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Da Rua ao Teatro 1 EZIO BITTENCOURT Da Rua ao Teatro, os prazeres de uma cidade sociabilidades & cultura no Brasil Meridional 1999

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Da Rua ao Teatro

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EZIO BITTENCOURT

Da Rua ao Teatro, os prazeres de uma cidade

sociabilidades & cultura

no Brasil Meridional

1999

Da Rua ao Teatro

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Capa: Iraí Mirapalhete e Ezio Bittencourt

Em destaque, alegoria metálica fabricada na Escócia, apresentando símbolos alusórios à Comédia, à Tragédia e à Música. Compõe a fachada interna do Teatro José de Alencar, de Fortaleza, no Ceará. (TEATROS DO BRASIL).

Revisão Lingüística: João Reguffe. Reproduções Fotográficas: Adão Pedroso e Deoclécio Rembowsky Editoração: Sandra Morales Dados Internacionais de Catalogação (CIP) ________________________________________________________________________ B624s Bittencourt, Ezio.

Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade: sociabilidades & cultura no Brasil Meridional - Panorama da história de Rio Grande/Ezio Bittencourt. – Rio Grande: Ed. Furg, 1999.

??? p: il. 1. Espaços teatrais – Rio Grande, R.S. – História. 2. Cultura –

Sociabilidades – Rio Grande, R.S. – História. 3. Cultura – Espaços teatrais – Rio Grande, R.S. – História. 4. Vida urbana - Lazeres - Rio Grande, R.S. - História. 5. Espetáculos teatrais – Rio Grande do Sul – História. I. Título.

CDU: 792(816.5)(091)

________________________________________________________________________ Catalogação na Publicação: Simone Bittencourt CRB: 10/1171

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Da Rua ao Teatro, os prazeres de uma cidade

sociabilidades & cultura no Brasil Meridional

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EZIO BITTENCOURT

Da Rua ao Teatro, os prazeres de uma cidade

sociabilidades & cultura no Brasil Meridional

(Panorama da história de Rio Grande)

Prefácio de Ruth M. Chittó Gauer

Edição Comemorativa aos 30 Anos da FURG

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Em memória daqueles que, através de seus registros ou da preservação de fontes preciosas à pesquisa da cultura em Rio Grande, viabilizaram este trabalho: Coriolano Benício, Manoel Pinto Ferreira Júnior, Antenor Monteiro, Carlos Alberto Minuto, Frederico Carlos de Andrade, Inah Emil Martensen...

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Determino o estabelecimento de teatros públicos bem regulados, pois que deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade, visto serem a escola onde os povos aprendem as máximas sãs da política, da moral, do amor, do zelo, e da fidelidade, com que devem servir aos soberanos, e por isso não só são permitidos como necessários. (Alvará do rei D. José I, 1771) Não podemos deixar de manifestar o nosso prazer por ver nesta Vila do Rio Grande um teatro ereto por uma sociedade composta de

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cidadãos que não pouparam trabalho e despesas para a sua conclusão; o qual servirá de escola para se aprender os bons costumes, aumentar a civilização, e para festejar os Dias Nacionais e as nossas belas instituições. (O NOTICIADOR. Rio Grande, 10 set.1832)

AGRADECIMENTOS À família Piragine e, em especial à querida prima Melissa pela solidariedade, convívio, carinho e amizade. Aos meus pais pela confiança e dedicação constantes. A Leandro Barbat, acadêmico do Curso de História da Universidade do Rio Grande que, atuando como bolsista particular em iniciação científica neste estudo, revelou seu inabalável entusiasmo e vocação à pesquisa. Às instituições e bibliotecas onde foram realizadas as investigações, sobretudo, à Biblioteca Rio-Grandense e à CAPES que viabilizou a execução deste estudo. À Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Queiroz (URG – aposentada) pelo incentivo inicial. Aos professores Dr.ª Maria Eunice Moreira (Pós-Graduação em Letras – PUCRS); Dr.ª Maria Lúcia Kern (Pós-Graduação em História – PUCRS), Dr. Hélio Silva (Antropologia – PUCRS), Doutoranda Francisca Michelon (Pesquisadora cinematográfica. Instituto de Letras e Artes – UFPel), Bailarina Beatriz Batezat Duarte, Arq. Júlio Nicolau Curtis (Arquitetura – UFRGS), Dr. Ivo Bender (Artes Cênicas - UFGRS), Musicólogo Décio Andriotti, por seus comentários engrandecedores e sugestões a versões anteriores de capítulos desta publicação. À Prof.ª Dr.ª Léa Perez que iniciou-me nos estudos sobre a cidade e proporcionou-me uma visão mais generosa da realidade brasileira. Em especial, à Prof.ª Dr.ª Ruth Gauer pelo aceite da orientação, valorização do material empírico, intervenções sempre precisas, completa flexibilidade e muita paciência. À Prof.ª Maria Alice Sampaio pela revisão ortográfica e lingüística e à Bibliotecária Simone Bittencourt (ULBRA) pela normatização de notas, fontes, referências bibliográficas e catalogação de minha dissertação. Ao Curso de Pós-Graduação em História da PUCRS, onde foram realizados os estudos. À FURG pela publicação desta obra e, mui particularmente, à Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis e à Editora e Gráfica desta Universidade pelo cuidadoso trabalho realizado. Finalmente, expresso gratidão ao apoio e carinho de meus amigos e colegas que, direta ou indiretamente, compartilharam de muitas alegrias e angústias ao longo dos últimos anos na tessitura desse escrito.

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SUMÁRIO LOCAIS DA PESQUISA..................................................................................... ILUSTRAÇÕES................................................................................................ LISTAGENS E LEVANTAMENTOS................................................................... TABELAS...................................................................................................... GRÁFICOS..................................................................................................... PREFÁCIO............................................................................................... INTRODUÇÃO: OS ITINERÁRIOS DA PESQUISA.......................................... O ESPETÁCULO DA CIDADE: RIO GRANDE, DO BARROCO AO ECLETISMO A CONSTRUÇÃO DO URBANO.................................................................... POPULAÇÃO................................................................................................... IMAGENS E AUTO-IMAGENS..................................................................... ORGANIZAÇÃO & MOVIMENTO: A SOCIEDADE RIO-GRANDINA FESTAS E LAZERES AO AR LIVRE.................................................................. SALÕES, CLUBES E ASSOCIAÇÕES............................................................... ENTRE BOTEQUINS E CAFÉS................................................................... DIVERSÕES E VIDA NOTURNA................................................................. EDUCAÇÃO, ARTE & CULTURA: A MONTAGEM DO PATRIMÔNIO LOCAL EDUCAÇÃO................................................................................................ CONTEXTOS DE LEITURA........................................................................ BELAS-ARTES............................................................................................ MÚSICA..................................................................................................... DRAMATURGIA...................................................................................... O ESPAÇO TEATRAL: SEUS USOS, IMAGENS & SIGNIFICADOS IMAGENS E HISTÓRIA............................................................................. ESPAÇOS TEATRAIS E ARQUITETURA.................................................... OS ESPAÇOS TEATRAIS EM RIO GRANDE................................................. Os Primeiros Registros............................................................................. Teatro Sete de Setembro............................................................................. Anfiteatro Albano Pereira e Politeama Rio-Grandense.................................. Sociedade União Operária......................................................................... Os Cine-Teatros........................................................................................... Cine-Teatro Carlos Gomes....................................................................... Cine-Teatro Guarani............................................................................... Cine-Teatro Avenida................................................................................

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Rádio-Teatro........................................................................................... AS UTILIZAÇÕES DO ESPAÇO TEATRAL.................................................. Bailes..................................................................................................... Reuniões Políticas..................................................................................... Outros Registros................................................................................ SOB OS OLHOS DE CLIO; MELPÔMENE, TALIA, EUTERPE & TERPSÍCORE OCUPAM A CENA TEATRO DRAMÁTICO.............................................................................. TEATRO LIGEIRO................................................................................. Zarzuelas.................................................................................................. Operetas................................................................................................ Revistas................................................................................................ TEATRO LÍRICO..................................................................................... MÚSICA.......................................................................................... DANÇAS CÊNICAS................................................................................... DE ÉRATO À GRETA GARBO DECLAMAÇÃO............................................................................................. TRANSFORMISMO........................................................................... ILUSIONISMO.......................................................................................... PROEZAS, RARIDADES E PUGILISMO....................................................... BONECOS ARTICULADOS........................................................................ ATIVIDADES CIRCENSES.......................................................................... ESPETÁCULOS DE VARIEDADES............................................................... MÁQUINAS PRODUTORAS DE IMAGENS E DE SONS...................................... TEM FRANCESA NO MORRO....................................................................... ÚLTIMAS NOTAS.................................................................................... GLOSSÁRIO...................................................................................... FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................

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LOCAIS DA PESQUISA Arquivo da Prefeitura Municipal do Rio Grande. Rio Grande. Arquivo do Centro Municipal de Cultura “Inah Emil Martensen”. Rio Grande. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande. Biblioteca da Escola de Belas Artes “Heitor de Lemos”. Rio Grande. Biblioteca Central da Universidade do Rio Grande. Rio Grande. Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades. Universidade Federal do Rio Grande do

Sul. Porto Alegre. Biblioteca do Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Biblioteca do Curso de Arquitetura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Biblioteca do Instituto de Ciências e Processamentos de Dados. Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Biblioteca “Érico Veríssimo”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre. Biblioteca de Música “Armando Albuquerque”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre. Biblioteca Central da Universidade Luterana do Brasil. Canoas. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Centro de Documentação Histórica “Prof. Hugo Neves”/ Universidade do Rio Grande. Rio

Grande. Discoteca Pública “Natho Henn”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio Grande.

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Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande. Museu de Comunicação Social “Hipólito José da Costa”. Porto Alegre.

ILUSTRAÇÕES FIGURAS 1 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, em 1809...... 2 – Vista da Vila de Rio Grande, por volta de 1824.......................................... 3 – Le Quai de Belle-Vue à San Pedro de Rio Grande. s.d................................ 4 - Anúncio comercial da Casa Tulherias, em 1881........................................ 5 – Planta da região central da cidade de Rio Grande, em princípios do século XX..................... 6 – Planta do centro da cidade de Rio Grande, em 1926 assinalando as reformas urbanísticas

efetuadas................ 7 – Desenho comemorativo ao Bicentenário da Fundação de Rio Grande, em 1937.................... 8 - Crítica do jornal O Amolador às músicas da Procissão da Ressurreição de

1874..................................... 9 - Passeio burlesco do Clube Boêmio pelo centro da cidade, em 1881........... 10 - Baile na Imperial Sociedade Instrução e Recreio, em 1880...................... 11 – Inauguração do Cassino Rio-Grandense, em 1875.................................... 12 – Fachada, provavelmente, original do Teatro Sete de Setembro, em 1847.............................. 13 – Cidades do Rio Grande do Sul que possuíam teatros na primeira metade do século

XIX.............. 14 – Projeto de construção do Cine-Teatro Avenida. 1928............................ 15 – Planta central da cidade de Rio Grande com a localização dos seus principais espaços teatrais,

percebidos de finais do século XVIII a 1940........................ 16 – Baile de Máscaras no interior de um teatro, em 1868.............................. 17 - Homenagem da imprensa ao ator João Caetano dos Santos, em 1881....... 18 - Prospecto anunciando a Companhia Portuguesa de Comédias Aura Abranches..................... 19 - Anúncio do espetáculo da Companhia Dramática Alemã Georg Urban, em 1931................... 20 – Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da Companhia

Nacional de Comédias, de Iracema de Alencar, em 16 de julho de 1936.................. 21 - Homenagem do jornal Marui à Companhia Espanhola de Zarzuelas, em

1880............................. 22 - Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da Companhia

Nacional de Operetas, dos Irmãos Celestino, em 9 de outubro de 1935................. 23 - Anúncio da Companhia Italiana de Operetas Giordanino, em 1925............ 24 - Programa do Cine-Teatro Avenida anunciando a revista local Ride...Palhaço!............. 25 - Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da bailarina Ada

de Bogoslowa, em 27 de fevereiro de 1935.......

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26 - Prospecto publicitário do Politeama Rio-Grandense, anunciando os populares espetáculo de tela e palco, nos dias 23, 24 e 25 de maio de 1925................

FOTOS 1 - Aspecto da Rua dos Príncipes no final do século XIX.................................. 2 - Bonde elétrico trafegando pela rua Mal. Floriano Peixoto, em 1915............. 3 - Desfile do Clube Carnavalesco Saca-Rolhas, em 1911................................ 4 - Desfile do Clube Carnavalesco Arara, em 1920....................................... 5 – Vista da Praça Xavier Ferreira, na década de 1940..................................... 6 – Vista da Praça Tamandaré, no começo do século XX.................................. 7 – Batalha de Flores realizada na rua Marechal Floriano Peixoto, na década de 1910....... 8 – Aspecto da Praia do Cassino, em fins do século XIX.................................. 9 – Palco-Salão na “Praia de Banhos”, atual Cassino. s.d................................ 10 – Edifício do Clube Caixeiral, construído em 1912..................................... 11 - Cinema Ideal Concerto. Década de 1920................................................... 12 - Aspecto da Biblioteca Rio-Grandense nas décadas de 1920 e 1930.......... 13 – Edifício do Conservatório de Música de Rio Grande, na década de 1920..... 14 – Concerto local realizado em dezembro de 1927 no Cine-Teatro Carlos Gomes. No palco, o

Coro das Fiandeiras da ópera Navio Fantasma, de Wagner..................... 15 – Integrantes da Companhia Lírico-Dramática Guarani. s.d......................... 16 – Fachada do Teatro Sete de Setembro na década de 1940.......................... 17 – Interior do Teatro Sete de Setembro, em 1940.......................................... 18 – Vista do palco do Teatro Sete de Setembro, na década de 1940................. 19 – Fachada do Politeama Rio-Grandense, em 1889...................................... 20 – Interior do Politeama Rio-Grandense, no começo do século XX................. 21 – Interior do Politeama Rio-Grandense. s.d. Vista da platéia, frisas e galerias tomadas por

crianças.................................................................... 22 – Interior do Politeama Rio-Grandense. s.d. Destaque para as frisas e galerias....................... 23 – Vista externa da Sociedade União Operária, em 1940................................ 24 – Interior da Sociedade União Operária. s.d............................................... 25 – Fachada do Cine-Teatro Carlos Gomes. s.d.............................................. 26 – Interior do Cine-Teatro Carlos Gomes. s.d................................................. 27 – Exterior do Rádio-Teatro, em 1935........................................................... 28 – Interior do Rádio-Teatro. Vista da platéia e galerias. s.d............................ 29 - Em cena, o célebre soprano brasileiro Bidú Sayão.....................................

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LISTAGENS E LEVANTAMENTOS 1 - Hotéis de Rio Grande.......................................................................... 2 - Associações Recreativas................................................................... 3 - Associações Recreativas Esportivas.................................................... 4 - Associações Recreativas Classistas.................................................. 5 - Associações Recreativas Carnavalescas.............................................. 6 - Associações Políticas....................................................................... 7 - Associações Maçônicas....................................................................... 8 - Associações de Assistência Social........................................................ 9 - Associações de Imigrantes................................................................... 10 - Circos que se apresentaram na cidade.............................................. 11 - Escolas............................................................................................ 12 - Bibliotecas...................................................................................... 13 - Artistas Plásticos.............................................................................. 14 - Conjuntos Musicais............................................................................ 15 - Músicos, maestros, compositores e obras.......................................... 16 - Sociedades dramáticas do século XIX.............................................. 17 - Sociedades dramáticas das décadas de 1900 e de 1910...................... 18 - Sociedades dramáticas das décadas de 1920 e de 1930..................... 19 - Dramaturgos e obras........................................................................ 20 - Atores................................................................................................ 21 - Valores dos ingressos aos espetáculos cinematográficos, dos cine-teatros rio-grandinos, nas

décadas de 1920 e 1930............................................

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TABELAS 1 – Quadro do ensino primário em Rio Grande, em 1940, apresentando o número de escolas e

alunos matriculados............................................... 2 – Quadro comparativo das cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande apresentando o

número de habitantes e as respectivas porcentagens de matrículas de alunos no curso primário, no ano de 1940........................................................................................................

3 – Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande, nas décadas de

1920 e 1930. Por curso.....................................................

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GRÁFICOS 1 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Em anos,

por cursos. Década de 1920......................... 2 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Em anos,

por cursos. Década de 1930...............................

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PREFÁCIO

Este livro aborda diversas questões sobre a vida social da cidade de Rio Grande, localizada ao sul do Rio Grande do Sul. O olhar do autor voltou-se para a história da cidade e, mais especificamente, para seus espaços teatrais: teatros, cine-teatros e sociedades recreativas possuidoras de palcos. Os teatros, territórios de sociabilidade característicos dos centros urbanos modernos, são descritos em suas relações com a sociedade da época. Esses locais se constituíram em ambientes sociais fundamentais à vida urbana do início do século XX. O retrato de Rio Grande construído, passa pela compreensão da dinâmica dos espaços de representação teatral que, sem dúvida, revelam a dinâmica da urbanização vinculada à industrialização crescente, a qual, refletiu-se no mercado do lazer e da diversão.

O panorama histórico da cidade, descrito na obra, revela a vocação desse centro urbano para as atividades comerciais ao lado da vocação burguesa para o lazer. No modelo de cultura burguesa, o estilo de vida da cidade, ainda no início do século XIX, foi marcado pela adoção de práticas européias. Os saraus lítero-musicais, os clubes, as associações, os espetáculos itinerantes, os cafés, entre outros locais de lazer se multiplicavam no Rio Grande da época configurando, dessa forma, a vida social da cidade. Com a chegada das primeiras levas de imigrantes houve uma intensificação da oferta do tipo de entretenimento que atendia ao desejo de um grupo social local que se pretendia culto e elitizado. O desenvolvimento das artes plásticas, dos clubes, da dramaturgia, assim como o aumento dos conjuntos musicais, ao lado do já tradicional Entrudo e das festas religiosas, revelam, para o autor, algumas características da vida social da cidade do início do século.

Podemos ler no desenvolvimento da análise que os espaços de lazer, desde os remotos tempos coloniais, realizavam-se nas áreas públicas. As festas populares - religiosas ou laicas - ocorriam nesses locais. Com a República, as ruas, praças e os largos, adquiriram maior importância e foram redesenhados e higienizados segundo os ditames do período, atendendo às vaidades dos estratos sociais economicamente em ascensão. Os elementos trabalhados na obra permitem uma leitura alargada do meio urbano e do lazer, nele desenvolvido. A cidade então descrita, revela uma polifonia

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própria dos momentos de transformação que promoveram a ampliação de novas elaborações sociais. Essas elaborações são reveladoras da civilização que se desenvolveu no sul do Brasil, desde o início do século XVIII. No campo do enredo histórico é enfatizado que paralelamente às transformações desses espaços - que passaram a ser freqüentados por vários segmentos sociais - ampliaram-se os locais citadinos de lazer. Criaram-se novas casas de teatro, cine-teatros, clubes, cinemas, cafés, bares, confeitarias, entre outros. Paralela a essa ampliação via-se também o alargamento da instrução pública.

Um aspecto importante desta publicação é a revelação do processo de europeização da sociedade brasileira, do período. Nos palcos de então havia uma predominância marcante - na dramaturgia, no teatro ligeiro, no teatro lírico, na música, entre outras formas de expressões artísticas - das influências européias. Nesse contexto, destacam-se, na dramaturgia, as traduções e adaptações de textos franceses e de originais portugueses. No teatro ligeiro as zarzuelas espanholas e operetas francesas. No teatro lírico as óperas italianas. Lê-se na obra, que na música, o repertório austro-germânico e o francês, também se faziam presentes. Essas formas de espetáculo com influência européia povoavam os palcos de nosso Estado ao lado das produções nacionais com destaque na dramaturgia a qual tinha, como um dos temas preferenciais, as comédias de costumes. Assim, os grupos cultos poderiam criar uma distância de si próprios que permitisse a auto observação matizada de ironia, fina e sutil às vezes, outras, cáustica e corrosiva. Esse panorama descrito, não era um privilégio da cidade de Rio Grande; mas revelador do modelo de lazer cultural das principais cidades do Rio Grande do Sul. Esses locais integravam a vida urbana do Estado e desvendam o espírito polissêmico que envolvia a sociedade, calcada na cultura ocidental. Por outro, as comédias de costumes, entre outras formas de expressões artísticas locais, revelavam os conteúdos específicos da sociedade nacional. Nesse sentido o estudo encaminha para a compreensão da heterogeneidade intrínseca dessa sociedade construída historicamente.

A obra aqui apresentada constituí-se em um importante estudo sobre a difusão artístico-cultural na cidade de Rio Grande, assim como no Estado do Rio Grande do Sul. Ela permite a compreensão de como os contatos do sul do Brasil com o mundo europeu, no campo artístico-cultural, ocorreram.

A construção dessa descrição só foi possível de ser realizada graças ao enorme trabalho de pesquisa realizado pelo autor, tarefa que antecede a sua escrita. Através da construção de um importante banco de dados, Bittencourt, conseguiu comprovar a importância do atual estudo. Desse modo, a pesquisa possibilitou localizar o foco de discussão sobre o modelo de europeização da cultura brasileira, proposto nos palcos do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX. A narrativa apresentada revela, de forma visível, uma imagem dos palcos do passado. Através de sua investigação o autor pode constatar que os espaços teatrais integravam-se, completamente, à vida urbana; que foram um dos principais fatores que possibilitaram o contato da cidade com o mundo. Esse contato permitiu que o lazer, a arte, a cultura, o divertimento, a arquitetura, a política e a economia, pudessem ser lidos na dinâmica do processo de urbanização marcado pela ampliação e transformação dos espaços públicos de lazer.

O banco de dados, construído por Bittencourt, permitiu a análise que ora prefacio. No entanto ele, sem dúvida, não esgotou-se nesta publicação. A riqueza de seus dados, a densidade de suas informações permitem que se vislumbre muitas outras análises que poderão se beneficiar do árduo trabalho realizado. Obviamente haverá

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sobreposição de informações na medida em que tal estudo for cotejado por outros pesquisadores que, abordando a mesma temática, poderão desenvolver análises complementares, embasadas na sólida pesquisa efetuada pelo autor.

Ruth M. Chittó Gauer

Pós-Graduação em História/PUCRS

INTRODUÇÃO: OS ITINERÁRIOS DA PESQUISA

Esta obra constitui-se em uma edição revista e ampliada do primeiro volume de minha dissertação de mestrado em História do Brasil aprovada em agosto de 1998 no Curso de Pós-Graduação em História, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. O estudo buscou resgatar, de forma panorâmica, a vida social e cultural1 da Cidade de Rio Grande, enfocando, mais precisamente, a história e o papel de seus espaços teatrais (teatros, cine-teatros e clubes possuidores de palcos) nesta sociedade, de suas inerentes relações com a coletividade e com o meio urbano.

Embora tenha privilegiado os decênios de 1920 e 1930 – em função das fontes disponíveis à pesquisa – a obra acompanha o desenvolvimento da cidade e a dinâmica de sua população, desde o Período Colonial, percorrendo seus espaços públicos e semi-privados de sociabilidades e de cultura.2 Centrando as análises em Rio Grande, o estudo adquire dimensões que excedem as fronteiras municipais, revelando diversos aspectos das sociedades brasileira e sulina inclusas em um amplo processo civilizacional, irradiado mundialmente a partir do Ocidente e traduzido em nosso país, pela mestiçagem de culturas. 1 Quando utilizo a expressão “vida social e cultural”, de forma alguma estou dicotomizando sociedade e cultura. Ao contrário, meu objetivo é justamente enfatizar estas duas dimensões, indissociáveis, da atividade humana. Constituem-se, pois, em distintos planos de reflexões. 2 O sentido do termo “sociabilidade” empregado neste estudo, associa-se ao utilizado por Georg Simmel que o entende como uma parte integrante da vida pública, sendo uma prática social relacionada muito mais ao prazer do contato com o outro, ao gozo do estar junto, do que com a resolução dos problemas da vida, menos próxima do trabalho do que do lazer, definindo-se pela “interação entre iguais” e onde a diferença não pode interferir nesta aproximação. (SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal. São Paulo: Ática, 1983. p. 173.). Entendido em sua forma popular o conceito de “cultura” utilizado neste estudo relaciona-se a aquisição de conhecimentos, especificamente vinculados à instrução e às artes.

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A publicação desta dissertação sob a forma de livro, tem por objetivo atender à demanda não somente do público especializado, mas também dos leitores em geral, interessados sobre as atividades sociais e culturais desenvolvidas pela sociedade rio-grandina de tempos passados.

~~~ História, vida social, arte e cultura são temas que sempre despertaram meu interesse. Desde a infância “viajava” com as estórias de minha bisavó Dinorah ao contar-me que seu pai fazia parte de uma “companhia de cavalinhos”; do avô Ivan e suas peripécias nas agitadas matinées do Politeama; da avó Haydée e as aulas de piano e audições no Conservatório de Música; do maestro Piragine e as vivências dos espaços teatrais... Com grande prazer, perdia-me - ou encontrava-me ? – por horas, debruçado na elaboração de desenhos, pinturas, ousando na literatura e na dramaturgia. Aulas de artes plásticas e de canto lírico na Escola de Belas-Artes e até de ballet no Municipal, marcam meus primeiros contatos com as artes. O interesse pela vida social e cultural da cidade efetivaria-se em 1988, quando passei a assinar uma coluna no jornal A Opinião Pública, de Pelotas, enfocando estes assuntos. As aulas de francês - ou seria melhor, as “lições de vida” em francês – com a conhecida professora local Lyuba Duprat, intensificaram meu gosto pelas manifestações do espírito e pela história da cidade. No alto de seus noventa e tantos anos, mestre em língua e cultura francesas e em história da arte, a mente ainda lúcida e brilhante recordava, entre uma lição e outra, de um mundo passado: o Rio Grande do início do século XX, onde seus pais dirigiam-se elegantes em carro puxado a cavalo ao Teatro Sete de Setembro para assistir a Companhia de Operetas do maestro Lahoz. Na monografia de conclusão do Curso de História, da Universidade do Rio Grande, já revelaria o gosto pelas pesquisas na área da cultura. O tema: o antigo Conservatório de Música local.

Em 1995, atuando então como docente do Departamento de Biblioteconomia e História, desta universidade, fui apresentado pela Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Queiroz ao Arquivo “Coriolano Benício”. Foi como se as portas do paraíso tivessem se aberto: uma coleção com cerca de 3.000 prospectos publicitários de espaços teatrais locais, para não comentar os recortes de jornais com assuntos culturais e demais fontes. Mais tarde, perceberia que o paraíso idealizado no primeiro contato com aquele material raro, devidamente catalogado e disposto em muitas pastas perfiladas na prateleira, seria muitíssimo relativo.

Ante a este material, inquietei-me acerca das atividades sociais e culturais desenvolvidas na sociedade rio-grandina e, mais especificamente, por àquelas engendradas por seus espaços teatrais. Apreendendo-os como “espelhos de uma época” suas análises implicariam na revelação de inúmeros elementos articulados à história social.

Enfrentar o arquivo valorizando ao máximo suas preciosas informações, foi minha constante preocupação. Compulsando esse material levantei os nomes e as origens das companhias e dos artistas que se apresentaram na cidade, as datas dos espetáculos, os espaços teatrais utilizados, os programas executados, a autoria dos programas, os preços dos ingressos, a hora e a dinâmica do espetáculo, assim como informações sobre a orquestra e sua regência, a direção das companhias e outros dados. Após a compilação das múltiplas informações para fichas de transcrição individuais de cada espetáculo, foram

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elaboradas planilhas que possibilitaram uma primeira visualização da movimentação dos espaços teatrais rio-grandinos. Embora possua grandes lacunas, o acervo desta coleção de prospectos apresenta uma maior periodicidade a partir de 1920, estendendo-se até a década de 1980. Na impossibilidade de trabalhar com todo o período, resolvi me deter nas duas décadas iniciais do material, ou seja, os Anos Vinte e os Trinta. Para preencher as descontinuidades, utilizei o jornal Rio Grande, de janeiro de 1920 a dezembro de 1940, onde eram veiculadas as programações teatrais. Assim através de uma pesquisa exaustiva deste recorte temporal reconstituí, a quase totalidade da movimentação diária desses espaços.

Mas como iniciar um trabalho partindo do ano de 1920 se a história de muitos desses espaços remontava ao século XIX? Desta feita obriguei-me a mergulhar no Dezenove e nos primeiros decênios do Vinte. Para tanto utilizei a coluna diária Fatos e Coisas de Antanho, escrita por Manoel Pinto Ferreira Júnior (M.P.F.J., como assinava) publicada no jornal Rio Grande a partir de 1941 e que, valendo-se de antigos periódicos citadinos, remontava a diversos aspectos da vida cotidiana na cidade desde o século XIX, mais precisamente a partir de 1832 quando foi fundado o primeiro jornal local. A vida em sociedade e a movimentação teatral eram motes constantes da coluna. Fatos e Coisas de Antanho remetendo-me aos jornais originais utilizados por seu autor, possibilitou-me, além da obtenção de informações acerca da programação dos espaços teatrais, a apreensão de vários aspectos sócio-culturais da sociedade rio-grandina revelados, sobretudo, nos Capítulos II e III deste livro. Parcialmente transcrita como volume três de minha dissertação de mestrado e sob o título de Elementos à História Cultural da Cidade de Rio Grande (com 1.741 registros) a coluna foi organizada em ordem cronológica das informações nela contidas, facilitando o acompanhamento da história da sociedade local, e constituindo-se num rico material para futuras investigações.3 Se a movimentação artística percebida nos espaços teatrais de Rio Grande estava intimamente relacionada às ocorrências registradas por alguns autores, em casas de espetáculos do mesmo gênero nas cidades de Pelotas e de Porto Alegre, achei fundamental valer-me dessas publicações para estabelecer conexões entre elas, e assim possibilitar uma visualização mais ampla das atividades teatrais na Província/Estado. Deste propósito, somando várias fontes primárias e bibliografia disponível, nasceu a elaboração de um Banco de Dados – apresentado como o volume dois de minha dissertação de mestrado - contendo diversas informações sobre a movimentação teatral destas cidades, nos séculos XIX e XX (até 1940). A informatização do material (Programa Microsoft Access 97) permitiu-me múltiplas consultas e o entrecruzamento dos dados obtidos. As principais ocorrências nele levantadas fundamentaram os Capítulos V e VI desta obra, assim como o trato direto com os periódicos de época a que o referido banco remete. Manancial às múltiplas análises, Subsídios Para o Estudo da Movimentação Teatral no Rio Grande

3 A transcrição corresponde as colunas editadas entre 2 de janeiro de 1941 a 27 de dezembro de 1950. A interrupção da coleta de dados deveu-se à intensificação de repetidas informações observadas a partir desta data. Fatos e Coisas de Antanho, todavia, continuou a ser escrita até 1992, por diferentes autores. O material reproduzido não corresponde à totalidade dos registros apresentados na referida fonte, mas sim somente àqueles relacionados ao cotidiano da cidade e às atividades sociais e culturais de sua população. Cf. BITTENCOURT, Ezio. Elementos à História Cultural da Cidade de Rio Grande. In: _______. Sob Um Olhar Urbano, Sociabilidade, Cultura & Teatro no Brasil Meridional. Porto Alegre: PUCRS, 1998. v. 3 (Dissertação de Mestrado). Este material encontra-se disponível nas seguintes bibliotecas: FURG, em Rio Grande; PUCRS e Ciências Sociais e Humanidades/UFRGS, em Porto Alegre.

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do Sul (com 3.793 registros) não esgotou-se nesta pesquisa, merecendo posteriores abordagens.4 Somaram-se ao material utilizado na elaboração deste livro, vários periódicos, documentos oficiais, manuscritos, artigos em jornais, revistas, mapas, plantas urbanas, depoimentos, fotografias de época, gravuras, reproduções fonográficas, assim como dissertações de mestrado, teses de doutorado e bibliografia disponível. E aqui cabe a menção do nome de Leando Xavier Barbat, então acadêmico do Curso de História, da FURG que sob minha orientação, atuou nesta pesquisa de mestrado, durante os anos de 1995 a 1997. Sem dúvida, seu precioso auxílio na transcrição de fontes, determinou a qualidade desse estudo. Os processos de crescimento populacional, urbanização e industrialização pelos quais passou Rio Grande, intensificaram e diversificaram as atividades de lazer e cultura em seus vários segmentos sociais. A modernização da cidade e a adoção de novos hábitos e costumes, gerou a ampliação dos espaços públicos de sociabilidade, de suas vivências e a conseqüente dinamização das relações sociais de seus freqüentadores. Destas transformações os espaços teatrais foram partícipes, desempenhando papel de relevância nas novas formas de viver a cidade e seus espaços constitutivos. Abertos, permanentemente, às trocas e manifestações da coletividade, ao lazer (e aqui incluo o lazer instrutivo), à criação e difusão artístico-cultural, à representação social, à informação e formação... eles adquiriram grande importância nas dimensões da vida social e cultural da cidade, constituindo-se em sinônimos de urbanidade e modernidade. Ícones dos prazeres de uma cidade. Se os teatros do século XIX metamorfosearam-se em cine-teatros com o advento do cinematógrafo, este estudo preocupa-se, quase que exclusivamente, com a movimentação cênica e com as diferentes atividades desenvolvidas nos espaços físicos dessas casas de espetáculos. Compõem também o que denominei de “espaços teatrais” as sociedades recreativas possuidoras de palco. A programação cinematográfica registrada, adquire aqui um papel irrelevante, na medida em que seria impossível dar conta das ocorrências de palco e de tela, em função do exíguo tempo determinado à pesquisa. No levantamento bibliográfico realizado, somente três obras, todas de Lothar Hessel e Georges Raeders fazem referências às atividades teatrais na cidade de Rio Grande, a saber: O Teatro no Brasil: da Colônia à Regência (1974) e O Teatro no Brasil: sob Dom Pedro II (1ª Parte, 1979 – 2ª Parte, 1986). O estudo mais recente é o artigo intitulado Apontamentos Sobre o Movimento Teatral em Rio Grande no Século XIX (1996) que assino na revista Biblos v. 8 do Departamento de Biblioteconomia e História, da Universidade do Rio Grande, então baseado em dados levantados na elaboração do projeto de minha pesquisa desenvolvida no mestrado. A modernização de Rio Grande, sua vida social e cultural, foram temas até agora abordados nas franjas dos estudos historiográficos sobre a cidade. Contar sua história alijando-os desse processo, é desconsiderar aspectos imprescindíveis à compreensão da sociedade como um todo, em seus diferentes níveis estruturais. Portanto, esta publicação propõe-se, primeiramente, a preencher esta lacuna, oferecendo subsídios

4 Cf. BITTENCOURT, Ezio. Subsídios Para o Estudo da Movimentação Teatral no Rio Grande do Sul. In: _______. Sob Um Olhar Urbano, Sociabilidade, Cultura & Teatro no Brasil Meridional. Porto Alegre: PUCRS, 1998. v. 2 (Dissertação de Mestrado). A obra pode ser, igualmente, consultada nas bibliotecas supracitadas. Os dados apresentados nesta brochura constituem-se na principal fonte de pesquisa de meu Doutoramento, em Literatura Comparada: Estudos Culturais desenvolvido junto a Université de Genève, Suíça.

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capazes de dar uma maior sustentação e embasamento aos próximos trabalhos de pesquisa. Bebendo da História Social e sob a influência de Lucien Febvre, entendo que o “objeto de nossos estudos não é um fragmento do real, um dos aspectos isolados da atividade humana, mas o próprio Homem, considerado no seio dos grupos de que é membro”.5 Na busca da visão do todo, inspiro-me igualmente em Gilberto Freyre que, com muita propriedade, compreende o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira. As obras Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre, no Século XIX (1956), de Athos Damasceno; O Teatro São Pedro na Vida Cultural do Rio Grande do Sul (1975), de Athos Damasceno, Guilhermino César, Paulo Moritz e Herbert Caro; Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século (1993), de Jeffrey Needell e A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro Republicano (1993), de Rosa Maria Araújo, serviram de base a este escrito. Estruturado em seis capítulos, Da Rua ao Teatro, os Prazeres de Uma Cidade: sociabilidades & cultura no Brasil Meridional - panorama da história de Rio Grande, possui como principais características o ineditismo de muitas de suas informações e o exaustivo levantamento de dados apresentados em listagens ao longo do texto e em generosas notas de rodapé de página.

O Capítulo I – O Espetáculo da Cidade: Rio Grande, do barroco ao ecletismo – preocupa-se com o cenário que acolhe a coletividade: aborda panoramicamente a construção do espaço urbano e suas transformações; a modernização da cidade; infra-estrutura oferecida, ambiência e atmosfera social, as atividades produtivas; a origem da população; a utopia da cidade e do Brasil modernos, as imagens da cidade; O Capítulo II – Organização & Movimento: a sociedade rio-grandina – enfoca as diferentes formas de sociabilidades e de “viver a cidade” - festas e lazeres ao ar livre: procissões; quermesse; festas religiosas; Entrudo e o Carnaval; comemorações oficiais; utilização de ruas, largos e praças pela coletividade; piqueniques familiares nas cercanias da urbe; o gosto pelos esportes; as reuniões no balneário; a organização da sociedade em várias formas associativistas; os saraus lítero-musicais; os clubes; os salões de festas públicos; a influência dos imigrantes europeus na ampliação e diversificação das ofertas de entretenimentos e cultura; bilhares; bares; cafés; atrações itinerantes: teatrinhos de bonecos, circos e espetáculos de vistas; cabarets; e referencia os (cine-) teatros e cinemas. O Capítulo III – Educação, Arte & Cultura: a montagem do patrimônio local – apresenta breves notas sobre a educação em Rio Grande e suas instituições; os contextos de leitura: bibliotecas, jornais, livrarias; o desenvolvimento das belas-artes: pintura, escultura, cenografia, litografia, artistas; o ensino local da dança; o aprendizado da música, instituições e o papel do Conservatório neste processo, compositores, obras, maestros e músicos; as sociedades dramáticas, autores, obras e atores locais. O Capítulo IV – O Espaço Teatral: seus usos, imagens e significados – discute a utilização do material visual como fonte de pesquisa para a história; a relação do edifício de um espaço teatral com a cidade, com a sociedade e sua apreensão pelo historiador; a história e a iconologia dos espaços teatrais; a utilização desses espaços para as manifestações da coletividade: bailes, sessões fúnebres, reuniões políticas, etc.

5 FEBVRE Apud. CARDOSO, Ciro e BRIGNOLI, Héctor. Os Métodos da História. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 349.

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O Capítulo V – Sob os Olhos de Clio; Melpômene, Tália, Euterpe & Terpsícore Ocupam a Cena – traz à ribalta o universo das grandes artes do espetáculo: o teatro (dramático; ligeiro: zarzuelas, operetas e revistas; e o lírico); a dança e a música. O Capítulo VI – De Érato à Greta Garbo – ocupa-se das demais atrações cênicas: declamação; transformismo; ilusionismo; proezas, raridades e pugilismo; espetáculos de bonecos, números circenses; espetáculos de variedades - assim como dos aparelhos óticos de reprodução de imagens ou de efeitos visuais; dos aparelhos sonoros e finalmente, do cinematógrafo. Para finalizar, traço alguns comentários sobre o processo de formação e o caráter da cultura brasileira. Em Últimas Notas, revejo os pontos básicos desse estudo, sintetizando as principais idéias desenvolvidas ao longo dos capítulos.

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Qualquer evento, mais ou menos complexo, produz um número incrivelmente grande de fontes. Não nos é possível, evidentemente, trabalhar com todos estes documentos. Temos que selecioná-los, cruzando as informações neles contidas. Neste processo entra a imaginação e a subjetividade. A imagem que fazemos não apenas de um acontecimento histórico, mas de qualquer elemento da realidade, é sempre o encontro das fontes e das experiências, com as projeções de expectativas, de conceitos pré-fabricados, de preconceitos e de conceitos fornecidos por nossa língua e cultura.6 Por mais que nos esforcemos, nossas narrativas jamais retratarão diretamente a realidade pois percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e esteriótipos próprios de nossa cultura7. Conforme Hayden White, “as histórias nunca devem ser lidas como signos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que ‘comparam’ os acontecimentos nelas expostos a alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária”8. O trabalho do historiador nada mais é que uma “síntese hipotética” na medida em que pretende “reconstruir a totalidade da imagem a partir do conhecimento dos fatos particulares”, levando em consideração que “estes fatos não são nunca absolutamente evidentes nem verificáveis”. A influência do fator subjetivo faz com que um mesmo acontecimento seja apreendido de forma distinta por diferentes historiadores. Outra constatação é a de que o saber é constituído por um processo infinito de “acúmulo de verdades parciais” e que o somatório delas contribui para o progresso do conhecimento. O conhecimento individual é sempre limitado e agravado pela influência do fator subjetivo; verdade parcial, só pode ser relativa. O processo do conhecimento deve então ser socializado. Sua objetividade realiza-se na superação dos limites ligados a ação do fator subjetivo. A auto-reflexão apresenta-se, aqui, como um dos meios que permite ao historiador tomar consciência das formas subjetivas, auxiliando-o a vencer suas más influências. O historiador, tem que perseguir incessantemente a objetividade, mas sabe-se de antemão, que esta adquire um caráter “relativo” em nossa disciplina. O “relativismo objetivo” da história, apontado por Adam Schaff, conduz o autor a afirmar que o processo 6 Cf. BITTENCOURT, Ezio. A Dimensão Literária da História e Seus Desdobramentos. Biblos. Rio Grande: FURG, v.9, p.11-24, 1997. 7 BURKE, Peter. Abertura: A Nova História, Seu Passado e Seu Futuro. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p.15. 8 WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a critica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994. p. 58, 108.

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cognitivo histórico “produz sempre verdades relativas e que só o processo infinito do conhecimento tende para a verdade absoluta”9 . Assumir a subjetividade e a precariedade das perspectivas no enfoque de nossos objetos de estudo seria, talvez, uma forma menos ilusória e, portanto, mais eficaz de conhecer. Na percepção do passado histórico, ocorre, um processo de presentificação. Por mais que nos alicercemos em documentos e depoimentos, estes serão sempre permeados por uma consciência atualizada. Não podemos nos esquecer também, que estas fontes são textos do passado - não o passado e que tampouco são neutros. Bem entendido, o historiador trabalha não com o passado, mas com o que dele restou: seus vestígios. O mais, é um esforço imaginativo. É “a arte dentro do arquivo”, nas palavras de Michel Foucault. O “problema da invenção” é muito bem trabalhado pela historiadora Natalie Davis. Na tentativa de usar sua imaginação para reconstruir o passado, adverte ao leitor que, apesar da cuidadosa pesquisa documental na qual se baseou seus estudos, sua obra (no caso, O Retorno de Martin Guèrre) é, em parte, invenção dela “ainda que em rigorosa harmonia com as vozes do passado”10. Como bem conclui o antropólogo Clifford Geertz, “o real é tão imaginado quanto o imaginário”. Todavia, contra a arbitrariedade do pesquisador na “encenação do arquivo”, as fontes possuem o poder de impor um veto à fantasia desvairada. A imaginação histórica não é completamente livre e necessariamente tem que remeter à questão da evidência. Ao contrário das ficções literárias as obras historiográficas são feitas de acontecimentos que existem fora da consciência do escritor, e que obedecem a “protocolos de verdade” 11 . Gilbert Durand alerta que , “uma ‘disciplina’ estreita não pode senão destapar sobre uma anemia da descoberta”12. Neste sentido, frente à complexidade dos objetos de investigação, os pesquisadores conscientizam-se da exigência em tornar as fronteiras das disciplinas, o mais permeável possível, permitindo-lhes um circular nos diversos domínios do conhecimento. Assim, conforme Jacques Le Goff, o historiador deve considerar todos os documentos legados pelas sociedades: “o documento literário e o documento artístico, especialmente, devem ser integrados em sua explicação, sem que a especificidade desses documentos e dos desígnios humanos de que são produto seja desconhecida”. Nenhum tipo de documento é uma evidência neutra para a reconstrução histórica. É antes, um signo incluso num contexto espaço-temporal. O processo de conhecimento histórico implica a leitura destes sinais13. Consciente de tais postulados este estudo passeia por vários campos do saber: sociologia, antropologia, filosofia, arquitetura, comunicação, geografia, economia... letras e artes, sorvendo elementos às análises históricas. Isto posto, valendo-me mais uma vez de teóricos da história, gostaria de expor meu entendimento sobre a elaboração do texto historiográfico. Para Paul Veyne, é vão opor uma história descritiva ou narrativa a uma outra que teria a ambição de ser analítica ou explicativa. As ciências humanas, sendo ciências, quer dizer “sistemas hipotético-dedutivos”, querem “explicar” exatamente como o fazem as ciências físicas. Entretanto:

9 SCHAFF, Adam. História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 285,286, 303. 10 BIERSACK, Aletta. Saber Local, História Local: Geertz a Além. In: HUNT, Lynn (Org.) A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992,p.104. Cf. DAVIS, Natalie. The Return of Martin Guerre (Cambridge, Mass.,1983), pp.viii,5. 11 WHITE. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: UNESP, 1992. p.21. 12 DURAND, Gilbert. Interdisciplinarité et Heuristique. UNESCO, Avril, 1991. p.4,2. 13 LE GOFF, Jacques. A História Nova .São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.57.

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a história não explica, no sentido em que não pode deduzir e prever (só o pode um sistema hipotético-dedutivo); as suas explicações não são o reenvio para um princípio que tornaria o acontecimento inteligível, são o sentido que o historiador empresta à narrativa. [...] A história é narração; não é determinação e tão pouco explicação; a oposição dos ‘fatos’ e das ‘causas’ é uma ilusão [...]. É em contrapartida uma idéia generalizada que uma historiografia digna desse nome e verdadeiramente científica deve passar de uma história ‘narrativa’ a uma história ‘explicativa’ [...]. O progresso da história não está em passar da narração à explicação (toda a narração é explicativa) mas em levar a narração mais longe ao não-acontecimental.14

Nas palavras de White, “uma das marcas do bom historiador profissional, é a firmeza com que ele lembra a seus leitores a natureza provisória das suas caracterizações dos acontecimentos, dos agentes e das atividades encontradas no registro histórico sempre incompleto”.15 Não podemos mais negar nossa subjetividade, escondendo-nos atrás de narrativas “impessoais” do tipo: observa-se, conclui-se... ou das “socializantes” com seus observamos e concluímos. Penso que os historiadores devem se tornar visíveis em suas narrativas advertindo aos leitores que não são oniscientes ou imparciais e que outras interpretações além das suas são possíveis. Neste sentido utilizo a voz narrativa na primeira pessoa e procuro, ao máximo, entremear minha fala com a de outros autores e com as informações das fontes utilizadas, valorizando tanto aqueles que já trataram dos temas enfocados, quanto as vozes do passado. A narrativa tem por objetivo produzir um quadro, uma imagem do passado vislumbrado por meio de uma boa história. Se a história constituiu-se ciência em suas “operações investigativas”, compartilho da idéia de que deve igualmente constituir-se arte em suas “operações narrativas”. A ciência não precisa ser tediosa e a arte não tem porque ser imprecisa. Nossa função não deve limitar-se a conhecer a realidade histórica, mas também a de transmiti-la o mais agradavelmente possível, através da difícil arte da literatura. 16 Todavia, mesmo sob as amarras das formas “científicas” de expressão e normas técnicas de apresentação que aqui se impuseram, pretendo oferecer-lhes uma prazeirosa leitura.

Apropriando-me das palavras de Natalie Davis, a história que agora lhes ofereço é, em parte, invenção minha, embora alicerçado em vasta documentação.

14 VEYNE, Paul. Como Se Escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 108,110,113,114. 15 WHITE, Trópicos..., op. cit., p. 98. 16 BITTENCOURT, Ezio. A Escrita da História e a Sedução do Leitor. Biblos . Rio Grande: FURG, v.10, p. 45-51, 1998.

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O ESPETÁCULO DA CIDADE: RIO GRANDE, DO BARROCO AO ECLETISMO

1.1 – A CONSTRUÇÃO DO URBANO A fundação de Rio Grande em 1737, na embocadura da Laguna dos Patos, estava intimamente relacionada com o projeto português de expandir seus domínios até o Prata. Sua importância geopolítica devia-se à proximidade com a Colônia do Sacramento,

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marco do domínio lusitano na Região Platina, às possibilidades de acesso e conquista da hinterlândia do território sulino através da rede hidrográfica da Laguna dos Patos e da Bacia do Rio da Prata, e de constituir-se no único porto marítimo no extremo sul do Brasil.17 O povoado de crescimento lento, surgido à margem sudoeste do Rio Grande em torno da função militar do lugar, mal construído e abandonado em si mesmo ganhou notável impulso a partir de 1752 com a chegada de colonizadores provenientes do lusitano Arquipélago dos Açores.18 Debruçando-se sobre este passado colonial, Maria Luíza Bertuline Queiroz enfatiza que “a importância da imigração açoriana para a Vila de Rio Grande em termos demográficos foi excepcional. Ela representou um acréscimo, em menos de cinco anos, de pelo menos 1.273 pessoas adultas brancas, a uma população que, incluindo todos os grupos raciais, na metade da década anterior, teria 1.400 almas”.19 Dedicando-se basicamente à agricultura e à pesca e alguns à criação de gado e ao comércio, o contingente de ilhéus imprimiu à vila uma feição tipicamente açoriana. Como símbolo deste período inaugurou-se em 1755 a Matriz de São Pedro, substituindo a Igreja de Nossa Senhora do Rosário destruída por um incêndio em 1752. Majestoso entre as areias brancas e pequenos casebres, o edifício barroco, constituiu-se por décadas, na única construção em alvenaria do lugar.20 Em 1763 o assentamento urbano instalado junto à margem norte do pontal de Rio Grande possuía 131 casas e contava com 714 casais. Destes, 545 eram formados por açorianos e mistos com açorianos e 169 de várias origens. Todavia, com a invasão e o conseqüente domínio espanhol na vila (1763-1776) muitos casais transferiram-se para o norte do canal (São José do Norte) e outros espalharam-se pelo “Continente”, intensificando a irradiação do processo de povoamento.21 Restabelecido o domínio português, recolonizou-se a praça. Somaram-se aos poucos casais açorianos que permaneceram um contingente de diversas origens, oriundos de partes do Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai e das Ilhas da Madeira e dos Açores.22

17 Construído na realidade na embocadura da Laguna dos Patos, a proximidade do porto de Rio Grande com o Oceano Atlântico lhe confere, na prática, a qualidade de porto marítimo. Durante a primeira metade do século XVIII Rio Grande, Viamão e Rio Pardo constituíam-se nos postos militares avançados da conquista do território. 18 A imigração açoriana marcou fortemente o processo de formação de muitos núcleos urbanos sul-rio-grandenses. Neste mesmo ano, os primeiros ilhéus se estabeleceram às margens do lago Guaíba, no porto do Arraial de Viamão, que passou a ser conhecido como Porto de São Francisco dos Casais, núcleo inicial da futura cidade de Porto Alegre. Os primeiros povoadores brancos civis a chegarem a Rio Grande entre os anos de 1737-1738 são de origem espanhola (provenientes de Santa Fé, Corrientes, Entre Rios e do Paraguai) ou luso-brasileiros (provenientes de São Paulo, Sacramento, e do Rio de Janeiro). Também neste período índios tapes foram incorporados à colônia. Mais tarde, por volta de 1749, os índios minuanos são igualmente assimilados. (Cf. QUEIROZ, Maria Luiza. A Vila de Rio Grande de São Pedro 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987. p.53-62, 81.) 19 QUEIROZ, A Vila...,op. cit., p. 91. 20 Encontrando-se atualmente restaurado, este templo personifica o passado colonial da cidade. 21 QUEIROZ, A Vila...,op. cit., p.128,116. Confira na obra supracitada mapa da cidade neste período p. 128. Como conseqüência direta da presença espanhola na vila transferiu-se a sede administrativa da Capitania do Rio Grande de São Pedro, de Rio Grande para Viamão. Em 1773 a capital da Província passou, de forma definitiva, para a Freguesia de São Francisco dos Casais. 22 Estes novos ilhéus, provinham diretamente das ilhas, ou do Rio de Janeiro e não possuíam nenhuma ligação com a “política de casais” do princípio da segunda metade do século XVIII. QUEIROZ, A Vila...,op. cit., p.129-136.

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Durante quase todo o século XVIII, a economia rio-grandina esteve ligada à pecuária, limitada à criação de mulas e cavalos, indispensáveis no intercâmbio e comércio, e à agricultura de subsistência, estando a cidade totalmente dependente do abastecimento externo.23 Entretanto, a perda da Colônia do Sacramento aos espanhóis (Tratado de Santo Ildefonso-1777) e o início do Ciclo do Charque na região no começo da década de oitenta, cuja produção viria a escoar por Rio Grande, intensificaram as atividades portuárias proporcionando-lhe uma nova configuração econômica.24 A implantação da Alfândega em Rio Grande em 1804, transformou a vila na única saída dos produtos derivados do gado produzidos na Campanha que demandavam às demais regiões do país e ao exterior.25

Em face da expansão da produção e do comércio do charque deu-se um significativo crescimento populacional, de feição predominantemente urbana. No início do século XIX a vila modificou sua histórica função militar, metamorfoseando-se no principal centro comercial do extremo sul do Brasil Conforme Queiroz, ”em 1808 o número de comerciantes estabelecidos na vila alcançava a 40; desses, 19 eram portugueses e os demais procediam da Colônia do Sacramento, de Viamão, da Ilha de Santa Catarina, e do Rio de Janeiro; um era espanhol e um outro era italiano, e apenas um era natural da Freguesia do Rio Grande”.26

Em 1809 o Município de Rio Grande possuía 41.000 km2, compreendendo as terras de Jaguarão, Arroio Grande, Bagé, Cangussu, Piratini, Herval, Pelotas, Pinheiro Machado, São Lourenço do Sul e São José do Norte. Se, mais tarde o desmembramento do antigo município, deixou grandes e importantes áreas produtivas rurais fora de sua jurisdição limitando a agricultura e a pecuária locais às difíceis condições impostas por seu solo arenoso, o desenvolvimento da agropecuária e das charqueadas nestes novos municípios fez crescer o número de mercadorias movimentadas via porto da cidade. O comércio por Rio Grande era uma conseqüência natural da expansão econômica e das necessidades dos novos núcleos urbanos sul-rio-grandenses. Desta feita, o porto constituiu-se num elemento primordial para o dinamismo, empreendimento e crescimento da urbe.

Sob a política joanina o Brasil transformou-se num fértil terreno para os produtos da indústria européia, sobretudo, da inglesa. Importavam-se louças e porcelanas, cristais e vidros, móveis, utensílios de ferro, artigos de luxo e de toucador... e, também, hábitos e costumes. Foi todavia a partir dos meados do século que eles ampliaram-se e consolidaram-se no país, suplantando de vez os artigos asiáticos. Aos poucos o Oriente foi

23 QUEIROZ, A Vila...,op. cit.,p.142. Frente a pobreza do solo arenoso, a economia agropastoril rio-grandina dos primeiros tempos logo cedeu lugar ao intercâmbio comercial. 24 SALVATORI, Elena et alii. Crescimento Horizontal da Cidade de Rio Grande. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro. V.51, n.1, jan/mai 1989, p. 47. Estudando a urbanização de Rio Grande as autoras relacionam este processo diretamente com sete ciclos sócio-econômicos, a meu ver, muito bem percebidos: Período da Conquista (1650-1750), Período da Posse Consolidada (1750-1822), Período do Comércio Atacadista de Importação e de Exportação (1850-1870), Período de Industrialização (1870-1920), Período da Modernização Industrial (1920-1950), Período de Estagnação (1950-1970) e Período do Superporto e Distrito Industrial (a partir de 1970). Cf. Idid., p. 46-49. 25 O charque veio a constituir-se no produto mais importante das exportações do Rio Grande do Sul durante o Período Imperial. Rio Grande e Pelotas, enquanto cidades catalizadoras da economia pecuário-charqueadora da região da Campanha, gozavam de grande prosperidade. Durante a República Velha (1890-1930) entretanto, deu-se uma progressiva redistribuição do peso econômico das diferentes regiões do Estado. A tradicional economia da Campanha passou por uma estagnação, sendo substituída pela da Serra e do Planalto, baseadas então na policultura. Sobre o assunto confira: FONSECA, Pedro Dutra. R.S: economia & conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. 26 QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 156.

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enfraquecendo-se nas casas de comércio, assim como no trajo, no interior das residências, nas relações e práticas sociais.27

Nas primeiras décadas do Oitocentos Rio Grande havia se transformado no “maior mercado do Brasil Meridional”, local onde os principais negociantes residiam ou tinham seus agentes estabelecidos. Segundo o comerciante inglês John Luccock, em 1809 “a pequenina e linda cidadezinha branca de São Pedro do Sul, mais comumente chamada de Rio Grande” possuía “cerca de 500 habitações, e o total de habitantes fixos talvez ascendesse a 2.000”, população cujo aumento relacionava-se diretamente ao “decorrente progresso no comércio”. Apresentava “uma fileira de casas, que era realmente bonita e graciosa”; por traz desta “ficava uma rua de cabanas pequeninas e baixas, feitas de barro e coberta de palha, habitações das classes mais baixas”.28

FIGURA 1 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, em 1809 com seus quatro imensos municípios: Rio Grande, Rio Pardo, Porto Alegre e Santo Antônio. Extraído de: QUEIROZ Maria Luiza. A Vila do Rio Grande de São Pedro: 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987. p. 155.

De 1811 a 1819 o número de construções na vila elevou-se de 269 para 348.29 Conforme o naturalista francês Auguste François César Provensal de Saint-Hilaire, Rio Grande em 1820, estendendo-se paralela ao canal, “compunha-se de 6 ruas muito desiguais, atravessadas por outras excessivamente estreitas, denominadas becos”. A principal via pública, chamada de Rua da Praia (atual, rua Marechal Floriano Peixoto), era a mais extensa, estando nela localizadas “belas casas” assobradadas com sacadas e balcões de ferro, assim como “quase todas as lojas e a maioria das vendas, uma e outra igualmente sortidas”. Margeando o cais do porto a importante rua Nova das Flores (depois Bela Vista e, atualmente, rua Riachuelo) possuía, igualmente, modernas construções. As quatro últimas ruas paralelas eram compostas por casebres miseráveis construídos de pau-a-pique ocupados pela população pobre.30

No período de 1750 a 1822, segundo as arquitetas Salvatori, Habiaga e Thormann, “observa-se que o núcleo urbano concentrava-se junto ao porto limitado a leste e sul por alagadiços e a oeste por dunas móveis, que invadiam lentamente a cidade, fazendo-a recuar para leste, à custa de aterros de areia e entulho, assumindo a forma triangular”.31

Em 1822, a vila possuía 346 edifícios32, 24 lojas de fazenda, 15 armazéns de atacado, 3 boticas, 2 ferreiros, 2 tanoeiros, 2 ourives, duas lojas de louça, 2 latoeiros e 1 caldeiro, a maior parte deste complexo comercial localizado na Rua da Praia.33

27 Sobre a forte presença de elementos asiáticos e também de africanos na sociedade brasileira indico o brilhante estudo de: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. 28 LUCCOCK, John. Aspectos Sul-Rio-Grandenses no Primeiro Quartel do Século XIX. Rio de Janeiro: Record, 1935. p. 115-117,122. 29 PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais do Município do Rio Grande. Porto Alegre: Gráfica da Imprensa Oficial, 1944, p.56. Confira nessa obra a série completa. 30 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987. p.74. Os antigos nomes de ruas, praças e largos de Rio Grande podem ser obtidos em: FREITAS, Maria Regina & HUCH, Elza Edith. História Social do Rio Grande. Rio Grande: FURG, 1983. p. 10-11. (Mimeo.) 31 SALVATORI, op. cit., p. 47. 32 PIMENTEL, op. cit., p.56.

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A dragagem do cais e a construção do Porto Velho concluídas em 1823, permitiram o atraque de navios com mais de 200 toneladas, melhorias que dinamizaram o comércio local.34 Essas obras e inúmeras outras de modernização da vila, foram financiadas por seus comerciantes, evidenciando o “espírito de associação” e o “progressismo” da elite rio-grandina.35

Para Queiroz, “em nenhum exagero incorre a afirmação de que todo o progresso e desenvolvimento da Vila do Rio Grande adveio da sua função comercial e da ação interessada e direta de seus comerciantes, diante de seus problemas mais graves, substituindo a inércia a que a Câmara local se via obrigada em razão de contar com rendimentos que não garantiam, sequer, a sua própria manutenção”.36

FIGURA 2 – Aquarela do pintor francês Jean-Baptiste Debret retratando Saint Pierre du Sud (Rio Grande), por volta de 1824. Em destaque, observam-se muitos armazéns e sobrados recentemente construídos à Rua Novas das Flores, e a Matriz de São Pedro . Extraído de: BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense. v.1. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973. p. 400. A prosperidade decorrente das atividades comerciais foi responsável pela modificação da fisionomia da vila observada por Saint-Hilaire. Da mesma nacionalidade, o viajante Nicolau Dreys, assim escreve em 1825:

No meio das areias estéreis que a circundam e invadem continuamente, ela se apresenta como uma criação excepcional da política e do comércio: indiferente ao território que ocupa, não deve nada senão ao caráter ativo, industrioso e empreendedor dos habitantes. Ali, o homem pode mais que a natureza; aonde achou impotência e miséria ele fez nascer prosperidade; pois a cidade de S. Pedro, com suas casas suntuosas, seus ricos armazéns, seus cais regulares e seu porto retificado, pode agora concorrer com as mais notáveis cidades da América do Sul.37

Em 1834, segundo outro francês - Louis-Fredéric Arsène Isabelle - a Vila de Rio Grande possuía 4.000 habitantes, “edifícios [...] construídos no gosto e na forma dos de Porto Alegre [...], soberbas casas de três andares, com balcões de ferro e fachada de pedra lavrada”. Reafirmando o dinamismo da iniciativa privada, Isabelle comenta que os negociantes locais empregavam “grande parte de suas fortunas em empresas de utilidade

33 CHAVES, Antônio Gonçalves. Memórias econômico-políticas sobre a administração pública do Brasil... Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2, 3 trim. 1922. p.325 34 QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 157. 35 ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834) .Porto Alegre: Martins Livreiro: 1983. p.77. 36 QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.156. 37 DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: INL,1961. p. 110-111.

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pública, tentando atrair o comércio estrangeiro”.38 No ano seguinte, Rio Grande foi elevado a categoria de cidade.

No mesmo 1835 eclodiria a Revolução Farroupilha que, estendendo por quase dez anos a guerra civil, arrasou economicamente a Província. Mantendo-se fiel ao Império, Rio Grande não chegou a ser ocupado pelos revoltosos, no entanto, sentiu profundamente a crise da guerra refletida na queda da movimentação do porto. Encerrado o embate os governos provincial e municipal empenharam-se na recuperação de suas finanças. Neste sentido executaram-se ao final da década de 1840 algumas reformas urbanísticas e o aperfeiçoamento dos serviços públicos que, objetivando a melhoria da infra-estrutura da cidade, asseguraram a permanência de sua destacada posição econômica no cenário sul-rio-grandense.

Em princípios de 1850 impô-se o comércio atacadista de exportação e de importação. Definiu-se nesta atividade a vocação e pujança do Município.39

As relações do Brasil com nações européias intensificadas neste período, foram fundamentais na sedimentação do modelo de civilização importado daquele continente. A adoção de práticas culturais aristocráticas européias, notadamente franco-inglesas, serviam para reforçar e legitimar a distinção e a superioridade das elites. Envolvida no grande comércio marítimo, a burguesia citadina ascendeu socialmente e imprimiu seu estilo de vida europeizado às relações sociais e à fisionomia urbana. Deste segmento social saíam os representantes do povo na Câmara e na liderança do Executivo local. A dinâmica social possibilitou o surgimento dos profissionais liberais compondo a classe média.

FIGURA 3 – Litografia do francês Francis Richard intitulada Le Quai de Belle-Vue à San Pedro de Rio-Grande (Brésil) retratando o próspero Porto de Rio Grande e a arquitetura civil luso-brasileira predominante na cidade. Embora não se possa datá-la precisamente, sabe-se que é anterior a 1865 quando, em decorrência da Guerra do Paraguai, a rua Bela Vista passou a ser denominada de Riachuelo. Extraído de: BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense. v.2. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976. p. 1132 Com muito talento e propriedade, Gilberto Freyre sintetiza em um parágrafo, as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira da segunda metade do Oitocentos:

A valorização social começara a fazer-se em volta de outros elementos: em torno da Europa burguesa, donde nos foram chegando novos estilos de vida, contrários aos rurais e mesmo aos patriarcais: o chá, o governo de gabinete, a cerveja inglesa, a botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa de homem menos colorida e mais cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi substituindo a igreja; pela carruagem de quatro rodas, que foi substituindo o cavalo ou o palanquim; pela bengala e pelo chapéu-de-sol que foram substituindo a espada de capitão ou de sargento-

38 ISABELLE, op. cit., p.77-78. 39 SALVATORI, op. cit., p.47. Já no início do século, Gonçalves Chaves prenunciava a possibilidade da cidade vir a tornar-se “uma nova Amsterdã ” ao sul do país. (CHAVES, op. cit.. p. 177).

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mor dos antigos senhores rurais. E todos esses novos valores foram tornando-se as insígnias de mando de uma nova aristocracia: a dos sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e bacharéis talvez mais que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta: a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para tolerarem a vida rural na sua pureza rude.40

Se desde o Descobrimento a cultura européia jamais deixou de se fazer sentir no Brasil, é notório que no tempo da Colônia as influências orientais (asiáticas e africanas) eram dominantes, revelando-se em diversos aspectos da vida nacional. Com o fim desde período e o conseqüente estreitamento de nossas relações com as nações européias, intensificaram-se as influências do Velho Mundo no novel Império. O Brasil buscaria, então, integrar-se mais participativamente à moderna Civilização Ocidental.41 Refutando o conceito de “reeuropeização” utilizado por Freyre para designar o processo que levou à maciça presença da cultura européia no país, Jeffrey Needell fortalece a idéia de que esta influência deve ser vista como um continuum percebido em diferentes graus desde 1500 e, grandemente, intensificado neste período. Em suas palavras, “mesmo na condição de possessão portuguesa fechada, muito do que ocorria no mundo europeu era sentido no Brasil, por mais fracos que fossem os ecos. Diferente, no século XIX, é a intensidade do impacto, resultante do fim da antiga ordem colonial e da emergência gradual e segura da ordem neocolonial. [...] O que se vê [em meados] deste século não é sua introdução, mas seu triunfo”.42

Se na intimidade das casas havia uma acentuada continuidade da cultura tradicional, fora dela, impunha-se uma fantasia europeizante, deslocada e alienadora. As populações urbanas das cidades brasileiras da segunda metade do Oitocentos procuravam parecer o mais européias possível. E aqui se faz importante a noção de que a cidade é, justamente, o local onde melhor se realiza a padronização dos comportamentos.

40 FREYRE, Sobrados... , op. cit., p. 574. 41 Conforme as idéias de Regis de Morais desenvolvidas em sua tese de livre docência, o rigoroso isolamento imposto à colônia brasileira advinha da própria segregação que Portugal determinava a si mesmo. Em suas palavras, “sob uma religiosidade regressiva ou no mínimo estagnante, sob uma concepção político-econômica igualmente paralisante, a nação portuguesa obstinava-se em não mudar e, conseqüentemente, em não permitir que a modernização do mundo ocidental atingisse suas colônias”. Mesmo que este pensamento largamente difundido reflita uma visão linear do processo histórico e já tenha sido contestado por alguns autores, acho pertinente fazer o registro. O certo é que, com o término do Período Colonial e, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, incrementou-se o processo de sintonização da sociedade brasileira com a modernidade européia. Para Ruth Gauer, a modernidade portuguesa foi implantada pela Reforma de 1772 que teve como artífice o Marquês de Pombal, então ministro do monarca D. José I. Sobre o assunto confira também o capítulo intitulado Fases do Europeísmo Brasileiro em: MORAIS, Regis de. Cultura Brasileira e Educação. São Paulo: Papirus, 1989. p.69-89. MORAIS, Régis de. Europeização, Europeísmo e Cultura Brasileira. Reflexão. Campinas. Ano II, n.7, set.1977. p. 399-417. NOGUEIRA, Emília. Alguns Aspectos da Influência Francesa em São Paulo na Segunda Metade do Século XIX. Revista de História. São Paulo. Ano IV. N. 16, out/dez. 1953. p. 317-342. LIMA, Alceu Amoroso. A Influência do Pensamento Francês no Brasil. Reflexão. Campinas,. Ano X, n.31, jan/abr. 1985. p. 4-23. e GAUER, Ruth. A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 42 NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 183-184.

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FIGURA 4 - A presença da prestigiosa França pode ser identificada em vários aspectos da sociedade local, manifestando-se também nos nomes de muitos estabelecimentos registrados ao longo de sua história: Paris Hotel, Cinema Parisiense, Bazar Francês, Casa Tulherias, etc. Extraído de: MARUI. Rio Grande, 12 dez.1881. n. 49. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Para o austríaco Joseph Hörmeyer, “situada na ponta de uma península, no meio das areias, [Rio Grande] era de construção bastante bonita e podia ter de 12 a 14.000 habitantes”. Escrevendo em 1852, comentava que “quase toda a gente ocupava-se com o comércio que aqui era animado”.43 Nas ruas Bela Vista e da Praia residiam os comerciantes responsáveis pelo desenvolvimento do porto e do comércio com o interior da Província, com a capital e com os principais portos do Brasil, Europa e Prata.

Raphael Copstein faz um belo retrato das atividades portuárias e da fisionomia do centro histórico na segunda metade do século:

Grandes sobrados revestidos de azulejos muitas vezes com mais de dois pisos, além do térreo, beiral de telha, clarabóia iluminando o acesso aos andares superiores, janelas de guilhotina com caixilhos habilmente recortados e em parte preenchidos com vidros coloridos eram comuns nas faces das ruas da Praia e Boa Vista. Os mirantes mais altos (que serviam para observar a entrada e saída dos navios) davam funcionalidade aos prédios destinados, no térreo, aos armazéns das grandes casas importadoras e exportadoras. Nos outros andares abrigavam-se os familiares dos negociantes e os caixeiros. 44

No universo deste conjunto arquitetônico luso-brasileiro, ”um tráfego intenso e aparentemente confuso de carroças, escoava do cais as mercadorias chegadas ou transportava, até os veleiros, a riqueza que o Rio Grande do Sul produzia”. Em outras ruas, “sobrados menos importantes mas do mesmo estilo do que os citados [...], casas chamadas de porta-e-janela não raro também azulejadas [...] pertencentes a classe média [...]; a população mais pobre habitava [...] nas ruas do sul [...] pequenas casas de beiral-de-telha”.45

Por ocasião da Guerra do Paraguai, Luís Felipe Maria Fernando Gastão d’Orleans, ou simplesmente o Conde D’Eu, esposo da Princesa Isabel, viria ao Rio Grande do Sul em 1865. Ao transpor a Barra, logo avistou “a cidade do Rio Grande do Sul, precedida de uma floresta de mastros” das embarcações atracadas no porto. O nobre francês observou três ruas principais, todas paralelas ao canal, com suas “lojas elegantes” e, “muitas casas de comércio européias, na maior parte alemãs”, sendo de grande importância a comercialização de couros e carne seca. Informou que nesta época, diferentemente dos demais relatos, as mais importantes vias públicas já estavam calçadas e, na rua principal registrou muitas bandeiras consulares. A cidade possuía , então, 14.000 habitantes.46

Conforme o geógrafo Paulo Roberto Soares:

43 HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da Província do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional. Porto Alegre: EDUNI-SUL, 1986, p. 37. 44 COPSTEIN, Raphael. Evolução Urbana de Rio Grande. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n.122, p. 66, 1982. 45 Ibid., p. 67. 46 D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: EDUSP, 1981. p. 24.

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[...] a economia agroexportadora impunha às cidades brasileiras e latino-americanas a hegemonia do capital mercantil [...]. As principais cidades localizavam-se ao longo da costa. A vida econômica transitava em torno do porto, onde se situava a alfândega. Um pouco afastada [...] [encontrava-se] a praça principal, onde se localizavam os prédios públicos: a Prefeitura, a Câmara de Vereadores. A riqueza circulante e a ausência de indústrias geravam a transferência de excedentes para a construção de prédios suntuosos (teatros, igrejas, clubes sociais), que simbolizavam o poder das elites comerciais e do baronato. A vida urbana das classes dominantes, estritamente rentistas, era animada com festas, saraus, bailes, apresentações de companhias de teatro. O comércio se concentrava na venda de artigos de luxo, importados da Europa. A infra-estrutura urbana (iluminação a gás, calçamento das ruas) atendia as casas da elite.47

A década de 1870 vivenciou a ampliação do mercado interno brasileiro decorrente da expansão cafeeira no Sudeste e do aumento do contingente de trabalhadores assalariados. As cidades tornaram-se pólos de atração para os colonos sufocados pelos latifúndios e para os imigrantes a procura de uma vida melhor. Os imigrantes empregavam-se no comércio e, sobretudo, nas fábricas onde eram bem aceitos por constituírem mão-de-obra de melhor nível técnico. Desta feita desencadeou-se um surto de prosperidade urbano-industrial em várias cidades, que passam a concentrar os novos investimentos.

Inserida nesse processo Rio Grande ao longo dos decênios de 1870 e 1880, passou a atrair a instalação de várias indústrias não-artesanais, principalmente alimentares e têxteis; destacando-se a Companhia União Fabril (1873), de Carlos Rheingantz, exportadora de tecidos de lã e algodão para todo o país e para o exterior.48 Outra importante empresa era a fábrica de charutos Poock & Cia. (1891) que contava com técnicos alemães e cubanos.49 Ao fim do Dezenove, a cidade constituía-se no maior parque industrial do Rio Grande do Sul. Em algumas décadas transformou-se de centro comercial em significativo pólo industrial. Conforme Paul Singer é provável que a indústria porto-alegrense só tenha suplantado a rio-grandina na liderança do Estado a partir do primeiro ou talvez do segundo decênio do século XX.50 Numa decorrência dos processos de urbanização e industrialização, incrementaram-se as atividades de lazer e cultura oferecidas aos diferentes segmentos sociais. Aumentou-se o número de teatros, salas de espetáculos, bares, bilhares, cabarets, bibliotecas, escolas, clubes, sociedades dramáticas, sociedades musicais, jornais, etc. A

47 SOARES, Paulo. Uma Abordagem Histórica do Espaço Urbano e Uma Abordagem Geográfica da Cidade na História. Biblos. Rio Grande: FURG, v.8, p. 66, 1996. 48 Para Paul Singer “é com Rheingantz que a indústria se inicia realmente no Rio Grande do Sul”. Em 1910 a União Fabril empregava mais de 1200 operários na produção de tecidos de lã e de algodão, meias, chapéus, tapetes... SINGER, Paul. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. São Paulo: Cia. Editorial Nacional, 1977. p.171. 49 SINGER, op. cit., p. 172. FREITAS, op. cit., p. 33-35. 50 SINGER, op. cit., p. 174,180.

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variação das opções de vida social e cultural “atenuaram a disciplina rígida do patriarcalismo que segrerara no lar a mulher de classe média e alta. A crescente diversificação ocupacional nos grandes centros urbanos tornou mais complexa a estrutura social”.51 Nos últimos anos deste século a cidade possuía cerca de 4.119 edifícios e uma população de 29.492 habitantes. 52 O historiador local Francisco Alves - estudioso deste período - comenta que o Oitocentos “caracterizou-se, em Rio Grande, pela busca de um aprimoramento de sua organização urbana e da prestação de serviços à população, resultando numa completa transformação do espaço original ocupado pela localidade”.53 FOTO 1 - Rua dos Príncipes (atual Rua Gal. Bacelar). Ao fundo observa-se a Matriz de São Pedro. À esquerda, casario em partido luso-brasileiro com seus beirais-de-telha, janelas em guilhotina e caixilhos com vidros coloridos. À direita, prédios ecléticos com elegantes platibandas e fachadas ricamente decoradas que, doravante, dominariam o cenário urbano. Final do século XIX. Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande. Associado à razão e à evolução, o processo civilizacional possui um caráter de aperfeiçoamento do conhecimento científico, das leis, dos governos, dos costumes, das instituições, das artes, da educação, etc.54 Uma vez que a sociedade considere este processo como acabado em seu interior, ou seja, alcançada a civilização, sente a necessidade de transmiti-la ao exterior. Nas palavras de Norbert Elias, “do processo que fica para atrás, de todo processo civilizacional, a consciência guarda apenas uma vaga lembrança. Aceita-se o resultado desse processo como manifestação do fato de ser superiormente dotado. Que esse comportamento civilizado tenha levado séculos a atingir não interessa, como não interessa saber de que maneira se atingiu”.55 Era justamente este espírito que tomava a Europa no Dezenove.

51 COSTA, Emília V. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. p. 198. 52 PIMENTEL, op. cit., p.56, 36 53 ALVES, Francisco das N. A Pequena Imprensa Rio-Grandina no Século XIX. Porto Alegre: PUCRS, 1996. p. 26. (Dissertação de Mestrado). 54 A civilidade é assinalada por códigos que apontam para caminhos e maneiras de ser e de viver a coletividade, num processo que acompanha a história do homem desde o medievo, revelando o que o sociólogo alemão Norbert Elias chamou de “educação dos sentimentos”. Neste mesmo movimento, a suavização dos costumes originou a cortesia (sinônimo de polidez). O processo civilizacional - fundamentado nestes elementos: cortesia e civilidade - espraiou-se pelo mundo realizando-se no Brasil sob a empresa colonial portuguesa, aliado às influências indígenas, africanas e também no caso do sul do país às tradições italiana e alemã, sobretudo. Todavia, entre nós, este processo adquiriu singulares conotações: “aqui, mais do que em qualquer lugar, a paixão por juntar, misturar, amalgamar, não definir, abrir e unir, é uma característica importante. Parecemos e somos maleáveis”. As relações estabelecidas na sociedade brasileira misturam a cortesia ocidental com uma cultura tradicional milenar, formando um modo civilizacional denominado por Jussara Pieruccini de “barroco-tropical”, fortemente marcado pelo sincretismo e hibridismo de códigos. No entendimento de Roger Bastide “o sincretismo consiste em unir os pedaços das histórias míticas de duas tradições diferentes em um todo que permanece ordenado por um mesmo sistema”. Assim entendido o sincretismo pressupõe a existência uma tradição dominante que determina e ordena esses “pedaços das histórias míticas” que deverão ser absorvidos, conforme com os interesses de um determinado sistema significativo, de uma memória coletiva. (PIERUCCINI, Jussara Maria. Visões do Paraíso: uma civilização barroco-tropical no sul do Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 1997. p. 94. (Dissertação de Mestrado). BASTIDE, Roger. Memoire Collective et Sociologie du Bricolage, L’Année Sociologique, v. 21, p. 101, 1970. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional. Lisboa: Dom Quixote, 1989. v.I, p. 100.) 55 ELIAS, op. cit., p. 100.

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Franklin Baumer considera este período como o primeiro “século do devir”, uma época fortemente caracterizada por um movimento incessante da vida humana, de mudanças e desenvolvimento contínuos. Sendo a transformação das sociedades passadas o objeto da história, esta constitui-se então na ciência do devir e o Dezenove, no “Império de Clio”. Analisando o pensamento europeu moderno nesta centúria, pronuncia-se o autor:

No século XIX, tanto a Europa como os europeus estiveram mais do que nunca orgulhosos dos seus empreendimentos. Habitualmente, a história era escrita como se a Europa fosse, na verdade, o centro do universo, onde todas as idéias novas e criativas se originavam. Supunha-se também grandemente que o espírito ‘primitivo’ representava uma fase de desenvolvimento muito inferior à da Europa ‘culta’. Tudo isto estava em nítido contraste com o século XVIII quando, apesar da idéia de progresso, os europeus preferiam localizar o seu paraíso numa outra parte do globo, no Oriente exótico ou na primitiva América. A nova auto-estima, na verdade, começava a chegar ao fim, à medida que os europeus descobriram sérias falhas na sua própria cultura. Todavia, durante todo o século XIX, os europeus carregaram com orgulho o ‘Peso do Homem Branco’ [e sua redentora missão de levar os benefícios da civilização e da modernidade, aos povos atrasados].56

O Oitocentos apresentou-se como o século da indústria, das inovações científicas, dos Imperialismos, das teorias racistas, do debate sobre a modernização das cidades....57 No Brasil, a última década deste período vivenciou grandes modificações sociais em virtude do fim da escravidão, da implantação do Regime Republicano e da burocracia estatal, do crescimento das camadas médias, da imigração, da indústria nascente. Assim surgiram no cenário nacional novos agentes sociais que dinamizaram as relações em sociedade. A industrialização transformou os hábitos e o modo de vida urbano gerando a necessidade de uma adequação do espaço físico da cidade ao novo quadro que se impunha. As cidades brasileiras apresentavam vários problemas: cortiços, pensões e velhos casarões (espaços associados à doenças epidêmicas e a promiscuidade) próximos à zona central , ruas escuras e estreitas, infra-estrutura e serviços urbanos deficitários.... A fim de reverter esse quadro, as elites buscavam construir uma nova imagem da cidade inspirada nas grandes capitais européias e no gosto pelo monumental. Os discursos ferozes que

56 BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX. Lisboa: Edições 70. v. 2. p. 20-21. Conforme Mara do Nascimento, “conceitualmente, modernidade e civilização entram em comunhão quando expressam, juntas, a idéia de que existem padrões técnicos, científicos e culturais que devem ser disseminados, por serem tomados como verdade absoluta. Num processo de dentro para fora, iniciado na Europa, o Ocidente, sente-se capaz e responsável de transmitir tais padrões aos outros povos”. (NASCIMENTO, Mara R. do. Sobre os Trilhos do Bonde, os Caminhos de Uma Cidade Brasileira. Porto Alegre: PUCRS, 1996. p. 20. Dissertação de Mestrado) 57 Segundo Baudrillard, o surgimento da palavra “modernidade” deu-se em torno de 1850, momento em que a sociedade moderna se pensou enquanto tal, em termos de modernidade. Instalando a civilização do trabalho e do progresso, a modernidade encontra-se, atualmente em profunda mudança decorrente da passagem desta civilização para uma outra alicerçada no consumo e no lazer. (BAUDRILLARD, Jean. Modernité. In: Biennale de Paris. La modernité ou L’esprit du temps. Paris: Editions L’Equerre, 1982. p. 29.).

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defendiam o “aformoseamento” e a higienização urbana condenaram a cidade herdada do período colonial à obsolência e às demolições. Com a República esse processo se intensificou desencadeando o redesenhamento de muitas cidades brasileiras.58 De seu ideal positivista moralizador-higienista, então em voga, decorreram práticas intervencionistas no meio urbano, objetivando a modernização da economia e da sociedade brasileira. Conforme Léa Perez:

A modernidade é, ao mesmo tempo, um valor em si e o paradigma de desenvolvimento, de estabelecimento da Ordem e do Progresso no país. Ela é, assim, antes de tudo, e acima de tudo, o projeto de construção da ‘sociedade e da identidade nacionais’ que se realizaria pela via da ultrapassagem da situação de atraso e de subdesenvolvimento resultante da recente e ainda viva ’condição colonial’. Ser moderno, e eis aqui uma petição de princípio, é também o modelo de pensamento e de ação através do qual o Brasil deveria atingir a modernidade, isto é, a substituição das estruturas tradicionais (leia-se coloniais) [ou seja, de herança portuguesa].59

Com a República surgiram grandes projetos que visavam melhorias urbanas e a organização da economia. Queríamos ser um país moderno, progressista, diferente de Portugal e daquelas estruturas “funestamente” herdadas dos lusitanos. O preconceito anti-português reinante colocava sobre nossos colonizadores a responsabilidade de uma “modernidade inacabada”, dividida, igualmente, com nosso clima, negros e índios. Vivíamos fortemente oprimidos por complexos coloniais de inferioridade em relação à Europa e por teorias climáticas e biológicas preconceituosas. Em fins dos Anos Vinte, o modernista Mário de Andrade publicou Amar, Verbo Intransitivo onde ironizava as idéias racistas, então correntes no país sedimentadas no século XIX com o pensamento “cientifico” de Gobineau.60 Nesta obra, a governanta alemã fräulein Elza acredita na superioridade da raça ariana. Comentando abertamente com seus alunos brasileiros a notória inferioridade dos índios e dos negros, esconde-lhes que descendem de uma raça

58 Se a modernidade enquanto modo de civilização ocidental existe desde o século XVI, foi a partir do XIX que se realizou plenamente, sob a crença na modernização do espaço urbano entendida como via para o pleno desenvolvimento. O processo civilizacional irradiado pelo Ocidente, carregava também consigo ideais de urbanidade e higienização. 59 PEREZ, Léa. Por Uma Poética do Sincretismo Tropical. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. 18, n.2, p. 43-44, 1992. 60 No último quartel do Dezenove a intelectualidade brasileira debruçou-se sob a natureza tropical do país e as suas raças. O racismo científico tornou-se freqüente nos debates políticos e culturais, e quase, como que incorporado a identidade das elites de uma sociedade hierarquizada e estamental. A mestiçagem, propagada como mecanismo de assimilação racial dos “grupos inferiores”, era vista por muitos como a solução para o Brasil escapar de um futuro alicerçado no atraso e na barbárie. Nas teorias racistas largamente propagadas por Sílvio Romero, a mestiçagem enquanto “solução” para o dilema racial objetivava, na realidade, nada mais que a extinção desses “grupos inferiores” através de sua integração à raça branca, superior e a uma cultura brasileira de base européia. Desta feita, a mistura significava perda: a liquidação progressiva do negro e do índio, étnica e culturalmente.60 (Cf. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 61-68.)

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latina ”degradada”: a dos portugueses. Com amigos germânicos Elza pronuncia-se: “Os portugueses fazem parte de uma raça inferior. E então os brasileiros misturados?”61 Sob o signo da modernidade, ergueu-se Belo Horizonte (de 1894 a 1897), a cidade planejada e construída para ser a capital de Estado de Minas Gerais, fortemente influenciada pela arquitetura francesa.62 Entre 1902 e 1906 o modelo de cidade européia perseguido pelo desenvolvimento do Rio de Janeiro ao longo do século XIX teve seu ápice com as reformas do prefeito Pereira Passos que modificou, radicalmente, o centro da cidade. Foi aberta a Avenida Central (atual Av. Rio Branco) inspirada nos boulevards parisienses; construídas praças e jardins; modernizado o porto... Paulatinamente, o Ecletismo e o modelo francês de modernização passaram a circular por todo o país inspirando as reformas urbanísticas.63 Em pouco tempo, o espírito da obra haussmanniana chegaria ao Rio Grande do Sul.64

Em princípios do século XX acelerou-se o processo de crescimento espacial urbano rio-grandino. A Carta de 1904 faz registro do novo bairro Cidade Nova localizado a noroeste do centro histórico.65 A cidade crescia, mas em péssimas condições. As denúncias da falta de infra-estrutura e de asseio da cidade, do porto e dos aglomerados urbanos eram uma constante na imprensa local. Da mesma forma os miasmas desprendidos dos lixos orgânicos e os surtos de doenças infecto-contagiosas da época que ameaçavam, constantemente, a população (varíola, gripe espanhola, peste bubônica, febre tifóide, tuberculose, sífilis, etc.) revelavam a insalubridade do meio.

A industrialização propiciou um importante fluxo migratório, com operariado industrial clássico, de baixa renda e pouca instrução, favorecendo, assim a marginalização social. A intensa atividade fabril percebida em Rio Grande levou a criação de áreas industriais afastadas do centro da cidade e à formação de zonas residenciais proletárias ao seu redor. Assim, as indústrias tornaram-se agentes modeladores na produção de seu próprio espaço urbano.66 Nas palavras de Soares, “essa segregação (e a conseqüente aglomeração) permitiu ao operariado nascente um grande poder de organização e mobilização, pois no cotidiano dos clubes, nas festas, nas ‘associações de ajuda mútua’, localizadas nas vilas operárias, era realizada a conscientização de classe”.67

61 ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo. São Paulo: Antônio Tusi, 1927. p. 33. (Primeira edição) 62 Sobre o assunto confira o laureado trabalho de SALGUEIRO, Heliana. La Casaque d’Arlequin: Belo Horizonte, une capitale écletique au 19e siècle. Paris: EHESC, 1997. 63 Cf. DUBY, Georges. (dir.). Histoire de La France Urbaine. Paris: Seuil, 1983. v.4. CRUBELLIER, Maurice. Histoire Culturelle de La France: XIXe –XXe siècle. Paris: Armand Colin, 1974. 64 Durante o Segundo Império francês (1852-1870), o prefeito de Paris, Georges-Eugène Haussmann empreendeu na cidade inúmeras intervenções urbanas, visando sua modernização. Circulando por todo o mundo, o haussmannismo influenciou a reforma de muitas cidades. Sobre a remodelação de Porto Alegre ocorrida durante a intendência de Otávio Rocha (1924-1928) confira: MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. 65 Embora constando somente em carta do século XX, a Cidade Nova remonta ao ano de 1878 quando iniciaram-se a demarcação de suas ruas. (SALVATORI, op. cit., p 33. FREITAS, op. cit., p. 3) 66 O espaço de uma cidade é elaborado pela ação do homem e composto por diversas áreas definidas pelos diferentes usos da terra: tem-se o centro da cidade (onde concentram-se as atividades comerciais, de serviços e de gestão, as residências da elite), as áreas industriais, áreas de lazer, demais áreas residenciais (diferenciadas quanto a forma e o conteúdo social), etc. Esse espaço é, simultaneamente fragmentado e articulado, uma vez que cada uma dessas partes mantém relações espaciais manifestadas através do fluxo de pessoas e de veículos, observado na ida às compras, ao trabalho, ao teatro, às diversões, à igreja, as visitas a amigos e familiares, etc. (Cf. CORREA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989.) 67 SOARES, Uma Abordagem..., op. cit., p. 68.

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Paralelo ao desenvolvimento industrial, o comércio rio-grandino mantinha-se, vigoroso. Em 1905, 1.092 estabelecimentos empregavam muitos funcionários.68

Proporcionando empregos, crescimento demográfico e acelerada urbanização, a industrialização gerou também necessidades de melhorias no setor de transportes que assegurassem o escoamento da produção. Em 1884 foi inaugurada a estrada de ferro Rio Grande-Bagé passando por Pelotas, facilitando a comunicação da cidade também com outros municípios.69 A partir da década de 1890 foram executados melhoramentos substanciais no setor portuário: aprofundamento do Canal do Norte; construção dos molhes leste e oeste na Barra que facilitaram a entrada e saída de navios no complexo portuário; construção do Porto Novo com modernas instalações (1911-1917). Em 1923 foi concluída a remodelação do Porto Velho.70

Na realização das obras foram empregados mais de 4.000 trabalhadores, gerando um fluxo migratório da zona rural e de municípios próximos que intensificou, sobremaneira, o crescimento populacional. O grande montante de dinheiro investido e a larga mão-de-obra utilizada favoreceram o desenvolvimento dos negócios citadinos. Ao término das obras o refluxo dessas populações não foi significativo gerando um elevado número de agregados marginalizados de grande importância.71

A quase totalidade da execução desses projetos ficou a cargo da Compagnie Française des Oeuvres du Port de Rio Grande do Sul e “resultou em considerável área aterrada com o material recuperado do aprofundamento do Canal de Navegação, a leste do centro histórico“ da cidade.72

O avanço científico e tecnológico do início do século XX alterou o cotidiano das pessoas, contribuindo para uma supervalorização do progresso e do enaltecimento da máquina. As novas invenções: o automóvel, o telefone, o avião, o cinema, a lâmpada elétrica..., atestavam o poderio dos inventos humanos que mudaram os modos de vida.

Arauto do “espírito de modernização” que assolava o país a burguesia nacional respaldava-se na ação governamental. Com mister de manter o poder e a ordem social e enquadrar a sociedade aos novos ditames “modernos” os governos estadual

68 VIEIRA, Rio Grande..., op. cit., p. 133. 69 Esta linha férrea ligava o porto de Rio Grande a cidade de Bagé - centro comercial da região da Campanha. As ferrovias tinham igualmente importante função no transporte de passageiros e, não devemos nos esquecer que este setor demandava também grande contingente de trabalhadores. Em Rio Grande existiam duas estações da Viação Férrea: a Marítima e a Central, esta última possuindo oficinas de construção e de reparo de carris. Nas palavras de Joseph Love, “em 1889, ano derradeiro do Império, trens diários comunicavam Rio Grande com Bagé e Barra do Quaraí com Itaqui. Dois trens por dia faziam a ligação de Novo Hamburgo com a capital.” (LOVE, Joseph. O Regionalismo Gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 18. PIMENTEL, op. cit., p. 273-274.) 70 Sobre o assunto, confira os vários artigos do historiador Hugo Alberto Pereira Neves: NEVES, Hugo. O Porto do Rio Grande no Período de 1890-1930 (1a Parte). Revista do Departamento de Biblioteconomia e História. Rio Grande: FURG, v. 2, n.1, p. 67-110, 1980. ______. O Porto do Rio Grande no Período de 1890-1930 (2a Parte). Revista do Departamento de Biblioteconomia e História. Rio Grande: FURG, v.3, n.1, p. 38-136, 1982. ______. Aspectos Gerais do Porto do Rio Grande, no Período de 1930-1945. Revista do Departamento de Biblioteconomia e História. Rio Grande: FURG, v.3, n.2, p. 14-35, 1982. ______. Estudo do Porto e da Barra do Rio Grande. In: ALVES, Francisco e TORRES, Luiz H. (Orgs.). A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: URG/SMEC, 1995. p. 91-106. 71 VIEIRA, Rio Grande..., op. cit.., p. 128. 72 SALVATORI, op. cit., p.33. Nesse espaço ganho ao mar, pretendia-se construir um bairro planejado, cujo traçado pode ser observado na Planta da Cidade de Rio Grande de 1926. Mapoteca da Biblioteca Rio- Grandense, Rio Grande. Integrando-se à sociedade local e a colônia francesa domiciliada na cidade, os membros da Compagnie, celebraram a “Queda da Bastilha” com baile no Politeama Rio-Grandense, em julho de 1910. (O TEMPO. Rio Grande, 11 jul.1910).

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(Partido Republicano Rio-Grandense) e municipais empreenderam uma batalha contra a vadiagem, a mendicância, os jogos de azar, as bebidas alcoólicas e aos “locais perigosos”: mauvais lieux, nas palavras de Baudelaire. Segundo Charles Monteiro:

Essa campanha é a parte mais visível de uma pedagogia social totalitária que pretendia estabelecer novos padrões de vida e os valores da burguesia em ascensão: o trabalho como elemento de grandeza moral, fator de progresso e obrigação social, a operosidade, a higiene pessoal e dos espaços de convívio social, a intimidade familiar, a boa aparência, o cultivo da moral reta, o conforto material, a previdência, a economia, etc. Combatendo hábitos ‘populares’ almejava-se criar um ‘homem novo’ dotado de senso de responsabilidade, de ordem e de trabalho. Era necessário erradicar costumes ‘bárbaros’ herdados do passado e tudo mais que pudesse impedir a integração das classes populares à sociedade moderna, enfim, eliminar as ameaças à nova ordem social como pretendia o PRR.73

Nesta ótica, o grande contingente de operários observados em cidades industriais como Rio Grande, constituía-se em poderoso e potencial sublevador da ordem; daí devendo ser vigiado, policiado, disciplinado. Os trabalhadores teriam que se adequar aos padrões da sociedade moderna burguesa abandonando seus “nocivos” costumes. Nas palavras de Margareth Rago, “o projeto de integração do proletariado e de suas famílias ao universo dos valores burgueses, domesticação literal que a imagem projetiva de ‘bárbaros’ [a eles atribuída] justifica, desdobra-se em múltiplas estratégias de disciplinarização: mecanismos de controle e vigilância que atuavam no interior da fábrica, mas também fora dela”.74 Através do cumprimento das leis - entendido como condição de tranqüilidade pública, ordem e progresso - o ideário burguês perpassava ao proletariado seus valores.75 O objetivo final: redefinir as maneiras de pensar, sentir, e agir dos trabalhadores, erradicando práticas e hábitos “tradicionais e perniciosos”. A idéia focal era a de que os operários e os trabalhadores - elementos sociais indesejáveis e perigosos; embora indispensáveis - deveriam ser afastados do centro da cidade, habitando os subúrbios e deixando o coração da urbe àqueles em consonância com as regras e preceitos modernizadores ditados pela burguesia comercial e industrial. Este pensamento escondia-se por detrás do discurso de embelezamento e higienização das cidades. Para Sandra Jatahy Pesavento:

O centro era o cartão de visitas da cidade e quem não tivesse educação, moral e higiene para nele habitar, que fosse instalar-se nos arrabaldes. A varrida dos pobres do centro da cidade começara, assim como a operosa tarefa de destruição dos becos e cortiços. Era

73 MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 81. 74 RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p 12. 75 PESAVENTO, Sandra J. O Cotidiano da República: elite e povo na virada do século. Porto Alegre: UFRGS, 1995. p. 60.

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declarada guerra às tavernas, bordéis e casas de jogos, numa cruzada moral, sanitária e urbanística, de destruiçao e reconstrução.76

A Belle Époque impôs um novo modo de viver urbano fortemente enraizado na Europa e, mais precisamente, na capital francesa. Para a burguesia nacional, como bem disse Brito Broca, “o chique era ignorar o Brasil e delirar por Paris”.77 Conforme Nicolau Sevcenko, as mudanças ocorridas na sociedade brasileira, e sobretudo na carioca desta época, assentavam-se em quatro princípios:

A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional [lê-se luso-brasileira]; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade que, será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.78

As classes dominantes atuando sobre a cidade exigiam a criação de novos espaços urbanos: avenidas, parques, praças, etc. e a remodelação dos já existentes, adequados à freqüência de um novo modelo de cidadão: “trabalhador, econômico, ajustado e voltado à intimidade do lar [...]; cheio de deveres e quase sem direito algum, a não ser trabalhar”.79 Intervindo no meio, coibiam “usos e abusos” das camadas populares. Elegantes lojas, grandes magazines, asseio público, praças e largos com belos jardins à francesa e chafarizes ingleses... requeriam novas formas comportamentais à coletividade. No dizer de Raymond Ledrut “a cidade é o lugar privilegiado para esse fenômeno circular que é a ação do homem sobre o homem. A cidade é mediadora: feita pelos homens, ela os educa”.80 Constituindo-se no território da modernidade e da civilização burguesa, deve ser apreendida também como um “estado de espírito”.

Se a cidade encarnava os valores da civilização, do progresso e da cultura, apresentava também uma outra imagem associada a perversão moral, a desordem social, às doenças epidêmicas, a desagregação dos laços familiares, etc.81

A explosão demográfica oriunda do processo de industrialização e a conseqüente especulação imobiliária decorrente da valorização capitalista da terra, levaram de roldão importantes construções do acervo cultural arquitetônico rio-grandino. Aqui torna-se importante a lembrança de que as demolições eram símbolos de renovação, que a

76 PESAVENTO, Sandra J. Um Novo Olhar Sobre a Cidade: a Nova História Cultural e as Representações do Urbano. In: MAUCH, Cláudia et alii. Porto Alegre na Virada do Século XIX: Cultura e Sociedade. Porto Alegre/Canoas/São Leopoldo: Ed. Universidade/UFRGS/Ed. Ulbra/ Ed. UNISINOS, 1994. p.139. 77 BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 92. A Belle Époque no Brasil, pode ser situada, mais ou menos, entre os anos de 1890 e 1920. 78 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 30. 79 MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 140. 80 LEDRUT, Raymond. Sociologia Urbana. Rio de Janeiro: Florense, 1971. p.169. 81 PINOL, Jean-Luc. Le Monde des Villes au XIXème Siècle. Paris: Hachette, 1991. p. 45.

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noção de patrimônio histórico surgiu somente após o “urbanismo progressista” e que a modernização não era tida como uma descaracterização, mas sim como um bem a ser conquistado. Imponentes edifícios com fachadas ecléticas passaram a compor o cenário urbano ostentando a riqueza e o “refinamento” da elite local. O gosto pelas formas arquitetônicas do passado europeu imprimiu uma nova fisionomia ao lugar, caracterizada pela apropriação e transformação dos modelos importados presentes em várias combinatórias que persistiram no cenário urbano além dos Anos Trinta. Se na Europa, a profusão na arquitetura dos “grandes estilos históricos – clássico, medieval, renascentista, barroco, rococó – fazia parte do depósito de símbolos e imagens que serviam para bloquear, dignificar e mascarar o presente”, no Brasil foram utilizados como que para a montagem de um passado nacional inexistente, e que negava nossas verdadeiras raízes coloniais.82 Para Needell:

a diferença entre o Ecletismo francês e o brasileiro está na função simbólica do ecletismo cultural para cada elite e deriva da situação do Brasil como um país na periferia do mundo europeu. Se a burguesia francesa buscava legitimação ao se identificar com a cultura aristocrática tradicional [...] a elite brasileira buscava legitimação identificando-se com a Europa. [...] Os europeus reproduziam um meio clássico, medieval ou rural como uma reação à cultura européia moderna industrializante. Os brasileiros reproduziam o mesmo meio [...] para criar algo associado à moderna cultura européia.83

Durante os anos de 1914 a 1918 a Europa submergiu na Primeira Guerra Mundial. No desenrolar do embate, caminhou o desenvolvimento do Rio Grande do Sul que, sob o governo de Borges de Medeiros consolidou-se como o “Celeiro do País”.84

Com o Velho Mundo envolvido diretamente no conflito, iniciou-se um surto de industrialização em diversas regiões do país e do Estado. A industrialização rio-grandina, percebida precocemente foi afetada por este fenômeno expandindo-se ainda mais, colaborando para o abastecimento das potências beligerantes e do mercado interno. Emersa no processo de “substituição das importações” a elite local vivenciou, euforicamente, a crença no progresso e na modernidade, refletidas nas reformas de

82 MAYER, Arno. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime. (1848-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 188. 83 NEEDELL, op. cit., p. 177-178. Na realidade, segundo a tese de Mayer, esta “moderna” cultura européia manifestava-se, singularmente, tradicional, incrustrada na sociedade aristocrática do Ancien Régime. (CF. MAYER, op. cit.) 84 Conforme Pedro Fonseca, se durante o século XIX a economia do Rio Grande do Sul caracterizou-se pela produção pecuário-charqueadora, “a produção agrícola diversificada é uma das principais características da economia gaúcha do final do Império, prolongando-se tal diversificação por toda a República Velha. O Rio Grande [do Sul] era auto-suficiente em arroz, feijão, lentilhas, milho, erva-mate, cebolas e alhos, alfafas, batatas, uvas, mandioca, fumo, etc. O trigo, apesar de cultura irregular, às vezes chegava a abastecer o mercado estadual e ser exportado para outros Estado”. Mais adiante, conclui o autor: “É significativa a diferença de peso econômico entre o norte e o sul do Rio Grande [do Sul] ao considerarem-se as datas de 1890 e 1930. A imigração e o desenvolvimento da banha e da policultura emprestou à Serra e ao Planalto um rápido crescimento, descaraterizando, de certo modo, ser o Rio Grande [do Sul] um Estado apenas pecuário – como o fora no Império”. (FONSECA, op. cit., p. 63,67).

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embelezamento da cidade e nas melhorias dos serviços urbanos. Todavia, esses benefícios restringiam-se ao centro histórico e visavam atender aos interesses do comércio e da indústria locais e ao desfrute, sobretudo, da burguesia.

O centro da cidade constituía-se no espaço público por excelência. As multidões ganhavam as ruas, tanto nos momentos decisivos da luta de classes e da vida política, como no lazer.85 Vivenciá-lo, “freqüentar seus cafés, [confeitarias, lojas elegantes] salões, cabarés, casas de jogos, clubes, e teatros passou a ser um sinal de bom gosto e de status social. O cinema, a moda, o footing, e o automóvel eram os novos símbolos da vida moderna. A cidade começava a ser pensada como uma vitrine, em tamanho ampliado, do luxo e do prestígio burguês, o lugar privilegiado para a manifestação do fetichismo da mercadoria”.86

Entretanto, as grandes greves operárias registradas ao final da década de 1910, colocariam a descoberto a exploração e a triste condição de vida da massa operária que “tentava sobreviver amontoada em cortiços, [porões e em casas de hospedagem] - espaços de sociabilidade fora dos padrões de higiene, [habitadas, em sua maioria, por operários e imigrantes] - e, constantemente, fiscalizados pelas autoridades.”87 Aos grupos sociais de baixa renda restavam como possibilidades de moradia os velhos casarões densamente ocupados, degradados e subdivididos que, outrora, foram habitados pela elite, localizados no centro da cidade. Os cortiços apresentavam-se, então, como espaços de resistência e sobrevivência proletária. Desde muito, médicos e engenheiros denunciavam, através de seus opúsculos, a insalubridade desses “eleijões urbanos”.

Em fins de 1918 o espectro da Gripe Espanhola (ou Influenza) assolou a terceira cidade do Estado em número de habitantes.88 A epidemia instalou-se, sobretudo, junto às camadas mais pobres que, sem resistências, tornaram-se presas fáceis do vírus. O óbito de um significativo contingente humano expôs a fragilidade do sistema revelando uma realidade obnubilada pela fumaça das chaminés das grandes indústrias. No dizer de Beatriz Olinto, “como uma torre de cristal construída sobre a lama, a modernidade erguia-se na cidade de Rio Grande.”89

Encerrado o conflito mundial, deu-se o estabelecimento de indústrias nacionais e multinacionais no Estado destinadas ao processamento dos produtos de pecuária em grande escala.90 Em Rio Grande instalou-se a Companhia Swift do Brasil, em

85 SOARES, Uma Abordagem..., op. cit., p. 68. 86 MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 137-138. Sobre a emergência do fetichismo da mercadoria na Europa burguesa e no Rio de Janeiro de meados do Dezenove até as primeiras décadas do século XX, confira NEEDELL, op. cit., p. 185-208. 87 OLINTO, Beatriz. Fragmentos de Uma Cidade: a Cidade de Rio Grande frente a alguns aspectos da Modernidade. Biblos.. Rio Grande: FURG, v. 8, p. 158, 1996. As autoridades locais buscavam vigiar, normatizar e higienizar esses espaços promovendo inspeções sanitárias e demolições nos moldes das ações da Diretoria de Higiene aplicadas na capital do Estado. Sobre o assunto confira o interessante estudo de DELLA CRUZ, Gisele. As Misérias da Cidade: população, saúde e doença em Rio Grande, no final do século XIX. Curitiba: UFPR, 1998. (Dissertação de Mestrado). 88 Nesta data, Rio Grande contava com 40.000 habitantes. 89 OLINTO, op. cit., p. 158. Desde o século XIX a ocorrência de epidemias colocava em xeque a salubridade e a organização da cidade. 90 Em Pelotas foi instalada a Companhia Frigorífica Rio Grande e, em Sant’Ana do Livramento a Companhia Armour do Brasil, cujas produções repercutiram no aumento das exportações e importações via porto de Rio Grande. Se no Estado a introdução de frigoríficos deu-se somente após o término da Primeira Guerra Mundial, na Argentina eles são percebidos desde fins do Dezenove, sendo responsáveis por grandes transformações na pecuária daquele país. (Cf. LOVE, op. cit., p. 17.)

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área arrendada ao Porto Novo, iniciando suas atividades em 1918, com operações de abate e industrialização de carnes congeladas para a exportação.

À mão-de-obra acumulada no decorrer do processo de adequação portuária às exigências de mercado, somaram-se novas migrações que viabilizaram a construção de amplas instalações e a manutenção dessa importante indústria de capital norte-americano.

Conforme Eurípedes Falcão Vieira, “com capacidade para abater 1.000 reses/dia e empregando 1.500 operários, a Swift do Brasil S.A. teve importante papel na vida econômica e social do Rio Grande, até fins dos anos 50. [...] Foi um centro gerador de empregos, porém com uma larga base de operários de baixa renda, o que favoreceu o processo de marginalização social ”.91

Urbanisticamente, neste período a cidade espraiou-se em direção sul avançando sobre antigas dunas e a leste, em áreas reservadas à ampliação das atividades portuárias. Onde havia sido planeado um bairro moderno, surgiu uma imensa favela - a Vila dos Cedros (hoje, bairro Getúlio Vargas) - habitada por operários de baixa renda, sobretudo, da Swift.

Em 1919 a Cidade de Rio Grande contava com 6.904 prédios92 e, em 1920 o Município possuia 53.607 habitantes.93 Nesse ano, a indústria sul-rio-grandense apresentava-se como a terceira maior do país, superada somente pela de São Paulo e da Capital Federal.94 Respondendo por 59,9% da produção industrial nacional estavam as indústria alimentícia (32,9%) e a têxtil (27,0%), justamente os principais ramos da indústria rio-grandina.95

Nas palavras de Vieira:

A partir de 1920 a indústria local se diversificou com o crescimento da indústria do pescado, conservas, bolachas, bebidas e outras. Profundas transformações atingiram as indústrias pioneiras. As que se modernizaram tecnologicamente progrediram, diversificando suas atividades. O conservadorismo, contudo, liquidou inúmeras fábricas.[...] A indústria do pescado, nascida do processo de salga do peixe em barracas próximas ao cais do Porto Velho teve uma fase de grande dinamismo com a ampliação das unidades industriais [...]. 96

Em princípios desse decênio intensificou-se a ocupação das terras próximas ao Porto Novo, em áreas adjacentes às instalações industriais.

91 VIEIRA, Rio Grande... op. cit., p.133-134. 92 PIMENTEL, op. cit., p. 56. Evidentemente que a Vila dos Cedros não entrou neste cômputo. A ocupação desta área só foi reconhecida em 1948. (Cf. SALVATORI, op. cit., p.48.) 93 Informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 94 LOVE, op. cit., p.106-109. 95 Dados fornecidos por: SILVA, S. Economia Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p.113. Conforme Pedro Fonseca, a lã foi o único produto da Campanha que, durante a República Velha, apresentou um significativo crescimento, estando vinculada aos progressos da indústria têxtil. Entre 1907 e 1927 as quantidades destinadas ao mercado externo quadruplicaram e ao mercado interno duplicaram. Todavia, a lã não foi solução no sentido de impulsionar com dinamismo a economia, então estagnada, desta região. (FONSECA, op. cit., p. 61.) 96 VIEIRA, Rio Grande..., op. cit., p. 134-135.

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A prosperidade econômica ampliou os espaços físicos das cidades e aumentou a diferenciação da sociedade brasileira. Ante à opulência da burguesia, opunha-se frontalmente o operariado miserável e desamparado. Nesse quadro bipolar e de profunda crise social, ganhou espaço a classe média formada por um grupo heterogêneo: pequenos proprietários e comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais et cetera.

A etapa histórica que iniciou-se após a Revolução de Trinta, foi marcada pela aceleração das relações capitalistas e pelo conseqüente crescimento quantitativo e qualitativo da burguesia e do proletariado brasileiros. Conforme a Estatística Industrial de 1935, Rio Grande possuía na indústria têxtil, 5 fábricas e na alimentícia 44. Em 1937 apresentava 6.000 trabalhadores neste setor; destes, 1.797 na indústria têxtil e 3.209 na alimentícia. Especificamente nos frigoríficos trabalhavam 2.516 operários. No comércio contavam-se 508 estabelecimentos de atacado e varejo.97

Outro importante setor da economia local relacionava-se aos “divertimentos”: teatros, cine-teatros, cinemas..., responsável pela arrecadação de grandes somas em forma de impostos municipais e pela geração de empregos. O comércio local do lazer e da cultura ampliou-se e diversificou-se, consideravelmente, desde a década anterior.98 Durante todo o período enfocado nesse estudo e, até finais dos Anos Trinta, o crescimento urbano de Rio Grande ocorreu de maneira espontâneo e irregular, dentro dos padrões tradicionais.99

Ao sul da cidade, próximo ao Porto Novo e da zona das indústrias têxteis e da malha ferroviária rio-grandina, instalou-se em 1937 a Refinaria de Petróleo Ipiranga S. A. De suma relevância para a economia local a companhia teve crescimento acelerado, demandando grande número de empregados e rapidamente desdobrando-se em outras empresas.

Paralelo aos ciclos econômicos já expostos, sempre desenvolveu-se no Município a agricultura de hortifrutigranjeiros, sobretudo nas ilhas da Torotama, Leonídeo e dos Marinheiros, e a pesca artesanal, cujos produtos eram comercializados na Doca do Mercado (denominada antigamente de Banca do Peixe) ou no Mercado Público, em zona central da cidade. Com seu cais recuado e entreposto a Doca do Mercado, localizada próxima ao porto, foi construída em 1848 objetivando facilitar o abastecimento do Mercado Público adjacente. O grande edifício do Mercado foi erguido em 1863 no mesmo lugar da antiga construção em madeira. Construído para organizar o comércio local, constituiu-se, por anos, no principal provedor da cidade em gêneros alimentícios e grande fonte de arrecadação do Município. Seu prédio compõe e caracteriza uma das mais tradicionais imagens de Rio Grande até os dias atuais.

Segundo o geógrafo Vieira:

97 PIMENTEL, op. cit., p. 258-259. 98 O maior empresário do setor de divertimentos da cidade durante o Entre-Guerras foi, sem dúvida, Ângelo Gaudio. Em 1921 ele era co-proprietário do Teatro Sete de Setembro, co-arrendatário do Politeama Rio-Grandense e proprietário dos cinemas Ideal Concerto, Victol, Parisiense e Recreio Popular. Em princípios dos Anos Vinte, associou-se ao Cine-Teatro Guarani. Ao final do decênio sua empresa arrendou o Cine-Teatro Carlos Gomes. Outros nomes de destaque eram Ferdinando Bianchini, Antônio Marques Figueiredo, João Pereira de Andrade, João Mário de Carvalho Rios e Francisco Andreassi. 99 SALVATORI, op. cit., p. 50.

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O desenvolvimento industrial é o mais importante fator de transformação da sociedade. O crescimento e a diversificação da capacidade industrial instalada operam modificações profundas na organização social, na estrutura da população e nos ritmos de crescimento demográficos. A industrialização é insofismavelmente a maior aspiração com vistas ao desenvolvimento econômico e social.[...] O progresso, o bem-estar social e a elevação cultural estão profundamente ligados à criação, à implantação e à evolução do processo de industrialização.100

Incontestavelmente, a industrialização promoveu um grande aumento da malha urbana e um progresso econômico e cultural; entretanto esse não se fez acompanhar de um projeto que criasse condições reais para o desenvolvimento social. Percebe-se a exploração de mão-de-obra não especializada e de baixa remuneração, intensa desigualdade na distribuição de renda, inchaço populacional e proliferação de favelas e cortiços escondidos atrás de uma cidade dita moderna - um Rio Grande de cartão postal.

O processo de modernização pelo qual Rio Grande passou não implicou todavia em grandes modificações do traçado urbano persistindo na cidade muitas características de sua expansão desenvolvida de modo anárquico e marcada pelo ritmo dos seus avanços no campo do comércio e da indústria.

As principais transformações circunscreveram-se ao alargamento da rua Duque de Caxias na última quadra antes da Praça Xavier Ferreira e ao decorrente desaparecimento do pequeno quarteirão então existente ao lado direito desta via e ao alargamento da rua Benjamin Constant nos três últimos quarteirões anteriores à rua Marechal Floriano Peixoto. Realizaram-se obras destinadas ao embelezamento do espaço público em sua área central; a instalação dos equipamentos coletivos de infra-estrutura em parte da cidade e ao aperfeiçoamento dos serviços urbanos. Efetivaram-se substanciais melhorias no setor portuário. Deslocando-se do coração da urbe, foi executado o projeto do Bairro Cidade Nova, instalado precariamente e destinado, sobretudo, ao operariado.101

Em 1944 a cidade possuía “ 8.772 prédios sendo destes 532 de mais de um piso, distribuídos em 10 avenidas, 97 ruas, 44 travessas, 16 largos e praças, 1 parque e 3 praias”.102 FIGURA 5 – Planta da região central da cidade de Rio Grande, em princípios do século XX. Extraído de: Planta Geral da Cidade do Rio Grande do Sul. 1904. Mapoteca da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande. FIGURA 6 – Planta do centro da cidade de Rio Grande, em 1926 assinalando as reformas urbanísticas efetuadas. No final deste decênio deu-se também o alargamento da rua Benjamim Constant, na última quadra antes da rua Marechal Floriano Peixoto (o denominado “Beco do Carmo”), que implicou na demolição da antiga Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1928). Extraído de: Planta Geral da Cidade do Rio Grande. 1926. Mapoteca da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

100 VIEIRA, Eurípedes. Rio Grande do Sul: Geografia da População. Porto Alegre: Sagra, 1985. p.158-159. 101 Cf. plantas da cidade de Rio Grande de 1904, 1926 e 1937. 102 PIMENTEL, op. cit., p. 56, 535.

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Para a compreensão da dinâmica de uma cidade não pode-se deixar de enfocar sua infra-estrutura e serviços urbanos.

Durante o século XIX principiou-se uma tímida expansão dos serviços públicos rio-grandinos. Nos últimos anos da década de 1840 foi implantada a iluminação nas ruas do centro histórico. Em 1874, substituindo os antigos candeeiros a querosene (antes, a óleo de peixe), a cidade passou a gozar da iluminação a gás pela Companhia Rio-Grandense de Iluminação e, a partir de 1908 pelo Gasômetro Municipal, perdurando em algumas vias públicas até 20 de maio de 1917. A luz elétrica, fornecida por uma usina local, foi inaugurada em 1908 sendo implantada nas ruas centrais em 1915.103 Os benefícios da iluminação pública repercutiram em todos os setores da sociedade, tornando-se um dos agentes de dinamização do setor dos divertimentos coletivos e da vida noturna. Cada vez mais, a noite foi perdendo seu caráter privado.104

O deficitário abastecimento de água potável da cidade percebido durante boa parte do século XIX era realizado através de poços artesianos. Em 1848 abriu-se um novo poço próximo ao centro histórico, na Praça Geribanda (atual, Praça Tamandaré). No decênio de 1870 a Companhia Hidráulica instalou-se nas cercanias da cidade em local próximo ao Parque Rio-Grandense, possuindo um elegante reservatório metálico com capacidade para 1.500 litros de água. Embora tivesse melhorado, significativamente, o serviço de abastecimento local, esse já apresentava-se insuficiente na virada do século.105

A coleta do lixo e a limpeza de ruas e praças eram realizados por meio de carroças. Quanto aos dejetos fecais esses eram despejados em cubos de madeira existentes em fossas móveis construídas nos quintais das casas. Os “cubos” eram retirados de duas a três vezes por semana em carroças fechadas (em cores verde ou vermelha, de acordo com a empresa). As “águas servidas” – utilizadas na cozinha, banhos e limpezas - eram depositadas em barris e transportadas em pipas. Ambos resíduos eram liberados em águas correntes afastadas da cidade.106 Em fins do século XIX a Companhia de Asseio Rio-Grandense responsabilizava-se por esses serviços.

A instalação de latrinas públicas data de 1854 construídas próximas ao Mercado. Embora a Municipalidade tivesse se empenhado, repetidas vezes, no sentido de dotar a cidade de esgotos, diversos fatores contrários impossibilitaram o empreendimento que só foi efetivado em 1920 quando começou a funcionar a Usina Central de Esgotos em parte da rede. Em 1922 foram concluídos os trabalhos de abastecimento de água e os serviços de esgotos que transformaram a cidade em um verdadeiro canteiro de obras. Melhorias complementares foram executadas em 1923.107

Embora a zona urbana gozasse de serviços de luz elétrica, água e esgotos encanados, esses não alcançavam toda a população. Em 1943 a cidade contava com mais

103 MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim. PIMENTEL, op. cit., p. 75-76. 104 Cf. CONSTANTINO, Núncia. A Conquista do Tempo Noturno: Porto Alegre ”Moderna”. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. XX, n.2, dezembro, 1994. 105 COPSTEIN, op. cit., p. 51. PIMENTEL, op. cit., p. 29, 65. 106 FREITAS, op. cit., p. 50-51. 107 Ibid. Sobre o saneamento da cidade confira OLINTO, op. cit., pp. 147-158. PIMENTEL, op. cit., p.70-71.

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de 8.000 prédios; desses, somente 5.500 usufruíam do abastecimento de água; 4.000 da rede de esgotos e 6.000 de ligações elétricas.108

Na área da medicina social destacavam-se a Santa Casa de Misericória (1841) e a Beneficência Portuguesa (1854), entre outras instituições de caridade fundamentais à manutenção da saúde da população.109

Instalada estrategicamente entre o Oceano Atlântico e a Laguna dos Patos, Rio Grande soube utilizar-se de sua qualidade portuária para sobreviver e desenvolver-se. Em tempos onde as ferrovias ainda não haviam surgido e as estradas de terra eram um pedido à morte, as calmas águas doces da laguna ofereciam transporte. E, apesar da rima, que bem certo me anima, as embarcações singravam suas águas desde Rio Grande à Pelotas, alcançavam Porto Alegre, subiam o Jacuí, via Canal São Gonçalo e Lagoa Mirin chegavam a Jaguarão... Enfim, a navegação fluvial na rede hidrográfica da Bacia da Laguna dos Patos constituía-se no meio de transporte intermunicipal mais utilizado. Transportando cargas e/ou passageiros os vários tipos de embarcações de diferentes nacionalidades e empresas, com suas linhas regulares, ofereciam passagens para os principais portos do Rio Grande do Sul, Região Platina, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Europa.110 Conforme Joseph Love:

Em princípios da década de 1870, os vapores já estavam transitando pela Lagoa dos Patos e seus tributários, até 307 km acima do Jacuí e 538 km do Uruguai, a partir da Barra do Quaraí. Fez-se a ligação de Montevideo com o Porto de Rio Grande e duas viagens por mês comunicavam o Rio de Janeiro com o Rio Grande [do Sul]. Por volta de 1890, um vapor oceânico dava mensalmente acesso aos portos do Norte do Brasil e da Europa. Ao invés de dois navios mensais para o Rio, agora havia cinco. Saindo de Porto Alegre, navios atravessavam os principais afluentes do Jacuí pelo menos três vezes por dia. Entre 1859 e 1883, mais do que duplicou o número de navios que cruzavam a barra de Rio Grande.111

Gozando desde muito dos serviços de correio e telégrafo, a telefonia foi implantada na cidade em 1887.112 Em 1907, ofertas de aparelhos telefônicos da Empresa Ganzo Fernandes ocupavam os anúncios nos periódicos locais.

O transporte urbano coletivo teve início nos primeiros anos da década de 1850 por meio de “carretões”, espécie de ônibus puxado por cavalos e mesmo bois. Em

108 Cf. PIMENTEL, op. cit., p. 56-58. 109 FREITAS, op. cit., p. 52-53. PIMENTEL, op. cit., p. 85. 110 Dentre as principais companhias de navegação estavam a Mala Real Inglesa, Lloyd Brasileiro, Navigazione Generale Italiana Transoceanica La Veloce, Compagnie Chargeur Réunis... As embarcações e os trens constituíam-se nos mais importantes meios de transporte. Entretando, com o desenvolvimento da indústria automobilística e a construção da Rodovia Rio Grande-Pelotas no decênio de 1940, este quadro foi , paulatinamente, revertido. 111 LOVE, op. cit., pp. 17-18. 112 Inventado em 1876 por Graham Bell, o telefone foi introduzido no Brasil em 1879. Em Porto Alegre, a telefonia data de 1884. Em 1889 o Centro Telefônico Rio-Grandense publica na imprensa rio-grandina, uma listagem geral de seus assinantes na cidade. (ECO DO SUL. Rio Grande, 9 jun.1889. FREITAS, op. cit., p. 29,33).

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1884 foi fundada a Companhia Carris Urbanos do Rio Grande transportando passageiros em vagões sob trilhos e puxados por cavalos ou a vapor. Os bondes à tração animal desapareceram em 1922; todavia vagões puxados por pequenas locomotivas e bondes movidos à eletricidade (muitos importados da Inglaterra) continuaram a existir.113 O avanço da técnica nos meios de transporte coletivos urbanos, igualmente se insere num signo de modernidade. Nas palavras de Mara do Nascimento:

os bondes anunciavam, pelos seus itinerários, que a cidade expandia-se e que as necessidades da população em se locomover aumentavam. Eram sinal de mudanças. Viajar, ou passear, por um quarto de hora ou por meia hora ao lado de um desconhecido, sem dirigir-lhe a palavra, ou então trocar conversa formalmente sobre a política ou os costumes, com alguém que não se sabia exatamente quem era, revelava o sinal de novos tempos que o bonde poderia proporcionar. A eletricidade, força motriz oculta para os olhos, que não podia ser vítima de chacotas ou apelidos como os burros, reforçou ainda mais a veneração do progresso industrial e dos avanços da racionalidade científica [...].114

Em 1931 a cidade possuía 16 bondes elétricos; em 1935, 22 carros e, em 1940, 42 unidades e um total de 24.500 km de linhas urbanas com um movimento de 5.386.841 passageiros neste ano. Era comum nos prospectos publicitários dos (cine-) teatros locais o anúncio: “haverá bonds para todas as linhas depois do espetáculo”, o que certamente favorecia à freqüência às casas de espetáculos e a vida noturna. O primeiro ônibus da cidade foi inaugurado em outubro de 1939, com capacidade para 30 passageiros.115 Ao lado dos transportes públicos circulavam pelas ruas um tráfego de transeuntes, carroças, coches e automóveis particulares - um dos grandes símbolos da modernidade a ser alcançada e entendida como progresso. FOTO 2 - Bonde elétrico trafegando na rua Mal. Floriano Peixoto. Ao fundo o antigo prédio do Clube do Comércio. 1915. Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Em 1936 a S. A. Empresa de Viação Aérea Rio-Grandense (ou simplesmente, VARIG) utilizando-se do campo de pouso da Base de Aviação Naval de Rio Grande, restabeleceu o tráfego comercial entre a cidade e Porto Alegre, inaugurado em 7 de maio de 1927.116

Rio Grande como terminal portuário da Província recebia, constantemente, um grande fluxo de visitantes. Assim, decorria a necessidade de uma rede hoteleira que possibilitasse a hospedagem dos viajantes. Entre os mais antigos hotéis percebidos estão:

113 FREITAS, op. cit., p. 43-45. 114 NASCIMENTO, op. cit., p. 14. 115 PIMENTEL, op. cit., p.54-56, 78. FREITAS, op. cit., p. 43-45. 116 É interessante ressaltar que esta linha inaugurou a aviação comercial brasileira. (PIMENTEL, op. cit., p. 267).

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Hotel Internacional (construído em 1826, atual Hotel Paris à rua Mal. Floriano Peixoto)117, Hotel do Globo (1856, que oferecia “canja com galinha” nas noites de espetáculos do Teatro Sete de Setembro)118, Hotel Rio-Grandense (1862)119, Hotel Novo Arnaldo (1872) rebatizado de Grande Hotel (1887, Rua dos Príncipes - atual Gal. Bacelar - ao lado do Teatro Sete), Hotel Itália (1888, rua D. Pedro II - atual Mal. Floriano Peixoto - n. 196)120, Hotel Atlântico (construído na virada do século na Vila Sequeira), Avenida Hotel (1919, rua Gal. Bacelar, n. 147), Bristol Hotel (1920, Gal. Bacelar, depois mudou-se para a rua Mal. Floriano), Hotel Roma (1920), Hotel do Globo (com o mesmo nome do supracitado, inaugurado em 1921 à rua Paissandú - atual República do Líbano - próximo a Praça Sete de Setembro), Hotel Portugal (inaugurado em 1927 a rua Gen. Netto, no 8) e outros. Em 1943 a cidade contava com 27 alojamentos (hotéis, pensões e casas de cômodos).121

1.2 - POPULAÇÃO

Historicamente o Município de Rio Grande sempre apresentou uma população essencialmente urbana, condicionada às suas atividades produtivas. Em 1940, marco temporal que baliza este estudo, o Município possuía 60.802 domiciliados; sendo 51.331 no meio urbano e somente 9.471 no meio rural.122

A população rio-grandina fundamentava-se, sobretudo, numa origem européia portuguesa e numa africana. Uma característica da população local de ascendência européia era a predominância da matriz étnica portuguesa apesar da freqüente presença de imigrantes alemães, italianos, poloneses, espanhóis, franceses, ingleses... e também de platinos, judeus e árabes ao longo de sua história, percebidos tanto no setor primário quanto no comércio e na indústria que se desenvolveu após a Guerra do Paraguai.123 Esse significativo contingente imigrante integrou decisivamente o processo de modernização da cidade.124 Ao grupo caucásico somou-se o africano introduzido largamente na época da escravidão e depois absorvido, principalmente, pelos setores de prestação de serviços, da construção civil e da indústria.125 As migrações de outras etnias

117 Construído originalmente em estilo colonial seu prédio sofreu inúmeras reformas e ampliações. Elegante e confortável foi decorado pelo artista Giovanni Falconi, sendo o mais requintado da cidade. 118 BITTENCOURT, Elementos... op. cit.,p. 17. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 3 jun. 1942. 119 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 27. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 1o ago.1941. 120 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 62. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 23 jul. 1942. 121 PIMENTEL, op. cit., p. 536. 122 Informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Municipal de 1940. 123 Sobre a imigração no Brasil consulte: DIÉGUES JR, Manuel. Imigração, Urbanização e Industrialização: estudos sobre alguns aspectos da contribuição cultural do imigrante no Brasil. Rio de Janeiro: MEC/INEP, 1964. 124 Sobre a atuação dos imigrantes na modernização de Pelotas confira: ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e Modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX. Porto Alegre: PUCRS, 1996. (Dissertação de Mestrado). 125 Segundo Love, em 1890 cerca de 30% da população do Estado era composta por negros e mulatos. Os escravos eram utilizados como peões nas estâncias, trabalhadores nas charqueadas e, em Rio Grande, sobretudo, nas atividades comerciais e domésticas. (LOVE, op. cit., p. 11. Sobre a escravidão em Rio Grande

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foram inexpressivas e dispersas ao longo dos tempos. Para Copstein, “a todos o Rio Grande de origem lusa conseguiu absorver e integrar em uma comunidade sem os problemas que não raro ocorrem nas sociedades de variadas origens”.126 Todavia, apesar da marcante presença portuguesa, a organização social rio-grandina, assim como a brasileira, caracterizava-se pela heterogeneidade resultante de um rico processo que combinou contrastes e antagonismos os mais variados.

Observados a partir da Independência, os anos de maior entrada de imigrantes portugueses no Rio Grande do Sul foram 1887, 1891, 1896 e 1912. A cidade de Rio Grande constituiu-se, por todo o século XIX e boa parte do XX, na maior Colônia Portuguesa da Província/Estado. A forte presença lusitana nos diversos segmentos produtivos da sociedade revelava-se principalmente no comércio de secos e molhados, na pesca artesanal e na industrialização do pescado, na agricultura de hortifrutigranjeiros, e nas várias casas de alimentação (restaurantes, fruteiras, etc.) que possuíam.

Atuando na sociedade local, os portugueses colaboraram, decisivamente, para o desenvolvimento do lugar. Da presença ativa destes imigrantes decorreram ações conjuntas que possibilitaram as fundações da Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande (1841); do Gabinete de Leitura (1846) origem da Biblioteca Rio-Grandense; da Câmara do Comércio (1844); da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1854); da Sociedade União Comercial dos Varejistas de Secos e Molhados (1888) e de outras instituições.

Os imigrantes teutos também respondiam pelo progressismo da cidade. Participando com destaque da indústria e do comércio locais, a influência dos germânicos pode ser ainda claramente observada no estilo arquitetônico de muitos prédios instalados à avenida Rheingantz. 1.3 – IMAGENS E AUTO-IMAGENS

Sendo a mais antiga cidade do Rio Grande do Sul lusitano, Rio Grande já foi retratado por inúmeros artistas em suas telas: Jean-Baptiste Debret, Hermann Wendroth, Francis Richard, Willian Lloyd, e outros.127 Através desses registros a cidade torna-se história e, sobretudo, ganha imagem possibilitando aos historiadores a apreensão dos cenário destruídos. Neste sentido, as fotografias de época e os relatos de viajantes constituem-se igualmente em importantes ferramentas. O Rio Grande atual, não proporciona uma visualização da cidade imperial e, muito menos, da vila colonial. Tornam-se cada vez mais raras as construções desses períodos capazes de balizar a história urbana local. Tem-se não mais que alguns poucos edifícios isolados sobreviventes ao tempo, marcas do passado sedimentadas na memória urbana coletiva. Aos festins demolitórios, sobreviveu somente a epiderme do antigo conjunto arquitetônico outrora existente. A vila fortificada do século XVIII, de caráter militar alterou-se nas primeira décadas do Dezenove dando origem a cidade burguesa, diretamente ligada ao comércio

confira GATTIBONI, Rita. A Escravidão Urbana na Cidade de Rio Grande. Porto Alegre: PUCRS, 1993. Dissertação de Mestrado.) 126 VIEIRA, Rio Grande...,op. cit., p. 126. COPSTEIN, op. cit., p. 67. 127 Cf. BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976. Vol. I e II. Para uma visão sintética consulte: ALVES, Francisco e TORRES, Luiz. Imagens do Rio Grande. In: Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX. Rio Grande: URG, 1995. p.78-84.

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marítimo. A cidade industrial esboçava-se já em fins do século, apresentando-se nos decênios de 1920 e 1930 como um importante centro fabril, com seus bairros operários miseráveis e uma zona central “moderna” e europeizada. Uma cidade polissêmica, ancorada em antagonismos. Tradição e modernidade dividiam o mesmo espaço: o cenário onde os atores sociais representavam o dinâmico “espetáculo da vida”.

E assim como Rio Grande, o “Brasil moderno parecia um caleidoscópio de muitas épocas, formas de vida e trabalho, modos de ser e pensar”. As culturas do passado “subsistiam e impregnavam o modo de ser urbano burguês, [dito] moderno da cultura brasileira, dominante, oficial”. A cidade “capitalista, industrial, urbanizada, convivia com vários momentos pretéritos. Formas de vida díspares aglutinavam-se em um todo insólito”.128

Em sua territorialidade a cidade brasileira possui, desde o nascimento, o sincretismo do processo civilizacional do mundo, “uma dinâmica social de hibridização, de mestiçagem de códigos [...] que não nega o conflito, a contradição e o paradoxo, ao contrário, faz deles fontes de socialidade [...]”.129 Enquanto espaço à diversidade e ao contraste, possui uma riqueza incomparável.

Mas qual seria a imagem que os rio-grandinos teriam de sua cidade em fins do decênio de 1930? Frente à esta questão, torna-se precioso este desenho publicado em grandes proporções na capa do jornal Rio Grande, de 19 de fevereiro de 1937, por ocasião do bicentenário de fundação do lugar.

FIGURA 7 – Desenho publicado por ocasião do Bicentenário da Fundação de Rio Grande. Extraído de: RIO GRANDE. Rio Grande, 19 fev.1937. O artista Procópio Neto faz diversas alusões à história local registrando a chegada da expedição fundadora do brigadeiro português José da Silva Paes em 1737; a construção do Forte Jesus, Maria, José – núcleo inicial da cidade e a presença indígena na região - personificada na forma vigorosa de um índio, relacionado à agricultura. O presente do lugar revela-se no registro do rebanho gaúcho, numa clara relação com o importante setor frigorífico fundeado no Município; no complexo portuário e na retratação de um imenso parque industrial com suas várias unidades fabris, muitas chaminés e vagas de fumaça - emblemas do progresso e da modernidade alcançados. Nesses quadros os anos de 1737 e 1937 são emoldurados por raios fúlgidos, num enaltecimento tanto do passado quanto do presente da cidade. Assim, eis um Rio Grande idealizado, mítico, mas legítimo na construção do imaginário urbano coletivo. E aqui cabe a lembrança de que por meio das apelações emotivas (no caso, da valorização do grupo e da terra) desenvolve-se a dimensão afetiva da cidade, dimensão essa, que a faz funcionar.130

128 IANNI, Octávio. A Idéia do Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 60-62. 129 PEREZ, Léa. Separatismo ou Tempo das Tribos? In: Colóquio Internacional Separatismo e Pós-Modernidade. Porto Alegre: Instituto Cultural Brasileiro-Alemão, 1994. Alicerçada nas idéias de Michel Mafessoli, a autora entende por socialidade os aspectos lúdicos do elo social, o prazer do contato, as relações informais estabelecidas em sociedade. 130 Palestra intitulada História e Imaginário Urbano, proferida por Maria Stella Bresciane (UNICAMP), na UFRGS em 18 de abril de 1997.

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Se esse registro correspondia somente à uma das faces da cidade, não devemos esquecer que uma outra existia e pulsava vivaz. E que apesar dos muitos problemas urbanos, Rio Grande oferecia-se às mais variadas manifestações da vida em sociedade. Formas de lazer, diversões, vida noturna, clubes, associações, sociedades.., hábitos e práticas sociais urbanas constituem-se no próximo objeto desse estudo.

__________ 2 __________

ORGANIZAÇÃO & MOVIMENTO: A SOCIEDADE RIO-GRANDINA

2.1 - FESTAS E LAZERES AO AR LIVRE Entre areias estéreis e zonas alagadiças Rio Grande desenvolveu-se numa constante luta contra a natureza hostil. Invadida freqüentemente por dunas móveis e desprovida de vegetação, a cidade foi fruto da ação transformadora de seus habitantes. Mesmo sem uma paisagem natural a seu favor e um cenário urbano, por épocas, nada atraente, sua população, desde os primórdios, utilizava-se do espaço público para o lazer e comemorações, que assim entendido, constituía-se num importante local de integração social. Neste sentido, um dos primeiros registros que possuo remete ao ano de 1750 e às comemorações locais pela subida ao trono de Portugal do monarca D. José I. Manifestando lealdade ao novo rei, a população civil e os militares divertiram-se nas ruas

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com “banquetes, baile e comédias” às custas da Provedoria do Rio Grande.131 Mui possivelmente, como era costume da época “ao som de charanga militar, espocar de foguetes e outras manifestações”.132 A observação da inclusão de representações teatrais nesta festividade adquire sensível importância se considerado o contexto da época em que está inserida: há apenas treze anos decorridos de sua fundação, Rio Grande constituía-se num remoto lugarejo essencialmente militar, composto por uma única rua com pequenas casas de pau-a-pique e barro. O contingente açoriano que impulsionaria o desenvolvimento do lugar, só chegaria a partir de 1752. Guilhermino César comenta que “muito antes, portanto, de inaugurada em Porto Alegre a Casa da Ópera [fins do século XVIII] já no burgo rio-grandino [...] o teatro rebentava do chão do areal litorâneo [...]”.133 A fervorosa religiosidade do luso-brasileiro revelou-se desde cedo, já na fundação do primeiro forte em 1737, evocando a Sagrada Família: Jesus, Maria, José. Ao longo dos séculos muitas foram as igrejas e instituições religiosas existentes em Rio Grande.134 Durante o século XVIII e parte do XIX as sociabilidades públicas estavam intimamente relacionadas não somente com a freqüência às igrejas e capelas, mas também às festas populares religiosas. Muitas destas atividades eram prescritas pela Igreja com o fim de desobrigar os fiéis. O Estado igualmente exigia o cumprimento de rituais cívicos - festas reais ou oficiais - comemorando eventos relativos à Família Real ou acontecimentos e datas nacionais, como também de algumas celebrações religiosas determinadas pelas Ordenações do Reino e Cartas Régias assinalando as demonstrações públicas de regozijo ou de pesar. E aqui torna-se mister a lembrança da união existente entre o Estado e a Igreja, tanto em Portugal quanto no Brasil Monárquico. O nascimento, a morte, o casamento, a entronação... de monarcas ou príncipes transformavam-se em acontecimentos festivos para a população, objetivando a promoção do culto aos governantes. Nessas comemorações incluíam-se sempre missas cantadas (Te Deum) e atividades religiosas fora dos templos.

Conforme Arno Mayer, “principalmente nos países ou regiões católicos e ortodoxos, as procissões religiosas constituíam espetáculos grandiosos, e muitos teatralizavam visualmente a interligação do altar, trono, classe dominante e nação, como no caso das coroações e funerais reais”.135 Na falta da presença física do homenageado, sua personificação realizava-se por meio da retratação de sua imagem em pintura, sendo pomposamente cortejada pelas ruas da cidade.

Procissões, missas ao ar livre, quermesses, e outros festejos acompanhados por bandas musicais desenvolviam-se pelas vias públicas e no Largo da Matriz (mais tarde denominado de Largo Dr. Pio), celebrando datas religiosas: Semana Santa, dia natalício de

131 Documento 20.436. Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil Existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. V. 71. 132 CESAR, Guilhermino. Comédias Portuguesas no Rio Grande de São Pedro - 1750. Correio do Povo. Porto Alegre, 11 mar. 1978, p. 3. Todavia sabe-se que, muito comumente, os banquetes eram aproveitados somente pelos cidadãos de destaque; aos pobres eram distribuídos apenas pães. (Cf. WESTPHALEN, Cecília et BALHANA, Altiva. Lazeres e Festas de Outrora. Curitiba: SBPH-Pr., 1983. p. 14.) 133 CESAR, Comédias..., op. cit. 134 Conforme Pimentel, na divisão eclesiástica católica, a cidade possuía em 1943 duas Paróquias com suas respectivas matrizes e igrejas, 18 capelas e 2 conventos de carmelitas descalços; seis confissões protestantes, cada uma com seu templo; 28 sociedades espíritas, 3 esotéricas e uma sinagoga judaica. (PIMENTEL, op. cit., p. 151, 536.) 135 MAYER, op. cit., p. 239.

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Santos, Corpus Christi, Espírito Santo, etc. Esses encontros misturavam a religiosidade a um espírito alegre e lúdico desenvolvido na festa. O compromisso religioso constituía-se, outrossim, num momento social. Para Roberto Da Matta, “os eventos sociais marcados pela motivação do divino e realizados sob a égide da Igreja [...] assumem no Brasil um caráter conciliador entre a extrema formalidade e a extrema informalidade, no ambiente criado pelo próprio ritual” e que revela a dramatização dos valores da sociedade que o engendrou.136 FIGURA 8 – Crítica do jornal O Amolador às músicas da Procissão da Ressurreição de 1874. Legenda: “Tudo Dança. Eis os efeitos causados pelas bandas de músicas na Procissão da Ressurreição, em conseqüência de tocarem peças impróprias de servirem em atos religiosos. É preciso que se afastem de certos ‘fadinhos’ que fazem com que os homens dos hábitos e da opas, assim como as beatas, esquecendo-se das cerimônias, caiam no fandango, prejudicando assim a moralidade e a religião”. Extraído de: O AMOLADOR. Rio Grande. 1874. N. 2. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre.

As quermesses atuavam como formas comunitárias de estímulo à solidariedade. As festas juninas: Santo Antônio, São João e São Pedro reuniam a vizinhança em torno das fogueiras, fogos de artifícios, danças e comidas típicas. Outro importante elemento lúdico dessa tradicional manifestação popular era a “nada civilizada” prática da Malhação do Judas que, desde o período colonial era arrastado, surrado e, finalmente, queimado pelas ruas.137 Com o tempo, essas festas religiosas foram, paulatinamente, secularizadas.

∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼ As festas populares durante a Colônia e o Império tinham seu ápice no jogo do Entrudo, folguedo carnavalesco popular de origem portuguesa que desenrolava-se pelas ruas de todo o Brasil.138 Em sua estada na cidade em 1809, o viajante Luccock assim descreve o festejo:

Por ocasião do Entrudo, conforme lhe chamam, fazem bolas ocas de cera de cores variegadas, mais ou menos do tamanho de uma laranja, enchem-nas d’água e bombardeiam-se mutuamente até que os combatentes fiquem completamente molhados.[...] Embrulha-se farinha de trigo em cartuchos de papel e, de surpresa, quando um

136 DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 41. 137 Conforme Gilberto Freyre, a malhação do Judas de Pano era uma “evidente expressão popular de ódio teológico do Católico ao Judeu e de ódio social do oprimido ao opressor: do moleque pobre de rua ao homem apatacado e nem sempre de sangue israelita, embora quase sempre considerado ‘judeu’, [proprietário] de sobrado comercial”. (FREYRE, Sobrados..., op. cit., p 462). 138 De origem um tanto obscura, o Carnaval localiza-se na Antigüidade associado às celebrações profanas de caráter orgíaco. Incorporado às tradições cristãs, designa o período dos três dias precedentes a Quarta-feira de cinzas, sendo marcado por uma série de folguedos populares de interesses lúdicos.

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pobre negro se encontra distraído o fazem de branco. De tal maneira o povo gosta desses e de outros divertimentos que dizem todos abertamente: no Entrudo ficamos todos bobos.139

O Entrudo era um folguedo que tinha a intenção de molhar ou de sujar transeuntes desprevenidos, atirando sobre eles água através de bisnagas ou de limões de cera e também farinhas e cal. Mais tarde surgiram os limões de cheiro com água perfumada e as bisnagas com vinagre, groselha ou vinho. Conforme Olga Von Simson, no universo da festa:

cabem as brincadeiras com limões e laranjas de cheiro, as molhadelas com seringas, bisnagas e até baldes ou tintas, os enfarinhamentos, as peças pregadas em amigos, parentes e conhecidos e a brincadeira intitulada ‘Você Me Conhece?’. [...] o negro do Entrudo tem participação minoritária, cumprindo três funções: auxiliar os brancos [os chamados “pretos-minas” que carregavam as cestas com os limões], ser vítima passiva das brincadeiras [como registrou Luccock] ou vender limões e laranjas de cera [fabricados pelas próprias famílias]. Os negros jogavam o Entrudo nos intervalos de suas atividades, mas tal jogo era circunscrito aos seus, mantendo os padrões dos brancos.140

Na década de 1840 surgiu no Rio de Janeiro o Zé Pereira, costume lusitano de animar os festejos carnavalescos ao som de tambores e zabumbas percutidas pelas ruas em passeata, que difundiu-se ao longo do século adquirindo novas características com a introdução de outros instrumentos.

Paralelo a popular folia de rua desenvolveu-se a partir deste decênio o Carnaval Veneziano caracterizado pelos Bals Masqués (Bailes de Máscaras) dados em salões ou teatros. Posteriormente, surgiram os Clubes Carnavalescos. Voltados para as classes dominantes, organizavam-se, também, em préstitos de coches abertos com famílias fantasiadas e carros alegóricos ricamente decorados e puxados por cavalos, pelas ruas centrais das cidades. O Corso era acompanhado por bandas que tocavam marchas militares, polcas, xotes, valsas, etc. Os préstitos luxuosos passaram a caracterizar o novo tipo de folia. As ruas transformavam-se em verdadeiros palcos apresentando o “Espetáculo das Elites”.

Em princípios da década de 1880, eram os clubes carnavalescos Saca-Rolhas, Boêmios e Diógenes que forjavam a folia nas ruas. O Club Carnavalesco Mina, fez seu primeiro “passeio burlesco” em janeiro de 1888 “acompanhado de imenso povo”.141

139 LUCCOCK, op. cit., p.129. 140 VON SIMSON, Olga R. de Moraes. A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo: Sessenta Anos de Evolução do Carnaval na Cidade de São Paulo - 1855-1915. São Paulo: FFLCH, USP, 1984.(Dissertação de Mestrado). Apud. BARRETO, Álvaro. Carnaval Pelotense: Europeu ou Africano?. Revista do IHGPel. Pelotas, n.2, p.28, jul. 1997. 141 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 61. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 15 jan. 1947. Sobre este clube, Antenor Monteiro, em seu Rebuscos: Coisas e Fatos da Cidade,

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FIGURA 9 - Passeio burlesco do Clube Boêmio pelas ruas do centro da cidade. Carnaval de 1881. Extraído de: MARUI. Rio Grande, 20 fev.1881. s/n. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Ao referir o Carnaval brasileiro de meados do Oitocentos, Freyre comenta sua função de desobstrução psíquico-social para uma população que nos restantes dias do ano, continha “alegrias ruidosas e tradições extra-européias de danças sensuais” abafadas por um europeísmo artificial ou postiço.142 Mesmo proibido pelo Governo, que o considerava um folguedo violento, o Entrudo gozava de grande prestígio junto à população. O periódico pelotense Diário Popular em 1o de fevereiro de 1891 comentava que “há bons nove ou dez anos [...] ninguém se continha: moços e moças, velhos e velhas - de acordo, reuniam-se na Praça [...] e numa intimidade doce, invejável, numa confiança cega - se atiravam todos às delícias do Entrudo”. Entretanto, com as novas ordens do dia: “abaixo o polvilho”, “fora os banhos”, “sepultem-se as laranjinhas”..., a pressão da polícia e o surgimento de instrumentos “modernos” de brincar: a serpentina, o confete e o lança-perfume, o velho folguedo – como realizava-se à época colonial - teve fim nos primeiros anos do século XX. O surto “civilizador” republicano da época refletiu-se na folia momesca: o Carnaval disciplinou-se. As sociedades carnavalescas com seus bailes e desfiles organizados levaram ao fenecimento da forma tradicional dessa manifestação lúdica da cultura colonial brasileira.

O desfile de carros e, mais tarde de automóveis, acontecia na rua Marechal Floriano Peixoto, entre batalhas de flores e confetes, numa versão tupiniquim do Carnaval de Nice, na Côte D’Azur. Compondo o cenário europeizado, pierrots e pierrettes, arlequins e colombinas, príncipes e princesas... numa “estética da imitação”. Em plena Belle Époque nos Trópicos os clubes carnavalescos Saca-Rolhas, Arara, Boêmios, Congo e outros, extravasam sua joi de vivre em “luzidos burlescos” no cenário urbano.143 Nesse Carnaval burguês, de origem francesa e italiana, e obviamente, branco, as camadas pobres da população atuavam como espectadores assistindo das calçadas ou seguindo atrás do Corso. Todavia, mesmo nesta situação, ricos e pobres, compartilhando do mesmo espaço físico, ou seja, do centro da cidade, passavam de certa maneira a comungar da folia.

fundamentado em jornais de época, revela alguns aspectos surpreendentes sobre a plasticidade da cultura brasileira percebida na sociedade rio-grandina de finais do Oitocentos. Em suas palavras; “no dia 2 de março de 1879, findava o carnaval com o Domingo da Pignatta. Saíra o Club Mina, formado de jovens de boa sociedade que, previamente ensaiados, entoavam cantigas dos africanos, reproduzindo-lhes as danças exóticas e, à noite no Politeama, banqueteavam-se com o vatapá, conduzido em grande panela de ferro”. Ao lado da Pignatta de origem italiana, a valorização de elementos da cultura negra por parte da população branca “de boa sociedade”, notadamente da música e a da dança (sem falar na comida que desde o período colonial já se fazia notar nas mesas dos brancos) torna-se preciosa se inserida no contexto da época: um Brasil escravocrata (mesmo que em decadência), dominado pelo racismo científico e sua premissa básica calcada na superioridade da raça branca e onde o “branqueamento” da população encontrava respaldo, efetivando-se no ideal europeizante do programa imigrantista, em decurso ao longo daquele século. Sobre o Domingo da Pignatta confira no Capítulo VI deste estudo o sub-título Bailes. A respeito das questões do “perigo negro” e do “branqueamento da Nação” consulte: CHIAVENATO, Júlio J. As Lutas do Povo Brasileiro: do “Descobrimento” a Canudos. São Paulo: Moderna, 1988. FREYRE, Sobrados..., op. cit. 142 FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 111. 143 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 81. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 31 jan. 1941.

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FOTO 3 - Desfile do Clube Carnavalesco Saca-Rolhas apresentando o carro alegórico intitulado “Jardim da Rainha”, trazendo a soberana do clube e sua Corte. Carnaval de 1911. Extraído de: Arquivo Fotográfico do Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande. Nesse século a festa ampliou-se com a criação de Blocos, Cordões, Ranchos e Clubes Carnavalescos formados por operários e funcionários públicos e do comércio. Nos Anos Vinte, o Carnaval de rua já tinha readquirido seu caráter popular, acrescido de uma singularidade: a importância do elemento negro e de seus costumes. Conforme Álvaro Barreto:

Aos poucos o carnaval burguês decai por uma série de fatores entre eles a industrialização, a urbanização, a chegada de novos atores sociais à cena e a utilização da folia pelo Estado como estratégia para incorporar as classes populares, ocorrendo, assim, a popularização da folia, agudizada a partir dos anos 20, quando, então, destacam-se costumes, danças e músicas africanas, antes periféricas, desprestigiadas e/ou estranhas à elite. Esse outro estilo de folia, que paulatinamente ganhava destaque, era o chamado Pequeno Carnaval, tendo como elemento característico o cordão e depois os ranchos.144

Desta feita multiplicaram-se os grupos populares organizados para brincar o Carnaval que, assim constituído, transformou-se num evento de ampla participação social, numa féerie colossal onde todos compartilhavam do culto ao prazer e da alegria. Com fantasias sem luxo, os pequenos grupos desfilavam a pé, tocando e cantando ao ritmo de instrumentos de origem africana. Firmaram-se as marchas e os sambas. Imprimiu-se uma nova feição ao Carnaval Brasileiro. Estudiosa do tema, Maria Isaura Pereira de Queiroz considera que o Carnaval deve ser entendido como uma festa que mantém uma relação íntima com os costumes e os papéis da sociedade onde desenvolve-se e cuja ruptura que se instala (ou “inversão”, como prefere Da Matta) embora essencialmente revolucionária, é na verdade simbólica, subsistindo os condicionantes sociais que, inclusive, sustentam essa simbolização.145 Debruçando-se sobre o Carnaval e as festividades do Dia da Pátria, Da Matta, valendo-se de uma sociologia comparativa, classifica estes eventos como “rituais nacionais”, pois percebe que ambos são “ritos fundados na possibilidade de dramatizar valores globais, críticos e abrangentes de nossa sociedade”. Eles refletem e expressam as facetas e os problemas da formação social brasileira. Enquanto momentos festivos, pertencem a um mundo extra-ordinário onde revelam-se muitos aspectos da realidade social então submersos pelas rotinas, interesses e complicações da vida quotidiana. Desta feita, “a chamada realidade brasileira se desdobra diante dela mesma, mira-se no seu

144 BARRETO, op. cit., p. 30. 145 Cf. QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval Brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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próprio espelho social e ideológico e, projetando múltiplas imagens de si própria, engendra-se como uma medusa, na luta e dilema entre o permanecer e o mudar”.146 FOTO 4 - Carro alegórico do Clube Carnavalesco Arara em desfile pela rua Mal. Floriano Peixoto. Ao fundo vê-se o edifício da Cinema Ideal Concerto (posteriormente, sede do Café Nacional). Carnaval de 1920. Extraído de: Arquivo Fotográfico do Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande.

Outra importante observação é a de que no Carnaval, como no mundo da diversão, o “comportamento é dominado pela liberdade decorrente da suspensão temporária das regras de uma hierarquização repressora”.147 Apresentando-se como uma festividade extra-ordinária com datas previstas para acontecer, no Carnaval Brasileiro a sociedade se “desempacota” temporariamente para, ao término das folias voltar a “empacotar-se” e, ordeiramente, esperar o próximo fevereiro, um mês “mágico”, onde os excessos coibidos durante todo ano são permitidos. Conforme Léa Perez, o princípio de organização social de nossa sociedade “é o da plasticidade e do movimento. E plasticidade e movimento são traduzidos, no Brasil através da festa.” A cidade sempre constituiu-se no cenário que acolhe a festa “espaço por excelência de reunião social, de assembléia coletiva e de socialidade.” Para a historiadora:

Na festa à brasileira o que importa, acima de tudo, é a ação, a participação ativa. O que vale e prevalece é a assembléia efervescente, a exaltação geral, o carnavalesco próprio à festa. O carnaval e as festas religiosas, formas de espetáculo por excelência, dizem respeito a uma maneira particular de viver a sociedade e de perceber o mundo. No Brasil o carnaval é mais que uma festa, ele corresponde a um modo de ser e de viver, a um princípio de organização social que caracteriza o mais profundo deste país. Entre nós, tudo começa e tudo termina pelo carnaval, o que vale dizer que nada começa verdadeiramente, tanto quanto nada tem fim. Nós vivemos sempre em trânsito, em movimento, na abundância carnavalesca. Neste modo de viver, a realidade não é negada, exatamente o contrário, ela é transfigurada e exacerbada por um realismo irônico que, em a afirmando, ri dela.148

Na festa, pessoas se encontram e se reencontram, experiências são recebidas e transmitidas. A intensificação do processo de comunicação dela decorrente, torna-se agente de renovação da vida social. Realizando-se num espaço plural, em sua atmosfera prevalece o movimento da coletividade ancorado na sensibilidade, o congregar das diferenças, o amolecimento da rigidez dos comportamentos.

146 DA MATTA, op. cit., p. 35-36. 147 Ibid., p. 38. 148 PEREZ, Léa. Por Uma Poética do Sincretismo Tropical. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 18, n.2, p. 49-50, 1992.

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A ordenação da natureza nos espaços da cidade moderna estava inclusa nos projetos de embelezamento urbano e igualmente alicerçados em modelos parisienses.149 Sob a égide da modernização, praças, largos e jardins tornaram-se os locais favoritos da elite rio-grandina para o lazer ao ar livre, oferecendo-se às novas relações de uma vida pública. Construída no centro histórico em zona comercial e residencial nobre a Praça Xavier Ferreira (outrora Praça do Mercado, Praça Municipal, Praça Dona Isabel e Praça General João Telles), com uma de suas faces à rua Marechal Floriano Peixoto, teve seu delineamento em 1809 através da “Planta da Praça da Vila do Rio Grande de São Pedro” apresentada por João Vieira à Câmara. Circundada por um gradil, iluminada, arborizada, com belos jardins em estilo francês, lago em espelho, monumentos e chafariz em metal importado da Inglaterra, esse tradicional espaço público de sociabilidade foi modernizado (diz-se, retificado e limpo da presença popular), adquirindo um “tom aristocrático” e constituindo-se no ponto de encontro das famílias elegantes aos domingos, no passeio matinal das crianças e dos bebês, e no local predileto dos namorados que embalavam-se com os sons das retretas ao entardecer. Passeio Público, onde os rio-grandinos viam e eram vistos. À época do Carnaval a praça era tomada por vários quiosques que vendiam lança-perfume, confetes, serpentinas e óculos (tipo de aviador) para a proteção dos olhos. Os realejos povoavam, igualmente, este universo. FOTO 5 – Vista da Praça Xavier Ferreira, na década de 1940. Destaque para sua concepção fortemente influenciada pela estética urbana francesa. Extraído de: PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais do Município do Rio Grande. Porto Alegre: Gráfica da Imprensa Oficial, 1944. p. 218. Na Praça Sete de Setembro ocorriam também concertos musicais. Instalada no local do antigo Forte Jesus, Maria, José, a praça albergou por inúmeras vezes os pavilhões dos circos que visitavam a cidade. Na virada do século seu velódromo agitava os sócios do Clube dos Ciclistas.150 Igualmente apreciada era a Praça Tamandaré (antiga Geribanda ou Praça dos Quartéis). Próxima ao centro era um imenso parque iluminado e gradeado, muito bem arborizado e ajardinado, com passeios, monumentos, chafariz em metal, quiosques e um pequeno coreto onde realizavam-se retretas de bandas de música e comícios públicos. Um

149 A partir da segunda metade do Dezenove intensificaram-se às influências européias no Brasil, opondo-se então às influências orientais dos tempos da Colônia. Esta tendência não revelava-se somente no plano cultural, mas também na natureza ordenada nos espaços públicos das cidades, onde passaram a imperar concepções estéticas, árvores e plantas elegantes importadas daquele continente. Freyre registra também o desprezo e a vergonha que se instalaram no país aos elementos oriundos da flora africana e asiática aqui já aclimatados. Frente ao afrancesamento, quase que caricaturesco, da sociedade brasileira da Belle Époque, Sevcenko se pronuncia: “Nada a estranhar, portanto, se para se harmonizar com os pardais – [aves] símbolos de Paris – que o prefeito Passos importara para a cidade [do Rio de Janeiro], se enchessem as novas praças e jardins com estátuas igualmente encomendadas na França ou eventualmente em outras capitais européias”. (Cf. FREYRE, Sobrados..., op. cit., p.456-457. SEVCENKO, op. cit., p. 36-37). 150 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 75. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 28 nov. 1941.

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catavento captava água para os lagos com pequenas ilhas e canais artificiais cortados por várias pontes e percorridos por pequenos barquinhos. O esquadriamento do antigo local e a construção de um parque organizado e limpo, seguia o exemplo da Europa e que deveria ser seguido pela cidade em busca do progresso e, inserido no ideal modernizador-higienizador-urbano pelo qual passavam os principais centros brasileiros. A cidade “modernizada” estimulava a família a usufruir do espaço público, circulando em uma atmosfera saudável e forjando assim, novas práticas urbanas adequadas aos “novos tempos”.151 FOTO 6 – Vista da Praça Tamandaré, inspirada nos grandes parques europeus. Princípios do século XX. Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande: Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p. Uma maior atenção ao embelezamento e a higiene da cidade tornaram-na mais agradável aos olhos, intensificando as vivências da rua, o prazer do footing (ou em francês, da flânerie) e, favorecendo assim, a integração da sociedade com o meio urbano. À tardinha, a rua Marechal Floriano Peixoto, com suas lojas, cafés e praça agitava-se com o trânsito de pessoas flanando despreocupadamente a ver as novidades do comércio, conversando com amigos, trocando olhares com os pretendentes... ou, simplesmente exibindo a elegância das boas maneiras e o vestuário da moda: todos os homens - inclusive os operários - usavam colarinho, gravata e chapéu; as mulheres não saíam à rua sem luvas e cabeça descoberta. Se Paris impunha-se aos figurinos femininos, Londres ditava os trajes masculinos. Através da revista local Semana Elegante (no 22) de 1920, o poeta João da Rua, escreve:

Hora do footing. Quinta-feira. A praça toda regorgita, A feminil graça brejeira A alma comove e o olhar agita152

Deixando de ser o lugar onde se forjava a cultura popular, a rua passava a ser vista como um espaço de circulação remetido às esferas de consumo e do trabalho. Nesse universo os pobres eram estrangeiros; mas presentes, forçavam a interação das diferenças. A rua era também um espaço para as brincadeiras infantis: pula-corda, cabra-cega, esconde-esconde, amarelinha, bolinhas de gude, pandorgas, carrinho de rolimãs, brincadeiras de roda, varinha tangendo rodas, pernas-de-pau, futebol, bola na mão, matador, etc.

Os espaços públicos ofereciam-se igualmente à celebração festiva de grandes acontecimentos nacionais, como o Dia da Pátria (ou da Independência)153 e o Dia da

151 Antes da transformação do Campo da Redenção no Parque Farroupilha em 1934 em Porto Alegre, a Praça Tamandaré constituía-se no maior espaço de lazer do gênero localizada em zona urbana no Estado. 152 Primeiro verso do poema A Hora do Footing, transcrito em: RODRIGUES, Sued de O. (Org.). Rio Grande Nos Versos dos Poetas. Rio Grande: Academia Rio-Grandina de Letras, 1989. p. 37.

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Proclamação da República; regionais, como a Semana Farroupilha ou locais, como a data da fundação da cidade no 19 de Fevereiro. Também valiam-se das ruas e praças as aclamações aos militares e heróis de guerra (sobretudo, à época da Guerra do Paraguai), aos grandes chefes políticos republicanos (como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas...),154 a grandes celebridades (como o ator João Caetano dos Santos)155, aos membros da Família Imperial (sobretudo, ao Imperador)156, as festas de inaugurações (de praças, monumentos, obras públicas...), etc. Nestes eventos não podiam faltar as bandas musicais que davam o tom a festa. FOTO 7 – “Batalha de Flores” realizada na rua Marechal Floriano Peixoto, na década de 1910. Em decurso, o processo de substituição do tradicional estilo Luso-Brasileiro pelo Ecletismo. Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande: Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p. Muitos festejos principiavam-se na recepção aos homenageados na plataforma do cais do Porto Velho ou na Estação Ferroviária Central (embora nesta fossem mais raros), prosseguiam pelas ruas do centro histórico com foguetórios e, por vezes, finalizavam-se na Intendência Municipal ou no interior dos teatros com palestras, discursos, vivas e bailes. A despedida, outrossim, constituía-se numa oportunidade da população reafirmar seu apreço aos visitantes. No aproveitamento dos espaços públicos cabe destacar a fundamental importância da iluminação das ruas implantada em 1848 e da melhoria do serviço ao longo dos anos. Revelando o misterioso breu do desconhecido, a rua tornou-se mais segura intensificando a vida social noturna em clubes, cinemas, cafés, teatros, etc. Outra forma de lazer ao ar livre eram os piqueniques familiares que ocorriam aos finais de semana nas cercanias da cidade em locais pitorescos como o Parque Rio-Grandense157 e o Bosque, áreas com matas de eucalíptos e dunas de areias. A população

153 Ao lado do Carnaval e das festas religiosas, o Dia da Pátria com suas paradas militares e estudantis, compõe o que Da Matta chamou de “triângulo ritual brasileiro” com grande significado, sobretudo em suas implicações políticas, uma vez que “temos festas devotadas à vertente mais institucionalizada do Estado Nacional (suas Forças Armadas), festas controladas pela Igreja (outra corporação crítica na formação da sociedade brasileira) e, finalmente, as festas carnavalescas, consagradas à vertente mais desorganizada da sociedade civil, ou melhor, da sociedade civil enquanto povo ou massa”. (DA MATTA, op. cit., p. 41.). 154 Estas festas públicas, devido a seu caráter aglutinador de pessoas, grupos e categorias sociais, foram fundamentais à promoção e cristalização de sentimentos de apreço à Nação, ao Estado e a cidade. 155 Uma prática bem freqüente durante o século XIX era a de acompanhar em cortejo os artistas mais estimados, pelas ruas da cidade, do teatro onde exibiam-se até o hotel ou residência que estivesse hospedado. A coluna Fatos e Coisas de Antanho revela que “no fim do espetáculo grande número de espectadores nacionais e estrangeiros e todos trajando rigorosa gala, acompanharam à sua residência o ator João Caetano, precedendo-o com archotes [em 27 ago. 1854]”. O pianista Arthur Napoleão recebeu também “um grande acompanhamento de tochas levadas por muitos cavalheiros desta cidade [...] conduzindo-o ao hotel [...] [em 5 nov. 1857]“. (BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 19. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 28 ago.1942 e 5 nov. 1943.) 156 Em 1845, por ocasião da visita de Suas Majestades Imperiais D. Pedro II e D. Teresa Cristina, multidões encheram as ruas para assistir a passagem do cortejo real e, à noite, “entre alas com mais de 30.000 luzes [velas e lampiões]”, o casal e sua comitiva foram conduzidos do Paço ao Teatro Sete de Setembro onde realizou-se espetáculo. (RIO GRANDENSE. Rio Grande, 12 nov. 1845.) 157 Inaugurado em 1893 próximo ao Matadouro, aconteciam no local retretas por bandas musicais. (MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim. BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 84. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 2 abr. 1941.)

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valia-se dos bondes, e os mais abastados de vários tipos de carruagens (Tilburys, Cabriolets, Sièges) importadas ou de similares fabricadas na cidade ou em Pelotas e, mais tarde, de automóveis para alcançar estas localidades. Nessas proximidades, inaugurou-se em 1922 o Hipódromo Independência, do Jockey Club de Rio Grande reunindo os amantes do hipismo em torno de movimentados torneios.158

A virada do século XIX trouxe consigo a valorização das atividades físicas e o gosto pelos esportes competitivos. Em 1900 foi fundado o Sport Club Rio Grande que introduziu a prática do futebol no Estado. A partir de 1910 a imagem do dandy europeu passou a conviver com a do sportsman norte-americano, numa clara influência dos meios de comunicação, notadamente, do emergente cinema. O janota da Belle Époque de roupas escuras, chapéu coco, pele pálida e músculos frágeis, gradualmente, foi substituído por um homem de vestuário mais despojado, acompanhado do inseparável chapéu de palha “Picareta”, jovial e afeito ao desporto.

Desde fins do Oitocentos crescia, entre a elite local o gosto pelos esportes e recreação náuticos. Tornavam-se freqüentes os passeios e competições em embarcações à vela pelas águas da Laguna e os “convescotes” (ou piqueniques) nas ilhas próximas.159 Os campos de várzeas existentes na zona urbana ofereciam-se à prática amadorística do foot-ball, como escrevia-se à época. Também importado da Inglaterra, o cricket era largamente difundido entre os mais abastados.

Gozavam de grande popularidade as Touradas à portuguesa, as Cavalhadas e os Rodeios: festas folclóricas remetidas à origem pastoril do Rio Grande do Sul, relacionadas à criação de gado.160 E, se formos mais longe, ao medievo europeu. Até finais do século XIX, nas festas populares regionais ou cívicas, não faltavam as cavalhadas, uma “espécie de torneio em que 12 cavaleiros de cada partido (mouro e cristão) travavam simuladas guerrilhas ou escaramuças, acompanhadas de várias provas de equitação, etc., terminando tudo, após propostas de paz, pelo aprisionamento dos mouros”.161 Em outubro de 1882 a empresa artística Pontes, realizou num anfiteatro instalado no local da atual Praça Tamandaré uma “corrida de oito touros, especialmente escolhidos para este fim, vindos da Ilha do Leonídeo”.162

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Em meados do Oitocentos, velhas famílias aristocráticas e novos-ricos franceses começaram a se reunir em estações balneárias que se multiplicavam no litoral daquele país. Arquitetonicamente, o modelo de chalé, saído dos cantões helvéticos seria introduzido nestes ambientes da moda. A ele seguiriam o “chalé normando”, a “cabana” e

158 PIMENTEL, op. cit., p. 122. 159 O primeiro clube de iatismo da cidade foi fundado em 9 de junho de 1934 por um grupo de amigos apreciadores das práticas náuticas. Sua instalação deu-se inicialmente na propriedade do Sr. Estevão Plana Martins, junto ao mar e próximo ao estaleiro naval que possuía à rua General Osório (local da antiga Fábrica de Pescado Abel Dourado). 160 Cf. ALMEIDA, Renato. A Recreação Popular, Suas Forma e Expressões. História da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro : CFC/FEAME, 1973, v.1, p. 201-213. 161 MEYER, Augusto. Guia do Folclore Gaúcho. Rio de Janeiro: Presença/INL/IEL, 1975. p. 66 e CORREA, Romaguera. Vocabulário Sul-Rio-Grandense. Pelotas: Universal, 1898. p. 50. Gilberto Freyre também registra as disputas entre “cristãos” e “mouros” no interior dos teatros, dramatizando os medievais conflitos entre o Ocidente e o Oriente. (FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 438.). 162 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 51. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 1o out. 1945.

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outras variações que influenciaram a estética dos balneários em todo o mundo.163 Sob a influência da fama das estações européias - notadamente de Biarritz na costa francesa do Atlântico - em fins do século XIX, foi oficialmente inaugurada a Vila Sequeira, a primeira estação de banhos do Rio Grande do Sul construída as margens do oceano a 14 Km da Cidade de Rio Grande164. As propagadas qualidades terapêuticas das águas da praia e do clima ao seu redor conferiam ao local importantes atrativos. À época, e por muitos anos mais, o banho de mar era receita médica indicada ao bem-estar físico “sendo nos meses de abril e maio fortemente iodado”.165 Frente a insalubridade da cidade industrial dos finais do Dezenove, os “novos ares” protegiam contra as doenças infecto-contagiosas que pairavam sobre a urbe. É somente mais tarde que a praia e o banho de mar passaram a ser também encarados como formas de lazer. FOTO 8 – Aspecto da Praia do Cassino, em fins do século XIX. Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande: Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p. Os passageiros iam de bonde até o Parque. Neste local embarcavam em vagões puxados por locomotiva a vapor da Estrada de Ferro Costa do Mar, até a Estação na entrada do Balneário. Um pequeno bonde sobre trilhos e movido a tração animal conduzia os banhistas até a praia, onde existiam cabinas para a troca de roupas. A viagem em si já era uma festa, fornecendo elementos para a manutenção de relações sociais que, certamente, continuavam a desenvolver-se no convívio descontraído na orla e no retorno à cidade. Em 1925 a Viação Férrea “fez correr um trem de excursão diário durante a estação balnear, entre Pelotas e Cassino [...]”.166 Uma estrada de rodagem, igualmente conduzia ao local.

Contando com um cassino de jogos, salão de festas e um amplo e moderno hotel e restaurante, o balneário – que passou a ser conhecido por Cassino - tornou-se ponto obrigatório de veraneio da aristocracia gaúcha que imprimiu ao lugar seu estilo de vida, registrado nos grandes casarões e chalés em estilos europeus, alguns ainda hoje existentes na Avenida Rio Grande. FOTO 9 – Palco-salão na “Praia de Banhos” (atual Cassino), festivamente decorado. Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande: Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p. 2.2 – SALÕES, CLUBES E ASSOCIAÇÕES

163 GUERRAND, Roger-Henri. Espaços Privados. In: PERROT, Michelle (Org.) História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 4, p. 349. BURNET, Louis. Villégiature et Tourisme Sur Les Côtes de France. Paris: Hachette, 1963. p. 484. DÉSERT, Gabriel. La Vie Quotidienne Sur Les Plages Normande du Second Empire aux Années Folles. Paris: Hachette, 1983. p. 334. 164 Conforme Salvatori, Habiaga e Thormann, a Vila Sequeira foi inaugurada oficialmente em 1898, quando o balneário já contava então com 20 residências particulares nele instaladas. (SALVATORI, op. cit., p. 44.). 165 PIMENTEL, op. cit., p. 37. 166 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 110. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 11 fev. 1944.

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Um dos primeiros relatos sobre a vida orquestrada nos salões da Vila de Rio Grande, foi fornecido por Saint-Hilaire ao descrever alguns bailes que freqüentou em 1820. Em sua visão, a elite local buscava imitar os modismos europeus. Embora, de uma forma em geral, as brasileiras “ignorassem os encantos da sociedade e os prazeres da boa conversação” as mulheres “nesta região [...] se ocultavam menos do que nas outras Capitanias do interior”.167 Essa observação foi confirmada por Hörmeyer que, em 1851 comentou: “[se] nas cidades menores da Província, ainda vigorava o antigo costume do país que proibia às mulheres brasileiras a se mostrar na rua sem acompanhante”, em Rio Grande e Porto Alegre, “começa a vingar uma vida metropolitana, européia.”168 Desta feita, conforme Saint-Hilaire, as sul-rio-grandenses possuíam “melhores noções de vida; eram desembaraçadas, conversavam um pouco mais, porém ainda estavam a uma infinita distância das mulheres européias”.169 Na visão não menos eurocêntrica do viajante suiço-alemão Carl Seidler, os moradores de Rio Grande e de São Francisco de Paula (Pelotas) apresentavam em 1827, “mais gosto pela vida social e mais trato amigável, do que os das outras regiões” do país, pois nelas residiam muitos europeus que, “certamente pela influência do seu dinheiro e de sua cultura contribuíram, consideravelmente, para que seus habitantes tivessem mais civilização”.170 Desde sempre, porto é passagem de roteiros, de corpos de línguas e de costumes diversos, é por excelência, expressão de diversidade.171 Rio Grande, enquanto cidade portuária, esteve continuamente aberto a intercâmbios com outras regiões, tanto a nível nacional quanto internacional, sofrendo influência nos gostos e nos costumes em função do contato e da troca de experiências com outros centros urbanos.

Durante o Oitocentos propagou-se o gosto pelos saraus lítero-musicais que ocorriam nos salões das residências das famílias mais abastadas e que, “invariavelmente, terminavam com bailes movimentados e lautas mesas de doces”.172 Nesses encontros – semelhantes aos concertos de palácio do Antigo Regime – encenavam-se pequenos quadros dramáticos, a elite afeita ao beletrismo recitava suas poesias, os que estudavam música demostravam suas habilidades no canto e em instrumentos executando um repertório romântico, trechos de peças ligeiras e árias de óperas italianas. Discutia-se política, teatro, literatura... ou, simplesmente, divertia-se com os jogos de cartas. Desde muito, a consolidada sociedade francesa de salão, famosa pelo refinamento e arte da conversação, inspirava os seletos freqüentadores desses ambientes.173 O salão de festas passou a adquirir uma forte “importância simbólica, [tornando-se] uma marca de classe: possuir um salão significava mundanidade e sociabilidade, duas características

167 SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 66. 168 HÖRMEYER, op. cit., p. 66. 169 SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 66. 170 SEIDLER, Carl. Dez Anos no Brasil. Brasília: INL/MEC, 1976. p. 94. 171 BRESCIANE, op. cit., p. 66-67. 172 DAMASCENO, Athos. Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre: Globo, 1956. p. 24. 173 Embora sejam percebidos em vários países e com algumas variantes, os salões literários são típicos da vida cultural francesa dos séculos XVII, XVIII e XIX, apresentando-se como centros de intercâmbio de idéias onde a política, o amor e as artes forneciam os temas da consersação. Promovidos por damas da sociedade, dominavam estes ambientes o linguajar amaneirado, a finura dos gestos, o culto de todas as etiquetas, os rasgos competitivos de inteligência. Talento, cultura enciclopédica e paixão pelas letras e artes triunfavam e caracterizavam a vida gerida pelos salões de França. (Cf. DUBY, op. cit.)

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burguesas”.174 Através desta peça da casa dava-se o alargamento do universo social da família. Nas palavras de Jurgen Habermas “a sala de visitas não serve para a casa, mas sim à ‘sociedade’; e essa sociedade da sala de visitas está bem longe de coincidir, em seu significado, com o círculo restrito e rigorosamente fechado dos amigos da casa”.175

Estudando a vida social e elegante da Corte durante os anos de 1840 a 1889, assim escreve Wanderley Pinho na abertura de seu Salões e Damas do Segundo Reinado:

Num salão esmeram-se várias artes: a de receber ou preparar um ambiente de cordialidade e espírito; a de entreter a palestra ou cultivar o humor; dançar uma valsa ou cantar uma ária; declamar ou inspirar versos, criticar com graça e sem maledicência; realçar a beleza feminina nas últimas invenções da moda... Rigorosos azedos dirão que tudo isto são futilidades. Mas que é a metade da vida, senão tudo isto? O passado não foi apenas sério ou trágico, guerreiro ou político, religioso, científico ou econômico, mas também alegre e... frívolo.176

O jornal Diário do Rio Grande de 15 de maio de 1864 revela o universo de um sarau ocorrido na cidade:

À noite teve lugar na chácara do Sr. Michaelis, à rua da Alfândega [atual Andradas] a primeira representação de uma sociedade dramática particular alemã que ali estabeleceu o seu teatrinho. O espetáculo foi muito concorrido comparecendo para mais de 150 convidados, todos do comércio estrangeiro com suas famílias. Depois do drama houve cantoria e um pequeno concerto acompanhado ao piano o nosso hábil comprovinciano, Joaquim S. Santos Paiva com sua rabeca. Este belo e mui particular divertimento, repetir-se-á uma vez por mês durante o inverno.

Analisando igualmente os salões de festas do Rio de Janeiro e seus freqüentadores, Jeffrey Needell comenta que:

tanto na Monarquia quanto na República Velha, [eles] demonstram a vitalidade contínua do paradigma aristocrático franco-inglês [presente na sociedade brasileira]. Fosse na poesia declamada, nas canções cantadas, na música tocada, no estilo pessoal valorizado, ou no francês usado, fosse no champanhe bebido, ou nos outros vinhos

174 GUERRAND, op. cit., p.334. 175 HABERMAS, Jurgen. A Família Burguesa e a Institucionalização de Uma Esfera Privada Referida à Esfera Pública. In: CAVENACCI, Massimo (Org.). Dialética da Família. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 228. 176 PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins, 1970. p. 7

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servidos, nos salgadinhos degustados, ou nos dîners apreciados, mudavam as modas européias, principalmente as francesas, mas não o gosto por tais coisas.177

Também duradouro, eram os valores aristocráticos europeus que determinavam os passatempos de salão e o comportamento de seu público.178 As relações em sociedade intensificaram-se com a urbanização promovendo um espírito de associação que encontra-se na base do surgimento dos clubes e das sociedades bailantes. O encontro e a diversão públicos tornaram-se uma extensão da vida e do lazer domésticos. A industrialização e a modernização por sua vez, agudizaram esse fenômeno fazendo com que o convívio social fora de casa se transformasse num hábito urbano cada vez mais comum à família. No século XIX a sociedade local passou a se organizar em torno de associações recreativas, artísticas, culturais, esportivas, carnavalescas, classistas, políticas, filosóficas, filantrópicas, etc. Os clubes constituíam-se em importantes espaços de recreação atendendo às necessidades de lazer, divertimento e sociabilidade de seus associados e dependentes, principalmente dos trabalhadores de baixa renda sem acesso aos poucos locais e instrumentos de diversão disponíveis às camadas superiores.179 Assim, promoviam inúmeras atividades conforme as características da instituição e do público freqüentador: festas, bailes, saraus musicais e literários, jantares, almoços, chás, representações dramáticas, matinées infantis, aulas de dança e música, eventos esportivos... Nos festivos encontros noturnos, era sempre destacado o caráter familiar da promoção, dentro dos rigorosos princípios de respeitabilidade da época, calcados na ordem e no recato e que regiam a família. Comuns eram também os eventos sociais de caráter filantrópico e as reuniões políticas. Muitas sociedades possuíam igualmente um caráter instrucionista oferecendo aulas de desenho, pintura, dança, idiomas estrangeiros, alfabetização de adultos e palestras sobre temas variados. De fundamental importância à vida cultural da cidade apresentavam-se as muitas sociedades dramáticas e musicais, enfocadas em capítulo posterior nesse estudo. Os clubes e as sociedades mais importantes possuíam sede própria com vasto salão – por vezes com pequenos palcos destinados às apresentações teatrais - e muitas contavam inclusive com sala de jogos, biblioteca, banda musical, grupo de dança, grêmio dramático... As associações que não dispunham de salão de festas valiam-se, freqüentemente, dos (cine-) teatros para suas reuniões e promoções. FIGURA 10 - Fundada em 1854, a Imperial Sociedade Instrução e Recreio dominou a história da vida social rio-grandina da segunda metade do século XIX. Legenda: “O baile da Instrução e Recreio esteve animadíssimo. Desejamos outro dobrado tempo de existência”. Extraído de: MARUI. Rio Grande. 1880. N.31. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

177 NEEDELL, op. cit., p. 141-142. 178 Sobre a persistências de valores aristocráticos na sociedade burguesa dos séculos XIX e XX confira MAYER, op. cit., passim. 179 No século XVIII, antes do surgimento dos clubes e das sociedades de baile, eram os saraus residenciais e os pequenos teatros denominados de Casas da Comédia ou Casas da Ópera que ofereciam espaço às reuniões sociais e mesmo aos divertimentos da cidade. Sobre os clubes confira: AGULHON, Maurice. Le Cercle dans la France Bourgeoise. Paris: Armand Colin, 1977.

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Percebidos desde o século XVIII, os bailes sempre gozaram de grande prestígio na sociedade local. O viajante francês Saint-Hilaire revela que nos festivos salões rio-grandinos do início da década de 1820 dançavam-se anglaises e valsas e que as toilettes das damas e dos cavalheiros eram bem cuidadas.180

Valendo-se da crítica social O Amolador, n.° 10 de 7 de junho de 1874 satiriza a etiqueta masculina exigida nestas ocasiões. Direcionado aos freqüentadores das sociedades locais Instrução e Luso, e sob o título de “Homem na Sociedade”, o periódico publica seis quadros ilustrados apresentando um “manual da maneira pelas quais um moço se há de mover com graça num baile. Para caixeiros e outros rapazes de educação fina, ensinado por Mr. Lafleur de La Bonbonnière, de Paris”:

1) As primeiras condições são: que todos os movimentos sejam leves, redondos e graciosos; 2) Andando, não deve levantar os pés e mostrar equilíbrio; 3) Tornar o corpo ágil; 4) Quando pedir uma contradança, fazer um cumprimento com as pernas tesas e esperar a resposta da senhora numa posição curva; 5) Se a senhora não quiser, fazer um movimento elegante e mostrar que não se zangou com a decisão; 6) Se tiver a infelicidade de pisar no pé da senhora com quem dança, fazer uma posição de agonia, etc., etc.

Entendido como divertimento coletivo (contraposto à dança vista como arte ou ritual), o baile constitui-se numa das mais significativas manifestações de sociabilidade, sendo um fenômeno típico de épocas recentes.181 Esse encontro festivo está envolto em uma aura passional, hedonista ou voluptuosa que impulsiona os homens à uma atividade estética. A diversidade dessa manifestação não pode ser restritamente atribuída à moda; abrange toda a estrutura musical e dos costumes de uma época.182 Nas palavras de Gillo Dorfles o baile “representa uma das escassas tradições ainda presentes no dia de hoje, daquele impulso para o ritmo, para o movimento harmonicamente regulado, para a utilização estética do próprio corpo, de que o homem, desde os primórdios da sua história foi partícipe. A eficácia do baile, portanto, não deve ser ignorada: eficácia rítmica, lúdica e também estética [...].”183

Para a completa fruição das delícias do baile, tornava-se indispensável o domínio das danças de salão. Nesse sentido, aprendiam-se os passos da época através de aulas particulares ministradas, sobretudo, por dançarinas que se apresentavam na cidade de forma individual, em companhias coreográficas ou compondo o corpo de baile das

180 SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 64. Uma descrição pormenorizada das vestimentas das senhoras e dos civis e militares pode ser apreciada nestas obra e página supracitadas. 181 O renascimento europeu das letras e das artes trouxe consigo o do baile, oferecendo-se no século XVI os bailes de sociedade e os de teatro, ao lado dos populares, cujos elementos interviram, grandemente, nos primeiros. Os bailes de sociedade de procedência italiana propagaram-se por todas as nações, sofrendo até nossos dias, um processo de simplificação (diminuição da pompa e dos cuidados excessivos no vestir, etc.). 182 DORFLES, Gillo. O Devir das Artes. Lisboa: Arcádia, 1979. p. 207-208. 183 Ibid., p.208.

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companhias líricas, e que sempre estavam atualizadas nos novos movimentos.184 O aprendizado realizava-se, também, através de manuais de dança contendo regras e técnicas, vendidos nas livrarias que possibilitavam a sintonia da cidade com a Europa e suas tendências.

Muitos clubes ofereciam aulas de dança e organizavam grupos para apresentações em bailes. Na década de 1860 as quadrilhas Príncipe Imperial, Russa e Americana reuniam-se aos sábados no salão do Clube Recreio Rio-Grandense para o ensaio semanal.185 Durante o século XIX além das quadrilhas francesas, muito em voga e onde participavam vários pares, dançavam-se polcas, mazurcas, anglaises, varsovianas, xotes, habaneras, minuetos, valsas, etc.

Embora existissem junto às camadas populares desde fins do século, o tango186 e o maxixe (considerada a primeira dança urbana brasileira) só chegaram aos familiares e refinados salões da elite na década de 1910. O maxixe, com seus “requebros audaciosos” era proibido. O samba, igualmente, sofria perseguição policial. Na sociedade rio-grandina de 1880, o semanário ilustrado Marui, lançava-se numa cruzada moralista contra as reuniões onde dançavam-se o maxixe. Tomando-os por “antros de imoralidades”, que “terminavam sempre com desordens e graves conflitos”, exigia das autoridades locais o fim dos tais bailes.187 Todavia, com os anos, os gêneros musicais e as danças populares contagiaram os setores dominantes.

Após a Primeira Guerra Mundial danças oriundas dos Estados Unidos da América passaram a compor as noitadas brasileiras: o fox-trot, o ragtime, o charleston, etc.188

Nos bailes dos Anos Trinta, os conjuntos de jazz davam o tom à festa. E é na contemporaneidade da narrativa literária que apreendo fragmentos do universo desses encontros:

A música sapecada do ‘jazz-band’ enchia o salão do hotel, onde o baile estava correndo, misturada com o ruído do arrastar de pés dos bailarinos, da conversa dos indiferentes, dos contempladores e das ‘velhas’, que, sentadas em roda do salão, olhavam a ‘filhinha’ passar rápida, levada pelas mãos do ‘amiguinho’, e metiam a tesoura na

184 Em julho de 1850 a “primeira bailarina do São Pedro de Alcântara, Mlle. Alice [ou Aline] Moreau” que alcançava sucesso no Teatro Sete de Setembro, anuncia pela imprensa que “tem a honra de participar [...] demorar-se aqui algum tempo a dar lições de dança, tanto por teatro como por salões [...].” (BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 10. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 25 jul. 1944.) 185 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 23. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 17 out. 1944. 186 Surgido na Argentina, o tango, espalhou-se primeiramente pela Europa (sobretudo, na França) e depois ganhou o mundo. Por anos foi bastante criticado considerado uma dança de influência perniciosa e imoral. O Papa Pio X recomendou sua substituição pela furlana - dança italiana que passou a ser conhecida como a “dança do Papa”. 187 MARUI. Rio Grande. 1880. N. 40,41. 188 O prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro de 11 de setembro de 1926, anuncia a penúltima apresentação dos artistas Tânia e Mexican que “executarão o charleston - a dança da moda em Norte-America. Atenção: Esta dança foi censurada pela polícia de New York”. (COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit. Pasta 1, 11 set. 1926.)

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‘filhinha’ da outra ‘velha’, que estava sentada longe e, portanto, não podiam ouvir a conversa... – Olha só, que pouca vergonha ! 189

Conforme Dorfles, se “assistir a uma sucessão rítmica de movimentos corporais – especialmente se forem acompanhados de música – é irresistivelmente contagioso, e se este contágio explica o porquê da participação mágico-histérica nas danças tribais de populações selvagens ou da Antigüidade” pode, outrossim, explicar o sucesso dos bailes coletivos.190

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Inúmeras e distintas formas de associações marcam a história da sociedade rio-grandina. Percebidas em diferentes períodos, registro:191

ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS:

Sociedade Recreio e Harmonia (1847); Sociedade Recreação Familiar (1851); Imperial Sociedade Instrução e Recreio (fundada em 1854, no final do século sua sede localizava-

se à rua Vileta - atual Napoleão Laureano - canto da Paissandú - atual República do Líbano);

Sociedade Euterpina (1857, à rua Riachuelo); Recreio Rio-Grandense (1860); Sociedade Phenix (que possuía um teatrinho, em 1875); Grêmio Recreativo (1881); Recreio Juvenil (fundado em 1890); novo Recreio Rio-Grandense (à rua Uruguaiana - atual Av. Silva Paes - fundado em 1895); Clube Recreativo Juvenil (1903); Sociedade Recreativa Democracia e Progresso (à rua General Câmara esquina da rua Benjamim

Constant, instalou-se em 1903 à rua Andradas, frente ao Politeama); Clube Instrução e Recreio, da Estação da Quinta (1905); Sociedade União Européia (à rua Jataí - atual Dr. Nascimento - esquina rua Zalony, 1905); Juvenil Club União e Progresso (1905); Clube União e Progresso (à rua Barão de Cotegipe, inaugurou seu palco-salão em 1907); Sociedade Recreativa União e Progresso (fundada em 1914); etc. ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS ESPORTIVAS: Clube de Regatas Rio Grande (1898)192; Clube dos Ciclistas (1900); Sport Club Rio Grande (fundado em 1900)193;

189 VERGARA, Telmo. Na Platéia. Porto Alegre: Globo, 1930. p. 117. (1a edição). 190 DORFLES, op. cit., p. 206. 191 Os dados apresentados nestas listagens foram levantados, quase que integralmente, em. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, jan.1941- dez.1950, cuja transcrição e organização corresponde ao estudo já anteriormente referido: BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. As informações que advém de outras fontes estão, devidamente, explicitadas. 192 Importante no remo, este clube foi também o responsável pela introdução do basquete no Estado.

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Foot Ball Club Rio-Grandense (1912); Grêmio Náutico Almirante Barroso (1915); Sport Club União Vencedor (à rua Tiradentes no 318, 1915); Sport Club União Fabril (fundado em 1910); Sport Club União Rio-Grandense (1920)194; Foot Ball Club General Osório (1920); Fluminense Foot Ball Club (1928); Sport Club Vencedor (1930) etc.; ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS CLASSISTAS: Clube Comercial (instalado em 1867 à rua Riachuelo no sobrado anteriormente ocupado pela

Sociedade Euterpina); Clube Recreio Operário (fundado em 1885 à rua 16 de Julho no 110 - atual Benjaminm Constant); Clube Caixeiral (fundado em 1895, sua elegante sede localizada à rua Mal. Floriano Peixoto foi

inaugurada em 1912); Sociedade União Operária (fundada em 1893, sua sede foi inaugurada em 1902)195; Clube do Comércio (1900); Associação dos Empregados do Comércio (fundada em 1901); Sociedade União Comercial dos Varejistas (fundada em 1888) etc.; ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS CARNAVALESCAS: As Dragas; “O”; Xícara; Archote; Silêncio; Afiadores; Amoladores da Paciência; Os Homens Vermelhos; Os Cavalheiros da Meia Noite; Zé Pereira; Princesas de Força; Os Charlatas; Os Meninos da Candinha (todos percebidos nos carnavais de 1872 e 1873)196; Os Positivos, Os Desabusados, Vai ou Vem, Os Tampicos, Tampiquinhos, Tampicadas; Tampicões (todos no Carnaval de 1876); Clube Carnavalesco Saca-Rolhas (fundado em 16 de março de 1876 à rua Andradas esquina Luiz

Loréa, mudou-se em 1912 para a Marechal Floriano Peixoto no 162)197;

193 Fundado por imigrantes ingleses e alemães, este clube foi o introdutor do futebol no Brasil. PIMENTEL, op. cit., p. 120. 194 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920. 195 Esta sociedade foi a mais importante instituição do gênero na cidade. 196 MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim. 197 Esse foi o primeiro clube carnavalesco a ser fundado na cidade, sendo um dos mais antigos do país.

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Clube Carnavalesco Mina (1888); Clube Carnavalesco Máscara Preta (1889); Grupo Carnavalesco Arara (fundado em outubro de 1901, era constituido pela alta sociedade

local); Clube Carnavalesco Guarani (fundado em 1904, à rua Conde de Porto Alegre); Clube Carnavalesco Esmeralda (1919); Club Carnavalesco Congo (à rua General Netto esquina Câmara, 1919); Clube Carnavalesco Boêmios (à rua Andradas, 1920); Grêmio Carnavalesco dos Destemidos (1920); Cordão dos Batutas (1920); Rancho Carnavalesco Braço é Braço (fundado em 1920, pela comunidade negra local)198; Rancho Carnavalesco Me Deixa Meu Bem (1923); Grupo Carnavalesco Filhos da Folia (1925); Cordão Sim Disfarça e Olha (1929); Clube Carnavalesco Irresistíveis (fundado em 1930)199; Clube Carnavalesco Estrela do Oriente (1935); etc; ASSOCIAÇÕES POLÍTICAS: Sociedade União Republicana (fundada em 1889); Centro Republicano Rio-Grandense (fundado em 1902); Clube Gaspar Martins (1903); Grêmio R. Borges de Medeiros (fundado em 1924); etc.; ASSOCIAÇÕES MAÇÔNICAS: União Constante (fundada em 1840); Acácia Rio-Grandense (fundada em 1867); Filantrópica; Henrique Valadares; Estrela do Sul 200; etc. ASSOCIAÇÕES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: Sociedade Mutualidade dos Operários da União Fabril (1881)201; Sociedade Familiar Beneficente (1887); Sociedade Protetora das Famílias (1890); Sociedade Protetora das Classes Laboriosas (1890)202; Clube Beneficente de Senhoras (1901); Sociedade Beneficente dos Trabalhadores da Alfândega (1904); Sociedade Espírita Luz Beneficente (1905)203; Sociedade Auxiliadora da Igreja do Salvador (1906); Sociedade Beneficente de Senhoras Espíritas (1921); Caixa de Socorros dos Empregados do Porto (1924); Associação Beneficente dos Ferroviários do Rio Grande (1928);

198 RIO GRANDE, Rio Grande, 1920. 199 COLEÇÃO de Recortes de Jornais. CDH. FURG. Pasta 19. 200 PIMENTEL, op. cit., p. 120. 201 Ibid., p. 86. 202 Ibid. 203 Ibid.

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Associação Beneficente dos Guardas da Alfândega (1933); Asilo dos Pobres; Asilo de Órfãs204; e tantas outras.

O registro de um número significativo de associações assistenciais proletárias decorria da principal atividade produtiva do lugar e da ação interessada e direta do operariado rio-grandino no sentido de angariar fundos para momentos de necessidade, uma vez que o Estado não oferecia assistência médica e social a seus cidadãos. Nesse sentido organizavam-se festas, quermesses, bailes, apresentações teatrais, etc., cuja renda revertia para os cofres das associações. Embora já existisse em alguns Estados preocupações acerca de uma legislação trabalhista, foi nos Anos Trinta que o quadro nacional de total desamparo das massas trabalhadoras seria alterado. A questão social deixaria de ser apenas uma “questão de polícia”. Endossam, a lista das associações locais: Sociedade União Literária (1877, instituição cultural); Clube Diógenes (1880); Clube Emancipador 28 de Novembro (1885); Club Aliança (fundado em 1901); Club 28 de Setembro (com seu Grêmio Instrucionista, 1902); Club Coribantinos (fundado em 1914); Grupo Internacionalista (1915) Chigrand Club (1920)205; Tiro de Guerra (1920, entidade cívico-militar instalada nas dependências da Alfândega); etc.

Falando em associações surgidas da iniciativa de estrangeiros, meu primeiro registro data de 1809, quando o viajante John Luccock menciona sua participação na fundação de um “clube inglês” conjuntamente com outros britânicos residentes em Rio Grande e envolvidos com o comércio.206 Aliás, reitero que, no processo de modernização da cidade, os imigrantes constituíram-se em elementos fundamentais. Entre suas muitas organizações aponto: Clube Germânia (1872 com sede à rua Francisco Marques, depois à rua Benjamim Constant

esquina Conde de Porto Alegre); Sociedade Cultural Águia Branca (fundada em 1896 pela colônia Polonesa); Centro Espanhol de Socorros Mútuos (fundado em 1894); Mutua Cooperazione (1903); Circulo Pietro Mascagni (1904); Sociedade Italiana Patria e Lavoro (1907); Comitato Italiano Pró Fiume (1919); Sociedade Alemã de Tiro (1920, à rua Rheingantz)207; etc. FOTO 10 – Aspecto atual do suntuoso edifício do Clube Caixeiral, construído em 1912. Um belo exemplo da arquitetura eclética na cidade.

204 Ibid. 205 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920. 206 LUCCOCK, op. cit., p. 125. 207 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.

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A vasta Colônia Portuguesa residente na cidade reunia-se no Congresso Português D. Luiz I (1889); no Centro Republicano Português (1912); na Liga Monárquica D. Manoel II (1918); na União Portuguesa (1920)208; no Grêmio Lusitano (1928 com sede à rua General Bacelar esquina Duque de Caxias) e no Centro Português (fundado em 1932, com sede à rua Andradas esquina Luiz Loréa) . Os imigrantes europeus desempenharam papel de grande importância na ampliação e diversificação das ofertas de entretenimento na cidade: os alemães com seu clube de atiradores, sociedades dramáticas e concertos musicais; os italianos com suas bandas e orquestras, os portugueses com várias sociedades dramáticas e conjuntos musicais, assim como outras contribuições de variadas origens étnicas. Clubes e sociedades bailantes fundados e freqüentadas por imigrantes, logo passaram a atrair os rio-grandinos. As datas cívicas de seus países de origem eram comemoradas festivamente, movimentando a sociedade local. O intenso intercâmbio cultural decorrente das muitas etnias fixadas na cidade, auferiam-na ares cosmopolitas. Integrando-se à tradição luso-brasileira, os estrangeiros enriqueceram-na com seus empréstimos culturais, como já ocorrera com os africanos e os indígenas. Desta feita a cultura brasileira resulta de uma mestiçagem de raças e culturas na qual a matriz antropológica portuguesa encontra-se na base do processo. Nas palavras de Freyre, “somos o começo de uma vasta cultura plural”, de um todo caracterizado por um “conjunto transnacional de valores culturais” que, sob a linguagem portuguesa, originou o “mundo de formação lusitana”.209 E transnacional significa no Brasil o Velho e o Novo Mundo, o Oriente e o Ocidente amalgamados numa civilização caracterizada pela plasticidade, pelo movimento, pelos contrastes, pela trangressão. Segundo Pimentel, em 1943 existiam na cidade 25 associações recreativas e 31 desportivas.210 2.3 – ENTRE BOTEQUINS E CAFÉS

No início do século XIX, Luccock informava que os bilhares rio-grandinos gozavam de significativo movimento, constituindo-se em elementos de uma vida mundana contínua. Surgidas na Europa em fins do medievo, as mesas destinadas ao jogo “das bolas de marfim” outrora restritas aos palácios e residências elegantes, multiplicaram-se e popularizaram-se no decorrer do Dezenove.211 De apreço popular estavam, igualmente, os botequins e as tavernas, largamente freqüentados desde a Colônia. Os cafés desempenhavam, outrossim, papel de destaque na vida social noturna e diurna do lugar apresentando-se como espaços permanentes de reuniões para conversas informais, discussões políticas, profissionais, culturais, etc. Acompanhando a expansão de uma nova maneira de viver a cidade, os cafés proliferaram na Europa a partir

208 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920. 209 FREYRE, Gilberto. O Mundo Que o Português Criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Lisboa: Livros do Brasil, 1940. p. 34-35. 210 PIMENTEL, op. cit., p. 536. 211 LUCCOCK, op. cit., p.125. Sobre as salas de bilhar muito difundidas durante o século XIX, confira GUERRAND, op. cit., p.343.

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de século XVIII. No Brasil, o desenvolvimento dos cafezais do Sudeste gerou mudanças nos hábitos nacionais e sua incorporação à vida cotidiana dos centros urbanos. Em fins do Oitocentos esses “espaços fechados de sociabilidade” já haviam suplantado os botequins da época imperial onde bebia-se o “vinho à portuguesa”.212 O Café Moka instalado em frente ao Politeama Rio-Grandense213, constituindo-se também em restaurante, assim anunciava no jornal O Artista em 1887:

O Manuel [Português] previne aos povos (Sem orgulho e glória vã) Que tem coisas nunca vistas Para hoje e amanhã Hoje – uma excelente canja De galinha das Arábias, Que são as aves mais sábias Deste mundo sublunar; Fiambres, caças e peixes, Dos mais finos do mercado, E tudo o mais que contado, Custa a gente a acreditar. Amanhã – Oh! Isso é obra! Temos coisas papafina, Surpreendente, divina, Sexquipedal, imprevista. Temos jantar suculento, Petiscos extraordinários, Acepipes novos, vários, Jantar abolicionista. Este jantar (novidade!) Vai ser coisa de espavento, Um verdadeiro portento, Um verdadeiro prodígio. Os gastrômonos da terra A quem este anúncio toca, Devem vir ao Café Moka Sustentar o seu prestígio. Mas, não é tudo. O sublime

212 Maroneze define “espaço fechado de sociabilidade” como um “local geograficamente demarcado, onde indivíduos relativamente identificados elegem seus pares para atualizar discursos e trocar idéias” ou simplesmente comungar do divertimento. (MARONEZE, Luiz Antônio Glozer. Espaços de Sociabilidade e Memória: fragmentos da “vida pública” porto-alegrense entre os anos de 1890 e 1930. Porto Alegre: PUCRS, 1994. p. 10. Dissertação de Mestrado). 213 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 80. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 24 nov.1941.

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É que à noite haverá canja Como somente se arranja Nesta casa especial. Canja de antes nunca vista, Suculenta petisqueira, Canja sacarrolheira, Canja fenomenal. Notem bem que no Domingo Os acepipes serão Em vasilhas só de barro Feitos com perfeição Quem quiser experimentar É só pedir e pagar.214

Outro espaço existente era o Café Polaco, reaberto em 1897 com o nome de Gruta Recreativa215. Em 1920 o Bar e Café Central, localizado na esquina das ruas Marechal Floriano e Andradas, com sua orquestra e concertos todas as noites, constituía-se no “ponto de reunião da elite”.216 No decênio de 1930 o Café Dalila ao lado do Cine-Teatro Carlos Gomes era um dos pontos de reunião do “mundo chique” da cidade. O Café Nacional, instalado no elegante sobrado que anteriormente abrigou o Cinema Ideal Concerto (rua Mal. Floriano Peixoto esquina Duque de Caxias) também era muito concorrido. As confeitarias, enquanto “ambientes elegantes”, gozavam igualmente de grande freqüência. 2.4 – DIVERSÕES E VIDA NOTURNA Na sociedade brasileira de princípios do século XIX a cultura vista como conhecimento ou prenda começou a despertar interesse junto a pequena burguesia. Sob o Período Joanino o desenvolvimento comercial das cidades se fez acompanhar de expansão da instrução (entendida como distinção de classe ou exigência utilitária) e de variadas manifestações artísticas. Cresciam as necessidades de divertimentos públicos e de salão, para fazer-se “vida social”.

A partir de 1780 começou a se formar em Rio Grande uma elite abastada vinculada ao comércio217 e que, mui possivelmente, pode-se relacionar às primeiras casas de espetáculos percebidas na vila. Buscando sintonizar-se com o Velho Mundo que norteava a vida nos domínios coloniais a elite local economicamente emergente, realizou “seu processo de ‘modernização’ importando os hábitos de viver das capitais européias,

214 Apud. RODRIGUES, op. cit., p. 223-224. 215 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 70. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 17 jan.1941. 216 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920. 217 QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.156.

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enquanto as camadas da população que se seguiam permaneciam à margem desse processo”.218 Assim deve ser entendida a mobilização dessa elite na construção de uma nova e confortável casa de espetáculos – o Teatro Sete de Setembro - inaugurada em 1832 e adequada a posição econômica do lugar e as exigências de uma parcela da população enriquecida e ávida por cultura e diversões. Mais tarde ergueram-se o Anfiteatro Albano Pereira em 1876 e o Politeama Rio-Grandense, em 1885.219 Somavam-se também, vários teatrinhos pertencentes a sociedades dramáticas particulares.220

O salão de bailes públicos (não confundir com os salões semi-privados) surgiu na Europa, como um derivativo da taverna por volta da década de 1830; todavia, esta espécie de diversão não se desenvolveu plenamente, antes de 1848. Hobsbawm informa que:

as outras formas de divertimento urbano das grandes cidades [européias] nasceram do conveniente, sempre acompanhadas por seu séquito de artistas mambembes. Na grande cidade, fixaram-se permanentemente, e mesmo na década de 1840, a mistura de exibições variadas com uma atração principal, de teatros, mascates, batedores de carteiras e mendigos em bulevares proporcionavam diversão ao populacho e inspiração aos intelectuais românticos de Paris.221

Em Rio Grande, o Salão Paraíso, localizado a rua Zanoly nº 51 promovia concertos musicais, apresentações de companhias de variedades, reuniões dançantes, e movimentados bailes de máscaras, que agitavam a sociedade local desde os finais do decênio de 1850.222

Ao longo do Dezenove várias casas de diversões denominadas Tívolis espalhavam-se pela cidade, entre elas o Tívoli Recreio, aberto em 1863 à Rua da Praia (atual Mal. Floriano Peixoto).223 No decênio de 1870 o Cassino Rio-Grandense reunia os amantes dos jogos de azar e dos bailes.224 Em fins do século inaugurou-se na Vila Siqueira uma nova e confortável casa do gênero que passou a atrair “o que havia de mais fino e de seleto nos grandes centros populosos do Rio Grande do Sul”.225 A elite gaúcha oriunda, sobretudo, de Rio Grande, Pelotas, Bagé e Porto Alegre, reunia-se no “Cassino” em festivas noitadas em torno da roleta e do bacarat imprimindo uma feição cosmopolita ao local e ao balneário. Espetáculos dramáticos e musicais desenvolviam-se em seu salão principal. Neste

218 Idid., p. 160. (aspas minhas) 219 O crescimento populacional de Rio Grande animou as atividades urbanas possibilitando, sobretudo a partir da segunda metade do século, o aparecimento de artistas profissionais para espetáculos dos mais variados gêneros. 220 Confira no Capítulo IV desse estudo maiores informações sobre os espaços teatrais. 221 HOBSBAWM, Eric. J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 298. 222 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 21,23. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande. 3 ago.1944. 223 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 31. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 6 dez. 1941. FREITAS, op. cit., p. 43. 224 O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. N. 84,86. 225 PIMENTEL, op. cit., p. 37.

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ambiente, o famoso soprano rio-grandense, Amália Iracena foi presença de destaque, realizando recitais nas temporadas de 1907 e 1908.226 Em 1910 foi a vez do tenor português Almeida Cruz.227 FIGURA 11 – Inauguração do Cassino Rio-Grandense, em 1875. Legenda: “A inauguração de uma sociedade de baile sempre é um feliz acontecimento para a mocidade esperançosa; assim é que o Cassino [Rio-Grandense], foi inaugurado com todas as honras e mais cerimônias de estilo. A polícia, no entanto, sempre previdente em tais festas da mocidade, não deixou de espreitar a coisa”. Extraído de: O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. n. 86. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre.

∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼ As atrações itinerantes: os Espetáculos de Vistas, os Teatrinhos de Bonecos e os Circos apresentavam-se como formas de entretenimento de grande popularidade. Instalados em pavilhões armados em praças e largos, salões ou nos teatros, recebiam grande afluência.228 Desde a década de 1840 o Rio Grande do Sul convivia com os cosmoramas: aparelhos óticos de reprodução de imagens, populares durante todo o século XIX e princípios do XX.229 Recordando suas funções, Frederico Carlos de Andrade comenta que, “pela cidade [de Rio Grande], aqui e ali, em salões particulares, havia, de quando em quando, e houve ainda por longo tempo, cosmoramas: um tabique com grandes óculos de aumento, através dos quais viam-se, lá no fundo, umas apreciáveis paisagens, vultos célebres, etc.”230 Os “Espetáculos de Vistas” exibiam várias imagens como “As Esquadras Aliadas em Constantinopla, O Bombardeio de Riga, A Vitória de Sebastopol, O Palácio de Madrid, Os Jardins de Versailles, A Ponte de Baiona, O Palácio dos Voges, O Desarvoramento da Nau Capitânia de Vasco da Gama [...], A Basílica de São Pedro, A Catedral de Milão, O Vesúvio, A Praça da Concórdia, A Exposição Internacional de 1867, A Procissâo da Semana Santa em Roma”. 231 E assim, antes de conhecermos a capital do país ou a Floresta Amazônica, já estávamos familiarizados com os ambientes europeus, sob os quais projetávamos nossas aspirações: visualizávamos o que queríamos

226 Amália Iracema já era um nome conhecido da cena lírica. Tendo iniciado carreira na capital do Estado junto a Filarmônica Porto-Alegrense, aperfeiçoou-se no Conservatório de Música de Frankfurt, apresentando-se após em várias cidades alemãs. BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 87,89. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 14 fev.,15 mar.1944. CARO, Herbert. Concertos e Recitais: 1900-1973. In: DAMASCENO, Athos et alii. Op. cit., p.305. 227 ECO DO SUL. Rio Grande, 21,22 mar.1910. 228 Sobre estas formas de espetáculos no interior dos teatros confira o Capítulo VI deste estudo. 229 O primeiro cosmorama que tenho notícia na Província foi exibido, sem grandes êxitos ao público porto-alegrense em 1841, instalado em pavilhão armado no Largo do Paraíso. Em 1847 o aparelho retornou ao mesmo local, apresentando “as mais recentes vistas das cidades da Europa e de suas sangrentas guerras” ; tendo sido, então, uma das principais diversões daquele ano na cidade. (DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.23, 27, 110) 230 ANDRADE, Frederico C. de. O Teatro Sob Diversos Aspectos, na Nossa Cidade. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 27 jun. 1935. 231 DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.23, 27.

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ter e ser.232 O periódico ilustrado Marui, em seu número 14, comenta que o cosmorama instalado na cidade possuía “uma coleção linda e variadíssima de vistas por meio das quais pode o leitor transportar-se em um ápice do nosso Rio Grande à Velha Europa, tendo assim ocasião de conhecer até Paris, e isto, por 500 réis”.233

As guerras igualmente serviam de motivo para muitos diapositivos. Com entusiasmo, eram noticiadas as imagens de “todas as guerras do mundo, de Moisés a Napoleão e deste até os dias presentes.”234 À época da Guerra do Paraguai (1865-1870), os cosmoramas apresentavam “diversos episódios da sangrenta luta [...] através de nítidos e perfeitos quadros da Passagem de Humaitá e Curupaiti, da Batalha do Riachuelo, da Abordagem dos Encouraçados Brasileiros pelas Forças Guaranis, etc”.235 Retratando o universo do conflito, a diversão fomentava na população o fortalecimento de sentimentos pátrios desencadeados pelo embate. Nesse período intensificaram-se os festejos patrióticos, sempre marcados com muita pompa. A representação de bonecos era de grande agrado, junto ao público adulto e, principalmente, ao infantil. Em 1857 instalou-se na Rua da Praia, nº 153 em frente a Praça Municipal, um Teatro Mecânico de Marionetes.236 Em 1864 outro divertimento do gênero foi aberto à rua Direita (atual Gal. Bacelar), próximo ao Beco do Carmo (atual rua Benjamim Constant correspondente ao último quarteirão antes da rua Mal. Floriano Peixoto).237 Outra concorrida atração popular eram os circos. Remontando à Antigüidade Clássica, o circo moderno nasceu no século XVIII com a organização de espetáculos eqüestres intercalados com exibições de saltimbancos, saltadores, funâmbulos e palhaços. Durante o século XIX o Brasil foi visitado por diversas companhias estrangeiras que influenciaram a organização de elencos nacionais.238 Nesses espaços atuavam companhias de variedades, ginásticas, “zoológicas” e eqüestres - chamadas de “Companhias de Cavalinhos” - com artistas acrobáticos, ginásticos, cômicos: clowns e tonys 239, domadores/adestradores e seus animais... Os primeiros circos eram construídos de forma arredondada em madeira com cobertura de folhas de zinco, telhas portuguesas ou francesas; mais tarde passaram a construção metálica coberta por lona. Grandes pavilhões contavam inclusive com salas de bebidas e cafés.240 Os alegres desfiles promocionais dos espetáculos circenses, com seus palhaços, animais e demais atrações conferiam às ruas imagens e sons singulares. Entre os circos que se apresentaram na cidade estão: Circo Olímpico (1858)241 e Circo New York (1861)242, ambos com pavilhões armados no Largo do Poço

232 O advento do cinema, inicialmente europeu e após a Primeira Guerra Mundial norte-americano, agudizou este processo. 233 MARUI. Rio Grande, 23 abr.1882. n. 14. 234 DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 110. 235 Ibid. 236 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 17. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 18 jan. 1944. 237 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 31. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 22 jan. 1941. 238 Sobre o assunto confica: TORRES, Antônio. O Circo no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte. 1998. 239 Clowns e Tonys era uma terminologia comum à época, utilizada para designar tradicionais duplas cômicas caracterizadas por um componente ser mais esperto e inteligente e o outro mais ingênuo. 240 DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 161. 241 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 20. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 5 ago. 1943.

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(atual Praça Tamandaré); Circo da Companhia Americana (1872)243 e Circo Universal (1874)244, instalados na Praça Sete de Setembro. No século XX registro, entre outros, o Circo Americano (1918), Circo Sul-Americano (1920), Companhia de Cavalinhos dos Irmãos Queirolo (1920), Circo Cubano (1920), Circo de Touros (1921), Grande Circo Americano (1921), Circo Romano (1927)245, Circo Alemão Holden (1929), Circo Rio-Grandense (1929)246, todos à Praça Dr. Pio.247 Nos Anos Trinta assinalo o Circo-Teatro Dudu (1930) à Praça do Mercado248, Circo Egipciano (1932) à Praça Vasco da Gama, Circo Irmãos Queirolo (1934) à Praça Dr. Pio249, Circo Vienense (1935) à Praça do Quartel, Circo Welcome (1935) à Praça Dr. Pio, London Circus (1937) à Praça dos Eucalíptos, etc.

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O setor dos divertimentos incrementou-se ao final do século XIX com o surgimento do cinematógrafo que, inicialmente, era exibido de forma ambulante, em salões e teatros. Em 25 de setembro de 1908, Arthur Sampaio & Cia., inauguraram o Cinema Palace, instalado à rua Ewbank n°11. Acredito ser este o primeiro cinema rio-grandino.250

O sucesso da nova arte levou à rápida ampliação das casas de espetáculo dessa natureza pela cidade. O desenvolvimento da técnica moderna e da indústria do lazer aumentou, significativamente, as oportunidades de entretenimento para o grande público e colaborou, decisivamente, na propagação e na sedimentação de novos hábitos urbanos. Outro legado da Belle Époque, foi o cartaz publicitário que , rapidamente, integrou-se ao cotidiano das cidades como um eficiente meio de comunicação, importante na divulgação da programação das casas de espetáculos. FOTO 11 - Um dos principais cinemas da cidade era o Ideal Concerto, instalado à rua Mal. Floriano Peixoto, esquina com a rua Duque de Caxias. Década de 1920. Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

242BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 24. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 21 out. 1944. 243 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 38. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 12 out. 1942. 244 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 39. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 20 nov. 1942. 245 Preços: camarote: 15$000 (4 entradas), cadeira: 4$000, geral: 2$000. Para menores, cadeira: 2$000, geral: 1$200 réis. 246 Preços: camarote: 20$000 (4 entradas), cadeira numerada: 5$000, cadeira sem número: 4$000, geral: 2$000, meia entrada (até dez anos): 1$500 réis. 247 RIO GRANDE. Rio Grande, 1920-1940. COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit. Pasta 13. 248 Neste circo foram encenadas as peças A Juriti; Alma de Gaúcho; Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. (COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit. Pasta 13.) 249 Este imenso circo tinha a capacidade para 3.000 pessoas. 250 DIÁRIO DO RIO GRANDE. Rio Grande, 26 set. 1908. A primeira sala a exibir filmes no Rio de Janeiro data de 1897 sendo que dez anos após, com a regularização da distribuição de energia elétrica, o cinema invadiu todos os cantos da cidade. Em 20 de maio de 1908 inaugurou-se o primeiro cinema de Porto Alegre: o Recreio Ideal. No ano seguinte, a cidade contava com três casas destinadas às exibições cinematográficas. Treze cinemas foram inaugurados nos Anos Vinte e no decênio posterior, a capital do Estado já possuía 26 casas do gênero, número que a equiparava à média européia. (ARAÚJO, op. cit., p. 347. TODESCHINI, op. cit., p. 12. MEYER, Cláudia. O Cinema em Porto Alegre Visto Pela Imprensa (1921-1930). Veritas, n. 146, 1992. p. 276.)

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Em 1910 inaugurou-se um ringue de patinação à rua Mal. Floriano Peixoto, destinado ao prazer dos apreciadores deste “sport chic”. Nesta década, o Ponto Chic – “centro de diversões ao ar livre”- gozava de grande concorrência, oferecendo a seus freqüentadores música orquestral, apresentação de cantores, serviço de bar e películas cinematográficas “exibidas gratuitamente”. No Carnaval de 1920 realizou movimentados bailes. 251 Outros espaços de destaque eram os cabarets, atraindo a população masculina em torno do gosto pela música de boulevard, danças, espetáculos de variedades, sempre acompanhados de mulheres bonitas e audaciosas. As casas mais importantes ofereciam também cassino de jogos, com preferência pela roleta, e nas cartas, pelo bacarat. Em Rio Grande destacavam-se o Club Centro dos Caçadores, fundado em 1919 à rua Andrades Neves n° 1 - local de “reunião da jeunesse dorée [juventude dourada] da cidade”, exibindo espetáculos com cantores e coristas (vedettes) nacionais e internacionais, serviço de bar e copa das 22 horas em diante252 e o Mozart Club, outra casa de divertimentos com “ato de variedades às 22 horas em ponto”, orquestra, bar, restaurante e também sala de jogos, localizada à rua Benjamin Constant (1921).253 Nesses espaços equivalentes aos cafés-concertos parisienses (os precursores dos music-halls), o tom picante, característico dos espetáculos realizados e a presença de “mulheres boêmias e fáceis”, somado aos freqüentes atritos oriundos das disputas no jogo e do consumo exagerado de bebidas alcoólicas, colaboravam para a má fama desses estabelecimentos noturnos. As barbearias e as alfaiatarias constituíam-se da mesma forma em “espaços fechados de sociabilidade” direcionados ao público masculino, sendo freqüentados por cavalheiros que compunham a elite. A urbanização e a industrialização da cidade refletiam-se diretamente no mundo do lazer e das diversões, sobretudo a partir da Revolução de Trinta quando uma série de leis sociais que vinham sendo reivindicadas pelos trabalhadores brasileiros desde fins do Oitocentos foram promulgadas (redução do número de horas de trabalho, descanso semanal, férias, aposentadoria), gerando a criação e a ampliação do tempo livre do empregado, que passou a aproveitá-lo de modo mais agradável. Forjou-se assim, um grande mercado consumidor de diversões de todos os gêneros. Segundo João Camilo Torres, a industrialização que se operou em todos os países ocidentais, gerou um aumento da produtividade do homem pelas máquinas e a conseqüente redução do tempo de trabalho dos operários que não se fez acompanhar por uma paralela redução salarial; pelo contrário, operou-se uma elevação dos ganhos reais. Resumindo: trabalhava-se menos e ganhava-se mais. No século XX, nas palavras do autor, “todos os indivíduos passaram a dispor de oportunidades de lazer [...]. Entramos assim, numa civilização em que, pela primeira vez, o direito ao descanso passou a ser um direito fundamental do homem, não um privilégio de certas classes”.254 O crescimento do lazer

251 M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 21 ago. 1946. RIO GRANDE. Rio Grande, 5 jan.1916. RIO GRANDE. Rio Grande, 20 fev.1920. 252 RIO GRANDE. Rio Grande, 5 mai.1919. Luiz Antônio Maroneze registra também em Porto Alegre, um Clube dos Caçadores que, fundado no decênio de 1910, apresentava-se como o mais famoso cabaret da capital nos Anos Vinte e nos Trinta, contando inclusive com cassino.(MARONEZE, op. cit., p. 77.) 253 RIO GRANDE. Rio Grande, 17 set. 1921. 254 TORRES, João C. Lazer e Cultura. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 46.

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pode também ser visto como um fenômeno complementar ou compensatório ao trabalho árduo nas indústrias e ao próprio modo de vida urbano.255

Ao alcançar o ano de 1943 Rio Grande possuía vários cine-teatros: Sete de Setembro, Politeama Rio-Grandense, Carlos Gomes, Avenida, Guarani, Liceu e Imperial 256 que funcionavam diariamente, ora como cinema, ora como teatro, ou oferecendo espetáculos mistos de tela e palco. A cidade modernizada incentivava a família à freqüência desses espaços, sinônimos de uma vida civilizada. Desde 1933 o Rádio-Teatro apresentava em seu estúdio-auditório espetáculos dramáticos e musicais também irradiados para as residências locais. Multiplicavam-se e diversificavam-se assim, as opções de casas de espetáculos. E aqui torna-se pertinente a tese de Araújo de que “o vigor de urbanidade se evidencia, por um lado, pela diversidade da grande produção de espetáculos teatrais e congêneres e, por outro, pela intensificação da chamada vida noturna” de uma cidade.257 Os (cine-) teatros, cinemas, circos, clubes, praças... constituíam-se em cenários para as manifestações da coletividade, trocas de experiências, idéias, integração social, possibilidades que permeavam e transcendiam suas notórias funções alicerçadas, sobretudo, no consumo, no entretenimento ou no lazer. A partir de meados do Dezenove, o processo de ampliação da chamada “vida pública” se fez acompanhar de novos “espaços fechados de sociabilidade” destinados aos encontros e relações enquadradas nos novos ditames modernos e que catalisavam grande parte da vida social rio-grandina. O crescimento populacional decorrente em parte das imigrações, a industrialização, a modernização do meio urbano assim como o alargamento dos “espaços fechados de sociabilidade” encontram-se na base do cosmopolitismo e do aburguesamento da cidade de princípios do século XX e da conseqüente dinamização das relações de seus habitantes. Todavia, apesar das transformações dos hábitos, as mudanças não levaram à destruição da cultura tradicional herdada. As festas religiosas, as festas folclóricas, o Carnaval, por exemplo, que preservam muitas características da época colonial – passaram por todo o período estudado mantendo-se vivas até a atualidade em todo o país. São as permanências do passado que revelam-se no presente. Tradição e modernidade interpenetram-se continuamente. O antigo e o novo sempre estiveram ligados num jogo sutil, num debate constante, num processo de amálgama e de adaptação. Assim a dialética da ruptura cede lugar à dinâmica do amálgama.258

Em que pesem as distâncias, as dificuldades de comunicação e sejam guardadas as devidas proporções, a sociedade rio-grandina apresentava-se em sincronia com outras formações sociais de importantes cidades industriais do país, em relação às práticas e aos hábitos urbanos de seus habitantes e às formas de diversão e de entretenimento públicos por eles freqüentadas.259

255 DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1976. p.93. 256 O Imperial funcionava na rua Mal. Floriano Peixoto, no prédio anteriormente ocupado pelo Rádio-Teatro e atualmente pela Rádio Minuano. 257 ARAÚJO, Rosa Maria. A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 341. 258 BAUDRILLARD, op. cit., p. 31. 259 Para uma análise comparativa com o Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, confira, respectivamente, ARAÚJO, op. cit. SILVA, Maria Alice S. et alii. Memória e Brincadeiras na Cidade de São Paulo nas Primeiras Décadas do Século XX. São Paulo: Cortez, 1989. MONTEIRO, Porto..., op. cit. e WESTPHALEN, op. cit.

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Isto posto, devo salientar que a formação sócio-cultural e econômica de um determinado grupo humano determina seu comportamento. Nesse processo a cultura desempenha papel fundamental condicionando-o às normas, valores, padrões, crenças, símbolos e conhecimentos, forjados pela sociedade.

A aquisição de conhecimentos, especificamente vinculados à instrução e às artes por parte da sociedade local e o papel das instituições correspondentes a esse processo, centram as próximas abordagens. Não pretendo, todavia, enfocar nesse momento, a produção artística rio-grandina; mas sim encaminhar a discussão para uma posterior análise, a partir de sua revelação apreendida nos espaços teatrais da cidade, então objeto de estudo dos capítulos V e VI desta obra.

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EDUCAÇÃO, ARTE & CULTURA: A MONTAGEM DO PATRIMÔNIO LOCAL

3.1 - EDUCAÇÃO A história da educação em Rio Grande, acompanha a do quadro nacional caracterizada pela ineficiência do sistema. Frente a uma minoria de letrados e eruditos, impunha-se uma enorme massa de analfabetos.260 As precárias condições de infra-estrutura e a falta de verbas, materiais e professores, constituíam-se em empecilhos ao pleno desenvolvimento da instrução sistemática e pública na cidade. A instrução primária em Rio Grande teve seus primórdios na década de 1770, introduzida pelo professor baiano Manoel Simões Xavier que ensinava a ler, escrever e contar. Após lecionar na nesta vila, Xavier transferiu-se para Porto Alegre, por autorização do Governador da Capitania José Marcelino de Figueiredo em 1778, fundando então a primeira aula daquele lugar. Em 5 de agosto de 1782, através de uma Provisão do Senado da Câmara, Caetano Ferreira de Araújo foi nomeado mestre de escola em Rio Grande. Pela Provisão de 23 de março de 1784, Pedro Francisco da Costa Martins foi nomeado mestre para o Povo Novo.261 Os mestres ensinavam leitura, escrita, as quatro operações aritméticas

260 Sobre a educação no Brasil confira: AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1944. p. 509-768. RIBEIRO, Maria S. História da Educação Brasileira: organização escolar. São Paulo: Autores Associados, 1995. LOURO, Guacira L.. História, Educação e Sociedade no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1986. MORAIS, Cultura..., op. cit. SCHNEIDER, Regina Portella. A Instrução Pública no Rio Grande do Sul (1770-1889). Porto Alegre: UFRGS/EST, 1993. 261 Deve-se ter presente que nesta época, o Povo Novo apresentava num significativo contingente populacional. Durante o período do Domínio Espanhol (1763-1776) em Rio Grande, por questões de

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e doutrina cristã, mediante uma pequena compensação mensal, sendo as aulas restritas ao sexo masculino.262 A Resolução Régia de 14 de janeiro de 1820 determinava o estabelecimento de oito aulas públicas de primeiras letras no Rio Grande do Sul, autorizadas a funcionar em Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antônio da Patrulha, São João da Cachoeira, Pelotas, Triunfo e Piratini. 263 Neste mesmo ano, em Resolução de 17 de fevereiro, foi criada uma aula de Filosofia, uma de Retórica e uma de Aritmética, Álgebra e Trigonometria, em Porto Alegre e duas aulas de Latim, em Rio Grande e em Rio Pardo. As primeira escolas para o sexo feminino na Província foram criadas pela Resolução de 25 de outubro de 1831.264 Em 1846 o Rio Grande do Sul contava com 51 escolas de instrução primária, sendo 36 para meninos e 15 para meninas. Existiam somente algumas poucas escolas de ensino secundário: 4 em Porto Alegre, 2 em Rio Grande e 1 em Pelotas. Em Rio Grande, as aulas correspondiam a Gramática Latina (com 5 alunos) e Francês, Geografia e Desenho (com 26 alunos). Em 1847 foi criada a cadeira de Inglês. Conforme recomendações da Presidência da Província, em 1848, as aulas de instrução secundária em Rio Grande passaram a ser reunidas em um só prédio: o recém fundado Gabinete de Leitura cedeu duas de suas salas para este propósito. O número de alunos no ensino secundário local perfazia 52 estudantes em 1849. 265 Professores europeus residentes na cidade ministravam as aulas de idiomas estrangeiros, onde destacava-se claramente a preferência pelo francês. Seu domínio apresentava-se como condição sine qua non ao ingresso no mundo “elegante e civilizado”, conforme o imaginário da época. Em 1834 Arsène Isabelle comentava que em Rio Grande, assim como em todo o país e na Região Platina, o ensino da língua francesa era bastante difundido.266 Desta feita, entrava-se em contato com as publicações e, por sua vez, com o universo político, artístico e cultural da prestigiosa França burguesa. Da forte presença cultural francesa no Brasil, decorria o afrancesamento da sociedade. Censurando este processo, um periódico em 1843 assim pronunciava-se:

As nossas sinhasinhas e iaiás já não querem ser tratadas senão por demoiselle, mademoiselle e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas, nas maneiras, só se aprova o que é francês; de sorte que já não temos usança, uma prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil. [Os antigos], quando meninos, acomodando-se à índole da nossa língua, diziam mamãe porque em português sempre se chamou mãe; hoje nem este vocábulo se permite entre os alinhados

segurança, não foi permitido a permanência dos luso-açorianos na Vila, que foram transferidos para seus arredores. Criaram-se núcleos de colonos, cujo principal era o da Ilha da Torotama, que já existia anteriormente. Em terras pertencentes a Manuel Fernandes Vieira, que se retirara com a invasão, foram assentadas 112 famílias. Com a Reconquista da Vila pelos portugueses em 1777 Fernandes Vieira reclamou sua propriedade. Os colonos foram transferidos então para o continente na localidade de Rincão d’el Rey, mais tarde denominado de Distrito do Povo Novo. (Cf. QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 117-118,137-140) 262 SCHNEIDER, op. cit., p. 14-15. 263 PIMENTEL, op. cit., p. 95. MAGALHÃES, op. cit., p. 225. SCHNEIDER, op. cit., p. 21. 264 SCHNEIDER, op. cit., p. 22, 29. 265 Ibid., p.75,76,91,92,93. 266 ISABELLE, op. cit., p. 80.

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Galiciparlas: deve-se dizer – a minha maman – porque em francês assim pronunciarão os pequenos.267

Assim, a influência estrangeira atingia um dos pontos mais íntimos do sistema patriarcal brasileiro.

Em princípios do decênio de 1850, não mais que 2% da população rio-grandina beneficiava-se do ensino gratuito. No ensino particular primário, em 1859, existiam em Rio Grande 6 aulas para homens (145 alunos) e 3 aulas para mulheres (75 alunas). O ensino particular secundário destinava-se exclusivamente ao sexo masculino: 10 aulas (35 alunos).268

Conforme Regina Schneider, durante a década de 1860, “a instrução secundária na Província limitava-se ao Liceu, na Capital, e a cadeira avulsa de Francês, em Rio Grande”. Todavia, em 1873, esta aula foi suspensa, ficando o ensino secundário reduzido à escola Normal, de Porto Alegre.269

Se, em 1876, 492 era o número de alunos que freqüentavam as escolas rio-grandinas; 2.412 estavam fora das salas de aula. Nesta década, mais precisamente em 1877, foi introduzido na Província as primeiras escolas mistas freqüentadas por meninos e meninas. Em 1879 totalizavam 1.133 alunos matriculados nas 8 aulas primárias mantidas pelo governo, na cidade.270

No início do século XX a rede escolar local possuía 7 aulas com 2.974 alunos sustentadas pelo Município e 26 estabelecimentos mantidos pelo Estado. O ensino particular respondia por 11 estabelecimentos, funcionando como pensionatos e/ou externatos. As escolas públicas destinavam-se ao ensino primário. O ensino secundário era praticado, timidamente, por algumas escolas privadas, o que restringia seu acesso à uma diminuta parcela da sociedade em função do elevado custo dos estudos.271 Entre a elite brasileira, durante o Dezenove e até a Primeira Guerra Mundial sobretudo, era comum a prática do envio de seus filhos à Europa a fim de concluírem os estudos. A cultura européia propagou-se entre nós, também por intermédio destes jovens que após formarem-se retornavam ao país e difundiam novas idéias, hábitos e costumes. Eram principalmente rapazes, valorizados pela educação européia, muitos de famílias da burguesia mais nova das cidades, filhos ou netos de “mascates”. Deste processo, a sociedade local também foi partícipe.

Inaugurado em 1906 o Ginásio Municipal Lemos Júnior incrementou, sobremaneira, a instrução secundária pública na cidade. Neste século, expandiu-se, consideravelmente, a rede escolar rio-grandina, intensificando o processo de socialização da educação, sobretudo, primária. Fomentaram-se igualmente os cursos profissionalizantes voltados para as classes trabalhadoras e menos favorecidas. Dentre os estabelecimentos de ensino registrados no período de 1920 a 1940, além do supracitado Lemos Júnior, destacavam-se: Liceu Salesiano de Artes e Ofícios Leão XIII (ensino primário e profissionalizante); Escola Industrial Elementar (filiada ao Instituto Parobé, da Escola de Engenharia de Porto Alegre);

267 O CARAPUCEIRO. Recife, 1843. Apud. FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 102. 268 RELATÓRIO da Câmara Municipal da Cidade de Rio Grande, 1851. SCHNEIDER, op. cit., p. 201. 269 SCHNEIDER, op. cit., p.247,283. 270 SCHNEIDER, op. cit., p. 322,284. RELATÓRIO da Câmara Municipal da Cidade de Rio Grande, 1879. 271 RELATÓRIO do Intendente Municipal da Cidade de Rio Grande, 1906.

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Academia de Comércio Dr. João Fernandes Moreira (instrução secundária); Colégio Complementar Santa Joana D’Arc (primário e secundário para moças); Externato Luso-Brasileiro (primário e secundário); Ginásio São Francisco; Ginásio Brasileiro (internato primário); Colégio Rio-Grandense; Colégio Ernest; Instituto Comercial São Francisco; Colégio Elementar Juvenal Miller; Colégio Elementar Bibiano de Almeida; Escola Agrícola da Quinta; etc.

Fundada em outubro de 1927 a Liga de Educação do Município do Rio Grande, inaugurou sua primeira escola em março de 1928, instalada nas dependências do Tiro de Guerra no 1.272 Segundo números apresentados por Pimentel, Rio Grande possuía em 1940 no ensino primário o seguinte quadro:273 TABELA 1

Escolas/Matrículas Federal Estadual Municipal Particular Total Unidades Escolares 1 14 27 38 80 Matrículas 69 2.183 1.695 4.080 8.027 Matrículas Efetivas 69 1.709 1.368 3.320 6.466

O mesmo autor, tomando por base as populações dos municípios mais importantes do Estado em 1940 e suas respectivas matrículas efetivas de alunos no curso primário, expõe:274 TABELA 2

Município População Total Porcentagem Escolar Porto Alegre 275.678 95,5

Pelotas 105.852 81,9 Rio Grande 61.791 95,1

Cursos de alfabetização noturnos subvencionados pela Municipalidade eram freqüentados, sobretudo, pelo operariado, sendo oferecidos pela Biblioteca Rio-Grandense, Sociedade Polonesa Águia Branca, Liceu Salesiano Leão XIII, Colégio Rio-Grandense,

272 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 112. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 3 mar. e 15 out. 1941. 273 PIMENTEL, op. cit., p. 94. 274 Ibid., p. 95.

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Centro Cultural Marcílio Dias275, Centro Cultural Rio-Grandino, Sociedade União Operária276 e por outras instituições.277 Desde o Fin-de-Siècle a capital do Estado e mais tarde Pelotas gozavam de instituições educacionais de nível superior.278 Rio Grande, entretanto, só se beneficiou desse ensino a partir da segunda metade da década de 1950. 3.2 - CONTEXTOS DE LEITURA

Por longo tempo, a literatura no Brasil não passou de um “sinal de classe”, de

uma “prenda de gente distinta”, de um “adorno para a sala de visitas do imenso casarão colonial” que constituía-se o país.279 É interessante lembrarmos, também, da hegemonia da literatura francesa no Brasil Oitocentista reforçada, sobremaneira, pela propagação de obras inglesas, alemãs, etc. em traduções nessa língua. O escritor Macedo Soares em 1860 alardeava: “em nossa ignorância não conhecemos senão a literatura francesa; todas as outras as conhecemos através do prisma das traduções francesas.”280 Em sua estada em Rio Grande, no ano de 1834, Arsène Isabelle registrou a existência de “uma pequena biblioteca, composta em grande parte de livros franceses.”281 Esta observação enfatiza a forte presença cultural da França entre os leitores locais da época. Nas primeiras décadas do século XIX, na Capital do Império, proliferavam os Cabinets de Lecture divulgando, igualmente, a literatura deste país. Apesar dos bons autores e obras consideráveis, a literatura portuguesa e a nacional encontravam-se relegadas a um segundo plano na preferência do restrito, e então francófilo, público letrado.282 A alteração desse quadro constituiu-se num processo lento e fundamental de nossa história cultural. Neste sentido, de suma importância foi a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1896. Tendo como primeiro presidente Machado de Assis, a instituição colaborou grandemente para a consolidação das letras no país.283 Nas palavras de Fernando de Azevedo, “visando concentrar os grandes nomes da literatura nacional e fomentar, com o culto das letras o da língua pátria, [ela] acabaria por assumir uma função de alcance não apenas literário, mas social e político: o da defesa da unidade do idioma nacional”.284 Em 15 de agosto1846 foi fundado um Gabinete de Leitura em Rio Grande, instalado à Rua do Arsenal, n.o 3 (atual Ewbank), sendo transferido em 1847 para um

275 Fundado em 1936, proclamava-se o “Bandeirante da Alfabetização dos Brasileiros de Cor”. (BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 115. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 6 mar. 1941.) 276 Esta sociedade possuía também uma escola primária. 277 PIMENTEL, op. cit., p. 91-92. 278 Universalmente, o Fin-de Siècle corresponde às últimas décadas do século XIX. 279 AZEVEDO, op. cit., p. 316-317. 280 SOARES, Macedo. Da Crítica Brasileira. Revista Popular. Rio de Janeiro,t.8, p.272-273, 1860. 281 ISABELLE, op. cit., p. 80. 282 Cf. SCHAPOCHNIK, Nelson. Contextos de Leitura no Rio de Janeiro do Século XIX: Salões, Gabinetes Literários e Bibliotecas. In: BRESCIANI, Stella (org.) Imagens da Cidade - Séculos XIX e XX. São Paulo: Marco Zero, 1994.p.147-162. 283 Um preciso panorama da vida literária brasileira pode ser obtido em: BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 284 AZEVEDO, op. cit., p. 344.

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amplo sobrado à Rua da Praia n.o 146, 2o andar. 285 Frente ao alto preço dos livros que, dificultava sua aquisição e a conseqüente formação de bibliotecas particulares, os gabinetes de leitura, por meio do aluguel de livros, estimulavam a prática social da leitura.286

Em 1866 o Gabinete de Leitura transferiu-se para a Rua dos Príncipes esquina com a rua Andradas e, mais tarde, em 1878, mudou-se para a rua Riachuelo n.o 71. Nesta nova sede, passou a denominar-se Biblioteca Rio-Grandense, adquirindo personalidade jurídica. Já em 1879 a Biblioteca inaugurava uma série de conferências literárias, ampliando sua ação educadora junto à coletividade. Desde 1900 passou a funcionar à Rua dos Pescadores (depois rua Formosa e atual rua General Osório), no antigo prédio da Casa da Câmara, adquirido pela instituição a Municipalidade. A partir de 1914 o antigo edifício luso-brasileiro sofreu amplas reformas internas e externas que conferiram-lhe um frontispício eclético, ricamente ornamentado. Esta imagem personificou a Biblioteca até 1937 quando, uma nova série de reformas findadas somente nos anos de 1950, deram-lhe a atual configuração.287 FOTO 12 - Conseqüentes reformas realizadas a partir de 1914 deram ao edifício da Biblioteca Rio-Grandense a rebuscada fachada que caracterizou sua imagem até 1937. Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande. A Diretoria de Estatísticas Educacionais do Rio Grande do Sul, através de seu Anuário de Estatísticas Culturais de 1940 informa que:

das 3 grandes bibliotecas públicas do Estado é mais importante pela riqueza de suas coleções a de Rio Grande que possui 47.457 obras em 74.650 volumes, sendo de notar que é mantida por uma associação subvencionada pelos poderes públicos. Segue-se a de Porto Alegre, propriedade do Estado, magnificamente instalada, com 27.910 obras em 50.465 volumes. Por último coloca-se a Biblioteca Pelotense, mantida, como a de Rio Grande, pelos seus associados, com cerca de 20.000 obras e 26.250 volumes.288

A Biblioteca Rio-Grandense possui destacado papel na divulgação da literatura universal e na produção do saber moderno em nossa cidade e Estado. Importante núcleo irradiador de cultura, constitui-se em local de investigação e trabalhos científicos. Sua ação direta junto à comunidade percebia-se através de suas conferências, palestras, publicações, aulas primárias noturnas, etc. Por anos, suas dependências albergaram a Escola Industrial. Em 1919 a instituição foi reconhecida de utilidade pública através do

285 Cf. FERREIRA, Athos D. Gabinetes de Leitura e Bibliotecas do Rio Grande do Sul no Século XIX. Porto Alegre: MEC, 1973. 286 Cf. HALLOWELL, Lawrence. O Livro no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1982. 287Uma precisa e suscinta história da Biblioteca Rio-Grandense pode ser obtida em: SOAMAR. Rio Grande, jul/ago. 1996. Ano IV, n.o 19. 288 Apud. PIMENTEL, op. cit., p. 141.

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Decreto n.o 3.776, de 1 de outubro, sancionado pelo então Presidente da República, Epitácio Pessoa. Em 1940 bibliotecas de menor importância existiam na Sociedade Portuguesa de Beneficência (fundada em 1859); no Clube Saca-Rolhas (fundada em 1878); na Sociedade Polonesa Águia Branca (fundada em 1896); na Sociedade Espírita Luz Beneficente (fundada em 1909);289 na Sociedade União Operária290 e em outras instituições e estabelecimentos de ensino. Entre as livrarias existentes na cidade estavam as bem montadas filiais das Americana (inaugurada em 1885), Universal e do Globo291. Nos Anos Vinte, registrei também a Livraria Royal. Comercializando obras nacionais e estrangeiras dos mais variados autores, constituíam-se em “espaços fechados de sociabilidade” à intelectualidade local, servindo-lhe de ponto de encontro. Desenvolvendo intensa atividade editorial as livrarias Americana e Globo desempenharam papel relevante na indústria cultural gaúcha e no fomento à leitura. Conforme Francisco das Neves Alves:

A leitura foi uma atividade cultural presente no Rio Grande do século XIX, através do funcionamento, em diferentes épocas, de uma série de livrarias que abasteciam a cidade com uma diversificada gama de livros e revistas, nacionais e estrangeiros, principalmente ingleses, franceses e alemães; era também notável o interesse por obras de conteúdo literário, histórico e geográfico. O [elevado] custo dos livros era, no entanto, um fator limitador à leitura [...].292

Estudando o desenvolvimento da importante indústria livresca sul-rio-grandense nas décadas de 1930 e 1940, assim escreve Elizabeth Torresini:

desenvolvimento do processo de industrialização, ocorrido no Brasil do século XX, é fator fundamental para a compreensão da indústria cultural e de livros. Tal processo vem acompanhado, na década de 30 da ascensão de Getúlio Vargas, que ao inaugurar um estilo de política dependente da participação das massas, estimula a radiodifusão e o desenvolvimento do cinema nacional, do disco, da imprensa e do livro. Este impulso incrementa a indústria cultural e os meios de

289 PIMENTEL, op. cit., p. 140. 290 Em agosto de 1904 “a mesa de leitura [desta sociedade] foi freqüentada [...] por 335 sócios. Recebeu a visita de 32 jornais e forneceu 68 volumes de várias obras para serem lidas pelos associados”.( BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 82. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 3 set. 1941.). Boa parte dos livros pertencentes à biblioteca da S.U.O. encontra-se preservada no Centro de Documentação Histórica da Universidade de Rio Grande compondo seu acervo e possibilitando estudos acerca das leituras do operariado local. 291 MAGALHÃES, op. cit., p. 255. Em 1857 a Livraria Pelotense anunciava através do jornal local Diário do Rio Grande, “encarregar-se de mandar vir do Rio qualquer obra, que não se encontre no lugar, quando o freguês a procure”. Embora atuasse na sociedade rio-grandina, não tenho certeza sobre sua instalação na cidade. (DIÁRIO DO RIO GRANDE. Rio Grande, 28 jun.1857). 292 ALVES, A Pequena..., op. cit., p. 35.

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comunicação de massa, cujos alicerces o próprio processo de industrialização já havia lançado.293

No aprimoramento cultural e, de uma certa forma também educacional, merece destaque o papel da imprensa. Por sinal, seu crescimento constituiu-se na base para o desenvolvimento da literatura nacional.

Herança do Período Joanino, a imprensa chegou ao Rio Grande do Sul em fins do decênio de 1820. O primeiro jornal a ser impresso em Rio Grande foi O Noticiador circulando a partir de janeiro de 1832, seguido pelo O Observador (no mesmo ano) e pelo O Propagador da Indústria Rio-Grandense (1833). Todavia, foi a partir da Revolução Farroupilha (1835) que intensificou-se a atividade periodista na Província. Dentre os jornais locais oitocentistas de maior longevidade destacavam-se o Diário do Rio Grande (1848-1910) e o Eco do Sul (fundado em 1858, alcança o ano de 1934). Expressando opiniões, informando ou simplesmente abordando amenidades, as folhas periódicas apresentavam-se como importantes meios de comunicação, apesar das limitações impostas pelo analfabetismo. Paralelo aos grandes diários, pequenos periódicos de vida efêmera pontilhavam a história jornalística local.294 Para Alves “a imprensa rio-grandina foi uma das mais destacadas do Rio Grande do Sul, tanto pela quantidade, quanto pela qualidade de seus periódicos (sendo somente superada pela porto-alegrense e seguida com proximidade pela pelotense). Assim, além de ter sido uma das primeiras localidades gaúchas a possuir jornais, Rio Grande teve algumas das mais perenes folhas em termos provinciais/estaduais [...].”295 Durante os decênios de 1920 e 1930 circulavam diariamente na cidade três grandes folhas: Eco do Sul (já referido); O Tempo (fundado em 1906) e Rio Grande (fundado em 1913) além de pequenas publicações de amenidades ou vinculadas a interesses específicos de alguns setores da sociedade, como os operários, os bancários, etc. A saber: O Tagarela, A Luta, O Plectro, O Arauto, A Semana Elegante, O Prego, O Guarani, A Vovó, O Maneca, Cultura Proletária e outros. Ao enfocar o crescimento e a importância da imprensa rio-grandina, não posso dissociá-lo do desenvolvimento do beletrismo e das tipografias, que viabilizavam esse processo. A imprensa era um meio de incentivo e divulgação da literatura local, mais especificamente, de crônicas e de poesias publicadas quase que diariamente em suas páginas. Os periódicos e as revistas exclusivamente literários encontravam grande aceitação junto ao público feminino e ao estudantil. 296 Um das primeiras publicações do gênero surgida na cidade, foi a revista Arcádia (1867), mantida por seu fundador Antônio Joaquim Dias e, dois anos mais tarde, transferida para Pelotas.297 A fundação em Porto

293 TORRESINI, Elizabeth R. Porto Alegre: dos cinemas, cafés, jornais, livrarias e praças, a capital dos livros (1929-1948). Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 21, n.1, p. 12, 1995. Torna-se relevante frisar que nos Anos Trinta, a Globo apresentava-se como a mais importante editora brasileira. 294 Cf. em PIMENTEL, op. cit., p. 137, listagem dos principais jornais locais durante o século XIX, e ALVES, A Pequena..., op. cit. 295 ALVES, A Pequena..., op. cit., p. 42-43, 44. 296 Dentre as revistas literárias, merece destaque a Corimbo (1883-1943), fundada pelas irmãs Julieta e Revocata Heloísa de Melo. (Cf. VIEIRA, Míriam Steffen. Atuação Literária de Escritoras no Rio Grande do Sul: Um Estudo do Periódico Corimbo: 1885-1925. Porto Alegre: UFRGS, 1997. Dissertação de Mestrado). 297 CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura no Rio Grande do Sul: 1737-1902. Porto Alegre: Globo, 1956, p.181.

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Alegre do Parthenon Literário no ano seguinte, daria um novo impulso às letras na Província. Em Rio Grande, surgiram a Literária Rio-Grandense (antes de 1875), Juvenil Literária (1875), Culto às Letras (1875), Sociedade União Literária (1877), Clube Literário Luso-brasileiro (1879), incentivando tanto à leitura quanto a produção de contos, novelas, romances, poemas, etc. 298 Se os cafés, bares, confeitarias... se constituíam em locais privilegiados para troca de idéias e atualizações de discursos, as bibliotecas, livrarias, cinemas e (cine-) teatros, por meio de seus “produtos”, desempenhavam papel fundamental na constituição da “cultura pública”, atuando como centros irradiadores de informações que viabilizavam esse processo. Embora as escolas, bibliotecas, livros, revistas e jornais respondessem grandemente pela formação educacional e elevação do nível cultural da sociedade, devemos ter sempre claro os limites da educação no Brasil e a alta taxa de analfabetismo registrada, que alijavam da experiência da leitura e do prazer do texto a maior parte da população.299 Nesse quadro há que se referir à importância da informação/formação advinda de um processo de oralidade desenvolvido em encontros públicos por ocasião de palestras e conferências promovidas por várias sociedades “instrucionistas”, partidos políticos...; na encenação dos mais variados textos literários dramáticos e/ou dramatizados, etc. Esse processo caracterizado fortemente por uma “persuasão sedutora” da palavra, tornava-se elemento de grande valor na atenuação desta realidade nacional distanciada da prática da leitura. O cinema igualmente adquiria sensível relevância, na medida em que possibilitava aos analfabetos a formação de uma visão de mundo que de outra forma não teriam subsídios para forjar. Não devemos subestimar o poder dos sons e das imagens.

Assim, também por meio da cultura visual e da auditiva e, através do entretenimento, socializava-se o conhecimento. 3.4 - BELAS-ARTES No desenvolvimento das belas-artes no Brasil, o advento da Corte Joanina e a presença da Missão Artística Francesa no país (1816), constituíram-se em elementos de grande promoção, sobretudo, à nova capital do Império Lusitano. Uma vez restabelecida as relações com a França, o príncipe-regente “procuraria embelezar seu reino tropical recorrendo às artes francesas, [...] num esforço de fortalecer a Monarquia [...] por meio da

298 (BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 41,45-46,49. O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. n° 82, 86). Segundo Ari Martins, Rio Grande, constituindo-se no “berço de tantos vultos de projeção na cultura gaúcha”, desempenhou relevante papel na evolução das belas-letras no Estado. Em 1943 existiam na cidade 4 agremiações literárias. (PIMENTEL, op. cit., p. 536.). Sobre os literatos (e também os jornalistas) locais confira: NEVES, Décio Vignolli. Vultos do Rio Grande. 2O Tomo. Rio Grande, 1987 e MARTINS, Ari. Poetas do Rio Grande do Sul: Subsídios para a história da literatura gaúcha. In: CONGRESSO SUL-RIO-GRANDENSE DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA, 3, Porto Alegre, 1940. Anais... Porto Alegre, Prefeitura Municipal, 1940, v.3, p. 1389-1418. 299 Em 1889, a média de alfabetismo no país era de 28%. Conforme Love “em 1872 o Rio Grande do Sul era a terceira Província entre as demais, na taxa de alfabetizados (21,9% em todas as idades) e, em 1891 tinha galgado o primeiro lugar.” (LOVE, op. cit., p. 21.) Em 1920 o índice de alfabetização do Estado era o maior do país, 38,8%, seguido por São Paulo com 29%.

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promoção das artes e ciências no âmbito das instituições reais”.300 A Missão Francesa introduziu o ensino artístico acadêmico, apregoando a substituição da pompa e dos exageros ornamentais do barroco, pelo refinamento e disciplina do neoclassicismo e seus ideais de beleza perfeita.301

À uma tradição francófila já percebida no período colonial somou-se às preferências da novel Corte carioca de D. João, dando a base para a formação do “esplêndido edifício da cultura material francesa no Brasil do século XIX, um edifício constantemente renovado pelos comerciantes e artesãos franceses imigrados e pelas longas férias parisienses da elite”. 302 Na segunda metade do Oitocentos, o esplendor da Corte de Napoleão III serviu para reforçar a admiração pela França. Mais tarde, em nossa Primeira República, “a chamada Belle Époque levaria o afrancesamento da cultura brasileira a seu paroxismo, atingindo expressões quase caricaturescas”.303 Já nas primeiras décadas do século XIX, a pequena burguesia brasileira tornou-se a responsável pela transplantação das ideologias e valores estéticos oriundos do avanço burguês na Europa Ocidental. Nesse segmento social, a cultura encontrou clima e se desenvolveu. Nele, recrutavam-se os letrados, os funcionários, os religiosos, todos aqueles que necessitavam de conhecimentos – quase sempre em escala rudimentar – e que tinham receptividade, em parte, para as manifestações artísticas, a que a vida urbana em desenvolvimento proporcionava condições iniciais de existência. A vida artística e cultural do país estimulava-se com os novos ares.304

Em 1826 instalou-se no Rio de Janeiro a Academia Imperial de Belas-Artes, núcleo irradiador das tendências neoclássicas que estenderam-se pelo Brasil ao longo do século.

Durante o Dezenove o aprendizado das belas-artes em Rio Grande (destacando-se o do desenho e da pintura), realizava-se através de aulas particulares ou oferecidas por sociedades, ministradas por mestres estrangeiros. Todavia, em 1846 instalou-se na cidade a primeira escola ou aula pública de Desenho da Província. Seu instrutor era o artista francês Edouard Timoleon Zalony (nomeado também para o ensino de Língua Francesa e Geografia) - afamado “retratista a esfuminho e pintor a óleo sobre vidro” - que, anteriormente, lecionara na Corte.305 Em 1854 o referido artista ensinava, gratuitamente, desenho aos sócios da Sociedade Instrução e Recreio, por ele idealizada.306 Mais tarde, o ensino das artes plásticas passaria a compor o currículo tanto dos colégios particulares quanto dos públicos.

Sobretudo a partir da segunda metade do Oitocentos muitos foram os artistas que se instalaram na cidade ou nela nasceram, exercendo várias atividades: professores de desenho e pintura307; retratistas; fotógrafos; decoradores de interiores e exteriores de

300 NEEDELL, op. cit., p. 175-176. 301 LOPEZ, Luiz R. Cultura Brasileira: de 1808 ao pré-modernismo. Porto Alegre: UFRGS, 1988. p. 15-18. 302 NEEDELL, op. cit., p. 176. 303 NEEDELL, op. cit., p. 132. MORAIS, op. cit., p. 86. 304 SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1983. p. 23-32. 305 SCHNEIDER, op. cit., p. 76. DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 83, 248. Damasceno revela também que, exceto em Rio Grande, não existirá na Província até 1859 nenhum curso oficial da matéria. 306 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 14. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 17 out. 1942. 307 Fortemente acadêmica pintava-se, sobretudo, paisagens e retratos mas também, cenas históricas e bíblicas. As tendências vanguardistas de renovação da pintura observadas no país e no mundo, praticamente, não fizeram eco em Rio Grande. O academicismo, a mimese, marcam todo o período estudado. Deve-se ter

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residências, prédios público...; fabricantes de móveis, escultores de imagens e peças religiosas, etc. Contudo poucos na realidade, íam além da mediocridade .308

Em função da imprensa caricata local desenvolveu-se, fortemente, o desenho e a litografia.309 Desta feita, através dos periódicos e revistas ilustrados realizou-se a popularização da arte. Para Azevedo: “a caricatura e o desenho humorístico [...] pela extensão do público que divertiam, reunindo no mesmo sentimento de prazer a elite e a massa, são fatores na difusão popular da arte, e constituem a primeira colaboração real entre as artes e a literatura”.310

Digno de ressalva era também a grande produção vinculada às necessidades teatrais: pinturas ornamentais observadas nas paredes e teto da Sala dos Espectadores, panos de boca ricamente trabalhados e renovados periodicamente e os incontáveis cenários realistas e cheios de detalhes, então em voga e de rápido consumo. Da mesma forma, as artes plásticas marcavam presença na decoração festiva de clubes por ocasião de bailes e, sobretudo, em época de carnaval; assim como na confecção dos imensos e luxuosos carros alegóricos que compunham os préstitos momescos, nos estandartes das sociedades e nos adereços.

A arte cenográfica desenvolvida na cidade durante os Anos Vinte e os Trinta, tinha como expoente o português Joaquim Ribeiro Figueiredo Bastos Guerra (1882-1964), hábil artista na confecção de cenários, fornecendo-os à todas as casas de espetáculos311. Bastos Guerra trabalhava também em decorações de bailes de carnaval e na construção dos carros alegóricos do Clube Arara, memoráveis por sua grandiosidade e originalidade.312 Dessas artes efêmeras só restam algumas imagens apreendidas em fotografia de época, nas quais as matizes de preto sobre o papel branco, pouco revelam.

No começo do século XX foi fundado o Liceu Salesiano de Artes e Ofícios Leão XIII destinado a formação daqueles que pretendiam fazer da arte sua profissão.

A partir da segunda década deste século dinamizou-se o ensino das artes plásticas no Estado. Em Porto Alegre, instalou-se em 1910 a Escola de Artes no Instituto Livre de Belas-Artes do Rio Grande do Sul, subvencionado pelo Estado, oferecendo cursos de Desenho, Pintura, Perspectiva, Anatomia e História da Arte. O Conservatório de

em mente, todavia, que mesmo na Europa, até 1914 “a pintura e a escultura acadêmicas se mantinham tranqüilamente estáveis [...] com ênfase sobre a repetição e imitação de formas, motivos e mestres artísticos do passado”. (MAYER, op. cit., p. 217.) 308 Dentre os artistas de maior notoriedade estavam: o francês Edouard Timoleon Zalony; o espanhol Guilherme Litran; Romualdo Gomes Magriço; Luiz Pereira da Cunha (todos em desenho e pintura); Zequinha Koboldt e Isabel Hislop (amadores do desenho e da pintura); os Irmãos Ribeiro (escultura e entalhe); o francês Bartholomeu Boyer (escultura em mármore); Efísio Anedda (desenho, pintura e cenografia); os italianos Ricardo Giovannini (desenho, pintura, decoração e cenografia); Bernardo Grasseli (pintura e cenografia) e Giovanni Falconi (decoração), Matteo Tonietti (pintura, cenografia, escultura); o alemão Carl Emil (litografia e cenografia); o espanhol Henrique Gonzales; Thádeo de Amorim; Constantino Alves de Amorim; Pedro Mozer (todos, em desenho e litografia). Nascidos em Rio Grande mas não residindo nela estão Arthur Pinto da Rocha (amador do desenho e da pintura); Luiz Augusto Freitas (desenho e pintura) e Carlos Torelly (pintura). Dentre os artistas rio-grandinos, torna-se justiça salientar o nome de Carlos Torelly (1866-1936), cuja larga produção é de renomado valor artístico. (DAMASCENO, Artes..., op. cit.) 309 Executando os desenhos nas pedras destinados aos periódicos ilustrados - O Amolador, O Diabrete, Maruí, Semana Ilustrada, O Bisturi ...- registrei a Litografia de Alberto Moutinho (1874) e a Litografia de Henrique Gonzales (fins do XIX). (DAMASCENO, Artes...,op. cit., p. 558-559.) 310 AZEVEDO, op. cit., p. 470. 311 Outros artistas atuando na mesma área eram Domingos Borges, José de Oliveira Bastos e Franklin Bastos. 312 No carnaval de 1922 o préstito do Clube Arara compunha-se de sete carros alegóricos todos, soberbamente, decorados.

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Música de Pelotas metamorfoseou-se em Instituto de Belas-Artes, em 1927. Dez anos mais tarde criou-se em Bagé a Escola de Artes como departamento do Instituto Municipal de Belas-Artes. A cidade de Rio Grande não foi partícipe à época desse processo. O incremento às artes plásticas locais só viria na década de 1950.313 Na composição plástica do cenário urbano rio-grandino tornavam-se importantes as fachadas das residências e prédios públicos artisticamente trabalhadas (sobretudo nos estilos neoclássico e eclético) e as esculturas em metal e pedra percebidas em monumentos instalados em largos e praças.314 Belos exemplos da estatuária brasileira também decoravam os mausoléus nos cemitérios locais. A arte ao mesmo tempo que embelezava o espaço público aproximava-se da população fomentando o interesse e o gosto pelas manifestações da sensibilidade humana e desenvolvendo, dessa forma, elementos essenciais à sua fruição.

3.5- DANÇA

Paralelo aos movimentados bailes coletivos realizados em clubes, salões e nos teatros, timidamente, desenvolvia-se a dança cênica, vista como arte, como espetáculo.

O primeiro esboço daquilo que, mui pretenciosamente, classifico de “sarau coreográfico” percebido na cidade, remete a Saint-Hilaire e a seu registro sobre um solo executado por uma moça em ocasião de uma reunião dançante a qual participou em 13 de agosto de 1820. Embora tivesse reconhecido a graciosidade dos movimentos da jovem, o viajante não deixou de lamentar que “uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos”.315 Muito provavelmente esta exibição não passou de uma ingênua ilustração musical caracterizada pela improvisação.

Sobre o ensino de danças cênicas, o primeiro nome que aponto é o da bailarina Moreau que, como já foi dito, comunicava pela imprensa dar “lições de danças por teatro” à sociedade local de 1850.

Os corpos de baile das companhias artísticas - embora a grande maioria não primasse por admiráveis qualidades estéticas - desempenharam papel importante na formação do gosto pela dança cênica e no preparo do público para o desfrute desse tipo de espetáculo.

Em fins do Oitocentos iniciou-se um processo de valorização das atividades físicas. Mens sana in corpore sano deixou de ser um jargão perdido na Antigüidade e passou a ser posto em prática modificando a mentalidade em relação ao culto do corpo. Nesse contexto, “além da ginástica - benéfica para ambos os sexos - às meninas só eram recomendados exercícios que desenvolvessem os órgãos respiratórios e estimulassem a

313 Tardiamente, o Curso de Desenho e Pintura foi implantado em 1953 no então Conservatório de Música de Rio Grande que, em 1954 elevado à categoria de Escola de Belas-Artes, não limitou-se mais à área musical. Desde o primeiro ano de seu funcionamento o curso já obteve grande público registrando 30 alunos matriculados, sendo , a partir de então oferecido de forma permanente até os dias atuais.(BITTENCOURT, Ezio. O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande: 1922-1954. Rio Grande FURG, 1993. Monografia de Graduação) 314 Várias são as esculturas espalhadas pela cidade destacado-se a produção dos artistas Teixeira Lopes (Monumento a Bento Gonçalves); Humberto Campinelli (Monumento ao Brigadeiro José da Silva Paes e Monumento ao Imperial Marinheiro Marcílio Dias) e Cardoso e De Angelis (Monumento ao Barão do Rio Branco). 315 SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 64.

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elegância, como o canto, a declamação e a dança”, e que, praticamente, restringiam-se a esse sexo.316

O século XX assistiu ao nascimento do ballet moderno com a criação dos Ballets Russes onde despontavam geniais bailarinos como Anna Pavlova, Tamara Karsavina, Vaslav Nijinski e outros, que fascinavam o mundo com seus movimentos. A freqüência de afamados artistas e companhias de ballet internacionais nos palcos do Rio de Janeiro, São Paulo e das metrópoles platinas - a saber: Loie Fuller (a verdadeira criadora da danse serpentinée), Ballets Russes, Felyne Verbist, a inovadora Isadora Duncan, a diva Anna Pavlova, Josephine Baker (a “Vênus de Ébano”) etc. - estimulou, igualmente, o desenvolvimento da arte coreográfica no Rio Grande do Sul, percebido, sobretudo, a partir da segunda metade da década de 1920. 317

Neste sentido, segundo Paulo Moritz e Antônio Corte Real, a primeira experiência porto-alegrense data de 1925 por um conjunto de amadores denominado Troupe Regional formado por ex-alunas de escolas germânicas mantidas pela Sociedade Alemã de Beneficência. Nessa ocasião foi apresentada a fantasia Contos de Fadas coreografando temas de Mozart e Grieg, sob a direção artística de Nenê Bercht. Mais tarde, juntamente com Mina Black-Eckert na assistência técnica, Bercht fundou o Instituto de Cultura Física objetivando “a cultura sistemática do corpo, o desenvolvimento de suas funções físicas e sua educação estética”. Em 1928 o espetáculo de apresentação dos cursos da instituição constava de números de ginástica acrobática e rítmica; movimentos plásticos e estudos de expressão e de números coreográficos.318

Nos Anos Trinta o culto da dança cênica se intensificou em Porto Alegre através da fundação de escolas de duas bailarinas locais, egressas daquele instituto, a saber: Lia Bastian Meyer (1930) e Tony Seitz Petzhold (1934).319

Entre as precursoras no ensino da dança na Zona Sul do Estado, estão Madge Lawson em Rio Grande e Baby Nunes de Souza em Pelotas. Em suas cidades elas possuíam cursos de “ginástica rítmica e danças clássicas”. A primeira apresentação que faço registro da escola de Lawson remonta a dezembro de 1928 e ao palco do Politeama Rio-Grandense.320 O primeiro recital do curso de Nunes de Souza realizou-se em 1933 no Teatro Sete de Abril.321

Nas palavras da bailarina Beatriz Batezat Duarte:

Na década de 20 funcionou na cidade, no antigo prédio do Clube do Comércio, onde atualmente se encontra a Motobrás, a Escola de Dança de Madge Lawson. Madge, rio-grandina nascida a 15 de março de 1904, foi estudar num colégio em Londres, na Inglaterra, freqüentando [...] aulas de dança. Ao retornar a Rio Grande, passou a ministrar aulas de ballet [...]. Dos espetáculos apresentados

316 ARAÚJO, op. cit., p. 313. 317 Cf. MENDES, Miriam. A Dança. São Paulo: Ática, 1985. SUCENA, Eduardo. A Dança Teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Artes Cênicas/Ministério da Cultura, 1988. 318 MORITZ, Paulo A. Dança. In: DAMASCENO, Athos et alii. O Teatro São na Vida Cultural do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: SEC, 1975. p.283. CORTE REAL, Antônio. Subsídios para a História da Música no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Movimento, 1984. p. 184-192. 319 SUCENA, op. cit., p. 486,487. 320 RIO GRANDE. Rio Grande, 4 dez.1928. 321 ECHENIQUE, Guilherme. História do Teatro Sete de Abril, de Pelotas. Pelotas: Globo, 1934. p. 94.

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destacaram-se: O Especto da Rosa, L’après-midi d’un Faune, Pierrot e Colombina.322

Frente à débil estrutura do ensino da dança no país, as primeiras profissionais no Estado obrigavam-se à viagens de estudos e aperfeiçoamento nos grandes centros europeus do ballet.

Para a história da dança no Rio Grande do Sul, o decênio de 1930 foi “decisivo e muito importante, [tanto] para a formação de público, [quanto para] a fixação de valores que, daí por diante, iriam animar os saraus coreográficos e contribuir de maneira eficaz à revelação do repertório clássico e contemporâneo”.323

3.6 - MÚSICA Construída por D. João VI, a Capela Real, com sua orquestra, coro e cantores italianos castrati,324 transformou-se em Capela Imperial após a Independência. O desenvolvimento da vida urbana e o brilho dos saraus determinaram a “laicização” e o crescimento da música no Brasil. Seguiram-se na capital do país a Sociedade Beneficente Musical (1833), o Conservatório de Música (1847) transformado em Instituto Nacional de Música (1890), a Filarmônica Brasileira (1841),a Academia Imperial de Música e Ópera Nacional (1857) transformada em Ópera Lírica Nacional (1860) e outras instituições, com destaque para o Clube Beethoven (1882).325 A Corte, enquanto sede da Monarquia, instalada na cidade mais europeizada do país reproduzia em seus festivos salões o estilo de vida da alta sociedade parisiense do Segundo Império francês, onde não faltava o gosto pela música. Sob o mecenato do imperador a música profana atingiu no Brasil seu esplendor.326 Servindo de exemplo à toda a nação, os ecos da Corte se propagavam pelos domínios de Pedro II.

No Rio Grande do Sul, o desenvolvimento da arte musical relacionou-se, grandemente, com a contribuição cultural dos imigrantes germânicos e italianos.

Uma das primeiras instituições musicais da Província parece ter sido a Sociedade Musical Porto-Alegrense fundada em 1856.327 Seqüencialmente surgiram as bandas musicais União Brasileira, Firmeza e Esperança (1866) e a Euterpe; a Sociedade Musical Filarmônica Porto-Alegrense (1880); a Sociedade Musical Carlos Gomes (1882); a Estudantina Porto-Alegrense (1888) e o Instituto Musical de Porto Alegre (1896)

322 DUARTE, Beatriz B. Dança, Poesia em Movimento – sua memória, através da análise histórico-fotográfica (Rio Grande: 1940-1990). Pelotas: UFPel, 1997. p. 14. (Monografia de Especialização). 323 MORITZ, Dança, op. cit., p. 288. 324 A presença desses cantores na Corte Joanina, foi registrada com surpresa pelo francês J. Arago, em sua obra intitulada Promenade Autour du Monde, Paris, s/d, I, p. 115. (Apud. FREYRE, Sobrados..., p. 459.) 325 AZEVEDO, op. cit., p. 454-456. 326 Nas palavras de Fernando de Azevedo “era, de fato, grande, no Império, o número de jovens que vinham para o Rio de Janeiro ou eram enviados à Europa para fazer estudos a expensas de D. Pedro II que ao sistema de D. João VI, - o de contratar missões artísticas e culturais para o Brasil - , preferiu sempre o de mandar os artistas aperfeiçoar estudos no estrangeiro”. Destes estudantes, o compositor Carlos Gomes (1836-1896), foi o que obteve maior notoriedade. (AZEVEDO, op. cit., p. 475. Cf. ANDRADE, Mário de. Compêndio de História da Música. São Paulo: L. G. Miranda, 1936.) 327 DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.34.

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rebatizado de Club Haydn (1897). Na virada do século surgiu a nova Sociedade Musical Porto-Alegrense (1900). Em 1908 foi fundado o Conservatório de Música, integrante do Instituto Livre de Belas-Artes do Rio Grande do Sul, oferecendo cursos de Teoria Musical, Solfejo e Canto Coral, Canto ou Instrumentos Musicais, Harmonia e Composição Musical. Nos Anos Dez foram criados o Instituto Musical de Porto Alegre (1913) e o Instituto Brasileiro de Piano (1917) transformado em Conservatório Mozart (1933). O decênio de 1920 presenciou a fundação da Banda Municipal de Porto Alegre (1925) e da Sociedade de Concertos Sinfônicos (1927). Objetivando o culto da música coral e operística, surgiu em 1930 o Orfeão Rio-Grandense.328 Na Pelotas do século XIX destacavam-se, entre outras, as sociedades musicais Club Beethoven, Euterpe e Filarmônica Pelotense, a Orquestra de Ocarinistas Pelotenses e as bandas Lira Pelotense, União, Santa Cecília, Carlos Gomes, Satelina, Apolo. Por iniciativa privada, fundou-se em 1918 o Conservatório de Música daquela cidade. Em 1921 Bagé ganhou seu Conservatório de Música estabelecido por iniciativa do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul, tendo transformado-se em Instituto Municipal de Belas-Artes em 1937.329

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Em Rio Grande as atividades musicais apresentavam-se mais cuidadas que as belas-artes e a dança. Ao longo do Oitocentos muitas formações são registradas atuando em variados ambientes sociais: Banda Musical Rio-Grandense (1865), Sociedade Musical Lira Artística (1872), Sociedade Musical Floresta Rio-Grandense (1874), a Banda do Clube Saca-Rolhas (1887), Sociedade Musical Duas Coroas (1888), Banda Gioachino Rossini (1890), Club Musical Carlos Gomes (fundado em 1894), Grupo Musical Mercadante (1895).330

A imprensa local informa que em janeiro de 1902 as sociedades pelotenses Recreio Operário e União Democrata em visita a suas co-irmãs locais foram recebidas pelas bandas musicais Floresta Rio-Grandense, Duas Coroas, Fanfarra Garibaldi, Lira Artística, Santa Cecília e a da União Operária. O primeiro lustro do século XX também registrou a Estudantina do Clube Caixeiral - conjunto orquestral composto, principalmente, por instrumentos de cordas (violões e bandolins), a Sociedade Musical Apolo (fundadas em 1903), a Banda Musical do Círculo Pietro Mascagni (fundada em 1904) e o Grupo das Safiras: fundado em 1905 era composto por moças e objetivada dar concertos vocais e instrumentais em residências particulares.331

Em 1920 os músicos Guilherme Halfeld Fontaínha e José Corsi fundaram em Porto Alegre o Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul, destinado a

328 Um dos importantes espaços musicais de Porto Alegre era o Auditório Araújo Viana, construído na década de 1920, onde realizavam-se freqüentemente retretas públicas. 329 Contexto histórico elaborado a partir de: DAMASCENO, Palco..., op. cit., passim. CORTE REAL, op. cit., passim. CARO, Herbert. Concertos e Recitais: 1900-1973. In: DAMASCENO et alii.. O Teatro..., op. cit., p. 299-400. CALDAS, Pedro H. História do Conservatório de Música de Pelotas. Pelotas: Semeador, 1992. p. 17-26. MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas. Pelotas: UFPel/Livraria mundial, 1993. p. 155. ROCHA, Cândida I. Madruga da. Um Século de Música Erudita em Pelotas: 1827-1927. Porto Alegre: PUCRS, 1979. (Dissertação de Mestrado). 330 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, jan.1941–dez.1950. 331 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, jan.1941–dez.1950.

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incrementar o interesse pela arte musical por meio da criação de conservatórios de música no interior do Estado e a promoção de concertos e recitais realizados por artistas nacionais e internacionais de renome. Já em 1921 a instituição tinha patrocinado a instalação de seis escolas “guiadas com carinho, regidas pelos mais severos processos didáticos, constituindo-se em cada localidade, em verdadeiros centros de cultura musical.”332

Desta iniciativa decorreu a fundação do Conservatório de Música de Rio Grande, instalado no pavimento superior do amplo edifício que abrigava o Clube Beneficente de Senhoras, situado à rua Carlos Gomes, n.o 585 que, arrendado à Municipalidade, sofreu diversas adaptações às novas necessidades.333 Sua inauguração deu-se em 1o de abril de 1922, com um concerto de apresentação dos professores da novel instituição: o violinista Siemed Marra acompanhado ao piano por Alice Brito; o pianista Tasso Corrêa e o cantor Andino Abreu, aos quais a “assistência aplaudiu, com vivo entusiasmo.”334

Subvencionada pela Intendência Municipal a escola era “mantida e dirigida pelo Centro de Cultura Artística, tendo por fim a difusão de uma verdadeira cultura musical, acessível à mocidade e o preparo de candidatos a exames e ao professorado, formando bons musicistas e elevando o diletantismo musical a um nível de perfeição tanto quanto possível.”335 A direção do conservatório ficou sob a responsabilidade do professor Tasso Bolívar Dias Corrêa até 1923 quando assumiu o cargo o professor Heitor Figueira de Lemos (1924-1950).336

FOTO 13 – Cartão postal apresentando o edifício do Conservatório de Música de Rio Grande, na década de 1920. Editora Pitombo Lima. Atualmente, a pomposa parte superior deste frontispício eclético encontra-se completamente descaracterizada, pouco dela restando. Extraído de: BITTENCOURT, Ezio. O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande: 1922-1954. Rio Grande: FURG, 1993. p. 8. (Monografia de Graduação)

Desde sua fundação a instituição ofereceu os cursos de Teoria e Solfejo,

Piano, Violino e Canto. O Conservatório passou a preencher uma lacuna na sociedade local, tornando-se núcleo irradiador da cultura musical, regulando o ensino público da música, incentivando o prazer da arte e formando profissionais que atuavam nos mais variados ambientes: cine-teatros, rádio-teatros, cinemas (já que as películas não eram sonoras), cafés, salões, residências, cabarets, igrejas, praças, cemitérios, etc. Muitos foram os compositores, regentes e professores que nele realizaram seus estudos. Em seu auditório a instituição promovia, periodicamente, concertos e recitais com artistas famosos em excursão pelo Estado e a audição anual dos alunos. Todavia como este não possuía muitas localidades, tornava-se freqüente a utilização dos espaços teatrais da cidade por ocasião de grandes espetáculos.

332 Transcrição do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre reproduzido no Jornal Rio Grande, de Rio Grande em 25 de outubro de 1921. CORTE REAL, op. cit., p. 294. 333 RIO GRANDE, Rio Grande, 19 jan. 1922. 334 ATA da sessão solene de inauguração do Conservatório de Música de Rio Grande em 1o de abril de 1922. 335 RIO GRANDE. Rio Grande, 11 jan. 1922. 336 BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit.

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Em estudo intitulado O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande (1922-1954) apresento os números referentes as matrículas dos alunos da escola.337 Aqui reproduzo o contingente discente matriculado nos Anos Vinte e nos Trinta, nos cursos oferecidos:

TABELA 3 Década Alunos Teoria e Solfejo Piano Violino Canto 1922-1929 507 443 412 60 24 1930-1939 684 505 560 112 26 Total 1.191 948 972 172 50

De 1922 a 1939 a instituição registrou 1.191 alunos matriculados; desses 1.042 eram mulheres e 149 eram homens. O curso de Teoria e Solfejo era o que possuía o número mais elevado de alunos, num total de 948 estudantes (822 mulheres e 126 homens). O curso era praticamente obrigatório, sendo dispensados somente os alunos com formação na disciplina obtida em aulas particulares e comprovado aprendizado. Nesse período, 134 alunos foram liberados do referido curso. O curso de Piano era o mais procurado dentre os instrumentais, perfazendo um total de 972 alunos (919 mulheres e 53 homens), seguido pelo de Violino com 172 alunos (83 mulheres e 89 homens) e pelo de Canto com 50 estudantes, exclusivamente, do sexo feminino.338 GRÁFICO 1 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Por curso. Década de 1920. Extraído de: BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit., p. 15. GRÁFICO 2 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Por curso. Década de 1930. Extraído de: BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit., p. 15.

Em quase todos os cursos oferecidos pelo Conservatório, e de uma forma em geral, a grande freqüência feminina correspondia às alunas entre os 15-19 anos seguido pelas de 10-14 anos de idade. Uma exceção é observada no curso de canto, onde a maior freqüência incidia na faixa etária dos 15-19 anos seguida da dos 20-24 anos de idade. O público masculino, numericamente inferior, comportava-se de forma distinta: predominava a faixa etária dos 10-14 anos seguida dos 15-19 anos de idade. Em síntese, a população freqüentadora, apresentava-se maciçamente jovem em ambos os sexos. A aceleração das relações capitalistas de produção no Brasil, decorrente da Primeira Guerra Mundial, da Crise de 1929 e da Revolução de Trinta, impôs novas e crescentes exigências culturais, quantitativa e qualitativamente. Intensificando-se a

337 Ibid. Este levantamento foi realizado a partir de uma pesquisa direta nas atas de matrículas dos alunos da escola, estendendo-se até o ano de 1954. 338 É interessante notar que o canto masculino só foi desenvolvido no Conservatório durante a década de 1940, entre os anos de 1944 e 1948 contando com 11 alunos, estando cerca de 70% destes entre os 15-19 anos, 20% entre os 10-14 anos e 10% entre os 25-29 anos de idade. (Cf. BITTENCOURT, O Conservatório... , op. cit., p.12.)

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comercialização dos produtos da cultura as criações artísticas se tornaram rendosas mercadorias e seus produtores transformaram-se em trabalhadores. O amadorismo foi substituído pelo profissionalismo, auferindo um novo status social àqueles que nas artes tinham seu sustento. Cresceu o número de artistas oriundos das camadas populares e com eles novas manifestações mais próximas de nossa gente.339 Antes da fundação do Conservatório, o ensino da música em Rio Grande era ministrado através de aulas particulares em residências, clubes sociais (destacando-se a Sociedade Instrução e Recreio) ou em estabelecimentos de ensino regular, sendo a formação musical considerada essencial na constituição da boa educação, sobretudo das meninas pertencentes às classes economicamente privilegiadas.340 Sem dúvida, um dos fatores que muito limitava o acesso ao aprendizado da música era, a aquisição dos instrumentos musicais. Por outro lado, o contato contínuo do público com grandes companhias líricas, obras dos mais célebres compositores e famosos artistas do ramo, fomentava o interesse pela arte e a formação de uma sensibilidade específica, necessária ao seu fruir. Nas palavras de Damasceno:

Companhias de Óperas e Companhias de Operetas que no século XIX [e primeiros decênios do XX] visitaram nossas principais cidades - Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas - brindaram-nos com alguns professores de música e canto. Fosse porque essas companhias às vezes aqui se dissolvessem, em virtude de dificuldades, devidas menos à falta de receptividade local para espetáculos de gênero do que a competições, atritos e desajustes de seus quadros e que nestas bandas, coincidindo com a terminação de contratos, se extremavam e vinham à tona, fosse porque as condições do meio já então facilitasse e ensejassem o emprego lucrativo de aptidões daquela ordem - o certo é que vários figurantes de tais conjuntos aqui abandonariam o teatro [lírico] e, radicando-se entre nós, acabariam exercendo com proveito o magistério, tanto público, quanto particular.341

O comércio de instrumentos e de partituras musicais alimentava as necessidades locais para o desenvolvimento musical. Nesse sentido, tornou-se fundamental o surgimento do gramofone. Graças a esse aparelho – que adquiriu grande popularidade nos saraus dos Anos Vinte, com seus discos de 78 rotações - abriu-se a possibilidade de acesso imediato às obras dos grande compositores e a rápida formação de uma discoteca, comparável às coleções de músicas de qualquer monarca europeu do século XVIII. Se os

339 O desenvolvimento da técnica e dos meios de comunicação de massa promoveu uma estandartização da cultura, que intensificou-se após a Segunda Guerra Mundial, divulgando a chamada mass culture. (Cf. SODRÉ, op. cit., p. 63,64,70,75). 340 O aprendizado do piano tornava-se um indicador de status. Visto como um dos símbolos materiais da elevação cultural, a aquisição do instrumento e sua entronação na sala de visitas constituía-se numa prática corrente entre os mais prósperos. Ao piano, as moças burguesas exibiam-se nos saraus executando melodias românticas e “civilizadas” de Chopin, Schumann e outros compositores europeus. 341 DAMASCENO, Artes..., op. cit., p. 282-283.

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anos do Entre-Guerras (1919-1938)342 colocaram o gramofone e os discos ao alcance das massa foi, sem dúvida, o rádio, utilizando-se destes e enquanto poderoso meio de comunicação de massa, o verdadeiro responsável pela ampliação do contato da população com o universo da música. Das artes, sem dúvida, ela foi a mais afeta pelo aparelho, que definitivamente a introduziu na vida cotidiana das pessoas. A técnica moderna e a indústria aumentaram significativamente as possibilidades de lazer urbano e produziram uma verdadeira socialização e estandartização da arte e da cultura nos moldes burgueses. Em nosso país, a radiodifusão foi a grande responsável pela propagação da música popular brasileira, como também o foi em todo o mundo utilizada para a publicidade comercial e a propaganda política.343 Em 1928 o Grêmio Lusitano inaugurou sua “tuna” - grupo musical organizado por estudantes.344

~~~ Incontáveis são os nomes relacionados às atividades musicais em Rio Grande345; todavia, merecem especial homenagem os maestros José Faini (1866-1949)346, Antenor de Oliveira Monteiro (1872-1948)347, Hermínio de Morais (1883-1935)348 e a

342 A expressão “Entre-Guerras” é utilizada para nomear o período existente entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Freqüentemente, referencia, também as décadas de 1920 e 1930. 343 É justamente a partir de 1932, quando o governo permite a veiculação de propagandas no rádio que este, voltando-se para um público mais amplo, passou a dar especial atenção a música popular brasileira: notadamente ao samba e a marcha. Nesse quadro ascendeu a Rádio Nacional que, em 1940 encampada pelo Estado Novo, passou a servir-lhe de meio de publicidade. No mesmo ano foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) promovendo o governo e controlando, através de rígida censura, toda a imprensa e os meios de comunicação em geral. 344 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 113. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 3 dez. 1945. 345 Um dos mais antigos professores de música da cidade foi o espanhol Miguel Ravassa (1804-1874). O século XIX também registrou os nomes do professor Bernardino de Barros (1833, na regência da orquestra do Teatro Sete de Setembro); professor de flauta Acilles Malavassi (1855), dos maestros José Maria Gomes (1856), Cardim (1862, na regência da orquestra do Sete de Setembro), Giuseppe Vignoli (radicado na cidade em 1865, aqui faleceu em 1892), do professor de violino Eduardo Cavalcanti e de outros mais. (M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 21 abr. 1944; 29 jul. 1942; 2 mar. 1945; 20 nov. e 30 ago. 1943.). Os prospectos informativos dos vários espaços teatrais existentes na cidade no período de 1920 a 1940 revelam muitos nomes observados na regência de orquestras e conjuntos musicais atuando nestes ambientes: Mário Silva (1920); Eloy Celis (1920); Lili Schmidt Tavares (1922, na orquestra do Cine-Teatro Guarani); Humberto Casella (1928, na regência da orquestra do Politeama Rio-Grandense); Adolfo Corrêa (1930); Ângelo Tagnin (1930, na regência da orquestra do Teatro Sete de Setembro); Rafael Mugica (1932); Manoel Mendes (1932); Maciel Gomes da Silva (1932, na orquestra Estrela do Sul); José Dias de Souza (1932, na orquestra do Grêmio Lírico Dramático Guarani); Arlindo Ávila (1933, regendo o Choro Liberal); Adélia Piragine (1935, na regência da orquestra da Troupe Beira-Mar) e seu filho Luiz Nélson, o conhecido “Maestro Piragine” (1935, na regência do Jazz de Ouro); Andercídio Faria (1935, na regência do Jazz Sem Rival); Henrique Pires (1939, na regência do Jazz Namorados da Lua); Eduardo Gordilho; Clarício Silva; Antônio Gomes; etc. (COLEÇÃO de Prospectos de Espaços Teatrais. Arquivo Coriolano Benício. Centro de Documentação Histórica Prof. Hugo Neves. Universidade do Rio Grande, Rio Grande.) 346 O maestro italiano José Faini dedicou-se ao ensino da música em aulas particulares e no Conservatório de Música. Deixou-nos vasta obra musical em que se contam peças para canto, violino, piano, corais, música de câmara (trios, quartetos, e quintetos) e quatro missas solenes para coro e orquestra. É autor da música do hino da Cidade do Rio Grande. 347 Um dos maiores intelectuais rio-grandinos foi professor, historiador, conferencista, poeta, jornalista, cronista, teatrólogo e musicólogo. Lecionou por anos violino, bandolim, teoria e solfejo, realizando com seus

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professora Valeska Inah Emil Martensen349, por suas produções artísticas e, sobretudo, pelos valiosos serviços prestados em prol do desenvolvimento cultural da cidade, notadamente na organização de vários espetáculos públicos com os talentos locais. FOTO 14 – Concerto local realizado em dezembro de 1927 no Cine-Teatro Carlos Gomes, em benefício da Santa Casa de Rio Grande. Cenários de Bastos Guerra. No palco, o Coro das Fiandeiras, da ópera Navio Fantasma, de Wagner. Da esquerda para a direita: Inah Emil Martensen, Merguerite Barcelane, Hortência Llopart, Olga Levinsohn, Irene Kraft, Nair Nobre, Ercília Tavares, Suzana Klinger, Marina Ennes, Alice Llopart e Stella Cramer. Extraído de: Fototeca do Centro Municipal de Cultura “Inah Emil Martensen”. Rio Grande. 3.6 - DRAMATURGIA Durante o século XIX muitos foram os amantes da literatura seduzidos pela dramaturgia. Todavia, raros foram os dramas e as comédias impressos, gerando por anos, uma idéia injusta de que as letras cênicas pouco desenvolveram-se no Rio Grande do Sul. Se muitas dessas peças perderam-se no tempo, os periódicos de época e os prospectos dos teatros revelam inúmeros títulos e autores. Por iniciativa do rio-grandino Apolinário Porto Alegre, fundou-se em 1868 na capital da Província o Parthenon Literário, importante instituição cultural, constituída por quase uma centena de sócios agrupando escritores renomados como também beletristas desconhecidos. A sociedade promovia saraus literários e espetáculos teatrais, incentivando entre seus associados o cultivo das letras cênicas e estimulando o teatro amador. Sua ação rapidamente irradiou-se pelas principais cidades do Rio Grande do Sul, estimulando o aparecimento de sociedades dramáticas, autores e atores regionais.350

alunos diversas audições públicas em teatros e clubes. Em seu legado musical destacam-se várias obras: hinos; peças religiosas; composições para piano e violino; músicas para revistas teatrais, operetas (Eva, Amor de Príncipe, Geise, I Gramatieri e Mimi, de Iráclito Dias e Pecado de Luizinha, de Frederico Carlos de Andrade); canções sertanejas; polcas para bandas musicais; mazurcas para instrumentos de sopro e percusão, etc. (NEVES, Vultos..., op. cti., p. 49-50.) 348 Maestro, compositor e músico da cidade foi autor da letra e música de várias operetas: Amor de Gaúcho, A Cruz da Estrada, Mexicanos e Fuzileiros, No tempo da Flora, Visão de Glória.(MARTINS, Ari. Os Nossos Autores Dramáticos. In: CONGRESSO SUL-RIO-GRANDENSE DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA, 3, Porto Alegre, 1940. Anais... Porto Alegre, Prefeitura Municipal, 1940, v.3, p. 1430.) 349 Professora de canto, foi grande incentivadora do teatro lírico local organizando a montagem de várias óperas e operetas com suas alunas (O Navio Fantasma, Madame Butterfly, Aída, etc.), assim como concertos e recitais com repertório clássico e popular. 350 Segundo Damasceno, embora existissem na capital da Província alguns conjuntos teatrais amadoristas como o Grupo do Teatrinho Particular que atuava na Casa da Ópera (1794-1835) e os Ginásio Dramático e Teatral Rio-Grandense representando no palco do Teatro D. Pedro II (1838-1857) foi somente com o estímulo da inauguração do Teatro São Pedro (1858) que “sucessivas sociedades dramáticas particulares começarão a organizar-se entre nós, dessa feita com todas as possibilidades de vingar, como de fato vingariam. A primeira delas - a Sociedade Dramática Particular Ginásio do Comércio, data de meados de 1866 [...].” Entre as várias sociedades dramáticas particulares registradas pelo autor em Porto Alegre no século XIX destacam-se por sua longa periodicidade: a S.D.P. Luso-Brasileira (fundada em 1874); S.D.P. União Militar (fundada em 1876) e a S.D.P. Filhos de Talia (fundada em 1886). (DAMASCENO, Athos. O Teatro São Pedro e as Sociedades Dramáticas Particulares da Cidade no Século XIX. In: _______. et alii. Op. cit., p. 27-45.)

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A construção de teatros e congêneres em Rio Grande a partir de 1832 - quando ergueu-se o Teatro Sete de Setembro - viabilizou o desenvolvimento da dramaturgia na cidade, assim como de uma vasta gama de gêneros artísticos voltados ao espetáculo.

Devido a sua privilegiada posição geográfica e boa situação econômica no cenário sul-rio-grandense do século XIX, Rio Grande transformou-se em pólo de atração populacional e movimentado centro urbano ao sul do país, tornando-se ponto obrigatório às companhias artísticas em excursão pelo Brasil Meridional e Região Platina e adquirindo também a qualidade de centro cultural.

A grande freqüência de conjuntos dramáticos nacionais e internacionais, sobretudo observada a partir da segunda metade do Oitocentos, fomentava o gosto pela ribalta. A arte dramática apresentava-se como uma das mais importantes formas de lazer, entretenimento e cultura. Nesse contexto e assim entendida, proliferavam as sociedades dramáticas particulares locais - verdadeiras escolas da arte da representação - o que confirma as palavras de Olynto Sanmartin ao dizer que “o ardente amor pela arte dramática era, até o fim do século passado, verdadeiramente contaminador.”351

Em Rio Grande fervilhavam as sociedades e grêmios dramáticos amadores que objetivavam, de uma forma em geral, a recreação por meio de diversões teatrais e o desenvolvimento da literatura dramática nacional. Importante também era o caráter assistencial de muitas agremiações. Dentre elas estavam:

Sociedade Dramática Particular Recreação Rio-Grandense (1849); Sociedade Dramática Rio-Grandense (1856); Sociedade Dramática Particular Harmonia Rio-Grandense (1862); Sociedade Dramática Particular Talia Rio-Grandense (1862); Sociedade Dramática Particular Alemã (1864); Sociedade Dramática Recreio Comercial (1865); Sociedade Dramática Particular Recreio da Mocidade (1865); Associação Dramática Juvenil (1866); Sociedade Dramática Particular Ginásio Familiar (1866); Sociedade Dramática Talia (1867); Sociedade Particular Filo-Dramática (1867); Sociedade Dramática Particular Apolo (1867); Sociedade Dramática Melpômene (1869); Sociedade Dramática Particular União Artística (1869); Sociedade Dramática Particular Luso-Brasileira (1869, formada por empregados do comércio); Sociedade Particular Fênix Rio-Grandense (1871); Grêmio Ginásio Dramático (1878); Sociedade Culto ao Progresso (1879); Sociedade Dramática Hebe (1879, fundada por comerciários); Grêmio Dramático do Clube Carnavalesco Boêmios (1880); Grêmio Dramático Rio-Grandense (fundado em 1885); Sociedade Dramática Particular Filhos da Talia (fundada em 1886); Núcleo Dramático Castro Alves (fundado em 1886); Sociedade Dramática Particular Tentativa (1887);

Em Pelotas salientavam-se “as rivais sociedades conterrâneas Discípulos de Melpômene e Filhos de Talia.” (ECHENIQUE, op. cit., p. 70.). 351 SANMARTIN, Olyntho. O Teatro em Porto Alegre no Século XIX. In: Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia, 3, Porto Alegre, 1940. Separata dos Anais... Porto Alegre. Prefeitura Municipal, 1940. p. 55.

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Grêmio Lírico-Dramático do Clube Saca-Rolhas (fundado em 1887); Grêmio Dramático do Clube Diógenes (fundado em 1888); Grêmio Artístico Industrial (1890); Grêmio Dramático do Clube Recreio Operário (fundado em 1890); Sociedade Culto à Arte (1892); Sociedade Dramática Particular Recreio Militar (1898); Sociedade Dramática Instrução e Caridade (fundada em 1899); Sociedade Recreio Dramático Militar (fundado em 1900) e outras mais.352

Nas primeiras décadas do século XX renovaram-se as sociedades, surgindo:

Sociedade Dramática União Militar (fundada em 1901); Grêmio Lírico Dramático do Clube Caixeiral (fundado em 1901); Grêmio Lírico-Dramático da Sociedade União Operária (fundado em 1902); Sociedade Dramática João Caetano (fundada em 1904, com sede à rua Riachuelo, n ° 42, 3 °

andar); Grêmio Dramático do Grupo Carnavalesco Arara (fundado em 1905); Grêmio Dramático do Clube Carnavalesco Apolo (1905); Grêmio Dramático da Sociedade União Européia (1905); Grêmio Dramático dos Estudantes (1905); Grêmio Dramático do Clube Guarani (fundado em 1905); Grêmio Dramático Crisântemo (1906); Grêmio Dramático Colomi (1907); Grêmio Dramático Rui Barbosa (fundado em 1908); Grêmio Dramático João Caetano (Fundado em 1909); Grêmio Dramático do Club Rio-Grandense (1912); Grêmio Dramático do Sport Club União Vencedor (fundado em 1912, durou cerca de 11 anos); Grêmio Dramático Artur Rocha (fundado em 1912); Grêmio Dramático Artur Azevedo (fundado em 1913); Corpo Cênico Pinto da Rocha (fundado em 1916); Grêmio Dramático Beneficente Infantil Saca-Rolheiro (1916); Grêmio Lírico-Dramático João de Saldanha, da Liga Monárquica D. Manoel II (1918); Grêmio Lírico-Dramático Filhos do Trabalho (fundado em 1919, com sede à rua Vileta (atual

Napoleão Laureano), entre Vitorino e Jataí (atual Dr. Nascimento); etc.353

Nos Anos Vinte e nos Trinta além dos antigos grêmios, observo:

Grêmio Dramático 15 de Novembro; Grêmio Dramático do Foot-Ball Club General Osório; Grêmio Lírico-Dramático Cruzeiro; Grêmio Lírico-Dramático Rio Branco; Grêmio Lírico-Dramático União dos Amadores; Grêmio Dramático Germinal (fundado em 1927); Grêmio Lírico-Dramático Carlos Santos (fundado em 1928); Grêmio Dramático da Petizada Bracista (fundado em 1929); Grêmio Cômico-Lírico Filhos do Oriente;

352 Informações obtidas em: MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro - I, II e III. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 19, 21 e 24 ago.1946 e BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, jan.1941-dez.1950. 353 BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, jan.1941-dez.1950.

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Corpo Cênico Gaúcho; Grêmio Lírico-Dramático Luso-Brasileiro; Grupo Teatral de Cultura Proletária; Corpo Cênico do Clube Carnavalesco Anjinhos da Terra; Corpo Cênico dos Folgados; Companhia Silva Filho; Grêmio Lírico-Dramático União Fabril; Corpo Cênico Irresistíveis (fundado em 1939) e outros.

Nesse período devo, entretanto, salientar a importante atuação do Grêmio Lírico-Dramático da Sociedade União Operária, da Companhia Lírico-Dramática Guarani e da Companhia Beira-Mar, que dominavam os palcos locais.354 O Grêmio Lírico Dramático da Sociedade União Operária estreiou em 12 de abril de 1902 no Teatro Sete de Setembro levando à cena o drama José, do rio-grandino Artur Rocha.355 O periódico Eco do Sul, em 18 de abril de 1904 assim comentou o espetáculo em comemoração da fundação do grupo:

No Politeama realizou-se perante avultada concorrência o espetáculo destinado a comemorar o aniversário de fundação do Grêmio Dramático da União Operária. Aquela casa de espetáculos apresentava agradável aspecto, pois foi ornamentada previamente com gosto e elegância. Dos camarotes pendiam rendilhadas cortinas e festões de flores, destacando-se diversos escudos com várias inscrições. O camarote principal - pertencente ao proprietário do Politeama - estava destinado à imprensa, vendo-se todos os jornais de Rio Grande na parte superior da grade. Muito agradou a representação do Sonho, drama aparatoso levado à cena pela segunda vez, com vestuários adequados à época. Abundantes aplausos e chamados à cena tiveram os intérpretes amadores.

O Relatório da Presidência da Sociedade União Operária de 1917, revela que seu grêmio dramático contava com 263 peças entre dramas e comédias.356 A Companhia Lírico-Dramática Guarani foi idealizada pelo ator, diretor e cenógrafo português Bastos Guerra. Estreiou no Cine-Teatro Guarani em 6 de janeiro de 1923 com a representação do drama A Rosa do Adro. Em 15 de janeiro de 1933 o ator e diretor Coriolano Benício organizou a Companhia Beira-Mar. Adotando inicialmente o nome de Troupe Beira-Mar e apresentando apenas textos de curta duração, estreiou no palco-salão da Sociedade União

354 Informações obtidas, sobretudo em COLEÇÃO de Prospectos, op. cit. 355 ECO DO SUL. Rio Grande, 14 abr. 1902. 356 Desse montante, somente 14 peças restam, preservadas no Centro de Documentação Histórica, da Universidade de Rio Grande, e que possibilita análises sobre as temáticas e as abordagens de assuntos de interesse do operariado rio-grandino. Todas são manuscritos sendo, transcrições de peças ou criações dos próprios associados. Duas peças não possuem título, as outras denominam-se: Helena, Os Escravos, Morto Vivo, Os Salteadores da Floresta Negra, Um Mistério de Família, O Poder do Ouro, Divino Perfume, O José do Telhado, O Empedido do Coronel, Afonso o Operário, Os 20 Botões e Adélia Carré. (PEÇAS teatrais. Arquivo da Sociedade União Operária. CDH -URG. Rio Grande.)

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Operária com a peça intitulada Amor Louco e a revista de um ato, Você Vai..., de autoria de Benício. FOTO 15 – Integrantes da Companhia Lírico Dramática Guarani. Cenários Bastos Guerra. S.d. Extraído de: Centro de Documentação Histórica “Prof. Hugo Neves”. Universidade do Rio Grande. Rio Grande. A existência de espaços teatrais e sociedades dramáticas sempre dispostas a encenarem novos textos eram, sem dúvida um estímulo aos beletristas cênicos. Inclusive, muitos literatos renderam-se à dramaturgia na medida em que ela proporciona uma experiência coletiva e uma imediata expressividade comunicativa com o público que, por meio de livros e jornais nunca lhes foi possível. O ato de exercer influxo sobre uma platéia, é um fato que não deve ser subestimado e que revela o íntimo desejo do homem no contato direto com o próximo.

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Assim deve ser entendido o elevado número de dramaturgos nascidos em Rio Grande ou que nela residiram, contribuindo para o desenvolvimento das letras cênicas no Rio Grande do Sul. Compõem a importante lista os nomes de: Manoel José da Silva Bastos (1825-1861)357, Bernardo Taveira Júnior (1836-1892)358, Apolinário Porto Alegre (1844-1904)359, Luís Canarin Júnior (1847-1917)360, Artur Rodrigues da Rocha (1859-1880)361, Revocata Heloísa de Melo (1860-1945)362, Artur Pinto da Rocha (1862-1930)363,

357 Obras: O Castelo de Openheim ou O Tribunal Secreto (1850, drama), A Veneziana em Paris (1850,drama), A Madrasta (1852,drama), Procurador Zacarias (1852,comédia), Quem Pensa Não Casa (1856, comédia musicada), Os Brilhantes de Minha Mulher (1857, drama), Um Testamento Falso (1857, drama), O Primo do Diabo (1858, drama), A Filha do Pescador (1858, comédia), Recordações da Juventude (1858,comédia), Exemplo de Honra (1858, drama), O Louco do Ceará (1859, drama), Os dois Gêmeos (1859, comédia), Soldado Martins ou O Bravo de Caceres (1859, drama), Apuros de Uma Noiva (1859, comédia), Quem Porfia Mata Caça (1860, comédia), Os Homens de Honra (1861, drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 154. MONTEIRO, Antenor. Manoel José da Silva Bastos: Um Dramaturgo Rio-Grandense. In: Anais..., op. cit., p. 1117-1126.) 358 Obras: Coração e Dever (1862, drama), O Guarda-Livros (1865, drama), A Atriz (1868, drama), Anjo da Solidão (1869, drama), A Virtude (1869, drama), O Voluntário (1869, drama), Heroísmo Feminino ou Joana D’Arc Brasileira (1870, drama), Anjo Caído , Celina, Luíza (1870, dramas), A Soberba, Um Usuário. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 88. MARTINS, Ari. Os Nossos Autores Dramáticos. In: Anais... op. cit., p. 1421.) 359 Obras: Triunfo da Esquadra Brasileira (1865, drama), Caim e Jafet (1868, drama), Sensitiva (1873, drama), Mulheres (1873, comédia), Os Filhos da Desgraça, Ladrões da Honra (dramas), Iriena, Tobis, Epidemia Política, Benedito (comédias).(NEVES, Vultos...,op. cit., p. 68. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1421.) 360 Obras: O Hóspede (1887, drama), Aspirações Galináceas (1892, fantasia musicada por Hermínio de Moraes).(NEVES, Vultos...,op. cit., p. 148.) 361 Obras: O Filho Bastardo (1875, drama), Anjo do Sacrifício (1875,drama), Marido Por Meia Hora (1875, comédia), Esquecido (1877, comédia), José o Distraído (1878, drama), A Procura de Musas (1880, comédia em parceria com João Moreira), Os Filhos da Viúva (1882, drama), Deus e a Natureza (1882, drama), A Filha da Escrava (1883, drama), Não Faças aos Outros... (1885, comédia), Não Peças aos Outros (1885, comédia), Lutar e Vencer (1887, drama), Casamento em Concurso (1887, comédia). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 85-86. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1424-1425.)

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Julieta de Melo Monteiro (1863-1928)364, Alexandre Fernandes (1863-1907)365, Alberto Correia Leite (1871-1898)366, Antenor de Oliveira Monteiro (1872-1948)367, Frederico Carlos de Andrade (1878-1940)368, João Crisóstomo de Freitas (1882-1950)369, Ernani Guaragna Fornari (1899-1964)370, Antônio Gomes de Freitas (1899-1946)371, Arnold Coimbra (1902-1951)372, Érico Cramer (1906-1978)373, Coriolano de Araújo Benício (1911-1984)374, Guedes Coutinho375, Álvaro Delfino376, Carlos Alberto Minuto377 e outros.

Muitos textos elaborados por dramaturgos locais eram encenados pelas companhias artísticas visitantes e, por vezes, incorporados aos repertórios de suas tournées.

∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼∼ 362 Obras: Grinalda de Noiva, Mário (1902) e Coração de Mãe (dramas em parceria com sua irmã Julieta de Melo Monteiro) (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 170. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.) 363 Obras: O Dote da Enjeitada (1885, drama em parceria com Júlio Martins), A Farsa (1903, drama), Serenata das Flores (1904, drama), Talita (1906, drama), Visões de Colombo (1908, poema dramático), Ave Maria (1916, drama), A Estátua (1918, drama), O Dilema (1919, drama), Entre Dois Berços (1919, drama), Sonho de Zagala (drama em versos), O Divórcio (drama), Copo (drama), Guiomar e Samaria (drama em versos), Vanessa (drama em versos), Contrastes (drama em versos), Sorte Grande (comédia), O Vagabundo (comédia),O Esqueleto (comédia), A Padeira de Aljubarrota. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 82. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.) 364 Obras: Além das supracitadas em parceria com sua irmã Revocata, compôs Noivado no Céu (1899, drama), Segredo de Marcial (1900, drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 144. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.) 365 Obras: Grito de Consciência (1895, drama), O Diabo na Beócia (1896, revista em parceria com Sílio Bocanera Júnior), A Fror da Arta Sociedade (1897, comédia de costumes), O Meio do Mundo (1898, revista), O Reino do Bicho (1899, revista em parceria com Sílio Bocanera Júnior), Violão na Ponta (1900, burleta regional), As Areias do Prado (1901, revista), A Batalha dos Pássaros (1902, revista em parceria com Sílio Bocanera Júnior), Escritores em Pena (1902, burleta), Adélia Carré (1903, drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.39.) 366 Sob o pseudônimo de “Mário de Artagão”, escreveu: Janina, Feras à Solta, O Grande Exilado, A Taça. (MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.) 367 Obras: O Preconceito (drama), Procurando Noiva (comédia), Aniversário de Lili (opereta), Maria Rosa (drama), Me Avisa na Véspera (revista). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.49.) 368 Obras: Clélia (1904, drama), Os Pombos (1906, drama), A Denúncia do Luar (1909, drama), Sangue (1911, drama), Aguaceiro (1912, comédia), Tá na Hora (1914, comédia), Fim de Baile (1916, comédia), Ânsias de Poeta (1917, comédia em versos), Pecado de Luizinha (1918, comédia em versos), Stá na Hora (1916, burleta). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.126. O TEMPO. Rio Grande, 16 abr.1940.) 369 Obras: Apostolado da Liberdade (1901, drama), Elenora (1903, drama), O Vigário de Monteli (1904, drama), Jacques (1905, drama), Celibatários (1910, drama), O Diabo (1914, drama), Ódio Velho (1915, drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.133.) 370 Obras: Nada (1937, comédia), Iaiá Boneca (1938, comédia), Sinha Moça Chorou (1940, drama) e outras obras no decênio de 1950. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 120. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1429.) 371 Obras: A Cavalgada dos Farrapos, Boa Alma, Eterna Chama, O Sinhô, O Dragão, Estrada Sombria , Dor D’Alma , A Verdade, Nossa Senhora de Joelhos, Triaga, Amor de Apache (dramas), Trigre na Gaiola, Amigo é Amigo, Uma Escola na Roça (comédias). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 55.) 372 Obras: Uma Viagem no Inferno (1940) e várias outras peças nos decênios de 1940 e 1950. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 78.) 373 Obras: Solar dos Alvarengas (1937, novela radiofônica), Recordar é Viver (1939, comédia) e grande produção teatral nas décadas posteriores. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 118.) 374 Obras: Ride Palhaço, Nós Somos da Pária Amada (comédias). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 200.) 375 Obras: A Greve, René, Mostrando o Caminho. 376 Obras: Almas Farroupilha, Mocidade. (MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1431.) 377 Obras: O Perdão da Órfã, Almas Opostas, Para Sua Felicidade. (MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1430.)

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Através do material informativo da programação dos espaços teatrais dá-se o acesso aos nomes de diversos atores integrantes das sociedades e grêmios dramáticos locais nos decênios de 1920 e 1930. Entre os amadores locais seduzidos pelos momentos efêmeros da ribalta, estavam: Bastos Guerra, Silvino Pellegrent, Waldemar Porto, Boaventura Fernandes, Carlos Vitória, José Vitória, Álvaro Bittencourt, Coriolano Benício, Álvaro Porto, Leopoldino Marques, Gervásio Dias, Argeu Silva, Afonso Paes, Antônio Freitas, Álvaro Nobre, Mário Silva, Rômulo Coutinho, Fausto Cruz, Pedro Grellet, João B. Costa, Osmar Batista, Antônio Freitas, etc. No plantel feminino brilham as atrizes Ondina Guerra, Aurora da Silva Nunes, Nilsa da Silva Nunes, Dorvalina Medeiros, Nair Pires, Nilsa Molina, Olga Alves, Zulma Ferreira e Iracema Batista, entre outras. Iniciando carreira de forma amadorística em grupos locais, alguns atores de destacado talento, ingressaram em importantes companhias artísticas nacionais que se apresentavam na cidade, profissionalizando-se na arte e obtendo projeção nos palcos fora do Estado e por todo o país. Este é o caso de Esnard Fonseca, Roberto Piragine, Alberto Lopes, Eufrides Porto, Severo Lemos, Tupi Costa, Carlos Hailliot, Herculano Ribeiro, Procópio Neto, Luiz Bittencourt e Jurema Magalhães. Alcançando o ano de 1943, a cidade de Rio Grande contava com 7 agremiações de diferentes manifestações culturais.378 Diversos foram os gêneros teatrais e múltiplas as formas cênicas levadas ao público rio-grandino. Desde dramas e comédias populares até óperas e ballet a sociedade local ao longo de sua história conviveu com significativa movimentação artístico-cultural. Famosos atores e atrizes nacionais e internacionais representando os mais variados textos dramáticos; companhias líricas com suas prima donas, cantores populares, vedettes sensuais, importantes orquestras... Nesse ambiente fértil às artes cênicas situavam-se as inúmeras sociedades dramáticas, os conjuntos musicais e uma infinita gama de profissionais e amadores relacionados ao setor dos espetáculos da cidade. Em minha exposição procurei resgatar esse contingente. Os espaços teatrais, notadamente os teatros, cine-teatros e sociedades possuidoras de palco, ao mesmo tempo em que constituíam-se em agentes estimulantes ao desenvolvimento artístico-cultural da sociedade forjavam seu próprio público consumidor de lazer, cultura e entretenimento; fiel e sensível à decodificação das diferentes linguagens cênicas às épocas e em devir. A revelação arquitetônica e estética desses espaços constitui-se no capítulo seguinte.

378 PIMENTEL, op. cit., p. 536.

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__________ 4 __________

O ESPAÇO TEATRAL: SEUS USOS, IMAGENS & SIGNIFICADOS

4.1 - IMAGENS E HISTÓRIA

Atualmente, “todo vestígio legado pelo passado é potencialmente admissível

como evidência para o historiador”.379 Cada vez mais os profissionais da história estão se voltando para o material visual como forma de compreender o passado.

Os historiadores utilizam as imagens de várias formas, quer como mera ilustração, documento narrativo, auxílio à memória, substituto de elementos revelados através delas, intérpretes do trajo, do gosto, da moda, dos costumes, dos valores... de uma sociedade em um determinado espaço-temporal.

A fotografia é uma importante marca cultural de um período, tanto pelo passado ao qual nos remete, mas também e, principalmente, pelo passado que traz à tona.

Conforme Ciro Cardoso e Ana Mauad:

Um passado que revela, através do olhar fotográfico, um tempo e um espaço que fazem sentido. Um sentido individual que envolve a escolha efetivamente realizada; e outro, coletivo, que remete o sujeito à sua época. A fotografia, assim compreendida, deixa de ser uma imagem retida no tempo para se tornar uma mensagem que se processa através do tempo, tanto como imagem/documento quanto como imagem/monumento.380

Vista como documento, a imagem fotográfica revela aspectos da vida

material de uma determinada época, que a mais detalhada descrição verbal não daria conta. Como diz o ditado popular: “uma imagem vale mais que mil palavras”. A fotografia pode ser apreendida também como monumento: “aquilo que no passado, a sociedade queria perenizar de si mesma para o futuro”.381 Neste caso, constitui-se em “agente do processo

379 GASKELL, Ivan. História das Imagens. In: BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História. São Paulo: UNESP, 1992. p.267. 380 CARDOSO, Ciro F.; MAUAD, Ana M. História e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema. In: CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.406. 381 Ibid., p.406-407.

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de criação de uma memória que deve promover tanto a legitimação de uma determinada escolha quanto, por outro lado, o esquecimento de todas as outras”.382

As imagens visuais uma vez historicamente contextualizadas possibilitam a obtenção das mais variadas informações sobre as antigas sociedades. Para tanto, a análise deve ir além da pura visibilidade, buscando seu significado mais amplo.

As fotografias de época revelam o passado capturado através de imagens instantâneas, variavelmente fortuitas, impregnadas do Esprit du Temps, plenas de significações culturais. Ao trabalharmos com imagens fotográficas não podemos deixar de ter sempre em mente que elas não são “transparências” do passado nem registros imparciais da realidade. A idéia do “olho inocente” não é mais defensável. A câmera é sempre uma presença intrusa e o fotógrafo um elemento participante. É importante termos igualmente consciência de que as imagens revelam, mas também ocultam elementos, daí sua ambigüidade, riqueza e fragilidade.383

Apresentando-se como importante fonte de pesquisa, a fotografia deve ser entendida como imagem visual das coisas registradas, uma ilusão do real, não o real. Seu poder de convencimento advém muito mais de sua forte eloqüência do que de sua veracidade. A imagem visual vale-se de uma linguagem diferente das coisas e figuras que evoca, pois ela não é a coisa representada, mas a utiliza para falar de outras coisas.

Os espaços teatrais focalizados através das visões dos fotógrafos apresentam múltiplos ângulos e inúmeras leituras: podem ser analisados como espaços produtivos da cidade, como espaços de sociabilidades, como espaços de civilidade, como espaços artístico-culturais, como espaços em constantes transformações... Assim apreendida a fotografia possibilita ver aquilo que não é apenas do domínio do olhar, mas de outros domínios.

Consciente da importância e implicações da utilização das imagens visuais no fazer historiográfico, este estudo pretende-se uma análise iconológica.384 Para tanto, utilizei como fontes primárias, gravura, fotografias e textos literários de época e depoimentos orais, somados a bibliografia especializada para reconstituir arquitetonicamente os espaços teatrais existentes em Rio Grande (do final do século XVIII até a década de 1930) percebendo os significados de suas concepções físicas e estéticas. Foi somente através da utilização de imagens e relatos que viabilizou-se esse resgate quase que arqueológico, uma vez que, assim como grande parte do passado arquitetônico da cidade, os espaços teatrais aqui enfocados atualmente só existem na memória dos mais antigos, em celulose ou em material fotográfico.385 4.2 - ESPAÇOS TEATRAIS E ARQUITETURA A palavra teatro deriva do grego theatron, vocábulo que designa “o local onde se vê.” No decorrer dos tempos esta acepção etimológica sofreu inúmeras mudanças

382 Ibid., p.407. 383 KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989. p. 27. 384 Cf. PANOFSKY, Erwin. Significados nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 47-87. PANSO, Évelyne. L’iconographie et L’iconologie. In: L’Art. Paris: Larousse, 1977. 385 A inexistência de plantas arquitetônicas dessas construções colabora também para a dificuldade da pesquisa.

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adquirindo vários significados. Dentre eles o que me interessa nesse momento é o sentido de espaço arquitetônico destinado à teatralização. Entendido como condição tipicamente urbana de civilização, um espaço teatral é um local social onde se desenvolvem atividades cênicas, notadamente, artísticas e/ou culturais, perante indivíduos voluntariamente reunidos. Este espaço pode ser teatral desde sua origem, possuindo especificamente a função de albergar apresentações cênicas (como por exemplo as Casas da Ópera do século XVIII e os teatros oitocentistas); pode ter sido originalmente teatral, contudo, com o advento do cinematógrafo adaptou-se à nova arte mas manteve suas atividades cênicas (um exemplo são os teatros oitocentistas que transformaram-se na prática em Cine-Teatros); pode ser concebido para espetáculos cênicos e também cinematográficos (exemplifico com os Cine -Teatros que popularizaram-se nas primeiras décadas do século XX); pode possuir múltiplas funções, dentre elas a cênica (cito as sociedades recreativas que, muito comumente durante o século passado e até as primeiras décadas do XX, possuíam em seu salão de festas um pequeno palco fixo) e pode, outrossim, ser improvisado, destinado em princípio à outras funções mas, temporariamente, teatralizado por exigência de um espetáculo (por exemplo tomo um átrio de uma igreja ou uma praça). Além desses, outras tipificações de espaços teatrais, embora menos freqüentes, encontram registro. Valendo-se de uma estrutura, antes de tudo, arquitetônica os espaços teatrais estão intimamente relacionados com a arte de construir. No dizer de Gillo Dorfles:

até mesmo nas formas mais elementares de espetáculo estabelece-se quase por germinação espontânea uma espacialidade absolutamente particular, criada pelo encontro entre o espaço do espectador e o espaço do ator, entre o universo cênico e o universo do público e, deste encontro desprende-se aquele equilíbrio, freqüentemente instável que conduzirá à estruturação sucessiva de uma zona para o auditório (onde este se possa sentar e ouvir, mais ou menos apartado da cena) e uma zona isolada sobrelevada, ou de qualquer modo distinta na qual se possa desenvolver a ação cênica.386

Dessa relação surge a gênese dos diferentes espaços teatrais com suas infinitas e específicas exigências e atributos arquitetônicos. Todo espaço destinado à teatralização resulta da concepção das relações que serão estabelecidas entre os artistas que ocupam a área cênica e o público que preenche o espaço destinado aos espectadores. Analisando especificamente concepções arquitetônicas de teatros, Gilles Girard, Réal Ouellet e Claude Rigault apoiando-se nas idéias de Etienne Souriau distinguem, basicamente, dois “processos”, dois tipos de espaços: o cubo e a esfera.387 O cubo, corresponde aos teatros de influência italiana. Assenta-se no princípio de uma nítida separação entre palco e sala; é o frente a frente de dois locais

386 DORFLES, op. cit., p.186-187. 387 Cf. SOURIAU, Etienne. Le Cube et la Sphère. In: Architecture et Dramaturgie. Paris: Flammarion, 1950. p.63-83.

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apartados pela ribalta. A Sala dos Espectadores nestas construções apresentam frisas, camarotes, galerias, balcões, etc. que, segundo Gilles Girard:

acentuam a desigualdade entre os espectadores: por um lado, o público está dividido em estratos sociais facilmente reconhecíveis; por outro lado, a disposição da sala em forma de ferradura [...] transforma-a num segundo local de espetáculo: vai-se ao teatro para ver mas também para ser visto, para fazer parte do espetáculo.388

Opondo-se a este tipo de teatro está a esfera. O teatro circular389, comum em fins do medievo europeu, propiciava uma união do mundo fictício do ator com o mundo real do espectador, na medida em que o local da cena era completamente rodeado pelo público, constituindo como que um pulsante anel vivo em torno dele. A partir do final da década de 1940 este tipo de concepção arquitetônica teatral, há muito abandonada, foi resgatada nos Estados Unidos da América e na Europa como forma de romper o “frente a frente” de artistas e público. Todavia, o teatro à italiana, como arquitetura teatral, é a forma mais corrente ainda na atualidade.

Além da função orgânico-funcional a arquitetura apresenta preocupações de natureza plástica atreladas à normas e valores culturais de uma época.

A estética evoca o universo que a rodeia e, ao mesmo tempo, penetra nos pensamentos e ações dos homens. Assim, a arte estetiza a vida social. No dizer de Pierre Francastel “o pensamento plástico é um dos modos pelos quais o homem informa o universo”.390

O querer estético é um sintoma cultural de uma sociedade e de uma época revelando-se como valor “simbólico”. A iconologia tem por objetivo descobrir e interpretar este valor.

Para Giulio Carlo Argan “a história é sempre história de homens. Ao ocupar-se de fatos ou de objetos, ocupa-se deles na medida em que são feitos pelos homens”.391 Neste sentido, estudando a arquitetura, busco informações sobre a atividade humana. Entendido como um “produto de civilização” o espaço teatral não é autônomo ao seu mundo social, mas sim revelador deste.

“Desde a Antigüidade mais remota” diz Argan, “a cidade configurou-se como um sistema de informação e de comunicação, com uma função cultural e educativa”.392 Os espaços teatrais devem ser entendidos como espaços arquitetônicos constitutivos, representativos e utilitários de uma cidade: o locus por excelência para uma série de manifestações da coletividade. É através do uso que eles se qualificam na memória urbana sendo, conseqüentemente, identificados social, econômica e culturalmente. Suas utilizações os sedimentam na vida de uma cidade, “alimentam uma tradição, ao mesmo tempo que estimulam a dinâmica de sua mudança; os índices referenciais de um uso mantém-se atualizados e, paradoxalmente, conservam a memória do seu passado”

388 GIRARD, Gilles et alii. O Universo do Teatro. Coimbra: Almedina, 1980. p.129-130. 389 Designação de teatro cujo palco ocupa uma posição central, quer ele seja na realidade circular ou não. 390 FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.4. 391 ARGAN, Giulio C. História da Arte Como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.37. 392 ARGAN, Giulio C. Arquitetura e Cultura. Arquitetura e Urbanismo. n.41, p.66, abr./maio 1992.

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formando um hábito urbano.393 Arquitetonicamente, de um modo em geral, apresentam papel de destaque na dimensão cênica da cidade.

A produção de um espaço arquitetônico gera: um espaço físico, ao ser construído e um espaço existencial ou humano, ao ser utilizado. O espaço físico é o lugar, o cenário que acolhe, permite, favorece ou impede as ações do homem. O espaço existencial é a imagem que o usuário cria deste meio.

O usuário percebe o espaço existencial através de suas dimensões: psicológica (que gera sensações como liberdade, poder, exaltação, extroversão...), semiológica (que cria significados e signos representativos de valores, sentimentos...), formal (que gera estruturas físicas e materiais combinando volumes e formas com recursos da simetria, contraste, proporção, equilíbrio e escala) e social (que cria a idéia das relações entre indivíduos e grupos que vivenciarão o espaço).

Os mais variados tipos de espaços teatrais constituem-se núcleos de criação e difusão artístico-cultural e de manutenção de sociabillidades, estando integrados à vida urbana. O estudo destes espaços de representatividade, de suas manifestações e inerentes relações com a coletividade, deve ser encarado como um elemento articulado à história social e importante nas análises dos diferentes níveis estruturais percebidos na sociedade. Desta forma busca-se a compreensão das verdadeiras ligações existentes entre estes. Num tempo em que os meios de comunicação eram precários e as dificuldades temporais e físicas impunham o isolamento, uma forma de contato com o mundo além dos limites municipais, dava-se através dos espaços teatrais. Por intermédio dos palcos, as cidades presas a seus ciclos próprios, universalizavam-se.394

O edifício de um espaço teatral, uma vez legitimado pela sociedade, torna-se um marco referencial urbano. Enquanto texto não-verbal deve ser apreendido como espetáculo, como imagem, constituindo-se numa rica fonte informacional sobre seus freqüentadores, sobre a cidade, etc.

Isto posto, considero que ao estudar os espaços teatrais não poderia deixar de deter-me em seus aspectos formais, estéticos e nos significados destas concepções.

4.3 - OS ESPAÇOS TEATRAIS EM RIO GRANDE*

4.3.1 - OS PRIMEIROS REGISTROS Durante o Período Colonial, edificou-se no Rio de Janeiro, em 1767, a primeira casa de espetáculos públicos brasileira. A Casa da Ópera do padre Ventura, logo seguida por outras em várias Províncias começaram a dar corpo às incipientes manifestações teatrais no país. Em 1771 o rei D. José I assinou um alvará determinando “o estabelecimento de teatros públicos bem regulados, pois que deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade, visto serem a escola onde os povos aprendem as máximas sãs da

393 FERRARA, Lucrécia. Leitura Sem Palavras. São Paulo: Ática, 1986,.p.21. 394 BITTENCOURT, Ezio. Apontamentos Sobre o Movimento Teatral em Rio Grande no Século XIX. Biblos. Rio Grande: FURG, v.8, p. 135, 1996. * O significado dos termos empregados na descrição arquitetônica dos edifícios aqui abordados podem ser obtidos no glossário que compõe este estudo.

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política, da moral, do amor, do zelo e da fidelidade, com que devem servir aos soberanos, e por isso não só são permitidos como necessários.”395 Nos últimos anos do século XVIII, precisamente em 1794, Porto Alegre, então já sede da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, ganhou seu primeiro teatro denominado de Casa da Comédia: “um prédio adaptado às necessidades de uma casa de tal gênero” com lotação de 400 lugares.396 Athos Damasceno informa que:

apesar dos 36 camarotes de que dispunha o edifício e de uma platéia capaz de comportar mais de trezentos espectadores (a pomposa denominação de Casa da Comédia) era evidentemente ambiciosa. Pois na realidade não passava ele de um mal ajeitado barracão, pobremente feito de madeira ou, melhor como se diria de pau-a-pique, com uma entrada lateral e outra pela caixa do teatro, sem abrigo nem saguão - raso, liso e...amarelo...[...]. Antes da Casa da Comédia; entretanto, o que havia era muito pior: dois mofinos pardieiros, um no Largo da Forca e outro no Largo da Quitanda”.397

A partir de 1797 este “barracão vilarengo” passou a denominar-se Casa da Ópera.398 Manuel Lopes de Almeida revela que, no mesmo 1794 registrava-se em Rio Pardo a existência de um teatro “onde, [em princípios do mês de janeiro] foram representados por quatro noites excelentes comédias com maravilhosas danças, em regozijo ao nascimento da Princesa da Beira”.399 Se o alvará de 1771 foi o toque de alvorecer para o teatro no Brasil, seu grande impulso só veio em 1808 com a transferência da Família Real Portuguesa e da Corte para o Rio de Janeiro e a construção na nova capital do reino de uma grande casa de espetáculos: o Real Teatro São João, inaugurado em 1813, com capacidade para 1.200 espectadores.

Entre essas datas encontra-se o primeiro relato que possuo sobre a existência em Rio Grande de uma construção destinada às atividades teatrais. Em l809, o comerciante inglês John luccock, negociando na cidade, registrou em suas anotações as ruínas de um teatro de madeira, situado próximo à residência do Governador (hoje, a rua General Bacelar, esquina da Pinto Lima).400 Possivelmente, esse teatro fosse do final do século XVIII e apresentasse as mesmas características das modestas Casas da Comédia ou

395 OLIVEIRA, Waldemar de. O Teatro Brasileiro. Salvador: Universidade da Bahia, 1958. p.16. 396 SANMARTIN, op. cit., p. 41-42. 397 DAMASCENO, Palco...,.op. cit., p.3-4. 398 Ibid. Expressão do autor. 399 ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícia Histórica de Portugal e Brasil. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1964. v..2, p.278-280. 400 LUCCOCK, op. cit., p.22-23. Antenor Monteiro em seu artigo Coisas de Teatro (Jornal Rio Grande, 19 ago.1946) diz que Luccock teria encontrado “as ruínas de um teatro de madeira, o São Pedro”, entretanto, o que o viajante inglês escreve é que observou “as ruínas de uma construção de madeira, outrora o Teatro de S. Pedro”. O S. Pedro a que se refere Luccock é a Vila do Rio Grande de São Pedro e não o nome do teatro. Do mesmo equívoco compartilha Maria Luiza Queiroz ao mencionar o “arruinado Teatro São Pedro”. (QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.157.)

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Casas da Ópera percebidas neste período em importantes cidades de várias regiões do país e da Região Platina.401 Na ata da Câmara de 13 de de fevereiro de 1822, consta que “concedeu-se licença a Luiz Ferran , mestre de música do Batalhão de Infantaria e Artilharia desta vila para estabelecer um teatro para divertimento público [...]”.402 Nesse mesmo ano, no mês de maio, o então príncipe-regente D. Pedro assinou um alvará no qual reconhecia que os teatros “podiam concorrer, mui eficazmente, para reformar os costumes e aperfeiçoar a civilização”.403 Em 1829, um ofício da Comandância Militar da Vila do Rio Grande relata que “em teatro particular se pôs em cena, à noite, uma peça”404 em comemoração ao aniversário do Imperador D. Pedro I; teria sido representada por oficiais do Batalhão 17 e por algumas outras pessoas. Em 17 de setembro de 1830, a Câmara recebeu um ofício do Presidente da Província com uma Portaria de 21 de julho “sobre não consentir-se representação de peças teatrais que ofendam as autoridades”.405 Durante a sessão da Câmara de 14 de outubro de 1830 o vereador suplente José Antônio Gonçalves Cardoso requeriu que o também suplente Manoel Pereira Bastos fosse multado “por não ser verdadeira a alegação de moléstia para não assistir às sessões, pois foi visto no dia 12 na Casa da Ópera406, enquanto ela [a peça] durou ”.407 4.3.2 - TEATRO SETE DE SETEMBRO As atividades cênicas em Rio Grande, ganharam impulso a partir de 1832, quando foi erguido o Teatro Sete de Setembro.

Os teatros eram sinônimos de progresso, cultura e lazer instrutivo; “espaços fechados de sociabilidade” e de civilidade fundamentais à pequena burguesia ascendente da sociedade brasileira. Tomando por modelo nacional a cidade do Rio de Janeiro e seu desenvolvimento cultural sob a regência de D. João VI e importantes capitais européias, sobretudo Paris, as elites locais esforçavam-se para a edificação de suas casas de espetáculos. Construído em alvenaria, o edifício do Teatro Sete de Setembro pode ser considerado o primeiro do gênero no Rio Grande do Sul; isto falando-se em construções sólidas e que, efetivamente possam receber o nome de teatro, apresentando condições

401 HESSEL, Lothar e RAEDERS, Georges. O Teatro no Brasil: da Colônia à Regência. Porto Alegre: UFRGS, 1974. p. 155-156. A Casa de Comédias de Montevidéu foi inaugurada em 1793. Seu edifício sofreu várias remodelações e trocas de nomes sendo demolido em 1879. Em Buenos Aires a Casa de Comédia foi construída em 1783 tendo sido destruída por um incêndio em 1792. Ambas destinavam-se a bailes e representações teatrais.(Cf. TEATROS DO BRASIL. São Bernardo do Campo: Mercedez-Benz do Brasil, 1995. passim.; BORBA FILHO, Hermilo. História do Espetáculo. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1968. p. 272-273; RELA, Walter. Historia del Teatro Uruquayo: 1808-1968. Montevideu: EBO, 1969. p. 12. e GARLAND, Marguerite. Más allá del Gran Telón: el Teatro Colón en su faz incognita. Buenos Aires: Nueva, 1948. p. 131-134.) 402 ATAS e Termos da Câmara de Vereadores de Rio Grande. Rio Grande, 13 fev. 1822, p.76-77. 403 Sobre o conteúdo do alvará de 22 de maio de 1822 confira: PAIXÃO, Múcio da. O Teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Brasília, 1936. p. 110. 404 MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro, Jornal Rio Grande, Rio Grande, 19 ago.1946. 405 Ibid. 406 “Casas da Ópera”, era a denominação comum à época para designar a casa de espetáculos públicos. 407 MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro, Jornal Rio Grande, Rio Grande, 19 ago.1946.

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indispensáveis à casas de espetáculo desta natureza. Motivo de orgulho dos rio-grandinos, o teatro recebia grande público e não passava década sem melhoramentos. Para sua edificação foi constituída a Sociedade Sete de Setembro que, por venda de ações a 100 mil réis conseguiu o capital necessário ao empreendimento.408 Em 31 de outubro de 1831 lavrou-se a escritura da compra do terreno localizado à rua Direita (atual General Bacelar) fundos à Praça da Quitanda (hoje, Praça Júlio de Castilhos), então pertencente ao cônego Francisco Ignácio da Silveira.409 Iniciaram-se as obras e, em 7 de setembro de 1832 o teatro foi inaugurado. O jornal O Noticiador de 10 de setembro deste ano diz que “às oito horas, no novo teatro desta vila - 7 de Setembro” foi representada a peça de Antônio Xavier de Azevedo, O Bom Amigo. Antes de começar o espetáculo, recitou um “elogio”, Carlos Antônio da Silva Soares. Terminou o “divertimento com uma jovial e graciosa pantomima e com a farsa intitulada O Casamento por Gazeta. Em tudo isto se fez sentir a companhia com bastante espírito e jocosidade, o engraçado do enredo e a boa execução dos atores.”

O mesmo periódico comenta que:

Nós não podemos deixar de manifestar o nosso prazer por ver nesta vila um teatro ereto por uma sociedade composta de cidadãos que não pouparam trabalho e despesas para sua conclusão; o qual servirá de escola para se aprender os bons costumes, aumentar a civilização, e para se festejar os Dias Nacionais e as nossas belas instituições.

E assim, o eco do alvará de D. José I firmou-se no distante burgo sulista, por

iniciativa e para desfrute da emergente elite local. 410 Ao final do ano seguinte, a vizinha cidade de Pelotas inaugurou em 2 de dezembro o Teatro Sete de Abril,411 outra respeitável construção cujas obras foram concluídas em 1834.

Segundo o jornal ilustrado Ostensor Brasileiro, do Rio de Janeiro, o edifício planeado pelo arquiteto alemão Eduardo Von Kretschmar apresentava “arquitetura externa elegante e regular, com seu pórtico de quatro colunas e salões superiores de desafogo, com

408 MONTEIRO, Rebuscos... op. cit., passim. 409 Vigário da Matriz de São Pedro este religioso é citado nas anotações de viagem do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire quando esteve na cidade em 1820. (SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 62.) 410 Embora não se tenha efetivado à época a construção de um teatro na Capital da Província, a sociedade porto-alegrense também preocupava-se com este benefício. Em 1833 um grupo de endinheirados cidadão endereçou um pedido de doação de terreno ao governador, Sr. Manoel Antônio Galvão, objetivando nele erguer uma casa de espetáculos. Nesta petição a imagem do teatro, visto como um instrumento de promoção da civilização também se faz presente. Reproduzo aqui parte deste documento: “São os teatros daqueles estabelecimentos dignos de atenção dos governos, porque servindo de recreio e de escola da moral pública, cooperam para a civilização dos povos vindo por esta forma a lucrar o todo da sociedade e grande parte o mesmo governo, pois que destraído, o povo se afasta de matérias perniciosas nas quais o precipita a ociosidade: as nações civilizadas tem conhecido tanto esta verdade que, ainda em tempos convulsivos, fizeram objeto de sua política os divertimentos públicos, levando-os ao maior auge de grandeza [...]”. (Apud. DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 44) 411 O NOTICIADOR. Rio Grande, 7 dez. 1833.

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janelas guarnecidas exteriormente com grades de ferro. A planta interior era elíptica, continha três ordens de camarotes em número de sessenta, e trinta bancadas na platéia”.412

Em 1838, três anos após o encerramento das atividades da antiga Casa da Ópera e em pleno decurso da Revolução Farroupilha, Porto Alegre, sedenta por uma casa de espetáculos, ganhou o Teatro D. Pedro II. Todavia, segundo Damasceno, o novo teatro constituía-se “num medíocre pavilhão de alvenaria, de fachada desenxabida e instalações precárias, mau grado a espaçosa platéia de que dispunha e as duas ordens de camarotes mobiliados com muito luxo, como teve o descoco [descaramento] de dizer certo noticiarista de então”. 413

O já referido Ostensor Brasileiro, comentava que, em 1845-46, o edifício do Sete de Setembro apresentava “boa arquitetura, com seu pórtico e frontão triangular, anunciando que era esse o lugar das honestas recreações da noite” rio-grandina. 414 FIGURA 12 – Fachada provavelmente original do Teatro Sete de Setembro. Gravura de 1847 de autor desconhecido. Extraído de: ASPECTOS BRASILEIROS – Meados do Século XIX. Rio Grande: Biblioteca Rio-Grandense, 1937. Diferentemente da cidade retratada por diversos artistas ao longo do Dezenove, o Teatro Sete de Setembro foi registrado somente em uma gravura de 1847 de autor desconhecido. O traçado do artista revela as características externas, possivelmente ainda originais, do teatro. Instalada em uma das principais vias centrais da cidade a construção destacava-se na paisagem urbana encontrando-se recuada em relação ao alinhamento das casas vizinhas.415 Sua fachada despojada lembra a austeridade da arquitetura civil da época. O prédio apresentava três pavimentos sendo o último o sótão. No primeiro pavimento existiam cinco portas, no segundo cinco janelas e no terceiro quatro janelas sendo duas frontais e duas laterais na forma de água-furtada. Suas aberturas eram típicas das construções da arquitetura tradicional luso-brasileira, então predominante na cidade. O frontispício compunha-se, também, por quatro pilastras de ordem toscana dispostas ao longo do primeiro e segundo pavimentos encimadas por um frontão triangular de inspiração neoclássica arrematado por moldura e coroado por um coruchéu. Acima das duas janelas percebidas no frontão destacava-se um elemento decorativo.

A frente da construção estendia-se um pátio aberto por cerca de uns oito a nove metros distanciados do edifício. Nesse local, por ocasião de bailes à fantasia eram feitas fogueiras, sobre as quais saltavam os foliões. Um muro em alvenaria com grades em metal organizava o espaço e um portão dava acesso ao teatro. Os fundos do prédio não iam até o alinhamento da rua do Pito (atual rua República do Líbano); um galpão de madeira,

412 OSTENSOR BRASILEIRO. Rio de Janeiro, v. I, 1845-1846. Esta obra traz à página 66 a reprodução de uma gravura do referido teatro. A atual fachada do Sete de Abril é oriunda da remodelação por que passou em 1916, sendo de autoria do arquiteto José Tonieri. (Cf. ECHENIQUE, op. cit., p.36.) 413 DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.20. Segundo Sanmartin o teatro possuía três ao invés de duas ordens de camarotes. (SANMARTIN, op. cit., p. 44.) 414OSTENSOR BRASILEIRO. Rio de Janeiro, vol. I, 1845-1846. 415 O recuo de edificações em relação ao alinhamento dos demais prédios junto à via pública só será de uso mais corrente a partir do final do século XIX. Sua utilização “prematura” enfatiza o exposto no texto acima, denotando a importância da construção para a sociedade local.

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utilizado para depósito, terminava a construção. Aos lados, em toda a sua extensão ficavam estreitos corredores para o arejamento da platéia por meio de janelas aos fundos dos camarotes.416 Sobre seu interior, O Noticiador de l0 de setembro de 1832 registrava que “o novo teatro formava uma perspectiva encantadora e elegante. Três ordens de camarotes uniformemente ornados eram ocupados pelo amável e belo sexo [mulheres]; e platéia por conspícuos e respeitáveis cidadãos”. O Correio Mercantil do Rio de Janeiro em 13 de março de 1833 dizia que era um “teatro ricamente decorado e já em exercício”. Sua Sala dos Espectadores assemelhava-se às das Casas da Ópera do século XVIII, sendo característica dos teatros de partido luso-brasileiro, cuja disposição remontava aos teatros barrocos italianos. Pequenas e com várias ordens de camarotes elas refletiam o espírito de uma sociedade rigidamente hierarquizada que, até no teatro impunha a separação de classes.

No teatro burguês do século XIX a função teatral ganhou um caráter mundano. A Sala dos Espectadores, elemento chave da composição de todo edifício destinado a espetáculos públicos, adquiriu uma faustuosidade (sempre proporcional à riqueza econômica da região) e consagrou a divisão do público em diferentes categorias sociais. As mulheres que, inicialmente, quase sempre estavam ausentes, confinavam-se nos camarotes e, somente desceram à platéia nos últimos anos do Império. Em alguns teatros mais antigos do Brasil, e em sociedades mais conservadoras, as mulheres eram protegidas dos olhares masculinos da platéia através de finas cortinas rendadas, nos camarotes. A história do espetáculo é inseparável da da luz. No dizer de Paul Virílio, “a iluminação é sinônimo de desocultamento de um ‘cenário’, de uma revelação da transparência sem a qual as aparências nada seriam”.417

Sobre a iluminação do Teatro Sete de Setembro os periódicos revelam que era feita por velas de espermacete. Acesas antes da entrada da assistência, as velas mantinham-se por toda a função transformando a Sala dos Espectadores num “prolongamento” da cena e o público num elemento vivo na unidade-espetáculo. Os artistas obrigavam-se a atuar no proscênio para poderem ser vistos. Os cenários ao fundo do palco não despertavam muito interesse. A atenção sobre a cena era, freqüentemente roubada. Por vezes, o fazer social tornava-se mais importante que assistir a apresentação.

O péssimo estado das lanternas e lampiões do teatro foi motivo para críticas publicadas no jornal O Rio-Grandense, de 26 de outubro de 1847. O colunista do Farol Teatral, após utilizar adjetivos como “embaçados” e “porcos” para classificá-los, comenta a ocorrência de pulgas na assistência: “e as pulgas? Oh! Malditas pulgas que tantas mordidelas ferram no massado espectador”.

A precariedade da iluminação do teatro também foi assunto do mesmo periódico em 18 de outubro de 1849:

A falta de iluminação é um dos predicados que bastante influi para a tristeza e monotonia da representação. Sobre o palco deve igualmente refletir uma luz clara não amortecida; aconselharíamos em tal caso a iluminação a azeite [...]. Algumas vezes, no nosso camarote fomos

416 MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim 417 VIRÍLIO, Paul. A Inércia Polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p.25.