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"TERRENOS" DA i Ê ARQUEOLOGIA DA PENINSULA IBERICA Porto ADECAP 2000

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"TERRENOS" DAiÊ ARQUEOLOGIA DA

~ ~

PENINSULA IBERICA

PortoADECAP

2000

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DEVESAS:DE COMPLEXO FABRIL BEM SUCEDIDOA PATRIMÓNIO INDUSTRIAL EM RISCO

por

J. Francisco Ferreira Queiro z*

Resumo: Após a chegada do cam inho de ferro a Vila Nova de Gaia, estabeleceu-se junto darespect iva estação a Fábrica ' Cerâmica das Devesas. Fruto da habilidade empresarial de An­tónio Almeida da Costa , esta fábrica torn ou-se - em finais do século XIX - num dos mais bemsucedidos complexos fabris cerâmicos da Península Ibérica. Porém, a importância desta fábri­ca (e sucursais) ultrapassa a área da cerâmica, uma vez que foi exemplo paradigmático detoda uma concentraçã o fabril aplicada às artes indu striais . Após décadas de decadência e umdesmantelament o parcial, este patrimón io industrial de grande int eresse (a vários níveis) estáem risco. Urge conhecê-lo e, dentro do possível, musealizá-Io.

Pa lavras-ch ave: Devesas; cerâmica; patrim ónio indu str ial.

INTRODUÇÃO

Na década de 1860, surgiram nos arredores do Porto pequenas fábricas decerâmica que procuravam servir as necessidades imediatas da urbe, então em gran­de expansão. Isto , não só ao nível da telha e do tijo lo para construção, mas tambémao nível da cerâmica artística que teve - precisamente no século XIX - o seu auge.

Dentre estas novas fábricas, a que mais se disti nguiu pela sua qualidade e ca­pacidade de implantação foi a Fábrica Cerâmica das Devesas. A sua História estáainda por fazer , pelo que esta expos ição terá de ser necessariamente pouco aprofun­dada I . Iremos ape nas resumir os principais passos da ascensão e queda deste com-

• Mestre em História da Arte.1 A bibliografia sobre esta fábrica é escassa e as inform ações contidas em obras gene­

ralistas são frequentemente baseadas na tradição oral. Ainda assim, aqui ficam algumas refe­rências bibliográficas: Catalogo da Exposição Industrial Portuguesa em 18 91 no Palacio de CrystalPortuense. Lisboa, Imprensa Nacional, 1892 ; LEPIERRE, Charles (1899), Estudo Clínico e Tech­nologico sobre a Cerâmica Portugueza. Lisboa, Imprensa Nacional; MENDES, José M. Amado,"Cerâmica e Património Industrial - o caso da Pampilhosa", Pampilhosa, uma terra e um povo, Pam­pilhosa do Botão, 10: 59-76; MINISTERIO DAS OBRAS PÚBLICAS, COMMERCIO E

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plexo fabril, de forma a destrinçar as razões da (in) existência do actual pat rimónioindust rial".

A ASC ENSÁO

Ainda hoje existem dúvidas quanto à form a como foi fundada esta fábrica decerâmica. A bibl iografia existente refere José Joaquim Teixeira Lopes como o ideó ­logo e António Almeida da Costa como parceiro meramente industrial, que teráentrado posteriormente na sociedade. Aliás, os vários autores que se referiram àFábri ca Cerâmica das Devesas qu ase sempre hip ertrofiaram o papel de António Al­meida da Costa como o seu mentor industrial , atribuindo a José Joaq uim TeixeiraLopes (pai do escultor Te ixeira Lopes) toda (e apenas) a responsabilida de artística.Poré m, a realidade não foi exactamente essa. António Almeida da Cos ta era umcante iro e, pelo menos na primei ra fase da sua vida oficina l, realizou obras de es­cultur a. T inh a formação em dese nho , obti da na Escola Indust rial do Porto, tendosido o primeiro canteiro (e um dos po ucos) a obter aprovação nessa esco la. Tam­bém José Joaquim Teixeira Lopes teve form ação na Escola Industrial e mais tardenas Belas Artes e em Paris, mas este art ista dedicou-se sobretudo à modelação defiguras de est atuária .

Estamos certos apenas de que António Almeida da Co sta já conhecia muitobem José Joaquim Teixeira Lopes antes da dat a oficialmente adoptada como dafundação da fábrica ( 1865), até porque este último tra balhava para a sua oficina demármores, na área da mo delação. Também é notório qu e foi sob ret udo a forte per­sonalidade de António Almeida da Costa que catapultou a fábrica para o sucesso.Ao longo da H istória das Devesas, José Joaquim Teixeira Lopes foi sempre relegadopara a sombra das ofici nas artísticas. Ainda hoje, as Devesas são conhecidas pelafábrica do Costa . No entanto, estas duas figuras foram ad miravelmente complemen­tares.

INDUSTRIA. DIRECÇÃO GERAL DE COMMERCIO E INDUSTRIA ( 1886) , Relatório sobreasescolas industriais e profissíonaes e de desenho tndustrial da circumscripção do norte. Por José Guilher­me de Parada e Silva Leitão . Lisboa, Imprensa Nacion al; QUEIROZ, J. Francisco Ferrei ra( 1997) , "Um virtuoso do márm ore. Outras not as para uma biografia de Antón io Almeida daCosta (1832-1 9 I5)". Boletim da AssociaçãoCultural Amigosde Gaia, Vila Nova de Gaia, 44 : 49 ­-54 ; QUEIROZ, J. Franci sco Ferre ira ( 1999) , "O ensino das artes indust riais no Porto do sé­culo XIX" [parte II]. O Tripeiro, 7." série , XVIII (6) : 177-182; QUE IROZ , José (1987) , Cerâ­mica portuguesa e outros estudos. Lisboa, Presença; VILA, Romero (1979), A Fábrica do Costa dasDevesas. Vila Nova de Gaia, Associação Cultural Amigos de Gaia; VILA, Romero (19 87 ), "Ofabrico do azulejo em fábr icas de Gaia nos séculos XIX e XX". Boletim da A ssociação CulturaiAmigos de Gaia, Vila Nova de Gaia , Maio de 1987: 35-39 . Para este breve estudo, foi tambémconsultada variada docum entação referente ao Arqu ivo da Delegação Regional do Nort e doMinistério da Economia, ao Arquivo da Câmara Municipal de Gaia, ao Arquivo Distrital doPort o, ao Arquivo do Sindicato da Cerâmica e à colecção do auto r. Contamo s dar futuramen­te novos e mais aprofund ados contributo s sobre a História desta concentração fabril , uma vezque temos vind o há algum tempo a recolher import antes informações nesse senti do.

2 Este pequeno estudo não teria sido possível sem os valiosos contributos da Ana Marga­rida Port ela, do Dr. José Manuel Lopes Cordeiro, de Fernando da Silva Ribeiro e da Eng."Mar ia Júlia Loureiro. A todos eles a nossa gratidão.

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Apesar da fábrica estar em laboração desde há alguns anos, ape nas em 1870António Almeida da Costa requer o alvará de licença que regularizaria a sua situação.Nessa altura, as instalações limitavam-se a part e de um quart eirão ligeiramente anascente da Estação das Devesas, onde ainda hoje se situa a sede da fábrica. Nesselocal, existia uma casa térrea (servindo como oficina de modelação), um edifício comandar (albergando oficinas de pintura) e, no inter ior do te rreno, vários barracões demadeira. O maior de todos estes barracões continha os fornos de calcinação e delouça, bem como os tanques de levigação e os amassadores do barro.

Destas primit ivas instalações pouco resto u até hoje . Uma parte do edifícioque hoje faz esquina entre a Rua Conselheiro Veloso da Cruz e a Ca lçada das Frei­ras te rá as mesmas fundações da antiga oficina de modelação, mui to embora a de­coração nas paredes seja posterior.

Na década de 187 0 a fábrica foi sendo alargada a te rrenos con t íguos, peloque - em 1880 - a máqu ina a vapor , de 15cv, foi insta lada em edifício const ruídojá em outro quarteirão - a sul das prim itivas insta lações da fábrica. Em 1881 , já alieram empregadas 180 pessoas. Estand o a fábrica em pleno crescimento, 5 anos de­pois foi estabelecida um a sucursa l na Pampilhosa .

Entretanto, a secção de serralharia da fábrica, que primeiramente se dest inavaa consert ar os seus variados maq uinismos, evoluiu para um a secção de serralharia efundição autónoma, a qua l já existia em 1884, no extremo sul do complexo dasDevesas . Nesta época e até ao início do século XX, as Devesas obtiveram numero­sas medalhas e elogios nas exposições a que concorreram, nom eadamente umamedalha de prata na célebre Exposição Universal de Paris, em 1900. Precisa mentenesta altura , a sociedade fez grandes beneficiações em te rmos de ed ifícios fabris.Em 1899 deu-se início à const rução de um magnífico depósito e exposição de pro­dutos no Porto (na actua l Rua José Falcão, com frente para a Rua da Conceição) .O edifício principal das Devesas foi tamb ém reformado e orn ado com numerosaspeças de azulejo (e não só) saídas da fábrica, que funcionavam como um verdadeiromostruário ao ar livre.

Em 190 I também o edifício da Pampilhosa sofreu ob ras profundas, tendosido nobilitado com depósito e mostru ário próprios. Isto sucedeu provavel mentecomo reacção à instalação na Pamp ilhosa, nesse mesmo ano, da fábrica concorrenteMourão, Teixei ra Lopes & C.", fundada pelos antigos administradores da sucursaldas Devesas na Pampilhosa.

Nesta época, Antóni o Almeida da Costa, já um abastado cap italista, constróipara sua residência um magnífico palacete neoárabe. Ta l gosto surgiu-lhe tão forteque todos os edifícios construídos em sua vida, já no século XX (para uso particularou fabril ), são de revivalismo árabe, úni cos no panorama art íst ico nacional desseperíodo.

Na viragem do século XIX para o século XX, o número de trabalhadores detodo o com plexo fabril ultrapassou várias vezes os 700, no que foi o período áureoda fábrica em termos de produção. Um jornal operário da época referia que, emGaia, o único local onde podia ser encontrada a civilização era nafábrica do Costa,a qua l mereceu visita de D. Manuel, em 1908.

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RAZÕES PARA O SUCESSO DO COMPLEXOFABRIL DAS DEVESAS

Para que esta in iciativa industri al se t ivesse tornado - em finai s do séculoXIX - num do s mais bem sucedidos complexos fabris cerâmicos da Península Ibé­rica e nafabrica maior e mais bem montada do paizê, imp ortantes factores certam enteo terão permitido. Assim, julgamos qu e os grandes méritos desta concentraçãofabril foram :

• A habilidade empresarial de António Almeida da Costa. De facto, opercurso da sua vida foi pautado por importantes conquistas comerciais,mesmo antes da fundação da fábrica, no que foi até alvo de insinu açõesacerca da sua honestid ade. Era um homem muito activo, que tinha real­mente vocação de empreendedor. De tal form a que, mesmo na sua juven­tude, António Almeida da Costa teve um a visibilidade social não meno s­prezável, trat ando-se de um mero canteiro. Sabia muito bem o que o mer­cado qu eria e produzia-o antes que outros o fizessem. Exemplo disso mes­mo foi a sua aposta na telh a de Marselha , no que foi o primeiro a produzi­Ia em Portugal e fê-Ia até com melh ores resultados qu e a original. Era umoportunista , no bom sentido do termo. Adaptou-se facilmente às mudan­ças de gosto. Também soube utili zar muito bem a publicidade, com um aestratégia comercial agre ssiva mas convincente , dados todos os outrostrunfos que a fábrica possu ía (adiante enumerados), reflectindo-se clara­mente na relação preço/qualid ade dos produtos.

• A associação entre a arte e a indústria foi o móbil da iniciativa fabrildas Devesas. Nisso, a fáb rica esteve plenamente integrada no seu tempo efoi mesmo o exemplo par ad igmáti co de toda uma concentração fabril apli­cada às artes industriais. No seu período áureo, a sociedade produzia todoo tipo de cerâmica (para con strução, decoração , saneamento , etc.) . Produ­zia igualmente tudo o que fosse necessário em grés e realizava trabalho smagní ficos em estuque. Também realizava excelentes trabalhos em ferrofund ido e forjado, estatuária e belos exemplos de cantarias aplicadas àconstrução (sobretudo de monumentos funerários) . Por isso mesmo, a im­portânci a deste complexo fabril ultrapa ssou largamente a área da cerâmica.Foi realmente uma con centração fab ril dentro das art es industriais. Denotar os vários catálogos feitos para a fábr ica, que reflectem claramente aexcelênci a e a variedade do s produtos", Eram cerca de mil peças de catálo­go (bu stos, estátuas, grupos, louça sanitá ria, gessos, materiais de con stru­ção, art igos em grés, cana lizações, mosaico hidráulico, azulejo, serralharia,fundição e cantaria s). E, para além de tudo isto, fabricavam qu alquer peçaque fosse necessária nas áreas supramencionadas!

3 Título concedido aquando da Exposição do Palácio de Cristal em 1897.4 Os mais importantes são: Catálogo da Fábrica Cerâmica e Fundição das Devezas, Porto, Typ.

de António José da Silva Teixeira, s.d. [1903-4] e Catálogo da Fábrica Cerâmica e Fundição dasDevezas, V. N. Gaia, Real Typ. Lith. Lusitana, 1910.

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• Porque as Devesas eram uma fábrica de produtos utilitários mas si­multaneamente ar t ís t icos, ao gosto da época, seria necessário quenela servissem bons de senhadores c modeladores . Ora, foi precisamen­te esse o caso . Escusado será falar em José Joaquim Teixeira Lopes e na suaqualid ad e com o estatuá rio. Sob a sua d irecção , a produção seria, obvia­mente, de grande qua lidade. Por outro lado, era m da sua auto ria os mod e­los (pelo menos os da esta tuária) . Já em 1870 , qua ndo é feit a uma vistoriaà fábr ica o subde legado de saúde não foi capaz de evita r este elucidativocome ntário paralelo ao frio informe médico: [as estátuas] são excellentes pelasua bel/a escultura, boa pintura e dureza do barro.

• Mas também os muitos trabalhadores da fábrica contribuíram para oseu sucesso. Por vários dados obtidos, podemos perce ber qu e nesta fábri­ca não havia tan to analfabetismo como nas restantes e mesmo os salários,apesa r de baixos, era m bastan te bo ns em termos relativ os. Por out ro lado ,tanto Almeida da Costa como José Joaquim Teixeira Lopes procuraraminstrui r os seus emp regados em desenho apli cado à indústri a, tendo at éoferec ido as instalações da fábrica para que, em 1884, pudesse ser criadaum a escola industrial em Ga ia, já que não havia edifício dispon ível. Assim,com benefícios para os traba lhadores (pela proxi midade do t rabalho à esco­la), António Almeida da Costa pôde formar os seus operários sem grandescustos e contratempos . Compreende-se, pois, que o Inquérito Indu strial de188 1 tivesse evidenciado a elevada qua lificação dos mestres, todos nacio­nais e dotados de capacidade fabril fora do COI/I I/I I/I11. Co nvém também mencio­nar o facto de mu itos estudantes das Belas Artes de en tão terem realizadoobras nas instalações das Devesas, ou mesmo para a própri a fáb rica, comoo escultor Teixeira Lopes, que aí começo u desde pequ eno a decorar cerâmi­ca e a retocar as modelações do pai.

• As máquinas eram também excelen tes. Em 189 I , o motor principal docomplexo fab ril das Devesas era um a poten te máqu ina a vapor de 70cv,considerada das melhores até então construídas na Fundição do Ouro. Opróprio edifício fabri l não era excessivamente acanhado , como aconteciacom quase todas as indústrias da época.

• O bom aproveitamento do caminho de ferro , como meio de transpor­te privilegiado no século XIX. De facto , não foi por acaso que a fábricase estabeleceu junto da Estação das Devesas. O escoamento dos produtosficava, assi m, facilitado. Mesmo a ob tenção de mat érias primas baseou-seem muito no t ransporte ferroviário, já que a sucursal esta belecida junto àimportante estação ferroviária da Pampilhosa pretendia ser - não só um aextensão da fáb rica - mas tamb ém um local de recolha de barro , que erafacilm ente tran spor tado para as Devesas. Por outro lado, realcemo s o factoda Estação das Devesas ser então um dos locais de maior movimentaçãodos arredo res do Porto. Lembremo-nos que essa estação foi - até à constru­ção da Ponte D. Maria Pia - o termin al ferroviá rio para passage iros e mer­cadorias de toda a cidade do Porto. Aprovei tando esse facto, a fábrica che­gou a publicitar a expos ição de produtos aqu ando de grandes movimenta­ções jun to à estação (como, por exemp lo, na altura da romaria ao Senh orda Ped ra). Também a Estação da Pam pilhosa, como ent roncamento de trêsimp ortantes vias férreas, assumia um a localização excelente. Daí tamb ém a

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opção de autonomizar um pouco a sucursal, dotando-a de secção de ven­das própria, aquando da sua reorganização de 1901 . Podemos, pois, con­cluir que o complexo fabril das Devesas assentou claramente sobre carris,em todos os sentidos.

DECLÍNIO E DESMEMBRAMENTO

Em 1903 terá começado a curva descendente deste empano industrial.Feliciano Rodrigues da Rocha, sócio comercial de António Almeida da Costa du ­rante mais de duas décadas, retira-se da sociedade. Logo depois, a velha casa e ofi­cina de mármores de António Almeida da Costa, situada na Rua do Laranjal, édestruída para se dar início à construção da Avenida dos Aliados. A oficina aindapassou para uma dependência do depósito recém-construído na actual Rua JoséFalcão , mas poucas obras em mármore dela saíram após esta transferência. Em1909 é José Joaquim Teixeira Lopes que sai da sociedade. Estava já velho, assimcomo Almeida da Costa que então personificava claramente a figura do industrialpaternalista, tão comum nesta época. Surgem, assim, dois novos administradoresna fábrica: Aníbal Mariani Pinto e Eduardo Rodrigues Nunes. A empresa pareceestar ainda viva : é introduzida a energia eléctrica e são feitas algumas obras debeneficiação. Mas em 1913 dá-se um incêndio parcial na fábrica e, no ano seguin­te, Almeida da Costa fica viúvo. A velhice e a tristeza de Almeida da Costa apres­sou a sua morte, em 1915. O facto da fortuna de António Almeida da Costa nãoter sido capitalizada na fábrica (tendo servido sobretudo para obras de beneficên­cia) terá prejudicado a situação económica da sociedade. Mas a verdade é que osnovos administradores também não possuíam o talento artístico de Teixeira Lopese a capacidade empreendedora de Almeida da Costa. Incapazes de inverter o rápidoprocesso de decadência da fábrica, esta acabaria por fechar pouco tempo depois.

Durante alguns anos a fábrica esteve parada, não sem pretendentes à suareabilitação, uma vez que era enorme o seu potencial em termos de máquinas, edi­fícios fabris e moldes.

Refira-se, aliás, que o fecho da fábrica e a saída de tantos mestres de grandequalidade originou um surto de criação de novas pequenas fábricas de cerâmicajunto a Gaia, como a da Madalena, ou a de Valadares (ainda hoje existente) . Aliás,a importância das Devesas pode ser avaliada também pela quantidade de fábricasdissidentes ou imitadoras do seu modelo. Ainda no século XIX, o dissidente JoséPereira Valente funda uma fábrica junto às Devesas, na qual começou a fabricarestatuária do género da das Devesas, tendo tido algum sucesso, sobretudo a partirdo declínio desta última. Vejam-se as várias casas da década de 1910 e 1920 exis­tentes em Espinho, ornadas de numerosas estátuas com a marca de José PereiraValente. Em 1901, como já referimos , são alguns dissidentes da família TeixeiraLopes que fundam uma fábrica concorrente junto à Pampilhosa (a Mourão, Tei­xeira Lopes & C.", depois Progresso da Pampilhosa), adoptando o modelo das De­vesas, no que se lhe seguiu pouco tempo depois a fábrica de Lacerda Figueiredo &C." (mais tarde chamada "Excelsior'") ,

5 Infelizmente, esta interessante fábrica foi demolida em 1998. Hoje resta apenas a chaminé .

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Também os filhos de Feliciano Rodrigues da Rocha fundaram uma fábricaprópria após a desvinculação do pai da sociedade com Almeida da Costa. Isto, jápara não falar de muitas outras fábricas de cerâmica estabelecidas nesta época quese inspiraram no modelo fabril das Devesas (como a de Estrela d'Alva ou a Empre­sa Industrial de Ermesinde que , no início do século XX, fazia cópias exactas dealguns modelos da Cerâmica das Devesas).

A LENTA AGONIA

Apenas no início da década de 1920 foi possível ressuscitar o legado fabril deAntónio Almeida da Costa, agora designado "Companhia Cerâmica das Devesas",Em 1921 fazem-se pequenas obras de remodelação e electrificação nos vários edifí­cios fabris das Devesas.

Nesta sociedade, cedo se destacou Raúl Mendes de Carvalho (natural dasCaldas da Rainha) que tomou o leme da Companhia durante as décadas seguintes.Na sucursal da Pampilhosa foi depois colocado o seu filho Alberto Mendes de Car­valho, como administrador.

A nova socied ade apropriou-se da imagem e do prestígio ainda existente emrelação à fábrica das Devesas, como o comprova o papel timbrado usado quase atéaos nossos dias. Porém, o contexto económico era desfavorável , o capital era escas­so e a administração não foi capaz de realizar suficiente inovação, à excepção dasubstituição (muito lenta, diga-se) de velhos maquinismos por outros. Os modelosdas peças artísticas permaneceram quase os mesmos, pelo que ficaram grandementeultrapassados e deixaram de se fabricar. Também a secção de fundição e serralhariaficou praticamente abandonada pouco tempo depois da instalação da nova Compa­nhia. Restaram os produtos utilitários de grés, a telha e o tijolo (sobretudo o refrac­tário, aplicado à indústria) e algum azulejo.

Se nas instalações das Devesas trabalhavam, no início do século XX, mais de500 pessoas , esse número era de 41 em 1931, baixando para 24 em 1949 e 13 em1976. Os números apresentados incluem também pessoal de escritório e guardas.Como nas Devesas situava-se a sede da Companhia, percebe-se que o número realde operários a laborar foi sempre mais baixo que os dados apresentados.

A descida do número de operários não se deveu a uma forte mecanização doprocesso produtivo. É fácil de percebê-lo, até porque cada vez foram existindomenos operários especializados na fábrica de Gaia. Nos últimos anos da sua exis­tência, todos os operários eram indiferenciados, à excepção do encarregado que,porém, tinha também trabalhado durante muitos anos na fábrica como indiferen­ciado.

Em contrapartida, a Companhia privilegiou as instalações da Pampilhosa paraa produção, não só porque na época de António Almeida da Costa as instalaçõesdas Devesas estavam fortemente vocacionadas para as peças artísticas (que agora jáquase não se fabricavam), mas também porque os custos de produção foram sem­pre mais baixos na Pampilhosa. Alguma maquinaria foi até transferida para a Pam­pilhosa nos primeiros anos da Companhia. Assim, se nas instalações da Pampilhosatrabalhavam, no início do século XX, cerca de 187 pessoas, em 1944 este númeroera de 130, descendo para 66 em 1977. Depreende-se, pois , que a fábrica da Pam­pilhosa manteve bastante actividade, embora um pouco abaixo dos níveis atingidos

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aqua ndo da adminis tração de António Almeida da Cos ta. Aliás, agora era a Com­panhia Cerâmica das Devesas que procurava copiar o qu e outras fábricas faziam ,nomead amente a sua vizinha da Pampilhosa, Mourão, Te ixeira Lopes & C.",

Em 1955 , fabr icava-se em Ga ia algum ti jolo refrac tá rio, alguns artigos san itá ­rios em grés e pouco azu lejo e louça sanitá ria em faiança. Este fabr ico era ocasionale a esmaga dora maioria das secções da fábrica (incluindo vários fomos) estavamparados há mui tos anos. Outros tinham sido até demolidos, por ameaçarem ru ína,tal era o estado de abandono da fábrica (Est. I). Vár ias fotografias t iradas em 1949,ano em que houve um incênd io num dos fornos da fábrica, mostram isso claramen­te (Est. II). Ape nas tinham alguma util ização 3 fomos circula res para faiança (detrês anda res), um forno pequ eno para o vid ro e um forno de um só anda r para grése refract ário.

Na mesma época , a fábrica da Pampilhosa produzia bastante telha e t ijolo,acessó rios para telhados, t ijolos refractá rios , canalizações e ar tigos sanitá rios emgrés. O forno cont ínuo era amplamente utilizado e fora m sendo compradas para aPam pilhosa várias máquinas novas ao longo das décadas de 1940 e 1950. Mas ain­da ali haviam em funciona mento verdade iras peças de museu, como um a máquinaa vapor de 5cv construída na extinta Fund ição do Bicalho (que servia a oficina deserra lharia) .

Apesa r de tudo, a Companhia foi aguentando a fábr ica e manteve um a labo­ração intens iva na Pampilhosa, a qual fabricou pro dutos para importantes emprei­tadas (como tijolos refractários para a Cent ral de Massarelos, ou para a fábric a defundição de F. Brindle, ao Pinheiro Ma nso) .

Pod e dizer-se qu e a Compa nhia Cerâmica das Devesas foi agonizando à som­bra do empó rio que Antó nio Almeida da Costa soube con struir, pelo que teria desucumbir mais cedo ou mais tarde, facto qu e sucedeu em fina is da décad a de1980 .

o PATRIMÓNIO INDUSTRIAL HO JE EXISTENTE

Enqua nto o complexo fabr il das Devesas legado por Almeida da Costa sofreucom o abando no e as demol ições de edifícios, motivadas pelo seu estado de ru ína,o complexo da Pampilhosa manteve mui tas das antigas instalações da fábr ica e atéalterou profundamente algumas outras (facto qu e ta mbém descaracterizou partedos edifícios qu e vinham da épo ca de António Almeida da Costa) . Assim, podemoscon cluir qu e o interior das instalações da Pampilhosa reflectem actualmente me­lhor a imp ortân cia deste empório cerâmico do qu e as das Devesas, em grande partejá destruídas, mui to em bora ainda se man tenham aqui alguns dos edifícios maisint eressan tes.

Actua lmente , o complexo cerâmico situado nas Devesas vive mom entos deincerteza, ent re a vontade de mu sealização por parte do municíp io e o vandalismoe a ruína dos edifícios fabris, bem como os muitos interesses em jogo e as inúmeraspressões imobili árias.

Algum as antigas dependências deste complexo fabril já não pertenc em à so­ciedade que tro uxe a fábrica até aos nossos dias, com o o depósito no Porto - esteem relativo bom esta do de conservação , mas tam bém com um futuro incerto, jáque foi recentemente desocup ado pela empresa química que aí tinha a sua sede.

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Em relação aos edifícios fabris das Devesas , deve distinguir-se entre a partesu l da fábrica e a parte norte (com origem mais antiga). A primeira est á em grandeparte de struída. Restam alguns muros exte riores (mes mo assim já mutilados) e, nointerior, algu ns edifíci os em avan çad o esta do de ruína, para além de duas chami­nés. Na parte norte, ainda existe a sala de mostruário de azu lejos , algumas peçasespalhadas por várias dependênci as, bem como muitos moldes amontoados e emma u est ado (Est. III ). O facto de ainda hoj e ali funci on ar um a secreta ria (apenaspara "manter" o edifício) tem impedido maiores destruições.

Felizmente, existem em bom est ado e com uso corrente as casas dos operá­rios , as quai s são talvez das ma is interessantes que se construíram nessa época emPortugal. Ainda existe também a maioria dos edifícios que Antóni o Almeida daCo sta ma ndou construir para si, pa ra apoio à fábric a ou para albergar obras de be­neficência.

A sucursal da Pampilhosa encontra-se ta mbé m em ruí na e ameaçada pe loalargame nto da estação (que terá, aliás, já condenado, a contígua fábr ica outrorapert en cen te à firma Mourão, Teixeira Lopes & C."). E const itu ída por um corpocentral primitivo (muito alterado em 190 I e mesmo já em an os mais próximos denós), onde se situa o forno contínuo, fican do a sul e a norte várias e vastas de pen­dências de armazenamento de telha e similares (Est . IV). Também aqui se situa asecção de recepção e tratamento do barro, tra zido por vagon ete s das barre iras si­tuadas a poente , onde actualmente se vê um vasto matagal com grandes depressõesno terreno, indício evidente da sua exploração intensiva. Em pequenos comparti­mentos anexos situa m-se ainda os vestígios de arrecadações, da oficina de serralha­ria e a ch aminé ainda lá est á, em razoável esta do de con servação. Também nesteedifício central situam-se as estufas, servida s por um curioso sistema de carri s. Noedifício construído em 190 I , mesmo junto à via férrea , situa m-se o escritório, asecretaria, o mostruário , as instalações sani tá rias e o depósito de produtos. A sul,um telheiro servia de armazém de exped ição, assim com o a norte existe um terraçoque servia de depósito de expedição para os produtos de grés. Neste edifício juntoà via férre a situa-se - ainda hoje - o arquivo de form as das peças produzidas. Afábrica possui ainda mu itas out ras pequenas dependências que , actualmente, en­contram-se em perigosa ruína ou envol vid as por mato.

Enqu anto agu ardamos o melhor desfecho possível para a preservação desteimportantí ssimo património industrial , não podemos também esquecermo-nos dequ e numerosas obras saídas do emp ório das Devesas, sobretudo da sua época áu­rea, ainda existe m espalhada s por todo o país (e não só), com predo minâ ncia parao norte e centro. Co mo compleme nto à prevista mu sealização de algum dos espa­ços das Devesas, será necessário inve ntariar estas peças, o que é trabalh o para umalarga equipa de investigação durante vários ano s. Act ua lme nte , algumas destasobras de arte ind ustrial são já raras , pelo que são peças de museu sem que os seusproprietários seq ue r o suspeitem.

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Est. I

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Est. II

Dilas fotografias de 1949 onde se vê claramente o estado de ruina de vastas dependências do complexofabril das Devesas. A té custa a crerqlle esta[âbrica estivesse realmente em funcionamento. Em cima

temos 11m dos armazéns da f ábrica. Em baixo, o edifício onde se situava ofomo fr ancês. Nenhumdestes edifícios hoje existe.

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Est . lI!

Dois aspectos actuais das instalações f abris nas Devesas. Em cima, o terraço de expedição de produtosem grés, vendo-se aof undo a entrada principal da fábrica . Em baixo, v ários moldes em mau estado

amontoam-se no interior das instalações[abri s.

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Est. IV

Dois aspectos actuais das insta lações f abris Ila Pampilhosa. Em cinta, pode ver-se tl esquerda o edifícioprimi tivo - muito alterado - onde se situa o fomo continuo. A direita vê-se o estado de ruina do

edifício construido em 1901, mesmo [unto tl via fé rrea. Em baixo, 11111 aspecto interior de uma dasmui tas dependências de armazenamento de telhas.