, que os próprios fes-tivais se tornassem a cada dia mais radicais,

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tomados pelo processo de radicalização deque o autor Geraldo Vandré era um dos arau-tos...

Primeiro Vandré surgiu com a metafóricaDisparada (Festival da Record/1966) e, em 1968,com a provocadora Para Não Dizer que Não Faleide Flores, na verdade um convite à luta armadaque se transformou em impressionante (e ca-tártico) sucesso nacional, até ser interditada pelaCensura.

Na área da política institucional, os militaresreagem a um discurso do deputado MárcioMoreira Alves e pedem licença ao Congressopara processá-lo. O Congresso, contaminadopela crescente oposição ao regime militar,rejeita o pedido. Em represália, o Governo Mili-tar decreta o fatídico AI-5 (13/12/1968), o AtoInstitucional número cinco, fechando oCongresso e restringindo, ainda mais as liber-dades civis. Agora sim, começava o verdadeiropesadelo.

Eu me sentia perdido, já sem contato com oPartido e conservando meu espírito crítico a essaradicalização. Eu permanecia, por índole, aindafiel ao projeto de luta democrática do PCB,prevista principalmente pela Resolução de 58,após a crítica ao stalinismo.

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Afinal, certo ou errado, eu havia passado todosaqueles anos, desde meu ingresso em 1962, lu-tando contra os grupos mais radicais e defen-dendo um processo progressivo de revolução, apartir do governo Jango. Essa era a linha e omeio político que eu freqüentava era extrema-mente “light”, a começar pelas minhas princi-pais referências no Partido, o Arnaldo Madeira,o Marco Antonio Coelho e o “ultra-light” OdonPereira que um dia recusou, coisa inimaginávelpara um comunista, um convite para visitar aUnião Soviética alegando que ele já conhecia aSabesp e a Cetesb e que isso já era suficientepara ele... Odon, talentoso, é o autor da polê-mica afirmação de que não eram os ônibus queandavam na contra-mão, nas faixas exclusivascriadas para eles. Quem estava na contra-mãoeram, sempre, os automóveis.

Com essa posição anti-luta armada - e já sem obalizamento partidário - eu fui entrando numprocesso de isolamento muito grande.

Muitos de meus amigos radicalizaram suas vidaspor dois caminhos que eu recusei. Um, o da lutaarmada. O outro, o das drogas. Assim, com mi-nha carreira cinematográfica inviabilizada,desamparado ideologicamente e isolado demuitos amigos, eu realmente entrei em para-fuso. É um período difícil de reproduzir.

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Um período de grande criatividade e, ao mes-mo tempo, da perda quase que absoluta de con-trole sobre essa criatividade que parecia quererarrebentar com as amarras de minha formaçãoracionalista. No cinema, não só o insucesso deAnuska me atingia.

O destino de meu filme Liberdade de Imprensame alimentou um processo anárquico de libe-ração. O filme, iniciado em 66 e terminado em67, fora visto em duas sessões. Uma no Rio, comboa repercussão no Jornal do Brasil. E uma outra,em 68, numa sessão muito significativa da SAC,em São Paulo. No programa, três filmes. Um,do Gustavo Dahl, o barroco brilhante de EmBusca do Ouro. O outro, o documentárioanárquico e despojado de Rogério Saganrzela,Documentário?. O terceiro, o meu politizadoLiberdade de Imprensa, carregado de idéias quealimentariam meu cinema por muito tempo.

Logo depois os militares detonam o Congressoda UNE, em Ibiúna. E lá, apreendem as cópiasde meu filme, que seria distribuído nacio-nalmente pelo movimento universitário, que oproduzira. O resultado disso é que o filme passoua ser clandestino, maldito - e assim ficou porcerca de dez anos, até que ousássemos desen-terrar os negativos (já bastante sacrificados) etirar uma nova cópia.

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Isso representou, para mim, uma perda imensa,já que o filme é forte, instigante e renovador,apontando, como depois analisaram várioscríticos, caminhos para a década de 70. Mas ofilme ficou pouco conhecido, atrapalhandominha carreira.

A exibição no Rio, em agosto de 67, estáregistrada no Caderno B, do Jornal do Brasil,numa matéria encabeçada por três fotos do fil-me, um relato do material filmado e um comen-tário elogioso da jornalista e crítica MíriamAlencar:“João Batista de Andrade fez Liberdade deImprensa convencido da necessidade de abrirbrechas e novos caminhos para a produção defilmes numa indústria nem ao menos esboçada.Com seu filme provou que se pode fazer umcinema lúcido com pouco dinheiro”.

Acho que Liberdade de Imprensa ainda é umdocumentário esquecido pelos historiadores,apesar de ter sido apontado como um filme queabria caminho para os anos 70. Um filme querevelava minha característica básica de filmar,muito valorizada hoje, mais de trinta anosdepois: a presença evidente da equipe, dacâmera, do diretor, de tal forma que, como dizJean-Claude Bernardet, o filme capta não o real,enquanto fetiche, mas o resultado dessa

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presença, dessa intervenção do cineasta diantedo real. Por exemplo, dando livros sobre aImprensa Brasileira para pessoas ler na rua edepois ouvindo-as, ou apresentando, de sur-presa, uma edição da revista direitista e clan-destina Acão Democrática para o jornaleiro,“personagem” do filme e perguntando a ele seconhecia a revista: o jornaleiro, diante dasurpresa, revela sua devoção à revista, “que lutacontra o comunismo” e também quem adistribuia. O filme, marcado ainda pelo minhamilitância estudantil, é carregado de idéias, massua circulação foi bloqueada pela apreensão noCongresso da UNE.

O Liberdade de Imprensa, ainda em 1968, foivisto, em São Paulo, por um de meus ídolos, odocumentarista Joris Ivens (1898-1989). A sessãofoi feita pelo Thomaz Farkas e o filme recebeuo elogio do Ivens, que acabou indicando-o parao Festival de Leipzig (Alemanha Oriental, acomunista). O Festival de Leipzig era o principalfestival internacional de documentários naquelaépoca. Eu só soube dessa história do Joris Ivensmais tarde, quando recebi o convite de Leipzig,já que não fui convidado para a sessão. Isso éuma velha mania de cineastas, o de reservar parasi e seu grupo os contatos internacionais, comouma espécie de poder, coisa que me levou, maistarde, a brigar com muitos cineastas que se

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julgavam representantes de Cuba no Brasil, bri-ga que esfriou minhas relações com muitos ami-gos, cineastas de esquerda e que, refletindo aposição cubana, torciam o nariz para o Parti-dão, com quem me identificavam. É bom lem-brar que o Partido tinha criticado o projeto derevolução latino-americana proposto por Cubae também divergia dos cubanos com relação àforma de luta contra a ditadura militar: os cubanospregavam e apoiavam a luta armada.

Pois bem, eu recebi o convite das mãos do velhoCosme (Cosme Alves Netto/1937-1996), diretorda Cinemateca do MAM-Rio, com passagem etudo. O Festival aconteceria em novembro/68 enós tínhamos que dissimular nossa viagem, jáque os militares haviam proibido viagens debrasileiros aos países comunistas.

Nós pegamos o avião para Berlim Ocidental e,de lá, atravessando o Muro, entramos naAlemanha Oriental, o que já era uma expe-riência de arrepiar, tal a militarização desse paíscomunista e a rigidez excessivamente policia-lesca de nossa inspeção na aduana, bem naestrutura do Muro de Berlim. É preciso dizer queo som das próprias conversações entre ospoliciais e a maneira dura com que nos tratavam,tudo isso batia lá dentro, no inconsciente, ondehavia um registro negativo dos alemães, ima-

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gem martelada anos a fio pelo cinema norte-americano. Para mim era decepcionante essaprimeira visão do socialismo.

Eu me chocava com os militares marchando pelasruas e pátios, com seus passos parecidos com o“passo de ganso” do exército hitlerista. E meincomodavam a subserviência dos garçons, osilêncio das pessoas, o medo de discutir, de seexpressar ou até mesmo de conversar. Vindo deum país sob o jugo de um regime militar, aquilotudo era profundamente inquietador. Eu nãoimaginava é o que se passaria depois, no festival.

Em Leipzig, os dias iam passando e meu filmenão aparecia na programação. Além de mim edo Cosme, havia ali uma representação latino-americana com umas dez pessoas. E todos sequeixavam do clima repressivo pesado doFestival, clima que refletia a perigosa tensão emtorno do problema do Muro de Berlim, cenáriode fugas, mortes, protestos, ameaças, numa daspiores fases da Guerra Fria.

Nós, latino-americanos, resolvemos então pediruma reunião com o diretor do festival, o alemãoArkenthal. Ele marcou e lá fomos nós, para asala de espera do Diretor. Ele nos fez esperarmais de uma hora, enquanto sua secretária,espertamente, nos servia vodka.

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Quando Arkenthal apareceu, nós estávamos to-dos tocados pela bebida. E ele nos deu a notí-cia: o filme Liberdade de Imprensa não seriaexibido.

“Nós vimos o filme várias vezes”, começou ele.“Discutimos muito, nosso desejo era de que ofilme fosse exibido mas julgamos que isso éimpossível. Nesse momento delicado da políticainternacional, no qual somos alvo permanentede provocações, certos temas não podem serabertos ao debate público”.

Quando ele dizia “nós”, eu sabia que era adireção política do Festival, o Partido. Eu argu-mentei que aquela era uma notícia desconcer-tante, já que o filme acabara de ser apreendidopela ditadura brasileira, fascista.

Quem ficou desconcertado foi o Arkenthal queteve que reafirmar a exclusão do filme. E quemficou furioso com isso foi o Joris Ivens que,adoentado, resolveu ir embora, deixando-meum convite: levar o filme para Paris, onde elepretendia exibi-lo na TV, num programa deesquerda chamado, acho, Les États Generaux.

Terminado o Festival, eu fui para a França, como filme debaixo do braço. Joris Ivens estavamuito doente e eu marquei encontro com sua

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mulher, a Marceline Loridan. O local do en-contro não poderia ser mais significativo des-sa época: um bar no Quartier Latin, em Paris.Era dezembro de 1968 e pelas ruas ainda erapossível ver as marcas da revolta estudantil demaio daquele ano, em Paris, revolta que seespalhou pelo mundo como um vento reno-vador diante do prolongado período de aco-modação da esquerda tradicional em todo omundo. As marcas eram o silêncio das pesso-as, as pichações. E a presença ostensiva dapolícia nas ruas.

Eu me encontrei com Marceline num bar daSaint Germain. Durante mais ou menos umahora, mantivemos um diálogo difícil, com meufrancês ainda muito deficiente. Marceline, aofinal, ficou com a cópia de meu filme para aexibição prevista pelo Joris Ivens.

Durante a conversa, eu só me espantei com opedido de Marceline, em vários momentos, paraque eu falasse baixo, fazendo referência aospoliciais que rondavam o bar. Era demais paramim.

Me incomodava demais essa sensação de cerco,a começar da saída meio clandestina do Brasil,passando pela aterrorizante entrada naAlemanha Oriental e a decepção em Leipzig.

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E essa sensação era ainda alimentada, em Paris,pelo insuportável clima de boatos gerados nacolônia de brasileiros exilados, boatos quefalavam de um novo golpe no Brasil.

O novo golpe seria o AI-5. Eu preferi enfrentaro problema em minha própria casa. Me pareciamais saudável. Assim, apesar de tantos rumorese alertas, eu voltei ao Brasil já vivendo sob odomínio do medo e da falta de perspectiva. Ocaminho democrático parecia bloqueado defi-nitivamente, como um convite tenebroso àguerra civil.

Eu continuava contra a luta armada e, a partirdaquele momento passei a conviver com asseguidas notícias de mortes de amigos ecompanheiros, como o Antônio Benetazzo, opolitécnico Olavo Hansen, o Arantes (JoséRoberto Arantes), ex-presidente do Grêmio daFilosofia e um dos produtores do Liberdade deImprensa, sua mulher, Lola (Aurora Maria doNascimento Furtado), cunhada do RenatoTapajós. E tantos outros, mortes que iamdeixando um rastro de perda e destruição nahistória desse país.

O ano de 69 me pegou num destempero total.Eu nem caminhara para as drogas (que nuncaaceitei) e nem para a guerrilha.

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Desorientado, descarregava as tensões escreven-do sem parar e elaborando roteiros que jamaisseriam filmados, quase que um roteiro por dia,ainda lutando para ganhar a vida de algumamaneira, já que, a essa altura, eu e Assunção tí-nhamos dois filhos: Fernando, nascido em 66,com pouco mais de dois anos, e Vinicius, nasci-do em 68, vivendo seu primeiro ano de vida emmeio a esse terror. Felizmente a Assunção tinhaseu trabalho garantido, uma renda que assegu-rava o mínimo de nossa sobrevivência. Eu aca-bara de esgotar o dinheiro dos últimos traba-lhos, dois filmes institucionais que realizei parao Romain Lesage (um chamado ErradicaçãoCafeeira e outro sobre a Usiminas), raríssimostrabalhos comerciais ou institucionais que fiz emtoda a minha vida, já que eu sempre odiei essetipo de compromisso.

O Rudá de Andrade, mais uma vez, me salvou apele, me convidando para lecionar cinema naECA, a Escola de Comunicações e Artes da USP,recentemente fundada pelo próprio Rudá, comPaulo Emílio, Jean-Claude Bernadet, Maria RitaGalvão. Eu passei a lecionar na cadeira deRealização Cinematográfica, experiência quequero, um dia, relatar, já que ela envolve todomeu problemático relacionamento com arepressiva Universidade desta época e com umcerto futuro jovem cinema paulista (Aloysio

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Raulino, Alain Fresnot, Chico Botelho, AndréKlotzel, Reinaldo Volpato, Augusto Sevá eoutros que trabalharam em filmes meus, muitosdeles meus ex-alunos).

Eu continuava, com o Person, trabalhando emnossa distribuidora, a RPI, quando o até entãocenógrafo Sebastião de Souza me fez umconvite: ele havia filmado um média-metragem,Coração Materno, hilária adaptação da músicade Vicente Celestino, com Etty Fraser e JohnHerbert. E me propunha filmar mais um episódiopara montar um longa-metragem. O JoséRubens Siqueira filmaria o terceiro episódio.

Apoiado em minha delirante imaginação do mo-mento, elaborei um roteiro no mesmo dia doconvite, a história de O Filho da Televisão,também com o John Herbert e tendo a JoanaFomm no papel da mulher que se apaixona poruma idealizada imagem de juventude, encar-nada por uma criação de seu marido, publicitário(John Herbert): um garoto-propaganda comquem ela transa, assistindo televisão, e gerando,ao final de toda uma loucura, esse filho da TV.O filme, meu primeiro de ficção, é o últimoepisódio do longa Em Cada Coração um Punhal,de 1969. Apesar da loucura, o filme revela umtom de crítica ao consumismo, ao domínio daTV e à duvidosa imagem idealizada, usada até

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mesmo na publicidade, da juventude, resva-lando também para uma visão crítica do volun-tarismo juvenil que, denunciando a “passividadedo povo”, resolve fazer as coisas em nome dele.

Tudo isso, claro numa leitura que faço hoje deum filme que é extremamente ágil (uma dasmelhores montagens do Silvio Renoldi) eengraçado, apesar da loucura dominante, umcerto descontrole ideológico. O filme teve umaforma de produção e realização que muito tinhaa ver com o Liberdade de Imprensa e era bemadequado àqueles tempos.

Filmando O Filho da Televisão, câmera de Jorge Bodanzky

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O fotógrafo (e câmera) era o novato JorgeBodanzky, que logo se revelou um dos melhorescâmeras do cinema brasileiro. Em O Filho daTelevisão, eu inventei o que depois FernandoPeixoto chamou “cinema de guerrilha”: comoera perigoso filmar nas ruas, por causa daintensa repressão, eu primeiro ensaiava com osatores, conversava com o Bodanzky e depois iapara o local (Viaduto do Chá, por exemplo).

A gente descia rápido dos carros, os atoresencenavam na hora e o Bodanzky filmava tudocomo se filmasse um documentário. Isso davauma agilidade muito grande às cenas,interferindo em sua própria qualidade enquantointerpretação. Nessa época começava-se a falarde um cinema marginal, principalmente a partirde A Margem, de Ozualdo Candeias (1967), osfilmes do Mojica (“Zé do Caixão”) e O Bandidoda Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968),seguidos por As Libertinas (1968) filme de trêshistórias dirigidas por Antonio Lima, CarlosReichenbach e João Callegaro. Era um cinemaque, procurava se alinhar ao cinema comercialda Boca do Lixo, tentando exercer, nesse terrenominado, mas possível, uma nova criatividade,abandonando ou, pelo menos, passando aolargo dos “compromissos” estéticos e políticosdo Cinema Novo.

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Embora eu não tenha exatamente me colocadocomo “militante” desse novo cinema, meus pri-meiros filmes de ficção acabaram se qualificandocomo tal. Aliás, recebidos com grande entu-siasmo por todos, como atestam vários artigosdo Jairo Ferreira (1946-2003) no São Paulo Shim-bum, esse estranho jornal da colônia japonesaque cedia uma coluna para o Jairo e onde eumesmo escrevi um dia, um texto bem signifi-cativo: O Delírio da Boca, no qual narro umafictícia conversa minha com Mojica: sem que nosdéssemos conta, desligados, seres pré-históricosandavam pela Boca do Lixo, esmagando tudoenquanto conversávamos.

Entusiasmado com a primeira experiência nolonga-metragem, logo engatei, ainda no mesmoano, a produção de um novo filme, agora sozi-nho. Chegava a vez do Gamal.

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04. Gamal - a emoção e a negação(O Cinema Marginal e eu)

“Uma bela surpresa”, diz a crítica paulista IdaLaura, no conservador O Estado de São Paulo.“Um filme indesejável dentro do cinema bra-sileiro” diz o crítico José Carlos Avellar, reconhe-cidamente de esquerda e ligado ao CinemaNovo.

Essa inversão, ou seja, ser aplaudido pela direitae condenado pela esquerda me caiu como umtapa na cara, aprofundando minha crise pessoal.Gamal foi exibido em Brasília, no Festival de1968, e eu tive que ouvir as mais diversas conde-nações ao filme por parte de pessoas como, porexemplo, o Joaquim Pedro de Andrade que, ami-go, tentava me convencer de que o “irracio-nalismo” não só não levava a nada como eraum perigo. Claro, Joaquim colocava Gamal soba pecha do irracionalismo, tal e qual havia feitoo Avellar.

Esse bombardeio, na verdade, tinha um alvocerto: o crescente movimento do cinema mar-ginal tanto no Rio (Bressane, Neville d’Almeida,Luiz Rosemberg) quanto em São Paulo, princi-palmente com Rogério Sganzerla. Os cineastase os filmes, indistintamente, eram pejorativa-mente chamados de “udigrudi”, corruptela de

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“underground”, cultura marginal importada dosmovimentos jovens, principalmente norte-americanos. E por que essa marcação?

Seria uma longa discussão de fundo, na qualteríamos que levar em conta a formação básicados cineastas do Cinema Novo, a influência polí-tica que, direta ou indiretamente, o Partidoexercia entre eles e o sentido profundamentenacional - e crítico - que seus principais criadorese teóricos davam ao movimento.

O Cinema Novo brasileiro nasce, como muitascinematografias de todo o mundo, como resul-tado do renascimento do cinema no pós-guerra,principalmente influenciado pelo neo-realismoitaliano. Um aspecto importante de todos essesmovimentos é que eles rompem com a tradiçãocinematográfica de seus países, uma tradiçãoburra, imitadora do cinema americano e, aomesmo tempo, populista, de concessão ao alie-nado gosto das massas populares, gostodialeticamente formado e deformado pelopróprio cinema.

No Brasil, o movimento corresponde à ascensãode novas gerações pós-guerra e pós-desenvol-vimentismo dos anos 50, em busca de um projetomoderno e não populista para a sociedadebrasileira.

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O gosto pelo cinema, como arte, como meio deexpressão, corria por essa raia de uma certaracionalidade, como parte de uma proposta deavanço social, de transformações profundas emodernização da arcaica estrutura socialbrasileira.

Questionado, numa segunda dentição, porjovens cineastas de novas gerações, o CinemaNovo reage desqualificando e jogando as novaspropostas na vala comum da marginalidade eda impotência.

Dirigindo Joana Fomm e Paulo César Pereio

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O resultado, seguindo a lógica desse embateideológico que agora atingia meu filme, é queessa crítica batia fundo em minha formaçãopessoal, política. E eu passei a rejeitar Gamal ,mesmo depois de ganhar, com ele, dois prêmiosno cobiçado Air France/70: o de Diretor Reve-lação e o de Melhor Atriz (Joana Fomm, por essefilme e por As Gatinhas de Astolfo Araújo), numano bem paulista em que O Profeta da Fome,de Maurice Capovilla, ganhou o prêmio de me-lhor filme.

Não era fácil esquecer e rejeitar Gamal, título aque acrescentei, influenciado pelas exigências

Cena de Gamal

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de mercado, o aposto O Delírio do Sexo. Aliás,afundado em dívidas, vendi o filme ao produtorAntonio Polo Galante, da Boca paulista, quesempre disse que ganhou dinheiro com ele...

Gamal é um filme carregado de invenções, temuma carga pessoal muito forte e fora realizadocomo uma espécie de vômito, um processo decriação espontâneo e incontrolável, forte, apesarda perda de um claro sentido histórico.

Mas em vez de defender Gamal, eu me posi-cionei do lado de minha “tradição”, tentandoretomar minha capacidade crítica, a busca deum cinema enraizado na história e na políticabrasileira.

A verdade é que eu não me dava bem com asidéias dos cineastas chamados de “marginais”.Suas preocupações não batiam com as minhas,não curtíamos o mesmo tipo de cinema.

Eu continuava um defensor das idéias básicasdo Cinema Novo e por isso sofria, tentando en-contrar, em Gamal, a representação dessas raí-zes, sem perceber que, no fundo, o que o filmerepresentava mesmo - e porque não? - era minhacrise pessoal, a falta de perspectiva, o isola-mento. A beleza do filme, que ninguém negava,deveria ser entendida nesse terreno, o da difi-

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culdade, sem negá-lo, como foi feito, de formaaté cruel, justamente pelas pessoas com quemeu me identificava e, em seguida, por mimmesmo. Mas, de uma forma ou de outra, o apelode minhas raízes exigia de mim que buscasse denovo meu caminho, como acabou acontecendo,apesar de minhas sucessivas crises pessoais e daequivocada violência de rejeições como a quese deu com Gamal, uma redução do filme a um“condenável conteúdo de crise”.

Aliás, talvez seja essa a marca de meu cinema: acrise. Uma crise matizada pela minha formaçãopessoal, as esperanças alimentadas em 64 e ofim dessas ilusões. De certa forma me vejo, emtoda minha trajetória, tentando me recompordessa perda. Mas vendo que a recomposição setornava, cada vez mais, impossível, desembo-cando, por exemplo, no ritual de apodrecimentode O País dos Tenentes, realizado quase vinteanos depois de Gamal.

A decisão de recomeçar, buscar um caminho queeu julgava ter perdido com Gamal, me levou aum novo período de isolamento, agora no mun-do do cinema: exilado do cinema marginal enuma relação crítica com o Cinema Novo. Euainda curtia minha adolescência...

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Cena de Gamal

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05. A reconstrução

Sei que a idéia de “reconstrução” pode chocar.Lembra os processos de autocríticas forçadaspelo stalinismo. Não estamos, aqui, muito longedisso, embora o stalinismo aqui não tenha seexercido amparado pelo poder de estado, mastão somente pela ideologia, pela sujeição ao queseus dirigentes ou ideólogos julgam ser revolu-cionário e correto.

Eu, no entanto, sem medo das palavras, sigo emfrente com “reconstrução”. Na verdade, nãotomo esse processo pessoal exatamente comouma coisa imposta de fora, embora ele tenhasido, pelo menos parcialmente, induzido pelaintolerância praticada por pessoas que eusempre admirei e, aliás, ainda admiro. Essa éuma ambigüidade que faz parte de minhaformação como cineasta político, um conflitoque eu tive, quem sabe ainda tenha, queruminar por muito tempo: o conflito entre sermilitante, politicamente comprometido e, aomesmo tempo, artisticamente livre.

Sei que a persistência dessa busca tanto merendeu adeptos, admiradores, quanto alimen-tou uma imensa recusa em muitas áreas docinema brasileiro e da mídia. Essa divisão sempreme causou mal-estar, a sensação de que, por

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mais que eu tentasse, jamais conseguiria juntaras duas pontas de meu próprio enigma. Um to-que de Julien Sorel, quem sabe?

Curiosamente, o processo de “reconstrução” sedeu numa parceria com um velho amigo que,justamente, parecia caminhar em sentidooposto, o da “desconstrução”: o crítico decinema Jean-Claude Bernadet, autor de umclássico da história-crítica do cinema brasileiro,o livro Brasil em Tempo de Cinema, no qual fazleitura crítica do projeto cinematográfico brasi-leiro, principalmente a partir do Cinema Novo.

Jean-Claude, como eu, tinha sido militante doPCB e passava por um momento de rejeição aessa origem, incomodado com a tendênciastalinista de controle ainda vigente no Partido.Eu, ao contrário, achava que o Partido, apesarde tudo, apesar de sua burocrática direção,apesar do mandonismo, ainda era importanteno processo político brasileiro, representandoum projeto de luta ampla e aberta pela demo-cracia, em contraposição à proposta de lutaarmada, isolacionista e que, a essa altura, iníciodos anos 70, já estava tragicamente derrotada.

Jean-Claude e eu fomos convidados, em 1970,pela Comissão Estadual de Cinema de São Paulo,para realizar uma série de três filmes sobre o

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cinema paulista, chamada Panorama do CinemaPaulista. Oficialmente a proposta era que eu diri-gisse os filmes e Jean-Claude fizesse a pesquisae o roteiro. Mas nós, na verdade, fizemos tudojuntos, num trabalho de parceria. Nós jáhavíamos trabalhado juntos, na montagem doGamal, monitorados devidamente pelo GlaucoMirko Laurelli. Agora o nome do Jean-Claudenão poderia aparecer nos letreiros da série doPanorama: ele estava cassado pelo AI-5, juntocom inúmeros outros professores universitários.

Faço aqui, como tenho feito sempre que falodesse trabalho e como consta do texto de minhatese de doutoramento na USP em 1998, essacorreção de justiça, informando sobre essaparceria que muito me honra tanto pelo respeitoquanto pela amizade que tenho pelo Jean-Claude.

O primeiro filme da série foi o longa-metragemPaulicéia Fantástica sobre os primórdios do cine-ma de São Paulo até os anos 30. O Jean-Claudepropunha uma busca de narrativas menoscomprometidas com o realismo, tentandotrabalhar com “significados”, impressões ereleitura de ícones. Com isso, tentava escaparda condução da imagem pela relação de suaorigem com a história ou a política e nóstrabalhávamos o material histórico sem um

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respeito hierático ao seu significado original pró-prio, na busca de uma espécie de ficção cinema-tográfica reinventada e que pudesse transmitiruma visão mais sensorial desse passado. De certaforma, eu fazia ali minha “transição”, traba-lhando ainda - e à vontade - mais o nívelsensorial do que o histórico.

Mas apesar dessa busca, dessa fuga ao realismo,o pensamento de Jean-Claude seguia tocado poruma intensa racionalidade que - acho - ele gosta-ria de superar. E eu absorvia essa racionalidadecomo quem estivesse no meio do deserto, maispremido pela necessidade do que pelasuficiência...

O resultado é um filme curioso, cheio de inven-ções, experimentações. Mas desagradou a muitagente boa, como por exemplo o Paulo Emílio,para quem nós devíamos, justamente, ter feitoo discurso do cinema enquanto história.Também no Festival de Brasília eu tive que ouvirde Grande Otelo, ao lado de elogios à belezado filme, a cobrança de mais informações...históricas.

Seguindo essa linha, de trabalho, acho até quenosso filme seguinte, o segundo da série, é aindamais carregado de objetividade, quase que umatese sobre o cinema brasileiro: o de que ele tenta

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se firmar apoiado na força social de que podedispor: o povo brasileiro em sua ignorância emiséria, já que a elite, que pode escolher, orejeita. O filme é jocoso, inventivo, provocadore nós trabalhamos com atores que realizavamcertas representações, como o Antônio Fagun-des, em seu primeiro filme, fazendo o inventárioufanista sobre o tamanho da Companhia Ame-ricana de Filmes, contando o número de tijolos,de telhas, o volume das caixas d’água.

Na época das filmagens, em 1970, destruía-setudo em São Paulo, que mais parecia um imensocanteiro de obras. Então filmamos o Guarnierisaindo de escombros urbanos enquanto contavaa melancólica história de um técnico que investiutudo o que tinha na Companhia Americana deFilmes e que depois perdeu tudo, ficando com apilha de ações inúteis guardadas num preciosoguarda-jóias em casa, na “eterna esperança”(título do filme) de um dia recuperar todo odinheiro perdido. No filme, a CompanhiaAmericana de Filmes, megalomaníaca, terminapateticamente (como aconteceu de fato): sóproduziu o filme Eterna Esperança (1940) semchegar a usar seu imenso estúdio, ao lado doaeroporto de Congonhas, em São Paulo, estúdioque acabou virando supermercado. O terceirofilme seria sobre a Vera Cruz.

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A repercussão política dos dois primeiros foiruim, a própria Comissão Estadual de Cinemareclamava da ironia e houve gente capaz dereclamar até mesmo das imagens de “soldadosbarrigudos” nas cenas da revolução de 32, noPaulicéia Fantástica.

Os detentores dos direitos dos filmes da VeraCruz naquela época (1971) eram os irmãosKhouri (Walter Hugo e William). E eles nãoqueriam que nós fizéssemos o filme. Um dia, nasala do produtor Galante, na Boca do Lixo, aportas fechadas, Walter Hugo Khouri (1929-2003) e eu acertamos os ponteiros. Eu sempregostei do Khouri, nada tinha contra ele que eraum cineasta importante no Brasil. Ele só medeixou claro que temia um filme com visãocrítica “destruidora” sobre a Vera Cruz, visãoque realmente era dominante entre os cineastasdo Cinema Novo (e não exatamente a minha).Claro que minha conhecida coloração políticapesou, e muito.

O resultado é que Jean-Claude e eu fizemosapenas um filme de montagem, expositivo,usando as aberturas dos filmes e algumas cenasescolhidas de cada um.

E ponto final. Eu nem considero aquilo um filme.Mas apesar de tudo eu estava de bem com a

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vida, cheio de projetos, com uma visão críticamais aguçada. E com uma disposição muitogrande de retomar minha carreira como docu-mentarista, num projeto que representasse umaclara oposição à imagem oficial do país, trans-mitida sistematicamente pela TV.

Meu desejo era mostrar o Brasil real, injusto,silenciado durante a ditadura, uma visão opostaao mundo ilusório dos filmezinhos institucionaise mesmo dos noticiários de TV, que mostravamum país cordial, sem greves, sem miséria, semconflitos. A década de setenta começou paramim com um ano de atraso, em 71.

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III - O Reencontro Com Meu País

01. O Hora da Notícia, na TV Cultura

Usando minha passagem para a França,resultante do Prêmio Air-France, de DiretorRevelação pelo Gamal, fui para Paris, ainda em1971.

Havia uma certa efervescência em Paris, que saíada ressaca de 68. Entre os exilados brasileiros,começavam a circular idéias de superação doprojeto de luta armada. O clima era muito maisdescontraído e o assunto era tratado comhumor, novidade absoluta e sinal de maior liber-dade diante do tema. Estava clara uma predis-posição a uma revisão crítica da luta armada.

Isso acabou reforçando minha vontade de umreencontro, de realizar um projeto iniciado noLiberdade de Imprensa.

De volta ao Brasil, a boa surpresa: Vlado eFernando Jordão, de volta ao Brasil, depois deuma temporada saudável em Londres, me con-vidam para um projeto que parecia feito paramim: integrar o grupo que criava o tele-jornalismo da TV Cultura, com o programa diárioHora da Notícia.

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Jordão seria o diretor, Vlado o editor e eu o re-pórter especial, com liberdade de trabalho que,eles sabiam, estaria sempre voltado para asquestões sociais e políticas, com as limitaçõesque todos nós conhecíamos, afinal aindavivíamos sob o terror da era Médici. Do grupoainda fariam parte o Gabriel Romeiro (editorinternacional), o Fernando Morais, AnthonyChristo, Georges Bourdokan, entre outros.

O projeto era muito bem articulado e mesmoantecipatório, já que se baseava na idéia de queera preciso reencontrar e reocupar os espaçosperdidos pela “inteligentzia” nesses quase dezanos de ditadura, principalmente após o AI-5.Era uma visão não mais somente crítica à lutaarmada, mas uma proposta de ação política alongo prazo, cotidiana, permanente, buscandoarejar a opinião pública com mais, melhores emais confiáveis informações, terreno até alidominado (e manipulado) inteiramente peladitadura.

Vale a pena reproduzir aqui trecho de minhatese de doutoramento na USP, O Povo Fala,defendida e aprovada com “Distinção e Louvor”,em setembro/1998 (e publicada em livro pelaEditora Senac):

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Um Cineasta na TV

“Num dia qualquer de 1972, entre as pautaspossíveis feitas pelo Chefe de Reportagem(Anthony Christo) e pelo Fernando (PachecoJordão), lá estava uma bem interessante:Operação “Tira-da-Cama”. Era uma operaçãomilitar de rotina, a invasão aparatosa de umafavela, à noite, por soldados super-armados, cãese cavalos, onde as pessoas eram tiradas dascamas para se identificarem. Eu me lembravade ter visto isso várias vezes nos programasjornalísticos de TV e me lembrava da formarepetitiva dessas reportagens violentas: acâmera que seguia a invasão, do lado dospoliciais, a luz dos “sun-guns” de bateria estou-rando feito tiros nos olhos das pessoas, as portasfrágeis sendo arrombadas a pontapés. Oscinegrafistas (repórteres cinematográficos, comosão chamados profissionalmente) faziam a coisacomo lhes parecia natural: eles estavam do ladoda polícia porque estavam, e pronto, não haviamotivos para dúvidas e nem questionamentos.Também na vida eles estavam do lado do invasore viam os favelados com a mesma desconfiançaque os policiais. Eram imagens cruéis, sem crítica.Pelo contrário, ajudavam a sedimentar opreconceito e a identificar miséria commarginalidade, questão social com questãopolicial(...). Rememorando as imagens da

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chamada “Operação Tira-da-Cama”, que eu jáconhecia, pedi que o cinegrafista Adão Macieirafosse, à noite, cobrir a operação. Que elefilmasse tal como já estava acostumado. Elefilmou e eu voltei ao local, no dia seguinte parafazer um dos meus primeiros trabalhos na TV.Filmei tudo de novo, agora sob o ponto de vistados favelados e gravei seus depoimentos. Osdepoimentos narravam, agora sob o ponto devista dos invadidos, a própria invasão, as luzescegando os olhos, os pontapés nas portas, osgritos, os barracos marcados a giz com um “X”.Outros depoimentos expunham suas vidas:porque viviam ali, em que trabalhavam, reve-lando a incrível carga social de seus dramas. Areportagem foi montada a partir dessesdepoimentos, usando, na montagem, asimagens captadas na noite anterior, invertendo-se, pois, a visão tradicional exposta nas TVs. Asimagens, antes de plena adesão à violência, setornavam denúncias tristes, chocantes”.

Nessa reportagem já se podia perceber,claramente, a visão que nós tínhamos daquelemomento e de como eu absorvera as principaisidéias de Fernando e Vlado sobre jornalismo.Havia ali, primeiro, uma inversão no sentido doque é autoridade na informação. O regimemilitar havia imposto à imprensa uma série dedificuldades, alimentando a acomodação de

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muitos aos releases oficiais que passavam, assim,por verdadeiras fontes de informação. Aimponência e o poder (e o perigo) das auto-ridades institucionais levavam a Imprensatambém a tomá-los como autoridades deinformação. Se uma favela é invadida, aautoridade é o invasor, e em seu nome falam oComandante da Polícia Militar ou o Secretáriode Segurança. A autoridade, na informação,havia se confundido com a autoridadeinstitucional, da mesma maneira que o regimeconfundia o governo com a nação (confusãopremeditada e que levava muitos incautos aabraçarem bandeiras tipo “Brasil, ame-o oudeixe-o” : se você estivesse contra o governo,estaria contra a nação). Era preciso repor ascoisas no lugar, ouvir o afogado antes do teóricoou da autoridade em afogamentos.

Feita a inversão, as autoridades passavamsimplesmente a ter uma opinião, quando era ocaso. E os especialistas podiam, se fosse o caso,contar com um espaço para tentar algumaexplicação. O centro dramático da narrativa sedeslocava para aquele que vivia - e sofria - oassunto tratado.

Isso, na TV, era de uma estranheza só, atémesmo atemorizante, na agonia do início dosanos setenta, contrastando radicalmente com

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as doces imagens produzidas e difundidas nasTVs pelo regime militar.

Uma outra reportagem, também das primeiras,abriu uma série sobre a periferia de São Paulo.Na pauta da Chefia de Reportagem lá estava:“Laudo Natel (Governador nomeado) inauguraEstação Elevatória de Tratamento de Esgotos”.Trocamos algumas idéias, sempre o Vlado e oFernando - e fui com minha equipe (cinegrafistaRubens Mainente, um auxiliar de som, um ilumi-nador e o motorista), com a boa câmera CP, quegravava o som na banda magnética do própriofilme (o que permitia, apesar do defeito decor-rente do deslocamento técnico do som, umamontagem rápida do material já com o som,para que a reportagem fosse ao ar no mesmodia). Na Estação Elevatória de Pinheiros,filmamos (16 mm / bp) o Governador inaugu-rando e falando. Em sua fala, o gancho que euesperava: ele dizia que a obra atenderia aosbairros com esgoto e que a maior parte dacidade ainda não contava nem com água nemcom esgoto. Era o sinal e saímos dali com o rumocerto desenhado em minha cabeça.

Para onde? perguntou o motorista. Para umlugar bem legal, respondi. Morumbi? Não,Jardim Maria Luísa (que eu já conhecia, no cami-nho do Lixão da Raposo Tavares).

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Era a periferia desbragada, miséria absurda: nemágua, nem luz, nem esgoto, nem escolas, nemasfalto nem esperança e nem nada.

A reportagem foi ao ar no mesmo dia, com oGovernador, com as imagens da periferia e asfalas dos moradores sobre o que era e por queviver ali. O “gancho”, dado pelo Governador,garantia a matéria. Nós contávamos tambémcom a vaidade do próprio Governador e o olharde seus acólitos direcionados para ele, o queaumentava a possibilidade de não chamar aatenção para o desenvolvimento dado aoassunto.

Naquele dia descobri o que até hoje parece umaficção bem humorada: a diferença de posiciona-mento da câmera, nas mãos do cinegrafista,diante da autoridade institucional e do povo.Vi o cinegrafista se abaixando, com dificuldade,para fazer imagens em “contra-plongée” doGovernador. Eu tinha como orientação (minhamesmo) não dirigir demasiado o cinegrafista e,vendo-o naquele esforço, apenas estranhei,tomando aquilo como um exercício devirtuosismo.

Só descobri a razão depois, ao filmar as pessoasdo povo: o cinegrafista aí erguia o corpo tudo oque podia, colocando-se acima dos entre-

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vistados. Era só imaginar depois a montagem: aautoridade institucional olhando para baixopara ver o povo. E o povo, subalterno, visto decima, olhando para cima para ver a autoridade.Era uma postura altamente ideológica, quaseque uma representação mesma das relações po-líticas vigentes no país naquele momento. Deonde vinha aquilo?

Em vão tentei desvendar. Os cinegrafistas nãosabiam explicar, embora fosse uma posturausual entre eles. Na verdade, achavam aquilonatural. A partir desse dia eu ditei a regra dademocracia nas reportagens: a câmera estaria,salvo ordem em contrário, sempre à mesma altu-ra, ou seja, à altura do ombro do cinegrafista.

Nessas reportagens, feitas sempre com o olharde cineasta, o material era colhido em 16 mmcom banda magnética, usando uma câmera CP,sonora. E muito raramente usávamos a moviola,que exigia a transferência do som para uma fitamagnética 16 mm. O material filmado (em filmepositivo) era montado num visor com umacabeça magnética, o que dificultava incrivel-mente o uso da montagem como elemento decriação na estrutura do filme. Dificultava, masnão impedia - e a habilidade do editor (Lalau),ajudava, montando o que era qualificado como“Sonoras” (entrevistas) e “Mudinhas” (imagens

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que serviriam para cobrir parte das entrevistasou alguma fala do locutor ou algum som extrae até mesmo música). O filme ia aos pedaçospara o estúdio, com as marcações de entrada esaída (“deixas”, com momentos determinadosna imagem ou nas falas) para os locutores.Assim, os locutores sabiam quando deviam falar,até onde e quando apareceriam na tela e tam-bém os operadores de telecine sabiam quandodeviam “disparar” o pedaço de filme já deixadono ponto. Nada muito diferente do que é hoje,com o vídeo, nos telejornais, cujos scripts aindaestão cheios de marcas tipo “sobe som” (quandose aproveita o som do próprio material gravado),etc., com um grande número de operações nomomento em que o programa vai ao ar (câmera1/câmera 2/Off, etc) Para um cineasta, era umtanto terrível montar o filme nessas condiçõese vê-lo ir ao ar aos pedaços, como se a monta-gem final, na verdade, fosse feita na hora doprograma, ao vivo.

Mais terrível ainda era o fato de que, destaforma, os filmes tinham uma existência efêmera,só existindo na sua integridade naquelemomento mágico que ia das 9 às 9:30 horas danoite. Depois disso, o filme desaparecia e delerestavam fragmentos desordenados de imagens,sem as locuções, sem os sons extras (eu consegui,com apoio do Fernando Jordão, refazer a mon-

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tagem, de modo idêntico ao filme exibido, deuma reportagem: Migrantes. E ganhei tambémcópia kinoscopada de duas outras, Ônibus ePedreira que, contratipadas, isto é, copiadasnum negativo, passaram a circular como filme,conservando, felizmente para a memória doprograma, as “cabeças” do telejornal, com osapresentadores e a vinheta) Mas mesmo essasdificuldades, que me pareciam, de início,terríveis, tornaram-se desimportantes pelosignificado que o trabalho adquiria, acima daprecariedade, dentro de um programa ousadopara a época e de prestígio evidente, apesar dasbaixas audiências da TV Cultura (O Hora da Notí-cia elevava instantaneamente a audiência da TVàs 9h00 horas, quando entrava no ar, passandode praticamente zero para números tipo 3 ou 4

Cena de Ônibus

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por cento, o que podia ser classificado como su-cesso).

O fato é que, durante quase um ano, e cincoou seis vezes por semana, eu chegava à redação,discutia um assunto que eu mesmo escolhia,saia com minha equipe documentária (de re-portagem...), filmava de manhã ou até mesmoaté o meio da tarde e voltava para a redaçãocom um autêntico documentário sobre um as-sunto, sistematicamente ligado à questão soci-al. O material era revelado ali mesmo na TVCultura, enquanto eu quebrava a cabeça para“armar” o filme, elaborando um mapa de mon-tagem já com as falas eventuais dos locutores,inclusive as “cabeças” (falas ao vivo, de apre-sentação).

Era, apesar de tudo, o cinema feito para a TV.Eram pequenos documentários de 3, 4 e até de7 minutos feitos num só dia por um profissionalde cinema que procurava enfrentar as questõesda narrativa, da câmera, do significado daspalavras e das imagens num filme. Não é atoaque os filmes recuperados, Migrantes, Ônibus ePedreira tenham-se transformado emverdadeiros sucessos de distribuição, quandopassaram a ser trabalhados pela Dinafilmes (dis-tribuidora de filmes do Conselho Nacional deCineclubes).

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Não é também casual que a clientela desses fil-mes tenha sido composta por organizações que,naquele momento, reapareciam, retomando adiscussão interrompida, por muitos anos, peloregime militar: sindicatos, clubes de mães, igre-ja, asociações de bairros, associações profissio-nais, diretórios de partidos, grêmios e centros-acadêmicos, etc., que viam nesses filmezinhosuma visão dramática, carregada de conflitos, dosproblemas básicos que afligiam a população,temas essenciais para qualquer mobilização demassas e que não eram tratados (pelo menoscom a carga crítica devida) por nenhum outromeio de comunicação.

Esses dois anos de Hora da Notícia talvez tenhamsido os melhores anos de minha vida.

Cena de Pedreira

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Pessoalmente eu estava super-estabilizado. Meusfilhos, do casamento com a Assunção, Fernando(com 6 anos) e Vinicius (4 anos), estudavam nasprivilegiadas escolas “experimentais”, aliás, jun-to com os filhos de meus melhores amigos, oscasais Fernando Jordão/Fátima e Vlado/Clarice,o que, além do trabalho na TV, propiciava umrelacionamento intenso de amizade entre nos-sos filhos.

A verdade é que eu me realizava integralmenteem meu trabalho na TV. Sentia que haviaretomado meu projeto de cineasta, abandonadodesde o Liberdade de Imprensa: um trabalhodocumental e crítico, voltando minha câmerapara a verdadeira face das injustiças e da vio-lência social no Brasil, dentro de um espaçopossível, limitado a ele, mas real, cotidiano, vivo.No programa, aliás, eu desenvolvi uma verda-deira batalha contra o que julgo ser uma dasmaiores mazelas da cultura brasileira e que,desde aquela época, já inundava os meios decomunicações: a redução dos fatos sociais asimples questões policiais.

Era comum me ver chegar à redação com umrecorte na mão, alguma reportagem carregadacom esse viés terrível. Por exemplo, falando decrianças, reportagens com manchetes do tipo“meninos-bandidos atacam na feira” ou “mar-

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ginais ameaçam moradores”, etc. Meu sanguefervia, eu sabia o que estava por trás desses es-tigmas. Reunia minha equipe e lá íamos nós ten-tar a “contra-informação”, isto é, a revelaçãoda cruel realidade dessas pessoas marginaliza-das pelo modelo concentrador da políticaeconômica da ditadura militar. Filmávamos pelamanhã, montávamos à tarde e o pequenodocumentário era exibido no programa do dia,às 21 horas.

Assim nasceu, por exemplo, o filme Migrantes,depois premiado como Melhor Filme na Jornadade Curtas-Metragens, Bahia/73. Eu li num dosjornais paulistas a notícia de que “moradoresdo Parque D. Pedro (centro de São Paulo)168

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reclamavam da presença de marginais sob osviadutos, exigindo a ação da polícia”. Em minhacabeça, e emoção, o texto era lido como numespelho, como o reverso. Mais uma vez aquestão social era tratada como questão depolícia. Eu tinha absoluta certeza disso. Pegueiminha equipe e lá fomos nós.

Já descemos do carro, debaixo de um dosviadutos, filmando. Ali estava uma famíliaacampada. Eu me aproximei ( filmando) e fuirecebido pelo chefe da família. Eu só perguntei:“Quem são vocês?”Acostumadas à repressãocotidiana, essas pessoas já se sentem no deverde esclarecer tudo, sempre desconfiadas denossas intenções. 169

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O homem conta tudo, era migrante, vinha dealgum estado do Nordeste por falta absolutade trabalho por lá.

Enquanto eu escutava, percebi que um rapaz,tipo executivo, bem vestido, pasta na mão,presenciava a cena. Por minha cabeça passou,feito um corisco, a idéia de que a opinião da-quele rapaz deveria ser a opinião comum daclasse média paulistana, bombardeada pelaintensa campanha ideológica iniciada peloentão Prefeito Figueiredo Ferraz de que “acidade precisava parar”, evidentemente falandoda migração, principalmente o migrantenordestino. Aproveitei uma “deixa” (intervalode fala, em entrevistas) e simplesmente girei omicrofone, posicionando-o de frente à boca do

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rapaz. Isso foi o suficiente para que ele come-çasse a falar. Sua fala era o que eu esperava:dizia que aquelas pessoas não deveriam tervindo para São Paulo, onde já é difícil o trabalho,onde também há muita miséria, etc. O migrante,claro, rebateu. Eu então passava o microfonede um para o outro, registrando um embate aomesmo tempo cruel, sobre as condições de vidano campo e na cidade, ao mesmo tempoideológico, sobre as idéias correntes sobre aquestão.

Eu considerava essetipo de trabalho umembate político,militante mesmo. Enão pensava emmais nada, nem emcinema, nem emlonga-metragemalgum.

Se meus amigosVlado e Jordão mechamavam de re-pórter, eu tinha umorgulho imenso dedizer que não, euera um cineasta naTV.

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Era assim que eu me sentia. E era exatamenteassim que eu me sentia quando, por exemplo,na falta de assunto, ia com minha equipe paraa rua e, sem dizer nada, expunha o microfone,como uma oferta pública a quem quisesse falar.Eram as reportagens Queixas e Reclamações. Oresultado era sempre de ótimos depoimentos,revelações de um Brasil que a ditadura tentavaocultar da opinião pública. E, ao mesmo tempo,a revelação de falta de canais de comunicaçãoentre a população e os poderes instituídos.

Ou então como no dia em que chegou à redaçãoo telex com a informação da “eleição doditador”, ou seja a indicação do general ErnestoGeisel como candidato à sua sucessão, indicaçãofeita pelo então Presidente General EmilioGarrastazu Médici.

Com o frisson característico de quem era tomadopor uma idéia, levei minha equipe para uma ruamovimentada da Lapa. Montada a câmera, euia parando as pessoas e dava para elas cópia dotelex. As pessoas liam o texto com a dificuldadeprópria de leituras populares, gaguejando aindamais para ler o nome do desconhecido Geisel.E, uma após outra, operários, donas-de-casa,estudantes, iam tendo a mesma reação de medoda própria leitura, dando olhadelas para mimou para a câmera, muitas vezes interrompendo

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a leitura logo que percebiam o conteúdo do tex-to. Depois, diante de minha pergunta sobre oque achavam daquilo, simplesmente des-conversavam e saiam em seus reveladores silên-cios.

A reportagem, acho que com uns quatro minu-tos, foi ao ar com essa mesma estrutura nar-rativa, com os apresentadores abrindo numdissimulado encaminhamento: “O PresidenteMédici indicou hoje o General Ernesto Geisel co-mo seu sucessor na Presidência da República.Nossa reportagem foi à rua ouvir a opinião dospaulistanos”.

Me lembrei agora que pusemos no ar, no Horada Notícia, apesar de todas as dificuldades, osmetalúrgicos do ABC, antes mesmo de que seconhecesse o Lula, em 1973. E o próprio Lula,nos primórdios de seu movimento que marcariatanto a história política brasileira. Numaprimeira reportagem sobre o ABC, feita pormim, o entrevistado foi o líder sindical PauloVidal, então presidente do Sindicato dosMetalúrgicos de São Bernardo do Campo e que,na mesma época, me havia concedido umaentrevista que transformei no artigo Quemprecisava ver não vê sobre o cinema político, narevista Visão, em 1973 (artigo que depois, xero-cado, circulou pela universidade como tema de

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discussão). Paulo Vidal, na reportagem para oHora da Notícia, explicava os motivos das queixasdos operários e defendia um programa de lutacontra os baixos salários pagos pelas multi-nacionais, luta que batia de frente contra apolítica de arrocho salarial do regime.

Numa segunda reportagem, também feita pormim, na ausência do Paulo Vidal, o depoimentoé de um dos diretores, Luis Inácio da Silva, oLula, no que, provavelmente, foi seu primeirodepoimento para a TV.

É preciso dizer que dentro da TV nem tudo eramrosas. Muito pelo contrário. A pressão políticacontra o noticiário, contra nós, sempre foi muitogrande, não só por causa das sistematicamenteruins repercussões de meu trabalho como, emgeral, por causa de nossas idéias e do vivíssimonoticiário internacional (editado por GabrielRomeiro), que falava, todos os dias, da guerrado Vietnã, de greves em outros países, da crisedo Chile antes e depois do golpe e da morte doPresidente Salvador Allende, de manifestaçõesestudantis... em outros países.O noticiário internacional estabelecia assim umparalelo com o noticiário nacional e, em parti-cular, com o meu trabalho, evidenciando, semnunca explicitar esse objetivo, a luta em todo omundo pela liberdade.

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A pressão sobre meu trabalho era permanentee vinha das mais diversas maneiras. O Presidenteda Fundação Padre Anchieta (detentora da TVCultura) era o Professor Guimarães Ferri, da USP,aliás, meu colega de Escola de Comunicações eArtes e que um dia me ameaçou com o famoso477, o artigo que permitia a exclusão de pro-fessores acusados de subversão. Ferri e a diretoracultural pressionavam o Fernando Jordão, sequeixando de que eu teimava, desde a primeirareportagem, em mostrar pessoas “mal-vestidas”,“sem dentes” e que “não sabiam falar”. Chega-ram mesmo a sugerir que um editor me acom-panhasse para que eu escolhesse pessoas maisadequadas.

Quando foi ao ar a reportagem Migrantes (quegerou o filme premiado em Salvador), a diretoracultural disse ao Fernando que eu “não tinhajeito mesmo e que nem entrevistar eu sabia,tendo sido necessário a intervenção de um rapaz(o executivo de pastinha) para fazer as per-guntas...”

As pressões contra mim e contra o Hora daNotícia costumavam vir com origem marcada:sempre havia algum assessor do governador quereclamava, a mulher de um militar, pessoas“indiretas”, observadores dos comportamentospolíticos da sociedade, verdadeiras vigias da

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ditadura que transmitiam à direção da TV seudescontentamento com relação ao nossotrabalho.

Não posso me esquecer do dia em que fui aoITA ( Instituto Tecnológico da Aeronáutica) parauma reportagem sobre tecnologia de satélites.Ali estavam repórteres de todas as TVs e jornaisouvindo e gravando a fala do militar queexpunha o processo de aquisição de tecnologianorte-americana. Os repórteres faziam per-guntas, o clima era de oba-oba e eu, cauteloso,fui ficando para o fim. Minha pergunta gelou oambiente: eu perguntei se isso não criava umproblema de dependência tecnológica. O militarme encarou e, para que todo mundo ouvisse,soltou sua condenação: “Vejam vocês, todomundo aqui com uma visão positiva e justa-mente da TV do Estado é que vem a crítica”.Essa era a visão que as autoridades institucionaistinham de nós. Um dos diretores da TV Cultura,deixou isso claro, em sua queixa: “a gente assisteos outros telejornais, o mundo é cor de rosa.Assiste o da TV Cultura, o mundo é negro”.E, claro, havia a terrível censura, a do Depar-tamento de Censura da Policia Federal. Nóstínhamos um mural, que denominamos de“Mural de Proibições”, onde pregávamos osbilhetes com as determinações da Censura. Asordens eram transmitida pelo telefone por uma

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Dra. Sueli e geralmente atendidas pelo revol-tado Fernando Morais que, em vão, pedia paraque a censura viesse por escrito, pedido semprenegado. A censura proibia desde cobertura deacontecimentos, como proibia assuntos oumesmo a divulgação de opiniões de militares epolíticos do próprio governo.

Várias vezes eu fui alvo desse corte abortivo.Algumas vezes antes de filmar, outras depoisdo material já filmado, quando eu era infor-mado da proibição logo à chegada na redação,como no caso da greve de motoristas. Outrasvezes eu era proibido de fazer a “suite”, ou sejaa continuação de alguma reportagem quemerecia uma continuação, como nos casos deuma reportagem sobre loteamentos clandes-tinos e outra sobre a poluição na cidade de Perusprovocada pela branca poeira da indústria decimento. Nesse último caso eu reagi como erameu costume, inventando um “troco”. Fui paraCampinas e fiz uma reportagem sobre a poluiçãoprovocada por uma indústria de pneus. O apre-sentador, Fábio Peres, apresentava a matériacom um pacotinho do pó que ele despejavasobre a mesa enquanto anunciava: “Desta vezo pó é preto”. O problema, para os censores detodos os tipos, é que todas essas matérias, qual-quer que fosse o assunto, traziam sempre umacarga para eles indesejável de denúncia social,

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o retrato da miséria brasileira e isso é justamen-te o que incomodava.

Mas a pressão foi crescendo e, pouco a pouco,foi nos jogando na crise. Eu logo fui proibidode filmar, passei um tempo só orientando os re-pórteres. Foi a maneira de me segurar, já que adireção da TV exigia minha cabeça. Depois,devagar, sem alarde, fui voltando.

Nós sabíamos muito bem, desde o início, das difi-culdades que enfrentaríamos, mas o projeto eratão generoso que nós só pensávamos nasvitórias. O programa era organizado de formacontida, um tanto tradicional, como se issodelimitasse o tamanho de nosso vôo e o controlesobre ele. Era preciso dar um passo, ocupar es-paços vazios, gerar informações além do con-trole institucional.

Sou demasiadamente apaixonado pelo quefizemos e, quem sabe, a paixão me torne cego.Mas não, havia lucidez, sim, naquele momento,embora eu tenda a achar que o êxito de nossotrabalho, ao longo do breve tempo de existênciado programa, tivesse nos cegado gradativa-mente, fazendo-nos perder o medo e subestimaro poder de violência e morte de que era capazo regime, como se deu em nossa expulsão, doisanos depois de lançado o programa e, um ano

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depois, com a trágica e, até hoje, e para sem-pre, inaceitável, perda do amigo Vlado.

A linha de ação traçada pressupunha nossaexposição pessoal aberta, sem cartas ocultas,como pessoas de endereço certo e que exerciamsua profissão como qualquer cidadão numasociedade que deveria respeitar os princípios bá-sicos da cidadania. Defendíamos nosso trabalhoassim, como um trabalho pleno de legalidade,feito por profissionais que procuravam,“simplesmente”, exercer sua profissão, no caso,de informar o público, desvendar os nós e osacontecimentos de nossa vida social e política.Era preciso romper com a clandestinidade, emtodos os seus sentidos: a clandestinidade criava,por parte do governo, uma repressão cega, queatingia não só a esquerda mas o conjunto dasociedade, amedrontando-a e colocando-acontra a oposição. Dentro da oposição, aclandestinidade alimentava uma cegueira decerta maneira irresponsável de quem a exercia,um anonimato inalcançável pela opinião pú-blica, renitente às mudanças, num momento emque era evidente a necessidade de mudançasna ação política das oposições.

A estrutura tradicional do programa, elaboradabasicamente pelo Fernando, servia também aisso, atendia à visão de que mesmo as estruturas

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tradicionais estavam esvaziadas de conteúdo eseria possível, sem o risco de alterá-las, inflá-lasde novos conteúdos. Que dentro dessa limitaçãotentássemos os vôos possíveis da imaginação,até, quem sabe, que a estrutura conservadorase transformasse numa prisão, obrigando-nos auma revisão que não tivemos tempo sequer depensar em fazer: em pouco mais de um ano jánão tínhamos como responder ao constanteataque, vindo de todos os escalões do governoe dos setores mais conservadores da sociedade,contra nosso trabalho. Com um ano e meio deprograma, e de crises, nos vimos inviabilizados.

O processo foi rápido, uma intervenção, com ademissão do Fernando Jordão e depois a dochefe de reportagem, Georges Bourdokan, e doNarciso Kalili que agora integrava o grupo.

E depois seria a minha vez. E a do Vlado, liqui-dando assim com o programa e, certamente,encerrando o período mais rico de nossa vidaprofissional.

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02. O Globo Repórter

Depois do traumático fim de nosso trabalho noHora da Notícia, ainda em 1974, Fernando(Pacheco Jordâo) e eu fomos contratados pelaTV Globo de São Paulo. Fernando, como editordo Jornal Nacional e eu como editor de Especiaischefiando um setor criado para me encaixar, oSetor de Reportagens Especiais de São Paulo(que depois seria assumido pelo Fernando comouma divisão do Departamento de Jornalismo).Essas contratações, somadas à contratação deGabriel Romeiro (ex-editor internacional doHora da Notícia) para o jornalismo da TV Ban-deirantes, não deixavam de ser sintomáticas demudanças nas TVs.

Afinal, todos nós acabávamos de sair, de certaforma chamuscados, de uma experiência tacha-da como contestatória e, até mesmo, de sub-versiva.

No caso da Globo, o Jornal Nacional, uma daspeças básicas de sua política de programação,mantinha uma linha extremamente conser-vadora, diversionista mesmo, a mesma linha quepermitira ao General Médici dizer que via, pelaTV, um país em paz , sem conflitos, num mundoassolado pelas guerras e lutas de classes.

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O Jornal, para agravar a questão, permaneciaainda aberto a “editoriais” lidos com trabalhadaseriedade e convicção pelos apresentadores, edi-toriais que transmitiam o pensamento oficial dogoverno militar ou, como em muitas ocasiões,não passavam de contundentes alertas aosopositores, quando não ameaças diretas. Mas opaís entrava numa nova era, anunciada em co-medidos comentários na imprensa e na política:a era Geisel, ainda em fase de gestação a partirda indicação do General Ernesto Geisel comosucessor de Médici na Presidência da República,tendo como ideólogo o General Golbery doCouto e Silva, criador do SNI (Serviço Nacionalde Informações) e teórico de uma geopolíticamilitar, apontado como um dos idealizadoresda abertura política na controlada forma “lenta,gradual e segura” que se anunciou nos primeirosmomentos do governo Geisel. Com isso, pode-se inferir que o fechado sistema de TV brasileiro,conivente e oportunista, passasse a se prepararpara essa abertura, sensível à crescenteexpectativa da sociedade por esse tempo de paze respeito aos cidadãos, sentimento coincidentecom o fim do “milagre econômico” e início deuma crise econômica profundamente agravadapela crise do petróleo.

O fato é que, nesse caldo em que se misturaramsimples desejos, esperanças e também mudanças

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importantes na política e na economia - o senti-mento de mudança pareceu se inflar e encora-jar amplos setores da sociedade a trabalhar con-tando com a “abertura” como um fato consu-mado. O desejo talvez tenha se adiantado de-masiado aos fatos, como se veria depois. Mashouve uma mudança.

O ano de 1974 era um ano de eleições e aseleições, de qualquer maneira, mesmo sob umaditadura, acabam reacendendo o desejo dodiálogo, da exposição de idéias, de liberdade.O General Ernesto Geisel, indicado por Médici,seria eleito sem problemas no controladíssimoColégio Eleitoral. É difícil dizer, com certeza, seessa mudança, ou “esperança de mudança”, serefletia de fato no ambiente das TVs. Nossacontratação parecia um sinal, pois nossotrabalho era conhecido e, se não fosse paraaceitá-lo, para que nos contratariam? Paraaproveitar nossa capacidade puramente técnica?- essa não parecia uma resposta adequada. Eu,pelo menos, nunca tive o perfil de um técnico,sendo, pelo contrário, avesso às questõestécnicas de minha profissão.

Haveria a esperança de que, ali, num ambientemais controlado, pudéssemos prosseguir nossaexperiência na TV Cultura de uma forma maiscontrolada?

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Não sei dizer, ao certo. Apenas guardo a sen-sação de uma queda para o alto, ou seja, ex-pelido de uma pequena TV para, quase queimediatamente após, ser contratado para diri-gir um setor de especiais da maior empresa deTV brasileira.

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03. O Povo Fala

Fernando (Pacheco Jordâo) e eu levávamos (parao Jornalismo da TV Globo/SP) idéias diferentes,novas, para o noticiário e para as reportagens.Era engraçado ver como essas novidades eramrecebidas. Uma dessas mudanças, a mais signifi-cativa, era a questão do povo na TV. O povo, talcomo nós entendíamos, isto é, a populaçãomajoritária brasileira, mergulhada em suas difi-culdades, renda miserável, terríveis problemasde habitação, saúde, educação, transporte, etc.- esse povo estava ausente dos noticiários. E nósqueríamos recolocá-lo lá, fazer que sua imagem,coincidente com o que pensávamos ser aimagem do Brasil real, ocupasse a tela elitista eilusória dos aparelhos de Tv.

Esse projeto contrastava, muitas vezes de formaaté mesmo cômica, com os hábitos do jorna-lismo, onde predominavam profissionaismarcados pela baixa informação, pouco ou nadacríticos, viciados na cocaína dos releases e dasinformações “off the record”. Para a quase tota-lidade dos repórteres, o mundo das notícias erasuficientemente estreito para não englobar aquestão social. O universo-fonte priviliegiadoeram as autoridades, não aquelas de umjornalismo verdadeiro, mas as autoridades-institucionais, de quem os repórteres logo se

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tornavam íntimos, o ego sabiamente massagea-dos permanentemente por aqueles que deti-nham o poder político. O nobre, então era en-trevistar alguém importante, não somentepolíticos e autoridades institucionais mas,autoridades de qualquer espécie, desde que daelite e famosos. O interesse meu e do Fernandocriava uma situação que acabei retratando emmeu filme A Próxima Vítima filmado em 82,usando, aliás, a própria redação da Globo/SPcomo cenário.

No filme, o repórter representado por AntônioFagundes chega tarde à redação, quando todosos assuntos nobres já haviam sido distribuídos,restando a ele uma pauta rejeitada por todos,carregada da questão social: os assassinatos numbairro pobre de São Paulo. Sem opção, o repór-ter acaba mergulhado na miséria e na violênciada sociedade brasileira. Era assim. Quem podia,abocanhava logo as entrevistas e os assuntosnobres. Os outros, sem opção, ficavam com osassuntos “menores”, onde se incluía o povo.

A visão que eu e Fernando levamos para a Globoera, como já disse, a visão de uma democrati-zação da tela e de interesse pelos reaisproblemas da sociedade, em contraposição àsfantasias institucionais e à alienação dos noti-ciários até aquele momento.

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Não era esse exatamente o prato de preferên-cia da direção nacional do jornalismo e nem daimensa maioria dos profissionais com que tra-balhávamos. Tivemos imensa dificuldade emimplantar os primeiros traços de mudança, queacabaram se tornando mais claros só em nossotrabalho no Globo Repórter, para onde foi oFernando também, depois de esgotada suacapacidade de negociação no Jornal Nacional.Pois bem. Diante de nossas idéias, de nossopassado na TV Cultura e instruídos pelo Chefede Reportagem Laerte Mangini (profissionalsuper-eficiente mas alheio às nossas preo-cupações), os repórteres tratavam de enfiar, emqualquer reportagem, imagens de povo ouinúteis entrevistas com populares. Com issoesperavam cumprir seus papéis nas mudançaspropostas.

O povo entrava assim, de coadjuvante, muitasvezes em situações ridículas, como enxertos queserviam apenas como álibi e, muitas vezes, comotemperos, conservando-se intactos os velhosconceitos de autoridade e de hierarquia. As re-portagens, então, traziam a autoridade e oespecialista falando a sério sobre o que julgavamentender, enquanto o povo, como muitas vezes,encantoado diante da opressiva câmera e dapergunta do repórter, dava o sal da reportagemdizendo qualquer asneira que só ajudava a

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sedimentar o elitismo e a visão de pasmaceirasocial. Era o que chamavam de “povo fala”. Aexpressão transformava-se num jargão jornalís-tico da pior espécie, apontada nas pautas comouma determinação, uma excentricidade queagradaria a mim e ao Fernando.

O povo, desqualificado, servia assim de tempero.E era tal o descaso que só com nossa participaçãoas pessoas (os “populares”) passaram a seridentificados na tela. Antes só havia identifi-cações para autoridades institucionais e osfamosos “especialistas”.

De qualquer maneira Fernando e eu dávamos osangue na Globo/SP. O Fernando enfrentandoa pesadíssima barra de editar o Jornal Nacional,com a carga de institucional que o programacarregava. Barra como no dia em que Fernandorecebeu ordens de filmar o ex-deputado MarcoAntonio Coelho na prisão.

O governo militar queria provar, com essas ima-gens, que eram mentirosas as denúncias detortura sofridas pelo ex-deputado e militantecomunista. As imagens eram, na verdade, ter-ríveis e assim foram para o ar, mais denunciandodo que negando as torturas.

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Eu conhecia o Marco Antonio Coelho desde osanos 60, como militante do PCB. O Marco, quechamávamos de “Jaques”, o nome de clandes-tinidade, me deu assistência numa época, depoisde 64. Era e é uma pessoa admirável, de pensa-mento ágil e inteligente, sempre bem-humorado e aberto, de comportamento comple-tamente democrático, com uma visão lúcida arespeito da luta pela redemocratização do paíspela via de uma política ampla, sem radicalismos.Eu sempre o achei um dos melhores quadros dopartido, longe daquele besteirol proletarista damaioria dos dirigentes. E ali estava ele agora,naquelas imagens chocantes, o preso políticovisivelmente castigado pelas torturas, extrema-mente magro, mal conseguindo se manter depé. Até hoje me pergunto como a repressãodeixou ir ao ar aquela imagem tão terrivelmentedenunciadora.

Designado para criar um setor de ReportagensEspeciais, formei minha equipe contratando doiscineastas (Penna Filho e Wagner Carvalho) euma repórter, nada menos que a Marília Ga-briela em começo de carreira. Nós tínhamosapenas uma sala e produzíamos especiais paratudo: Domingo Gente, Esporte Espetacular,Fantástico, Globo Repórter, além de especiaisesporádicos.

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Eu procurava retomar meu trabalho interrom-pido na TV Cultura, mas com a idéia de um sal-to. Afinal era a Globo, com mais recursos e mui-to mais audiência, agora nacional. E os filmesagora poderiam ser de metragem maior do queos pequenos filmes do Hora da Notícia.

Comecei meu trabalho realizando um documen-tário sobre transportes urbanos em São Paulo.O filme A Batalha dos Transportes, com umanarrativa violenta, mostra a loucura e a misériado transporte urbano, o drama de passageirose de motoristas, numa montagem frenéticainspirada mesmo no caos das ruas de São Paulo.

O filme deveria ser encaixado num Globo Repór-ter Atualidade, que apresentava três documen-tários de até 15 minutos. O Atualidade era apre-sentado uma vez por mês (e nas outras semanas,o programa constava de um só documentário).

Nós estávamos em setembro de 74, ano eleitoralàs vésperas das eleições e na ante-véspera dasucessão presidencial, a posse do General Geisel.Resultado: passavam-se os dias, as semanas enada do programa ir ao ar. Eu começava mal.

Pressionei tudo o que eu podia, falando com odiretor do programa, Paulo Gil Soares e com odiretor do jornalismo da Globo, Armando

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Nogueira. O problema era a proximidade daseleições e o temor de exibir um filme com asimagens e a visão de A Batalha dos Transportes.Passadas as eleições, no entanto, o problemapersistia. Pressionado, o Armando encontrouuma idéia: criar um espaço só para São Paulo,dentro do Globo Repórter Atualidade.

Assim o filme acabou sendo veiculado só paraSão Paulo. E outros também, como A Escola de40 mil Ruas, filme que provocou a abertura àimprensa, pela primeira vez, da Febem. AEscola... foi depois convidado e participou dofestival de Oberhausen, na Alemanha. No casodesse filme, a desculpa era a de que o filme(problema do menor) refletia um problema sópaulista... No lugar de meu filme, os espec-tadores dos outros estados viram o filme O CasoLou, a dignificante e universal história da moçaque matou seu namorado no Rio.

A repercussão em São Paulo, no entanto foicompensatória, com elogios gerais. HelenaSilveira, talvez uma das primeiras jornalistas aexercer uma saudável crítica à TV, usou todo oseu Helena Silveira vê TV do dia com um rasga-do elogio, até mesmo um certo espanto diantedo filme: “Terça-feira, o Globo RepórterAtualidade resolveu vasculhar com suascâmeras, as quarenta mil ruas da cidade(...)

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Quarenta mil ruas e quantos destinos? Ascâmeras investigaram becos, sarjetas. Fizeramum inventário de misérias. Não foi um progra-ma propriamente digestivo.”

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IV - De volta ao Cinema

01. A Abertura

Os problemas enfrentados, logo de cara, na Globo,acabaram por me fazer pensar no retorno ao cine-ma. Eu tinha a sensação de que, mais uma vez, meutrabalho na TV se encerraria num ciclo de crise.

E os bons tempos da “militância” haviam se es-gotado, com o fim do Hora da Notícia. Agora abatalha maior era do lado de nossa própria trin-cheira: a batalha por fazer e por ser exibido.

Apesar desse início problemático, realizei alivários documentários de que me orgulho muito,para os mais diversos programas da Globo.

Por exemplo fiz, para o Esporte Espetacular, oespecial O Jogo do Poder, em 75, sobre as elei-ções para presidente do Corinthians, tendo comoprincipais candidatos os eternos e folclóricosWadih Helou e Vicente Mateus. O filme eviden-cia uma contradição bem brasileira da época:uma torcida imensa que só podia torcer, nãovotar, já que só os sócios, uma espécie de “colé-gio eleitoral”, tinham esse direito.

O gratificante do filme é que ele fazia uma es-pécie de retrato político da história do clube e

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com o charme de ser exibido no dia da eleiçãocorinthiana. A repercussão, como acontecia real-mente com todo meu trabalho, foi excelente.

O crítico Ari Torres, do Última Hora, depois decriticar o vazio geral dos programas jorna-lísticos, aponta O Jogo do Poder como exceção:“(...) a reportagem foi um momento importan-te do telejornalismo, na medida em que de-monstrou como um fato pode ser tratado emlinguagem de televisão, transformando-se emespetáculo e sem perder as características in-formativas”.

Na Revista Veja, o crítico Renato de Moraes,também depois de criticar o vazio dos noticiáriossobre esporte, elogia: “O Jogo do Poder, apre-sentado dia 22 passado dentro do programaEsporte Espetacular, da Rede Globo, parece umatentativa inédita de penetrar na densa, obscuraárea político-social que envolve o futebol. (...)Fugazes imagens, conduzidas num estilo seco,desnudam interesses que o clima feérico daseleições talvez oculte da imensa massa detorcedores do clube paulista: por trás daimportância afetiva que o cargo oferece, há umaincontida ambição pelo poder político(...).Manipulados, os torcedores apenas gritam,sofrem pela ausência de títulos há vinte anos,mas não influem nem decidem.”

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Quanto aos repórteres que trabalharam sobminha orientação, me lembro da Marília Gabrie-la fazendo reportagem, para o Fantástico, so-bre a construção da barragem de São Simão, queera, sem dúvida, uma das maravilhas de nossanatureza. No meio do Rio Paranaíba nascia umcanal de poucos metros e a água ia se despen-cando pelas laterais do canal, em quilômetrosde cachoeira até que todo o rio corria dentrodo canal, como uma espuma de grandeviolência. Eu conhecia essa maravilha desdecriança porque o município era Ituiutaba, minhaterra natal. E muitas vezes fui lá com meu pai,acompanhando-o nas pescarias, ali era o paraísodos dourados. Por isso pedi a reportagem paraMarília Gabriela, mas a Marília chiava era comas orientações do Fantástico, pedindo “emoção”na reportagem, gente emocionada, olhoslacrimejantes, chorando a perda do canal...

Para o Fantástico, fiz dois filmes completamentefora do ideário alienado do programa. O pri-meiro chamava-se O Lenhador de Automóveis,a história de um homem que vivia de desman-char carros com o machado, vendendo as peçasusadas. O filme retratava o comércio de materialusado e acabava desembocando nos catadoresde lixo (o lixão da Raposo Tavares) com suamiséria e tudo, em pleno Fantástico, o show davida.

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De certa forma eu fiz ali o primeiro filmeinacabado de nosso grupo Kuatro, justamentesobre os catadores do mesmo lixão.

O outro filme foi Vidreiros, sobre os traba-lha-dores na indústria de vidros, mostrandosuas técnicas e o aprendizado, do artesanatoaos processos industriais. Mas no fundo, portrás do lirismo vítreo das cenas do programa,estava outra questão menos tangível: os vi-dreiros, naquele momento, discutiam a ques-tão salarial e ameaçavam com uma greve emplena era do arrocho salarial e sob a ameaçarepressiva do regime militar, agora sob omando do general Ernesto Geisel. O Fantás-tico parecia desconfortável carregando essasestranhezas.

Mas o trabalho que julgo mais importante dessafase ainda estava por ser feito.

O ano de 75 começava sob uma promessa tênuede abertura política, em parte como resultadoda vitória da oposição nas eleições parla-mentares de 74. A idéia de abertura políticavinha, no entanto, com qualificação restritivade “lenta, gradual e segura”, como dizia Geisel.Não que a ditadura parecesse disposta aamaciar. O General Geisel continuava a exercero viés militar de inundar nossas telas de TV com

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seus horrores: a cara do general-presidenteanunciando medidas duras, cassações e amea-ças aos “pescadores de águas turvas”.

Os setores mais duros do regime, ligados dire-tamente à repressão, pareciam agora desnor-teados, desconfortáveis diante da mínima ex-pectativa de uma também mínima abertura po-lítica.

O país era um caldeirão de idéias refreadas,acontecimentos ocultados, verdades reprimi-das, torturas, medos, vidas perdidas, dores,notícias suprimidas a força. Qualquer mínimaabertura seria perigosa demais, deviam jul-gar os habitantes dos porões da ditadura. Eesses, na falta de verdadeiros inimigos, pas-saram a atacar as sombras: os intelectuais, osprofessores, os jornalistas. O próprio Geiselnão escapou a esse ataque, tendo que reagirduro, até mesmo demitindo seu Ministro doExército numa operação tipicamente anti-golpe.

Por outro lado, era nítida a retomada da açãopolítica por parte de amplos setores da socieda-de. Eu sentia isso, como cineasta, vendo a cres-cente circulação de meus filmes, os pequenosfilmes feitos ainda para o Hora da Notícia, comoÔnibus, Pedreira e Migrantes.

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Os filmes eram solicitados para encontros e de-bates em clubes, associações de bairros, sindica-tos, igrejas.

Uma cópia de Ônibus, que mostrava a misériado transporte urbano em SP (1973), chegou aser comprada por um religioso de Osasco. A có-pia foi usada por meses, na preparação de ummovimento amplo e de massa (com gente nasruas, etc.) pela melhoria do transporte públicona região. Pedreira era muito usado para discutira questão candente da segurança no trabalho,questão que, como tantas outras, era tratadacomo assunto indevido pelos empresários, essesos grandes beneficiados pelo medo reinanteentre os trabalhadores. E o Migrantes, claro, porcentenas de organizações de migrantes nor-destinos em São Paulo, além de sindicatos eigrejas, onde recomeçava-se a falar da questãosocial.

De certa forma, essa mínima possibilidade deabertura, com a visibilidade, também mínimados movimentos sociais - esse pouco nos alentavae, aos poucos, ia nos fazendo abrir a guarda,ousar mais. Claro, vendo hoje, depois de tudopassado, vejo como isso tornava perigoso o anode 75. Antes de sair de cena, antes de promovera tão controlada abertura, a ditadura quis aindamarcar sua presença entre nós, registrar sua for-

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ça, sua irracionalidade, como uma espécie deaviso, assassinando brutalmente uma pessoa devida aberta, absolutamente anti-clandestina,generosa, como se a mão do opressor buscassejustamente isso, para atingir a sociedade com omáximo do espanto e da dor.

Nada mais doloroso podia acontecer nesse anodo que a perda de meu amigo Vladimir Herzog,o Vlado.

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02. Vlado

Em 1975, enquanto Fernando Jordão e eu tra-balhávamos na Globo, Vlado estava fora da TV,depois de demitido da TV Cultura. Um ano antes,Assunção e eu havíamos criado uma produtorade cinema, a Raiz, que começou produzindoalguns filmes sobre meio-ambiente, conseguidospelo meu antigo companheiro de Hora da No-tícia, o Anthony Christo, agora na área decomunicações da Cetesb, a empresa paulista domeio ambiente. Os filmes foram O Rio Paraíba,dirigido por Reinaldo Volpato, e Um Rio Morrena Cidade, sobre o Tietê, dirigido pelo Ramalho.A criação da Raiz mostra como eu estava, denovo, de olho no cinema, sentindo que minhaexperiência na TV se aproximava de um limite.

O Vlado tinha uma ligação com o cinemaanterior mesmo à minha, embora ele tivesseseguido sua carreira como jornalista. Em 63, porexemplo, quando eu me iniciava no GrupoKuatro, ele fazia um curso no Rio, com o cineastaArne Sucksdorff (1917-2001), curso que ajudoua desenvolver várias carreiras de uma segundageração do Cinema Novo. Como resultado dessecurso, Vlado chegou a fazer um filme, o docu-mentário Marimbás, sobre pescadores de umapraia do Rio. Vlado, desempregado, fora da TV,também volta a sonhar com o cinema.

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Sua primeira incursão foi a de se tornar sócio daRaiz, usando parte do que recebera do Fundo deGarantia. Eu gostava da idéia mas a Assunção, maisrealista, achava que era absurdo o Vlado gastardinheiro numa atividade na qual a gente tinhasempre que batalhar para trabalhar. Convencemoso Vlado a não entrar para a Raiz e ele resolveuque desenvolveria alguns trabalhos conosco. Umdeles era para um filme sobre Canudos. Ele faria apesquisa e o roteiro para que eu dirigisse. Vladochegou a viajar para a Bahia, fotografou, gravoudepoimentos, mas o projeto foi ficando na gave-ta, à espera de alguma chance de produção.

Eu, já com um pé no cinema, preparava o projetode meu novo longa-metragem, seis anos depoisde Gamal. O filme seria Doramundo, uma adap-tação do romance do paulista Geraldo Ferraz.

E o roteirista seria o Vlado. Ele começou o traba-lho, gravando depoimentos na cidade ferroviá-ria de Paranapiacaba, onde se deram os fatosque estavam na origem do romance, ou seja,uma série de assassinatos anônimos em meio àpermanente neblina.

Quando começava a alinhavar o roteiro, jáesboçado, Vlado recebeu um convite ines-perado, contrariando o trajeto de cinema queele buscava traçar a partir de Canudos (projeto

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que ele planejava dirigir) e Doramundo. O con-vite era para reconstruir o programa Hora daNotícia, na TV Cultura. É que as mudanças polí-ticas na área federal, com a posse de Geisel e oanúncio, mesmo que tímido, de uma aberturapolítica, trouxera para São Paulo novos ares eum governo liberal, chefiado por Paulo EgydioMartins (governador nomeado) que, por suavez, colocou outro liberal, agora de peso, naSecretaria de Cultura: José Mindlin.

Daí o convite a Vlado que, mesmo contrariadopelo abandono do projeto Doramundo, aceitou,pesando a importância do que lhe era ofertado,oferta que ele via, era o que eu sentia em suasjustificativas, como uma tarefa irrecusável: aretomada de um projeto generoso de que elemesmo havia sido um dos idealizadores.

A ambigüidade do processo de abertura política,a distensão “lenta, gradual e segura” do regimemilitar, logo mostrou do que era capaz: afun-dado em suas próprias contradições internas,entre pombas e falcões, torturadores e aber-turistas, o regime abriu a mais violenta guerracontra quaisquer mínimos resquícios de oposiçãoe esperança de redemocratização.

Como já não havia guerrilheiros para combater,era preciso, finalmente, inventar inimigos, com-

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bater as sombras, para assim inviabilizar atémesmo o medroso programa de abertura pro-posto por Geisel e que já se encontrava, antesmesmo de proposto e de forma certamente maisgenerosa, enraizado na sociedade brasileira.Com esse projeto macabro em mente, o alvonúmero um não poderia ter sido melhor: aimprensa e, dentro dela, a TV. Não a Imprensaenquanto instituição, mas as pessoas, osjornalistas, os seres pensantes da instituição queos militares viam como fantasmas acusadores deseus erros e violência. O retorno de Vlado foirecebido de forma provocadora, com recadosduros na própria imprensa, deixando ver, clara-mente, que o regime, com seus defensoresdentro da própria Imprensa, estava de olho nasTVs. “Os comunistas estão de volta à TV Cultura”anuncia um jornal. E, enquanto Vlado discuteseus planos com a direção da TV, uma repor-tagem sobre o Vietnã vai ao ar, no programa,já com o nome de Vlado como editor, provo-cando a ira dos que, na verdade, nem de álibiprecisariam para atacar.

A reportagem, exemplarmente construída con-tra todos os nossos cuidadosos critérios, sem“gancho”, sem “profissionalismo”, não passavade um provocativo jorro de enunciados esquer-distas, onde os vietnamitas eram abertamenteclassificados como heróis e os invasores norte-

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americanos como bandidos, como a denunciar,assim, através da reportagem, a linha esquer-dista que supostamente Vlado imporia ao pro-grama. A reação, tão perigosa quantoinconseqüente, pode ser vista num tristementefamoso artigo de jornal e na charge deilustração, feita por um grande, mas inadvertido,chargista brasileiro, com o título “TV-VietCultura” onde um cinegrafista aparece vestidocomo um vietcong (passados tantos anos, seráainda possível imaginar o que significava,naquela época, em 75, sob a ditadura do GeneralGeisel, tal tipo de acusação?). Na verdade, comoconseqüência da ambigüidade do projeto deabertura de Geisel e do espírito golpista dos se-tores mais duros do regime, a Imprensa passavaa alvo preferencial, numa tentativa de provarque os meios de comunicação estavam infil-trados de subversivos e, assim, evitar até mesmoa abertura política do novo governo.

Outro alvo era, sem dúvida, o Partido, o PCB,para que não tivesse chance de se reorganizardurante a abertura.

O assassinato de Vlado, em outubro de 75, jápreso (com inúmeros outros jornalistas), numasessão de tortura, é um acontecimento que ja-mais poderá ser esquecido não só pelos seusfamiliares e amigos, mas por todos os cidadãos

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brasileiros, sobrepesando a dor da perda à com-preensão de seu significado na história dessepaís. Pois esse é o verdadeiro conteúdo da aber-tura de Geisel, um projeto de tutela armada quese procurava antepor ao projeto que já se dese-nhava na sociedade, rumo a uma democraciasem tutelas e a um Estado que soubesse respei-tar os direitos fundamentais do homem. A mor-te de Vlado, é claro, me marcou profun-damente. Falar de sua história, ainda hoje causaum nó embaraçoso, como uma culpa. É comose, dentre todos nós, que naquele momentotentávamos alimentar algum sonho, o demiurgotivesse escolhido o melhor de todos, o maisgeneroso, o mais aberto, para sacrificar, comoum terrível exemplo. Maldito poder esse, desco-lado de sua função de dirigir a sociedade, digerirsuas contradições e que, pelo contrário, seencastela em seus próprios desígnios e age deacordo com sua própria flatulência!

Dois anos depois, em 77, realizei Doramundo,que venceu, em 1978, o Festival de Gramado,como melhor filme e melhor diretor, prêmiosque dediquei a meu querido amigo.

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03. Algumas palavras mais sobre o Vlado

A morte de Vlado provocou uma reação ime-diata, a começar da própria Clarice, fundamen-tal em sua dor e determinação de levar até ofim a denúncia do assassinato. Uma reação quepassa também pelos amigos, principalmentepelo Fernando Jordão, que levou para o Sindi-cato de Jornalistas, com apoio público do presi-dente, Audálio Dantas, o QG da luta pela verda-de de mais esse crime da ditadura militar.

Vlado, como eu, tinha sido militante do PCB. OPCB, nesse ano de 75, estava desmobilizado, coma direção no exílio e muitos mortos ou presos,além das perdas pela dissidência da luta armada.Mas, tomados pela leve e perigosa brisa da aber-tura política, algumas áreas do partido, princi-palmente de intelectuais retomavam as ligações,lendo o clandestino Voz Operária. Vlado tinhaligação com essa iniciativa, principalmente atra-vés de seu amigo Miguel Urbano, comunistaportuguês do PCP, exilado e protegido pessoal-mente pelo jornal O Estado de São Paulo. MiguelUrbano, depois da Revolução do 25 de abril, emPortugal, retornou a seu país, ao Partido Comu-nista Português, como editor do jornal do PCP.

Eu e Assunção estivemos com ele em Portugalalguns anos depois, valendo para nós um jantar

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de lulas na brasa, um bom vinho português, umexcelente papo e uma reportagem sobre meutrabalho no jornal do Partido.

Pois bem, numa das viagens de pesquisa à cidadeferroviária de Paranapiacaba ( onde se passaramas histórias reais de origem do livro Doramundo),Vlado me falou sobre isso. Mesmo o fato de elesaber de minha origem partidária e de ser meuamigo não amainou a dificuldade dessaconversa.

Vlado era extremamente responsável, talvez atéem excesso. E tinha sempre uma relação de pro-funda verdade com os amigos, o que o tornavamuitas vezes chato, cobrador, sempre que viaalgum amigo agindo de forma que ele consi-derava politicamente errada. Ou falsa. Muitasvezes brigou comigo por causa de meu filmeGamal - e a briga chegava a um nível que inco-modava a própria Clarice; parecia um rompi-mento, agressivo. Mas não era nada disso. Aveemência era seu tom: ele não admitia umamigo tomado pelo que considerava um erro.O sentimento de amizade e do dever daconsciência é que falavam tão alto. Por isso,passado o momento de conflito, nossas relaçõesde amizade e profissionais seguiam sem umarranhão sequer, como se nada tivesse acon-tecido. Um outro exemplo mostra esse lado

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obsessivo do Vlado, em busca de um caminhocerto, responsável e justo para todos os que ocercavam.

No início de 75, já na Globo, eu fiz um filmesobre o lixão de São Paulo, para a série Cinemade Rua. O filme é Restos que eu mesmo filmeicom uma velha câmera BH-16 mm, de corda euma lente 10 mm. O filme se inspira na decla-ração de um técnico norte-americano que,examinando o lixão paulista para eventualexploração industrial, declarou que “o lixo deSão Paulo é o mais rico do mundo”. Restosmostra o que é essa riqueza e a miséria dos quepisam sobre ela, registrando, aliás, a repressãoaos catadores para que deixassem a “fortuna”à disposição dessa eventual indústria. O filme,aliás, em branco-e-preto e mudo, foi proibidopela censura em Salvador, durante a Jornadade curta-metragem de 75. Antes de terminar,em fase de montagem, eu mostrei o filme parao Vlado. No filme, um tanto eisensteiniano, háuns planos em super-detalhes de um velhocatador de lixo. Alguns letreiros intercalados dãobreves informações do que eles catam e do queganham. Quando a câmera sobe de suas mãosmarcadas para seu rosto, o velho fica um tempoolhando para a câmera e, ao final, seus olhoslacrimejam. O Vlado achou que eu forçara abarra.

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Não que eu tivesse provocado a cena, mas for-çava a mão usando a cena que parecia uma ex-ploração melodramática. E ele achava isso tãoevidente que não entendia como eu podia estarusando a cena. Claro, tivemos uma daquelas dis-cussões terríveis mas eu, no fundo, concor-davacom ele e acabei cortando o final do plano.

Também durante nosso trabalho no Hora daNotícia tive uma experiência importante comessa obsessão do Vlado. Eu fui fazer uma dasminhas “especiais” num conjunto habitacionalperto de Jundiaí, onde centenas de famíliasestavam ameaçadas de despejo. Fui, filmei evoltei um tanto embananado. Por mais que eutivesse procurado, não achava as razões verda-deiras do problema: os moradores diziam quenão recebiam os carnês para o pagamento. Aimobiliária acusava os moradores de inadim-plentes e os processava. Eu montei uma versãoe, com dúvidas, resolvi conversar com o Vlado(em geral era o Fernando que editava meus fil-mes). O Vlado assistiu e observou que a confusãodos fatos havia se impregnado no filme. E quea gente não devia jogar os espectadores nessaconfusão. De nossa conversa, saiu a idéia deuma nova edição, começando com o Locutordizendo: “Vocês vão assistir agora a umaconfusão que ameaça de despejo centenas defamílias em Jundiaí”. Com isso a reportagem

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pôde até mesmo se divertir com a confusão masmostrando, ao final, as dramáticas conseqüên-cias desse tipo irresponsável de relacionamentosocial, no caso, o despejo.

Conhecendo o Vlado, eu entendia a cautela comque falava comigo sobre o Partido. Ele mesmoainda estava em fase de contato e sabia dosperigos desse tipo de conversa. Perigo paraquem fala e para quem escuta. E também oreceio de abrir o jogo de forma desnecessária,se o interlocutor se mostrar, depois, desin-teressado ou contrário ao convite. Nesse caso jánão haveria volta, estaria definitivamenteaberta a ligação com o Partido. Nossa conversafoi breve, vendo passar a paisagem exuberanteda Serra do Mar, rumo a Paranapiacaba.

Logo desviamos o assunto para nosso trabalho,a pesquisa local para o roteiro de Doramundo.Nem eu quis saber de mais detalhes e nem oVlado me contou mais do que ele mesmo pareciasaber, ou seja, de que havia sido contactado porum militante do PCB no sentido ainda um tantovago de se pensar em alguma forma de retomara atividade política. A conversa parou por aí e,na verdade, nem avançou mais, abortada pelaprecipitação dos fatos que, para ele, acabaramtão tragicamente.

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Quando Vlado recebeu o convite para retomaro Hora da Notícia, ele e Clarice estiveram emcasa. Vlado se sentia “traindo” nosso trabalho,um tanto culpado pela interrupção do roteirode Doramundo. Conversamos e todos acháva-mos que era mais importante ele retomar nossotrabalho interrompido na TV Cultura.

Depois disso eu estive com ele para comentaruma terrível reportagem sobre o Vietnã que euvira na noite anterior, no Hora da Notícia. A re-portagem me chocou, pelo tom abertamenteprovocativo, chamando os norte-americanos deimperialistas e tratando os vietcongs comoheróis, sem os nossos usuais cuidados e já com onome do Vlado como editor. Vlado me disse quenaquele dia nem havia passado pela redaçãodo Hora da Notícia, onde a equipe ainda eracomposta pelas pessoas contratadas após nossasaída, em 1974. Vlado passara o dia reunido coma direção da TV acertando projetos, contra-tações, salários. A reportagem, na verdade, pa-recia plantada para implicar o Vlado. Coisa queconseguiu.

Depois eu estive de novo com ele acho que doisdias antes de sua prisão já esperada. Os agentespoliciais o haviam procurado em casa, alegando,para a Clarice, que precisavam do Vlado para“serviços profissionais”.

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Clarice disse que ele estava trabalhando e, emseguida ligou para o Vlado na TV Cultura. Ospoliciais tentaram prendê-lo mas acabaramconcordando em que o próprio Vlado se apre-sentasse ao DOI-CODI no dia seguinte pelamanhã.

Na verdade já se esperava que isso pudesseacontecer, pela precipitação dos fatos. Os mili-tares, incomodados com a tão leve promessa deabertura política feita por Geisel, procuravamsombras. E, puxando fios, começaram um proces-so de prisão de jornalistas, considerados básicosna pregação de uma abertura. Essa concepçãoganhou força quando se espalhou a notícia deque os jornalistas “comunistas” (na verdadeapenas de oposição ao regime militar)preparavam uma ação pública durante reuniãoda AII- Associação Interamericana de Imprensa.Com isso iniciaram a prisão de jornalistas echegaram ao círculo do Vlado: basicamentejornalistas que trabalharam juntos na RevistaVisão (onde aliás fizeram um belo trabalho deanálise e crítica, tendo o Vlado como editor deCultura, desde os tempos do governo Médici).Já estavam presos o Paulo Markum, o RodolfoKonder, o Marco Antonio, o Anthony Christo eoutros.

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Conversando com Vlado, ele super-abatido,encantoado, me dizia que nunca falaria nada.Na verdade, o que teria ele para falar diante aagressividade dessas prisões, as torturas, mor-tes? Praticamente nada. Vlado, apesar dessatênue ligação com o Partido, era uma pessoaabsolutamente aberta e que levava muito a sé-rio tudo o que fazia. Detestava demagogia etambém a redução de seu trabalho a umapanfletagem ideológica. Nosso trabalho no Horada Notícia estava impregnado pela sua exigênciacrítica. Vlado não aceitava, por exemplo, umareportagem anti-governo guiada apenas pelapostura do repórter. A reportagem tinha quese sustentar enquanto reportagem, estar calcadaem fatos e ser oportuna, justificável profis-sionalmente e viável naquele momento.Também ele havia se posicionado contra a lutaarmada e sua visão era a de uma luta nãoclandestina contra a ditadura, de uma luta emsentido novo, aberta, que pudesse ganhar aopinião pública e a sociedade, num movimentoamplo que obrigasse os militares a uma aberturae à anistia. E nós, que exercêssemos bem o nossopapel, no cinema, no jornal, na TV, ondeestivéssemos, no sentido de clarear as infor-mações, propiciar uma ampla discussão em todoo país. E era esse o Vlado que estava sendo presoe, no mesmo dia, assassinado.

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A violência contra o Vlado, exercida com o mes-mo ódio com que a repressão liquidou tantosdos que considerava seus inimigos, agorachegava a um limite intolerável. Já não era amorte de um “terrorista”, como costumavamclassificar suas vítimas, cegando a opiniãopública. Era a morte de um cidadão conhecido,de endereço conhecido e de alta função dentrode uma emissora de televisão do própriogoverno.

Os militares ainda tentaram ludibriar a opiniãopública, divulgando que Vlado havia “sematado” na prisão. Para isso forjaram um laudoe exibiram uma fotografia onde Vlado apareceenforcado pelo cinto. O cinto preso nos ferrosda grade da janela e as pernas totalmentedobradas porque a altura das grades eraabsolutamente insuficiente para um suicídio. Averdade é que a tortura corria solta e os militaresdos serviços de repressão política agiam comódio, procurando mostrar sua força, temerososdiante de qualquer mínima abertura que ospudesse colocar em julgamento diante daopinião pública. Pressionados pela sociedade epela intensa mobilização feita principalmentepelo Sindicato dos Jornalistas, com AudálioDantas na presidência, Geisel manda abrir uminquérito. De uma maneira que era um acinte àmemória do Vlado, à opinião pública e à dor de

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Clarice e seus filhos, o II Exército instaurou uminquérito não para apurar as causas da morte,mas “para apurar as causas do suicídio dojornalista Vladmir Herzog”. Cinicamente os mili-tares, com a anuência ou, quem sabe, até mes-mo a orientação de seu chefe (o General ErnestoGeisel), finalizaram o inquérito “comprovando”o suicídio. Clarice continuou sua luta e, com oincrível trabalho dos advogados Marco AntonioBarbosa e Samuel McDowell Figueiredo conse-guiu a condenação da União pela morte doVlado, uma vitória histórica que, junto comtantas outras iniciativas da sociedade, em-purrava a ditadura rumo à abertura e à anistia.

Eu, na verdade, nunca me recuperei do impactodessa perda. No dia em que soubemos da mortedo Vlado, eu fui para a casa de Clarice. Lá jáestavam várias pessoas amigas, conhecidos,jornalistas. Nem é preciso reiterar aqui o estadoda Clarice.

Nós os amigos estávamos em frangalhos, eu melembro de chorar apoiado ao muro do compridocorredor de entrada da casa e, depois, abraçadoao Fernando Jordão. Acho que Clarice ainda eraa que se mantinha de pé, tomando decisões. Elamesmo é que me pediu para ir, com um carroda TV Cultura, até seu sítio em Bragança Pau-lista, para avisar seus pais. Eu entrei no carro,

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como um zumbi e fui até o sítio. Logo que meviu, o rosto marcado pelo choro, a mãe deClarice se desesperou: “Aconteceu alguma coi-sa com o Vlado!”

O clima político nesses dias era quaseirrespirável. Os boatos se amontoavam, sempreem tom de ameaças, plantando medo naspessoas.

Eu me sentia desarvorado, sem saber o quefazer. Eu que filmava tudo, porque não filmeinada naquele momento? Me sentia impotentemesmo, vendo, mais uma vez, a História desabarsobre nós com sua força destruidora, tal comohavia feito em 64 e, depois, em 68. Só que agoraa dor parecia mais forte, em parte pela perdado amigo e companheiro e, em parte, pela faltade razão, pelo inexplicável, pelo corte vazio desentido. Eu estava desligado de qualquerestrutura partidária, de qualquer apoio políticomais organizado, coisa que ainda me fazia muitafalta.

Como já disse no início dessas memórias, meutemperamento é assim, instável, no mesmoinstante em que estou no paraíso me vejoarremessado ao fundo do poço, tomado poruma subjetividade que procuro sempre controlarcom uma construída racionalidade mas que,

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muitas vezes, se mostra absolutamente incon-trolável, como um veneno obsessivo. Isso, porexemplo, me fez cometer um erro que até hojeme incomoda demais.

Assunção e eu íamos até o Sindicato dos Jor-nalistas e nos deparamos com uma certaconfusão na rua, com um carro de polícia militarbem na entrada do prédio do Sindicato. Naquelaépoca, nossos amigos Jean-Claude e LucilaBernadet moravam num apartamento bem emfrente ao Sindicato e nós subimos até lá. Lucilaentão nos relatou que tinha visto soldados daPM entrarem no prédio em frente e, depois, nopróprio Sindicato. Preocupados, tensos, saímosdali e fomos até à casa do casal Fernando Jordãoe Fátima relatar o caso, a invasão do Sindicato.Eles receberam a notícia como uma bomba.Fosse verdadeira, estaria liquidado o processode resistência em São Paulo. Chegou-se a falarde exílio, busca de uma embaixada. MasFernando, felizmente, não se conformava, pe-gou o telefone e ligou para o Sindicato. Foiinformado que, de fato, tinha havido a entradados policiais militares, mas eles alegaram queprocuravam uma pessoa e acabaram indoembora.

Eu fui tomado por uma sensação contraditória.De um lado, o alívio. De outro, uma vergonha

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imensa que se agigantava sem parar, alimen-tando-se de todas as conjecturas que se passa-vam por minha cabeça, o exílio, a fuga, tudoem conseqüência de uma informação não devi-damente checada...

A verdade é que eu sempre me sentia culpado.Refletindo hoje, vejo que, de certa maneira, eume sentia traído pela História. Nosso trabalhose baseava justamente em que éramos pessoasabertas, que recusávamos a luta armada, quepregávamos um processo amplo e aberto de lutapela redemocratização. Nós não éramosperigosos, no sentido da luta imediata, nãopossuíamos e nem usávamos armas. Morávamosem lugares certos e conhecidos, trabalhávamosem instituições legais. Em nosso trabalho, com-batíamos o radicalismo, a porralouquice emdefesa de uma seriedade, a postura de pessoasrespeitadas.

É claro que isso permitiu nossa sobrevivênciaprofissional de um ano e meio, no Hora daNotícia e, depois, nosso trabalho, meu e doFernando, na Globo. Mas os fatos mostraramcomo éramos frágeis diante da violência insti-tucional implantada no país desde 64. Eu mesentia como que desmascarado, a ditadura nãoestava nem aí para essas qualidades “finas” deseus inimigos.

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Daí a culpa, como se eu tivesse feito parte deuma armadilha e ela finalmente tivesse dispa-rado contra um dos meus melhores amigos. Eessa culpa ainda persiste lá no fundo da alma,um peso que faz lacrimejarem meus olhos - comoestá, de novo, acontecendo nesse instante emque escrevo - emoção que tantas vezes meembargou, ao falar do Vlado.

É claro que eu sempre achei, e continuo pen-sando assim, que a proposta que nos guiava eracorreta. A ditadura haveria de ser derrotada nãopelas armas mas por um processo de aberturadentro da própria sociedade, com a volta dacirculação das idéias, do debate, a reorganizaçãoda sociedade civil.

O custo de tudo isso é que foi alto demais.Deixou, insepultos, nossos mortos, nossos desa-parecidos, torturados. E livres, não identificados,oficialmente limpos de toda a sujeira praticada,os assassinos, os torturadores, seus cúmplices,acólitos, financiadores e chefes, tanto civisquanto militares. Eu quis tratar desse tema emOs Demônios, partindo de um argumento meucom roteiro meu e do Lauro César Muniz. Noroteiro, o líder político anistiado, de volta aoBrasil, tenta levar adiante a identificação de seupróprio torturador. O resultado é que não só osmilitares reagem mas, o que é fundamental no

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caso, a própria sociedade política reprime essabusca, diante do perigo de um retrocessoinstitucional. Como eu já disse, o filme não che-gou a ser realizado: o projeto, já aprovado, foicensurado pela direção da Embrafilme, em 82,sendo presidente o Roberto Parreira que,segundo deixou transparecer na conversacomigo, transmitia o desejo de escalões supe-riores do governo (ainda militar). É precisolembrar que Roberto Parreira substituía odiplomata Celso Amorim, vitimado pelo efeitoPra Frente Brasil, do Roberto Farias. Pra FrenteBrasil, por sua vez, foi realizado logo depois dopróprio Farias ser substituído pelo Amorim, nocomeço dos anos 80.

Proibido o projeto de Os Demônios, que eu con-sidero uma das maiores perdas de minha car-reira, a Embrafilme financiou A Próxima Vítima(82/83), como compensação.

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04. A despedida da TV

A partir de 1975 eu definitivamente batalheiminha volta ao cinema. Isso marcou meu traba-lho na Globo, pois eu me vi empenhado emavançar minha própria linguagem, criar for-mas novas de narrativa, esticar a metragem dosfilmes.

Na Globo, eu passei a realizar projetos maisambiciosos, como Guitarra contra Viola umGlobo Repórter Documento (um só filme, demais ou menos 38 minutos, por programa deuma hora). O filme vasculha o sentido de pro-gresso numa cidade do interior, centrado naspreparações e comemorações do aniversário dacidade, Boa Esperança do Sul, em São Paulo. Eugosto muito do filme, no qual se evidencia avisão de que o progresso vem de fora e as mani-festações artísticas revelam os conflitos entre opassado e o desejo do futuro, na disputa pública,em show musical, entre violeiros e roqueiros.Ao final do show, o apresentador pergunta aopúblico quem venceu: a viola ou a guitarra(nessa época, 1977, a indústria cultural aindanão havia descoberto, para valer, a música rural).E gritava para o público, erguendo ora um oraoutro instrumento: “A guitarra ou a viola?” E opúblico respondia, gerando uma disputa feroz.O filme fez sucesso e a Globo chegou a pensar

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numa série: eu mesmo comecei a desenvolverum novo filme na cidade de Bananal, no Valedo Paraíba, mas a idéia acabou não vingando.

Um detalhe bem curioso das filmagens de Violacontra Guitarra foi a insistência de um fazen-deiro para que eu o filmasse. Ele queria, dequalquer maneira, seus cinco minutos de glória.Eu não o atendia. Durante o desfile ouvi queme chamavam. Era ele, agora montado num boie com um berrante à boca. Eu fiquei balançadocom o chato, a cena era curiosa. O Jorginhoapontou a câmera para ele mas eu desconfieique alguma coisa estava errada e impedi afilmagem: o fazendeiro parecia tocar, assopran-do no bocal do berrante, mas o som saía forade síncrono... Reparando bem, vi que, atrás dotouro, vinha seu empregado, ele sim, tocandoum bom som de berrante, em síncrono. Ofazendeiro explorava seu peão até para apa-recer na Globo. Claro, eu mandei filmar o peão,para desespero do chato.

Fiz também um filme sobre bóias-frias, oVolantes, Mão de Obra Rural, enfocando a mi-séria das relações de trabalho no campo, justa-mente onde se ensaiava uma inédita grevedesses trabalhadores, na cidade paulista deMogi-Mirim, em 1976. O filme chocou os fazen-deiros locais que chegaram a fazer um movi-

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mento contra mim, com artigos em jornal e pres-são sobre a Globo. É preciso dizer, aliás, que aGlobo não se intimidava com esse tipo de pres-são. Não recebi, nesse caso, nenhuma adver-tência. Na verdade nem se tocou nesse assunto.

Em 1976 eu fiz um dos mais queridos e pesadosfilmes dessa minha fase de Globo: o pequenoDesaparecidos, de 15 minutos, para um daquelesprogramas de três episódios, o Globo RepórterAtualidade. O filme vasculha a realidade crueldos desaparecidos numa grande cidade, comoera ao caso de São Paulo. E revela a intensa cargasocial desse problema. Para começar, eu partide um anúncio de jornal que falava de umdesaparecido, cuja residência seria num bairrode nome que já não me lembro e um endereçotipo rua número tal, sem número. O filmecomeça investigando o próprio local, tentandoidentificar um endereço naquele mar de misériaque era, e ainda é, a periferia de São Paulo. Sóessa busca dava um bom filme, tema, aliás, demeu décimo-primeiro longa, Rua Seis, SemNúmero (2003). Voltando ao filme Desapa-recidos: partindo do caso tirado do jornal, fuianalisando outros casos gerais, depoimentosfamiliares, buscas infrutíferas e destinosprováveis, como a morte, a loucura, a prisão.Ou mesma a fuga, muitas vezes motivada pelodesespero diante da incapacidade do desapa-

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recido em sustentar sua própria família. Ele fogee, incapaz de viver sozinho, criará outra famí-lia, em algum outro lugar, sem jamais se comu-nicar com a antiga família.

A busca do primeiro desaparecido leva o filmea delegacias, expõe fotos terríveis, imagens decelas superlotadas, a impotência e também odesinteresse policial. Depois o IML, espécie deretrato sujo e terminal do problema.

Uma das seqüências finais do filme é uma dascoisas que eu mais gosto de todos os meus filmese mostra bem o sentido de busca de meutrabalho. Eu tive informações de que o perso-nagem guia teria morado num quartinho doterraço de um velho prédio do bairro do Bixiga,em São Paulo. O prédio agora era um cortiço.Lá na rua, o depoimento de um morador con-firma que o procurado, ou uma pessoa comoele, morara havia algum tempo no tal quar-tinho. Eu fiz o cinegrafista entrar no prédio, jáfilmando. E subir as escadas até o terraço, depoisde dois andares do cortiço miserável. Eu mesmofui entrando num transe impressionante, diantedessa busca cinematográfica. Sempre com a câ-mera ligada, chegamos ao terraço. Segurandoo ombro do cinegrafista eu o dirigi rumo à portado quartinho. Sempre do lado da câmera,estiquei o braço, abri a porta. O quarto era um

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cubículo que mal cabia uma pessoa esticada paradormir e exibia restos de algum morador, tra-pos sujos, um casaco imundo e rasgado. Vendo,lá dentro do cubículo, um caldeirãozinho nochão, ainda com tampa e junto a restos de fogo,fui tomado por um pressentimento. Levei a mãoe levantei a tampa, fazendo o cinegrafista seaproximar dele até o detalhe do que haviadentro. Dentro, a imagem cruel de um resto defeijão, metade do caldeirãozinho, pululando detanto bicho.

Depois de Desaparecidos, destaco, em meusúltimos trabalhos na Globo, dois filmes car-regados de experimentação e com grandesrepercussões, no primeiro para o bem, no outropara o mal.

Em 1977, fiz Caso Norte, de excelente reper-cussão, com críticas super-elogiosas em jornaise revistas como a Veja. Caso Norte nasceu deum desafio dentro da própria Globo, incen-tivando uma rivalidade e o espírito de com-petição entre os vários setores do jornalismo.Cada setor deveria fazer um programa livre eum seria premiado. Eu ouvi, pelo rádio, a notíciade um crime no bairro da Barra Funda, em SãoPaulo. Numa briga de bar, um guarda de em-presa atira, fere um trabalhador e mata outro.O detalhe que me antenou: eram todos migran-

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tes, paraibanos, pernambucanos, cearenses,baianos. A questão “migrantes” era um velhotema meu e renderia, mais tarde, O Homem queVirou Suco. O jornalista Dácio Nitrini, hojeredator do Boris Casoy, me deu todas as infor-mações e uma gravação de um comentário domaior repórter policial da época, o Gil Gomes.Ele fazia uma narrativa espalhafatosa, drama-tizada, como ele gostava e que fazia grandesucesso no rádio. Gil Gomes ainda não tinhaimagem conhecida, era conhecido apenas pelavoz e marcava o início dessa super-exploraçãodo fato policial, fazendo dele uma espécie de“justiceiro” do rádio, a quem a população a cadadia mais recorria, descrente das instituições.

Eu sai com minha equipe no dia seguintemesmo, de manhã. Trabalhar em TV possibilitaessa incrível agilidade, de que eu sempre gostei.O cinegrafista era o Jorginho (Jorge dos Santos),hoje o principal câmara do Globo Rural, onderealiza um belíssimo trabalho. O Jorginho haviainiciado comigo e eu sempre o orientei nadireção de uma “câmera narrativa, partici-pante” e não apenas descritiva. Coisa que destavez, em Caso Norte nós esbanjamos de formainovadora, geradora até mesmo de modismos.Pedi para ligar a câmera ainda dentro do carro,num travelling do bairro até chegar à padariaonde teriam acontecido os crimes.

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A câmera desce, vai até o bar. Eu, sempre coma mão no ombro do cinegrafista, pergunto(sempre em off) ao dono do bar se era ali quehaviam acontecido os crimes. Ele confirma e co-meça a contar. À medida em que ele vai falan-do e apontando os lugares, a câmera vai sedirecionando para os lugares e voltando rapi-damente para o depoente até nova indicação:a porta, o banquinho, o radinho no balcão, olocal da discussão, a queda dos corpos. Então,logo de início criamos uma linguagem, umaforma narrativa de câmera participativa, umacâmera que procura. Por exemplo, quando odono do bar disse que as pessoas que brigarammoravam num cortiço ao lado, eu fiz o cinegra-fista girar a câmera imediatamente e caminha-mos, saindo do bar, pela rua e entrando numbeco que dava num páteo interno cercado dequartos. Era o cortiço. A câmera segue, passapor um morador, eu pergunto, sempre em off,se era ali que moravam as pessoas (digo os no-mes), a pessoa confirma, a câmera sobe umaescada, vai até um quarto e erra, isto é, a pes-soa diz que não era ali, a câmera desce as esca-das e chega a um quarto de baixo onde mora-va o rapaz que ficara ferido. E assim seguia ofilme, de descoberta em descoberta. Logo nosegundo dia eu resolvi colocar atores para re-presentar as pessoas envolvidas. levei os atorespara o local e documentei suas conversas com

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as pessoas. Depois, no bar, enquanto os atoreseram “paramentados” filmei uma conversaentre eles, cada um falando de seu persona-gem, da pessoa que conheceu. Os atores quasebrigam no final, cada um defendendo o seupersonagem pelas suas qualidades. Aí vem aquarta parte que é a representação do fato,feita agora pelos atores. Aí entra uma novida-de para a época mas que acabou gerando umacópia negativa num programa de sucesso na TV:eu filmei o Gil Gomes narrando o episódio. Eraa primeira vez que ele apareceria, que sua ima-gem se tornava conhecida. A reconstituição vaiaté as mortes e a prisão do guarda, o per-nambucano José Joaquim Santana. Gosto de-mais da forma como retorno ao documental:usei os próprios soldados que prenderam o per-sonagem real. Eles prendem o ator/guarda e ojogam no camburão. A câmera vai até eles e eupergunto (sempre em off) o que havia aconte-cido, eles contam a história real. A quinta par-te é a solidão terrível do guarda José Joaquim,preso na Penitenciária, chorando sem parar,com a mulher e os dois filhos sem sua proteção,abandonados pela empresa empregadora. Elefala de sua vinda para São Paulo, seus sonhos.O filme tem uma montagem primorosa feitapelo meu ex-aluno, o cineasta ReinaldoVolpato.

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No concurso aberto pela Globo, o Boni deu umjeito do filme não concorrer. Enviei o filme parao Rio como eu costumava fazer, sem as cabeças(gravadas pelo Chapelin). O filme foi, então des-classificado e ficou quase um mês arquivado.Quando foi ao ar, fez o maior sucesso, com altaaudiência e repercussão, com críticas sempreelogiosas em jornais e revistas. O filme acabou,depois, entrando na lista da imprensa como umdos dez melhores programas de TV do ano de1977. A crítica da Veja, por exemplo dizia: “Umavigorosa denúncia na pasteurizada paisagem datelevisão brasileira” (Paulo Moreira Leite). E semdúvida alguma, foi usado na fórmula do AquiAgora, justamente com o Gil Gomes. Só quevirando minha proposta de ponta cabeça. Eupartia de um fato policial e procurava o social.O Aqui Agora chafurdava no terreno policial co-mo um espetáculo público, a visão exatamentepolicialesca das questões sociais.

No ano seguinte, 1978, enlevado pelo sucessode meu terceiro longa-metragem, Doramundo,no Festival de Gramado (realizado em fevereirode 1978, no qual recebemos o Kikito de melhorfilme, melhor diretor e melhor cenografia),resolvi me desligar de tudo o que eu julgavaatrapalhar minha carreira de cineasta: me demitida Globo e da ECA (Escola de Comunicações eArtes, da USP).

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Era uma loucura, principalmente no caso da Glo-bo. Eu sou um dos raros casos de funcionáriosque se demitiram da Globo. Afinal eu era “Editorde Especiais”, cheio de regalias e muito bempago e muitíssimo bem tratado por onde meapresentasse. Meus filhos eram sempre presen-teados por várias empresas, eu sempre tinhaconvites para restaurantes, espetáculos. E a car-teirinha da Globo era quase que um passaportediante de problemas policiais, barreiras, guardasrodoviários, etc. A norma, pois, era que ninguémse demitia desse paraíso que, para muitos, erao paraíso da acomodação e da segurança.Embora, na verdade, as pessoas vivessem ali namais incomodatícia insegurança, num clima deextrema competição entre as pessoas e de medoaos superiores. Medo que, de alto a baixo, faziade muitas dessas pessoas verdadeiros capachos,que sempre tentavam escapar das garras dochefe oprimindo os de baixo. Para esses, entrea insegurança no trabalho e a segurança dosalário, a escolha era, sempre, ficar, até seremenxotados.

Eu posso, no meu caso, garantir que nunca sofrihumilhação alguma em minhas relações dentroda Globo. Cultivei minha independência,defendendo minhas idéias e muitas vezes dis-cordando de meus chamados “chefes”. Ao con-trário de muitos, que obedeciam cegamente os

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pedidos, de programas ou reportagens, eu apre-sentava novas propostas e era sempre aceito. Oengraçado é que justamente os mais apavora-dos, os que mais cegamente obedeciam e fazi-am seus programas “como o chefe mandou”eram os mais criticados pelos famosos comen-tários internos, de arrasar. Essa era a parte me-lhor do espírito “global”, o incentivo à inven-ção que poucos ousavam usar, preferindo a se-gurança do usual, com os belos salários, mesmoque humilhados.

Eu queria era justamente a insegurança.Confiava em minha carreira de cineasta e resolvique tinha que batalhar pela sua continuidade,numa adesão radical.

Mesmo assim ainda fiz alguns trabalhos para aGlobo, alguns para o Globo Repórter e umespecial sobre 32, para o cinqüentenário dessa“revolução” paulista. Esse filme é 1932-82, aHerança das Idéias, onde, matreiramente, fizuma leitura da Revolução de 32 pela necessida-de, após uma ruptura institucional, de uma novaconstituição. Pois era isso o que todos nóscomeçávamos a falar naquele momento: a lutapela Constituinte, uma nova frente de pressãocontra a ditadura militar (já sob o comando doGeneral Figueiredo).

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O outro filme - Wilsinho Galiléia - realizei antes,em 1978, logo depois de minha saída da Globo.Fui contratado como diretor e a Raiz, contrata-da como produtora, uma rara e boa experiênciade produção independente para TV.

Wilsinho Galiléia é um longa-metragem mistode ficção e documentário que seguia a expe-riência de O Caso Norte. Foi também o DácioNitrini que me trouxe a pauta, a notícia dofuzilamento, pela polícia, do já famoso “ban-dido” Wilsinho Galiléia, justamente quando omesmo completava 18 anos. Eu fiz como em OCaso Norte, filmando como uma investigação e

Durante as filmagens de Wilsinho Galiléia

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colocando atores cujas atuações iam se inter-penetrando no tecido do documentário, inclu-sive com as reconstituições de ações, assassina-tos, assaltos e a própria morte do personagem.O filme, fotografado pelo meu ex-aluno, o cine-asta Adilson Ruiz, procura mostrar como umgaroto, que começa roubando maçã numa fei-ra, vai passando de mão em mão, delineadocomo bandido pela polícia e escapando pelosdedos impotentes de assistentes sociais e psicó-logos, até a inexorável morte, depois de umacarreira meteórica como marginal perigoso eextremamente mau.

O filme é tocante, o tema tratado como ferida,com um clima latino-americano que é ajudadopela música. Os personagens são expostos comuma evidente compaixão, ou seja, a dor de vera infância tratada como problema policial, vercrianças se tornarem marginais tão enfurecidose cruéis. Isso irritou a censura.

O censor interno, que agia dentro da Globo,proibiu o filme que, sendo um longa-metragem,seria apresentado em duas partes, dois pro-gramas do Globo Repórter. A Globo bancou ofilme: apelou para o Departamento de Censurada Policia Federal no Rio. Proibido. Incon-formada, a Globo mandou o filme para oDepartamento de Censura, em Brasília. Proibi-

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do. Mandou ainda para o Palácio do Planalto.Resultado: o Chefe da Casa Militar confirmou aproibição, dizendo à Imprensa, maldosamente,que “esse filme não será visto nas casas de fa-mília”, o que deixava entender que o filme ti-nha um conteúdo impróprio ao ambiente fa-miliar.

A repercussão foi muito grande. Afinal atingiaa Globo, e um programa como o Globo Repórter.E ainda frustrava a expectativa do filme, depoisdo sucesso de O Caso Norte. Editoriais, charges(inclusive do Henfil), reportagens por toda aImprensa. Mas o resultado foi desastroso. A Glo-bo sentiu o peso da proibição, pois - naqueleperíodo conturbado - a Censura já atingira anovela Roque Santeiro (a primeira versão, pre-parada por Dias Gomes, em 1975), meu filme eo especial A Enxada, baseado no conto deBernardo Élis (por coincidência, o mesmo autordo romance O Tronco que eu filmaria vinte anosdepois). Coincidência ou não, obras de três ex-militantes comunistas...

Eu voltava da Espanha, onde assistira ao ver-dadeiro desmonte do franquismo, respirandocom saudade um clima de liberdade nas ruas,nas conversas. E fiquei indignado com a proi-bição ao meu filme.

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Para a Globo, a proibição foi um problema maissério, criou mais um embaraço, um atrito a maiscom o governo militar. E a direção da TV se vol-tou contra mim e contra o Globo Repórter. O ci-neasta Paulo Gil Soares (1935-2000), diretor doprograma, diz sempre que esse fato marcou o fimde nossa fase no Globo Repórter, a fase dos cine-astas. A partir dali o programa passou a ser mui-to mais vigiado, quase inviável. E os filmes passa-ram a ser controlados diretamente pela direçãoda Globo. Com isso abriu-se a brecha definitivapara o já antigo assédio dos repórteres de TV aoprograma, assédio que em pouco tempo se tor-nou definitivo, com o afastamento dos cineastas.

Para mim, a proibição foi um desastre. Primeiroporque o trabalho era inovador, forte e teriauma altíssima audiência (comprovada na entra-da do programa, quando ainda ninguém sabiada proibição e da substituição do filme porcapítulos de novelas). Isso repetia, para mim, asérie amarga de proibições que passava pelofilme Restos, várias reportagens do Hora daNotícia e meu querido primeiro filme, o Liber-dade de Imprensa, também esse um filme ino-vador, cheio de propostas. O resultado é que eume sentia sempre proibido, extirpado doprocesso criativo do cinema brasileiro, namedida em que os filmes acabavam não existin-do. Com o Liberdade de Imprensa, por exem-

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plo, filme de 66, o Jean-Claude Bernadet dizlançar idéias que seriam exploradas na déca-da seguinte. Só que, com a apreensão no Con-gresso de Ibiúna, quase ninguém conhece ofilme.

Com o Wilsinho Galiléia dava-se o mesmo. Ofilme, proibido, deixava de existir e serviria deprato gratuito a quem dele quisesse se servir.

Encontrei os negativos do Wilsinho Galiléia, queficaram desaparecidos por vários anos, no chãode uma antiga sala do Globo Repórter. Eu haviarecebido convite da Cinemateca Francesa parauma programação no Museu Pompidou.Como Wilsinho Galiléia havia sido produzidopela Raiz, o Paulo Gil me repassou o material,que foi recuperado pela Cinemateca Brasileira(com apoio da Cinemateca Francesa e doPompidou), sendo, então, exibido no museufrancês.

Isto é: o filme existe, a Cinemateca tem cópia. Eacabou sendo “revelado” para o público e acrítica 24 anos depois, em retrospectiva do GloboRepórter, realizada no Festival É Tudo Verdade- 2002. O filme foi mais do que elogiado, sau-dado como um dos melhores documentários dahistória do cinema brasileiro. E agora circulamundo afora, como convidado especial. Só nes-

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se ano de 2003 já foi exibido em festivais da Itá-lia (Pésaro), Inglaterra (Sheffield) e RepúblicaTcheca. Isto, depois de permanecer proibido,desconhecido, por 24 anos. Resquício amargo daditadura.

É curioso verificar que o filme exibe uma metá-fora sobre sua própria proibição. Ele se iniciacom a câmera “caminhando” pela rua, em dire-ção à casa do verdadeiro Wilsinho. No som, umdiálogo crescentemente dramático, no qual umamulher chama por ele, agoniada.

De repente, o som de tiros de metralhadora,gritos. Corte. Vizinhos (reais) dão depoimentossobre o dia do assassinato. Apesar do pipocarinfernal das metralhadoras, os vizinhos dizemque não escutaram nada, não viram nada, nãosabem de nada.

O documentário mostra que o bandido exerceforte impressão no imaginário popular e aspessoas falam bem dele, como um rebelde ecomo uma pessoa que agrada os amigos, ascrianças, apesar de toda sua violência (coisa queirritou a Censura e também certas pessoas dadireção da Globo na época).

Pois bem, depois da cena de fuzilamento na casada namorada, eu filmei uma seqüência para o

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final do filme, em que Wilsinho, redivivo, apa-rece caminhando pelas ruas do bairro, com umrevólver na cintura. E sendo observado, com in-teresse, por garotos do bairro. Na seqüência,Wilsinho vai parar num terreno cheio de entu-lhos, onde deveria estar sua casa. Wilsinho secoloca no meio dos entulhos.

Eu faço girar a câmera, enquadrando um vizinhoque assiste à filmagem. Pergunto a ele o queaconteceu com a casa da família do Wilsinho. Ovizinho diz que os policiais haviam derrubadotudo, para que não sobrasse nada que lembrasseo bandido.

Era justamente o que pretendiam fazer,proibindo o filme: como se apagar vestígiospudesse servir para apagar os problemas dasociedade. Ou, quem sabe, ocultá-los.

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05. Do Cinema de Rua ao Greve!

O Cinema de Rua foi um movimento de docu-mentaristas, marcadamente militante e que de-senvolveu o trabalho que havíamos iniciado noHora da Notícia, de 72 a 74. O lado fundamen-tal desse trabalho é que ele procurava atenderà intensa procura desses pequenos filmestemáticos por parte de organizações dasociedade civil. Os filmes, sobre transporte,habitação, acidentes de trabalho, migração,periferia urbana, etc., eram usados para ajudarna própria organização - ou reorganização - desindicatos, clubes, associações, com discussões arespeito dos temas tratados.

O nome Cinema de Rua foi criado por SérgioDávila, meu ex-aluno na ECA-USP, em entrevistaque realizou comigo e publicou no CadernoNúmero 4 da Cinemateca Brasileira. Eu acabarade sair do Hora da Notícia, nas circunstânciaspesadas que já relatei. Era a primeira vez quefalava sobre nosso trabalho na TV Cultura. Efalava também da procura que havia de cópiasde meus pequenos filmes depois de transmitidosno programa.

Depois de sair do Hora da Notícia eu ainda fizdois filmes para o Cinema de Rua.

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Um deles é o Restos (1975), que já comentei. Ooutro, o engraçado Buraco da Comadre (1976),mostra um buraco de rua que a cada ano ficavamaior. O filme conta com a participação do gru-po de teatro Núcleo, do Celso Frateschi e daDenise del Vecchio e ironiza as infrutíferas erepetitivas tentativas de solucionar o problemaatravés dos políticos que prometiam tudodurante as eleições e depois esqueciam doburaco. E o buraco cada vez maior, ao pontode, como diz um morador dentro dele, “cabertoda a população do bairro”.

Como participantes do movimento, estavam ex-alunos meus da ECA e que agora trabalhavamcomigo na Globo: o Reinaldo Volpato, o WagnerCarvalho. O Wagner fez um curta (sempre em16mm, pois eram usados em projeçõespopulares, projetores 16 mm) sobre auto-construção. No filme Domingo em Construção,pessoas da periferia faziam suas próprias casas,apesar de não serem pedreiros. ReinaldoVolpato, em parceria com o Augusto Sevá, fezo sensível Pau pra Toda Obra, sobre operáriosde construção civil. Esse filme acabou ganhandoo Prêmio da Aliança Francesa (1975), mas foiproibido pela Censura.

O movimento repercutiu muito, pois os filmeseram usados pelo ativo movimento cineclubista,

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levando os filmes para as discussões populares.Criou-se também uma espécie de corrente rea-lista, militante, coisa que eu confesso, não meagradava. Nós ganhamos vários prêmios, inclu-sive um “Prêmio Especial” pelo conjunto de fil-mes e pelo movimento, na Jornada da Bahia,acho que em 77, mas já sob o bombardeio decríticas de cineastas que protestavam contra oalegado tom militante do movimento, even-tualmente uma certa imposição temática e detratamento realista.

Eu, nessa época, já estava em outra e, no fundo,queria o fim do movimento. Tanto que nessemesmo ano eu filmava o experimental CasoNorte, buscando ampliar minhas formasnarrativas, coisa, aliás, que eu vinha tentandodesde 1974. Eu posso dizer mesmo que quandoo movimento começou, como movimento, eu jáqueria sair fora dele. Eu achava que a TV, depoisde 75, começava a se abrir, os noticiários jáfalavam de coisas impensáveis pouco tempoatrás e que só eram transmitidas em nossoquerido Hora da Notícia, com audiência peque-na e praticamente só local (São Paulo). Eu achavaentão que era preciso ampliar as ambições e erao que eu tentava, de olho fixo no cinema.

De qualquer maneira, o projeto teve seu períodomarcante, atingiu muita gente, forneceu filmes

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para discussões que eram importantes naquelemomento de reorganização, sob a ditadura mi-litar. E acabou levando o movimento cineclubistaa mudar radicalmente o sentido de sua distri-buidora, a Dinafilmes, criada com a intençãopuramente organizacional, para conseguir filmespara o movimento. A partir do Cinema de Rua,a Dinafilmes se direcionou para o trabalho dedistribuição de filmes brasileiros, de forma mili-tante. Era impressionante a mobilização dessesjovens e impressionante a circulação dos filmespor todo o Brasil. Não havia cópia que chegas-se, felizmente os filmes eram em 16mm e pe-quenos, barateando as cópias.

Esse redirecionamento - e fortalecimento - daDinafilmes foi muito importante para ummovimento, mais aberto e mais ambicioso, defilmes mais longos, que aconteceria em seguida,a partir de 78, e que registraram a volta domovimento operário à vida política brasileira.Filmes como Braços Cruzados, Máquinas Paradasde Roberto Gerwitz e Sérgio Toledo, os meusGreve! e Trabalhadores: Presente!, o Greve deMarço, do Renato Tapajós, o Jari, do JorgeBodanzky, e outros. Em seu conjunto, esses fil-mes circularam muito, tiveram grande reper-cussão.

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Sobre os meus filmes desse “ciclo”, posso dizerque considero o Greve! um dos projetos maisbem sucedidos de minha carreira, mesmo quenão seja, como não é, o filme de que mais gos-to. O Liberdade de Imprensa é, nesse terreno dogosto pessoal, imbatível: primeiro filme, proibi-do, cheio de idéias...

O sucesso do Greve! escapa,no entanto, ao meu gostopessoal e a de certas pesso-as que torceram o nariz parao filme porque, segundoelas, ele se parecia com um“globo-repórter”. Ora, paracomeçar, que tal lembrarque o cineasta do Globo Re-pórter e do Greve! eram omesmo? E levar em contaque eu nunca desprezei oveículo TV, como fazia certa esquerda “radical”,para quem tudo o que era exibido na TV nãoprestava e também não prestava o que passassepela censura? Na verdade, o filme, feito precaria-mente e conscientemente de forma apressada,era sim a minha cara, a mesma que eu colocavapara bater na Globo. A verdade é que o Greve!foi realmente um sucesso e isso incomodou, poisalém de propor uma forma nova de produção,propunha também, uma visão independente do

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cineasta com relação aos movimentos popula-res, isto é, uma militância polemizadora, nãoescravizada. Aliás, é curioso que os críticos mi-neiros, no balanço de final do ano de 79, tenhamcolocado Greve! na lista dos dez melhores doano, ao lado dos longas estrangeiros e brasi-leiros.

Quando eclodiu o movimento grevista no ABC,eu já estava fora da Globo e já tinha feito oDoramundo, premiado em Gramado. Mas euvinha de muitos anos de experiência em TV, aprática de fazer filmes rápidos e de ver os fil-mes circularem logo em seguida, salvo os tro-peços tipo censura. Como eu já relatei, eu co-nhecia o Sindicato dos Metalúrgicos de SãoBernardo e o Lula, afinal fui o primeiro a seinteressar e filmar, para o Hora da Notícia, oque acontecia naquela paisagem de multi-nacionais.

Um dia me deu um estalo e eu resolvi quefilmaria o movimento. A motivação maior foi aescandalosa ausência das imagens da greve nosnoticiários de TV: a censura proibira essasimagens. Era uma coisa gravíssima, sob o pontode vista da opinião pública e as próprias TVssentiram na carne o peso dessa ausência: oscarros das TVs foram, várias vezes, apedrejadospelos grevistas.

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Guardo na memória, como algo bastante signi-ficativo, o fato de que os operários, pela primei-ra vez desde 1964, se deixavam filmar por nós,mostrando as caras. Logo de início eles já nosidentificavam e ajudavam, sugerindo assuntose personagens do movimento. Era um sinal daforça coletiva do movimento, uma auto confian-ça e também a consciência da necessidade dedivulgar aquelas imagens.

Depois de decidido, rapidamente armei umaequipe, com meu costumeiro diretor deprodução Wagner Carvalho, os câmeras AloysioRaulino e Adilson Ruiz e o técnico de som RomeuQuinto, com produção da Assunção, pela Raiz.Era uma belíssima equipe. Eu tinha em mente oprojeto completo, ou seja, filmar rapidamente,usando de minha experiência na TV; montar ofilme também o mais rápido que pudesse, paraque o filme pudesse circular pelo Brasil e pelomundo como a imagem do movimento epudesse mesmo ser visto pelos grevistas durantea greve. Foi o que fiz, acrescentando a isso minhaindependência de visão quanto ao movimento:eu achava a greve fundamental para o processode abertura mas via que não havia ali essaconsciência; eu achava fundamental a partici-pação da sociedade civil na luta pela abertura,mas havia ali uma nítida ojeriza às organizaçõesnão operárias, consideradas estranhas ao seu

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movimento. Eu considerava uma derrota a per-da do Sindicato, pela intervenção. E naquelemeio se pregava a desimportância do sindicatodiante do surgimento de lideranças como o Lula.Essa minha visão independente gerou o que achofundamental no filme, ou seja a seqüência da“assembléia de sábado” no paço Municipal deSão Bernardo. O Sindicato estava sob inter-venção, Lula estava sumido. Eu entrevistei ope-rários reunidos numa esquina, perguntei a elescomo estava o movimento e se a intervençãono Sindicato não teria sido uma derrota. O“não” coletivo vinha carregado de convicção.“O sindicato não importa, o que importa é nósestarmos unidos” ou “O Lula não é um só, cadaum de nós é o Lula” ou “O Sindicato somosnós”.

Os operários me desafiaram: a força delespoderia ser vista no dia seguinte, na famosa “as-sembléia de sábado”. Eu fui filmar a “assembléiade sábado”. Tinha chovido à noite, o chão estavamolhado e a praça um pouco vazia, longe dasmaciças presenças de antes. No palanque, algunslíderes, mas não o Lula. Alguém lia um manifestodas entidades civis que apoiavam o movimento,leitura a que ninguém prestava a mínimaatenção. Como eu dava importância para o fato,registrei tudo e usei na montagem.

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Mas o mais incrível estava por acontecer. Haviamuita discussão no meio da assembléia que, as-sim, não parecia uma só, mas muitas, denotan-do uma divisão que em vão alguns dos líderesdo palanque tentava superar.Eu fui orientando o Aluizio para filmar isso,mostrar os grupos separados. Um operáriopercebeu e começou a discursar, dizendo queeles estavam unidos. E um outro, cearense,extremamente tenso, incomodado com meuregistro de um momento de fragilidade domovimento, começou a implorar que todos seunissem. Diante da câmera ele diz: “gente, nósprecisamos ganhar essa greve, se nós perdermosessa greve nós vamos de novo ser espezinhadospelo patrão”. Era impressionante.

E era também uma comprovação de minhasdesconfianças políticas. Tanto que na monta-gem, a locução (jornalista Augusto Nunes) cortaa fala ufanista dos operários na esquina e diz:“Mas, na assembléia do dia seguinte....”.

Essa interferência, claro, me valeu umainfinidade de pichações, principalmente pelosgrupos mais radicais que se aproximavam domovimento no ABC. Mas eu fiz o que minhaformação política e meu feeling de cineastapediam, mantendo minha independência edialogando com o movimento, sem ter que me

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submeter a ele. Essa seqüência foi fundamentalna concepção de O Homem que Virou Suco, ouseja, a questão da identidade, da condição desubcidadania daquela gente que, de repente, vêa possibilidade de ascensão, até mesmo com seuslíderes ocupando as primeiras páginas de jornaise revistas. O medo daquele operário, na famosa“assembléia de sábado”, era justamente o medode perder essa possibilidade e voltar à condiçãode subcidadania a que todos eles estiveram sub-metidos por tanto tempo, sob a a ditadura mili-tar e sua política de arrocho salarial.Depois de três dias de filmagem eu resolvi parar.Era preciso correr, editar o filme. O montador,mais uma vez, foi o Reinaldo Volpato, rápido ebom.

Apesar de eu já ter superado a necessidade denarração em off, em parte com o Guitarra contraViola e radicalmente com o Caso Norte e Wil-sinho Galiléia, eu resolvi usar uma narração. Como pouco tempo de que a gente dispunha, euprecisava disso, até mesmo para colocar no filmeinformações que não pudera captar nasfilmagens porque eram assuntos não discutidoslá: a posse do General Figueiredo e sua promessade abertura, por exemplo (cena de abertura dofilme, cedida pelos cineastas Luiz Alberto Pereirae Augusto Sevá, que haviam filmado, num bar,o discurso do General, transmitido pela TV). O

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resultado é que a cópia saiu a tempo de os pró-prios grevistas assistirem ao filme durante omovimento. Os próprios líderes assistiram ofilme numa igreja.

Greve! circulou, rapidamente, por todo canto,inclusive outros estados, como o Rio, Rio Grandedo Sul, Minas, Goiás, Brasília, exibido em sindi-catos, igrejas, sedes do MDB, OABs, sociedadesamigos de bairro, isto é, justamente nas organi-zações da sociedade civil que apoiavam omovimento como parte da luta pelo fim daditadura militar. Greve! foi também lançadopublicamente, cobrando ingressos como numcinema, no salão do Sindicato dos Jornalistas deSão Paulo. A sala estava sempre cheia e, muitasvezes, cheguei a ver uma fila de espera queatravessava o corredor, descia as escadas eseguia pelo saguão até a Rua Rego Freitas, ondeficava o Sindicato. A distribuidora era justa-mente a Dinafilmes, do movimento cineclubista,que assim inaugurava um modelo novo, tipocinema, de distribuição, criando circuitos quedepois serviriam para vários filmes comtemáticas semelhantes.

Em pouco tempo já haviamos perdido a contado número de cópias tiradas. Muitas das cópias,aliás, foram apreendidas, pois o filme não tinhae nem conseguiria liberação oficial, fato que me

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valeu um processo que acabou sendo arquivadocomo fruto da abertura política. Greve! , aindaem 79, recebeu o prêmio especial do Júri no IFestival do Cinema Latino Americano, em Hava-na.Eu assisti a algumas projeções populares do fil-me. A mais impressionante, ainda durante omovimento grevista, foi em Osasco, no salão doSindicato de Metalúrgicos. O salão estava lotadoe, como sempre, o clima era tenso. Mas assimque o filme terminou, o clima explodiu numverdadeiro transe, com pessoas discursando,muitas falando ao mesmo tempo. Um dos líderespegou o microfone e, apontando para a telabranca, revivia o que haviam visto, as imagensdeles mesmos: “vocês viram aí...”. Eu me emo-cionei, vendo que, talvez pela primeira vez,aqueles operários identificavam a tela de cinemacom eles e com suas lutas.

O outro filme, Trabalhadores: Presente! (1979)fotografado também pelo Aloysio Raulino, émais elaborado em termos de imagens e menosem termos de idéias. Eu quis retratar asdificuldades dos movimentos populares noprocesso de abertura, sem lideranças e semexperiência, depois de tantos anos de ditadura.A greve dos motoristas, base do filme, é umaverdadeira loucura, selvagem, incontrolável. Sobo ponto de vista de imagens, uma maravilha

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captada pelo olhar do Raulino. Ali está o Eduar-do Suplicy, sempre presente, tentando ajudar oesforço de organização dos operários nessemomento ainda de luta pela redemocratização.

E há o momento marcante, nas primeiras come-morações livres, pós 64, do primeiro de maio, oanúncio da morte do policial Sérgio ParanhosFleury, o maior responsável pelas prisões e tor-turas em São Paulo. Fleury havia morrido numestranho acidente na Ilhabela, justamente noprimeiro de maio, caindo de um barco. O povoreagiu com imensa alegria. Em Brasília/79, essefilme me deu o prêmio de melhor diretor. Foibom.

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Com atores e técnicos da Boca do Lixo, entre eles SérgioHingst (à esq.) e Tony de Souza (à dir.)

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IV- De Volta aos Longa-metragens

01. A APACI

A vontade de voltar aos longa-metragens nãoera só minha, na metade dos anos 70. Emborano Rio o cinema estivesse em plena eferves-cência, com a Embrafilme, o cinema paulistapermanecia estagnado e não havia chances forado cinema da “Boca”, difícil para qualqueriniciativa autoral, embora alguns cineastas,como o Reichenbach, o José Mojica Marins, oCandeias, seguissem filmando seus filmesautorais dentro dessa escassa possibilidade.

Mas em São Paulo, em boa parte por causa daECA, a escola de comunicações da USP, crescia abusca de uma alternativa fora da “Boca”. Afinal,a ECA havia promovido um verdadeiro encontrode gerações, entre professores e alunos. Aliestavam o Roberto Santos, o Capovilla, o PauloEmílio, o Rudá de Andrade, o Jean-ClaudeBernardet e eu mesmo, como professores, desdeo final dos anos 70. Acontecia então que váriosalunos trabalhavam com os professores, comoassistentes e até mesmo em funções especia-lizadas, como câmera, fotografia, montagem.O preparo dos alunos, aliado às suas pretensõesde jovens universitários, tornava difícil sua absor-ção pelo cinema comercial da “Boca”.

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Meu perfil mesmo, como o do Capovilla e doRoberto, não se enquadravam mais no cinemada “Boca”.

Nós então começamos um movimento em SãoPaulo, tentando chamar a atenção da Embrafil-me para nosso cinema. Foi, na verdade, o iníciode uma verdadeira guerra Rio x São Paulo, guer-ra que depois, usufruída pela mídia, marcou umacompetição cinematográfica por muitos anos,em festivais e qualquer encontro entre nós.

Nossa visão era justa: a Embrafilme era umaempresa nacional e portanto devia investir emtodo o país e não só no Rio. A gente mal sabia oque era a Embrafilme, o que nos tornavaabsolutamente acríticos com relação a essa em-presa e ao modelo de cinema correspondente.O que nos importava era o acesso aos recursosque possibilitariam a volta da produção em SãoPaulo.

Entre nós estava o paraense Denoy de Oliveira,diretor do ótimo Amante Muito Louca e que che-gava do Rio, tentando novas oportunidades.Denoy e eu logo afinamos o discurso, vindos damesma formação política, o PCB. Era impres-sionante como atuávamos juntos, como pensá-vamos parecido. E nossa visão era a de que emSão Paulo a gente devia tentar um movimento

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bem aberto, amplo, que tentasse resgatar o ci-nema que já se fazia, na “Boca” e que pudesseabrir caminho para um cinema mais autoral,uma vez que cineastas já iniciados, como oCapovilla, o Roberto Santos, o Person, o Can-deias e, dos mais novos, eu mesmo, o Reichen-bach, o Ramalho, o Sganzerla, todos padecía-mos da imensa dificuldade de armar um proje-to, pois não tínhamos acesso aos financiamen-tos da Embrafilme.

Nessa época, 1974, surgiu, no Rio, a propostade se criar uma entidade nacional de cineastas.Mais uma vez a iniciativa estava no Rio. Eu fuiconvidado para uma reunião onde estavam oCacá, o Leon Hirzman, o Joaquim Pedro, nãome lembro quem mais. A proposta já estavaestruturada, a entidade se chamaria Abraci-Associação Brasileira de Cineastas. Haveria umaassembléia de criação, no Rio. Alguns cineastasde São Paulo estavam convidados: o Roberto, oCapovilla, eu, o Ramalho, o Person e o Denoy.Não me lembro de outros nomes.

Eu sugeri que, em vez de convidar alguns nomes,a gente fizesse uma assembléia também em SãoPaulo e criaríamos uma sessão paulista da Abraci(como aconteceu, depois, com a ABD: secçõesregionais e uma coordenação nacional).

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A proposta foi recusada, o argumento era queuma assembléia assim, aberta, poderia signifi-car o arrombamento da entidade pelo cinemacomercial da “Boca”.

Eu achava que não, e que em São Paulo a gentevia a coisa diferente, havia uma tentativa deunificação, de entrosamento entre o cinemachamado “comercial”, pejorativamente chama-do de “pornochanchada” e o cinema de autor.Não houve jeito.

O Cinema Novo, enquanto movimento, se crioue se desenvolveu no Rio, incorporando algunscineastas de outros lugares. No Rio, esses cine-astas tiveram que travar uma intensa batalhaideológica e política contra os setores maistradicionais do cinema e essa trajetória agorase refletia na proposta da Abraci.

Eu levei o problema de volta a São Paulo e areação foi imediata. A decisão foi fazer, de qual-quer maneira, a assembléia paulista. É claro quea questão era mais complexa, envolvia uma dis-puta tradicional com o Rio e o medo de que aAbraci ainda aprofundasse mais o isolamentojá crônico dos cineastas paulistas. Na verdade oque todo mundo queria era uma entidadeprópria para obrigar a Embrafilme a olhar paraSão Paulo. E foi o que aconteceu.

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Nós formulamos a proposta de criação da Apaci- Associação Paulista de Cineastas. A entidadenasceu em assembléia-monstro que lotou oTeatro São Pedro. Contrariando a tendênciacarioca, resolvemos colocar na presidência daentidade um realizador da “Boca”, o EgidioEccio, mantendo um controle “autoral” nadiretoria, na qual estávamos Denoy, Capovilla,eu e a estudante de cinema, minha aluna, Suza-na Amaral.

Com isso nós procurávamos levar adiante nossavisão de que o cinema como um todo deveriaser defendido. Afinal, eu mesmo havia realizadofilmes ali, no início de carreira. E cineastas comoo Reichenbach, o Candeias, o Mojica, o Sgan-zerla, filmavam com produção da “Boca”.

Num bar da Boca com Aloysio Raulino, Carlos Reichenbach,Bernard Vorobov e Luna Alkalay

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E além deles a gente via diretores como o JohnDoo, o Jean Garret, o Fauzi Mansur, o AstolfoAraújo, por exemplo, tentando melhorar seusfilmes e sempre presos às absurdas exigênciasde exibidores, exigências tipo “uma trepada porrolo”.

Mas já na assembléia de criação da Apacicomeçou a surgir uma nova questão. Alguns dospresentes eram estudantes ou já ex-estudantesda ECA, a escola de comunicações da USP,evidentemente alunos ou ex-alunos meus, doCapovilla, do Rudá, do Paulo Emílio, da MariaRita, do Jean-Claude, do Roberto Santos.

Esses “novos” já trabalhavam em nossas equipese, tendo uma formação universitária, se encami-nhavam mais para um cinema do tipo autoral.Isso significava que a batalha por um novocinema em São Paulo devia também incorporara Vila Madalena, bairro preferido dessa moçada.

Isso, de um lado, complicou bastante, pois a Vilae a “Boca” não se acertavam e acabavam repe-tindo, em São Paulo, o conflito entre CinemaNovo e “Boca”, no Rio.

Por outro lado, isso acabou esquentando a Apacique, assim que criada, começou a batalha pelaconquista da Embrafilme.

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A polêmica ganhou os jornais, com absurdos delado a lado. Alguém, no Rio, afirmou - em umarevista de grande circulação - que “São Pauloera o túmulo do cinema”, eventualmente aindase referindo à Vera Cruz, vista como o demôniodo falido cinema “industrial”. É claro que essetipo de coisa foi superado. Superou-se, também,a mesquinha visão de que nós estávamos tirandodinheiro do Rio. A Embrafilme era nacional enós chegamos mesmo a pedir que o próprioGoverno de São Paulo se manifestasse nessesentido, o que foi feito.Nós, afinal, conseguimos o apoio da Embrafilmepara os projetos paulistas.

E procuramos criar mecanismo estadual de in-centivo. Naquele ano mesmo, entregamos aogoverno do Estado projeto de “Pólo de Cinema”que deveria somar aportes da Embrafilme e dopróprio Governo de São Paulo.

O Roberto Farias acabou aceitando e o Pólo foiimplementado. Um outro dado novo desseprocesso é que os projetos eram analisados emSão Paulo, por uma comissão com participaçãotríplice, ou seja, representantes da Embrafilme,do Governo de São Paulo e da Apaci.

O primeiro concurso foi feito em 1978 e, entreos projetos premiados estava O Homem que Vi-

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rou Suco. Eu, na verdade, não queria concor-rer,achando que estava muito comprometido como projeto do Pólo. Mas, por incrível que pareça,havia poucos projetos e o Alain, meu assistenteem Doramundo, insistiu para que eu apresen-tasse um projeto com medo de que houvessepoucos concorrentes. Foi bom!

Depois desse concurso ainda foi aberto outro,com filmes mais ligados ao pessoal novo, da VilaMadalena.

O fato é que a Apaci ia aos poucos sendo em-purrada para a Vila Madalena pela natural garrados jovens cineastas e a crescente dificuldadedo cinema da “Boca” para os quais a gente nãoconseguia formular uma política que dessecerto. E a pornografia (em 1982 estréia CoisasEróticas, primeiro filme de sexo explícito brasi-leiro), alimentada ainda mais no processo deabertura política, com o esmorecimento dacensura diante da invasão do estoque interna-cional desse tipo de cinema, ia a cada dia maisdeteriorando o cinema comercial brasileiro. Ainvasão aberta desse estoque pornográficoparecia, aliás, fruto de um complô pelo esmo-recimento cultural: a overdose de libertinagemnuma sociedade sem defesa, enfraquecida portantos anos de ditadura.

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O lado mais positivo da Apaci foi, ao meu ver, ode ter aberto a discussão a respeito da descen-tralização da produção, da valorização regional.Em termos paulistas, foi o de ajudar a viabilizaruma verdadeira renovação do cinema, com ci-neastas novos que marcaram o cinema brasilei-ro do final dos anos setenta até o final dos anosoitenta. Marcaram com filmes, vencendo osprincipais festivais nacionais desse período, prê-mios em festivais internacionais e também in-fluenciando a política nacional do cinema comgente nova, novas idéias e novas exigências -apesar de a influência paulista na política do ci-nema brasileiro ser, ainda hoje, mínima. O ladonegativo foi a exacerbação dessa disputa Rio xSão Paulo.

Eu até hoje me questiono, se errei no relacio-namento com meus amigos do Rio e se nãoajudei a acirrar esse conflito idiota. Eu mesmovivia num conflito paralelo, evidentemente maisligado, como cineasta, ao Cinema Novo, mas semconseguir aceitar suas idéias sobre uma políticapara o cinema brasileiro e, em particular, ocinema paulista. E durante uma década e meiade militância na Apaci, seja na presidência, portrês vezes, seja como um dos mais atuantesdiretores, - por quase quinze anos eu cultiveiesse conflito pessoal, tentando manter vivasminhas relações com pessoas como Joaquim

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Pedro, Leon, Zelito, com quem conversava sem-pre, inclusive viajando para o Rio, tentando cos-turar a visão que eu, certo ou errado, julgavamais nacional. Era difícil.

Nossa dependência ao dinheiro da Embrafilmeazedava tudo, qualquer discussão acabava numadisputa sem fim pelo dinheiro que pudesseviabilizar nossos projetos. O resto ficava paradepois.

Esse, aliás, é nosso velho dilema, o de um cinemaprotegido pela metade, justamente a metadeque mais nos corrompe, deixando o mercadolivre para a sufocante eficiência comercial daindustria cinematográfica norte-americana. E éo que continua a acontecer, agora, como emtodos os séculos, amém.

As relações com o cinema carioca se com-plicavam também pelo surgimento de novaslideranças, vindas de fora do núcleo do CinemaNovo e que buscavam abrir brechas para suaparticipação na política do cinema e... nas verbasde nossa Embrafilme. O cinema brasileiro, claro,era mais amplo do que o Cinema Novo, emborao Cinema Novo fosse a maior referência cultural.Eu procurava manter relações com todos osgrupos e isso nitidamente desagradava a uns eoutros, que preferiam, sempre, que nós, de São

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Paulo, estivéssemos ou com uns ou com outros.Era difícil. Até mesmo porque também entre osnovos, apesar dos conflitos desses com o CinemaNovo, nós representávamos um perigo, ou seja,a distribuição nacional dos recursos da Embra-filme e, em conseqüência, a redução dos inves-timentos no Rio. Era realmente difícil.

Entre os novos, fora do núcleo do Cinema Novo,estavam pessoas com quem era possível con-versar, como Marcos Altberg, Oswaldo Caldeira,o Sérgio Rezende, a Mariza Leão, o Paulo Thia-go, que tiveram participação expressiva, princi-palmente a partir dos anos 80 quando a própriaAbraci (Associação Brasileira de Cineastas,entidade carioca, apesar do nome) passou a serdirigida por gente fora do Cinema Novo, comoo próprio Marco, o Caldeira e o Neville d’Almei-da. O Paulo Thiago atuava mais como produtor,que parecia ser sua vocação, antes de assumirinteiramente seu lado realizador, deixando paraa Gláucia a gerência da produtora. Paulo Thiagoe Barreto brigavam muito, mas estavam semprejuntos, como uma dobradinha difícil deentender. O Barreto a gente conhece, sabe, é onosso trator, concordando ou não com ele é eleque tem conduzido a política cinematográficabrasileira nesses anos todos. O Paulo Thiago éum cineasta que foi ganhando em lucidez, é umtipo brigador e custou a conquistar um espaço

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próprio, já que para isso ele também precisouabrir picada com facão em punho, contra ospreconceitos e contra a centralização excessivado poder do cinema brasileiro nas mãos depoucos: bons cineastas, bons produtores,prestigiados, mas poucos. E difíceis.

Durante muitos anos eu mantive a maioriadesses contatos nacionais e depois, de volta aSão Paulo, narrava tudo nas boas e acirradasassembléias da Apaci: as conversas, as brigas, asdivergências.Era sempre um papo esclarecedor e eu sempretinha muita coisa para contar. Era o making-ofde nossa política cinematográfica.

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02. Doramundo: prêmios e problemas

Com Doramundo, filmado em 1977, eu retorneidefinitivamente ao cinema de longa-metragem,mesmo sem ainda abandonar a TV e os filmes16 mm para o mercado alternativo até o iníciodos anos 80. Pois era o que eu mais queria. AEmbrafilme financiou Doramundo. Eu havia lidoo livro, do escritor paulista Geraldo Ferraz, noavião, voltando de Salvador, da Jornada doCurta-Metragem de 1975. Comprei o livro noaeroporto, li durante a viagem e no dia seguinteprocurei o autor, através do amigo Rudá deAndrade.

Em Doramundo, com Irene Ravache e Antonio Fagundes

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É que o Geraldo Ferraz foi casado com PatríciaGalvão, a Pagú, ex-mulher de Oswald deAndrade e mãe do Rudá. Como já relatei, oroteiro inicial foi feito pelo Vlado, trabalho queele teve que interromper para voltar à TV Cul-tura, agora como Diretor do Hora da Notícia.Sem o Vlado, acabei trabalhando com o AlainFresnot, ex-aluno da ECA, e com o ator PauloJosé, até a versão final.

Em 77 eu já estava filmando, na cidadezinhaferroviária de Paranapiacaba, de onde partia otrenzinho, que descia a serra para o litoral(Santos), preso a um cabo de aço. A história falade sucessivas mortes de ferroviários, com osassassinos protegidos pela neblina que pareceplantada ali. O Geraldo Ferraz teria ido lá naépoca dos crimes, para uma reportagem. Impres-sionado com o clima local e com as histórias,guardou a reportagem e acabou, muitos anosdepois, escrevendo o belo romance que éDoramundo.

Em 78 o filme já estava em Gramado, compe-tindo com filmes pesados e bons, como LúcioFlávio, do Babenco, e Barra Pesada, do Reginal-do Farias. Polêmica à parte, aliás parte inevitávelde Gramado, Doramundo acabou ganhando osprêmios de melhor filme, melhor diretor, melhorcenografia.

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Na hora da entrega dos prêmios, o governadordo Estado (Sinval Guazelli) estava no palco e veiome cumprimentar. Ele era governador biônico eeu cometi a infantilidade de não aceitar seu cum-primento, deixando-o de mão estendida en-quanto eu ia para o microfone dedicar os prê-mios à memória do Vlado. Era importante, na-quele momento, falar do Vlado e eu consegui,graças à repercussão dos prêmios. Nas entre-vistas eu repetia a inconformidade com os lau-

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dos oficiais da morte de meu amigo, laudos queinsistiam em falar de suicídio.

Mas o filme ficou marcado, vitimado por umasérie de problemas. Logo em seguida a Grama-do, havia uma programação especial emCuritiba. Misteriosamente a sessão foi can-celada. O cinema ficou fechado e ninguémconseguia explicar o cancelamento, gerandouma manifestação de protesto de cineastas ecinéfilos.

O filme foi, depois, convidado para o Festivalde Paris, justamente em sua primeira sessão, aconvite do diretor do festival, Jean Pierre Delau,o mesmo responsável pela Quinzena dos Reali-zadores, em Cannes. Doramundo abriria ofestival e eu estava lá, com a Assunção. E nadada cópia chegar.

Delau nos pressionava e nós acabamos desco-brindo. O representante da Embrafilme naFrança era um tal Kimon, pessoa ligada ao SNI eque sumiu com a cópia.

O dia da estréia ia chegando e nada fazia o talKimon entregar a cópia que, soubemos depois,ele mandara para a Espanha, sem razão alguma,sem ordem de ninguém. Eu ligava para ele,protestanto e ele ainda me ameaçava com frases

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do tipo “veja lá o que você anda falando doBrasil aqui fora” ameaça muito comum durantea ditadura, a vigilância sobre nossas denúnciasde torturas, censuras, perseguições políticas noBrasil.

O problema repercutia na França e no Brasil.Na França, gerando protestos de grupos deesquerda. No Brasil, alimentando páginas e pági-nas de jornais. Jornais como o JB, e O Estado deSão Paulo, me pediam para ligar diariamente, acobrar, dando notícias até o desfecho doepisódio.

Alain Fresnot, Assunção Hernandes, Heron Rodrigues eVinícius e Fernando Andrade nas filmagens de Doramundo

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Meu diálogo com os repórteres era difícil. Eusentia que havia ali um duplo interesse, um pelofato em si e outro pelo uso do fato numa cam-panha contra a Embrafilme, transformada emculpada pelo absurdo do desaparecimento dofilme, já que o tal Kimon era o representante naFrança. As próprias perguntas tentavam induziralgum ataque meu contra a Embrafilme. Atémesmo com o Cacá me intrigaram. Uma dasmatérias, acho que do JB, coloca em minha bocaa frase “se fosse um filme como Xica da Silvanão aconteceria esse tipo de coisa”. Ora eu eCacá nunca fomos realmente amigos mas eu orespeito como cineasta e sempre defendi o Xicada Silva. Gosto do filme e cheguei a me recusara escrever contra ele por um jornal “nanico” daépoca. Achei absurda a proposta, que era frutode uma implicância com o Cacá por causa desua denúncia de “patrulhas ideológicas”, grupose pessoas que faziam “julgamento político” dosfilmes. Mas a frase saiu no JB, feriu o Cacá, aze-dando nossas relações.

Eu só fui ler a intriga jornalística muito tempodepois, já que na época eu estava lá, em Paris. Esei como essas coisas magoam.

O desfecho, previsível e triste do caso Dora-mundo em Paris, é que o filme realmente nãofoi exibido no Festival. No dia da sessão, justa-

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mente a abertura do festival, Mr. Delau me le-vou ao palco e, diante da sala cheia, anunciouque não haveria sessão e pediu que eu explicasseas razões para o público, razões, aliás, sobeja-mente conhecidas por lá. O cinema quase veioabaixo, tamanha a vaia. E esse episódio final ain-da me serviu de veneno, em minha volta ao Bra-sil. Logo em minha chegada, a imprensa, conti-nuando o assunto, questionava porque o filmenão havia ainda sido lançado no Brasil. Com issoeu consegui marcar o filme.

No dia do lançamento, a surpresa: a crítica de OEstado de São Paulo, em seu corpo, elogiava ofilme, mas vinha com uma manchete de umacrueldade assustadora.

Armando Bógus e Rolando Boldrin em Doramundo

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O texto, ocupando toda a página, era:“Doramundo: premiado no Brasil, vaiado emParis”. Era terrível. Já não bastava o que eu ti-nha passado em Paris, vitimado pela violênciado boicote claramente político.

E a manchete jogava, contra o filme, as vaias,que eram, evidentemente, contra o boicote. Atémesmo porque aquele público não havia vistoo filme!

E isso justamente n’O Estadão, que havia feitouma imensa cobertura do fato, com uma claravisão do boicote. Coisas de nossa complicadarelação com a mídia. Também são nossas coisas,coisas nossas.

O problema de Doramundo na Europa ainda seestendeu, mais uma vez evidenciando a per-seguição política ao filme. Belgrado, capital daentão Iugoslávia, sediava festival com títulosselecionados pela crítica e o badalativo nomede “Os melhores filmes do mundo”. E Doramun-do (que afinal passou, já fora de competição,num dos últimos dias do Festival de Paris), aca-bou sendo selecionado. Eu remeti cópia doconvite para a Embrafilme mas, parece incrível,o representante na Europa se recusava a enviaro filme para Belgrado! Eu tive que armar o maiorcirco para que, finalmente, o filme chegasse ao

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Festival. Como se não bastasse, eu ainda tive,aqui no Brasil, o desgosto de abrir a Folha de S.Paulo e ler reportagem com o autor do livro,Geraldo Ferraz, em que ele, apesar de elogiar,reconhecer as qualidades do filme, recusava avê-lo como uma adaptação de seu romance. Arenúncia de Geraldo Ferraz era elegante edeixava claro que sua decisão era puramenteautoral e não representava nenhuma crítica enem qualquer obstáculo à trajetória pública dofilme.

Irene Ravache em Doramundo

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Eu, na verdade, reagi com tranqüilidade, respon-dendo a ele, pela própria “Folha”, que eu consi-derava isso um direito dele e que as adaptaçõesfatalmente alteram muito a própria históriapara que não resultem em “livros ou peçasfilmadas”, chatas e inviáveis. Até mesmo porquese tratava de adaptação realizada por cineastade feitio autoral.

Isso acabou me fazendo participar de inúmerosdebates sobre a questão das adaptações detextos literários. Numa discussão em Brasília,acho que num congresso de escritores, conver-samos sobre isso numa roda em que estavam oJorge Amado, campeão das adaptações, eBernardo Élis, justamente de quem eu pretendiaadaptar O Tronco. Jorge Amado disse que meapoiava e que sabia muito bem o quanto asadaptações mexem com as histórias originais eque tinha que ser assim mesmo: o filme não deveser escravo do livro, deve sim buscar seu própriocaminho, a partir do livro. Felizmente BernardoÉlis concordava com Jorge Amado.

De qualquer maneira, Doramundo, filme peloqual mantenho paixão muito grande, marcoumeu retorno ao cinema como um cineastapremiado e com um ótimo espaço na mídia. Issopossibilitou a retomada definitiva de minhacarreira e, em dez anos, pude realizar seis filmes

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de longa-metragem, incluídos aqui o próprioDoramundo e o Wilsinho Galiléia, feito para TV.

Curiosidade

Antes de Doramundo eu havia feito um média-metragem de ficção, o Alice (1977), como partede projeto de minissérie, financiado pela Embra-filme. Me parece que eram onze projetos quenunca emplacaram, pois a Globo, antes quetentássemos qualquer imposição através dogoverno, criou suas próprias séries: Malu Mulher,Plantão de Polícia e Carga Pesada.

João Batista dirigindo Doramundo

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Há uma curiosidade em Alice: na verdade é oprimeiro filme do Fernando Ramos da Silva(1968-1987), depois conhecido por Pixote, a Leido Mais Fraco (Hector Babenco/1980), apesar dasversões correntes até mesmo no filme QuemMatou Pixote? (1996), de José Jofilly. Essas ver-sões variam entre o Fernandinho ter sido achadona rua ou numa favela do Aeroporto onde, defato, morava. Mas ele já era ator, já havia feitomeu filme e eu já o conhecera como ator, napeça O Último Carro, de João das Neves. Ali,Fernandinho fazia o vendedor de balascirculando pelos vagões enlouquecidos, gritandoseu delicado “Embaré, olha o Embaré!”, pre-sença que me emocionou quando fui vê-lo.

Rolando Boldrin em Doramundo

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Dirigindo Antonio Fagundes

Irene Ravache e Antonio Fagundes em Doramundo

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com Denoy de Oliveira nas filmagens de O Homem QueVirou Suco

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03. O Homem Que Virou Suco

Como acontece muito em minha carreira, umaespécie de alternância, os dois filmes seguintes,um para TV, o Wilsinho Galiléia e outro já sob opatrocínio do Pólo de São Paulo, O Homem queVirou Suco quebram a estrutura um tanto acadê-mica de Doramundo, buscando linguagem maislivre, narrativa mais aberta, apesar do controlesobre o que eu estava narrando. Depois de OHomem que Virou Suco, acabei voltando a umaestrutura mais clássica, em A Próxima Vítima. Eassim por diante, não por qualquer capricho,mas, quem sabe, numa espécie de compensação,de equilíbrio pessoal.

A busca de um cinema mais livre, câmera namão, como se vê em O Homem..., tem muito aver, de novo, com minha passagem pela TV etambém com minha própria origem, anterior àexperiência de TV, com o Liberdade de Im-prensa.

O Homem que Virou Suco foi concebido, pri-meiro como um cordel, que escrevi por volta de1974. O cordel contava a história de um nordes-tino perseguido por três demônios na metrópolepaulistana. O personagem, Deraldo, em vãotenta lutar com eles, mas acaba vencido, jogadonuma rede e retorcido:

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O final dessa históriaÉ pra se ouvir e contarDeraldo foi jogadoNuma rede e retorcidoSeu sangue foi recolhidoE em garrafas de vidro finoVirou suco de nordestino.

A história era boa, mas eu não tinha coragemde publicar, afinal eu não era nem nordestino,nem cordelista. Mas quando resolvi preparar umprojeto para o concurso do Pólo Paulista, melembrei da história e acabei escrevendo o roteiroem menos de uma semana. Isso não era um feitoextraordinário, afinal eu havia escrito o roteirode meu episódio no Em Cada Coração um Punhalem um dia. E o do Gamal, em dois. Eu tinha des-sas loucuras, coisa aliás, que ainda me persegue,tanto para cinema como para literatura. Meuromance Um Olé em Deus (Editora Scipione/95),por exemplo, foi escrito em dez dias.

O projeto de O Homem Que Virou Suco foi apro-vado em 1978, mas só fui filmar mesmo em 79,depois de ter realizado o Greve!

Essa defasagem foi fundamental para o filme.No roteiro inicial, o personagem do poeta, queera, na verdade, violeiro, era perseguido, pas-sava o tempo procurando escapar da polícia por

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ser confundido com um outro nordestino, o as-sassino do patrão. Tudo isso acontece no filme,mas há como que uma reviravolta no sentidoda história. Se no roteiro o poeta acabava es-premido numa rede, no filme sua história se tor-na uma espécie de redenção. Eu explico: em vezde um personagem vítima, fugitivo, desses comos quais a gente se identifica por denunciar, naderrota, a opressão do sistema - eu acabei fa-zendo um personagem que convive agres-sivamente com o espectro de sua derrota, semaceitá-la. O personagem assim parece levadopela força da luta democrática do momento, aluta pela anistia (que se deu no mesmo ano da

José Dumont, O Homem Que Virou Suco

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filmagem), pelos direitos civis, pela liberdade.Isso torna o personagem valente, brigador,anárquico, do tipo que não abre mão de suaidentidade e por ela vai lutar até o fim, conse-guindo mesmo se libertar da condenação a queestava sujeito pelo fato de ser nordestino emSão Paulo.

É engraçado que essa luta nada tem a ver comminha própria visão de luta social: o personagemde Deraldo é deliciosamente anárquico, indivi-dualista, irônico, demolidor. Mas sua luta écarregada de significado político/social: a lutados excluídos, dos sub-cidadãos em busca dacidadania e de sua identidade cultural.

Essa originalidade exagerada do personagemsalva-o, a meu ver, do esquematismo e do “poli-ticamente correto”, tornando-o forte enquantopersonagem e não enquanto tese.

Nessa mudança, feita sem que eu mesmo per-cebesse, é evidente a influência das filmagensdo Greve! e, nesse filme, a passagem da“assembléia de sábado”, onde era nítida aaspiração de cidadania naqueles obscurosoperários.

Há um momento do filme que é chave, para mime, eu sempre reparei, também para o público.

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Um momento de afirmação, conflito e identifi-cação. É quando, no bairro de periferia, há umabatida policial e o poeta Deraldo é detido. Eis odiálogo, reproduzido aqui de memória:

Policial: Você está preso!Deraldo: Eu? Preso por que?Policial: Porque é o assassino que matou opróprio patrãoDeraldo: Eu não matei ninguém!Policial: Como não matou, matou sim.Deraldo: E como é o nome do assassino?Policial: Severino. Severino José da Silva.Deraldo sorri, irônico e feliz.Deraldo: Pois é. E meu nome é Deraldo José daSilva.O Policial reage sem pestanejar, agarrando-o.Policial: É tudo igual, é tudo Silva...

Isto é, o policial negava ao poeta justamentesua identidade própria, massificando-o numaarbitrária sub-população que ele chama de “osSilva”, tirando do poeta suas qualidade própriasenquanto indivíduo, enquanto cultura.

É contra essa condenação que o poeta irá lutaraté o fim. Como diz o Jean-Claude, lutar apren-dendo a usar os instrumentos dentro do própriosistema.

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Apesar de toda a carga ficcional, contando coma extraordinária interpretação do ator JoséDumont, o filme foi concebido como um cinemaligeiro, filmado como um documentário, reto-mando minha experiência não só de TV, mas,principalmente do Gamal, onde eu encenavacom os atores e o Bodanzky filmava a cena comose filmasse um documentário. Para isso, nadamelhor do que filmar em 16 mm, a ousadia dofilme e também a fonte de terríveis problemasem sua finalização.

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O fotógrafo do filme foi o Aloysio Raulino, quefez, no original 16 mm, uma fotografia genial,em meio às loucuras de filmagens noturnas comluz improvisada, filmagens em ruas, interior deprédio em construção, etc. Mas aí nós chegamosao momento chave, a ampliação.

O próprio Aloysio estava confiante, baseado naexperiência de ampliação de alguns curtas nonovo laboratório LabTec, dirigido tecnicamentepor um experiente laboratorista, o Dimitry.

O problema é que, com os curtas, um rolo só,tudo ia mais ou menos bem. Mas no longa acoisa pegou. O Laboratório não conseguia eqüa-lizar a ampliação e era obrigado a retomar osrolos já feitos. Quando finalmente se chegou auma ampliação completa, era evidente a máqualidade do trabalho. E era impossível refazer,já que, de tanto manuseio, o negativo original16 mm acabou imprestável, cheio de riscos equebrado. Na falta de melhor solução, a soluçãoestava dada.

E o filme estreou em São Paulo, no final de 1980,como sempre com pouca divulgação, mais“arremessado” do que lançado, nos cines Olido(centro) e Belas-Artes (Paulista). Em duassemanas eu já estava fora do mercado.

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Eu não podia aceitar a contradição visível: den-tro do cinema o público participava, gostava,ria e saía falando bem do filme.

Então por que havia pouco público? Eu fiqueientão à porta de entrada do Olido, observando.Muita gente parava, olhava as fotos, ensaiavaentrar e acabava indo embora. O cinema Olidoera um cinema popular, com programaçãomarcada pelas chamadas “pornochanchadas”que, a essa altura iam se tornando mais “porno”do que “chanchadas”. Era evidente a insegu-rança do público. Aquelas fotos eram estranhasa seus hábitos. Por isso o filme acabava indomelhor no Belas-Artes, apesar de minhainsistência em que o filme era popular, apesarde tão crítico e livre.

Eu, na verdade, estava é no olho do furacão,isto é, vivendo na carne as dificuldades docinema brasileiro em se moldar a um mercadototalmente monopolizado pelo cinema norte-americano, moldado a seu gosto e de acordocom seus interesses. E tendo, na produção brasi-leira, a marca de um cinema popularesco opor-tunista e que tende a se deteriorar diante dasdificuldades de competição com a porcariainternacional. O que se vê, então, é que vivemosrealmente de ciclos, com sucessos que cor-respondem a momentos, brechas, entre o poder

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monopolista estrangeiro e o oportunismo naci-onal. É o que aconteceu com a Chanchada, porexemplo. Em vez de evoluir para um cinema maiselaborado, aproveitando a brecha do momen-to, a chanchada, com Oscarito, Grande Otelo etudo, vai se deteriorando, perdendo o contatocom o público, sem renovação. O sucesso aco-modou, mais uma vez, nossa produção, até queela se tornasse absolutamente dispensável navida cultural brasileira.

Esse desmantelamento, quem sabe uma“desconstrução” é mais aguda ainda, e maisgrave, no caso da pornochanchada. Aqui, de umgênero singelo, comédias de costume que hojenão corariam nem minha tia solteirona, o ciclofoi se deteriorando, correndo atrás das cada vezmais ousadas produções internacionais, inclu-indo aqui o belo filme O Império dos Sentidosde Nagisa Oshima (1976), realizador do cinemanovo japonês e senhor de filmes geniais comoO Túmulo do Sol, de que já falei e de Noite eNévoa sobre o Japão, que vi na Itália, no Festivalde Pésaro/69.

Voltando à questão da pornochanchada e deca-dência persistente de nossos ciclos de sucesso, oque acontecia nessa década de setenta, pelomenos em São Paulo, era a crescente exigênciados exibidores por filmes mais e mais pornográ-

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ficos, para competir com a enxurrada de porno-grafia, uma produção acumulada nos anos demais censura e que entrava no país com o abran-damento censório nessa época de abertura.Era assim a abertura: depois de nos perseguir,censurar, proibir, destruir, escancaravam as por-tas para o lixo internacional que vinha justa-mente agredir nosso esforço de reconstruçãocultural.

É o caso de se perguntar porque isso acontece,por que a sistemática perda de capacidade decompetição que nos condena aos ciclos.

Não é fácil, mas eu vou arriscar, sem a menorpretensão de cientificidade, já que não sou nemhistoriador, nem pesquisador. Sou apenas umadas vítimas desse processo e incomodado comessa, parece, inevitável condição.

O cinema brasileiro tem duas vertentes que seentrelaçam durante toda sua história. Uma delasé a vontade de fazer cinema, a descoberta doprazer individual e coletivo de filmar, revelarnossa paisagem, nossas belezas, nossas origi-nalidades e também nossa capacidade de contarhistórias, de transformar nossa gente empersonagens de cinema. É o lado da verdadeiraforça do cinema, como meio de expressão, o quenos impulsiona e que faz com que nos batamos

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24 horas por dia pelo direito de filmar, pela afir-mação desse direito e pela qualidade originaldo que fazemos.

Essa vertente afirma o cinema como, exatamen-te, um meio de expressão em busca de seu pú-blico e não simplesmente a busca calculada dealgum público pela adequação de nossacriatividade às regras do mercado, regras, aliás,permanentemente desmentidas pelos fatos,pelos sucessos inesperados e pelos fracassos defilmes chamados “corretos” e “de mercado”.

Nosso cinema começou bem cedo, no dobrar do“século do cinema”, mostrando que a sétimaarte provinha do uso de uma técnica jáuniversalizada, fruto do trabalho de inventoresde muitas partes do mundo. Os primeiros filmesdespertaram interesse e os realizadoreschegaram mesmo a criar salas para a exibiçãodesses filmes, animando a produção.

Vejo no livro A História do Cinema Brasileiro (ArtEditora/1987), organizado por Fernão Ramos,um longo capítulo sobre esse bom começo, atéo momento em que o cinema norte-americanoresolveu se expandir, como mais uma atividadeassumidamente capitalista e, para tanto, ocuparos espaços possíveis em todo o mundo. O livromostra que o marco desse processo é a criação

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da Companhia Cinematográfica Brasileira, soba gerência do brasileiro Francisco Serrador e liga-da aos interesses do cinema norte-americano.

A Companhia foi estruturando o mercado, com-prando salas por todo o país, ligando nossomercado ao cinema estrangeiro. Estrangeironão: norte-americano. Com isso, “a produçãonacional de mais de cem filmes por anoterminara bruscamente...” causando desempre-go de artistas e técnicos. É impressionante, essahistória.

E nos leva justamente à outra vertente de nossocinema, a do oportunismo da produção.

Perdido o espaço próprio no mercado, nossocinema haveria de disputar com um produtoimportado, voltado para as grandes massas epara o lucro, uma atividade criadora quemostrava ter um imenso potencial de exploraçãocomercial, como descobriram os norte-americanos logo de cara, patenteando suasinvenções, dando um olé no culturalismo francêse mostrando, mais uma vez, que o capitalismoali, nos Estados Unidos, permeava todas asatividades produtivas dos cidadãos, inclusive anova arte. E que não estava para brincadeiras.Sem mais alternativas, já que aqui o capitalismonão incorpora nem a cultura e nem o povo, a

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produção brasileira busca abocanhar uma par-cela desse fabuloso mercado já implantado.

O oportunismo nacional, talvez superdeter-minado pela própria história do cinema e de seusdonos no mundo. A produção, como dizia Pau-lo Emílio, se esmera em tentar copiar e, ao copi-ar mal, resulta brasileira.

Eu confesso que não sou e nunca fui muitoadepto dessa visão nacionalista do Paulo Emílio.Ela foi importante, ele foi fundamental, mas épreciso datar sua opinião, colocá-la nummomento histórico carregado de preconceitoscontra o cinema dito nacional. O que há, verda-deiramente, é o oportunismo, a busca do quedá certo, a cópia atrasada do sucesso que vemde fora, muitas vezes em detrimento daoriginalidade de muitos cineastas ao longo dahistória de nosso cinema.

É esse oportunismo que deteriora a pornochan-chada, que deixa estagnar a chanchada, que dávida curta para os sucessos dos anos 70. Aliás, osucesso dos filmes desse último ciclo, o da Embra-filme / Anos 70, com as pejorativamente chama-das porno-chiques, está ligado, agora, à tenta-tiva de trilhar os caminhos da poderosa TVbrasileira, com suas novelas de altíssimo alcancepopular.

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Mas a TV do Brasil mostrou, como o cinema nor-te-americano, que sabia ligar a produção aosseus interesses imediatos e estratégicos nomercado brasileiro, coisa de que o cinema brasi-leiro ainda era incapaz. É que a TV, como gran-de empresa, na verdade a Globo, se instala comolho nesse mercado de pouca ou nenhumacompetição, já que a TV norte-americana nãopodia se instalar aqui, proibida pelas leis dedefesa e segurança nacional. E é assim, com umolho no mercado e arrebanhando valoresculturais, que ela se impõe, com os dois pés bemplantados no chão de nossa pátria.

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O cinema seguia e segue, mesmo que com umsó pé no chão. Ora o pé é a vocação, a teimosia,o prazer de filmar e de existir enquanto cineasta,ora é o oportunismo de nossa mentalidade deprodução que ainda hoje não perdeu essainsânia de querer agradar o cinema que nos su-foca.

Voltando a O Homem Que Virou Suco, eu tive aimensa sorte, alguns meses depois, de ver o filmeconvidado para o Festival Internacional de Mos-cou/1981, que na época era um dos maiores domundo. Para variar, problemas com a Embra-filme.

O pessoal da área internacional pressionava paraque outros filmes representassem o Brasil, já queo Suco não tinha qualidade técnica suficiente...Eu briguei e o filme foi para Moscou, trazendode lá um dos maiores prêmios do cinemabrasileiro, a Medalha de Ouro de melhor filme,passando por cima da questão da qualidadetécnica, problema, aliás, que não aparece emnenhuma das dezenas de críticas que li, de todoo mundo, sempre elogiosas ao filme.

O prêmio teve uma intensa repercussão noBrasil, ao ponto de eu não agüentar mais falardo filme, depois de meses seguidos freqüen-tando programas em rádios, jornais, TVs, o que

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ajudou a transformá-lo num sucesso diferente,conhecido e procurado por todo o mundo. Ofilme retornou ao mercado tradicional e teve,como eu acho que merecia, uma boa carreira.

E fez sucesso maior em outro tipo de exibição,ainda uma vez, feita pelas distribuidoras 16mm,principalmente a Dinafilmes, seguindo o sucessoda experiência com o Greve!. Nesse trabalho,ali estavam jovens cineclubistas que, um poucomais tarde, iniciariam uma transformação dopróprio mercado exibidor, criando salas decinema inspiradas no estilo cineclubista,novidades que foram fundamentais no processode renascimento de nosso cinema e continuamimportantes, colocando no mercado obrasautorais dificilmente aceitas em outras salas.

Minha relação com o movimento cineclubistaera intensa. Dois cineclubes (um em SP e outroem Minas) tinham meu nome e em 1982, ganheio prêmio de Cineasta do Ano, dado pelaFederação Carioca de Cineclubes.

A procura de O Homem que Virou Suco, na distri-buição 16 mm, era imensa, por todo o país. Maisuma vez, não havia cópia que chegasse.

Eram exibições nos clubes, igrejas, associaçõesde bairros, sindicatos e, novidade, associações

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de nordestinos nas grandes cidades, sempre comdebates e muita paixão pelo filme. O filme, as-sim, se popularizava a seu modo, buscando umcaminho ainda bloqueado pelo sistema tradici-onal de exibição.

Eu até hoje tenho um orgulho muito grandedesse trabalho, dessa busca. E até hoje costumoprovocar interlocutores, em público, quandodizem nada conhecer do cinema brasileiro. Euarrisco: “um filme, pelo menos você conhece: OHomem que Virou Suco”. É difícil errar, o filmeficou realmente conhecido demais, visto demais.Essa minha intervenção, por exemplo, pode serverificada no hall do Hotel Nacional, durante oFestival de Brasília de 1998, com o Vicentinho(Vicente da Silva), presidente da CUT. Ele selamentava, no meio de uma roda grande decineastas, atores, atrizes, jornalistas, que nãotinha tempo de ir ao cinema, que não conhecianada do cinema brasileiro. Eu arrisquei, primeiroo Greve!. Claro, ele ficou contente com a lem-brança, falou muito do filme. Eu arrisquei denovo: O Homem que Virou Suco. Ele ficou aindamais feliz, riu e perguntou: “É seu também? —quantas vezes a gente passou e ainda passa essefilme lá no sindicato!”

Eu tive, com O Homem que Virou Suco uma ex-periência emocionante, na época da distribuição

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paralela do filme. Fui convidado para um encon-tro com uma entidade que eu não conhecia - aFederação das Associações de Nordestinos, nacidade de São Paulo. Os migrantes, quase sem-pre nordestinos, foram dos temas prediletos emminha carreira e eu fui ao encontro tomado decuriosidade. A reunião era num salão antigo,muito grande, com umas duzentas pessoas emvolta de um círculo formado por mesinhascomuns. O que eles todos queriam era discutiruma forma de maior divulgação do filme emSão Paulo e em todo o país, inclusive no Nor-deste, onde, é claro, mantinham seus contatosfamiliares e associativos.

Eu passei então a ouvir depoimentos impres-sionantes dessas pessoas, revelando umaabsoluta identificação com o filme.Não era simplesmente um “gostar”, não. Erarealmente uma identificação. Os depoimentoseram sempre emocionados e confessionais,revelando a dureza que cada um deles en-frentava em suas próprias relações com a grandecidade: o trabalho, a discriminação, a massifi-cação, a miséria. O filme os emocionava demais.

No final, depois de acertadas algumas medidascom o pessoal da Dinafilmes, o principal líderdo grupo me endereçou a pergunta inesperada:de que estado do Nordeste eu era. Eu respondi

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que não era nordestino e sim mineiro, do Triân-gulo Mineiro - mas ninguém acreditava...

Quanto ao título, O Homem que Virou Suco, fo-ram inúmeras as tentativas de mudança. O Mar-co Aurélio Marcondes, da distribuidora daEmbrafilme, chegou a sugerir um monte denomes, um deles eu me lembro, No Peito e naRaça, O Pão Que o Diabo Amassou... Felizmenteresisti e o título ficou.

Na origem do título estava o cordel a que mereferi, escrito por mim mesmo. Mas estavatambém um certo jogo pessoal que eu mesmonão controlo bem, um jogo de equilíbrio entreser sério e anárquico, dar importância e negá-la. Assim, jogado sobre um filme-mergulho, otítulo simula um não-ser-nada, um desdém sobrea seriedade. Aliás o próprio filme está carregadode um certo anarquismo, um tom de resistênciacom humor que marca o personagem do poetaDeraldo. Não haveria título melhor para o filme,apesar dos preconceitos de muitos.

Making-of

É sempre estimulante rememorar o processo decriação desse filme, as noites de conversa etrabalho com esse extraordinário ator que é oJosé Dumont. O Zé vestiu a camisa do persona-

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gem, buscou lá de dentro toda a carga de opres-são, sentida como migrante e também todaverve da poética resistência de seus con-terrâneos diante dos preconceitos culturais e daopressão. Por necessidade e vontade de falar dopersonagem o tempo todo, o Zé dormia em casae me obrigava a longas conversas, analisando otexto e o personagem. Era impressionante veresse ator, depois de atravessar a noite tomadopor dúvidas, inseguranças, chegar ao set e in-terpretar, dominando a cena, fazendo com quea câmera o seguisse o tempo todo, como quehipnotizada por ele.

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Há um momento especialmente engraçado nafilmagem, da seqüência inicial, a festa do “Ope-rário Símbolo”.

A seqüência foi filmada na própria festa do“Operário Padrão”, da FIESP que, como pre-miação patronal, visava evidentemente valorizaros operários mais eficientes e menos proble-máticos, menos reivindicadores, uma espécie decooptação patronal. Nós pedimos para filmar lásem contar o final da seqüência, ou seja, que onosso “Operário Símbolo” mataria seu patrãopor se julgar traído por ele.

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Na mesa da FIESP lá está, então, o próprio presi-dente da FIESP, o Teobaldo de Nigris que, aliás,faz seu discurso que é aproveitado no filme. Aoseu lado, como personagem nosso, lá está a RuthEscobar, que no filme faz a madame que man-tém um albergue para mendigos. Também a vozdo locutor é a da festa real: demos ao locutor osnomes de nossos personagens e ele anunciou:“E agora, o vencedor desse ano, o Operário Sím-bolo José Severino da Silva!”

Nosso “Severino” ( José Dumont) se levanta, deterno e caminha para cumprimentar seu patrão.Como combinado, ele faz um gesto estranho,enfiando a mão por baixo do paletó, buscandoalguma coisa atrás, nas costas. Corta. Depoisdisso paramos a filmagem e esperamos que afesta acabasse.

Cuidando de estarmos sozinhos no salão,fizemos então a cena final da seqüência: OSeverino de José Dumont leva a mão às costas,saca uma peixeira e mata seu patrão que, aomorrer, ainda fala, em inglês: “morrer nesse paísmiserável!”

Outra coisa engraçada foi a filmagem no metrô:a Companhia do Metrô não queria deixar filmarporque achava que o personagem “não erapositivo”. Eu tive que fazer um verdadeiro

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“atestado ideológico” do personagem para queeles deixassem filmar. Coisas da ditadura.

Aliás, é preciso esclarecer uma coisa: oaudiovisual que está no filme, apresentado aosmigrantes das obras do metrô com o claro intui-to de quebrar sua cultura, de ridicularizar seushábitos, de exibir seus modos como coisa atra-sada, é uma cópia praticamente exata doaudiovisual que eu vi num canteiro de obrasquando ainda estava na Globo. É uma recons-tituição feita de memória pela recusa da emprei-teira em me emprestar o material, de conteúdoabsolutamente facista, visando, mais uma vez,tornar o migrante dócil, obediente, desprovidoda força que sua formação cultural lhe propor-ciona. E é esse massacre ideológico que justificaa seqüência extremamente forte do perso-nagem do poeta no meio do corredor de madei-ra (chamado de “tronco”, nos currais de gado),a caminho da cantina, onde ele se sente um boi.Por incrível que pareça, o “tronco” existia naobra em que filmamos. E era por ali que os ope-rários tinham que passar, como bois, para comer.E o José Dumont, ator maior, encarnou aqueleboi e ficou ali, entre os paus de madeira do“tronco”, batendo a cabeça como gado semsaída, numa transe terrível de repressão assumi-da psicologicamente.

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Uma última lembrança, a seqüência na qualDeraldo, endiabrado, se vinga de seu chefe,manipulando o elevador de carga, fazendo-osubir e descer vertiginosamente para desesperodo chefe, vivido pelo nosso querido Denoy deOliveira. Essa história me foi contada pelo Aloy-sio Raulino, nem sei mais em que circustâncias,mas como fato verdadeiro.

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04. O PCB e Os Demônios, aliás, A PróximaVítima

Eu estava com a bola toda, depois dos prêmi-os com o Suco... Além de ganhar o Festival deMoscou, o filme ainda ganhou prêmios naEspanha (melhor ator) e na França (prêmio dacrítica) e era muito bem recebido onde fosseexibido, como retratou a querida RadháAbramo, na Folha de S. Paulo, falando do su-cesso do filme no Festival de Londres, sucessoque fez a cópia circular pela Inglaterra porvários meses.

Meu próximo filme seria Os Demônios, inspiradono livro de Dostoiewski mas com uma históriabem brasileira. Eu já lembrei a desventura desseprojeto, com roteiro meu e do Lauro CésarMuniz, a proibição anunciada pela Embrafilmee sua substituição pelo projeto de A PróximaVítima. É mais uma de minha perdas comocineasta.

O filme, que se passaria entre 1979 e 81, épocada anistia, seria pioneiro, falando ficcionalmentedo drama dos ex-exilados que, de volta ao Brasilencontram um país profundamente modificadoe um processo de abertura política de difícilparticipação.

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Seria uma reflexão crítica a respeito da defa-sagem ideológica da própria esquerda, inca-paz de aceitar as mudanças no país e tentan-do ainda impor um modelo autoritário de po-lítica. O projeto nasceu de uma idéia minha,ainda em 1980, num momento em que eu vol-tara a militar, desde 77, ajudando na recons-trução do Partido (PCB), participando dadireção estadual e do jornal A Voz da Unida-de, uma proposta renovada de política queretomava o tom de crítica lançado na resolu-ção de 1958, que buscava uma superação dostalinismo e uma visão nacional da RevoluçãoSocialista no Brasil.

Havia entre nós (Gildo Marçal Brandão, DaviCapistrano, Marco Aurélio Nogueira e outros),uma visão crítica com relação ao chamado“socialismo real”, o soviético, posição que noscolocava mais afinados com os comunistasitalianos. O jornal A Voz da Unidade pregavaentão a eficiência da política ampla, aberta, aação do Partido como um meio de ação e comoum fator de aglutinação em torno de uma novavisão, mais democrática, menos insurreicional,da Revolução. Assim, eram importantes o debatee a crítica política. Era importante ouvir.

Nossos “guias espirituais” nacionais eram os“leves” Leandro Konder e Carlos Nelson Couti-

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nho, o primado da inteligência, da informaçãoe da cultura sobre o aventureirismo e atruculência.

O resultado, até 79, foi surpreendente. Mes-mo ainda sob o regime militar nós discutía-mos abertamente as teses do Partido e fazía-mos circular o jornal que, aliás, foi lançadonuma festa mais do que ampla, aberta e commuita gente.

Havia, de fato, a possibilidade de inserção deum PCB renovado, democrático, no jogo políticobrasileiro, quando o quadro internacional jámostrava os derradeiros sinais de uma deca-dência sem limites do movimento comunista emtodo o mundo. Mas nossa alegria durou pouco.

Em 79, como todos nós queríamos e lutamos,finalmente veio a anistia política e logo nossosexilados estavam de volta, recebidos comgrandes festas populares. Entre esses exilados,voltaram também os dirigentes nacionais,membros do Comitê Central do PCB. Entre eleso Prestes e seu sucessor, Giocondo Dias, entreoutros. Estava decretado o fim da festa do“comunismo italiano” em São Paulo.

Entre os próprios dirigentes retornados, aconfusão era grande.

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Um desentendimento geral, por exemplo, como velho Prestes, afastado das decisões e até mes-mo, me parece, desligado da direção. Em seulugar, na Secretaria Geral do Comitê Central, seuex-segurança, o Giocondo Dias.

Mas com relação a nós, a visão de todos eles erauníssona: nós significávamos a traição ao socia-lismo e à classe operária, nada mais. A pressãocontra a linha editorial do jornal foi imediata eem pouco tempo eles haviam conseguido estrei-tar a política do Partido, qu-ebrando os laçospenosamente construídos no processo de recons-trução em São Paulo.

Todos eles eram, na verdade, muito violentos.Na luta interna, sabiam muito bem usar daspiores armas do velho partido comunista, comoo descrédito ideológico e o uso abusivo dochamado “centralismo democrático” que, naverdade, nunca chegou a ser democrático.Criticar qualquer aspecto da União Soviética, porexemplo, era revelar-se um anti-soviético.Persistindo no comportamento desse tipo deindisciplina ideológica, nós passávamos a seragentes do imperialismo. E, sempre, traidoresda classe operária. Esse tipo de acusação, porincrível que pareça, ainda pegava nas bases dopartido, coisa de tradição, herança maldita daclandestinidade.

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Era uma coisa impressionante e eu participavade tudo isso absolutamente inconformado. Che-guei mesmo a presidir o Congresso Estadual doPartido, em 81. Como Presidente, apesar de pro-testar, tive que engolir várias vezes inter-venções e puxões de orelha feitos por esses di-rigentes, principalmente o próprio Giocondo,sem licença para falar, sem inscrições, sem apar-tes concedidos, sem autorização da mesa presi-dida por mim.

Era o “centralismo democrático” funcionando.Briguei muitas vezes, muitas vezes cheguei aexagerar minhas críticas (que, como vimosdepois, eram justas!) à União Soviética só paraprovocar essa gente que eu já julgava absurdae ultrapassada.

Eles todos, claro, vinham da União Soviética ouviveram no exílio apoiados pelos camaradassoviéticos e permaneciam, assim, ideologica-mente cegos diante das mudanças do mundo edo Brasil.

O resultado é que muitos de nosso grupo, quasetodos, aliás, saímos do Partido ou abandonamosa militância. Perdia-se, assim, uma tentativa derenovação que poderia levar a um partido deesquerda mais influente e aberto. E viável.

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Deixamos para eles a herança do velho Partidãoe com ela eles morreram todos na praia, com aqueda do muro de Berlim e da própria UniãoSoviética, poucos anos mais tarde.

Alguns anos depois eu participava do lança-mento da candidatura de Roberto Freire àPresidência da República, pelo PCB. O Partido setornara legal, mas eu não quis mais me filiaroficialmente, já não acreditava e nem tinhanervos para agüentar aqueles comportamentosstalinistas dos que agora dirigiam o Partido. Ointeressante ali era o Roberto, na verdade umdemocrata com ideais socialistas e cujas idéias,e ações, se aproximavam muito das de nossogrupo em São Paulo.

No dia do lançamento de sua candidatura, foifeito um debate em São Paulo e Roberto meconvidou para a mesa. O salão estava cheio e,logo que entrei, encontrei o Alemão (EdmilsonSimões), da diretoria cassada do Sindicato deMetalúrgicos de São Bernardo ao tempo domovimento que eu filmei em Greve!

O Alemão, que estivera filiado ao Partido, medisse que estava deixando a militância parti-dária. E, naquele momento, estava indo embora.Depois, já na mesa, eu fui obrigado a ouvir umdirigente ainda falar de “frente de esquerda” e

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“partido da classe operária”. Eu não agüenteie, na minha vez, ironizei o “tovarish” (é comose diz “camarada”em russo): “é incrível queainda hoje, alguém ainda fale de partido doproletariado. E o único operário que participa-va desse encontro era o Alemão, que tinha aca-bado de sair da sala. E do partido”

Pois foi essa experiência vivida que me levou aoprojeto de Os Demônios: o personagem do ex-exilado, líder de uma grupo de esquerda quevolta e percebe como suas idéias revolucionáriashaviam envelhecido diante da luta democrática,pela abertura, no Brasil. Mas seu grupo nãoadmite a revisão crítica e usa o líder, com seuprestígio, para levar adiante sua cegueirahistórica, seu arcaísmo ideológico.

O projeto prosseguia minha busca de um cinemaparticipante, integrado na História e que nãofosse prisioneiro de minha própria militância.Infelizmente o projeto também caiu, deixandoesse imenso hiato em minha carreira.

Em lugar de Os Demônios, acabei filmando APróxima Vítima. Apesar dos problemas com adireção do Partido, eu continuava, em 82, comuma tendência militante muito forte. Em 82, oPMDB preparava as candidaturas oposicionistasaos governos de vários estados.

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A vitória da oposição era fundamental paraempurrar ainda mais o regime militar, já seminiciativa e vendo o fim de sua triste passagempela História brasileira. Em São Paulo ocandidato seria o Franco Montoro, um dos me-lhores quadros da oposição: democrata, experi-ente e muito bom de voto, herança ainda desua passagem pelo Ministério do Trabalho.Montoro fez uma coisa fantástica para aquelemomento, que foi organizar comissões de estu-dos, visando um programa de governo. Essascomissões acabaram incorporando uma quanti-dade incrível de gente, com quadros que acaba-ram, depois, participando de seu governo. Umadessas comissões era a de Cultura.

Essa comissão foi sendo formada meio sem con-trole do próprio candidato, com artistas plás-ticos, como o Glauco Pinto de Moraes, o FábioMagalhães e o Darci Penteado, gente da Univer-sidade, como a Ana Belluzo, de cinema como oIvan Isola e eu mesmo. E gente de todas as áreas,de teatro, cinema, literatura, música, pessoasque aos poucos iam chegando, incentivadas pornós, os primeiros interessados. Era um momentomuito forte de minha vida e eu tinha realmenteuma capacidade incrível de condução daquelaloucura. Acabei sendo eleito, junto com a AnaBelluzo e o Fábio Magalhães, para a Coorde-nação.

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Nós trabalhamos muito, criando sub-comissõese propondo políticas para o novo governo, fa-zendo seminários.

Pois bem, no final de 82, ao mesmo tempo emque eu militava com essa intensidade toda, aomesmo tempo em que eu lutava para quebrar,em artistas e intelectuais amigos a barreira con-tra a participação política - eu iniciava a produ-ção de um filme já bastante descrente do dis-curso político de que, no PMDB, eu participava.Era o Assassinatos no Brás, depois renomeadocomo A Próxima Vítima.

Nas filmagens de A Próxima Vítima

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É clara essa desilusão antevivida no filme. Logode cara o personagem do repórter Daví, vivi-do por Antônio Fagundes, chega atrasado àredação e o chefe de reportagem o castiga: jánão havia, na pauta, nenhum assunto políti-co, apesar da época de eleições e Daví é obri-gado a aceitar um assunto estranho para ele:os assassinatos de mulheres no Brás. E o as-sunto imposto, imprevisto, em pleno períodoeleitoral, com comícios por todo lado, joga oincauto repórter numa área de indizível misé-ria e violência, a violência dos excluídos. E essavivência feroz mostra a distância entre os dis-cursos da oposição e a realidade degradadada vida social.

Numa das cenas mais curiosas do filme, uma con-versa entre o repórter Davi e um descendentede italianos, o decadente Guido (GianfrancescoGuarnieri), os dois, bêbados conversam enquan-to urinam num muro. Diante deles, justamenteonde urinam, o cartaz com a foto do candidatoFranco Montoro. Guido conta a história engra-çada da técnica lingual de uma prostituta.Depois, olhando para a foto do candidato diz:

“Scuzi, senatore!”O repórter Davi revida:“Não se preocupe, ele está falando,

não está vendo nada”

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A violência vivenciada pelo repórter, no filme,prenuncia uma violência inimaginada, que ex-plodiria logo no primeiro ano do governoMontoro. Uma violência que acabou fazendodo filme, no lançamento em 83, uma espécie dereportagem do que acontecia não lá atrás, épo-ca das eleições e das filmagens, mas de agora,da época de sua exibição.

A frase do filme, “um assassino anda solto pelasruas, alguém precisa impedir que ele haja nova-mente” se confundia com as sucessivas man-chetes de todo tipo de violência, assassinatos,assaltos, seqüestros, assassinatos de crianças.

Othon Bastos em A Próxima Vítima

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O caráter de classe dessa violência aparente-mente indiscriminada aparece na seqüência emque o repórter Davi (Fagundes), tenta gravar umdepoimento com o suposto assassino, Nêgo(Aldo Bueno), na verdade um bode expiatórioinventado pela polícia e que Daví, impensa-damente noticiou, colocando a foto do Nêgono noticiário da TV.

Daví , ele mesmo é quem tenta gravar, com umacâmera amadora. E diz ao Nêgo que ele podefalar o que quiser, contra as acusações feitas pelapolícia. Mas Nêgo não pode acreditar nele, orepórter já é seu inimigo.

- Posso falar o que eu quiser?- Pode.- Eu falo o que eu quiser e você colocano ar o que você quer...

E Nêgo agride violentamente o repórter, che-gando a humilhá-lo urinando sobre ele. É umaseqüência extremamente forte e que, para mim,é carregada de significados. De um lado, aviolência se dá pela ruptura de laços sociais, deabsoluta falta de confiança nas relações entrepessoas de classes distintas num momento decrise. Por outro lado, o que o repórter faz ali éuma representação das próprias eleições que opaís está vivendo naquele momento.

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Davi pede ao outro que o considere como seurepresentante, representação que é negada comviolência, já que os laços estão partidos.

A Próxima Vítima é um filme forte, feito compaixão e muito diferente de O Homem que Vi-rou Suco. É um filme mais acadêmico, como seo diretor tivesse uma formação clássica de cine-ma e enchesse seu filme policial de questõespolíticas. Não é por acaso que, apesar de suaforça e de críticas excelentes tanto no Brasilquanto no exterior, é o filme menos premiadode minha carreira. Talvez por ser consideradomais “comercial”. Bobagem.

Louise Cardoso e Antônio Fagundes em A Próxima Vítima

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A idéia do filme era minha e o roteiro inicial doLauro César Muniz. Mas eu não conseguia meadequar ao roteiro original e acabei mexendodemais, praticamente fazendo um novo roteiro,o que acabou gerando uma briga triste entrenós, acabando com a parceria iniciada com oprojeto de Os Demônios.

Aliás, como nunca mais achei o livro doDostoiewski, é provável que eu o tenha deixadona casa do Lauro, desfalcando minha preciosacoleção...

O filme sofreu, depois, uma perseguição cruelda censura, que impôs nove cortes que desfigu-rariam a narrativa. Eu briguei, apelei, não acei-tava os cortes. O censor, numa conversa comigoe a Assunção, em Brasília, soltou essa signifi-cativa pérola: “Por que vocês não fazem comoo cinema americano? Lá eles falam dessas coisasmas sempre tem um herói que age, que resolvetudo, acaba tudo sempre bem. Aqui não, vocêsdeixam o problema no ar!” Se a gente pudessefazer as coisas terminarem bem, quem sabe?

O problema acabou indo para o ConselhoSuperior de Censura, uma espécie de instânciatransitória criada ainda no regime militar pararesolver os problemas graves de censura, já noproceso de abertura política controlada.

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Eu, apesar de ser radicalmente contra a censu-ra, apoiei a criação do conselho exatamente porentender a iniciativa como uma transição, coisaque foi, de fato. Tanto que A Próxima Vítimaacabou sendo liberado sem cortes: eu criei umimpasse, marcando a estréia do filme para o diaseguinte à sessão. Esse impasse foi fundamental,obrigando os conselheiros mais ligados ao go-verno a recuarem, pois não haveria tempo derecorrer e, por culpa deles, o filme poderia es-trear cortado, com muita repercussão.

Antônio Fagundes e Mayara Magri em A Próxima Vítima

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05. Céu Aberto e O País dos Tenentes, fim deum ciclo

Não é novidade para ninguém minha obsessivaligação, como cineasta, aos fatos políticos outemas que possibilitem uma repercussão, umaleitura, política. Eu me revelei assim no primeirofilme, o Liberdade de Imprensa e segui pela vidaafora perseguindo esse fio que pudesse ligar ocinema à política.

Foi assim durante o tempo em que trabalhei naTV Cultura, na Globo e essa obsessão fluiu portodo o meu trabalho de cinema, sempre. Eu nãosou crítico e, portanto, não faço avaliação nemde meus filmes nem de minha carreira.

Eu vivo e faço os filmes com a mesma paixão deviver, como um gesto que me absorve 24 horaspor dia. Falar de meu trabalho é sempre falardessa paixão, da relação profunda que sempretentei estabelecer entre o que faço e o que sou.Por isso mesmo tenho a sensação de ter umaobra um tanto estranha, difícil, filmes que nuncasão o que as pessoas esperavam que fossem.Uma estranheza que, em geral, cria problemaspara o filme e para mim, uma incompreensão,às vezes um silêncio, muitas vezes ataques cujasrazões eu sempre tenho dificuldade de entendere que parecem sempre mais visar o cineasta,

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culpá-lo por filmar, do que em analisar o filme.Esse comportamento não poderá nunca ser en-tendido apenas pela análise objetiva da quali-dade dos filmes (possibilidade de que eu duvi-do) nem da capacidade desses críticos.

É um problema da nacionalidade, a dificuldadede analisar o que nós mesmos somos, de aceitara feiura de nossa gente e de nossos personagens,a crueldade de nossas paisagens urbanas, a mi-séria social e cultural, imagens invasoras que, derepente, vagam desavergonhadamente pelamesma magia narrativa de belezas e encanta-mentos do cinema que formou nosso gosto enos domina, o norte-americano.

E também a dificuldade de conviver com aousadia simples de existir, esbanjada pelo filme,existência de difícil explicação, inviabilidadeque, aliás, marca um sem número de persistentescinematografias de países do terceiro mundo,eles também, por si mesmos, praticamenteinviáveis. É um problema difícil de resolver.

Os cineastas, por isso, continuam precisando desuas pedras, guardadas no bolso, como defesae ataque. E também dos discursos afirmativosde que aprendemos a nos municiar: somos bons,apesar de tudo.

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Eu quero apenas ilustrar esse tipo ruim de rela-ção, através de alguns momentos dessa relaçãodifícil com a crítica.

Primeiro o artigo de um jornalista que nem crí-tico é, o José Nêumane. Em uma coluna doEstadão, o Nêumane estampou logo a manchetedizendo que O País dos Tenentes era um filmeperigoso. Perigoso porque, com um jeito dequem faz uma crítica à própria esquerda, o fil-me, na verdade, teria uma visão “ingênua” daperigosa e golpista esquerda. Minha respostaelucida o que eu digo.

Elenco de O País dos Tenentes

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No texto, publicado correta e democratica-mente pelo Estadão no dia seguinte (sinal dematuridade do jornal), eu analiso os perigosde um filme e me pergunto por que um filmepode ser perigoso, já que o filme não prendianinguém, não torturava, não matava seus ini-migos.

Por que tratar como inimigo um filme quetenta refletir sobre a história de seu própriopaís? Aliás, por que tratar qualquer filmecomo inimigo?

Um filme se situa no campo dos sonhos, dasemoções e das idéias e se insere na vida socialjustamente por essas vias, ajudado ou não pelascircunstâncias do momento.

É preciso, diante do filme, se perguntar não sósobre o que fala, mas porque fala, com quesentimentos trabalha, que idéias alimentam suanarrativa e sua estrutura, com que formasprocura atingir a sensibilidade de seu público. Ésempre uma análise complexa e que é, no dia adia, reduzida a simplificações absurdas, sujeitasmais às condições do emprego, ao humor e àspretensões dos que escrevem nos jornais. Comonesse texto citado, bem revelador, onde, maisuma vez, o alvo parece ser o cineasta, não ofilme.

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Os textos podem até falar bem do filme mas decerta forma o inviabilizam no mercado, afirman-do que “o público não vai entender”. No casode Doramundo, o problema era falar de crimese não revelar, com precisão, o assassino. Numfilme norte-americano realmente isso seriaimpensável, com aquela dramaturgia pré-arma-da, pré-concebida e que exige solução de todosos problemas na tela, mesmo que na sociedade,na vida real, esses problemas nunca se resolvam.É o primado da diversão, da fantasia, sobre oreal e não, como pretendemos muitos de nós,cineastas do terceiro mundo, buscar uma fanta-sia que se relacione com nossa realidade, mes-mo que ela incomode.

Pois em Doramundo eu pensava assim sobre oscrimes, que é banal tentar resolver a questãoda criminalidade, da violência, prendendo umculpado. É o que eu mostro também nocensurado Wilsinho Galiléia: a morte de umbandido não acaba com a marginalidade,servindo mais para fortalecer o sistema repressordo que para resolver os problemas da sociedade.Eu reagi a esse tipo de crítica, no caso deDoramundo.

Expus a questão ao editor do jornal da TV Cul-tura e eles resolveram testar, indo comigo paraa porta do Cine Copan.

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À saída das sessões, o repórter ouvia o públicosobre a questão. Praticamente todas as respos-tas diziam que realmente era difícil saber quemera ou quem eram os assassinos, mas que o fil-me procurava mostrar os crimes como crimesanônimos, feitos com a participação e a cumpli-cidade de toda a sociedade.

Por que resolver, pelo público, a questão da com-preensão do filme, gesto paternalista que aca-ba induzindo o leitor a não ver o filme? O pro-blema talvez esteja na função da crítica na im-prensa, menos a de analisar e mais a de vendero jornal ou a revista como “guias” seguros doespectador. Coisa terrível.

Eu, como cinéfilo, tenho um prazer imenso ementrar num cinema e assistir a um filme qual-quer, sem informação alguma sobre ele, prontopara ser seduzido pela magia própria do cine-ma, magia sempre maior do que o filme e que ofilme parece mais acrescentar ou diminuir do quecriar. E é sempre bom!

Com que lógica dizer que um filme é bom ouruim, que você vai gostar ou não? Apenas alógica da facilidade, do medo de arriscar. Alógica da dependência.

Ao falar dessa obsessão pela História, eu queriachegar aos dois últimos filmes dessa fase inicia-

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da com Doramundo. São eles o Céu Aberto e,justamente, O País dos Tenentes.

O Céu Aberto foi realizado a partir da doençade Tancredo Neves. Eu aprendi, no processo deabertura política, a admirar Tancredo Neves,achava que ele conduzia esse processo como ummestre, orientando nosso barco com sabedoria,em meio a tantos perigos de fracasso e de retro-cesso. Nós todos tínhamos participado da lutapelas “Diretas-já” e sofremos todos com a der-rota da emenda Dante de Oliveira no Congres-so Nacional.

Vigília por Tancredo Neves ante o hospital

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“Diretas já” era um movimento de massas im-pressionante, unindo povo, intelectuais, políti-cos, mostrando sempre a cara de multidão emcada manifestação pública.

E tinha uma peculiaridade sobre a qual poucose falou mas que está no filme Céu Aberto: omovimento revelava uma espécie de forma-lização de uma estrutura política civil, com seuslíderes cristalizados e com funções determina-das, ou seja, levar a cabo o fim do processo detransição, tomar o poder das mãos dos milita-res. Não havia, na população, qualquer intuitomaior, não a movia qualquer idéia de revolu-ção, de alteração profunda na estrutura social emesmo econômica do país.

Havia a urgência de acabar com aquilo, deretomar o domínio civil sobre as estruturas dopoder nacional. Ficava claro ali, como que doispólos distintos, esferas nítidamente separadasda vida social: de um lado a esfera da política,confundida com a corporação política; de outro,o povo, mobilizado para entregar o poder aospolíticos e a exigir deles o cumprimento de suasfunções.

Ao contrário do que se dá em momentos revo-lucionários, ou seja, o surgimento de novas es-truturas políticas que ligam a elite revolucio-

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nária ao povo, aqui o povo se contentava emser apenas povo, abdicava de qualquer intuitode recriar seus partidos, abdicava de qualquertentativa de renovar seus líderes, substituir seusrepresentantes: tomava-os tais como existiame, mantendo a distância, exigia deles o cumpri-mento de suas tarefas. Para isso os políticos seri-am eleitos e para isso recebiam seus gordos sa-l á r i o s .

Esse o tom que procurei imprimir ao filmar oCéu Aberto. Eu via o país atravessando um mo-mento épico curioso, único, carregado de contra-dições. E por isso quis fazer o filme como umépico, filmar em 35 mm e de uma maneira maisclássica, sem as correrias naturais em docu-mentários ou reportagens sobre acontecimentoshistóricos. Eu queria um filme mais reflexivo emais revelador.

A decisão de filmar foi repentina, depois dealguns dias assistindo, pela TV, aos noticiáriosrepetitivos sobre a saúde do Presidente eleito.Convidei o amigo Chico Botelho para a foto-grafia e em dois dias nós estávamos com câmera,negativos 35 mm (cedidos pelo médico e cine-asta Sérgio Tuffik) e com a equipe formada.

No som, o ótimo e falante Geraldo Ribeiro. E oArmando Lacerda, de Brasília, na produção, ele

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que chegou ao requinte de parar um avião co-mercial no meio da pista, já taxeando para de-colar, porque nós chegamos na última hora paraa viagem de Brasília a Belo Horizonte. O filme,depois, foi montado pela dupla Danilo Tadeu eo cineasta Walter Rogério, sob a supervisão des-te último.

Céu Aberto me deu muitas alegrias e sei queainda me renderá muitas outras. Afinal, é umdocumento histórico super bem filmado e quesó se valorizará com o tempo, sem concorrentes,pois quem filmou, filmou; quem não filmou, nãofilmará jamais. O filme, além de ser bem exibido,recebeu inúmeros prêmios nacionais e interna-cionais, inclusive o de Melhor Filme (OCIC- OfficeCatholic International), o “Prêmio Especial doJúri”, no II FestRio ( Festival Internacional do Rio/85) e o mesmo prêmio em Aveiro, Portugal, em86.

Making of

Nós começamos a filmar para o Céu Aberto emSão Paulo, evidentemente diante do Hospitaldas Clínicas, onde Tancredo estava internado.Ao filmar o povo ali amontoado, carente, curio-so, ouvindo a ladainha médica a respeito dasaúde do Presidente, com os incompreensíveistermos médicos, a visão que eu tinha é que aque-

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le povo é que estava doente, buscando uma cu-ra, uma mão santa que os pudesse livrar do malcrônico da falta de perspectiva.

Sentado junto a um muro, um rapaz diz quevinha de Minas para tentar ver, pelo menos umavez, o Presidente em pessoa. O rapaz dizia nãoter conhecido o pai mas, guiando-se pelasdescrições da mãe, achava que Tancredo Nevesse parecia demais com ele.

“O Tancredo é como meu pai”, diz ele,emocionado. “Ele não pode morrer”.

A correria ali em frente ao Hospital era cômica,com uma quantidade incrível de equipes de TV,brasileiros e estrangeiros, que disputavam aprimazia das notícias e, por isso, não podiam searriscar a perder um só detalhe, uma sónovidade. O resultado eram os cabos de câmeraenrolados, fios trançados, brigas entre equipes.Claro, as câmeras de TV eram de vídeo, silen-ciosas, modernas. Todas, menos a nossa.

A velha Arriflex 35, nas mãos do Chico Botelho,era a barulhenta do momento. Quando chegá-vamos filmando, entrando no meio daquela con-fusão, levávamos também o ruído bom de nossocinema, incorporado agressivamente ao som dasequipes de TV. Os técnicos de som olhavam feio

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para nós, mas para nós era uma festa: a ironiade ver, assim, o cinema brasileiro indo para oar, por todo o mundo.

Dali seguimos o traslado do corpo de Tancredopara Brasília, onde seria velado pomposamenteno Palácio da Alvorada. Os civis, finalmente che-gavam ao poder.

Eu sempre conversava muito com o ChicoBotelho, reafirmando a idéia de um filme quefugisse à reportagem, que não corresse atrás defatos, que mantivesse uma certa dignidade paraos movimentos de câmera, em busca de umcinema mais reflexivo, menos momentâneo,eventualmente mais épico.

O que se vê, então, desde o velório oficial, é apompa com que o poder civil vai se instalando,forçando a barra de sua presença exclusiva,excluindo da cena qualquer presença militar.Essa é uma idéia que, desde ali, vemos sereafirmar, com todas as contradições própriasdesse novo poder, até o final, o enterro marcadopelo tom épico, afirmativo, exclusivamente civil,no cemitério de São João del Rey. Há momentosdo filme que merecem algum comentário.

Por exemplo, a seqüência do Palácio daLiberdade, em Belo Horizonte. Uma multidão

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imensa se amontoa diante do Palácio cercadode grades altas e ponteagudas, como lanças.Pessoas passam mal, policiais e populares ten-tam retirá-las do amontoado humano. Os cor-pos são conduzidos sobre as cabeças e depoispassados sobre as grades, para atendimentodentro do Palácio. As pessoas assim se feriamnas lanças, uma coisa extremamente dramática,entre choros histéricos e o som da fala trágicada viúva de Tancredo, Dona Risoleta. Nós filmá-vamos essa tragédia quando reparei, na sacadado Palácio, um certo número de pessoas, políti-cos, gente da elite, observando friamente o quese passava a seus pés, o drama de seu povo.

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Pedi ao Chico que girasse a câmera para lá, des-toando do que faziam as outras câmeras, toma-das, com certa razão, pelo que acontecia nasgrades. O resultado, no filme, é a montagemalternada do que acontecia lá em baixo e apostura distante da elite, devidamente prote-gida pela distância e altura, comentando entreelas, apontando, sem qualquer gesto desolidariedade ou espanto.

Um outro momento é na estrada, quando se-guíamos para São João del Rey. Eu vi, no cami-nho, um andarilho com uma bandeira às cos-tas. Bateu momentâneamente aquele feelingdos tempos de TV. Mandei parar o carro e pediao Chico que já descesse filmando. Acho umadas seqüências mais bonitas do filme e que re-velam a emocionada expectativa popular comrelação ao futuro. O andarilho ia também paraSão João del Rey, tomado pelo dever de orar,se sacrificar, em prol do bem e do futuro deseu país. Em seu depoimento emocionado, oandarilho cobra dos políticos que façam o quedeveriam fazer, em prol da grandeza desse país.Revela assim que eu já havia comentado, a acei-tação popular de que a política brasileira de-veria ser obra dos políticos, compreendidos as-sim como a corporação, os que já participavamdesse olimpo de muitas necessidades e poucassuficiências.

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A porta da Igreja de São João Del Rey rendeuoutra seqüência que merece destaque. Eu sen-tia, nas conversas entre políticos, uma tensãomuito grande, uma dificuldade em ter respos-tas para a imensa responsabilidade que deveri-am assumir a partir daquele momento, sob oolhar exigente e cobrador do povo brasileiro,como revelava nosso andarilho.

Combinei então com o Geraldo Ribeiro (som) ecom o Chico Botelho, que eu chegaria até ospolíticos com o microfone e perguntaria a elescomo é que ficava o país agora. E quando elescomeçassem a responder, a câmera deveria sair,deixando-os falar sozinhos. Era um desrespeitocalculado, só possível numa democracia...Era, ao mesmo tempo, a revelação de que nadado que eles falassem importava naquelemomento, nada teria peso algum, soluçãonenhuma. Só perplexidade.

O Waltinho (o cineasta Walter Rogério) montoua seqüência como uma cacofonia épica, uma ma-ravilha de montagem, cortando os planos empedaços de até dois ou três fotogramas emmuitos momentos.

Depois de São João del Rey, nós voltamos aBrasília, para complementar o trabalho. Eu que-ria ouvir alguns depoimentos e filmar a primeira

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subida na rampa do Presidente Sarney, final-mente um civil, depois de 22 anos de ditaduramilitar. A cena deveria ser editada em seguidaao enterro, depois do pesado e exigente discur-so de Ulisses Guimarães, cobrando do novo go-verno o cumprimento das promessas da oposi-ção.

A filmagem da subida da rampa foi feita, pois,sob o peso do significado dessas palavras e aimensa expectativa popular. Sarney chega, cer-cado pela guarda de honra e se prepara parasubir. Quase febril, eu mandei o Chico fecharrapidamente a zoom nos pés do Presidente.

Os pés, já em detalhe, se movem vagarosa-mente, como se apenas esperassem nosso sinal,iniciando a subida.

“Nossa, meus pés parecem estar pesando umatonelada” comentou, depois, o PresidenteSarney, assistindo ao filme, comigo, na sala doPalácio da Alvorada. Realmente. E, finalmente,o terror.

Eu havia conseguido um material de TV, comimagens de um dos homens mais perigosos doperíodo final da ditadura: o General NewtonCruz, Comandante Militar do Planalto. Nessematerial via-se um furioso general, ameaçador,

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descontrolado, brigando com jornalistas e obri-gando um deles a se desculpar.

Meu feeling, mais uma vez, ditou o passo se-guinte. Eu queria falar com o general, coisa ini-maginável alguns dias antes. Eu achava que elejá não representava perigo algum, que a insti-tuição da democracia e do poder civil teria des-mantelado completamente com seu podere sua arrogância. A entrevista se deu, com o ve-lho general reduzido a avô, às voltas com seuirrequieto netinho, atrapalhado, aceitando erespondendo perguntas que, pouco tempoatrás, ele teria considerado uma provocação e,eventualmente, me agredido.

Era tão flagrante seu “desmonte” que no diaseguinte ele me atacava pela imprensa, deforma dúbia, não mais se utilizando de qualquerpoder discricionário, mas dos meios próprios,disponíveis numa democracia: na página defofocas políticas do jornal, o general dizia queeu estava usando, indevidamente, com finali-dades privadas, um bem público, o carro daFundação Cultural do Distrito Federal.

O País dos Tenentes

O exercício de fazer Céu Aberto foi importantepara a preparação de meu projeto seguinte, O

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País dos Tenentes. Na verdade, o projeto de OPaís dos Tenentes era anterior, de 85, mas suarealização foi atropelada pelos fatos que origi-naram o Céu Aberto. Eu me inspirara nasfreqüentes notícias, que lia ou ouvia, de mili-tares da reserva que trabalhavam como relaçõespúblicas de grandes empresas, principalmentemultinacionais, facilitando o trânsito dessasempresas junto ao governo militar.

Essa idéia inicial, fria, acabou se entrelaçandocom um sentimento de perda muito forte, umsentimento que eu já havia trabalhado umpouco no projeto de Os Demônios, de 81, e queficou adormecido depois da proibição desseprojeto.Era uma sensação de que havia um ciclo em seufinal, um movimento que caminhava para seufim, tal a quantidade de erros, de absurdos, deimposições, enganos, frustrações, final que euantevia e vivia desde o final da década de 70,desde a anistia. Esse era, em parte, o teor de OsDemônios e essa sensação só se fortaleceu nesseinício dos anos 80 até a retomada do projeto deO País dos Tenentes. Ligando a primeira idéiacom esse “sentimento”, acabei criando opersonagem do velho general Gui, vivido mara-vilhosamente, pelo Paulo Autran. Gui é relaçõespúblicas de uma multinacional e, na juventudeteria participado do movimento tenentista, ao

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lado de Prestes. Isto é, eu trabalhava agora comminha emoção, com a visão de uma decadênciaideológica, um processo de corrupção política,de degradação, ocorrida nesses justos sessentaanos desde a coluna Prestes até a realização dofilme. Isso me fez iniciar o roteiro com o velhogeneral em crise, impossibilitado de juntar asduas pontas de sua formação, os ideais da ju-ventude e a degradação da velhice. Uma crisedeflagrada a partir da homenagem que lhe éfeita pela multinacional justamente no mo-mento de abertura política, quando a popula-ção começa a ganhar as ruas exigindo demo-cracia.

Paulo Autran em O País dos Tenentes

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A homenagem, que na verdade homenageia suadegradação, conflita com os anseios populares.Esse é o conflito exato entre o velho e o jovemGui.

Prestes prefere ficar com a abstração verbal deseu “proletariado”. E o tenente Gui, não vendoum caminho possível ao seu lado, rompe comele e adere ao vitorioso Getúlio Vargas, incor-porando-se ao Estado.

Eu tinha uma visão crítica do caminho propostopor Prestes, na verdade uma inviabilidadehistórica gritante, num país onde o proletariado,se existisse, seria uma minúscula facção dostrabalhadores urbanos, de São Paulo. Seudiscurso contra Getúlio, dizendo que ali nãohavia uma revolução por que não via ali oproletariado, os camponeses, era uma impor-tação política, sem qualquer fundamentonacional, qualquer embasamento real.

É importante entender, como está no filme, quea imposição política errada, o convite a aven-turas irrealizáveis, praticamente obriga aliadosmenos ideologisados, mais vacilantes, a segui-rem caminhos mais seguros, mais à direita. É ocaso do jovem revolucionário Gui (FlávioAntônio), em contraposição ao seu amigoprestista Pena, como se pode ver no diálogo em

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meio às massas, quando cai a parede na repre-sentação da revolução de 30, diálogo que mar-ca o rompimento entre eles. O diálogo é inspi-rado na própria declaração de Prestes, ao recu-sar o comando militar da insurreição de 30. Naficção de O País dos Tenentes, o tenente Penafica com Prestes e Gui com Getúlio. O primeiroradicaliza suas ações e o segundo se corrompena fatídica integração do revolucionário com oestado forte, fechado, do getulismo (de certamaneira, como eram também os estados socia-listas, fechados, fortes, auto-suficientes, apesarde origens distintas mas que, da mesma manei-ra, deglutiram seus heróis e as idéias revolucio-nárias de que se originaram).

Leon Cakoff como Getúlio Vargas

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O personagem de Pena, para mim é muito im-portante. Eu não queria fazer o filme se com-prometer com o historicismo, queria que obe-decesse a esse meu sentimento. Então, para nãotratar de Prestes como personagem ficcional, euo coloquei como uma figura, uma referência,representada pelo ator Cassiano Ricardo que,aliás, depois disso foi fazer também o Prestesna novela Kananga do Japão, dirigida pelaTizuka Yamasaki... Então eu criei o prestista Pena(Buza Ferraz), com o nome relacionado ao sen-timento de quem se sacrifica para jogar, sobreo outro, seu suposto inimigo, a culpa.

É o que ele faz com seu ex-amigo Gui, provo-cando a polícia e os integralistas na igreja, nodia do casamento de Gui com sua prima (GiuliaGam, em seu primeiro papel no cinema).

Aliás, para os que me acusaram de “facilitar ascoisas”, fazendo Gui tomar a ex-namorada dePena, é bom rever o filme e verificar que, explici-tamente, Pena oferece a prima a Gui, dizendoque era apenas amigo dela. Pena, radical,obsessivo, messiânico, jamais se permitiriaqualquer felicidade, preferindo o sofrimento e,depois, a exposição acusadora de sua chaga.

Não consegue sua revolução, mas consegueculpar seu amigo e enlouquecer sua prima. O

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filme era um desafio imenso para mim, maseu não pensava nele como um projetoracionalista, de fácil explicação: queria quefosse como uma revelação, a exposição do queeu estou chamando de um sentimento de per-da, de fim. Por isso, quem sabe, o personagemcentral, em crise, é “um outro”, isto é, não umpersonagem de esquerda, correto, mas o ho-mem comum, aprisionado pela política e quese corrompe na sua prática, na sua adesão aoestado.

Claro, a receptividade ao filme foi extrema-mente dividida. Afinal, eu estava falando de nósmesmos, falando de elementos fundamentaisde nossa história, do passado e do presente,ficcionando o próprio momento em que filmava,ou seja a transição democrática.

E, ao contrário do que muitos podiam esperar,eu não estava afim de vangloriar as lutas dopassado, nem de cantar a vitória contra osmilitares. Eu estava interessado na crise, na faltade perspectiva, no apodrecimento, justamenteno momento da transição política. Isso provocoureações significativas.

De um lado gente que se apaixonou pelo filme,de outro pessoas que não me perdoavam porter cometido dois pecados. Um deles, segundo,

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por exemplo o crítico da revista da Embrafilme,o de que eu mostrava um general bonzinho, oque, diz ele, “não condiz nem com a história doJBA nem com a minha”. Para se ver a que nívelpode baixar a “crítica” (que aliás era de umarevista de divulgação, produzida pela distri-buidor do filme!). O general “bonzinho” é o Guique, vendo-se à beira da morte, se deixa envol-ver pela sua memória, repassando o longo pro-cesso de apodrecimento, de corrupção, que con-sumiu sua própria história. Para esse tipo de críti-ca, a revisão crítica de uma vida só vale quandoé feita pela esquerda ou, quem sabe, por perso-nagens que o crítico aprova.

Quem sabe se eu tivesse pedido sugestão a ele,antes de filmar...

O outro suposto pecado foi não ter feito do filmeum épico centrado no Cavaleiro da Esperança eter, pelo contrário, justamente mergulhado numfilme de crise.

A polêmica era incomodatícia, como sempre.Mas era inevitável. A primeira exibição do filmese deu em Fortaleza, no Festival, em 87. Comoacontecia sempre, dividiu as opiniões. E assimfoi sua carreira por todo o país, dividindo aprópria crítica. No Rio, uma crítica elogiosa noJB, outra ruim em O Globo.

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No Paraná, uma crítica excelente num jornal,uma tipo “cobrança” no outro. O crítico RicardoCota, por exemplo, no jornal O Estado do Paraná,diz: “O filme de João Batista perturba (...) fatoque em nenhum momento desmerece a obra,pelo contrário, dá a ela uma originalidade infe-lizmente poucas vezes vista nos filmes brasilei-ros que enfocam temas históricos”

A mesma divisão por todo lado, com textos al-tamente elogiosos e outros ruins, cheios de co-brança. O próprio Prestes apoiou o filme, ape-sar dele não ser, de maneira alguma, “prestista”.Ele nos acompanhou no lançamento em SãoPaulo e no interior, onde fez debates prolonga-dos com estudantes. Também o jornal dirigidopor seu filho, Luiz Carlos Prestes Filho, fez criti-ca mais do que elogiosa ao filme.

E em São Paulo recebi, como sempre, críticaselogiosas e destruidoras. Destruidora foi a críti-ca da Folha de S. Paulo, feita por Amir Labaki eque mereceu uma resposta minha que a Folha,democraticamente, publicou no dia seguinte,sem comentários, sem resposta e com o mesmodestaque do artigo do Labaki, já que eu o acu-sava de ter feito a crítica sem ver o filme.

Elogiosas, eu tive, em São Paulo, três das me-lhores de todas as críticas ao filme. Uma do Jean-Claude Bernadet, que começa dizendo:

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“...o filme fala muito de nós e exige uma re-flexão sobre nós mesmos (...) uma geração quetem hoje por volta de 50 anos e que certamen-te pode projetar sobre esse filme uma grandeparte de sua história. Eu fico absolutamentesensiblizado pela solenidade do filme e pelasua profunda tristeza, pelo seu ar de réquiem,um réquiem solene. (...) Eu acho o filme de umagrande beleza e é um fracasso nosso que estásendo colocado com esse esplendor formal(...)”

Outra, com um texto maravilhoso como sempre,do saudoso Edmar Pereira, no Jornal da Tarde.Um elogio do tipo “placa”, sob o título“Talentoso jogo de imagens e metáforas. Paraprovocar reflexão”:“João Batista de Andrade (depois do perspicaze amargo Céu Aberto...) bate agora mais fortee fundo. Mergulha num passado histórico decadáveres insepultos ou de sobreviventes quese movem ou são movidos até hoje como numsinistro teatro de marionetes”.

E o outro texto, também altamente elogioso,n’O Estadão. É a crítica do Mauricio Stycer naqual, ao lado de críticas a elementos secundáriosdo filme (sobre o elenco de apoio, consideradopor ele como “novato”), tece claro elogio aofilme, com frases do tipo:

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“...trata-se do filme de um diretor que se en-controu com a maturidade. O País dos Tenen-tes, antes de qualquer discussão que provoque,é um cuidadoso ( e quase sempre bem sucedido)exercício de cinema; uma feliz conjugação deintenções e resultados provo-cantes, uma bri-sa...” ou“Fotografia impecável (Adrian Cooper), ceno-grafia de época convincente (Marcos Weinstok)(...) música brilhante ( de Almeida Prado) dão aO País dos Tenentes uma consistência rara nocinema tupiniquim”, e ainda, arrematando aboa crítica:“O País dos Tenentes vence o desafio de reno-vação a que se propôs o diretor João Batista deAndrade.”

No alto da mesma página, no mesmo dia daelogiosa crítica, o Caderno 2 d’O Estadão pu-blica uma provocante entrevista comigo, comminha cara imensa, carregada de expressõesfaciais típicas de quando falo - e a manchete:Algo Podre no Ar do Brasil. Nessa entrevista,falo do sentimento de apodrecimento dos ide-ais, do fim da militância e de um pretenso po-der militante sobre a História, de como a His-tória consumiu ideais nesses sessenta anos(estamos em 87, antes da queda do muro deBerlim), desde a rica época em que se deu otenentismo. Quando Stycer me pede para defi-

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nir o filme eu digo: “É uma overdose de apo-drecimento”.

Além de tudo isso, O País dos Tenentes recebeucinco prêmios no Festival de Brasília/87 e o demelhor filme pelo Júri do RioCine, no qual con-corriam todos os filmes lançados naquele mes-mo ano.

É realmente preciso ter paciência com essamania de julgar colocando-se acima do filme edo cineasta, geralmente a serviço de supostosleitores que necessitariam da palavra do críticopara ver ou não o filme.O cinema brasileiro é assim: os que menosparecem saber são os cineastas. Todo mundosabe mais do que nós, sabe melhor os filmes quedeveríamos fazer, como fazê-los. Todos pensamque, colocando-se em nosso lugar, fariammelhor. E se o filme vai mal no mercado é porque é ruim: se não se pode dizer que é ruim, éelitista, fechado. Se o filme vai bem é por que épopularesco, desprezível.

Mais ou menos o que acontece com certaspessoas quando saem do cinema sem gostar dofilme. Se o filme é estrangeiro dizem simples-mente que não gostaram. Se é brasileiro, mesmoque tenham gostado de outros recentes, areação é generalizante: “o cinema brasileiro não

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tem jeito: é uma merda mesmo”. É preciso ma-tar mais do que um leão por dia.

Há um outro tipo de postura, essa mais populare não crítica, por parte muitas vezes do próprioprúblico do cinema brasileiro, de amigos, fãs,gente que torce por nosso cinema. São pessoasincomodadas com nossa crônica inviabilidadeapesar de tantos sucessos, tantos prêmios.

Nós, os cineastas, convivemos com essa inquie-tação e muitas vezes somos provocados ou co-brados para uma explicação. Todo mundo achaque sabe mais do cinema brasileiro do que nós,que as fórmulas são simples, que é só seguir obom senso e, muitas vezes, as idéias de nossosinterlocutores para sairmos das dificuldades.

Um amigo meu, advogado, um dia me ligou paradizer que tinha uma idéia genial para filme eque precisava me contar, pois com aquela“idéia” eu ia “rachar de ganhar dinheiro”. Comose fosse isso, exatamente, o que eu andavaprocurando pela vida: “ganhar dinheiro”,“estourar a boca do balão”, “chegar lá”.

Mas fui falar com meu amigo, já antevendo acena e me contendo, pois dou às vezes de sermalcriado diante de sugestões, pedindo aoconselheiro que levante o dinheiro para a

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produção e depois me chame para realizar a“grande idéia”.

Meu amigo me sugeria fazer um filmemisturando política e carnaval. Ele estivera naÁfrica e garantia: “com um filme desse tipo, vocêracha de ganhar dinheiro. Angola e Moçam-bique compram na hora”. Eu não pude deixarde rir.

É que, além de tudo, meu amigo não sabia queo mercado de Angola e Moçambique era supri-do em boa parte com nossos filmes, inclusive osmeus, doados, de graça, dados, porque eles nãotinham como pagar e precisavam de filmes paraocupar as salas depois da descolonização. Era oque acontecia também com a Nicarágua.

A mania de sugerir temas, maneiras de agir, deproduzir, de realizar, dirigir, atuar, distribuir, éhábito nacional. Tal como no futebol, temos noBrasil uma centena de cineastas e milhões decríticos.

Essa questão da crítica - falo da crítica profis-sional - tive ocasião de discuti-la na França, noFestival de Biarritz/88.

O País dos Tenentes foi convidado e muito bemrecebido. Os jornalistas me convidaram, depois,

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para um encontro, na tarde do dia seguinte. Nósalmoçamos juntos e a conversa foi das mais agra-dáveis possíveis. Eu vi que eles haviam entendi-do o filme como eu queria, como o retrato deuma crise, o anúncio antecipado de um fim. Omuro de Berlim agora já havia caído (naqueleano) e as mazelas do socialismo real afloradascom a violência cruel de uma realidade oculta-da por tanto tempo: a degradação ideológica, acorrupção, a mentira, o fim dos ideais revolu-cionários que, sessenta ou setenta anos atráshaviam movimentado a juventude das, agora,envelhecidas, corrompidas e podres autoridadessocialistas.A conversa era sobre isso. Os jornalistas seintrigaram com minha visão da política e sobrea relação forte do filme com o momento queainda estávamos vivendo, incluindo o fim daditadura militar no Brasil.

A mesma receptividade se deu também um anodepois, numa turnê feita na Alemanha, em setecidades, debatendo o filme. O assunto do debatetambém não era outro, as discussões não tinhamfim, eu precisava sempre pedir para parar.

Mas, voltando ao encontro com os jornalistasem Biarritz, um deles me perguntou como ofilme fora recebido no Brasil. Eu falei dapolêmica, das críticas elogiosas. E das outras, de

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absoluta negação do filme. O jornalista se es-pantou: “Mas negar o filme por que? - Vocêpode gostar mais ou menos, pode não ser o gê-nero de sua preferência, pode desgostar de umacoisa ou outra, mas arrasar o filme? Por que?”

Eu disse a ele que, para entender, ele teria queser brasileiro.

Making off

Fazer cinema no Brasil é, ao mesmo tempo, umimpulso de paixão e um gesto de teimosia.Paixão e teimosia se complementam bem, comoa sensação de que existimos apesar de tudo,apesar da inviabilidade, compelidos pelo prazerde filmar e pelo prazer de mostrar que somoscapazes de filmar.

O cinema brasileiro é essa conjugação desentimentos e em muitos momentos só oscineastas acreditam neles mesmos, gesto maiorde teimosia. O prazer de filmar é incompa-ravelmente maior do que os horrendos dis-sabores das críticas ruins, das dificuldades deexibir, do insucesso de público.

Eu me lembro, como num making-of nãorealizado, do dia em que filmei a cena principalda Coluna Prestes, na Reserva de Águas Emen-

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dadas, em Brasília, com centenas de figurantes,centenas de cavalos, carroças, além dos atoresque representavam Prestes, Siqueira, MiguelCosta e outros, além dos personagens da ficção,Pena e Gui.

Tudo era muito maluco, os ônibus chegando aoamanhecer, com os figurantes que a Tânia La-marca colocava em forma, mandava-os vestir asroupas de época e depois os fazia rolar no chãopara sujar. Os cavaleiros iam chegando, já coma tropa arreada e uma poeira ia tomando contado maravilhoso cenário de Águas Emendadas,cujo nome advém do fato de que dalí, pontoalto do planalto central, correm água para trêsbacias, a do São Francisco, a do Paraná e a doAraguaia/Tocantins.

Eu primeiro fiz umas tomadas do chão e logosubimos num helicóptero, eu e o Adrian Cooper.Filmamos tudo o que precisávamos, esse tipo defilmagem difícil por problemas de comunicação.Cada vez que eu pedia para refazer uma cenaera um Deus-nos-acuda que eu e o Adrianassistíamos com prazer lá de cima, vendoassistentes galopando pelo cerrado, a poeira,os figurantes se reorganizando.

Mas quando terminamos de filmar, o sol já sepondo, vimos que alguma coisa estava errada.

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Os figurantes se reuniam, arrancavam as cargasda tropa, partiam melancias jogando-as no chão.Era uma coisa estranha, como uma rebelião.

O helicóptero desceu e pudemos saber o que sepassava: a comida não havia chegado por causade um acidente com o carro que trazia os cal-deirões. E os figurantes então resolviam o pro-blema a seu modo, comendo nossos objetos decena: melancias, bananas, jacas, rapaduras.Eu fiz a loucura de deixar a equipe e me mistu-rar aos “revoltosos”, afinal eles agora represen-tavam mesmo os personagens que estávamosfilmando. E a luz era divina, a hora mágica, dou-rada, atravessando a poeira transformada emaura mítica, um espetáculo de emocionarqualquer cineasta, com aquelas centenas depessoas vagando pela estrada de terra, comovisões em meio à névoa do cerrado.

Os figurantes me reconheceram e nenhum delesesboçou qualquer agressão, qualquer queixa.Muitos se aproximavam para caminhar comigo.E caminhávamos silenciosos, como se respei-tando nossos próprios sentimentos, flutuandona poeira. Estávamos todos tomados igualmentepela magia do cinema.

Não é novidade essa adesão de toda a equipe edo elenco, incluindo aqui os figurantes, ao fil-

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me de que participaram. É comum recebermostelefonemas de atores de pequenos papéis, aju-dantes de set, figurantes, falando de “nosso fil-me”, sempre com entusiasmo. De fato, o cine-ma é uma arte coletiva, onde o diretor exerce opapel de orientador, líder, apontando o cami-nho a seguir. Todos se sentem, cada um a seumodo, autor do filme. Durante as filmagens deDoramundo um figurante demonstrou bem apaixão por fazer cinema, mesmo que essa parti-cipação seja uma breve figuração ou uma lon-gínqua assistência. O figurante fazia a cenanoturna em que um operário é morto nos tri-lhos. Ele cai, aparece morto, cheio de sangue nacabeça. Corta, fim de cena, fim de participaçãodo figurante.

O figurante não se conformava em sair do fil-me. Insistiu comigo, queria que o “personagem”tivesse uma continuidade. Depois de muita in-sistência, eu disse que a seqüência seguinte se-ria o enterro do operário morto. O figurante seiluminou.

- Então eu posso estar lá, no enterro!- Poder pode, mas o corpo vai estar no caixão fechado...- Não importa, o importante é que eu vouestar lá e vou pensar nisso toda vez queassistir ao filme...

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Em O Tronco, há outra passagem que se trans-formou em folclore entre o pessoal de cinemade Goiás. Um dos figurantes assumiu o nomede um pequeno personagem cortado por mim.Ele era um desses apaixonados pela participa-ção no filme e sempre conversava comigo so-bre sua participação, coisa que era comum en-tre os centenas de figurantes que filmavam to-dos os dias. Pois bem, o figurante em questãodevia “morrer” numa das primeiras cenas deataque dos jagunços. O técnico em efeitos decena colocou a espoleta em seu peito e deu aele o disparador, para que ele mesmo acionassea espoleta no momento combinado comigo.Rodamos a cena, todos os que tinham que mor-rer, morreram. Menos ele, que não acionou aespoleta.

Com muito custo eu consegui “matar” o “perso-nagem”, com o próprio efeitista disparando aespoleta, de fora da cena. Mas o figurante, hojemeu amigo, não se conformou. E quando víamoslá estava ele, de farda, misturado aos soldados.O resultado é que teve que ser “morto” váriasvezes . E sempre voltava. Seu apelido hoje éImortal.

Voltando à filmagem de O País dos Tenentes,durou cerca de uma hora a caminhada com osfigurantes rebelados, em meio ao cerrado

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virgem, sob a luz da “hora mágica”. Uma horade real encantamento, de grande paz. Quandochegamos ao centro da produção, no meio doparque, já estava escuro e todos nós, equipe,elenco, figurantes, comemorávamos o diafilmado, com alegria, sem revolta alguma. Comoesquecer uma poesia dessas?

Uma outra passagem engraçada em O País dosTenentes foi a escolha do sósia de Getúlio Var-gas. Nós estávamos esperando, no estúdio daBarra Funda, em SP, a vinda de dois sósias, atoresparecidos com Getúlio Vargas.De repente apareceu lá, para me entrevistar,um jornalista da Folha de S. Paulo. Alguém, narecepção do estúdio, botou os olhos nele e seentusiasmou: era a cara do Getúlio e, portanto,deveria ser um dos sósias esperados. Mandaramo jornalista fazer uma ficha, fotografaram,experimentaram uma roupa: era perfeito. Ojornalista que aceitou o jogo, fazendo o“Getúlio” no filme, era o Leon Cakoff.

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Final das filmagens de O País dos Tenentes

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06. Vlado, quase um filme

Durante as filmagens de O País dos Tenentes,nós tivemos problemas sérios com o Exército,de quem precisávamos de coisas tipo objetos eautorização para filmar no Forte de Copa-cabana. E o que recebíamos era pressão em cimade pressão.

O chefe de gabinete do Ministério do Exércitotentava me fazer desistir do projeto e me per-guntava por que, com “tantos militares idealis-tas” eu escolhera justamente um que se corrom-pia. Uma dessas conversas, que acabavam des-pencando na mais agressiva pressão, se deu jáno set de filmagem, no estúdio da Barra Funda.Foi quase uma hora de conversa ao telefoneonde eu, e depois o Paulo Autran, advertíamoso general que aquela pressão era intolerável,que nós já vivíamos numa democracia e que ahistória brasileira não era propriedade dosmilitares. A conversa amainou um pouco nossocrítico relacionamento, em grande parte, euacho, pelo incômodo do general de discutiraquilo com uma personalidade como o PauloAutran.

Eles não deram os materiais, mas pararam deme pressionar. Não deram o Forte de Copa-cabana, mas deram o outro forte carioca,

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parecido, que tivemos que cenografar. Aliás,muito bem cenografado, segundo nosso con-sultor, o historiador Hélio Silva, que participoudo episódio como jornalista e está no filmerepresentado por um ator que faz anotaçõesnum caderninho, à saída dos oficiais rebelados.

A dificuldade do relacionamento do Ministériodo Exército comigo era agravada por um dadonovo, como me revelou o chefe do gabinete doMinistro: eles sabiam que, depois de O País dosTenentes eu pretendia filmar a história do Vlado.E era verdade.

Eu ensaiava esse filme havia muito tempo, ten-tando me preparar para o que eu julgava ser omaior desafio de minha carreira. Afinal, falardo Vlado, de sua vida e de sua morte na prisão,seria falar da ditadura brasileira, das torturas,das divisões internas do regime. Seria desnudarcruamente o regime militar. Mas, mais do quetudo, seria falar do amigo assassinado. E esseera o desafio maior para mim.

Eu não conseguia manter um mínimo de dis-tanciamento, me emocionava muito ao escrevere acho que o resultado era sempre um excessode racionalidade, do tipo vigilância contra essaemoção. Isso, por outro lado, me fazia tambémmuito dependente de julgamentos, primeiro,

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evidentemente da Clarice, ela que vivia com asensibilidade à flor da pele e sofria pesado comtoda a história. E, além de tudo, estaria envol-vida, como personagem, no filme. Por isso eufiz várias versões, virava e revirava o roteiro semter qualquer visão crítica do resultado. Eu sabiaque o roteiro apontava para o essencial, tinhaidéias ótimas mas sentia que faltava alguma coi-sa, quem sabe um desmonte de toda aquelaracionalidade imposta, quem sabe procurar ofilme numa visão mais próxima da pessoa queera o Vlado e menos preocupada com odesmascaramento da ditadura. Para tentar su-perar isso, pedi a ajuda do Walter Durst, rotei-rista experimentado e amigo. O Durst gostouda versão que eu apresentei a ele e fez um tra-balho de fazer aflorar mais os personagens.

Eu já estava montando o elenco do filme e volteia uma idéia alimentada durante o Fest-Rio de86 ou 87, quando conheci o ator Klaus MariaBrandauer, o mago do Mephisto (Iztvan Szabo/1981). Eu havia falado com ele sobre o projetoe ele gostou. Me pediu para enviar um roteiroe eu enviei o primeiro tratamento, que já tinhacópia em inglês. Ele leu, gostou, confirmou seuinteresse e pediu que eu enviasse o novo trata-mento. Eu cheguei então a fazer o que eu julgoter sido o melhor roteiro, usando o fato do atorser estrangeiro.

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Carta de Klaus Maria Brandauer, confirmando seuinteresse no filme sobre Vlado

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Criei então um duplo do personagem do Vlado,ou seja, o ator que o representaria e que, sendoestrangeiro, tinha a maior dificuldade em en-tender o emaranhado e a violência da história.

Assunção e eu fomos à Europa, para finalizar ocontrato de co-produção com Espanha e Por-tugal. E também para falar com o agente doBrandauer. Conversamos com ele e ele pediuum cachê de 300 mil dólares, que era alto demaispara nós, duros como estávamos. O problema éque o Brandauer estava no auge de sua carrei-ra, preparando um filme que ele mesmo dirigi-ria e também, como ator consagrado, já comconvites do cinema norte-americano, o quedificultava a negociação. Eu liguei para oBrandauer, na Áustria e ele, confirmando o inte-resse, disse que conversaria com seu agente emanteria o contato conosco.

Nós voltamos ao Brasil tomados pela idéia deintensificar o trabalho de captação, de buscarmais apoio da Embrafilme (que já havia se com-prometido conosco). Em 88, enquanto eupreparava o projeto, o jornalista FernandoMorais é nomeado Secretário da Cultura doGoverno Quércia, em São Paulo. Nós éramosamigos do tempo do Hora da Notícia. Fernandotambém estivera envolvido no processo quelevou Vlado à prisão. Ele queria trocar idéias

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comigo sobre uma política pró-cinema em SãoPaulo. Eu dei algumas sugestões e, claro, a gentesó pensa naquilo, acertei com ele um edital paraprodução. O projeto do edital andou, com aparticipação da Apaci e dirigido pelo ClaudioKhans, assessor do Fernando. Eu entrei no con-curso com o Vlado.

No momento em que eu esperava o resultado,o projeto já havia andado bastante, em termosde produção. Nós tínhamos conseguido duasco-produções internacionais: uma com Portu-gal e outra com a TV Espanhola, com os con-tratos assinados e tudo, além do co-produtoriugoslavo que produziria a parte da infânciado Vlado durante a segunda guerra. E nós jácontávamos com um mínimo de dinheiro paracomeçar.

Claro, Assunção e eu contávamos com resultadopositivo no concurso da Secretaria, resultado quegarantiria as filmagens previstas para maio de1990. Nós já estávamos inclusive com locaçãopara cenografar o DOI-CODI, um hospitalabandonado, perfeito, na Vila Madalena. E como elenco apontado.

Faltava, para filmar o Vlado, esse pouco de di-nheiro brasileiro. E Vlado não foi premiado, comum júri formado por pessoas que me conheciam

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bem, sabiam de minha ligação com o Vlado. Atéhoje, claro, eu não consegui entender. Verdadeé que, contido pela ética, jamais questionei qual-quer uma dessas pessoas, como ainda me recusoa cobrar delas qualquer explicação. Só mepergunto sempre, por quê? O filme teria umaimportância incrível naquele momento.

Me pergunto também se o júri julgou o filme ino-portuno. Quem saberá o que aconteceu? Teriahavido alguma pressão? Os jurados não gosta-ram do projeto, apesar do mesmo já contar comduas co-produções internacionais? Difícil adivi-nhar. Só sei que isso me deixou arrasado.

Mas reagi e fomos buscar apoios em outros lu-gares. Coisa difícil para um filme como esse. Paracomeçar desisti do Klaus Maria Brandauer e co-mecei a procurar alternativas brasileiras. Era di-fícil tocar o projeto dessa maneira e a própriarelação com os atores passava e ter a marca des-sa dificuldade, um certo desânimo. Eu busqueivárias alternativas para o Vlado, pensei noWilker, pensei numa versão dele mais jovem,com o Paulo Castelli e chamando a Ana BeatrizNogueira, atriz do ótimo Vera de Sérgio Toledo,para representar Clarice. Na verdade eu me sen-tia num emaranhado de dificuldades, agindocomo quem já não acreditava mais na viabi-lidade do filme.

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O atraso do filme foi fatal: Collor tratou de en-terrar o projeto, seqüestrando o pouco de di-nheiro que havíamos conseguido a duras pe-nas. Voei para Brasília, em vão, procurando li-berar os recursos, falando com ministros, secre-tários. Ali, na verdade, eu estava era perdidonum mar de perdas de todo o tipo, o Brasil in-teiro tentando reverter o desastre das perdasde cada um.

O cinema estava, já, sob o domínio do cineastaIpojuca Pontes, assessorado pelo também cine-asta Miguel Borges. Os dois jogavam pesadocontra o cinema brasileiro, marcados porequívocos políticos e pelo ressentimento. Ogoverno Collor, de uma só penada, haviaacabado com a atividade cinematográficabrasileira, deixando o terreno livre para o filmeestrangeiro, ou seja, o norte-americano.

Em conversa com o Ipojuca e o Miguel eu aindafui admoestado, na medida em que procuravaabrir uma exceção, liberar os recursos do filme.Eu alegava que isso acarretaria justamente nocancelamento das duas co-produções e,portanto, além do prejuízo cultural, uma perdade entrada de dinheiro no país. O que ouvi foique, mais uma vez, “o cineasta quer ser oprivilegiado...”

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O projeto Vlado se inviabilizou de vez, criandoproblemas de todo tipo, inclusive com a TV Espa-nhola que chegou a insinuar uma ação indeni-zatória contra nós. Eles também distribuiriam ofilme internacionalmente e haviam já divulgado,em Cannes, o novo projeto. Mas a própria TVentendeu a história e fizemos um cancelamen-to amigável, sem multas.

Nós já havíamos investido na preparação e aindaestávamos com dívidas a pagar, o que nos deixounuma situação terrível, do mais humilhante des-monte.

Para mim, eu confesso, ficou a sensação ambíguade alívio. Eu havia lutado enquanto pude lutar,mas o filme se inviabilizara assim mesmo, umainviabilidade mais forte que meu esforço, maiordo que eu julgava ser meu dever. Eu estava,assim, livre de todas as pressões que já sofria eque ainda sofreria, ninguém poderia saber olimite dessa opressão. Estavam livres tambémClarice e os filhos, André e Ivo, eles que sempreme apoiaram, apesar do evidente sofrimentoligado a esse apoio e à idéia de remexer emcoisas tão dolorosas e, ao mesmo tempo, preci-osas, de suas vidas. Foi um momento de criseprofunda, de desistência.

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Eu não queria ver ninguém, não queria conver-sar sobre nada. Até mesmo porque era irritantefalar de uma perda como essa e ouvir, qualquerque fosse o interlocutor, seu próprio relato deperda, fosse a compra de um carro, uma viagemperdida, a “idéia” soterrada de um curta, areforma da casa. A solidariedade me jogavanuma vala comum de perdedores, um pântanoonde tudo se eqüivalia, já que tudo era perda,do alfinete ao navio.

A esse sentimento de extrema opressão, se jun-tava um outro, tão sofrido quanto o primeiro: osentimento de perda de sentido, o tempo de verse demoronarem todos os sonhos e todas as cer-tezas, o fim do socialismo.

O tombo, mais do que simbolizado pela der-rubada do muro de Berlim e das imponentesestátuas de Stalin e Lenin, foi imensamentemaior do que o que desejavam as críticas de meugrupo “light” do partido. Nós fazíamos críticasao socialismo “real”, ou seja, o existente, masnunca negamos o conteúdo revolucionário deorigem desse socialismo. E jamais passaria pelanossa cabeça uma crítica de conseqüências tãoavassaladoras. Nós queríamos “consertar” osocialismo e a História simplesmente acabou comele. As emoções se misturavam, era, de fato, umcoquetel dolorido.

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Eu, como já confessei, estou sempre propensoao sofrimento. Os problemas se acumulam emminha vida e eu nunca vejo como socializar asdificuldades, tudo se transforma em um desafioa cada dia mais poderoso, mais difícil mas queeu devo resolver, ou tentar resolver, sozinho.Daí, acho eu, o gênio explosivo capaz de des-truir, num repente, uma amizade, um trabalhopacientemente construído, um projeto demora-damente costurado. Ou de me sentir magoadopelo abandono, pela incompreensão de meuspróprios amigos.

Eu só pensava em fugir, desistir de meu nome,de minha carreira, de minha visibilidade comocidadão e como cineasta.

Era um momento de derrota, mais uma vez,onde o sentimento me empurrava para o becoda impossibilidade, me mostrava a absolutainviabilidade de minha vida, de meus sonhos,de minha carreira que se frustrava no ápice deum processo de ascensão. O que eles haviamtentado em 64, cumpriam agora, em 90.

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João Batista com Francisco Ramalho Jr.

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V - Tempo de Retiro, Tempo de Retorno

01. Saindo do que era meu

Num dia qualquer ainda de 1990, convideiAndré Klotzel, meu ex-aluno e agora o novopresidente da Apaci (Associação Paulista de Ci-neastas) para uma conversa em minha casa. Na-quele ano, depois de mais de quinze anos demilitância eu havia recusado a inclusão de meunome na diretoria da entidade. O André era umdos novos cineastas paulistas, tinha trabalhadocomigo na produção no piloto de série para TV,o Alice e agora já contava, em seu currículo, como sucesso do Marvada Carne. Quando o Andréchegou, eu entreguei a ele um pacote pesadode pastas: eram os arquivos da Apaci: docu-mentos, recortes de jornais, textos, coisa dequinze anos de militância (eu sempre fora oprincipal contato da Apaci com a imprensa).

“Você está caindo fora?”- me perguntou oAndré. Eu estava.

Além da aguda crise pessoal, eu achava que aApaci e a política do cinema de São Paulo deviamagora ser tocadas pelos novos cineastas. Eu meafastaria e queria que também o Denoy seafastasse, coisa que ele, aliás, não fez.

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Durante quinze anos ele e eu havíamos atuadojuntos, uma atuação marcada pelas tentativasde superar as dificuldades de relacionamentocom os novos, com a Boca, com o Cinema Novo,com os novos cineastas cariocas, com osprodutores. E lutamos para manter a Apaci comouma entidade digna, politizada, presente, éti-ca. E democrática, apesar do peso excessivo denossa presença. Particularmente a minha presen-ça, em geral mais impositiva do que eu gostariaque fosse - e marcada, mesmo antes da criaçãoda Apaci, pelos conflitos com meus alunos daECA, onde fui professor de Realização Cinemato-gráfica (de 1969 até 78).

Eu sempre tive uma maneira um tanto incisivade agir e de opinar, as opiniões saem com faci-lidade excessiva, principalmente diante depessoas que me interessam.

Quando fui para a ECA, em 69, eu estavabastante desestruturado, tinha projetosmalucos, como filmar Assim Falava Zaratustra,de Nietszche. Eram projetos ainda muitomarcados pela experiência de Gamal e por umacurta aproximação com o Grupo Oficina.

Mas a partir do início dos anos 70, principal-mente a partir de meu trabalho na TV (72), eulutava muito para que os alunos desenvolvessem

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um trabalho documental, que procurassem des-cobrir o Brasil que, entendia, estava despon-tando nesse início de redemocratização.

Eu queria que os alunos pegassem as câmeras efossem filmar as pessoas, os bairros, descobriras questões sociais. Eu era extremamente críticona avaliação dos trabalhos que a maioria reali-zava, achava-os alienados demais para o momen-to em que estávamos vivendo. As aulas, então,se tornavam uma discussão sem fim, muitas ve-zes acalorada.

O que eu custei a ver, na verdade, foi que aabertura, para a maioria dos alunos, despertavaa vontade de outro sentido de liberdade, o detentar outros caminhos, outras formas, nãoexatamente no sentido “militante” que eu davaao meu trabalho nos primeiros anos de TV, naCultura. E nem documental: a ficção os atraíamais.

Mesmo assim alguns alunos, como o ReinaldoVolpato, o Wagner Carvalho, a Tânia Savietto,desenvolveram, sob minha orientação, projetosdocumentais como, por exemplo, o filme Bóias-Frias. Mas minha posição política, e minhaspreferências nunca eram bem vistas. Paracomeçar, o diretor da escola era o mesmo Ferrique me perseguia na TV Cultura.

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Na ECA ele chegou mesmo a me ameaçar, porofício, com o 477, o decreto da ditadura quepermitia a cassação de professores e alunos porsub-versão. O resultado é que os projetos comigoandavam sempre com maior dificuldade egeravam muitos conflitos.

Minha relação com esses novos cineastas sem-pre foi marcada por esses conflitos. Um dia,logo após o Festival de Gramado/78, que pre-miou Doramundo, me despedi dos alunos nasala de aula, dizendo que não tinha mais nadaa dizer a eles. Muitos deles já trabalhavam co-migo, como o próprio André Klotzel, o ReinaldoVolpato, o Adilson Ruiz, a Suzana Amaral, oWagner Carvalho, o Wilson Barros, que tinhasido meu assistente no Em Cada Coração umPunhal (69) e outros, como a Tânia Savietto, oJunior Carone, o Djalma Batista, o Alain Fresnot,o Gal (Luiz Alberto Pereira), o Augusto Sevá,ex-alunos que trabalhariam anos mais tarde emalguns de meus filmes ou em nossa produtora,a Raiz.

Naquele dia de despedida eu saí da sala e,extremamente aliviado, entreguei na secretariameu pedido de demissão. Esses conflitos, noentanto, não diminuíam a intensidade de nossorelacionamento político e cinematográfico.Por exemplo, quando Tancredo vencia o Colégio

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Eleitoral, elegendo-se presidente, nós nos mobi-lizamos intensamente no sentido de umareformulação da política cinematográfica bra-sileira. O novo governo, já com Sarney, cumprea promessa de Tancredo e cria o Ministério daCultura, entregue a seu idealizador, o mineiroJosé Aparecido de Oliveira.

Com a mobilização geral dos cineastas, o Minis-tro resolveu criar comissão de estudos e me de-signou como coordenador dessa comissão, jun-to com Zelito Viana e Calil (Carlos Augusto Calil),na ocasião diretor da área não-comercial daEmbrafilme. As entidades de cinema se propu-seram a indicar nomes para a Embrafilme. Fei-tas as assembléias em vários estados, eu ob-tiveo maior número de indicações, seguido do Calil,do Zelito e do Gustavo Dahl. Isso reforçou omovimento paulista e possibilitou a expansãode nossas teses com relação à descentralizaçãoe democratização da política cinematográfica(teses que, na verdade, justificavam o grandenúmero de indicações feitas de meu nome).

Na verdade eu não queria ir para a Embrafilmede jeito nenhum. E o próprio Ministro percebeuisso, comentando com o Ziraldo que “eu tinhajeito, tinha liderança, mas não aparentavavontade” para ocupar um cargo, segundo mecontou o próprio Ziraldo. Por outro lado, meu

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nome criou uma tensão no cinema carioca, prin-cipalmente entre os produtores maiores, commuito mais tradição, para os quais eu levariapara a Embra um certo tom autoral, não empre-sarial.

Eu tentava articular um apoio ao Calil, em trocade uma política descentralizadora e mais demo-crática. Para isso nós sempre nos falávamos, acer-tando os apoios e os compromissos, eu dizia aoCalil que, ao final, o apoiaria. Até que, com oapoio de todo mundo, conseguimos um acordo.Calil e eu estávamos em São Paulo, do lado dotelex da Embrafilme. Os produtores e diretoresdo Rio na Embrafilme do Rio (sede) e outros ci-neastas em seus estados. Nós nos comunicáva-mos por telefone e telex, imprimindo os termosdo acordo nacional pelo qual o Calil iria para adireção da Embrafilme e eu presidiria o Conse-lho Administrativo, cargo que não meinviabilizaria como cineasta.

Tudo foi feito, o Calil foi nomeado, empossado.E a primeira coisa que fez, atendendo a pressões,foi extinguir o cargo de presidente do ConselhoAdministrativo... Eu pessoalmente não meincomodei, realmente não queria cargo algum.Mas o golpe foi mais uma revelação da maneiracomo se costuma fazer política no cinemabrasileiro.

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Em 1990, baqueado pelo efeito Collor que haviainviabilizado meu filme Vlado e, como eu disse,querendo me afastar definitivamente da políticacinematográfica, decidi sair de São Paulo.

Haviam se passado 12 anos desde meu pedidode demissão da ECA e muitos dos novos cine-astas que ali estudaram já desenvolviam suaspróprias carreiras, alguns mesmo já premiadose conhecidos, como o André Klotzel (A MarvadaCarne), o Sérgio Bianchi (Maldita Coincidência),o Wilson Barros (Anjos da Noite), Djalma Batista(Asa Branca), e Suzana Amaral (A Hora da Estre-la, produzido pela Assunção). A esses filmes sejuntavam títulos de novos talentos surgidos forada ECA, como o Hermano Penna (Sargento Ge-túlio), o Guilherme de Almeida Prado (A Da-mado Cine Shanghai, também produzido pela As-sunção), o José Antônio Garcia e o Icaro Martins(A Estrela Nua), o Roberto Gervitz (Feliz AnoVelho), o Sérgio Toledo (Vera), além dos vetera-nos da ECA, da primeira turma e que não forammeus alunos, como o Aloysio Raulino (NoitesParaguayas) e o Chico Botelho (Cidade Oculta),já com carreiras definidas.

E muitos ainda mais novos, com seus curta-me-tragens, como a Tata Amaral, o Cecílio Neto, oChiquinho (Francisco César Filho), a Lili Caffé, oIvo Branco e outros.

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São Paulo fervia de projetos e de renovação,processo que nem a crise collorida conseguiudestruir. E com uma diversidade muito grandede propostas, de tipo de cinema, de novidades,coisa com a qual eu realmente aprendi aconviver e a gostar.

Depois da crise Collor, eu achava que os novosdeveriam se apossar do que era deles. E o André(Klotzel), agora presidente, que se virasse...

Num outro dia qualquer daquele ou do ano se-guinte, eu enchi meu carro de coisas pessoais,coloquei no bolso o dinheiro recebido, em espé-cie, pela venda de meu sítio na cidade de Juquiá(Vale do Ribeira/SP) e saí de madrugada, comminhas tralhas pensando em refazer minha vida.Se possível, sozinho.

Os filhos, Fernando e Vinícius já estavam naUniversidade e, na verdade acostumados àsminhas freqüentes viagens. Só que desta vez aviagem prometia não ter volta.

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02. Perdido no meio do cerrado

Eu sempre gostei de terra, sempre tive uma chá-cara, um sítio, uma encrenca dessas em algumlugar difícil. É um viés familiar, quem sabeherdado da luta inútil de meu pai em recuperaras terras perdidas por ele, irmãos e mãe, depoisda morte de meu avô quando meu pai tinhaapenas 12 anos. Quem sabe pela vivência nocampo, a infância em Ituiutaba, região de cer-rado, a paisagem do tempo que nunca se apaga.As frutas silvestres que conheço e das quais gos-to tanto, como gabiroba, mamica, mangaba,curriola, o jatobá, o araticum, bacoparí, cagaita,cajuzinho, ingá, guapeva, o coco da gueroba, amacaúba, o babão, o azedinho, o piquí, a quina,o ácido gravatá, o ananás, o olho de boi, murçá,a pitanga, jabuticabinha, o araçá, a fruta dotatu, o chichá, as plantas medicinais, as flores,os bichos do cerrado. Eu gosto de tudo isso masa vida me empurrou foi para a cidade. Eu sou,de fato, um migrante. E, como todo migrante,fui me distanciando de minhas raízes até oesgotamento do projeto de conquista, deenfrentamento da grande cidade. É impossívelapagar as impressões de infância e aos poucosa vontade de voltar toma nossa vida. A velhicevirá com um dos dois sofrimentos: o daimpossibilidade de voltar ou o do doloroso epraticamente inviável processo de volta.

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Meu irmão tinha uma fazenda no sudoeste deGoiás, na cidade de Doverlândia. E eu fui paralá, com a idéia de me encostar, fazer qualquercoisa e, se desse, comprar um pedaço de terracom o dinheiro que eu levava e o próprio carro.Eu fiquei em Doverlândia até 93, deixando ali amaior quantidade de amigos por metro qua-drado que eu jamais pude conseguir em minhavida. Dali fui ainda para mais longe, a lendáriaBarra do Garças, beira do Araguaia, onde fiqueimais dois anos.

Era muito louco tentar apagar um passado, ten-tar apaziguar tantos demônios. Eu morava sozi-nho numa casa, passava dias ali, ia pouco à cida-de e escrevia sem parar, na verdade, incapaz demudar de profissão. Fiz amigos por toda partemas as pessoas sempre me olhavam cheios deperguntas nunca feitas, o que é que eu fazia,de fato, ali naquele ermo de mundo, andandoa cavalo, capinando quintal, participando derodas de conversas cotidianas nas quais osassuntos eram os de sempre, o gado, a pesca, acaça, mulheres.

A solidão dessa meio-fuga meio-busca era umaespécie de reencontro com minha infância, aforte presença de meu pai em minha formação.Uma presença estranha, pois se dava mais pelaausência dele do que pela convivência.

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Meu pai, às voltas com seus próprios demônios,a dificuldade de vencer os desafios que a si mes-mo endereçava, a derrota como o fantasma per-turbador, que alimentava seus sonhos desdecriança. Meu pai se isolava em suas terras arren-dadas, numa luta desigual com a natureza e comseu próprio destino de quem jamais pode esque-cer que um dia, com apenas 12 anos, perdera opai e, com ele, a fortuna e o poder, dilapidadospela inépcia comercial de minha avó e pelasmãos de “amigos” e parentes ambiciosos.

Era assim. Meu pai era essa ausência marcante,um oco que eu me via obrigado a estar semprepreenchendo com o que eu conhecia dele. E denada adiantavam suas voltas à cidade, o tempoque passava conosco. Ali era o domínio de minhamãe, leoa. E meu pai era só explicações, difi-culdades, discursos. Meu pai, o verdadeiro, eraaquela solidão do ermo, onde podia enfrentarsozinho as inquietações de seu espírito incon-formado, místico, sofrido.

Em vão, no entanto, eu tentei viver essepersonagem. Seria uma saída possível, a solidãoé parte de minha personalidade. Mas não étudo. É impossível viver cheio de segredos,imagens, idéias - e aceitar morrer com elas, nosilêncio. Esse, aliás, é o azar de criminosos ementirosos.

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É difícil levar o segredo para o túmulo. As idéi-as, tal como os segredos, criam ninhos em nossaimaginação, derramam emoções permanentes,insultam nossa capacidade de controle, seinsinuam, ameaçam sair do corpo a todo ins-tante, exibem sua sensualidade diante dequalquer deslize da guarda pretoriana que nosprotege dos perigos da exposição pessoal.

Morrer com idéias, sonhos não revelados, segre-dos, é como perder a chance de eternidade. Atentação é mais do que poderosa, é irresistível.Um dia o criminoso contará a um amigo, sociali-zando sua solitária aventura, sentindo-se final-mente viver, a vida reconhecida pelo outro,como um atestado.

Isso me agoniava, quase me levava ao desespero.Muitas vezes peguei o carro e saí pelo mundo,sozinho, atravessando centenas de quilômetrosem estradinhas de terra, cerrado adentro, semrumo. Depois virava o carro e voltava para casa,a viagem alimentava ainda mais minhaimaginação...

Eu cheguei a escrever mesmo um conto,aparentemente infantil, que era um retrato des-sa solidão e revelava o significado terrível detentar enfiar minha vida num casulo dedesistência.

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O conto se chamava justamente O Menino queMatou seu Próprio Sonho. Depois, com a mesmaidéia, aproveitando o conto, escrevi o romancePortal dos Sonhos, no qual o personagem prin-cipal “mata” seu sonho de infância e vive umavida regrada, calculada, tentando escapar às per-turbações terríveis que um repetido sonho lhetrazia na infância. A vida prossegue, ele se tornamédico, se casa, tem filhos. E na velhice vê o bu-raco que ele mesmo cavara em sua vida, ao mes-mo tempo em que sente que o sonho agoraretornava não mais como um apelo, mas comoum pesadelo, um sofrimento terrível.

O conto me ajudou, eu sai dele começando aescrever o roteiro de meu filme O Cego queGritava Luz, disposto a retornar ao cinema.

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Cenas de O Cego Que Gritava Luz

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03. O Retorno

O filme O Cego que Gritava Luz não poderiadeixar de ser o que foi, um retrato dessa solidão,o personagem do velho contador de históriasque se recusa a falar de si mesmo pois isso signi-ficaria falar de sua derrota. E quando falo dederrota, falo de tudo: sua derrota pessoal é aderrota de suas ações, de seus desejos, de suascrenças políticas, de seus sonhos. Tal como eufiz, o personagem se refugiava na caracteriza-ção de um outro personagem, mais alegre, maisdivertido, mais alienado, às voltas com a belezapura das palavras, das mulheres, o calor agradá-

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vel de uma dose de pinga e o prazer de históriassingelas e inconseqüentes. O que acontece comele, o velho Dimas, feito pelo Tonico Pereira, éque o passado o corrói por dentro e é a sua den-sa história pessoal, - e não o seu lirismodiversionista -, o que interessa ao público.

O Cego... marca a volta à minha carreira, comoa construção de uma nova fase, a tentativa deviabilizar um cinema no centro-oeste. Eu estavatão desesperado para filmar que disse que fariao filme nem que fosse em “xerox”. Eu ganhei oprêmio do concurso do MinC, o Resgate doCinema Brasileiro, uma ninharia de dinheiro masque foi fundamental para deslanchar o projeto,apesar da precariedade evidente.O filme seguinte viria sedimentar esse projeto:O Tronco, baseado no romance de Bernardo Élisque, por sua vez, ficcionara uma história base-ando-se em fatos históricos, uma guerra de ja-gunços, coronéis e soldados no início do século.O projeto era uma idéia antiga: eu havia lido olivro em 1968 e, naquele mesmo ano, resolviprocurar o autor, Bernardo Élis que, fiel, guar-dou os direitos do livro para mim por quasetrinta anos.

Sobre O Tronco, gostaria de revelar que o quemais me atraíra no livro, desde 1968, era afragilidade absurda do personagem central, o

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coletor Vicente Lemes, fragilidade que me pare-cia uma representação de nossa própria fragili-dade política, da história de inviabilidades daesquerda brasileira até hoje. Vicente Lemes eracomo uma espécie de embrião de militante,naquele início de século XX, no qual parece quetudo se inicia: criação do PCB, Coluna Prestes,Semana de 22, sinais de efervescência da vidaurbana, trazendo ideais de liberdade, democra-cia, modernidade, direitos civis. Pois VicenteLemes, de forma embrionária é o personagemdesse momento.

Ele, como funcionário de um governo de co-ronéis, vai para o norte do Estado de Goiáscontrolar os coronéisinimigos do governo, osMelo, justamente seusparentes. Vicente temsuas idéias, acha que oscoronéis são violentos,que desrespeitam asleis. Tenta impor seusideais, acaba acirrandoao conflito. Vendo-sederrotado pela força deseus parentes, não desis-te do que acha justo. Sóque ele não possui for-ça própria:

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Letícia Sabatela, Ângelo Antônio e Chico Diaz em O Tronco

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para isso tem que apelar para força do governovem, mas para agir de acordo com os interessese ideais do próprio governo e não os de Vicente.Vicente se vê, então, em meio à luta entre ospoderosos reais da sociedade, uma luta sangren-ta, absolutamente selvagem.

O personagem Vicente perde sua fugazcapacidade dirigente, de personagem principal.Será um mero coadjuvante em meio à barbárie.

O filme, no entanto, vinha na contramão dosprojetos estéticos nascentes entre os jovens ci-neastas da “retomada”. O Tronco é um clás-sico, mesmo que carregado de minhas tendên-cias políticas e estéticas. Nem o prêmio deMelhor Filme da Comissão dos 500 anos (Brasília/2000) e o de Melhor Diretor em Recife/2001 - enem o honroso convite para seleção oficial deShanghai/2000 - salvou o filme de uma certaexclusão dentro da “retomada”.

A verdade é que, na minha retomada, eu estava,de novo, na contramão, buscando reencontraro meu caminho perdido com o cancelamentodo filme sobre o Vlado.

Mas, tanto quanto O Cego..., o filme faz partedesse esforço de recomeçar do cinema brasileiro.

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E nesse esforço tudo se encaixa, tudo é impor-tante, cada filme tem sua mensagem e seu lu-gar e merece análise própria, como um tijolo noprecário muro que ajudamos todos a construir.Os dois filmes circularam por vários países, juntocom os outros poucos filmes dessa fase, anun-ciando que o cinema brasileiro voltava a existir.

E O Tronco é um belo filme, eu não tenho a me-nor dúvida, um épico, com todo o meu pressen-timento de como são frágeis os personagenstransformadores na vida brasileira, fragilidadeque os faz buscar apoios nas forças conser-vadoras, e de como essas forças acabam agindosegundo seus próprios interesses e visão, redu-zindo o herói a coadjuvante. Tomara, aliás, queessa “fatalidade” seja agora superada no Brasilcom a ascensão de um partido popular e de es-querda, tendo à frente um líder com uma legiti-midade que jamais tivemos na história brasi-leira. Esse é o desafio.

O Tronco foi selecionado, em competição, pelopoderoso e prestigiado Festival de Shanghai(2000) e o crítico Rubens Ewald Filho lamentaque poucos tenham visto um de meus melhoresfilmes.

Depois de O Tronco acabei me fixando em Goiás.Conheci ali, um jovem deputado, Marconi

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Perillo, que se interessou pelas filmagens de OTronco e me ligava pelo celular, que pegava ossinais na cidade cenográfica construída no altodo morro. Candidato a governador, Marconicomeçou a campanha como zebra, com menosde dez por cento das intenções de votos contrasetenta e tantos do poderoso Iris Rezende. Masoutra pesquisa apontava que a imensa maioriado povo goiano queria mudanças, queria sairdo dominio oligarca de Iris Rezende. E Marconiganhou. Ganhou e me convidou a ficar em Goiás,fazer um festival de cinema. Eu então fiz o FICA(Festival Internacional de Cinema e VídeoAmbiental) originalmente imaginado pela equi-pe da campanha eleitoral de Marconi Perillo.

Cida Moreira e Letícia Sabatela em O Tronco

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O FICA foi um sucesso estrondoso desde o inícioe dele guardo lembranças saborosas. Dirigi oprimeiro, sucesso que ajudou a cidade de Goiása ser reconhecida pela Unesco como PatrimônioCultural da Humanidade. Nesse ano, junto coma ABD local, fizemos um seminário que para mimera crucial: trouxemos cineastas de todos osestados onde havia politica cinematográfica,com a idéia de propor ao governo de Goiás aadoção de alguma política que viabilizasse afome por cinema que tomou os jovens goianosdesde O Tronco e alentada agora com o pró-prio festival.

Criei em Goiás minha nova produtora, sediadana cidade histórica de Pirenópolis, onde eu haviafilmado O Tronco. Era uma experiência, testaras novidades do mundo. Eu imaginava que cominternet e celular, pouco importava onde eu esti-

Vila cenográfica de O Tronco

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vesse: o importante seria meu nome e minhacapacidade de realizar e produzir. Dirigi aindao terceiro FICA, em 2001, quando trouxe paraGoiás filmes de sessenta países, defendendopublicamente a tese de que, ao contrário do quefalavam os norte-americanos, existia cinema emtodo o mundo. Eu pedia para alguém da minhaequipe apontar o dedo num mapa, via o país ebuscava de lá um filme. Foi um sucesso emo-cionante.

De certa forma, ali estava (e estou) eu, de novo,num processo de tentar criar uma cinema-tografia, agora em Goiás. E tenho um bomreconhecimento público local, tantas homena-gens que recebi e ainda recebo pela minhaatuação em prol de um cinema goiano, falan-do, filmando, discutindo, escrevendo no princi-pal jornal de Goiás (O Popular), justamente napágina de opinião, onde escrevem os políticos.Acho que, aos poucos, contando com uma boaabertura para a cultura - propiciada pelo gover-nador Marconi Perillo e seu secretário de culturaNasr Chaul - o cinema goiano vai acabar exis-tindo, tocado pela teimosia de alguns jovenscineastas e ativistas culturais que provaram ogostinho bom do cinema, seja realizando seuscurtas, seja participando de meus filmes ou defestivais de cinema como o FICA (FestivalInternacional de Cinema e Video Ambiental) e

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o Goiânia Mostra Curtas (das guerreiras Fifi &Abdala, já conhecidas nacionalmente). E comtantos técnicos, profissionais que se formaramou se aprimoraram comigo desde O Tronco, pas-sando por Uma Vida em Segredo, Rua Seis, SemNúmero, gente amiga que já trabalha em pro-duções nacionais e que certamente estará comi-go nos próximos filmes.

Rua Seis, Sem Número

Logo depois do FICA, num momento em quepreparava meu novo filme Veias e Vinhos, tiveque filmar projeto parido no meio de tantacoisa: o Rua Seis, Sem Número. Com este projetoganhei concurso do MinC para filmes de baixoorçamento.

O Rua Seis... representava para mim uma expe-riência, uma busca de novas linguagens etambém de novas tecnologias: o filme foi gra-vado em DV, com uma câmera DSR-500 e depoistransferido (feito o “transfer”) para 35 mm.

É um filme estranho, carregado de obsessõescom as quais eu mesmo me identifico (iden-tificação apontada na boa crítica da Folha de S.Paulo). Solano é o personagem desajustado, in-quieto, desempregado, deslocado, imaginativo,que recebe de um moribundo um pacote de di-

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nheiro para entregar a uma tal “Maíra”. O en-dereço: Rua 6. Onde? – o velho morre sem di-zer, o que obriga Solano a sair do centro (Plano-Piloto de Brasília) e procurar essa inviável Maíranuma improvável e perigosa Rua 6 da periferiade Brasília.

O filme foi convidado para inúmeros festivaisinternacionais inclusive o de Berlim (Forum-Seleção oficial), onde foi bem recebido ao pon-to de ter sido contratado para distribuição naAlemanha. Mas no Brasil foi lançado com umasó cópia.

Marco Ricca em Rua 6, Sem Número

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Luciana Braga em Rua 6, Sem Número

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Epílogo

Desde a crise gerada pelo cancelamento de meufilme sobre o Vlado, em função do plano Collor,tentei voltar à minha antiga vocação, a litera-tura. Já havia publicado o primeiro romance,Perdido no Meio da Rua, pela Global e, no meu“exílio” em Goiás e Mato Grosso, voltei a escre-ver. Em 1991 publiquei meu segundo romance,pela Editora Scipione, o Um Olé em Deus, histó-ria expressionista de um matador de periferiaàs voltas com seus delírios e os fantasmas de suasvítimas. Depois, dois outros livros: O Povo Fala(Editora do Senac), basicamente o texto de mi-nha tese de doutoramento sobre minha expe-riência na TV, e O Portal dos Sonhos (Editora daUniversidade de São Carlos). Mas o desejo do ci-nema acabou falando mais alto. Em pouco tem-po eu estaria de novo escrevendo roteiros parafilmar deixando prontos vários contos, duas no-velas, um romance inacabado e até mesmo umlivro de poesias...

A “redescoberta” pelo público e mídia de minhaface documentarista, principalmente após a bemcuidada Mostra de minha filmografia no CCBB(Centro Cultural Banco do Brasil) em São Pauloe pela Mostra do Globo Repórter, no Festival “ÉTudo Verdade” - acabou me incentivando a re-tomar esse lado meio abandonado de minha

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carreira. Voltei a fazer documentários e meusfilmes são a cada dia mais solicitados, com deba-tes e até mesmo convites internacionais, comoem Pésaro (Itália), Sheffield (Inglaterra) e Repú-blica Tcheca (festivais que convidaram o“redescoberto” Wilsinho Galiléia para apresen-tações especiais) e Buenos Aires, onde a Univer-sidade realizará mostra de meus documentários.

Minha “retomada” como documentarista vemmarcando-se como experimentalista, um expe-rimentalismo que não exclui minha face políticae social, mas busca novas maneiras de filmar.

O Caso Matteucci (65 minutos) e Vida de Artista(87 minutos) são os primeiros dois filmes dessafase, feitos com uma miniDV (de 3CCD) e exi-bem uma proposta que retoma minha maneiraprópria de encarar a presença do cineasta nasfilmagens, como venho fazendo desde o Liber-dade de Imprensa. Só que agora filmo sozinho,usando de forma radical as novas tecnologias eas promessas do fabricante desses equipa-mentos: deixo para a câmera todas as correções,seja de luz, de som ou de foco - e mantenho oolhar livre, usando o visor lateral da câmera.

Desta forma, me vejo livre, sem intermediários,diante do objeto ou personagem filmado. Sãofilmes do “eu sozinho”, usando radicalmente o

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potencial dessas novas câmeras digitais que jápossibilitam até mesmo o transfer para 35 mm.

Vida de Artista fez sucesso no festival cariocaMostra do Filme Livre (2004) recebendo oprêmio de Melhor Filme.

Acho importante, nesse momento, o acesso àsnovas tecnologias, principalmente a possibi-lidade do vídeo digital, que baratea a produçãoe permite veiculação mais rápida, levando nos-sos filmes e vídeos até onde o povo está.

O cinema precisa se libertar das correntes dosinteresses multinacionais, precisa explodir decriatividade e independência, escapar ao con-trole, rebelar-se contra os monopólios e as im-posições. Eu sonho com esse cinema de produ-ção fácil, ágil, que possa viabilizar uma crecenteligação do que fazemos, como cineastas brasi-leiros, e nosso povo, nosso público, nossaHistória. É um pouco do que fiz na TV, mas é oque trago desde o primeiro filme, desdeLiberdade de Imprensa: um cinema de maisurgência, que busca um espaço de reflexão sobretemas tratados “a quente”.

Sonho com poder reunir uma equipe a qualquerhora, sem burocracia, sem dinheiro, sair por aívoando atrás das imagens e dos sons, temas e

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acontecimentos para os quais meu feeling decineasta me empurra: para fora do cotidiano,da vida modorrenta, da espera. Esse sim, seriaum cinema livre, desprendido, inquieto, para serexibido onde permitissem sua bitola e duração.Quem sabe, ainda.

Afora isso, reservo, agora, meu fôlego desessentão para novos projetos, como o longaVeias e Vinhos, Uma História Brasileira, adapta-ção do romance do goiano Miguel Jorge, produ-ção de minha Oeste Filmes no qual se verá apolítica entrando porta adentro das casas sim-ples, com suas incertezas, ameaças, esperançase, principalmente, violências, muitas violências.

Vejo com certa impaciência a luta verdadei-ramente sem fim do Cinema Brasileiro, os pro-blemas sempre os mesmos que nos afligem, acompetição desleal com o cinema norte-ameri-cano, o massacre da televisão.

Ao mesmo tempo não há como não comemorara permanente renovação de nosso cinema, oúnico “morto” que consegue se reproduzir, serenovar, “dar cria”.

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Charge de Henfil, presente de Carlito Maia

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Filmografia

1963Catadores do Lixo (inacabado)curta-metragemObs: Como participante do Grupo KuatroTPN- Teatro Popular Nacional (inacabado)curta-metragemObs: Como participante do Grupo Kuatro

1966/67Liberdade de Imprensamédia-metragemroteiro/direção: João Batista de Andradefotografia: Armando Barretosegunda unidade (Rio): José Medeirosassistente direção: João Silvério Trevisanprodutor/som direto: Sidney Paiva Lopessegunda unidade (Rio): José Antonioedição: Francisco Ramalho Jrmontagem: Jovita Pereiradepoimentos: Carlos Lacerda, João Calmon,Genival Rabelo, Marcus PereiraProdução: Grêmio da Faculdade de Filosofiada USP - Jornal Amanhã (UNE)

1968Portinari, Um Pintor de Brodowskycurta-metragemroteiro/direção/montagem: João B. Andrade

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fotografia: Gyula Koloswaryprodutor: Sidney Paiva LopesProdução: Jorge Teixeira para o INC (InstitutoNacional de Cinema)

1969Em Cada Coração Um Punhallonga-metragemObs: episódio O filho da televisãoroteiro/direção: João Batista de Andradefotografia: Jorge Bodanzkymontagem: Sylvio Renoldiassistente direção: Wilson Barrosdireção produção: Percival Gomes de Oliveiracenografia: Sebastião de Souza / José RubensSiqueiraelenco: Joana Fomm (Julieta), John Herbert(Romeu), Abrão Farc (turista), Garoto (Júlio),Ana Maria Cerqueira (mulher consumista),João Batista de Andrade (homem consumista),Percival Gomes de Oliveira (homem mortopelo esquadrão da morte).Produção: Tecla Prod. Cinematográficas Ltda.

Gamal, o Delírio do Sexolonga-metragemroteiro/direção: João Batista de Andradefotografia: Jorge Bodanzkyassistente câmera: Hermano Pennacenografia: Sebastião de Souza

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continuista: Jairo Ferreiramontagem: Glauco Mirko Laurelli / JeanClaude Bernadet / João Batista de Andradetrilha sonora: João Silvério Trevisanmúsica: Ivan Mariotielenco: Joana Fomm (Luisa), Paulo CésarPereio (Jorge), Lorival Pariz (Gamal),Fernando Peixoto, Samuca e Flávio Santiago(os 3 demônios)Produção: Tecla Prod. Cinematográficas Ltda.

1969/70Paulicéia Fantásticalonga-metragemdireção: João B. Andrade / Jean ClaudeBernadetroteiro: Jean Claude Bernadetpesquisa: Paulo Emilio Salles Gomesfotografia: Aloysio Raulinoprodução executiva: Oswaldo da Palmamontagem: João B. Andrade / Jean ClaudeBernadetnarração: Lucila Ribeiro Bernadet, Paulo CésarPereio, Antero de Oliveiratrilha sonora: João Silvério Trevisanelenco (dramatizações): Etty Fraser (cantoralírica), Lafayete Galvão, Lenoir Betancourt.Produção: Comissão Estadual de Cinema / Gov.do Estado de São Paulo

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1970Eterna Esperançamédia-metragemdireção: João B. Andrade / Jean C. Bernadetroteiro: Jean Claude Bernadetpesquisa: Maria Rita Galvãoprodução executiva: Oswaldo da Palmafotografia: Jorge Bodanzkytrilha sonora: João Silvério Trevisannarração: Antônio Pedroelenco: Antônio Fagundes (garotopropaganda), Gianfrancesco Guarnieri (encenaa história das ações da Cia. Americana),Fernando Pacheco Jordão (locutor).Produção: Comissão Estadual de Cinema / Gov.do Estado de São Paulo

1971Vera Cruzmédia-metragemdireção: João B. Andrade / Jean C. Bernadetroteiro: João B. Andrade / Jean ClaudeBernadetprodução executiva: Oswaldo da PalmaProdução: Comissão Estadual de Cinema / Gov.do Estado de São Paulo

1972 a 1974Período do Hora da Notícia (TV Cultura)Dezenas de pequenos documentários para o

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programa diário, como reportagens especiaisde 3 a 7 minutos, das quais existem cópias deTrabalhadores Rurais (72) - Ônibus (73) -Pedreira (73) - Migrantes (72)

1973Migrantescurta-metragemObs: Reconstituição de reportagem de 1972do programa Hora da Notícia (TV Cultura)direção / roteiro: João Batista de Andradefotografia: Antônio Mateusmontagem: Ladislauedição: Fernando Pacheco Jordão

1974 a 1978Inúmeros documentários para a TV Globo,nos programas: Domingo Gente, Fantástico,Esporte Espetacular e, principalmente, GloboRepórter. Desses documentários existemcópias, do acervo pessoal do diretor, de ABatalha dos Transportes (74), A Escola de 40Mil Ruas (75), Viola Contra Guitarra (76),Mercúrio no Pão de Cada Dia (76), Caso Norte(77), Wilsinho Galiléia (longa-metragem paraTV - 78), 1932- A Herança das Idéias

1975Restoscurta-metragem

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direção/roteiro/montagem/fotografia: JoãoBatista de Andradeprodutor: Wagner CarvalhoProdução: RAIZObs: Apreendido e proibido em 1975, naJornada de Curta-Metragem (Bahia)Primeira exibição pública em fevereiro de2004, no CCBB (Cineclube Banco do Brasil),cópia doada pela Polícia Federal ao ArquivoNacional

1976O Buraco da Comadrecurta-metragemdireção/roteiro/montagem: João Batista deAndradefotografia: Adilson Ruizprodutor: Wagner CarvalhoParticipação: Grupo Teatro Núcleo (CelsoFrateschi, Denise del Vecchio)Produção: RAIZ

Alicemédia-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeassistente direção: Reinaldo Volpatoprodução executiva: Assunção Hernandesdireção de produção: André Klotzelfotografia: Eduardo Poianocenografia: Sebastião Maria

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montagem: Alain Fresnotmúsica: Almeida Pradoelenco: Luiz Alberto Galizia (Pai e Coelho),Claudio Mamberti (camelô e Ratão), LaerteMorroni (Rainha), Isabela Faria (mãe de Alice)e apresentando Fernando Ramos da Silva(amigo) e Gabriela Rodela (Alice)Produção: Raiz/ Embrafilme

1977Doramundolonga-metragemdireção: João Batista de Andraderoteiro inicial: Vladimir Herzogroteiro final: João Batista de Andrade / AlainFresnot / David Josébaseado no romance de Geraldo Ferrazprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Antônio Meliandeassistente direção: Alain Fresnotdireção de produção: Miron R Cunhatrilha musical: Almeida Pradomontagem: Glauco Mirko Laurellicenografia: Laonte Klawaelenco: Rolando Boldrin (Pereira), AntônioFagundes (Raimundo), Irene Ravache(Teodora), Armando Bogus (Delegado Guizot),Rodrigo Santiago (Moura), Sergio Hingst(chefe da estação), Aldo Bueno (Manoel),Denise del Vecchio (louca), Celso Frateschi

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(jornalista), Oswaldo Campozana (Dr Flores)Produção: RAIZ / Embrafilme

1978Wilsinho Galiléialonga-metragem para TVdireção: João Batista de Andradeassistente direção: Alain Fresnotfotografia: Adilson Ruizmontagem: Elder Titoedição: Fernando Pacheco JordãoProdução: RAIZ para Globo RepórterPesquisa: Dácio NitriniCoordenação Geral: Fernando Pacheco JordãoMaquiagem: Paulo LagoMúsica:Abaluaiê, de Waldemar HenriqueVoz: Clementina De JesusQueña: Los MasisConcierto en Los Andes: Grupo AymaraGracias a la Vida: de Violeta Parra - GrupoTarancónElenco: Paulo Weudes (Wilsinho), GilbertoMoura (Ramiro), Ivan José (Chiquinho), TelmaTelina (Patrícia), Claudia de Castro (Geni),Fausto Dunine, Sérgio de Oliveira, Luis CarlosRossi (policiais), Jorge Cerruti, Rubens Brito,Paulo Lago, Luís França (vítimas)Produção: RAIZ (para TV Globo - GloboRepórter)

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1979Greve!média-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Aloysio Raulino / Adilson Ruizdireção de produção: Wagner Carvalhonarração: Augusto Nunesmontagem: Reinaldo Volpatosom direto: Romeu QuintoProdução: RAIZ

Trabalhadores: Presente!média-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesdireção de produção: Wagner Carvalhofotografia: Aloysio Raulinomontagem: Alain Fresnotsom direto: Romeu Quintocenas adicionais: Adilson RuizProdução: RAIZ

1979/80O Homem que Virou Sucolonga-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Aloysio Raulinomontagem: Alain Fresnot

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direção produção: Wagner Carvalhosom direto: Romeu Quintoassitente direção: Adilson Ruiztrilha musical: Vital Fariascenografia: Marisa Reboloelenco: José Dumont (Deraldo e Severino),Célia Maracajá (Maria), Denoy de Oliveira(mestre de obras), Ruth Escobar (dona doalbergue), Barros Freire (dono de bar), Rafaelde Carvalho (coronel), Renato Master (diretorde multinacional), Ruthnéia de Moraes(patroa).Produção: RAIZ / Embrafilme / Gov. Estado deSão Paulo (Polo de Cinema-SP)

1982A Próxima Vítimalonga-metragemidéia original/argumento/direção: João Batistade Andraderoteiro: Lauro César Munizprodução executiva: Assunção Hernandesassistente direção: Mário Masetti / TâniaSaviettodireção produção: Wagner Carvalhofotografia: Antônio Meliandemontagem: Renato Neiva Moreiramúsica: Marcus Viníciuscenografia: Heraldo de Oliveiramaquilagem: Antônio Pacheco

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elenco: Antônio Fagundes (David), OthonBastos (Delegado), Mayara Magri (Luna),Louise Cardoso (namorada de David), EsterGoes (ex-mulher), Aldo Bueno (Nêgo), SilviaLeblon (prostituta), Gianfrancesco Guarnieri(Guido), João Acaiabe (irmão de Nêgo),Goulart de Andrade (Chefe de Reportagem),Ricardo Dias (Porteiro), Walter Breda (cafetão)Produção: RAIZ/ Embrafilme

Tribunal Bertha Lutzmédia-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Chico Botelho / Zetas Malzoni /Adrian Coopersom direto: Marien Van de Vem / WalterRogério / Lia Camargo.elenco: Assunta Peres (advogada empresa),Almino Afonso (advogado operária), BeteMendes, Dulce Muniz, Silvia Leblon(apresentadoras), Denise Stoklos e JulianaCarneiro (dança)Produção: RAIZObs: a parte do julgamento foi filmada apartir de encenação teatral, dirigida porMário Masetti

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1985Céu Abertolonga-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Chico Botelhosom direto: Geraldo Ribeirodireção produção: Armando Lacerdamontagem: Walter Rogério/Danilo TadeuProdução: RAIZ

1986/87O País dos Tenenteslonga-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução executiva: Assunção Hernandesfotografia: Adrian Coopermontagem: Idê Lacretadireção arte: Marcos Weinstockcenografia: Luis Antôniomúsica: Almeida Pradoassistente direção: Ricardo Pinto e Silvadireção produção: Tânia Lamarcaelenco: Paulo Autran (Gui), Giulia Gam(Helena), Buza Ferraz (Ten. Pena), FlávioAntônio (Jovem Gui), Cássia Kiss (Neta de Gui),Carlos Gregório (empresário), Jayme del Cueto(Cel.Miguel Costa), Ricardo Petraglia (músico),Lourival Pariz (Coronel) e apresentandoHenrique Cristensen (André), com participação

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de Leon Cakoff, como Getúlio Vargas eCassiano Ricardo, como Luiz Carlos Prestes.Produção RAIZ

1991Independênciacurta-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradefotografia: Chico Botelhomúsica: AurelinoProdução ORION

1995O Cego que Gritava Luzlonga-metragemdireção/argumento/roteiro: João Batista deAndradeprodução executiva: Assunção Hernandesprimeiro tratamento do roteiro: Denoy deOliveiraassistente direção: Liloye Boubliedireção produção: Roberto Piresfotografia: Jorge Monclarsom direto: Juarez Dagobertodireção arte: Vinícius Andrademontagem: Cristina Amaralmaquiagem: Antônio Pachecomúsica: Fernando Andradeelenco: Tonico Pereira (Dimas/Pedro), RobertoBontempo (Juvenal), Carmem Moretsohn

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(Consuelo), Alexandre Ribondi (Eduardo),Guilherme Reis (Ewald), Luciano Porto (Olavo),Clarice Cardell (Helena), Laura Alves Moreira(Dina), Murilo Grossi (Gustavo), RafaelSchenini (Zico), Luiz Guilherme Batista(jornalista) e Renato Matos, Rômulo Augusto,Gulherme Veloso, Caco Tom Carlos, TerezaRollemberg, Henrique RoviraProdução RAIZ

1999O Troncolonga-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradebaseado no romance de Bernardo Élisprodutora: Assunção Hernandesprodução executiva: Fernando Andradefotografia: Jacques Cheuíchemúsica: Tavinho Mouradireção arte/cenografia: Vinícius Andradeassistentes direção: Rubens Xavier, Farid J.Tavares, Denise Gonçalvesmontagem: Renato Neiva Moreirasom direto: Juarez Dagobertofigurino: Moacirmaquiagem: Antonio Pachecocasting: Liloye Boublie, Mauri de Castrocontinuidade: Isabel Amaralassistente produção executiva: Leandro Cunhaprodução set: Celso Martins

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produção objetos: Úrsula Ramos, D. Pinaassistente cenografia: Shel Jr.making of: Luis Eduardo Jorge, apoioUniversidade Católica de Goiáselenco: Ângelo Antônio (corretor VicenteLemos), Antônio Fagundes (Juiz Carvalho),Letícia Sabatela (Anastácia), Rolando Boldrin(Cel. Pedro Melo), Chico Diaz (Ten. Catulino),Cida Moreira (Mãe), Paulo Vespúcio (Tozão),Henrique Rovira (Cel. Artur Melo), MarianeVicentini (mulher de Artur), Mauri de Castro(Capitão), Augusto Pompeu (Baianinho), CidaMendes (Maria Pequena), Breno Moroni(escrivão), Guilherme Reis (Presidente), CarlosCareqa (professor de música), Guido CamposCorrea (jagunço Caboclo), Itamar Gonçalves(soldado Adonias), Jônatas Pinheiro (soldadoFreitas), Wellington Dias (soldado Índio), JulioVan (soldado), André Pimenta (jovem Cel.Pedro Melo), Luzia Divina (mulhercamponesa), Almir de Amorim (camponêsassassinado) e apresentando Henrique Cabrale Fernanda IvarProdução RAIZ

2002Rua Seis, Sem Númerolonga-metragemdireção/roteiro: João Batista de Andradeprodução/produção executiva: J. B. Andrade

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fotografia: Carlos Ebertmúsica: Marcelo Galbettidireção arte/cenografia: Luiz AugustoJungman (Girafa)assistente direção: Ariane Portomontagem: Reinaldo Volpatosom direto:- Louis Robinfigurino: Malu Moraescasting: Sung Sfaicontinuidade: Betâniaassistente produtor executivo: Vanderley Silvaprodução set: Celso Martinsprodução objetos: Mauricio Cruzelenco: Marco Ricca (Solano), ChristineFernandes (Helena e Maíra), Luciana Braga(Lenira), Henrique Rovira (Paulo), Julio Van(Marino), André Jorge (Mino), UmbertoMagnani (Dimas), João Acaiabe (Pedro), BrunoTorres (bandido), Guido Campos (bandido),com participação especial de Gracindo Jr comoo político “Isidoro”.Produção: Oeste Filmes

O Caso Matteuccimédia-metragem/documentáriodireção/roteiro/edição: João B. de Andradeprodução: Maria Abdalaprodução executiva: Fifi CunhaProdução: ICUMAM (Instituto de Cultura eMeio Ambiente) e Oeste Filmes.

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2003Vida de Artistalonga-metragem/documentárioObs: proposta de série.Primeiro filme: José Inácio, Santeiro dePirenópolisdireção/roteiro/câmera/fotografia/produçãoexecutiva: João Batista de Andradeedição: Fernando Andradeedição final de som: Marcelo GalbettiProdução: Oeste Filmes

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Com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, anos 60

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Como ator no filme A Herança, de Ozualdo Candeias

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Prêmios Nacionais e Internacionais

1969GamalAirFrance- Diretor revelação- Melhor Atriz: Joana Fomm

1970Paulicéia Fantástica- Prêmio Governador do Estado

1973MigrantesJornada da Bahia- Melhor Filme

1977DoramundoFestival de Gramado 1978- Melhor Filme- Melhor Diretor- Melhor Cenografia

Caso Norte- Imprensa Nacional: um dos 10 melhores doano na TV

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1979Greve!- Prêmio Especial do Júri - Havana 1979

Trabalhadores, Presente!Festival de Brasília 1979- Melhor Diretor

1980O Homem que Virou SucoFestival de Moscou 1981- Melhor filme- Prêmio da Crítica: Nevers (França) 1982Festival de Brasília 1980- Melhor Roteiro: João Batista de Andrade- Melhor Ator: José DumontFestival de Gramado- Melhor Ator: José DumontFestival de Huelva (Espanha) 1982- Melhor Ator: José Dumont

1983A Próxima VítimaFestival de Gramado 1983- Atriz Revelação: Mayara Magri

1985Céu AbertoFest/Rio 1986- Prêmio Especial do Júri

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- Melhor Film OCIC/ FestRio 86 (Office CatholicInternational du Cinema)Festival de Aveiro (Portugal) 1986- Prêmio Especial do JúriCaxambú 1986- Prêmio Especial do Júri

1987O País dos TenentesFestival de Brasília 1987- Melhor Argumento: João B. de Andrade- Melhor Ator: Paulo Autran- Melhor Música- Melhor Montagem- Melhor CenografiaRiocine 1987- Melhor Filme

1991IndependênciaFestival de Brasília 1991- Melhor Música

1996O Cego que Gritava LuzPrêmio Câmara Legislativa do DF- Melhor Filme 1996Festival de Brasília- Melhor Ator: Tonico Pereira

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1999O TroncoFestival de Natal 1999- Melhor Ator Coadjuvante: Rolando Boldrin- Melhor Cenografia: Vinícius AndradeFestival de Brasília 1999- Melhor Ator Coadjuvante: Rolando Boldrin- Melhor Filme - Júri 500 anos / MinCFestival do Recife 2000- Melhor Diretor

2004Vida de ArtistaFestival do Filme Livre (Rio)- Melhor Filme

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Jurado no Festival Internacional da Índia, em Nova Delhi

2000

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Com a diretora Tata Amaral no Festival Internacional deBerlim - Mostra Renascimento do Cinema Brasileiro1997

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Créditos das fotografias

pág.271 - Bob Wolfenson

pág.313 - José Roberto Sadek

pág.358 - Jorge Achoa

Demais páginas - acervo João Batista de Andrade

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