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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA ESTEVÃO DE FIGUEIREDO RIBEIRO O QUE PODE A ALIANÇA ENTRE A CURIOSIDADE E O CUIDADO? O ENCONTRO DE SABERES E OS POSSÍVEIS ENFRENTAMENTOS DO MEDO NA UNIVERSIDADE NITERÓI - RIO DE JANEIRO 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

CURSO DE GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

ESTEVÃO DE FIGUEIREDO RIBEIRO

O QUE PODE A ALIANÇA ENTRE A CURIOSIDADE E O CUIDADO? O

ENCONTRO DE SABERES E OS POSSÍVEIS ENFRENTAMENTOS DO MEDO

NA UNIVERSIDADE

NITERÓI - RIO DE JANEIRO

2017

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

Bibliotecário: Nilo José Ribeiro Pinto CRB-7/6348

R484 Ribeiro, Estevão de Figueiredo. O que pode a aliança entre a curiosidade e o cuidado? : o encontro

de saberes e os possíveis enfrentamentos do medo na universidade / Estevão de Figueiredo Ribeiro. – 2017.

129 f. : il.

Orientador: Joana Miller. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Antropologia) –

Universidade Federal Fluminense, Departamento de Antropologia,

2017. Bibliografia: f. 119-126.

1. Encontro de Saberes. 2. Universidade Federal Fluminense. 3.

Medo – Aspecto histórico. 4. Curiosidades. 5. Cuidados. I. Miller, Joana. II. Universidade Federal Fluminense. Departamento de

Antropologia. III. Título.

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ESTEVÃO DE FIGUEIREDO RIBEIRO

O QUE PODE A ALIANÇA ENTRE A CURIOSIDADE E O CUIDADO? O

ENCONTRO DE SABERES E OS POSSÍVEIS ENFRENTAMENTOS DO MEDO

NA UNIVERSIDADE

Trabalho de conclusão de curso

apresentado ao Curso de Graduação em

Antropologia, como requisito parcial

para obtenção do titulo de bacharel em

Antropologia pela Universidade Federal

Fluminense – UFF

Orientadora

Prof.ª Dr.ª Joana Miller

NITEÓRI – RIO DE JANEIRO

2017

Agradecimentos

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Brincava com amigos que esse momento é o mais complicado da monografia,

pois são muitas mãos que constroem nossa caminhada e provavelmente algumas

pessoas ficaram de fora do papel, mas não de fora do coração.

É impossível falar de agradecimento e não citar logo de imediato aqueles que

sempre cuidaram do sorriso que levo em meu rosto: minha mãe Beatriz e meu pai

Fernando. Além de formarem a pessoa que sou, nesse trabalho, colocaram diversas

questões, tivemos muitas conversas e fizeram leituras críticas. Vou parar porque se não

essa página vai toda para vocês.

Minha família que sempre esteve comigo: a cada um de vocês sou grato por

exalar uma vontade doida de continuar vivendo e ver a gente envelhecer junto: Peu,

Nico, Lara, Tonho, Vic, Tamara, Vitório, Camila, Tom, Ana, Dora, João, Lélia e

Haroldo; Marilúcia, Gabi, Xanda, Assis, Laura e Carol.

Um especial agradecimento a todos e a cada um dos mestres (e aprendizes) que

passaram pela universidade: Seu Augustinho, Dona Maciana, Pai Roberto, Mãe Márcia,

Mãe Arlene, Seu Maneco, Mestre Toninho do Canecão, Mestra Maria de Fátima, Dona

Dica, Seu Altamiro, Mestre Expedito, Ogan Kotoquinho e Mestre Edimilson. O tempo

de aprendizado com vocês não tem preço, tem valor. A luta continua e é importante

saber em que lado estamos.

Grato ao Grupo de Estudos Encontro de Saberes na/da UFF. Vocês não

conseguem nem imaginar o quão importante foi uma experiência dessas na vida de um

estudante como eu. Grato a todos os professores e estudantes que aceitaram os passos e

descompassos da aprendizagem compartilhada.

Agradeço a todos os mestres, aprendizes, professores e estudantes que conheci

em Juiz de Fora. Foi lá que nasceu meu interesse por tudo que mora nessas páginas. Em

especial ao Léo e ao Neto que carinhosamente me receberam.

Aos professores Emílio Nolasco, Johnny Alvarez, Daniel Bitter, Rogério

Haesbaert e Elaine Monteiro que participaram, incentivaram e provocaram de alguma

forma a produção dessa escrita.

Agradeço Joanna Miller, orientadora, que, mesmo não sendo sua linha de

pesquisa, foi receptiva, carinhosa e movimentou questões importantes.

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Agradeço as aldeias Guarani de Maricá (RJ), Itaipuaçu (RJ), Paraty (RJ) Pirajuí

(MS) e Potrero-Guaçu (RJ). Aos goles do chimarrão, às fumaças do pytenguá, às

conversas em volta da fogueira e às histórias que movimentaram minha atitude em

relação as coisas do mundo.

Aos amigos de Niterói, Rio das Ostras e Oriximiná que passaram de alguma

forma pelo Grupo de Etnoeducação Patrimonial em Oriximiná – Pará. Aprendo com

vocês a cada dia que passamos juntos. Seja trabalhando, seja comendo um peixe e

tomando uma cerveja. A companhia de vocês me dá vigor.

Um especial agradecimento aos amigos Kaiah Akwira e Marcelo Barbosa pela

amizade, pelas conversas e pelas importantes contribuições que me deram para esse

trabalho.

Aos amigos que despertaram em mim modos de fazer com que a antropologia e

a vida sejam uma coisa só e que talvez o objetivo seja realmente confundi-las: Diego,

João, Luan, Lucas, Ícaro, Ikaro, Tiago, Ruanna, Wallyson, Keply.

Uma especial ‘’gratitude’’ e ‘’gratinada’’ para ela que mexe com a minha

cabeça e que ‘’amorvimenta’’ o mistério do afeto. Suas contribuições pairam por esse

trabalho, Mônica.

Por fim, agradeço a terra que sempre pisei, mesmo estando aqui no Rio: Marabá.

É tanta gente que sou grato, que cito apenas aqueles que foram importantes no processo

da escrita: Lu, Haroldo, Catarina, Clau, Kelver, Meyre, Firmino, Eryka, Dani, Wanxo,

Pedro, Endi, Igor, Nieves, Dudu.

Sumário

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Introdução....................................................................................................................... .7

Capítulo 1: contextualização: o território da escrita e a escrita do território

1.1. – Cotas na UNB...........................................................................................12

1.2. – Encontro de Saberes: contexto nacional...................................................14

1.2.1. – Encontro de Saberes: características e metodologia..............................19

1.2.2. – Encontro de Saberes na/da UFF.............................................................21

1.3. – Minha experiência no Encontro de Saberes..............................................28

Capítulo 2: Universidade embrutecida: a produção do medo

2.1. – Racismo estrutural.....................................................................................32

2.1.1. – Racismo – política..................................................................................37

2.1.2. – Racismo – economia...............................................................................42

2.1.3. – Racismo – subjetividade.........................................................................44

2.2. – Medo na sociedade.....................................................................................47

2.2.1. – Medo e poder..........................................................................................48

2.3. – Universidade embrutecida.........................................................................52

2.4. – Medo na aprendizagem..............................................................................56

Capítulo 3: Curiosidade e universidade: método de abertura para o desconhecido

3.1. – Possibilidades de uma outra universidade.................................................64

3.2. – Preparação e transformação do território...................................................67

3.3. – Um diálogo entre Mãe Márcia e Dom Juan: medo do desconhecido e

julgamento; medo e clareza.................................................................................76

3.4. – Aprendizagem com curiosidade................................................................80

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3.4.1. – curiosidade e atenção..............................................................................83

Capítulo 4: O cuidado na curiosidade e uma possível universidade descolonial

4.1. – O saber no jogo político.............................................................................89

4.1.2. – O saber no jogo político de Dom Juan....................................................92

4.2. – humus: humildade e humanidade...............................................................93

4.3. – O segredo, a responsabilidade e o cuidado no aprendizado....................100

4.4. – Curiosidade sem cuidado: a produção do exótico...................................106

4.4.1. – Questões práticas na avaliação da disciplina........................................107

4.4.2. – ‘’Um tempo específico para cada coisa’’.............................................108

4.4.3. – A recepção e o exótico..........................................................................110

4.5. – A luta continua: uma universidade descolonial.......................................115

Considerações finais....................................................................................................117

Bibliografia...................................................................................................................119

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Resumo

Esse trabalho é fruto de uma experiência chamada Encontro de Saberes que

aconteceu em 2017, na UFF. O projeto tem como objetivo trazer mestres dos saberes

tradicionais à universidade e fazer com que sejam reconhecidos enquanto professores

doutores. Primeiramente, vamos buscar entender, por conexões teóricas, a produção e a

reprodução histórica do medo, nosso inimigo (CASTAÑEDA, 1968 & MÃE MÁRCIA,

2017), na sociedade, nas relações de poder, para assim, chegar em nosso campo: a

universidade. Depois vamos trilhar caminhos, a partir do método etnográfico, de como

os mestres dos saberes tradicionais lutam para vencer esse inimigo, além de diversas

outras estratégias, pela transformação e pelo uso diferenciado do território

(HAESBAERT, 2004). Além disso, vamos pensar a relação entre as instâncias que José

Jorge de Carvalho (2010), idealizador do projeto, diz que o Encontro de Saberes

pretende atuar: na institucional (ao que chamamos de territorial), na política, na

epistemológica e na pedagógica. Por fim, queremos analisar como essas instâncias são

operadas na lógica da universidade embrutecida (RANCIÈRE, 2015) pela produção

ocidental do medo e na lógica dos mestres dos saberes tradicionais, através da

curiosidade e do cuidado. A problemática que queremos propor se aproxima, no

contexto da experiência do projeto, dos seus erros e acertos em busca de uma

universidade descolonial (QUIJANO, 2005). É uma tentativa de refazer o caminho para

construir futuros possíveis (SEGRERA, 2005).

Palavras-chave: universidade; Encontro de Saberes; medo; curiosidade; cuidado.

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Introdução

O presente trabalho é baseado na minha experiência enquanto membro e monitor

de um projeto chamado Encontro de Saberes na/da UFF. O projeto tem como objetivo

trazer mestres dos saberes tradicionais para dentro do espaço acadêmico para seu devido

reconhecimento. A ideia é fazer com que os mestres possam falar por si mesmos em

uma disciplina optativa regular da graduação. Ele foi formulado pelo mesmo co-autor

das cotas, José Jorge de Carvalho, professor da Universidade Federal de Brasília

(UNB). O idealizador do projeto afirma que, se as cotas são raciais, o Encontro de

Saberes seria uma cota epistemológica (2010). No primeiro semestre de 2016, a

Universidade Federal Fluminense (UFF), a qual faço graduação em antropologia, criou

um grupo de estudos de docentes e discientes que, mais tarde, no primeiro semestre de

2017, veio realizar a primeira versão do projeto.

É partindo desse contexto que pretendemos refletir sobre, primeiro, a produção e

reprodução do medo em seu aspecto amplo para, depois, perceber como ele atua na

construção das relações dentro da academia. Para isso, articularemos as instâncias

institucional (a qual, por motivos de percurso teórico, preferimos chamar de territorial),

política, epistemológica e pedagógica, pois, segundo Carvalho (2014), são a elas que o

Encontro de Saberes quer tencionar. Segundo, pretendemos fazer uma abordagem

etnográfica das aulas dos mestres para pensar a noção de curiosidade, pelo viés que

Paulo Freire (1996) propõe. Para se aliar à curiosidade vamos desenvolver, em terceiro

lugar, reflexões que giram em torno da palavra cuidado, como meio de evitar

sobreposição de curiosidades (FREIRE, 1996). Essa aliança, atuando nas instâncias

comentadas acima, pretende abrir possibilidades de enfrentamento da produção do

medo na universidade.

O primeiro capítulo tem o intuito de contextualizar o movimento do Encontro de

Saberes para que possamos entender a sua relevância, os motivos que levaram à sua

existência, o movimento que gerou e gera no espaço acadêmico e quais são as questões

elencadas. Cronologicamente, o capítulo aborda o surgimento do programa de cotas em

Brasília, a institucionalização do Encontro de Saberes em aspecto nacional, na parceria

entre diversas universidades, que nos levará para o contexto do projeto na UFF para,

finalmente, entender como foi o meu envolvimento pessoal com o projeto.

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No segundo capítulo há uma proposta teórica para entender a produção do medo

não enquanto algo sentido individualmente, mas enquanto algo que organiza, circula e

manipula relações. Nele, estão, em primeiro lugar, abordagens que se propõem a pensar

o racismo estrutural pela sua ação nos aspectos político, econômico e subjetivo

(ALMEIDA, 2016). Entendendo que o racismo age por meio do medo e do ódio, ou do

medo projetado (BENTO, 2002), vamos trazer questões que vão pensa-los em sua

íntima relação com o poder no meio social e de como, historicamente, ele foi se

estabelecendo enquanto agenciador de relações.

Assim, vamos chegar na ação do medo no espaço acadêmico, o que faria da

universidade um lugar embrutecido (RANCIÈRE, 2002). A lógica de aquisição

interminável de capital simbólico (BOURDIUE, 1977) geraria um modelo de

ganhadores e perdedores. Pautada pelo modelo produtivista e meritocrático, sugerimos

que isso faria com que a aprendizagem se constituísse a partir de relações de submissão

(ordem para progredir) na escala hierárquica fixa entre os agentes do campo. O ‘’amor

da dominação’’ (RANCIÈRE, 2002) tem, segundo o que propomos, o medo em seu

cerne e produz sentido nas instâncias territorial, política, epistemológica e pedagógica

no meio universitário.

O terceiro capítulo se diferencia do segundo no momento em que propõe uma

dobra: enquanto um aborda as relações de poder, o outro, a partir da etnografia das aulas

dos mestres dos saberes populares, vai pensar apontamentos de resistência, ou pelo

menos caminhos possíveis. Ele pretende abordar o Encontro de Saberes em sua potência

no impacto, no tensionamento, no questionamento e na expressão de outros modos de

conhecer e aprender.

Nomeado ‘’curiosidade e universidade: método de abertura para o

desconhecido’’, o capítulo vai se basear na crítica dos mestres em seu carácter

epistemológico, mas também metodológico. Percebendo uma peculiar importância dada

pelos mestres para a preparação e transformação, de diferentes maneiras de acordo com

a tradição em questão, do território, os mestres rompem com uma lógica ocidental de

transmissão de conhecimento. Afirmamos também nesse capítulo que o Encontro de

Saberes, antes, é um encontro de territórios pois é preciso operar uma abertura no

território (HAESBAERT, 2004), físico e simbólico, da academia e, claro, dos

acadêmicos, para que possa haver essa desejada coexistência.

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A curiosidade, abordada por Freire (1996), é um método de aprendizado que se

realiza na abertura para o novo, na tentativa de vencer as preconcepções que temos

quando nos deparáramos com o desconhecido. Propomos que a relação entre a

curiosidade e a atenção é um fator importantíssimo para quem quer conhecer algo e,

estratégico (pois o uso do conhecimento, e como é usado, tem carácter político), para

enfrentar os inimigos do homem (CASTAÑEDA, 1968). Dessa forma, o medo que

antes ocupava o centro na relação entre as instâncias no meio universitário fica menos

expressivo para que a curiosidade passa também o habitar.

O que percebemos, porém, é que, por mais que a curiosidade seja

importantíssima na produção de relações consigo, com o outro e com o mundo, é cabal

que se tenha ‘’cuidado para não meter os pés pelas mãos e o nariz onde não é chamado’’

(Mãe Arlene, 2017). Primeiramente, quisemos enfatizar e aprofundar, por via de

Foucault (2008), Boaventura (2010) e Castañeda (1968), que a produção do saber não se

encontra solta, muito pelo contrário, ela é envolta de um contexto, de um território, de

uma terra que o permite emergir. É aí que associamos que uma vez que o saber é

contextual é exigido dele um determinado uso; nesse uso mora o jogo político, mora o

poder. Insistimos que saber é contextual justamente para continuar dialogando com o

terceiro capítulo, trazendo um território para tal produção.

Sendo assim, segundamente, nos propomos a pensar a palavra humildade no

sentido em que a sua própria etimologia sugere: humus, terra. Ou seja, a humildade, não

pensada enquanto carência, mas enquanto algo que não se deve ser carente (FREIRE,

1996), é um princípio que deve existir enquanto uma assunção da nossa própria

ignorância e de nossa incompletude enquanto alguém que ‘’só vive para aprender’’

(CASTAÑEDA, 1968, p. 64).

Em terceiro lugar, propomos nos aproximar da noção que dá título ao capítulo, o

cuidado. Ao pensar a importância do segredo e a responsabilidade que se deve ter na

processualidade do aprendizado, vamos abordar o cuidado enquanto uma dedicação de

tempo, atenção e preparo físico, mental ou espiritual; um cultivo (ALVAREZ, 2007).

Em quarto lugar, vamos abordar alguns relatos dos estudantes e dos mestres na

avaliação da disciplina e ver que a curiosidade quando age sem um cuidado pode acabar

sobrepondo (a produção do exótico) o conjunto de curiosidades da coletividade. Em

quinto e último lugar, vamos pensar questões afim de surjam ainda mais caminhos para

pensarmos uma possível universidade descolonial.

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É visível, não apenas pela proposição do tema e pelos caminhos que acabamos

escolhendo para trilhar, mas também pela variada bibliografia de autores que não se

encontram em apenas um campo de saber, que o percurso desse trabalho se distancia,

por vezes, de uma abordagem clássica antropológica – curso em que estou me

formando. Isso não foi um deslize, foi uma escolha. Isso não impossibilita que, nessa

escolha, não possam haver alguns deslizes. Nos arriscamos, porém, justamente por

achar que isso se diz coerente com a proposta do Encontro de Saberes: docentes e

discentes de diferentes cursos; visitantes que trabalham nos mais diferentes ramos;

crianças; e, claro, os mestres e aprendizes dos saberes tradicionais que dificilmente

produzem conhecimento na presença de barreiras entre um campo de saber e outro –

como se dá, por exemplo, na ausência de diálogo entre os departamentos de nossas

universidades. Se a proposta do projeto é inter, trans e multi (CARVALHO &

FLORÉZ, 2014) disciplinar, acreditamos que foi importante a tentativa, nessa

monografia, de fazer um movimento que se esforça em ser ao menos coerente com o

processo vivido.

Por fim, cremos que algumas questões importantes podem ser levantadas, já que

‘’o que existe [...] não é o desenvolvimento de uma ideia universal rumo ao futuro, que

se identifica com o progresso, o que existe são bifurcações que permitem construir

vários futuros’’ (SEGRERA, 2005, p. 221). As questões de tensão, questionamento e

proposição, assim se manifestam: o que aprendemos? Como aprendemos? Quem diz o

que é importante e como devemos aprender? Como podemos democratizar o ensino e a

produção de conhecimento? Como podemos pensar em uma produção de conhecimento

coletiva e contextualizada? Qual a importância da terra e da natureza no saber das

comunidades? E no nosso? O que podemos aprender com essa experiência? Como

podemos compartilhar o aprendizado? Como podemos continuar e aprender com os

erros que só o encontro é capaz de produzir? Cada vez que me faço uma pergunta, mais

perguntas aparecem. Para melhor entendimento do propósito deste trabalho, podemos

dizer que, no final das contas, todas podem ser resumidas na seguinte questão: como o

Encontro de Saberes, e também cada um de nós que passamos por tal experiência,

podemos construir uma universidade descolonial, realmente democrática, onde os

territórios e os saberes possam, de fato, constituir um movimento de troca de mútuo

fortalecimento?

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Capítulo 1 – contextualização: o território da escrita e a escrita do território1

1.1. Cotas na UNB:

Para iniciar algumas problematizações, reflexões e tensionamentos, creio que

seja preciso contextualizar o processo acerca do percurso do projeto ‘’Encontro de

Saberes’’. A ideia inicial é pensar o momento em que surge a proposta e de como ela foi

se expandindo em âmbito regional, nacional e internacional para outras universidades.

Acredito que entender a trajetória institucional percorrida pelo projeto e, assim, por

todas as pessoas que tiveram envolvimento na formulação e na participação do mesmo

em suas devidas universidades, é também entender os desafios burocráticos,

econômicos, epistemológicos, pedagógicos, territoriais e, acima de tudo, políticos que

surgem pelo caminho. Por isso mesmo, acredito que refazer o percurso é se fortalecer

diante dos movimentos conservadores que vêm para se estabelecer e manter suas

posições de poder, historicamente concedida a determinados grupos hegemônicos2.

Dito isso, vejo que seja imprescindível falar do programa de cotas antes de falar

do Encontro de Saberes, pois esse último se vê enquanto continuidade do primeiro.

Alerto, porém, que não pretendo me aprofundar na discussão das cotas, pois,

entendendo que seja uma complexa e longa questão e que já rendeu muitos

acontecimentos e debates desde de sua efetivação, receio perder o foco do trabalho3. No

documentário ‘’Raça Humana’’4 (2009) é contextualizado o surgimento das cotas na

UNB (Universidade Federal de Brasília) devido ao famoso ‘’caso Ari’’. Ari é um

estudante negro que foi selecionado pelo programa de doutorado em antropologia no

ano de 1999. Ele havia cursado duas disciplinas e tinha sido aprovado com nota máxima

1 Entenderemos território, ao longo desse trabalho, na sua relação com a política: ‘’ Desde a origem, o

território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão

próximo de terra-territorium quanto do terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra com inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles

que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo

tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufrui-lo, o território

inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação” (HAESBAERT, 2004, p. 1). 2 Sobre hegemonia, colonialidade do saber e do poder e eurocentrismo, ver ‘’Colonialidade do saber’’

(CLACSO, 2005), organizado por Edgardo Lander. 3 Para aprofundar na questão, ver Carvalho (2006a) e (2006b), Carvalho e Segato (2002), Feres e Daflon

(2007), Gomes (2003), Mello (2006), Silva (2005), Silvério (2002) e Siss (2002). 4 Todos os direitos autorais são da TV Câmara. Para assistir:

https://www.youtube.com/watch?v=y_dbLLBPXLo&t=1045s

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nas duas. Quando foi fazer uma disciplina obrigatória, o professor o reprovou, sendo

que nenhum outro estudante na história do programa havia sido reprovado antes. O

professor ainda avisou Ari que, se fosse pedir revisão de nota, ele iria reprová-lo mais

uma vez no ano seguinte. Como o caso tomou maiores dimensões, verificou-se que não

havia argumentos cabíveis para a reprovação do discente. O que ficou evidente nesse

relato era que, não só o professor, mas a universidade havia normalizado a ausência de

pessoas negras no ambiente acadêmico e ter um estudante negro fazendo doutorado,

podendo inclusive, mais tarde, tornar-se colega de trabalho do professor em questão, era

algo inaceitável pelo mesmo.

Por um lado, não vejo que seja agradável um estudante ser lembrado menos por

sua potência e mais por conta da violência que passou. Por outro, percebo que o fato de

seu caso ter sido visibilizado propiciou uma pauta de luta árdua, inicialmente para o

movimento negro: a presença de estudantes historicamente excluídos no ambiente

acadêmico. O professor de Pensamento Negro na UNB, Sales Augusto, deixa claro, no

filme, o que o ‘’caso Ari’’ havia sinalizado naquele momento:

‘’o simbolismo do caso Ari demonstra que a universidade no Brasil, não só a

UNB, mas a universidade de maneira geral, não está acima do bem e do mal.

Se essa sociedade é racista, em todas as esferas, esse racismo vai aparecer,

assim como apareceu na UNB’’.

É aqui que a discussão deixa de ser tratada enquanto caso individualizado de

racismo e começa a ser pensada e questionada enquanto estrutura, enquanto instituição,

ou seja, o problema torna-se social e político. Essa é uma passagem importantíssima,

pois vai movimentar diversos setores da sociedade que foram sistematicamente

silenciados. Tendo em mente o que o professor Sales nos diz, é importante lembrar que

havia um contexto favorável para esse questionamento, uma vez que já haviam

reivindicações do movimento negro na marcha de Zumbi, em 1995, para implementação

de políticas de ação afirmativa na educação e, em 2001, a terceira conferência mundial

contra o racismo na África do Sul fazia menções à ausência de negros no espaço

acadêmico.

Assustado com o ‘’caso Ari’’, José Jorge de Carvalho, professor em

antropologia pela UNB, em parceria com a professora Rita Segato, formularam pela

primeira vez, em 2002, a proposta de cotas na graduação para negros e indígenas. Esse

susto ainda proporcionou um movimento de levantamento de dados estatísticos

surpreendentes que evidenciam o completo apartheid social em que vive a universidade,

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como, por exemplo, o fato de que nenhuma universidade de referência nacional na

pesquisa, na época, ter mais de 1% de negros no quadro de professores (CARVALHO,

2006b).

O movimento pró-cotas na graduação foi sendo visto urgente para os grupos de

minorias, ao passo que a situação foi se tornando cada vez mais visível. E dizer que se

tornou visível não é referente apenas à naturalização de segregação a qual a academia

vivia (e ainda vive), mas também à repulsa clara e declarada de docentes e discentes

brancos contra o movimento. Superando as adversidades foi que em 2003, finalmente, o

programa de cotas foi aprovado com 20% das vagas para negros e 10% para indígenas.

O documentário ainda mostra que mesmo depois de 6 anos da presença de cotas

na UNB, em 2009, o partido Democratas (DEM) foi ao STF para pedir seu fim. É aqui

que a discussão torna-se ainda mais latente, pois esse ataque às cotas deixa os lados

mais visíveis e fica nítida a luta dos movimentos sociais e da negritude em prol de

justiça e igualdade no espaço acadêmico. Em outubro de 2009, ONGs e cotistas

protestaram contra essa incisiva e o coletivo em Defesa das Cotas, que já existia, se

fortaleceu para enfrentar as ostensivas. Os cotistas e apoiadores tinham um grande

ponto a favor: o reitor José Geraldo de Souza Júnior. Ele ajudou no processo por

perceber e assumir a existência do apartheid social presente na universidade. Ainda em

2009, houve a votação do estatuto da igualdade racial na câmara dos deputados. Depois

de uma considerável resistência de deputados conservadores, o estatuto não só foi

aprovado como, ainda em 2009, 90 universidades já contavam com algum tipo de cota

de acesso, em sua maioria, combinando a questão racial com a social.

1.2. Encontro de saberes – contexto nacional:

Ao falar de cotas, percebo o quanto esse movimento propicia um novo modo de

se fazer pesquisa e ensino. No ano marcante e decisivo para as cotas em 2009, ainda

houve a significante consolidação de um grupo de pesquisadores: Instituto Nacional de

Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino e na Pesquisa (INCTI). O site é claro no

seu intuito enquanto instituto:

[...] representa, no plano histórico da pesquisa em Ciências Sociais e

Humanidades no Brasil, a consolidação de uma rede de pesquisadores, antes

dispersa por todo o país, que por mais de uma década vem realizando

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pesquisas e produzindo conhecimento sobre as políticas de ações afirmativas

nas universidades brasileiras5.

A consolidação de uma rede de pesquisadores foi a efetivação de interesses em

comum: acesso e permanência de estudantes negros, indígenas e outros no meio

acadêmico. No ensino e na pesquisa há o constante desafio de uma nova produção de

conhecimento que aproxime as pessoas e, assim, os múltiplos conhecimentos que elas

trazem em sua formação, acadêmica ou não. Tendo isso em mente é que os

pesquisadores elencaram dois pontos de ação enquanto objetivo do instituto:

Mapear, avaliar e interpretar o efeito das políticas de inclusão étnica e racial no

ensino superior de recente implementação no Brasil, especialmente seu impacto

nos campos político, epistemológico, sociológico e geopolítico.

Produzir e disponibilizar um corpo de conhecimento que fundamente as

propostas e diretrizes governamentais, políticas públicas e programas de ação

específicos para a promoção da inclusão e a superação das desigualdades étnicas

e raciais vigentes no ensino superior do Brasil e nos países da América do Sul

com instituições coligadas ao Instituto.

Lendo os objetivos, me parece que fica mais claro o teor de iniciativa, mas

também de continuidade e responsabilidade para com aqueles que ingressam na

universidade. É importante lembrar que a desigualdade, o racismo e o separatismo

existente nas universidades não se findam com as cotas. Essa ação afirmativa chega para

tencionar as posições de poder e problematizar lugares de fala, de neutralidade científica

e o próprio lugar do branco, da branquitude6.

Além de todas essas questões que foram abordadas, é interessante deixar claro a

atuação e teorização interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar (conceitos que

vamos aprofundar mais a frente) proposta pelos envolvidos do INCTI. José Jorge de

Carvalho, pesquisador e coordenador do instituto, em uma entrevista na TV digital do

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação7 (MCTI), fala de ‘’um tipo de pesquisa

em que eu tenho que transitar em várias ciências’’. Ele, que começou na física, migrou

5 Para saber mais: http://www.inctinclusao.com.br/incti/historia 6 Branquitude é a qualidade de ser visto e se ver como branco e ocupar posições simbólicas de poder que

esse lugar sugere: ‘’posição do sujeito, surgida na confluência de eventos históricos e políticos

determináveis’’ (STEYN apud SHOUCMAN, 2014, p. 84). O termo será melhor trabalhado no segundo

capítulo. 7 Ver vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=IeQnavHVt_s&t=2s

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para musicologia e, mais tarde foi para antropologia, percebe, no decorrer de sua

formação, a necessidade constante de propiciar uma abertura no conhecimento para o

diálogo com diversas áreas. Fala também da importância do pesquisador ter consciência

que sua formação não é tão linear e progressiva quanto parece, já que ‘’a dinâmica do

saber é muito grande’’. Na experiência da implementação das cotas, por exemplo,

Carvalho fala da movimentação de saberes históricos, sociológicos, antropológicos,

cartográficos, mas também semiológicos, lógicos, matemáticos e estatísticos, pois, na

academia, ‘’se você deseja triunfar sobre um matemático, é preciso fazer

matematicamente pela demonstração ou refutação’’ (BOURDIEU, 1977, p. 32).

Pois bem, suponho que, nesse momento, temos um terreno favorável para

abordar aquilo que será tema de análise, problematização e discussão nesse trabalho

monográfico: o Encontro de Saberes. Enquanto as cotas se referem ao acesso à

universidade, o Encontro de Saberes propõe aquilo que chama de cotas epistêmicas.

Lembramos que o movimento das cotas, por propiciar a presença física de estudantes de

graduação, gerou também um constante movimento de questionamento dessa estrutura,

como grupos de estudos, de pesquisa, o próprio INCTI, a criação e o fortalecimento do

movimento negro e indígena nos ambientes acadêmicos e etc. Algumas perguntas são

frequentes ainda hoje nesses movimentos (e parece que serão por um tempo ainda):

‘’por que sempre e apenas lemos autores europeus, brancos e homens?’’, ‘’Por que

somos constantemente constrangidos, corporal e intelectualmente?’’, ‘’Por que nos

sentimos tão incapazes?’’ Ou ‘’por que o meu conhecimento, ou o conhecimento da

minha comunidade, ou o conhecimento do meu povo não é devidamente reconhecido e

valorizado?’’

É no contexto de todas essas frequentes perguntas que são, e devem ser feitas a

todo momento, que o Encontro de Saberes surge: se no primeiro as questões se referem

ao acesso dos estudantes à universidade, o segundo refere-se aos conhecimentos que

esses estudantes antes excluídos do meio acadêmico trazem consigo e que, muitas

vezes, remetem aos mestres dos saberes tradicionais, já reconhecidos por sua própria

comunidade. O projeto Encontro de Saberes se pensa enquanto continuidade e

fortalecimento das cotas. Ele coloca a questão de que tão importante quanto o apoio

financeiro, a universidade precisa também ser criativa para elaborar meios de inclusão

epistemológica, para, enfim, consolidar uma permanência mais eficaz dos estudantes.

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Um anfitrião, sentindo-se dono e possuidor de seu lar, pode receber sua visita e querer

tratá-la de acordo com seu sistema de regras e normas obrigando-a a se curvar sob elas,

ou pode, de maneira gentil e dialógica, puxar a cadeira e construir, junto com esse que

chega, uma maneira interessante percorrer um caminho. Alguns transformaram a

universidade pública em posse e querem definir seu acesso através de muros físicos e

simbólicos. Outros, abrem seu campo de percepção para o desconhecido e se aventuram

na construção do comum. O Encontro de Saberes tenta se aproximar mais do segundo

modo de relação.

Para ficar ainda mais claro a proposta do projeto, deixemos os pesquisadores do

INCTI falar sobre:

A meta do projeto é propiciar um espaço de experimentação pedagógica e

epistêmica no ensino capaz de inspirar resgates de saberes e inovações que

beneficiem a todos os envolvidos – estudantes, mestres e professores. Trata-

se de um desafio de grandes proporções devido ao verdadeiro abismo que

separa os dois mundos que pretendemos colocar em diálogo: o mundo

acadêmico, altamente letrado e centrado exclusivamente nos saberes

derivados das universidades ocidentais modernas; e o mundo dos saberes

tradicionais, centrado na transmissão oral e que preserva saberes de matrizes

indígenas e africanas e de outras comunidades tradicionais, acumuladas

durante séculos no Brasil’’.

Percebemos, aqui, que a meta do projeto é referente especificamente ao ensino.

O intuito é epistemológico e pedagógico. Como pode ser possível a coexistência de

saberes acadêmicos, letrados e saberes baseados na transmissão oral? Como incluir

tradições orais e transformar a escrita em algo mais potente e menos burocrático? Como

sair da ideia de que a oralidade é algo menor? Esses saberes distintos podem entrar em

diálogo? Como fazer isso acontecer? Perguntas como essas são disparadoras de

reflexões incessantes acerca do curso, num intuito de tentar perceber os pontos fortes e

frágeis do encontro. Uma vez que a oralidade ganha espaço na academia, isso não

significa desvalorizar a potência da escrita ou dos acadêmicos, mas ter consciência de

que nós não detemos a verdade na produção do saber. Penso que, na verdade, operamos

um saber que se torna potente quando entra em relação com outros saberes.

É interessante perceber a produção de uma proximidade entre os sujeitos dos

saberes envolvidos, pois creio ser essa uma ótima palavra para entender o que os

mestres dos saberes tradicionais fazem quando estão dando suas aulas ou simplesmente

conversando com os estudantes e outros professores pelos corredores da universidade.

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Enfim, trazer os mestres para universidade é responsabilizá-la em repensar o seu lugar

de produção de conhecimento e abrir a porta da frente para aqueles que sempre entraram

pelos fundos e subiram pelos elevadores de serviço.

Tendo em vista a recepção do mestre enquanto professor doutor, o projeto

percebe que seja importante que esse mestre receba a hora aula, também, enquanto

doutor. O reconhecimento, na perspectiva do projeto, deve passar pelo pagamento dos

mestres (acompanhado com a devida titulação), pois, no modelo capitalista em que

vivemos, considerar esse ato seria importante para colaborar com a validação e

legitimação desse saber. Se ele está prestando um serviço, deve ser pago por isso. Esse

ponto é importante, pois é bastante levantado pelos membros do grupo (e também pelo

seu idealizador, José Jorge), relatando que muitos mestres já vieram às universidades

enquanto palestrantes ou convidados, mas só recebiam ajuda de custo e raramente sua

estadia ultrapassa mais de um dia nos espaços de fala da universidade. O projeto

acredita que o reconhecimento desse saber, para propiciar uma igualdade cognitiva para

com o saber científico, precisa passar pelo aspecto financeiro.

A primeira experiência do Encontro de Saberes foi realizada em 2010, em

Brasília, na UNB, e, no mesmo ano, viveu, e ainda vive, um intenso processo de

expansão em outras universidades do país que se tornaram aliadas desse movimento.

Em 2010, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade Federal de Juiz de

Fora, a Universidade Federal do Sul da Bahia, a Universidade Federal do Pará, a

Universidade Estadual do Ceará e a Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá na

Colômbia se abriram para efetivação do projeto. Mais tarde, em 2015 e em 2016, o

“Encontros de Saberes” ainda pôde se expandir em outras Universidades, como na

Universidade Federal de São Paulo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na

Universidade Federal de Pelotas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e na

Universidade Federal Fluminense.

Acho interessante lembrar que quando falamos das universidades que aderiram

ao projeto, não nos referimos às universidades enquanto instituições apenas, mas,

também, às pessoas que acreditam na importância que é a vinda de saberes outros no

ambiente acadêmico. A universidade é um campo de disputa intenso e incessante e para

realizar ideias como essa, é preciso de uma disposição e de um envolvimento de

interessados. O diálogo que o grupo constrói entre si e com as estruturas burocráticas

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são indispensáveis para implementação do projeto, não à toa que José Jorge tem

visitado as universidades interessadas para agenciar pessoas que tenham interesse e para

orientar no processo de construção do projeto, compartilhando sua própria experiência.

1.2.1. Encontro de Saberes: características e metodologia:

O conjunto de ações que a UNB e seus respectivos pesquisadores e parceiros

movimentaram tem um intuito que Carvalho (2010, p. 242) define de uma unificação da

‘’lucha por la superación, de una sola vez, del racismo fenotípico y del eurocentrismo

monoepistémico’’. Pontuando esse objetivo, podemos entender melhor duas perguntas

que o projeto se propõe a questionar e, assim, se basear para traçar uma linha

metodológica que contemple tal objetivo (Carvalho e Florez, 2014, p. 136): (1) para que

queremos universitários indígenas e negros educados por esquemas brancos? (2) como

construir uma Universidade aberta a todos os saberes criados e vigentes em nosso

continente?

Nas problematizações acima percebe-se uma continuidade: se na primeira

pergunta há um teor de reclamação, insatisfação e incômodo, no segundo há um teor

provocativo que pede sugestões, caminhos, propostas. O projeto se propõe enquanto um

caminho teórico-político no ensino. É nesse contexto que o Encontro de Saberes

pretende assumir características indispensáveis à realização, as quais Carvalho (2010, p.

248) nos enumera:

a) la enseñanza debe ser políglota, y debe reflejar la pluralidad lingüística

de cada país;

b) la enseñanza debe alternar o combinar contenidos de tradición oral

con contenidos basados en la escritura;

c) los estudiantes deben ser negros, blancos, indígenas y demás minorías

– todos idealmente en una proporción que sea igual al porcentaje de cada uno de los grupos étnicos y raciales que conformen la sociedad como un

todo;

d) los protocolos pedagógicos deben ser variados y siempre sensibles a la

realidad de cada disciplina o campo de saber;

e) los profesores deben ser de dos tipos: los sabios profesores que

tuvieron estudios formales en universidades occidentalizadas; y los

sabios profesores, afros e indígenas, sin formación occidentalizada

regular o ágrafos, como los chamanes, payés, taitas, babalaos, artesanos,

maestros de oficios, artistas, etc;

f) no debe haber exclusión ni jerarquía previa de los saberes de nuestras

sociedades, ni por sus orígenes epistémicos, ni étnicos, ni raciales, ni geográficos, ni por su soporte oral o escrito, o por cualquier otro tipo;

g) la autoridad relativa de cada saber será construida como resultado del

encuentro de saberes.

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Creio que, quando o autor enumera o que chama de características do projeto,

pode-se ler, também, condições de modus operandi, de forma de funcionamento, ou

seja, um processo metodológico. Penso ser a parte mais difícil e desafiadora do projeto

e de qualquer outra coisa que tenha como ponto de partida, ou como campo de

acontecimentos, a academia: a passagem da teoria para a prática. Não é de se espantar,

assim, que a cada nova versão do Encontro de Saberes em outro contexto universitário,

ele ganha novas reflexões, novos desafios, novas lutas e, assim, novas formulações

teóricas e práticas. Em outras palavras, ‘’não é necessariamente lendo livros teóricos

que se produz teorias’’ (BOURDIEU, 2014, p. 304).

Para entendermos melhor a metodologia pensada por José Jorge, recorro a um

meio que usei para abordar a questão em um artigo anterior (RIBEIRO, 2016. No

Prelo). Percebendo não só as frequentes repetições, mas a importância dada aos prefixos

inter, trans e multi, apertei ctrl + f para pesquisar onde aparecem, no texto de Carvalho

e Floréz (2014), tais palavras. O resultado foi interessantíssimo, pois contempla de

forma bem ampla um entendimento da metodologia do projeto que dialoga diretamente

com as características enumeradas anteriormente por José Jorge.

O prefixo inter almeja se realizar no cruzamento entre as disciplinas acadêmicas.

Se não quebra com as fronteiras simbólicas ou mesmo físicas, pelo menos tenta se

tornar menos rígida, para que seja possível o diálogo. A primeira palavra que surge é a

‘’interculturalidade’’. Ela vem como possibilidade de deixar-se atravessar pela

diferença; em seguida, vem o ‘’intercâmbio’’, termo entendido como potência criativa,

lugar de onde deriva diversas formas de expressão; a ‘’interpretação’’, em um campo

hermenêutico aberto, pretende garantir a ação de diferentes meios de sentir, pensar e

fazer; e, por último, a ‘’intervenção’’, que quer dialogar com o questionamento feito no

último parágrafo, fundamenta o movimento teórico-político, onde a prática e a teoria

não se dicotomizariam, e sim onde uma seria apoio e instrumento de transformação da

outra. A diversidade de cursos ali presentes diz muito da possibilidade do carácter inter

entrar em ação: medicina, geografia, direito, engenharia ambiental, ciências sociais,

filosofia, história, arquitetura, educação do campo, pedagogia, arqueologia, botânica,

entre outras.

O caráter trans aparece enquanto uma radicalização do caráter inter. As palavras

‘’transformação’’ e ‘’transmissão’’ de saberes são de suma importância para a

existência de uma possibilidade outra de ensino e educação nos espaços acadêmicos.

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‘’Transmissão’’ aparece na tentativa de combater o carácter de emissão, valorizada pela

pedagogia ocidental eurocêntrica, no qual o poder de fala do professor parte em direção

à página em branco que seria o aluno. A ‘’transmissão’’ aqui almeja um movimento de

troca não hierárquica, ou pelo menos uma redefinição e tensionamento de hierarquias na

relação entre os saberes. A ‘’transformação’’, nesse sentido, quer agir na relação com o

outro, na possibilidade de uma nova existência, ali mesmo onde há o tensionamento de

um interessante e instável jogo entre identidade e alteridade.

Por fim, o caráter multi é mencionado como caminho possível de fuga de uma

epistemologia hegemônica: é a ‘’multiplicidade’’ entrando em ação no espaço. Ela

pretende abrir caminhos e faz coexistir as diferenças. Os autores ainda trabalham com

os termos ‘’multiétinico’’ e ‘’multirracial’’. Eles fazem referência à uma possibilidade

de múltiplas epistêmes entrarem em campo e que a circularidade seja parte integrante do

processo. É ainda nesse contexto que se fala de um aspecto ‘’multidimensional’’, de

escalas de percepção muito variadas, onde há a tentativa de que haja diversos caminhos

e que eles possam ser realçados, não ocultados.

Não penso nos termos mencionados acima enquanto auto referenciais, mas sim

enquanto traços de um mesmo movimento, de uma mesma intenção, no intuito de

construir um mesmo projeto: subversão dos modelos hierarquizados e assimétricos de

poder presentes na estrutura institucional acadêmica. Enfatizemos, então, as perguntas-

motores do projeto: que tipo de universidade queremos? Que tipo de ensino queremos?

Ou de forma mais radical, o que queremos aprender nesses espaços: além de

universidade para quem, universidade para quê? São essas perguntas que movem o

Encontro de Saberes em âmbito nacional e que foram, também, o caminho para

pensarmos, na Universidade Federal Fluminense (UFF), a versão do projeto, realizada

no primeiro semestre de 2017, depois da visita do professor José Jorge ao campus do

Gragoatá em março de 2016.

1.2.2. Encontro de Saberes na/da UFF:

O governo federal, em 2007, projetou uma expansão da rede federal de

educação, intitulado Reuni. Ele visa ampliar e democratizar o acesso ao ensino superior

de qualidade. Foi nesse contexto que a Universidade Federal Fluminense apresentou ao

MEC o maior plano de expansão dentre as universidades federais do país. E, assim,

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projetou-se como a maior universidade federal do Brasil em número de estudantes de

graduação até 2017 (MELLO apud SACRAMENTO, RANGEL e AMARAL, 2015, p.

10). Baseado nos dados de 2013, a UFF contava com 104 cursos de graduação, 154

cursos de pós-graduação lato sensu, 61 cursos de mestrado e 32 de doutorado. Além

disso, essa universidade ainda conta com uma política de descentralização e

flexibilização administrativa no interior. São 13 campis espalhados pelo Estado do Rio

de Janeiro: Campos dos Goytacazes (Serviço Social), Santo Antônio de Pádua

(Matemática – licenciatura), Volta Redonda (Escola de Engenharia Industrial e

Metalúrgica), Angra dos Reis (Pedagogia), Itaperuna (Administração), Macaé

(Administração e Ciências Contábeis), Miracema (Ciências Contábeis) e Nova Iguaçu

(Administração, Ciências Contábeis e Direito). Ainda em 2012, esse movimento

conjunto de ampliação, expansão e descentralização, levou a UFF de 66 cursos diurnos

para 121 e de 19 cursos noturnos para 49.

Optei por trazer esses dados porque podem propiciar um entendimento maior do

contexto institucional da UFF para, assim, localizá-la no cenário nacional das políticas

de acesso-permanência que vou desenvolver agora. Das universidades que têm o

sistema de cotas de acesso, a federal fluminense tem a segunda menor porcentagem

(perdendo apenas para a federal de Larvas, UFLA) de política de cotas do Sudeste8. Ou

seja, a quantidade de pessoas que tiveram acesso à UFF não é diretamente proporcional

ao número de vagas destinadas às populações historicamente excluídas desse espaço.

Pesquisando, encontrei uma notícia interessante (2016) do ‘’O globo’’9 que tem

como chamada o seguinte título: ‘’Dois em cada três alunos da UFF não se formam no

prazo formal do curso’’. Isso totalizaria, pelos dados de 2011, 22.318 alunos de 35.890

que protelaram o prazo – lembrando que desistentes também entram nas estatísticas. A

matéria afirma que, mesmo que tenha havido um crescimento de 64% no acesso à tal

universidade pelo Reuni, só houve 10% de aumento no número de formados.

A incompatibilidade de acesso e permanência é algo surpreende e deve ser

problematizada. Entrevistando algumas pessoas, como o pró-reitor de graduação,

professores que pensam esses acontecimentos e um estudante, a matéria jornalística

conclui que o pouco aumento de estudantes formados é por causa dos: (1) discentes de

8 Para ver o mapa e dados das ações afirmativas no Brasil: http://gemaa.iesp.uerj.br/mapa-da-acao-

afirmativa/ e http://www.inctinclusao.com.br/ 9 Matéria: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/dois-em-cada-tres-alunos-da-uff-nao-se-formam-no-

prazo-normal-do-curso-17470595

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renda mais baixa que entram, mas não tem respaldo para que permaneçam; (2) a carga-

horária é muito grande e impossibilita principalmente quem trabalha em conciliar com

estudos. Veja que separei os dois argumentos, mas eles se encaixam: o discente fica

desestimulado quando é compelido a atrelar uma carga-horária imensa com uma rotina

de trabalho desgastante. A Universidade propiciou o acesso, mas não garantiu ações

afirmativas que possibilitassem a continuidade desses estudantes ali dentro.

É nesse contexto que podemos perguntar: A que custo se propaga uma ideia de

acesso, descentralização para o interior e criação de novos cursos se não é garantida

uma estrutura de acolhimento? Estamos abrindo as portas da casa chamada universidade

e não estamos arrumando os (in)cômodos para sentirem-se, de fato, em casa? Enfim, do

que adianta acesso sem permanência?

Na IX Semana de Psicologia da UFF, em 2016, houve uma roda de conversa

nomeada ‘’Um diálogo: qual Universidade queremos?’’. O encontro aconteceu em uma

sala do Bloco P do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) que tem

capacidade para, no máximo, 60 pessoas. Não foi suficiente: haviam pessoas sentadas

no chão e em pé. Haviam, pelo menos, 90 pessoas na sala, entre estudantes e

professores. A conversa girou em torno, principalmente, das dificuldades pelas quais

estudantes historicamente excluídos (negros, indígenas, mulheres) passam ao entrar na

universidade.

Alguns estudantes controlavam o tempo e a fila de inscritos para as pessoas

trazerem suas questões e para que as falas se revezassem. Apareceram desde relatos

mais íntimos, desabafos de violência até questionamento da estrutura universitária e do

modos de aprendizagem. As falas eram bastante gestuais e os corpos também falavam.

Algo que não se concordava era questionado e algo que se concordava era aplaudido.

Os olhares estavam muito atentos ao que a próxima pessoa iria relatar. Nesse momento,

ficou claro para mim que o problema não é pequeno. Ele foi, na verdade, minimizado

pelo fato da própria universidade não conceber a devida atenção que o problema pede.

Pois bem, o Encontro de Saberes na/da UFF se diz parte desse movimento de

insatisfação. No dia 18 de março de 2016, o professor José Jorge de Carvalho vem à

UFF. Ele atrai uma quantidade enorme de interessados para o auditório do bloco O,

Campus do Gragoatá. Os presentes, vindos de lugares completamente distintos e

atuando de formas muito variadas, forçam as cadeiras e abrem uma roda de mais de

cinquenta pessoas.

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A presença de José Jorge era no intuito de que falasse de sua experiência na

militância em ações afirmativas no país, mas torna-se, ao contrário, um momento de

escuta. O professor ouve atentamente os angustiados desabafos de docentes e discentes

acerca do tratamento que recebem da instituição que ora ignora, ora nega a presença

física e epistemológica desse outro no espaço acadêmico. Em um outro texto publicado

pelo Grupo Encontro de Saberes na/da UFF (GE Encontro de Saberes na/da UFF,

2017), narramos a trajetória e consolidação do nosso coletivo e de como ‘’experiências

solitárias’’ se cruzaram depois da vinda de José Jorge à UFF.

Passaram pelo “Encontros de Saberes da/na UFF” professores e estudantes das

seguintes unidades e áreas de atuação: Instituto de Psicologia, Instituto de Artes e

Comunicação Social, Faculdade de Educação, Centro Universitário de Rio das Ostras,

Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior, curso de Filosofia, curso de

Antropologia, curso de Ciências Sociais, curso de Geografia. Participam ainda pelo

projeto integrantes de grupos e movimentos sociais e/ou de Comunidades Tradicionais.

Seguem os projetos desenvolvidos por alguns dos professores do Grupo, para que

possamos entender um pouco melhor o percurso e o encontro dessas experiências (GE

do Encontro de Saberes, 2017, p. 291-292):

No Departamento de Psicologia da UFF

Realizam-se duas disciplinas que apresentam afinidades teóricas e pedagógicas

entre si. São elas: “Subjetividades Nativas” e “Sociedade Brasileira e África:

subjetivações afro-descendentes”. Os professores da Psicologia assumem, juntamente

com os professores externos colaboradores, as disciplinas em seus aspectos político-

pedagógicos: planejamento, metodologias, avaliação. Ambas disciplinas visam trazer à

tona universos cosmológicos distintos daqueles que serviram historicamente de pano de

fundo para a criação dos saberes e práticas psicológicos. São estes objetivos das

disciplinas que trazem a necessidade do diálogo interétnico e que explicitam os limites

e impasses da formação em psicologia diante de universos que lhes são distintos. Cito

aqui as ‘’experiências solitárias’’ e seus intuitos enquanto projetos de extensão, ensino

e pesquisa

No departamento sociedade, educação e conhecimento da Faculdade de

Educação da UFF (SSE-FEUFF)

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A UFF desenvolve, há mais de 20 anos, atividades de pesquisa e extensão com

Comunidades Jongueiras. Como resultado deste trabalho, foi criado, em 2008, o

Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, programa de ensino, pesquisa, e extensão,

vinculado à PROEX, que articula ações de salvaguarda do patrimônio cultural

imaterial com comunidades localizadas em diversos municípios da região sudeste.

Um dos resultados do programa foi a articulação de uma Rede de Jovens

Lideranças Jongueiras, no ano de 2010. De 2011 até 2014, o Pontão de Cultura do

Jongo/Caxambu foi contemplado nos editais do PROEXT/MEC/SESU para o

desenvolvimento de projetos com a Rede de Jovens Lideranças Jongueiras. O programa

conta com a parceria do LABOEP (Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural) e

do Observatório Jovem, núcleos de pesquisa e de extensão da Faculdade de Educação.

E conta ainda com a colaboração do LABHOI (Laboratório de História Oral e

Imagem), do Instituto de História.

Nas muitas atividades desenvolvidas, como seminários e oficinas realizadas

dentro e fora do espaço da Universidade, procurava-se avançar, no sentido de que

“quem falava do Jongo/Caxambu e das questões que afetam as comunidades eram os

jongueiros e jongueiras”, com a participação em mesas, junto com professores,

pesquisadores e autoridades. No segundo semestre de 2014, de forma ainda

experimental, em parceria com a Rede de Jovens Lideranças Jongueiras, foi decidida a

oferta da disciplina “Jongo: patrimônio afro-brasileiro na universidade”, completando

a articulação ensino, pesquisa e extensão no âmbito do programa. No primeiro

semestre de 2016, a disciplina foi novamente oferecida. Desta vez, como “Patrimônio

negro na universidade”, ampliando o diálogo com outros detentores e detentoras do

patrimônio cultural imaterial. Além do Jongo, contou com a participação da Capoeira

e do Ofício das Baianas do Acarajé.

No Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS)

O campo da produção Cultural apresenta aos professores e estudantes

universitários o desafio de dialogar com grupos sociais com características das mais

diversas. A implementação desse projeto será, no âmbito da UFF, a primeira

experiência que pretenderá produzir caminhos alternativos para um diálogo

interepistêmico que possa contemplar as relações entre práticas específicas de mestres

brincantes, coletivos e comunidades populares rurais e urbanas de caráter tradicional

e processos pedagógicos do campo acadêmico da Produção Cultural.

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O projeto parte do princípio de que é necessário que o ambiente

universitário brasileiro possa contemplar os saberes e fazeres de comunidades e

agentes culturais populares e tradicionais como elementos estruturantes da experiência

acadêmica e de formação dos estudantes. Historicamente esses mestres brincantes,

coletivos e comunidades têm visto seus conhecimentos seres inseridos na Universidade

somente como objetos de pesquisa, seja por meio da produção bibliográfica ou através

de variados eventos pontuais. O presente projeto pretende conferir um novo lócus para

esses agentes culturais, entendendo que o reconhecimento desses sujeitos e seus

saberes e fazeres relacionados, cumpre uma importante função política de legitimação

de formas alternativas de conhecimento e vida a excludentes práticas epistêmicas

hegemônicas e/ou colonialistas.

Depois de várias sextas-feiras nos reunindo, nos conhecendo, conhecendo os

projetos mencionados acima, lendo e discutindo textos de interesse comum,

compartilhando eventos e aulas relacionadas ao Grupo, uma frase tornou-se comum ao

grupo: ‘’temos que aprender errando’’. O grupo sentia que o assunto era urgente, que já

não era possível apenas especular sobre como seria o Encontro de Saberes na UFF. Foi

assim que o grupo se viu estreitando relações em sentido cooperativo e colaborativo nas

“experiências solitárias’’ e se fortalecendo em caminho da construção de um objetivo

comum: a institucionalização do Encontro de Saberes. No processo de entender esse

objetivo comum, propiciamos alguns espaços de diálogo que favoreceram a caminhada

e nos fizeram refletir e pensar melhor as ações seguintes:

a) Encontro com o Professor Leonardo Carneiro, coordenador do “Encontro de

Saberes” na Universidade Federal de Juiz de Fora (Universidade que fica a

três horas do Rio e já estava em sua segunda edição do Encontro de

Saberes);

b) A roda de conversa “Descolonialidade, universidade, e a potência dos

encontros de saberes”, com o Professor Carlos Walter Porto Gonçalves.

Flávia Salgado fez a mediação e eu relatei um pouco de minha experiência

em Juiz de Fora, na IX Semana de Psicologia da UFF;

c) A participação em diversas atividades do Festival Nacional de Cultura

Popular Interculturalidades, promovido pelo Centro de Artes da UFF, como

a Festa da Ramada do Quilombo Boa Vista Cuminã e São Joaquim de

Oriximiná-PA, os Jongos e Tambores da Machadinha, do Quilombo São

José da Serra, de Pinheiral, e o Caxambu de Miracema;

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d) A Mesa Circular Encontro de Saberes na UFF, com a participação de Lúcia

Cavalieri, Emílio Nolasco, Elaine Monteiro e Lygia de Oliveira Fernandes,

todos integrantes do GE; do Pró-reitor de Graduação, José Rodrigues Farias

Filho; da Professora Carolina Bezerra (Universidade Federal de Juiz de

Fora), e do Professor José Jorge de Carvalho (Universidade de Brasília).

e) O 1° Encontro de Saberes na UFF. O Encontro tinha o intuito de discutir a

implementação de duas disciplinas, com quatro módulos cada uma, com

mestres e aprendizes das tradições.

O último tópico da lista aconteceu no dia 08 de dezembro de 2016. A essa altura

já tínhamos claro o que, como, quando, onde, mais ou menos quanto e quem queríamos

para a realização do Encontro de Saberes. Lá, houve uma apresentação do professor

Johnny Menezes, integrante do nosso grupo, que expôs o formato feito por nós. A

apresentação era bem direcionada ao pró-reitor da Prograd (pró-reitoria de graduação)

José Rodrigues Farias Filho, que concordou em financiar as idas à campo, hospedagem,

alimentação, transporte e pagamento dos mestres e aprendizes tradicionais.

Com exceção dos feriados, paralizações e outros imprevistos, os módulos

continham, em média, três aulas para cada mestre. Ao fim, as disciplinas ficaram

divididas, por mais que se juntassem uma vez ou outra, dessa maneira:

Disciplina conjunta entre a pedagogia e a psicologia:

Módulo 1: Corpo, dança e espiritualidade no Jongo

Módulo 2: Corpo e espiritualidade no terreiro

Módulo 3: Corpo e espiritualidade Mbya

Módulo 4: Saberes caiçaras

Disciplina pelo Instituto de Artes e Comunicação Social:

Módulo 1: oralidade e tradição – terreiro

Módulo 2: oralidade e tradição – reisado

Módulo 3: oralidade e tradição – cordel

Módulo 410: oralidade e tradição – partido alto

10 Não houve esse módulo, pois o mestre Tantinho entrou em turnê no mesmo período.

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Dividimos bem o dinheiro destinados aos trabalhos de campo e fizemos uma

média de 2 idas para cada comunidade tradicional. Os docentes e discentes que já

tinham um vínculo com determinado grupo, por conta de laços de confiança, ficaram de

ir até eles para iniciar a conversa sobre o Encontro (isso não impossibilitava, claro,

quem não tinha vínculo de ir também). Eu fui com o professor Emílio Nolasco e Sandra

Benites (Guarani-Nhandeva) até a aldeia de Araponga, em Paraty, onde residiam Seu

Augustinho e Dona Maciana. Ao fazermos a proposta, fomos sinceros de como

prevíamos ser todo o processo, de que seriam pagos por isso e que poderiam sugerir e

participar ativamente da construção do processo. Desde a primeira ida, recebemos um

‘’sim’’ como resposta, o que não foi muito diferente dos outros campos.

E foi na força desse ‘’sim’’ que tivemos como retorno que no primeiro semestre

de 2017 iniciamos os trabalhos práticos, em uma equipe de monitores e professores para

realizar o acontecimento que é vinda dos mestres e, assim, do Encontro de Saberes:

preparar memorandos para a alimentação no Restaurante Universitário, agendar vagas

em hotéis ou preparar a casa de algum professor, recolher documentação, agendar o

transporte, fazer grupos online de trabalho e das disciplinas, etc. Aprendendo errando, já

que toda caminhada é feita de erros, foi que a disciplina regular na graduação se

institucionalizou no primeiro semestre de 201711.

1.3. Minha experiência no Encontro de Saberes:

Nós, que estávamos no primeiro semestre de 2017, agora voltamos para o

segundo semestre de 2015, onde vou traçar a trajetória do meu encontro com o projeto,

de como fui me inserindo no movimento na UFF e de como o tema foi se tornando meu

projeto de pesquisa e análise.

Em dezembro de 2015, minha mãe, Beatriz Ribeiro, me falou do curso que seu

amigo de doutorado, Leonardo Carneiro, estava organizando na universidade federal de

Juiz de Fora (UFJF). O contato foi feito e pude me hospedar na casa do professor

durante os encontros. O curso foi dividido, como na UFF, em módulos: módulo

agroecologia, módulo indígena e módulo quilombola. Só que, ao invés de haver

encontros toda semana, eles aconteciam em alguns finais de semana ao longo do

11 Os ‘’erros’’ a que faço referência vão ser melhor desenvolvidos no capítulo 4. Em cima da noção de

cuidado, quero pensar, dentre outras coisas, possibilidades para evitar a produção do exótico no Encontro

de Saberes.

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semestre. Houveram três encontros apenas com os professores da universidade: dois no

início para a apresentação do curso e das amplas temáticas que seriam trabalhadas pelos

mestres e um no final, para avaliação do curso, dos estudantes e do movimento como

um todo. Com os mestres foram realizados três finais de semana, um para cada módulo.

A minha presença, física e espiritual, nesses encontros fez com que eu mudasse

minha concepção sobre Universidade. Passei a questionar a estrutura, a pedagogia

ocidentalizada, a hierarquização epistemológica, o racismo, as relações de poder e a

problematizar minha atuação ética: na posição de pessoa e de acadêmico. Na leitura de

textos que nunca teria contato se não estivesse onde estava e no encontro com pessoas e

seus modos de pensar o mundo e as relações, foi que fui me aproximando do

movimento.

Temos que considerar que minha posição ali era privilegiada. Estava hospedado

na casa de uma pessoa que organizava o Encontro e que vivia aquela organização com

grande responsabilidade. Como estava nesse lugar, também pude conhecer e manter

relativa relação antes, durante e depois das aulas com os outros professores parceiros de

outros departamentos, como Daniel Pimenta, da Química, Carolina Bezerra, das

Ciências Sociais e Gustavo Soldati, da Biologia. Além disso, o encontro que tive com os

mestres também era diferente dos demais estudantes. Devido a minha proximidade com

os professores e a abertura que tinha por ser de outro lugar, pude, assim, conhecer novas

pessoas e me aproximar bastante dos mestres tradicionais. Isso pôde me propiciar afetos

indizíveis com as pessoas e com o território mineiro e conhecer o movimento, até certo

ponto, por dentro, entendendo, assim, parte de seu processo de institucionalização, de

funcionamento e as concordâncias e discordâncias com o projeto original na UNB, do

professor José Jorge de Carvalho.

Na época, fazia duas disciplinas na UFF: (1) Abordagens Culturais na Geografia,

com o professor Rogério Haesbaert e (2) Antropologia da Música, com o professor

Daniel Bitter. Elas foram de suma importância para que surgisse um artigo, no final do

curso, intitulado ‘’Encontro de Saberes e a música no uso do território’’. No artigo

narrei o movimento territorial, político, epistemológico e pedagógico quando os

mestres, de maneiras bem variadas e diferenciadas entre si, utilizavam a música para

movimentação dos corpos no território (2016, no prelo). O artigo em questão é também

uma inspiração para essa monografia e me abriu caminhos para pensar questões ao

mesmo tempo em que me inseria mais politicamente na institucionalização do mesmo,

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na UFF. Como dito anteriormente, a vinda de José Jorge à UFF, em 2016, fez com que

experiências solitárias se encontrassem e, assim, com que minha inserção tivesse uma

continuidade com aquilo que tinha me afetado no semestre anterior.

Ainda em 2016, fiz a seleção para duas bolsas na Universidade: (1) para o

projeto de extensão chamado ‘’Etnoeducação Patrimonial em Oriximiná-PA’’ e (2) para

o programa de monitoria chamada ‘’Prática Docente em Antropologia’’. Fiquei na lista

de espera no primeiro e fui contemplado com a bolsa do segundo. Ainda sem bolsa,

participo já por um ano e meio como voluntário do projeto de extensão e pude viajar

uma vez à duas comunidades ribeirinhas na cidade de Oriximiná. A experiência de

monitoria foi de um ano (no primeiro semestre de 2016 com a professora Ana Cláudia

Silva e, no segundo, com o professor Daniel Bitter).

O motivo de ter mencionado esse meu momento na universidade tem um porquê.

Penso que esses três movimentos em que eu estava inserido foram essenciais para me

dar uma base dos três pilares aos quais a universidade considera fundamentais para o

desenvolvimento acadêmico: extensão, ensino e pesquisa. Na XIX semana de monitoria

da UFF, na segunda metade de 2016, fiz um slide narrando o surgimento do meu

interesse pela monitoria que mostra, de forma bem clara, o movimento ao qual estou me

referindo:

Perceba que as localizações dos pilares não estão compostas de forma vertical,

mas de forma circular e orgânica. Foi assim que fui tentando agir nesses lugares. Foi

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inclusive uma dificuldade dividir, no slide, os projetos de acordo com seu aspecto

acadêmico, pois o que havia era fluidez entre eles.

O projeto em Oriximiná se nomeia enquanto extensão, pois há trabalhos de

campo e fazemos pequenos visitas à região, mas o projeto é sobre educação,

‘’etnoeducação’’, e, portanto, de ensino. Além disso, o projeto tem movimentos de

pesquisa, já que ela é motora para as abordagens metodológicas com os sujeitos da

pesquisa, do como fazer que é, no caso projeto, a ideia do ‘’fazer com’’. Pode se pensar

o mesmo na monitoria. O trabalho não se limitava na sala de aula, naquilo que chamam

tradicionalmente de ensino. Ele se estendia para relações fora da sala de aula, na praça

da Cantareira, nos corredores, no campo virtual e nas atividades que os estudantes

compuseram, por exemplo, na ocupação do ICHF (Instituto de Ciências Humanas e

Filosofia) no segundo semestre. Era preciso, também, um movimento de pesquisa para

que os textos, as atividades pedagógicas, os seminários e provas fossem elaborados.

No Encontro de Saberes não foi diferente. O projeto tem uma força bem mais de

pesquisa para mim, pois foi o exercício que fiz desde o meu primeiro contato com ele. O

artigo, as falas em eventos, em aulas e, finalmente, essa monografia, tem o intuito de

entender a expressão, o alcance, as reverberações e as lutas que ele gera. O Encontro de

Saberes, porém, se diz enquanto uma experiência pedagógica, enquanto uma

continuidade, na Universidade, do projeto da pedagogia da autonomia: ‘’el foco de la

lucha de Paulo Freire fue siempre la alfabetización básica y no el tope de la enseñanza

superior, que es el lugar de los académicos’’ (CARVALHO, 2010, p. 244). Além disso,

há diversos aspectos extensionistas e, inclusive, em aspectos mais burocráticos, algumas

universidades, que é o caso da UFJF em 2015, conseguiram recursos das pró-reitorias

de extensão. Por mais que a luta do encontro seja no ensino, normalmente a relação com

os mestres já se dava por projetos extensionistas, além do que, na conversa com os

mestres, como é o nosso caso, há algumas idas à campo.

Ou seja, por mais que eu tenha aproximado a minha inserção em cada projeto

nos respectivos pilares de maior influência, a relação é totalmente circular e dinâmica.

Vejo isso enquanto um ponto positivo, por ter me possibilitado uma abertura no

entendimento da/na instituição e da minha própria formação de maneira bem ampla.

Já em 2017, quando já havia completado a monitoria em antropologia, o curso

Encontro de Saberes estava para acontecer e, como estava inserido desde o início do

movimento, acabei ficando, novamente, com a bolsa de monitor. Foi muito interessante,

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também, ter essa posição intermediária, nem de estudante, nem de professor, na relação

com as pessoas que passaram pelo Encontro. Eram abertas portas para aproximação dos

mestres, dos estudantes e dos professores. Acredito que o contexto todo que me levou

até ali fez com que tivesse um trabalho de campo cheio de acontecimentos, aos quais

pretendo fazer dialogar nessa monografia.

O mestre quilombola, Antônio Bispo, no evento ‘’1° Encontro de Saberes na

UFF’’ que organizamos, ao narrar o seu Encontro inesperado com o professor José

Jorge no Rio de Janeiro, um dia antes do evento e que possibilitou sua presença no dia

em questão, falava de sua descrença na palavra ‘’coincidência’’. Para ele, essa palavra é

uma relação com os acontecimentos que não condiz com o que, de fato, se sucede nos

encontros. Bispo fala, então, da palavra ‘’confluência’’ para pensar/sentir esse

momento. Todos estamos fazendo alguma coisa em algum lugar, em algum momento e,

muitas vezes, esses fazeres se cruzam. E é nesse cruzamento que a ‘confluência’’

acontece. Me parece uma ideia interessante de que nada surge do nada. Para que se

aconteça algo, é preciso de um chão, de um território, de um contexto para que os

pontos se encontrem e, por breves ou longos momentos, caminhem no mesmo sentido:

duas diferenças num plano comum. Vejo que minha inserção com as pessoas e lugares

não me levam ‘’do nada’’ à essa escrita. A escrita, nesse sentido, parte de um princípio

de que existe um território (um terror e uma terra) para que emerja. Ela é

contextualizada e sinto ter feito isso nessa introdução.

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Capítulo 2 – Universidade embrutecida: a produção do medo

2.1. Racismo estrutural:

No capítulo anterior, pudemos entender o contexto pelo qual surge a intenção de

fazer esse trabalho. Comecei falando sobre o processo de criação das cotas para negros

e indígenas do INCTI, do Encontro de Saberes em âmbito nacional e na UFF e, por fim,

vimos como fui me envolvendo e percebendo este envolvimento nos dois últimos anos.

Creio que pude criar um campo de percepção ao leitor que ficará mais acessível quando

falarmos, neste capítulo, da noção de racismo estrutural (ALMEIDA, 2016), da

produção do medo na sociedade e na academia e de como os sujeitos são embrutecidos12

pela estrutura e, claro, pelas pessoas que fazem parte dela.

Para compreender aquilo que vamos desenvolver mais a frente, percebo ser

importante falar das noções de raça e racialização para, depois, entender como o

racismo se apresenta enquanto estrutura e estruturante nas relações cotidianas13. Parece

haver um consenso entre antropólogos e geneticistas “de que, do ponto de vista

biológico, raças humanas não existem’’ (SANTOS, PALOMARES, NORMANDO e

QUINTÃO, 2010, p. 121). Não existem por conta da necessidade do ser se apresentar

geneticamente homogêneo, o que é impossível entre os humanos, onde ‘’as diferenças

entre um negro africano e um nórdico compreendem apenas 0,005% do genoma

humano’’ (idem). Desse modo, a cor da pele não define, a priori, a ancestralidade do

indivíduo, ela é apenas a manifestação fenotípica do conjunto de heranças genéticas.

O termo racialização, por sua vez, indica uma relação com os ‘’construtos

sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz

socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios’’

(GUIMARÃES apud SCHUCMAN, 2014). Assim, a racialização ou raça social se

define mais pelos lugares de poder ocupados pelos indivíduos, do que pelo aspecto

genético. Schucman, ao estudar o racismo pela racialização do branco, a branquitude,

12 O conceito de embrutecimento, de Rancière (2015), ficará claro ao longo do texto. 13 Lembrando que ‘’raça’’ é um tema antigo nos estudos antropológicos e sobre o qual vários autores já se

debruçaram, a partir de diferentes perspectivas e seguindo diversas linhas teóricas. Irei focalizar, porém, a

abordagem de Schuman, Quijano, o filme de Dulce Queiróz e outras reflexões que se cruzam pelo

caminho.

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nos diz que, ‘’nesta definição, as categorias sociológicas de etnia, cor, cultura, raça se

entrecruzam, colam e descolam uma das outras dependendo do país, região, história,

interesses políticos e época investigados’’ (SHUCMAN, 2014, p. 84). Podemos dizer,

então, que a racialização dos indivíduos e a prática racista é um movimento contextual.

Ela se manifesta de diferentes maneiras dependendo da realidade histórica na relação

entre os grupos sociais.

A ideia de raça, segundo Aníbal Quijano (2005), tem ‘’origem e caráter

colonial’’ e, tal eixo ‘’provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja

matriz foi estabelecido’’ (p. 227). Isso quer dizer que o contato com a América

provocou não só uma nova legitimidade para a relação antiga de dominação

estabelecida com outros povos, mas a auto nomeação identitária dos europeus enquanto

brancos. Mesmo na colonização da África, essa ideia não era ainda presente: ela é

fundada e se fundamenta no contato com os índios americanos, o que deixa claro que

‘’raça apareceu muito antes que cor na história da classificação social da população

mundial’’ (2005, p. 229). O contexto do racismo na América é fruto desse mal encontro:

A associação entre os ambos fenômenos, o etnocentrismo colonial e a

classificação racial universal, ajuda a explicar porque europeus foram levados

a sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além

disso, naturalmente superiores. Essa instância histórica expressou-se numa

operação mental de fundamental importância para todo o poder mundial [...].

(2005, p. 237)

Ao percebermos a estreita relação entre o racismo e a hierarquia social, fica mais

fácil a compreensão daquilo que vamos chamar de racismo estrutural, pois pensar o

racismo enquanto estrutura, é pensar em uma configuração colonial estável na

legitimação de uma ‘’racionalidade específica, o eurocentrismo’’ (2005, p. 227).

Opto, nesse momento, por retomar aquilo que o professor de Pensamento Negro

na UNB, Sales Augusto, nos diz no filme ‘’Raça Humana’’ (2009), comentado no

primeiro capítulo: ‘’Se essa sociedade é racista, em todas as esferas, esse racismo vai

aparecer’’14. É nesse sentido que quero pensar o racismo estrutural: se ele é presente na

sociedade, será também presente na universidade, pois, mesmo que a branquitude

acadêmica tente criar uma bolha em sua volta, ela é parte integrante daquilo que foi

14 Aqui podemos também dialogar com a noção de poder simbólico de Bourdieu (2014): ‘’esse poder que

se exerce de maneira tão invisível que até nos esquecemos de sua existência e que aqueles que o sofrem

são os primeiros a ignorar sua existência já que ele só se exerce por se ignorar sua existência’’ (p. 303)

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construído fora dela15 – afinal, a produção científica é uma arma de produção de

verdade e legitimação de certos conhecimentos que circulam na sociedade. Ainda é

possível ser pensado, a partir dessa frase do professor, que, no Brasil, o racismo não

pode aparecer. Ele é escondido por trás da tão declarada ‘’democracia racial’’, o que já

era de se ‘’esperar num país marcado pelo ideário do modernismo político onde se trata

igualmente seres desiguais’’ (TABORDA, 2009).

Fanon define ‘’povo colonizado’’ como ‘’todo povo no seio do qual nasceu um

complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural’’ (2008,

p.34). Essa definição é ampla justamente para dar conta das diversas experiências e

estratégias que o colonizador, em diferentes contextos, utilizou e utiliza para incutir a

ideia de inferioridade no colonizado. Falar de racismo, segundo Silvio Almeida16, ‘’não

é algo anormal, é algo normal. Não no sentido de que a gente deva aceitar. Mas é que o

racismo constitui as relações no seu padrão de normalidade’’. Essa ideia não só

desmistifica uma suposta ‘’democracia racial’’ brasileira, mas também propõe uma

‘’forma de racionalidade’’ impregnada nas ações conscientes e inconscientes no

indivíduo e na sociedade. Em suma, ele é estrutural por operar na compreensão de

mundo, nas relações consigo e na relação com o outro. Para o filósofo, o racismo

enquanto estrutura não pode ser visto como uma patologia, pois, nessa concepção, se

perde o sentido rotineiro, frequente e operador de relações que ele supõe.

Taborda, ao discutir ‘’O Mito da Democracia Racial’’, traz o discurso do

‘’branqueamento’’, que foi imprescindível para sustentar essa teoria. Quanto mais

branco, mais privilégios e possibilidades de ascensão tem o indivíduo. A ideia da

miscigenação produz uma relação de escala evolutiva na relação de poder entre as

pessoas e os lugares que devem ocupar na sociedade, ao mesmo tempo em que permite

surgir discursos que ocultam o conflito racial e afirmam uma harmonia social.

No texto de Taborda, são apresentadas duas derivações do discurso de

‘’democracia racial’’ no contexto em que surgem: (1) no sentido igualitário e (2) no

sentido hierárquico. Na década de 30, intelectuais começam a murmurar tal expressão

que só iria virar consenso em 1950 e se fortaleceria na década de 60. O Movimento

Negro aderiu o termo para reivindicar suas pautas, ou seja, aderiu o termo no primeiro

sentido, não como fato, mas como busca, enxergando no horizonte uma possibilidade de

15 Vamos abordar melhor a questão mais à frente na linha de Pierre Bourdieu (1997). 16 Vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU&t=268s

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real democracia na relação inter-racial. Por mais que a autora chame atenção para o fato

de não ter sido Gilberto Freyre quem anunciou pela primeira vez o termo, e de inclusive

ter sido contrário a ele, diz que o autor ‘’contribuiu muito para a legitimação científica

da afirmação de que no Brasil não havia preconceitos e discriminações raciais’’

(TABORDA, 2009).

Em 1964, com o golpe militar, o termo é adotado no sentido hierárquico e vira

consenso no mundo acadêmico e na sociedade como um todo. Daí para frente, o Brasil

começa a vender uma ideia construída pelas elites brancas de que o racismo tinha sido

superado; tinha deixado de ser uma questão. O fato de termos mais de 70% da

população negra vivendo abaixo da linha da pobreza17; o fato de populações indígenas

estarem sistematicamente perdendo suas terras para empresários e latifundiários em

cima do discurso de ‘’não produzirem’’18; o fato de termos a força policial que mais

matam corpos negros do mundo19; o fato de 97% dos professores universitários no país

serem brancos20; entre outros dados, deixou de ser uma questão racial. Nada disso foi,

por muito tempo, discutido. Tudo se passava como se vivêssemos em paz, em um

grande paraíso miscigenado.

Foi só a partir da década de 80, principalmente em 1988, com a constituição

brasileira, que o país deu vários passos à frente com aquela que ficou conhecida como

uma das constituições mais avançadas do mundo. Foi aí que se reconheceu,

oficialmente, o racismo, ao declará-lo um crime inafiançável. Se não fosse o gigante

abismo entre a teoria e a prática das leis pró grupos minoritários, nós poderíamos ter

avançado enormemente na superação de problemas sociais, raciais e políticos. Nessa

importante data, depois de um período sangrento e repressivo do período militar e de

uma consequente redemocratização, o país se comprometia, não apenas na palavra, mas

no papel, no acordo mais alto das leis, que assumiria uma postura afirmativa na solução

de antigos problemas. Isso aconteceu devido a intensa e árdua luta de movimentos

minoritários.

17 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da-populacao-do-

pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm 18 Relacionei o discurso já antigo da ‘’não produção’’ presente em Pierre Clastres (2012) com os recentes

(que são também antigos) ataques às terras indígenas:

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/13/opinion/1428933225_013931.html 19 https://www.geledes.org.br/policial-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo/ 20 Para saber mais, ver Carvalho (2005-2006)

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Almeida nos traz três dimensões fundamentais de atuação do racismo estrutural:

na política, na economia e na subjetividade. De forma sucinta e voltada para entender

um pouco do contexto de ação do racismo enquanto estrutura, desenvolverei um pouco

sobre esses três aspectos, entendendo que não são separados entre si, mas sim que se

atravessam o tempo todo.

2.1.2. Racismo – política:

Bourdieu se pergunta: ‘’como é possível que os dominados obedeçam?’’ (2014,

p. 303). Se quem ocupa os cargos de poder são bem menos numerosos que os que se

submetem à ordem, como isso é possível? Para o autor, não é proveitoso centrar a

análise apenas na coerção direta sob a população, mas como o Estado, de diversas

maneiras, produz e reproduz uma naturalização para legitimar seu poder e, assim a

ordem se exerça de forma quase mágica. Para que isso aconteça, é preciso a construção

e o aperfeiçoamento de estruturas cognitivas aos quais os dominados se submetem: ‘’o

dominado conhece e reconhece: o ato de obediência supõe um ato de conhecimento, que

é ao mesmo tempo um ato de reconhecimento’’. Logo, aquele que obedece ou mesmo

aquele que ocupa um lugar de poder, não é simplesmente um alienado, mas um

conhecedor dotado de uma estrutura cognitiva construída, produzida e reproduzida.

Isso se diz importantíssimo no sentido que queremos pensar aqui, pois nos põe a

problematizar o lugar de produção e reprodução de poder do Estado e, assim, a

violência física e simbólica que gera, de maneira não naturalizada, mas como parte de

uma estrutura cognitiva na construção de um modo de pensamento público. Essa ideia

se expressa na reflexão de Almeida, citada anteriormente, de que o racismo opera em

uma normalidade, e se fortalece quando Bourdieu afirma que: ‘’é preciso se interrogar

sobre as estruturas cognitivas e sobre a contribuição do Estado para sua produção’’

(2014, p. 306).

Ailton Krenak, famoso líder e intelectual indígena, quando concede o célebre

discurso no congresso nacional21 (1987), reclama justamente o desprezo e a violência

histórica praticada por pessoas que ocuparam e ainda ocupam lugares de decisão. A sua

performance de indignação e luto, ao pintar seu rosto de jenipapo, junto às suas fortes

21 Para ver vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q

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palavras, é a argumentação de que, quando forem pensar os indígenas no território-

nação, que os pensem levando em conta sua multiplicidade, suas diferenças. Na prática,

os povos indígenas e a população negra sabem que isso nunca aconteceu por inteiro.

Em um momento de redemocratização e questionamentos políticos, as minorias

começam a ganhar uma escala de visibilidade nunca antes experimentada. Para entender

melhor essa relação com o Estado, trago Kastrup e Passos (2013) que, ao pensarem uma

pesquisa cartográfica, distinguem, na linha de François Julien, três conceitos: universal,

homogêneo e o comum. Basicamente, eles são definidos assim:

Universal: dentro de uma perspectiva lógica, racional e, consequentemente,

ocidental, esse conceito é operado enquanto um ideal regulador, percebido

enquanto totalidade. Sua materialização está sempre porvir, nunca realizado por

completo. Consegue aliar práticas de inclusão, juntamente com a violência

institucional. Pode ser uma noção chave para regimes autoritários e também

pode suscitar a revolta do particular, do individual22

Homogêneo: respondendo aos interesses de produção e economia, ele tem uma

função de uniformizar os modos de vida. É fundado na semelhança, na aparência

e na série, sendo assim, capaz de produzir ditaduras silenciosas e eficazes. O

homogêneo, se aliando a rotina, adormece a resistência, naturaliza violências e

padroniza corpos23.

Comum: esse conceito é um conceito político, enraizado na experiência. Não é

dado, é processual, pensado enquanto partilha e pertencimento. É um conceito

territorial, transversal e heterogêneo. Ele atua de forma corporeificada nos

modos de fazer: é a processualidade do coletivo. É um lugar de ausência de

propriedade, em uma relação de co-produção. O comum é traçar um plano de

composição das diferenças, de ação de forças.

Podemos dizer que Krenak luta pela construção do comum e contra o

homogêneo e o universal. É de terno, gravata e jenipapo que quer construir esse comum.

22 Como exemplo, podemos pensar a concepção de Homem no mundo ocidental no período iluminista: o

homem universal. O indígena, nessa concepção, está incluído na concepção de Homem, porém, no lugar

mais distante da escala evolutiva. O europeu está localizado no outro extremo: o homem civilizado e

consequentemente mais próximo do Homem iluminista, o homem iluminado, racional e divinizado.

Lugar, segundo essa teoria, onde todos os povos iriam um dia chegar. Ver autores evolucionistas: Morgan

(1877) e Tylor (1871). 23 Para ver mais sobre homogeneidade e heterogeneidade na experiência histórica da América, ver

Quijano (2005, p. 250-52).

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É o Brasil assumindo sua matriz indígena e assumindo a violência sob essas populações

que pode perceber a importância delas em espaços nacionais de poder, sem retirar delas

sua experiência, sua heterogeneidade. É uma luta contra a violência do Estado, nos

espaços do Estado abertos pelas populações violentadas. É uma luta pela legitimidade

de sua diferença nos espaços tradicionalmente homogeneizadores. É uma luta pela real

presença do múltiplo em espaços racionais de uma lógica universalista.

Para Ailton, ‘’é preciso mudar o tipo de representação política dos índios, deixar

de passar pela FUNAI para ser direta’’ (2015, p. 226). É nesse sentido que cogita a

possibilidade da existência de um Estado plurinacional, o que faria com que o país

aceitasse a diversidade de nações existentes no seu território. Ainda diz que a existência

de um partido político ‘’iria obrigar a plasmar todos nós numa coisa única’’ (Idem). É

essa a concepção de política que o Estado sempre aderiu: passar por cima (genocídio)

daqueles que não condizem com o projeto de progresso da nação ou incluir (etnocídio)

enquanto cidadãos aqueles que foram sujeitados ao mesmo.

Sem perder de vista as concepções de Kastrup e Passos, nem tão pouco as

reflexões de Ailton, sugiro nesse momento o texto ‘’Do Etnocídio’’ de Pierre Clastres.

O autor trabalha mais com o conceito de etnia, do que de raça, no entanto, como

veremos melhor mais a frente, esses conceitos se confundem, principalmente no caso

brasileiro, onde temos 305 etnias indígenas24 e diversas heranças étnicas africanas.

Logo, entender o primeiro é uma ponte para entender melhor o segundo. Creio, então,

que abordar o texto de Clastres é oportuno para ligar os pontos da produção do racismo

no âmbito político e abrir para discussões do racismo no âmbito econômico.

Em 1946, no processo de Nuremberg, pós-segunda guerra mundial, o mundo

conheceu um conceito jurídico para designar o que tinha acontecido naquele momento:

o genocídio. Diferente do caso mencionado, quando esse termo se relacionava com os

povos indígenas da América ‘’nunca houve processos judiciais’’ (CLASTRES, 1974, p.

82). Os povos indígenas, desde 1492 foram sistematicamente exterminados de diversas

maneiras e, até então, há uma quantidade enorme de discursos que insistentemente

inferiorizaram essas populações. O genocídio se caracteriza, enfim, pela destruição

física dos povos, uma ação sob seus corpos. O termo se remete à ideia de raça: ‘’o

extermínio de uma minoria racial’’ (1974, p. 83).

24 ver site: http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-etnias-e-

274-idiomas

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O etnocídio opera de maneira diferente: é a morte cultural de um povo. O

espírito, ou melhor, a sua expressão no mundo é assassinada. Está presente aí o discurso

da salvação: sente-se pena de uma condição supostamente inferior para enaltecer a sua

própria e, assim, criar discursos para lhe tirar da condição horrível a que julgam estar

entregue. Enquanto o genocida arranja motivos para matar, o etnocida arranja motivos

para salvar, melhorar o outro. É a ação do discurso do selvagem e do civilizado a qual a

antropologia evolucionista do século XIX tanto se comprometeu a desenvolver:

Para o presente propósito, parece tanto possível quanto desejável eliminar

considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a

humanidade como homogênea em natureza, embora situada em diferentes

graus de civilização. (TYLOR, 1871, p. 76)

O discurso daqueles que são contrários às cotas chega a se aproximar quando

afirmam a inexistência de raças humanas, mas sim de apenas uma raça. Veja, dizer que

existe uma só raça aqui, é um exercício de homogeneizar o ser humano: a existência de

uma única raça é também a existência de apenas um modo de humanidade. E esse

homem verdadeiro é o homem europeu: ‘’o índio selvagem não é um ser humano’’

(CLASTRES, 1974, p. 83). Na linha da evolução, o indígena, um dia, chegará a ser o

que somos. Não é do nada que surge ora o discurso de que estão atrapalhando o

progresso dos homens civilizados e, assim, teriam que tirá-los do caminho, ora o

discurso de que podem ser salvos (‘’negação positiva’’) (1974, p. 85) e, assim, torná-los

aquilo que somos e construir ‘’juntos’’ o que chamam de nação. Repare que construir

‘’junto’’ é o mesmo que sujeitar o interesse do outro ao seu próprio interesse. É a ideia

da desigualdade: a diferença dominada.

Como nos ensina Levy-Strauss (1952, p. 334), ‘’a humanidade cessa nas

fronteiras da tribo, do grupo linguístico, às vezes mesmo da aldeia’’, ou seja, é a ação da

noção de etnocentrismo fazendo com que alguém olhe o diferente pela sua própria lente

cultural. Isso é um processo natural, formal e milenar com os quais os povos sempre se

relacionaram: entre guerras e alianças. A questão é: ‘’o que faz com que a civilização

ocidental seja etnocida’’ (CLASTRES, 1974, p.86) e não apenas etnocêntrica, como os

povos não-ocidentais?

Em um primeiro momento, Clastres sugere a ação evangelizadora dos

missionários da igreja católica: substituir as crenças bárbaras pela religião do ocidente é

uma missão de salvação de almas abandonadas à Natureza. O autor chega a enunciar

essa forte expressão: ‘’a espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo’’ (1974, p.

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84). A produção ideológica de bem-estar é arraigada na visão cristã de se conceber o

mundo. A ética católica é a representação da perfeição, é ali que alguém se realiza

enquanto ser humano:

Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as

primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem

amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles

também devem ser inscritos no muro, distribuídos pelo branco. Devem ser

cristianizados, isto é, rostificados. (DELEUZE e GUATARRI, 1996).

Mas até o momento não encaramos o funcionamento completo dessa máquina

etnocida que é a sociedade ocidental. Clastres sugere a nós que encaremos a história

para entender essa vocação para o assassinato cultural de outros povos. Um caminho é

aberto: ‘’as sociedades primitivas podem ser etnocêntricas sem no entanto serem

etnocidas, já que são precisamente sociedades sem Estado’’ (1974. P. 87). O

funcionamento da máquina estatal ‘’procede por uniformização da relação que mantém

com os indivíduos: o Estado conhece apenas cidadãos iguais perante a lei’’ (1974, p.

89). É nessa linha de pensamento que o autor afirma a semelhança da prática etnocida

com a prática do Estado: ‘’funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos

efeitos’’ (p.88). Por fim, falar de etnocídio, é falar de sociedade com Estado, pois ele

trabalha com a negação das diferenças, com a homogeneização e a universalidade, não

com o comum. Falar de etnocídio é falar do adormecimento da resistência e dos

diferentes modos de expressão no mundo.

Para deixar claro esse aspecto político existencial dos diferentes modos de se

perceber no mundo, consigo mesmo e com outros povos, e da pretensa universalidade

da civilização ocidental, cito um fragmento de ‘’Raça e História’’ (LEVI-STRAUSS,

1952, p. 363):

Por outro lado, consideramos a noção de civilização mundial como uma

espécie de conceito limite, ou como uma maneira abreviada de designar um

processo complexo. Porque, se a nossa demonstração é válida, não existe

nem pode existir uma civilização mundial no sentido absoluto que damos a

este termo, uma vez que a civilização implica a coexistência de culturas que oferecem entre si a máxima diversidade e consiste mesmo nessa coexistência.

A civilização mundial só poderia ser coligação, à escala mundial, de culturas

que preservassem cada uma a sua originalidade.

Conectando os pontos, percebemos que a relação política do Estado com as

populações afro-indígena é de extrema e contínua violência acumulada durante séculos

de contato. É nesse sentido que o aspecto político se expressa enquanto estrutura no

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entendimento do racismo. Ocultar, no caso brasileiro, essa relação, é violentar ainda

mais esses povos e seu modo de viver. A homogeneização compulsória exercida pelo

aparelho estatal é uma máquina silenciosa e silenciadora, capaz de produzir ditaduras

sutis, mas, do mesmo modo do genocídio, letal e criminosa.

2.1.3. Racismo – economia:

Vimos, anteriormente, o quão nocivo o Estado pode ser às populações afro-

indígenas. Adentrando no texto de Clastres, o autor recai sobre uma pergunta que vai ser

fundamental para a passagem do aspecto político para o aspecto econômico enquanto

ator fundamental para a ação etnocida do ocidente: ‘’O etnocídio é o Estado e, desse

ponto de vista, todos os Estados se equivalem?’’ (p. 90). Fazendo uma análise

comparativa, o autor chama atenção para o fato de que, mesmo os Estados chamados de

bárbaros, como os Incas, Faraós e outros despotismos orientais, sendo etnocidas no

sentido de assassinarem aquilo que ameaçava sua supremacia, ainda havia uma relativa

autonomia concedida para a manifestação cultural de povos vizinhos. O que não

acontece de jeito maneira na lógica ocidental. É aí que Clastres traz o regime de

produção econômica para entender esse processo:

A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos;

espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser

utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime

máximo de intensidade. (CLASTRES, 1974, p. 91)

É isso o que vem acontecendo nas atividades garimpeiras em terras Yanomami

desde 197025; é isso que acontece com as populações que ficam à margem na trilha de

ferro Carajás-São Luís26; é isso que aconteceu com os Waimiri-Atroari na ditadura

militar27; é isso que está acontecendo com os Guarani Kaiowá com a invasão de

latifundiários no Mato Grosso do Sul28. Os casos são muitos, a história se repete e os

modos de operação dessa máquina estatal e capitalista são, ora o genocídio, ora o

etnocídio.

25 https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/26/politica/1419618934_407302.html 26 http://justicanostrilhos.org/2014/05/13/nos-trilhos-da-resistencia-seminario-carajas-30-anos-sao-luis-

ma/ 27 http://www.museudeimagens.com.br/exterminio-indios-waimiri-atroari/ 28 http://averdade.org.br/2016/07/o-genocidio-guarani-e-kaiowa-no-mato-grosso-do-sul/

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Lembrando o que nos fala Quijano, ‘’raça e divisão do trabalho foram

estruturalmente associados e reforçam-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois

era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se’’ (2005, p.

231). Em outras palavras, ser um grupo racial passou a ser, na experiência de

colonização da América, determinante para justificar a exploração e a dominação. De

forma naturalmente associada, o trabalho escravo dos negros ou a exploração servil dos

indígenas era justificada pela sua condição construída de inferioridade. É dessa maneira

que se naturalizou o não pagamento desses povos que ainda hoje se faz presente nas

relações de trabalho, onde há um ‘’menor salário das raças inferiores pelo mesmo

trabalho dos brancos’’ (2005, p. 235). Para entender melhor, Silvio Almeida

discorre um pouco mais sobre a expressão do racismo no aspecto econômico. Ele vai

utilizar o exemplo da carga tributária brasileira para esclarecer as relações de exploração

e privilégio que envolvem o aspecto econômico em nossa sociedade. De um lado, as

grandes empresas são as que mais reclamam de tal carga, mas, proporcionalmente, são

as que menos pagam e os que menos dependem dos serviços públicos, já que seu lucro é

altíssimo. Por outro,

Pesquisas recentes demonstram que o grupo social mais afetado pela carga

tributária no Brasil são as mulheres negras. O que é impressionante. Mas por

que isso? Por que existe uma política deliberada do Estado brasileiro de

tributar mulheres negras? Não. É porque a estrutura, o sistema tributário

funcionando na sua normalidade, [...] ele reproduz as condições de

desigualdade que colocam a mulher negra no final, na base, lá no finalzinho

da pirâmide social (2016).

A questão aqui colocada é a seguinte: o acordo entre o político e o econômico

necessita do racismo para estabelecer uma hierarquia social bem delimitada, aonde se

naturaliza desigualdades e opressões. É nesse sentido que as relações entre o racismo

estrutural comentado por Almeida e a vocação genocida e etnocida do Estado e do

capitalismo se encontram. É aqui que os interesses se aliam e produzem uma série de

inferiorizações subsequentes na originalidade de outros povos. Não é à toa que a noção

de raça e etnia, e, logo, de racismo e etnocídio, se tornaram confusos, não só para mim,

mas no mundo acadêmico (SANTOS, PALOMARES, NORMANDO e QUINTÃO,

2010): são os próprios conceitos, em seu contexto social, político e econômico que se

confundem. O racismo se dispõe da realidade que lhe é apresentada para ganhar

expressão e no Brasil, a manifestação e a visibilidade dos traços étnicos, da noção de

etnia, em sua dimensão linguística, religiosa, territorial e de manifestação fenotípica é

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uma constante ameaça para o propósito de homogeneização aglutinante do Estado e do

capital.

No caso estatístico comentado é naturalizado o fato da mulher negra receber

menos e pagar uma carga tributária nada proporcional àquilo que ganha, assim como

são naturalizados os assassinatos sistemáticos de negros na favela pela polícia. Se há um

grande empreendimento ou um megaevento, como as olimpíadas e a copa do mundo, no

caso do Rio de Janeiro, é naturalizada a ação da força policial, enviada pelo Estado, à

pressão dos grandes empresários, para que se remova populações periféricas.

Em suma, é impossível pensar o racismo sem levar em conta, na sociedade

capitalista em que vivemos, o aspecto econômico que rege relações. Poderíamos

discorrer bem mais sobre esse aspecto, mas creio já ter conectado os pontos soltos entre

a relação perversa do Estado que, aliado à máquina produtivista do capitalismo, usa do

genocídio e do etnocídio como eixos estruturais fundamentais para inferiorizar e, assim,

fazer com que a resistência adormeça, com que os corpos se tornem homogeneizados e

sua expressão no mundo seja podada.

Além disso, vimos como o racismo, sendo estrutural, produz uma naturalização

das violências no funcionamento normal da sociedade e utiliza de seu contexto social

para ganhar vigor. Entendemos, então, que a relação afro-indígena com o Estado e com

o capitalismo, em sua dimensão política e econômica, se mostra violenta. A vocação

genocida e etnocida dessa aliança é confundida e incorporada no entendimento do

racismo enquanto estrutura, enquanto mecanismo de controle e de inferiorização

daqueles que não correspondem à branquitude.

2.1.4. Racismo – Subjetividade:

Para fins de prosseguir no entendimento estrutural do racismo, cito Fanon para

que possamos fazer a passagem do aspecto econômico para o aspecto subjetivo de sua

expressão nas relações:

A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente

que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de

consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de

inferioridade após um duplo processo:

— inicialmente econômico;

— em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa

inferioridade. (2008, p. 28)

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Schoucman, ao buscar ‘’entender de que forma a categoria raça produz

subjetividades e desigualdades entre brancos e não brancos’’ (2014, p. 86), realiza uma

série de entrevista com sujeitos considerados brancos, por ela e por eles mesmos. A

intenção é perceber a produção de subjetividade dos brancos e pensar essa categoria

velada que é a branquitude. Os entrevistados, moradores da cidade de São Paulo, são de

diferentes posições econômicas, diferentes ancestralidades, diferentes idades, diferentes

profissões, pois a autora quer abordar a noção ampla de branquitude em sua

heterogeneidade.

Não me proponho adentrar na análise dos entrevistados, trago, no entanto, os

aspectos identificados pela autora nos diferentes discursos para depois desenvolve-los

um pouco mais. Em um primeiro momento, é marcada a noção de superioridade

estética: quanto menos miscigenada com não-brancos é a pessoa, mais bonita ela é.

Beleza aqui tem haver com a ausência de traços negros, indígenas e asiáticos. Em um

segundo momento, ser branco é sinônimo de boa conduta comportamental, moral e

intelectual. Ser negro é relativo à marginalidade, à maldade, à má conduta, à desordem.

A autora chama atenção para a continuidade do físico para o moral. Vamos pensar,

então, essas duas manifestações do racismo na subjetividade brasileira, abordados pela

autora com alguns exemplos.

Natália Nery29, ao relatar sua experiência em ‘’A mulata que nunca chegou’’,

dialoga com a sua própria construção subjetiva: a mulher negra de traços finos. Aos 9

anos, tinha uma auto-estima muito baixa: era vista e se via enquanto uma menina feia.

No entanto, havia um grupo de pessoas, majoritariamente composto por homens mais

velhos, que sabiam, de alguma forma, que ela se tornaria uma mulher que ‘’daria

trabalho’’. Ela se pergunta o porquê disso e a resposta não vinha. Aos 11 ou 12 anos

começou a ser chamada de mulata30: categoria não tão ruim para negra. Aos 15 viu que

não era tão ruim ser mulata: lhe jogaria na poesia, lhe daria curvas. Assim, aceitou o

termo e esperou a mulata que tanto lhe prometiam, chegar. Esperou e não chegou: ‘’não

veio bunda e não veio peito’’. Foi aos 17 ou 18 que começou a odiar seu corpo e, logo,

a si mesma: ‘’comecei a odiar esse corpo magro’’. E aí vem a pergunta chave que ela

começou a se fazer: como ela conseguia odiar um corpo magro, já que este é um corpo

29 Ver vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=02TBfKeBbRw&t=552s 30 Mulata: termo etimologicamente racista para expressar um híbrido de mula e jumento.

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valorizado pelos padrões de beleza? Essa pergunta dispara diversas outras perguntas,

mas que soam bem mais como respostas:

Seria porque os mecanismos do racismo são muito mais complexos e muito

mais profundos do que qualquer padrão de beleza? Será que eu odiei o meu

corpo magro porque, de alguma forma, o fato de terem inferiorizado pessoas

por conta de seus traços e de suas origens culturais, ao longo da história,

valeu mais do que padrões de beleza que se transformam ao longo do tempo?

[...] será que racismo é de fato estrutural, não é conjuntura? Será que racismo está na sociedade muito mais profundamente do que a gente compreende?

Será que a senzala ainda não acabou? Será que a senzala ainda tá aqui? [...]

será que a senzala não tá em mim? Será que a senzala não tá em vocês?

A mulata nunca chegou para ela e, para quem chega, também não é motivo para

alegria e amor ao seu próprio corpo. É só digitar ‘’mulata’’ no Google que podemos ver

a hiperssexualização da mesma. Torna-se insuportável ser mulata, segundo Nery,

‘’porque elas não conseguem andar na rua, não conseguem conversar com as pessoas

sem sentir o desconforto dos olhares e das piadas direcionadas aos seus corpos’’. Falar

de superioridade estética no racismo é dizer que pouco importa a condição física do

negro, pois, quando visto pela branquitude, a beleza não chegará e o fato de chegar

continua sendo motivo para violências físicas e simbólicas.

Para refletir sobre a continuidade do físico para o moral e da qualidade de

conduta boa e ruim na sociedade, temos que ter em vista as construções históricas do

negro enquanto um ser que é visto como inferior e violento. Ele seria impedido de

possuir sentimentos, emoções, afetos. Existe uma produção sócio-política racial que o

vê enquanto insensível, um suspeito (possível bandido), alguém disposto a fazer o mal.

Shoucman, nas entrevistas, percebe um ‘’considerável deslizamento de uma

linguagem racista biológica para cultural’’ (2014, p. 92) e, desse modo, entende a

construção das noções, ditas pelos entrevistados, de trabalho e ‘’fazer o bem’’ enquanto

aspectos da pessoa branca, da cultura europeia. Reparamos aqui a produção do bem e do

mal, do bom e do ruim. Pensar subjetividade aqui, é pensar a internalização, ou

epidermização, de qualidades boas para uns e qualidades más para outros. A

generalização e a naturalização andam de mãos dadas para atuar nas relações cotidianas.

É dessa maneira que, de um lado, a construção do ser branco, enquanto ser de referência

universal, alvo de cobiça, recalque e inveja, foi introjetado pelas elites brancas para

sustentar suas posições de poder em tempos em que seus privilégios são ameaçados. E,

de outro lado, o problema da pobreza passou a ser problema apenas do pobre, e com o

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negro, que normalmente é o pobre, o problema do racismo passou a ser problema

somente dele.

Até aqui, pudemos abordar a amplitude da ação do racismo estrutural no meio

social, em seu aspecto político, econômico e subjetivo. Agora, afunilando ao interesse

de pesquisa proposto, vamos adentrar na questão das relações de poder no meio social e

da produção do medo na sociedade. Assim, poderemos perceber como isso produz

corpos duros sujeitados a uma estrutura que dificulta a relação de troca entre as pessoas

e impossibilita que a circulação das diferentes formas de se conhecer o mundo seja mais

aberta e democrática.

2.2. Medo na sociedade:

Maria Aparecida da Silva Bento (2002, p. 12), teórica do branqueamento e da

branquitude, fala do ‘’ódio narcísico’’, sentimento de expurgo de qualquer ameaça à sua

autopreservação egóica. Isso se expressa enquanto paranoia daquele que não quer perder

seus privilégios. Ou melhor, daquele que tem medo dessa perda:

o que se vê comprometido nesse processo é a própria capacidade de

identificação com o próximo, criando-se, desse modo, as bases de uma

intolerância generalizada contra tudo o que possa representar a diferença.

(BENTO, 2014, p. 13)

O que a autora quer nos passar com o ‘’comprometimento’’ ou com a ‘’ameaça’’

que o branco sente em relação ao negro é ‘’esta forma de construção do Outro a partir

de si mesmo, é uma forma de paranoia que traz em sua gênese o medo’’ (2014, p. 6).

Acontece aquilo, então, que ela chama de projeção, onde o medo que se sente justifica

ações de violência e terrorismo naquele que o ameaça. É um pensamento que afirma ser

impossível a existência de si com a existência do outro. Esse outro ameaça apenas por

ser quem é, por existir no mundo. Não à toa, fizemos o percurso teórico do etnocídio

que, aliado ao genocídio, produz a ausência de expressão no mundo daqueles que

ameaçam o progresso capitalista e o aparelho estatal.

Tendo em mente que ‘’toda psicologia é social’’ (LANE apud MANSANO, p.

1921), temos que:

A produção, a circulação e o consumo do ódio e do medo são uma espécie de

liberação de um fluxo. Mas ao mesmo tempo trata-se de um fluxo que deve

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existir para que outros não existam; em outras palavras: é a liberação de um

fluxo que deve instalar um pathos de controle. (GUERÓN, 2009, p. 9)

Se, como vimos em Bento, o medo é algo que os brancos sentem quando, de

alguma forma, o Outro ameaça seus privilégios e suas posições de poder, assim, o

ameaçado ‘’projeta seu medo e se transforma em caçador de cabeças’’ (BENTO, 2014,

p. 12). Na passagem de Guerón, o medo, parceiro do ódio, já pode ser visto enquanto

medo projetado. Ele se torna um pathos de controle quando o ser, detentor de uma

posição de privilégio, usa de seu lugar para violentar quem supostamente ameaçaria

esse mesmo lugar. Chegamos em um ponto interessante, pois, o medo parece ser mais

nitidamente presente no mais fraco, naquele que obedece, naquele que está abaixo na

relação de poder. Porém, é curioso notar que fazer com que o mais fraco assim se sinta é

uma estratégia para que o mais forte bloqueie esse mesmo sentimento. O mais fraco tem

que ter medo pois, antes, foi o mais forte que o sentiu, e sente, do mais fraco. Além de

poder entender melhor a complexidade dessa relação, isso se torna interessante para

perceber o quanto o medo está presente na produção de subjetividade do racismo no

meio social.

Podemos acrescentar ainda a essa discussão, que, como nos traz Luciana

Oliveira dos Santos, não entendemos o medo enquanto uma manifestação meramente

biológica, mas por uma vinculação existente entre ‘’a crença e a cognição das

emoções’’ (2003, p. 48). Ciente de que é ‘’um componente básico da experiência

humana’’ (idem), o medo é aqui pensado enquanto uma produção e construção histórica,

contextualizada nas relações sociais. Dessa maneira, para lidar com as experiências

contemporâneas acerca do medo, é preciso, segundo o autor, levar em conta ‘’ o caráter

histórico de nossa condição, a variabilidade contextual de nossas reações mais básicas, a

natureza pragmática de nossas formas de conhecer o mundo e de conceber nossa

experiência’’ (2003, p. 55).

A questões a serem colocadas aqui, por fim, são as seguintes: como pode o medo

ser entendido não apenas como algo que sentimos individualmente em momentos

contextuais, mas uma categoria sociológica, ou seja, algo que é produzido, que circula,

que organiza e manipula relações cotidianas? Como esse termo pode ser ampliado para

entender as relações de poder existentes na nossa realidade? Como se dá o cruzamento

do medo que eu sinto para o medo que é produzido para eu sentir e como esse

movimento se dá nas relações?

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2.2.1. Medo e poder:

Uma sociedade pautada pela vigilância (FOUCAULT, 1977) na virada do século

XIX e pelo controle (DELEUZE, 1992) na contemporaneidade, incorpora, em ambas, o

medo como um aliado. A relação é intensa: seja quando está presente na estrutura

institucional, seja quando se espalha nos espaços abertos. Antes era preciso trancafiar,

delimitar fronteiras duras entre o dentro e o fora. Era preciso criar uma vigilância

hierarquizada capaz de fazer ‘’funcionar um poder relacional que se auto-sustenta por

seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto

dos olhares calculados’’ (FOUCAULT, 1977, p. 158-159). Agora as máquinas

tecnológicas avançam sob a ordem empresarial: o controle é de ‘’rotação rápida, mas

também contínuo e ilimitado’’ (DELEUZE, 1990, p. 5). O homem passa de confinado

para endividado, pois ele é posto a se mover, mas não um movimento qualquer, um

movimento do capital. É importante que se mova em espaços abertos, mas que percorra

os caminhos do consumo, do endividamento, onde esse homem está sempre ansioso

para terminar o que começou, mas que ‘’nunca termina nada’’ (1990, p. 3). Haesbeart,

como meio de pensar essas duas grandes formas de atuação dos paradigmas territoriais

(que têm em sua gênese a relação de poder) fala de:

[...] um mais voltado para a lógica estatal, controladora de fluxos pelo

controle de áreas, quase sempre contínuas e de fronteiras claramente

delimitadas; outro mais relacionado à lógica empresarial, também controladora de fluxos, porém prioritariamente pela sua “canalização” através

de determinados dutos e nódulos de conexão (as redes). (2004, p. 6)

O que pretendo com essa rápida distinção, são duas formas de se exercer o poder

sobre a massa e, assim, duas formas da presença do medo nessa relação de poder. Na

primeira, é um artifício essencial para a punição daquele que desobedece uma ordem

hierarquizada, daquele que é flagrado fora da disciplina e que está sob uma vigilância de

‘’longa duração, infinita e descontínua’’ (DELEUZE, 1990, p. 5). É estratégica a

presença do medo no possível infrator de uma regra, lei ou ordem. A ação é sobre o

corpo e o medo é um artifício corporal de dominação sobre esse mesmo corpo.

Na segunda, o controle sob esse corpo muda, mas o medo é ainda presente.

Mansano fala da ação do poder na sociedade do controle que, mesmo que haja uma

movimentação permanente em espaços abertos e haja aí uma mistura de diversos

corpos, uma confluência de estranhos, ‘’experimenta-se um esvaziamento significativo

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dos espaços públicos que começam a ser traduzidos como perigosos precisamente pelo

encontro que ele promove entre estranhos e desconhecidos’’ (p. 1915). É a partir desse

contexto que o autor fala de um investimento da sociedade, em tempo e dinheiro, em

botar em prática mecanismo de ‘’apaziguamento’’ e considerável diminuição da

‘’angústia gerada pelo risco’’ (p. 1916).

Se antes, pensar a segurança31 pública era trancafiar indivíduos em presídios,

hospitais psiquiátricos, exército e escolas para disciplinarem e tornar esses corpos

dóceis, agora, o poder, correndo o risco de encontros indesejáveis, investe na

fiscalização do movimento controlado dos corpos daqueles tidos como suspeitos. É uma

constante de ‘’separar o corpo daquilo que ele pode’’ (p. 1918): é o poder sem potência.

É um poder sutil de adestramento, onde o discurso do medo cria medidas preventivas

como ‘’sinônimo de cuidado do sujeito para consigo e para com o outro’’ (p. 1919).

Mia Couto (2011)32 nos ajudar a pensar quando, em uma bela intervenção feita

na ‘’Conferências de Estoril’’, fala de segurança pública, políticas de guerra e a

produção do medo enquanto ‘’apaziguamento’’33 e agente subjetivo nas relações de

poder. Ao mencionar o preço que pagam aqueles que ‘’aprendemos a chamar de eles’’,

pela política do terror, dialoga bastante com a confusão feita, por aqueles que se

chamam de nós, a respeito do cuidado, proteção e segurança (que são necessidades

básicas do ser humano34), de um lado e o medo, culpa e ódio de outro:

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente

africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais

indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a

história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a

facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus

próprios fracassos’’ (2013).

31 Ver também a matéria: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/09/1918764-globalizacao-

gerou-inseguranca-e-ao-inves-de-derrubar-reforcou-fronteiras.shtml 32 Ver vídeo em: https://www.youtube.com/watch?v=5xtgUxggt_4 33 Sobre as aspas na palavra apaziguamento, sugiro a leitura do ‘’Grupo de Musicultura’’ da UFRJ, ‘’É

proibido proibir’’, 2015. O texto aborda reflexões sobre, de um lado, os discursos de assistencialismo e

clientelismo e, de outro, o autoritarismo, alienação e extermínio que acontecem na prática pelas Unidades

de Polícia Pacificadora (UPP) sob ordem do Estado, na favela da Maré. 34 Há um debate contemporâneo iniciado por Marshall Rosenberg sobre Comunicação não-violenta

(CNV). É um movimento de prática para se efetuar uma comunicação dialógica. Para isso, existem

necessidades básicas que todo o ser humano precisa atender, ou pelo ter consciência delas. Depois de se

ter consciência (seja na relação consigo, com o outro ou com o mundo), é preciso pensar estratégias para

atende-las. Ver mais em: https://www.youtube.com/results?search_query=marshall+rosenberg,

http://www.cnvc.org/.

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É importante deixar claro que, na análise da passagem de um tipo de poder para

outro, o processo não se dá de maneira sucessiva. Os poderes coexistem. Não é porque

as tecnologias e as redes empresariais dominaram a era contemporânea, que o poder

disciplinar, vigilante vai deixar de atuar. Mansano fala de um ‘’espaço social que

promove a fácil circulação’’ (p. 1914), mas o que é de fato essa fácil circulação, senão a

circulação do corpo branco? O corpo cosmopolita tem cor, origem cultural, financeira e

étnica. É um corpo empresarial. Por mais que podemos falar, hoje, de um considerável

afrouxamento das fronteiras institucionais, ainda falamos de superlotação nos

presídios35, de racismo institucional36 ou de luta antimanicomial37. Ou seja, o poder

disciplinar não deixa de existir, na verdade, ele se cruza e se fortalece na e pela

sociedade de controle. As instituições não se enfraquecem, elas se reconfiguram e o

poder se reinventa e se aprimora. Existe, assim, a presença de dispositivos de poder,

institucionais ou não, que produzem um terror racial no imaginário da população, o que

justifica e legitima o confinamento ou o aumento do aparato policial.

Para não perder o teor de nossa abordagem e para que possamos passar para

reflexões acerca da construção de uma universidade embrutecida e a relação disso com

a produção do medo no espaço universitário, não podemos deixar de deixar claro a

permanência do racismo nas relações produzidas pelo poder disciplinar e pela sociedade

de controle. Os autores não foram omissos ao refletirem sobre o tratamento diferenciado

da sociedade e das instituições quando agem sob determinados corpos38. O corpo do

negro e o corpo do indígena sempre foram vistos enquanto uma ameaça, seja no espaço

institucional, seja nos espaços abertos; seja no fim do século XIX, seja na

contemporaneidade. A forma de se tratar essa ameaça muda, mas a estrutura do racismo

permanece – mesmo que as ações do racismo se reinventem. Haesbaert, ao falar da

mobilidade entre territórios (multiterritorialidade) em uma sociedade globalizada, pode

deixar essa questão mais marcada:

35 Matéria: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1425271-superlotacao-em-presidios-

aumenta-em-17-estados-e-distrito-federal.shtml 36 Matérias: https://www.geledes.org.br/tag/racismo-institucional/ 37 Site: http://www.assdevoltaparacasa.org.br/page9.htm 38 Em Foucault, o autor é claro ao dizer que ‘’o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é

obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu poder

soberano” (1975-1976, p. 309); e Deleuze e Guatarri são enfáticos: ‘’do ponto de vista do racismo, não

existe exterior, não existem as pessoas fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo o

crime é não o serem’’ (1996, p. 41).

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Assim, enquanto uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os

territórios que melhor lhe aprouver, vivenciando efetivamente uma

multiterritorialidade, outros, na base da pirâmide social, não têm sequer a

opção do “primeiro” território, o território como abrigo, fundamento mínimo

de sua reprodução física cotidiana. (2004, p. 360)

Esses corpos, apenas por existirem, tornam-se perigosos aos olhos da ordem

estabelecida. Por esse motivo, são passíveis de agressões das mais diversas: um corpo

suspeito é um corpo selvagem que deve ser tirado do caminho; ou um corpo suspeito é

um corpo que ainda não conheceu o caminho da civilização. E entendamos que um

corpo suspeito tem raça, etnia, cultura, território, religião e fenótipo e os dispositivos de

poder ativam esses aspectos dependendo do contexto em questão. Enfim, todo corpo

que não está alinhado com as premissas do poder é um corpo em vias de ser

monitorado, manipulado e controlado.

Para pensar o racismo, a produção de corpos duros e do medo no meio

institucional, na universidade, tivemos que abordar a ação do medo na sociedade, pois,

como já afirmamos anteriormente, uma está em constante relação com a outra. Afinal, a

presença de muros, físicos e simbólicos da universidade, e dos recentes

questionamentos desse separatismo ocultado pela branquitude, dizem muito sobre a

relação que a mesma teve com a sociedade. Até o momento de criação das cotas, a

universidade se via em um confinamento racial (CARVALHO, 2005-2006) – e não que

tenha deixado de ser. A presença de outros corpos, depois das ações afirmativas, no

espaço acadêmico parece causar medo nas posições de privilégio ocupadas pela

branquitude. Isso torna-se interessante de ser percebido, pois, assim, a projeção desse

medo, em cima dos discursos de mérito e excelência acadêmica, se embrutecem

também.

2.3. Universidade embrutecida:

Sinto que seja necessário, para esse tópico, reafirmar o pretenso isolamento ao

qual a estrutura universitária almeja viver da sociedade. Quanto menor a intervenção do

mundo social, maior o grau de autonomia para a produção e reprodução própria das

relações de poder com aqueles que estão do muro para cá, pois os que estão do muro

para lá, nem parte são: não são pertencentes, nem pertencem, mesmo que tal espaço se

declare público. Não podemos dizer, porém, que a relação com a sociedade seja nula,

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muito pelo contrário, a ação do poder disciplinar e do controle, da estrutura do racismo

e da produção do medo enquanto subjetividade, estão presentes, assim como

movimentos de transformação, questionamento e resistência para com essas relações.

Deixo claro, então, que vamos entender a universidade enquanto um ambiente de luta,

de interesses conflitivos e de confrontos.

Bourdieu nos traz uma perspectiva muito interessante que nos ajuda a pensar a

estrutura de poder do meio universitário. Para refletir sobre a possibilidade de se fazer

uma ciência social da produção da ciência, o autor nos diz que:

é preciso escapar à alternativa da ‘ciência pura’, totalmente livre de qualquer

necessidade social, e da ‘ciência escrava’, sujeita a todas as demandas

político-econômicas. O campo científico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, etc., que são, no entanto, relativamente

independentes das pressões do mundo social global que o envolve. (1977, p.

21)

Tendo clareza do contexto em que a universidade está e de sua consequente

relação com o ‘’mundo social global’’, fica mais consistente refletir sobre a

universidade enquanto uma instituição que é atravessada a todo momento por aquilo

que pretende se separar e, ao mesmo tempo, produz uma autonomia que permite a

elaboração de leis próprias, sejam elas escritas ou simbólicas.

Para o autor, entre o texto e o contexto, existe algo intermediário, o campo. Nele,

é possível a inserção de agentes e instituições pelos quais agem de acordo com leis e

regras sociais mais ou menos específicas. Nesses termos, Bourdieu, por não acreditar na

dicotomia entre objetivismo e subjetivismo, mas sim em uma relação dialética e

dinâmica entre elas, enfatiza que a noção de campo é um movimento dos agentes e das

instituições (sujeitos e estruturas físicas presentes em um espaço geográfico específico)

no confronto pela legitimação das representações (construções simbólicas específicas).

Bourdieu, ao fazer uma operação de deslocamento de ‘’comunidade científica’’ para

‘’campo científico’’ (que é também um campo de luta), rompe com uma suposta

neutralidade na produção de conhecimento39, ou seja, desnaturaliza as relações

hierárquicas do saber, do que é conhecer, quando as leva para o aspecto político: ‘’só

compreendemos, verdadeiramente, o que diz ou faz um agente engajado num campo se

39 Edgar Lander (2005, p. 23) fala de duas dimensões da eficácia neutralizadora que se aproxima bastante

do que Bourdieu desenvolve: ‘’a primeira refere-se às sucessivas separações ou partições do mundo

‘’real’’ que se dão historicamente na sociedade ocidental’’; e ‘’a forma como se articulam os saberes

modernos com a organização do poder, especialmente as relações coloniais/imperiais de poder

constitutivas do mundo moderno’’.

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[...] estamos nos referindo à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos ‘’de onde

ele fala’’ (1977, p. 30).

Partindo da premissa política que envolve os jogadores no campo científico, nos

vemos diante da distribuição do capital simbólico que legitima e autoriza a ação e o

poder de uns sobre outros nesse lugar de confrontamentos que é o campo científico.

Cada campo é uma construção específica e cada construção específica exige um capital

simbólico específico. O capital simbólico no campo científico é um tipo de aquisição

que se dá pelo conhecimento e pelo reconhecimento dos seus pares. É dessa maneira

que se define a estrutura acadêmica: os indivíduos ou instituições (agentes), dependendo

do peso que têm sob a estrutura e da relação que mantêm com outros agentes, a

determinam. Porém,

contrariamente, cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se

impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil.

Essa pressão estrutural não assume, necessariamente, a forma de uma

imposição direta que se exercia na interação (ordem, influência, etc). (1977.

p. 24)

Ser bem-sucedido nesse campo, ter um acúmulo do capital simbólico científico,

é ter conhecimento das leis para, assim, conquistar, pela lógica do mérito, um lugar de

fala: ‘’os eruditos são interessados, têm vontade de chegar primeiro, de serem os

melhores, de brilhar’’ (p. 31). Se, de um lado, os agentes têm um ‘’interesse

desinteressado’’ para forjar uma ausência de interesse pessoal e aplicar uma

neutralidade científica no processo do conhecimento, de outro, os agentes, para

brilharem, precisam do ‘’interesse pelo desinteresse’’ para aprofundar naquilo que não é

aparente, que ninguém vê ou que ninguém se interessa, a inovação científica. É daí que

surge o conhecimento e o reconhecimento: pela neutralidade e pela inovação, ocultar de

onde se fala e falar de algum lugar que ninguém ainda falou. O primeiro aspecto é

político, o segundo é cognitivo. Há uma separação do exercício do poder no exercício

do saber e vice-e-versa.

O jogo funciona assim e a lógica desse jogo trabalha com vencedores e

perdedores. Vamos agora adentrar nessa lógica. Para conquistar o triunfo, segundo

Bourdieu, o jogador pode ir por dois caminhos, pelo político (temporal) e pelo poder

específico (prestígio). No primeiro, é relativo à posição institucional (coordenador,

direção de departamentos, pró-reitor, reitor, etc) ocupada, atrelada com estratégias

políticas, que garantem o ‘’poder sobre os meios de produção (contratos, créditos,

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postos, etc) e de reprodução (poder de nomear e fazer as carreiras) que ele assegura’’

(1977, p. 35).

No segundo, de caráter pouco institucionalizado, ‘’repousa sobre o

reconhecimento’’ (idem), são feitas alianças entre pares nos departamentos para a

consagração mútua e enfraquecimento de outras linhas teóricas. No poder específico,

uma rixa intelectual é uma rixa política, uma disputa de interesses do capital simbólico

oferecido pelo campo. O que une a percepção das duas formas de poder, difíceis de se

acumular ao mesmo tempo, é o aspecto temporal que é preciso para seu acúmulo. Tanto

em um quanto em outro, é preciso tempo para confirmar o mérito do jogador. E para

tudo isso acontecer, é preciso que o campo científico seja o mais autônomo possível,

sem pressões exteriores que interfiram nas argumentações de demonstrações e

refutações lógicas.

Os considerados perdedores, para assim serem vistos, tem dois caminhos: (1) o

desconhecimento do jogo ou (2), o que posso chamar, de interesse interessado. No

primeiro, Bourdieu fala que ‘’o bom cientista jogador é aquele que, sem ter necessidade

de calcular, de ser cínico, faz escolhas que compensam’’ (1977, p. 28). É preciso,

portanto, para ser um vencedor, estar atento às disposições que o campo exige. A

estrutura pede não apenas corpos que sejam moldados a ela, mas corpos que ajudem a

mantê-la funcionando, afinal, os muros, físicos e simbólicos, não são construídos e

mantidos por si só, são construções lógicas para manutenção de posições e hierarquias.

Se no primeiro há o risco desses indivíduos sentirem-se ‘’defasados, deslocados, mal

colocados, mal em sua própria pele, na contramão e na hora errada’’ (p. 29), no segundo

pode-se

lutar com as forças do campo, resistir-lhes e, em vez de submeter suas

disposições às estruturas, tenta modificar as estruturas em razão de suas

disposições, para conformá-las às suas disposições. (1977, p. 29)

Vemos, assim, que chamar a resistência e a luta contra hegemônica de interesse

interessado é um meio de politizar a pretensa neutralidade científica. Se, por um lado, é

estratégico ocultar o lugar de onde se fala, por outro, politizar é desnaturalizar as

relações de poder existentes na estrutura. Chegamos em um ponto interessante, pois

podemos voltar a relacionar a estrutura acadêmica com a estrutura racista desenvolvida

anteriormente. Como vimos, falar de branquitude é falar de uma raça referência, de uma

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raça construída enquanto superior e padrão a ser alcançada pelas outras. Ou melhor, é a

não racialização histórica dessa categoria, assim como, no espaço universitário, o

processo de ocultamento dos lugares de onde se fala, seja pela aquisição do capital

simbólico político seja pelo específico, é uma produção e reprodução de lógicas que

mantém as relações de força estáveis e a hierarquização intocável.

Como também já falamos anteriormente, a estrutura do racismo, em seu âmbito

político, econômico e subjetivo, precisa, nas relações cotidianas e agindo em sua

‘’normalidade’’, produzir o medo sob o discurso da segurança, do cuidado e da proteção

ora para disciplinar os corpos e torna-los dóceis ora para controlar os movimentos

desses corpos chamados de suspeitos em espaços abertos para que circulem apenas na

direção do capital empresarial. Os pontos parecem bem conectados para entender as

relações de poder em diversas escalas. O que falta fazer agora, para findarmos esse

capítulo, é a conexão com o campo científico: como o medo é produzido e reproduzido

aqui? Que função ele exerce? Como ele é transmitido? Qual a relação do medo que se

exerce dentro da universidade e do medo que se exerce fora dela? Passemos agora para

o medo na aprendizagem.

2.4. Medo na aprendizagem:

A aprendizagem no ensino universitário tradicional, herdada de modelos

europeus, dialoga bastante com o lema positivista de nossa bandeira nacional: ordem40 e

progresso41 – o que diz muito do discurso político arraigado na educação brasileira.

Jacques Rancière (2015), baseado na experiência pedagógica de emancipação do

aprendiz, de Joseph Jacotot, nos oferece um percurso muito interessante para entender

as relações de poder existentes no processo de aprendizagem ocidental. O autor fala de

uma insistência ativada pelos mecanismos pedagógicos para incutir no aluno uma ideia

de incapacidade na relação com o conhecimento: ‘’ele [o explicador] é que constitui o

incapaz como tal’’ (p.23). No ensino ocidental tradicional, que ele chama de velho ou de

embrutecido, só existem mestres sábios e alunos ignorantes. Esse aluno, um dia, poderá

40 Remeto aqui a uma passagem de Rancière: ‘’quem diz ordem diz hierarquização. A hierarquização

supõe explicação, ficção distributiva, justificadora, de uma desigualdade que não tem outra explicação,

senão sua própria existência’’ (2015, p. 162). 41 Herdada do positivismo, o lema da bandeira nacional tinha forte teor político, para saber mais ler:

SEYSSEL, 1994. No disco de Jards Macalé (2003) ‘’Amor, ordem e progresso’’, transforma em poesia e

música a discussão da retirada do amor da bandeira brasileira, ouvir em:

https://www.youtube.com/watch?v=-kI5g6ovEaE

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ser considerado como mestre, mas apenas se tiver mérito e uma capacidade intelectual

atestada pelo seu explicador42.

Nessa lógica, o sinônimo de ensinar é explicar e o de aprender é obedecer à

explicação. O não entendimento de uma explicação é visto enquanto estupidez, retardo e

pode ser alvo de punições e represálias. Se saber é, por uma lógica iluminista e

racionalizada, ser iluminado, ensinar, pelo ‘’princípio do embrutecimento’’ (p. 24), é

trazer luz para os caminhos do conhecimento, podendo o explicador, se paciente,

reexplicar. Nesse movimento, o autor ainda fala de uma subordinação ou dependência

existente entre uma inteligência e outra, elas não são igualmente capazes de chegar, por

diferentes caminhos, em um lugar comum. São, na verdade, sujeitadas a chegarem todas

no mesmo lugar, onde se encontra a luz do conhecimento, segurando a mão da

explicação do mestre, que já sabe o caminho para esse lugar, assim, ‘’o mestre sempre

guarda na manga um saber, isto é, uma ignorância do aluno’’ (p. 41).

Essa concepção se diz violenta na mesma gênese quando Quijano se refere ao

eurocentrismo. Para o autor, ‘’[...] a Europa também concentrou sob sua hegemonia o

controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do

conhecimento, da produção de conhecimento’’ (2005, p. 236).

De fato, como vimos quando fizemos o percurso do texto ‘’Do etnocídio’’,

podemos fortalecer a ideia sempre presente da falta43 que pauta as relações de poder

entre os diferentes sujeitos no meio social44. Enquanto em si sempre há, no outro

sempre falta. Isso abre uma margem para as mais diversas violências, que se encontram

na naturalização da superioridade de uns sob a inferioridade de outros. É pelo mesmo

caminho que Rancière discute a relação entre professor e aluno: enquanto em um

sempre há sabedoria, no outro sempre há ignorância e quanto mais distante for a

titulação do aluno em relação ao seu professor, maior a falta contida nele. O papel do

professor-opressor, então, se legitimará ora pela punição do aluno que não aprende ora

pela celebração daquele que se iluminou45. Nos vemos diante a mesma lógica que

42 Isso me remete a uma brincadeira que ouvi nos corredores da universidade com a famosa frase de Paulo

Freire: ‘’Se a educação não é libertadora, o sonho do aprendiz é virar professor’’. 43 Para uma leitura mais leve sobre a ‘’filosofia do copo cheio’’, de Tião Rocha, ler

https://www.revistaforum.com.br/digital/101/a-educacao-por-meio-da-filosofia-do-copo-cheio/ 44 Entre os indígenas, por exemplo, temos que, quase sempre, ‘’as sociedades arcaicas são determinadas

de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita, sociedades

sem história’’ (CLASTRES, 2003, p. 202). 45 Para mais, ler ‘’Vigiar e Punir’’ de Michel Foucault, 1975.

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desenvolvemos em Bourdieu no espaço universitário, a lógica de vencedores e

perdedores.

A pedagogia embrutecida preza pela desigualdade, pois é a partir dela que pode

classificar os aprendizes entre aqueles que sabem mais, aqueles que sabem menos e

aqueles que nunca vão saber, e, assim, serializar os corpos em turma A, B, C, etc. Nessa

mesma lógica, é naturalizada a divisão do horário do dia em horas, onde tudo tem hora

para começar e acabar e, consequentemente, impossibilita o protagonismo do estudante

no processo de aprendizagem:

Como é possível que, qualquer que seja a disciplina, qualquer que seja o

nível escolar, desde a escola primária até a faculdade, se encontre essa

divisão? Em segundo lugar, por que essa divisão é tão unanimemente aceita? Quando alguém a questiona junto a professores ou alunos, descobre que eles

a consideram absolutamente natural e que a ideia mesma de fazer de outro

jeito lhes parece impensável. (BOURDIEU, 2014, p. 318)

Desde muito cedo somos levados a pensar no tempo enquanto algo finito e, da

mesma forma, devemos pensar o conhecimento. Sempre há limites e esses limites não

são relacionais, são brutos porque foram sistematicamente e historicamente

embrutecidos para marcar as relações de poder; são muros, físicos e simbólicos, para

impossibilitar uma relação de troca e circularidade do conhecimento. Não é de se

espantar o fato de muitas universidades terem, nas salas de aulas, tablados, onde a mesa

do professor se localiza. O mesmo acontece com os auditórios. Assim, vemos que os

territórios de educação, escolar ou universitária, são relações de poder, de dominação e

resistência.

No capítulo 4, nomeado ‘’a sociedade do desprezo’’, Rancière vai se aproximar

ainda mais daquilo que queremos refletir aqui sobre a produção e reprodução do medo

na aprendizagem46, pois fala que ‘’o amor da dominação obriga os homens a se

protegerem uns dos outros [...] dessa submissão à lei de outrem que o desejo de lhe ser

superior fatalmente acaba por implicar’’ (p. 116). Observamos, nessa passagem, o

fechamento de possíveis relações entre as pessoas. Se, por um lado, há aquele que diz

que não consegue, que não reconhece a própria capacidade, a própria potência e acaba

entregando-a aos que dizem ser mestres sábios, por outro, há aquele que, se declarando

um mestre sábio, sente-se no direito de repreender e submeter o outro à sua vontade.

Esse ciclo vicioso tem o medo no seu cerne, pois, de um lado, o medo atua na

46 Para uma abordagem mais filosófica dessa questão, ver: Carvalho, J. M. 2012.

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possibilidade da punição, da reprovação, da repreensão, da exclusão do aluno e, de

outro, no medo projetado do professor que, estando em um lugar de autoridade, teme

perder este lugar de poder, seus privilégios; além de temer a falação, a confusão, a não

obediência, a discordância, a desorganização, o atraso, a desordem e o regresso.

Além disso, na universidade, para direcionarmos o nosso olhar para esse

trabalho, há o medo generalizado da improdutividade. Se o medo é produzido na lógica

da produtividade acadêmica, é porque a academia, e os agentes que nela atuam, também

produzem o medo. A paixão pela desigualdade, pela competitividade, pela vitória, pelo

prestígio ou por cargos, faz emergir, dentro da universidade, mais muros que

impossibilitam a relação e outras formas de se conhecer, outras formas de experimentar

a realidade. Dessa maneira, o objetivo das inteligências deixa de ser a comunicação e se

transforma na anulação da outra (2015, p. 118).

Para finalizar nossa análise, vou juntar os pontos e apresentar um pequeno

esquema que irá sintetizar o percurso e nos ajudará a entender o porquê de termos o

trilhado. (1) Abrimos o capítulo abordando o tema da racialização, branquitude e

racismo estrutural; (2) depois de fazer um pequeno histórico do racismo no Brasil,

abordamos as três esferas de atuação dessa estrutura que ele supõe: política, economia e

subjetividade; (3) Discorrendo sobre as estratégias de dominação nesses três âmbitos,

nos deparamos com a produção e reprodução do medo no movimento histórico de

racialização do indígena, do negro e do branco – este último pela categoria da

branquitude, discutida enquanto manutenção de privilégios; (4) Vimos a relação entre

medo no sociedade disciplinar e na sociedade de controle, via Foucault e Deleuze, e a

manuntenção do racismo; (5) Abordamos, na linha teórica de Bourdieu, a lógica de

produção e reprodução do capital simbólico científico, possibilitando uma visão mais de

dentro da instituição; e finalmente (6) falamos das estratégias pedagógicas

ocidentalizadas de produção e reprodução da lógica de inferior-superior na relação com

o conhecimento e de como o medo está no cerne do seu funcionamento.

Pois bem, para finalizar, explicito, como já havia anunciado antes, a relação

constante existente entre território-política; política-epistemologia; epistemologia-

pedagogia (e o reinício do ciclo). Essa reflexão provém de Carvalho quando diz que o

Encontro de Saberes busca

tensionar las trayectorias em ciencias sociales que han predominado em la

región. Sin embargo, en aras de darle mayor densidad teórica al proyeto, a

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continuación desarrollaremos cuatro de sus aspectos distintivos: político,

institucional, pedagógico y, al que dedicaremos más tempo, epistémico.

(2014, p. 139)

Entendendo o institucional enquanto territorial, o território universitário,

proponho pensarmos a relação dessas instâncias na produção do medo no espaço

universitário eurocentrado dessa maneira47:

47 Deixo o leitor informado que a relação entre as instâncias, demonstrada no quadro, vão ser guias para o

entendimento do que estou desenvolvendo neste trabalho. Não se preocupe se não compreender, desde já,

o que isso significa, pois ao longo dos capítulos, essa relação retornará diversas vezes.

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Capítulo 3 – Curiosidade e universidade: método de abertura para o desconhecido

Para fins de não deixar pontos soltos na trajetória deste trabalho, proponho que

possamos conectar novamente as reflexões para entendermos o que vamos desenvolver

agora. Pois bem, no primeiro capítulo abordamos um percurso contextual das cotas, do

encontro de saberes em âmbito nacional e regional e a minha inserção no projeto com o

objetivo de criar um território favorável para, no segundo capítulo, trazer reflexões mais

teóricas, fundamentadas no contexto histórico, social e político brasileiro. Essas

reflexões percorreram questões sobre o histórico de racialização que enraíza a lógica de

superioridade-inferioridade na relação do branco com o negro e do branco com o

indígena; sobre o racismo estrutural, desenvolvemos os aspectos de efetivação e

manifestação dessa estrutura; sobre o medo na sociedade, falamos da sua presença

subjetiva e sociológica para a manutenção das relações de poder; sobre a universidade

embrutecida, pontuamos sua lógica de triunfo e de fracasso; e, finalmente, sobre o medo

na aprendizagem, trabalhamos a educação do aluno a partir da ideia da falta e da

incapacidade, permeadas pelo discurso do mérito e da excelência.

Nesse último ponto, ainda fizemos um pequeno desenho para mostrar a relação

entre território e política, política e epistemologia e epistemologia e pedagogia (e o

recomeço do ciclo). Colocamos o medo no centro como meio de marcar a produção e

reprodução, na universidade embrutecida, de relações de poder. O medo, por mais que

haja, muitas vezes, no intuito da imobilidade de ações e afetos, na impossibilidade de se

ver o outro, de se ver a relação entre as coisas, ainda não podemos falar de uma

inexistência relacional, pois não se mover, não se falar, não se afetar, não se relacionar é

também uma relação; uma relação que evita relações.

Para entender o que proponho, basta pensarmos a ideia de distanciamento entre o

professor e o aluno no processo de aprendizagem: o professor detém o poder, ao aluno

resta a obediência; ao professor, por seus devidos títulos, merece respeito, ao aluno, pela

falta deles, tem que respeitar. Nesse caso, as palavras desviam o sentido que se pensa

comumente a respeito de relação, já que respeito aqui, é a distância necessária que deve

haver entre aquele que manda e aquele que obedece. Nessa distância, na verdade, não há

respeito, há medo. Ele está atuando na ausência da relação, dessa maneira, é relacional.

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Trouxe esse exemplo apenas para reafirmar a ideia do capítulo anterior de que as

instâncias presentes no meio universitário (território-política-epistemologia-pedagogia).

Por mais que as relações entre si sejam ocultadas ou as relações de proximidade e de

afeto sejam devidamente evitadas, pelo fato de estarem extremamente embrutecidas

pelas estruturas hierárquicas, ainda é possível perceber, através da produção do medo, a

funcionalidade dessa relação.

Feito o percurso de como chegamos até aqui, podemos, mais tranquilamente,

preparar o terreno para as questões a serem abordadas nesse capítulo. Parece perceptível

que, no capítulo anterior, foi construído uma análise teórica ampla e geral das estruturas

de poder nas raças, nas sociedades, nas universidades e nas aprendizagens. O que

pretendo, nesse momento, é, a partir da experiência concreta dos mestres dos saberes

populares no espaço universitário, perceber a presença da curiosidade no combate ao

medo. A partir do método etnográfico de observação, enquanto estudante e monitor da

disciplina concedida pelos mestres, procuro mostrar como na crítica da universidade

embrutecida; na preparação do ambiente; no estímulo para conhecer o desconhecido; os

mestres rompem com a distância entre professor e estudante e a relação de autoridade

presente deixa de ser pautada pelo medo, pois o respeito não está mais na ordem a ser

obedecida, mas na produção coletiva do conhecimento, rumo ao desconhecido. Além

disso, deixo claro que pretendo fazer dialogar, nesse e no próximo capítulo48, as

anotações feitas durante as aulas dos mestres, com a minha própria experiência no

projeto e com outros autores para fins de pensar os alcances do projeto em seu intuito de

flexibilização do espaço universitário.

Rememorando o contexto do Encontro de Saberes na UFF, o curso foi realizado

em duas disciplinas, uma pelo Instituto de Artes e Comunicação Social, e a outra foi

uma disciplina conjunta do Instituto de Educação com o Instituto da Psicologia. Na

primeira, a disciplina contou com o mestre Ogan Kotoquinho, no módulo ‘’Ritmos e

Performances do Terreiro’’, com o mestre Expedito do Pifo e do Reisado e o aprendiz

Zé Nilton, no módulo ‘’Ritmos e Performances no Reisado e na Palhaçaria’’ e o mestre

Edimilson Santini, no módulo ‘’Ritmos e Performances do Cordel’’. Na segunda

disciplina, contamos com a presença do mestre Manoel Seabra, Antônio Nascimento

(Toninho do Canecão), Maria de Fátima da Silveira Santos e a aprendiz Luciana

48 No próximo capítulo pretendo trabalhar a noção de cuidado, e da necessidade de aliança com a

curiosidade, no processo de realização do projeto e na relação dos estudantes, professores e estrutura

universitária com os mestres.

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Adriano da Silva, no módulo ‘’Corpo e Aprendizagem no Jongo’’, com o mestre Pai

Roberto de Nzazi, com a mestra Mãe Arlene de Katendê e com a mestra Mãe Márcia de

Sakpatá, no módulo ‘’Corpo e Aprendizagem no Terreiro’’, com o mestre Augustinho, e

a mestra Marciana Para Mirim, no módulo ‘’Corpo e Aprendizagem Guarani Mbyá’’ e,

por fim, com os mestres Altamiro e Dona Dica, no módulo ‘’Corpo e Aprendizagem

Caiçara’’.

Acho importante, já de início, esclarecer que, pelo fato das disciplinas estarem

ocorrendo simultaneamente (às sextas-feiras, das 14h às 18h), foi impossível, mesmo

que desejável, para mim, acompanha-las. A minha presença física, então, situou-se

apenas na segunda disciplina mencionada, que tem como recorte49 o corpo e a

aprendizagem nos saberes tradicionais.

Dito isso, gostaria, também, de compartilhar uma indecisão proveitosa para o

início desse capítulo. A princípio, tive dúvidas se, para trazer a riqueza da experiência

de ter um mestre do saber tradicional como professor na universidade, exporia suas

reflexões por tradição, pois assim poderia trazer de forma mais ampla o conteúdo

abordado por cada mestre, ou se exporia por temas, cruzando as tradições e percebendo

onde se encontravam nas questões levantadas. Inicialmente achava a segunda menos

interessante, pois fiquei receoso de cair, sem querer, em modelos clássicos de

interpretação que violentaram tanto essas tradições50.

Porém, logo depois, fui amadurecendo as possibilidades de percurso e vi que na

primeira opção essa amplitude, a qual me referi, seria ilusória, pois é impossível, em

uma aula de quatro horas, em três sextas-feiras (16 horas de aula no total) abranger,

ainda mais nas tradições em que eu não tinha um contato prévio, complexas tradições

milenares – além da possibilidade real de me perder e possivelmente não me achar em

meu propósito de escrita. Já angustiado, comecei a pensar melhor e conversar com

amigos sobre a possibilidade de desenvolver o texto pela segunda opção. Por mais que

ache ainda muito difícil colocar no papel as complexas, ricas e poderosas falas dos

mestres, creio que estava equivocado ao pensar que posso violenta-las ao cruzar as

tradições entre si, a minha experiência e outros autores. Agora, mais calmo, consigo

49 Esse recorte é totalmente ilusório, pois as falas dos mestres não são divididas em disciplinas. Os

saberes de diversas instâncias se atravessam, se compõem e se cruzam. 50 Entrevista com o Prof. José Jorge de Carvalho, 2015. A entrevista ainda não foi publicada, mas o

professor faz referência ao modo historicamente violento das análises interpretativas científicas sob os

grupos afros e indígenas.

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perceber melhor que a força do conhecimento, principalmente no Encontro de Saberes,

está na relação que se é possível entre mundos diferentes. Minha intenção aqui não é

aprofundar em nenhuma tradição, nem em nenhuma grande teoria, mas perceber o quão

interessante, além do bom e do ruim, é o encontro e a soma de modos diferentes de ser,

pensar e sentir e de como essas diferenças não precisam necessariamente se opor para a

construção de algo, como é comum em uma lógica que preza pela dicotomia. Creio que

o que foi dito, e ativamente ouvido, ali nas salas de aula, é não apenas para ter sido dito

ali, mas ser compartilhado para além daquele espaço. Acredito que todas aquelas

manifestações do racismo, do poder e do medo são estruturas muito bem solidificadas

que nós, em nossa heterogeneidade e formas de ver o mundo, temos a missão de

enfrentar.

3.1. Possibilidades de uma outra universidade:

Pois bem, para pensar a possibilidade de se construir uma universidade mais

democrática, inclusiva e que os saberes possam de fato estar presentes nesse meio, é

preciso, todo momento, lembrar a nós e aos outros o que não queremos. Não pretendo

criar uma escala do que é mais importante pensar, pois, por mais que sejam movimentos

diferentes, poder e resistência não são dicotômicos como se pode imaginar, mas se dão

por uma rede complexa de acontecimentos e sujeitos inseridos em seus contextos de

agência. Podemos dizer, então, que, para construir uma universidade e uma sociedade

mais plural, no sentido de combater violências físicas e simbólicas e de, de fato, incluir

fisicamente e epistemologicamente os diferentes sujeitos, é preciso identificar e estar

consciente dos caminhos que não têm isso em sua agenda. Não é difícil colocar em

prática essa ideia, porém, ela exige um esforço coletivo de sensibilizar o pensar, o fazer

e o sentir na direção daquilo que chamamos no capítulo 1 de comum.

Nesse sentido, os mestres e os aprendizes dos saberes tradicionais são certeiros

quando refletem sobre o espaço universitário. Para chamar atenção para o que querem

construir, partem de críticas profundas sobre o histórico de violências que o espaço em

que estavam naquele momento causou e causa ao seu povo. Sandra Benites, Guarani e

mestranda em antropologia no Museu Nacional, na primeira aula do Encontro de

Saberes, no módulo ministrado pelos jongueiros, emocionada com as falas deles, traz

uma série de questões, como:

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As populações tradicionais são os invisíveis dos invisíveis [...] A

generalização acadêmica faz com que todo mundo seja igual. Ninguém

respeita e discute o valor do outro [...] nós que nunca passamos o que o outro

passa que falamos como deve ser a escola para ele. É assim aqui. (BENITES,

2017)

Dialogando com a fala de Sandra, percebemos algo que, principalmente no

capítulo anterior, desenvolvemos com mais afinco: (1) na academia o nada comentado

apharteid social e racial que foi construído impede a presença dessas pessoas e torna-se

um ambiente monoespistêmico; (2) a academia age por homogeneização e

universalização, como vimos em Passos e Kastrup, e, assim, na incisiva de eliminação

da expressão da diferença; e (3) a universidade não conclama todos os que nela estão e

os que nela não estão para uma construção conjunta do que é importante estar presente

ali. Além de perguntarmos universidade para quem (o que é fundamental), é possível, na

passagem de Sandra, perguntar universidade para quê, com que propósito. Ao chamar

atenção para a valorização do outro dentro da academia, ela revela a necessidade

urgente, para os povos tradicionais, de sua expressão no mundo, e a universidade,

estando nesse lugar de legitimidade de fala e produção de verdades, precisa ser

pressionada no reconhecimento da ‘’verdadeira igualdade’’ (RANCIÉRE, 2015, p. 125).

Luciana da Silva, jongueira quilombola, formada em Educação do Campo pela

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na mesma aula em que Benites

trouxe essas reflexões, compõe a conversa com o relato a respeito dos ‘’gritos de dor

para quem construiu as universidades. Elas foram feitas pelos nossos, mas não para os

nossos’’ (SILVA, 2017). E de fato, os negros, sob o peso da imposição da escravidão, e

os indígenas, sob o peso da imposição da servidão, foram sistematicamente explorados

para produzir mercadorias para o mercado mundial51 e para servir de mão de obra, hoje

em dia, quando não gratuita52, barata, para trabalhos braçais (QUIJANO, 2005, p. 247).

É nesse sentido que quando há a realização de grandes e importantes construções,

apenas os nomes daqueles que planejaram, pensaram e arquitetaram que são lembrados.

Os que morrem de cansaço ou de acidente, os que são explorados e forçados a estarem

ali, ninguém nunca vai saber quem foram, quais eram suas origens e suas histórias.

51 Para reforçar essa passagem é válido dizer que Luciana ainda diz: ‘’foi aí que entrou o maldito dinheiro

na relação entre as pessoas’’. 52 Trabalho escravo na atualidade: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-

escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx

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Essas pessoas são jogadas ao aspecto físico, retirando-lhes a capacidade

cognitiva, intelectual e epistêmica, enquanto, aos acadêmicos, restam-lhes pensar.

Vivendo em uma lógica de muros, onde há dentro e o fora, o lado de cá e o lado de lá,

não é de se espantar que a universidade tem naturalizado a sua função: constata sua

inteligência superior ora pelo discurso de que essas populações são de fato inferiores e

que do lado de lá devem permanecer; ou de que elas não são, de forma inata, inferiores,

mas que não sabem como as pessoas que já fazem parte da universidade sabem e, assim,

sua função seria instruí-las – o que também é uma forma de se colocar em posição de

superioridade (RANCIÈRE, 2005).

Luciana abre uma fissura nessa lógica quando questiona de forma contundente:

‘’que história é essa de alguém querer contar a minha história’’? Como vimos em

Sandra, primeiramente, não se dá o devido valor ao outro e, agora, em Luciana, isso se

fortalece quando o branco, ou melhor, a branquitude acadêmica, age pela desvalorização

daquele que vive a história (prática), para valorizar o seu próprio lugar de fala e contar a

história (teoria) do outro. Podemos pensar essa questão, também, a partir da provocação

de Luciana: ‘’de que vale a teoria sem a prática’’?

Vemos, então, que a presença dos mestres, física e epistemologicamente, é, de

forma pontual e marcada, um ato político. As suas falas carregam esse aspecto do início

ao fim. Para perceber melhor isso, basta ouvir o que o Mestre Toninho do Canecão,

presidente da Associação da Comunidade Negra do Quilombo da Fazenda de São José

da Serra, nos relata sobre o passado de seu povo: ‘’a gente já nascia anulado’’ ou ‘’a

gente pensava que a cor da pele era um fardo’’. Hoje, sendo uma pessoa que propicia a

ponte entre as formulações políticas dos movimentos negros e as tradições quilombolas,

enfatiza a luta incessante que vem travando para o devido reconhecimento do território53

e da expressão do jongo no quilombo onde mora.

Se, para Luciana, ‘’é através dele [do jongo] que a gente chega nas escolas, nas

universidades’’, creio que quando se trata da relação entre a universidade e a

manifestação cultural dos povos tradicionais, o Pai de Santo Roberto de Nzazi54 parece

concordar com esse percurso. Pai Roberto ainda acrescenta questões acerca de uma

mudança de perspectiva que a presença dessas tradições faz acontecer e deixa bem claro

53 No dia 5 de agosto de 2017, depois de muita luta, a justiça concluiu a desapropriação em favor do

Quilombo de São José da Serra: http://diariodovale.com.br/cidade/justica-federal-conclui-desapropriacao-

em-favor-do-quilombo-sao-jose-da-serra/ 54 Roberto Braga Tata Luazemi é Pai de Santo da Nação Angola.

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quando destaca o marco que estava sendo o Encontro de Saberes naquele momento para

ele e para os candomblecistas de um modo geral:

No passado não era assim como tá acontecendo hoje, aqui. Os acadêmicos

iam lá e ficavam no cantinho nos observando. No passado, fomos muito

usados para legitimar o que muitos acadêmicos falavam de nós. Hoje, as

pessoas estão vendo que o Candomblé tem muito a passar. Essa história que

nós todos estamos fazendo aqui é uma história viva. E tenho certeza que é

assinada em baixo pelos nossos mais velhos. Não é um ensinamento de uma

apostila, é um conhecimento vivido. (2017)

O que estava acontecendo ali, não se via e pouco se vê acontecendo. É

importante marcar isso pelo fato dessas pessoas estarem falando o que sentem que

devem falar, sem qualquer tipo de tutela, por um tempo maior, e como diz Pai Roberto,

a importante sensação de ‘’estar sendo ouvido’’. Isso fazia com que aqueles momentos

tivessem algo de especial. Não teve um único mestre que não agradeceu e demonstrou

felicidade em estar presente ali, de falarem por eles mesmo, além de chamarem atenção

para a vontade de continuidade dessa parceria. O retorno, de estudantes e professores,

foi recíproco e pareceu ficar claro, pelo menos para mim, que a possibilidade de uma

outra universidade só é real se essas pessoas pensarem juntos essa construção. Como vai

ser isso e como se dará essa continuidade parece ser, de fato, a questão que está sendo

colocada. Nesse momento, desenvolverei mais a respeito da atuação dos mestres nas

salas de aula e de como essas aulas transformaram os modelos ocidentais de se pensar o

território universitário e da sala de aula, a política, o conhecimento e o aprendizado

tradicionalmente ocidental em que vivemos na academia.

3.2. Preparação e transformação do território:

Afim de deixar o meu apoio teórico a respeito do conceito de território ainda

mais presente no percurso dessa escrita, trago novamente Rogério Haesbaert, uma vez

que o autor não entende tal noção enquanto dicotomias entre poder-apropriação,

material-simbólico, posse-pertencimento:

Portanto, todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em

diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio

sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir

“significados”. (2004, p. 3)

Território, aqui, é o conjunto de complexas e múltiplas relações que os sujeitos

estabelecem entre si e necessariamente o conjunto de forças, de relações de poder,

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existentes. Sandra Benites dialoga de forma muito interessante quando, no Encontro de

Saberes, disse que ‘’o território se constrói de acordo com o contexto. Quem sabe um

dia cada um não se reconhece como diferente? Eu me fortaleci aqui na cidade quando

eu fortaleci minha identidade de Guarani e mulher. Eu fui percebendo meus limites’’.

Quando Sandra diz essas palavras, me faz pensar a respeito da dimensão dialógica e

negociável que é o território. Por ter esse aspecto político, o território, em seu respectivo

contexto, entra em relação com as diversas forças que o compõe. Dessa maneira, se

relacionar com alguém é relacionar, também, o conjunto de territórios que carregamos

conosco.

Percebo, na vinda dos mestres, uma preocupação com esse aspecto territorial, no

sentido em que Haesbaert fala de que ‘’toda relação social implica uma relação

territorial’’ (2007, p. 334), já que, naquela sala, haviam pessoas com diferentes

trajetórias e, consequentemente, que percorreram territórios diferentes. Além de um

encontro de saberes, houve antes um encontro de territórios.

Maria de Fátima (Fatinha), liderança jongueira de Pinheiral-RJ, atua nessa ideia

quando marca o ponto, o que diz respeito a uma reverência ao jongo, à tradição, aos

mais velhos e à cultura negra (‘’Saravá o lugar em que estamos’’). Logo após marcar o

ponto, Luciana pede para que todos levantem, deem as mãos e, juntos, falem ‘’eu pego

sua mão na minha, para que juntos possamos fazer, o que eu não posso fazer sozinha’’.

Não se concebe a possibilidade de abrir um espaço de diálogo a respeito do jongo senão

se marca a produção coletiva desse fazer. A individualidade acadêmica é radicalmente

rompida em prol do território comum. Como se pode, em um momento dedicado

formalmente ao aprendizado, construir o conhecimento de forma conjunta? Por mais

que os mestres, sabedores de tal conhecimento estejam ali, têm a convicção de que o

que sabem não podem saber sozinhos. É nesse sentido que Luciana chama atenção para

importância do círculo no processo de aprendizagem e de comunicação: ‘’ele

proporciona o olhar giratório’’.

A roda é aberta, os tambores ressoam no auditório da Faculdade de Educação do

bloco D e as pessoas levantam para bater palma. Quem sabe, canta e quem não sabe

contribui com sorrisos. No jongo, não é só sair e entrar, tem que pedir licença, afinal

‘’pra entrar na casa de alguém não se pede licença’’ (FATINHA, 2017)? Poucos se

arriscam a entrar na roda e Fatinha deixa as pessoas confortáveis dizendo que até a

última aula todo mundo estará dançando pelo menos um pouquinho. A roda, que foi

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aberta, precisa ser fechada. Se a roda é uma casa, como nos fala Fatinha, quando saímos

dela, é preciso fechá-la.

É incrível como seu Augustinho, cacique e pajé Guarani Mbya da aldeia de

Araponga em Paraty-RJ, marca, no mesmo sentido, o território da sala de aula: ‘’essa

casa, hoje, é a nossa casa de reza. Aqui, nós vamos aprender a falar e a escutar, aprender

nosso caminho’’. Assim como no jongo, o território de lá (da comunidade tradicional)

implica um movimento na relação com o território de cá (universidade) e é nesse

cruzamento, estando os mestres no lugar de poder de um professor, que o encontro se

enriquece. A casa de reza, lugar tradicionalmente sagrado, onde acontecem os rituais

mais importantes do povo Guarani, lugar de cura, de aprendizado e de sua cosmologia,

foi trago para o lugar formal de aprendizado do juruá (aquele que tem pelo na cara, o

branco) e territorialmente associado. As salas de aula da universidade nunca foram uma

casa de reza, já que a espiritualidade é constantemente desconsiderada. Naquele

momento, porém, seu Augustinho fez questão de marcar sua pretensão, pois não parece

haver sentido falar do modo de ser Guarani (Teko)55, sem falar do lugar em que esse

modo de ser é feito (tekoha) (ALMEIDA, 2001, p. 19).

Acompanhei mais de perto a vinda dos mestres Guarani, não apenas por ter feito

trabalho de campo e já os ter conhecido previamente, mas também por ter ido busca-los

pessoalmente um dia antes da aula, na companhia do professor Emílio Nolasco, na

aldeia. Na vinda para UFF, quando pegamos a estrada, a primeira coisa que fizeram,

depois de se acomodarem, foi pegar os instrumentos e, dentro da van, entoarem seus

cantos. Pelo menos 8 vozes masculinas e femininas se juntaram no coro para reverenciar

(agujeveté) Nhanderu, a divindade da criação, e fazer daquele caminho, daquela

experiência, algo positivo. E, de fato, em dias anteriores em que só chovia, em nenhuma

das três sexta-feiras que vieram calhou de chover, porque, afinal, Nhanderu não enviou

seu Augustinho ‘’para ganhar pirá-piré (dinheiro), ele mandou para ensinar juruá’’

(Augustinho, 2017).

No dia seguinte, sexta-feira, as aulas iriam dar início às 14 horas, mas já

marcavam presença embaixo do bloco com a venda de artesanato e apresentação do

coral. Muitos olhares curiosos passavam, outros ficavam, filmavam, conversavam.

Quando deu a hora, Nino, vice-cacique, filho de Seu Agostinho, reuniu, em posse da

55 Para saber mais sobre o teko dos Guarani Mbya, ver a tese de doutorado de Pissolato (2006).

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rabeca feita por ele, as crianças, em que algumas levavam um pequeno tambor e

maracas nas mãos. Foi subindo as escadas e, ao chegar no corredor da sala de aula, os

colocou em fila e esperou a turma se acomodar. Uma senhora que trabalha de faxineira

na instituição, vendo a quantidade de indígenas reunidos naquele território, entrou em

choque. Deixou de varrer o chão e ficou uns 3 minutos tentando entender o que

acontecia ali. Brinquei com ela: ‘’por essa você não esperava, né’’?; saindo do estado de

choque, riu e manifestou sua surpresa: ‘’São indígenas mesmo’’?; ‘’sim, estão aqui para

dar aula. Se quiser ir, fique à vontade’’. Justificando que não dava, continuou o que

estava fazendo.

Ao caminharem em direção à sala, já começavam a cantar com suas vozes

potentes que arriscaria dizer que poderiam ser ouvidas no andar inteiro. Depois de

terminada a cantoria, pediu para que todos levantassem e dessem as mãos e outra

canção foi iniciada. Depois que terminou, Nino traduziu do guarani para o português o

que tinham cantado: ‘’essa música que a gente cantou é para os mais velhos. Não é uma

homenagem, é uma demonstração de respeito’’.

Essa afirmação foi feita várias vezes em diferentes contextos por ele e por

Sandra Benites. No sentido em que estamos pensando aqui, isso se diz

interessantíssimo, pois, mesmo os aprendizes reconhecendo o saber do mais velho, do

mestre, a relação não se dá, como discorremos anteriormente, pela distância, pela ordem

e obediência. O respeito está na proximidade, está no fato de se conhecerem, está na

abertura de si para o outro e vice-e-versa. Uma homenagem no contexto acadêmico,

como vimos no tópico do capítulo passado ‘’a universidade embrutecida’’, é a validação

e a consagração do prestígio ou dos cargos de poder, é o acúmulo do capital simbólico

adquirido pelo tempo investido ali dentro, seja pelas alianças políticas, seja pela

produtividade quantitativa. Aqui, Nino e Sandra falam de outra coisa, pois respeito tem

haver mais com o diálogo: ‘’é quando você conhece o outro’’56 (BENITES, 2017).

56 Aqui vale uma breve distinção etmológica, pesquisada no Google, entre honestidade e sinceridade: na

primeira, ‘’honestidade tem origem no latim honos, que remete para dignidade e honra’’ e, a segunda,

‘’originou-se num antigo hábito de passar cera nas esculturas em mármore para esconder as imperfeições.

O senado romano teria decretado, então, que toda a escultura deveria ser entregue sine cera, ou seja, sem

cera. A partir daí, a o termo teria assumido o significado de "sem trapaça", e posteriormente, sincero’’.

Arrisco dizer que a academia eurocêntrica preza pela honestidade, pela honra, honrarias concedidas, pela

superfície da verdade, pelo reconhecimento de seu conhecimento sem a proximidade com aquilo que

conhece. E os mestres tradicionais por uma relação sem cera, ou seja, sem empecilhos que impeçam a

verdade (añeté) com aquilo que se conhece, visto que isso é rapidamente, na co-autoria do cotidiano,

reconhecido por aqueles que estão envoltos no processo.

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No módulo dos povos de terreiro não foi diferente. Já no primeiro dia, depois

dos 10 candomblecistas terem almoçado no Restaurante Universitário da UFF,

caminharam juntos para sala de aula. Não havia me apresentado ainda aos mestres e,

antes de começar a aula, foi a primeira coisa que fiz. Me apresentei como monitor e já

fui oferecendo ajuda, caso precisassem. Me receberam com um sorriso e Pai Roberto já

me apontou para o lado de fora do prédio: ‘’Estevão, tá vendo aquele pé de mamona?

Pega quatro folhas para mim’’? Prontamente fui pegar e, quando voltei, vi que algo

estava sendo preparado naquela sala. No tablado e na mesinha do professor foram

colocadas folhas diversas (negra-mina, canela de velho, arruda, acoco, tatinga de

mulata, alecrin, mamona). Todos os estudantes e professores da universidade, que

entravam, passavam por elas. Alguns já tiravam os sapatos, como eu, e passavam por

elas, espalhando as folhas pela sala. O cheiro ia até o corredor do prédio e marcava uma

diferença no terceiro andar do bloco P.

Antes de trazer ao leitor o relato dos mestres acerca deste pequeno ritual, chamo

novamente atenção para algo que sinto ser importante no que estamos trabalhando aqui:

as folhas foram colocadas no tablado e na mesinha do professor, que normalmente fica

em cima do tablado. Quando dissemos, no capítulo passado, que o professor se coloca

em um lugar assegurado pela estrutura física dos prédios, das salas de aula e dos

auditórios, proponho um olhar mais atento ao que os mestres fizeram desse lugar. Não o

negligenciaram, nem o ignoraram, pelo contrário, esse lugar foi usado ao longo do curso

pelos mestres, mas ali já não era o mesmo do que foi pensado inicialmente quando foi

construído.

Tal lugar, tradicionalmente de poder que marca, por seus aspectos físicos, uma

distância entre os envolvidos no processo de aprendizagem e uma consequente

superioridade intelectual por uma hierarquia fixa, foi transformada quando se trouxe a

Natureza e os corpos dos presentes para explorarem aquele lugar de maneira

diferenciada. Além disso, Pai Roberto quando fala que tinham a intenção de que as

folhas se espalhassem pela sala, na minha percepção, isso simboliza, além de uma

aproximação do lugar de fala com o lugar de escuta, também o aspecto cíclico, circular

e dinâmico presente na Natureza e que o aprendizado no Candomblé preza.

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Foto 2: folhas sobre o tablado e a mesinha do professor. Foto retirada do Facebook de Pai

Roberto. Na foto, da esquerda para direita: Italmar Lima, eu e Elisa Borges, todos

integrantes do grupo.

A curiosidade relacionada a esse momento foi ampla e, no momento guardado

para perguntas dos presentes na sala, isso veio à tona. Para responder essa questão, a

Sacerdotisa Mãe Márcia de Sàkpátá, presidente da Fundação Kwe Jifa, recorre à

aspectos da cosmologia do voduísmo para nos fazer entender o que tinha acontecido ali.

O Vodú, essa força natural e original, é uma energia carinhosa com os seres humanos,

enquanto ‘’nós somos essa partícula divina do mundo’’ (Mãe Márcia, 2017). De acordo

com ela, os orixás desceram do céu para dar ânima à Natureza. Nesse sentido, sem

Natureza não há vida (‘’o ar acaba’’), quem dirá seres humanos.

No contexto em que narrava, então, passar por cima das folhas é lembrar que ‘’a

Natureza é cheia de energia que a criação divina pôs’’ e que, quando passamos, estamos

nos conectando, não apenas com essa energia, mas com um santo protetor que ‘’cada

um de nós têm’’. Finalizando o ‘’aprendizado em cima da folha’’, Mãe Márcia lembra

que alguns estudantes e professores, sem que ninguém falasse nada, intuía que seria

interessante tirar os sapatos para fazê-los e afirma contundente: ‘’muita gente não

conhece o Candomblé, mas conhece a Natureza’’.

Pai Roberto complementa o relato de Mãe Márcia, de forma enfática, quando diz

que o culto do Candomblé ‘’é o culto da Natureza, não do espírito’’. É nesse sentido

que se torna interessante trazer a Natureza para um lugar que historicamente a separou

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da Cultura57. Para Pai Roberto, a transformação do território parece ter sido bem-

sucedida e anuncia o estado de leveza, tranquilidade, paz e atenção presente naquele

lugar, fazendo com que ninguém entrasse nem saísse com carga negativa.

No último dia, como prometido, os mestres passaram o dia anterior à aula

cozinhando para nós, no terreiro. Na mesinha do professor, que antes havia folhas,

agora, em cima das folhas, haviam comidas típicas do terreiro: caruru, acarajé, acaçá e

feijão fradinho. Quando chegaram, antes de começar a aula, já anunciaram o que tinham

e que, para dispor sobre a mesa, precisariam de mais folhas de mamona. Fui pegar e,

quando voltei, os coloridos das comidas agiam no mesmo intuito das folhas do primeiro

dia: transformavam o território. Houve uma longa conversa sobre a preparação

ritualística da comida, o processo de oferecimento para o Orixá, as proibições

específicas relacionadas à ingestão de determinado alimento (quizila), as apropriações

de sua tradição, o preconceito a respeito do sacrifício de animais, a patrimonialização do

acarajé, a importância da comida na relação entre as pessoas e relação existente entre o

alimento e a Natureza.

Quando deu a hora do intervalo, a fila foi feita e era clara a intenção de que

aqueles alimentos não eram para ser vistos, muito menos saboreados, enquanto produtos

para serem consumidos, como na relação automática existente na compra em um

supermercado, mas que aquilo é parte integrante do que se entende por povos de

terreiro, por ser do Candomblé. A comida, além disso, dizia da relação que os mestres

estavam criando com seus estudantes. Abrahão Santos, professor responsável pelo

módulo, conta que, quando foi, junto a outros professores, propor a ideia de trazê-los

para a UFF enquanto professores, foi recebido com um amplo banquete. O que quero

dizer com isso é que a comida, seja quando a UFF vai lá seja quando eles vêm à UFF, é

presente para os povos de terreiro enquanto uma ponte na relação com territórios

distintos. Um encontro de saberes, nesse caso, é também um encontro de sabores:

57 Para saber mais sobre o ‘’Grande divisor’’, ler Márcio Goldman e Tânia Stolze, 1999, em ‘’Alguma

antropologia’’.

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Foto 1: Comida de terreiro em cima da folha de mamona. Retirada do Facebook de Pai Roberto.

Da esquerda para direita: acaçá, acarajé, caruru e feijão fradinho.

No módulo caiçara, a transformação do território foi, também, evidente.

Dona Dica e Seu Altamiro, mestres das duas últimas famílias da Praia Grande da

Cajaíba, em Paraty-RJ, resistem às pressões de reintegrações de posse e venda de terras

na região. Totalizando duas aulas, uma com cada mestre, Dona Dica, especialista em

cestarias, estendeu um pano laranja no tablado e as expôs. Cestos, talas soltas ficavam

ao lado dos livros sobre a região e da tese de mestrado de Lúcia Cavalieri, professora

responsável pelo módulo que os conheciam há aproximadamente 20 anos.

O corpo curvado de Dona Dica acompanhava sua voz baixinha sob um

banquinho de madeira que pôs no tablado. A aula não se deu sob um monólogo da

mestra, mas com perguntas feitas pela turma – principalmente por Lúcia. Depois de

falarmos um pouco sobre as cirandas, os antigos roubos das mulheres para o casamento,

das canoas, da defesa do território caiçara e das cestarias, Dona Dica sentiu necessidade,

para falar deste último, de ensinar na prática e pegou algumas talas para mostrar o

cruzamento entre elas. Nisso, Lúcia sugeriu que as pessoas chegassem mais perto e a

maior parte da turma, quase que instantaneamente, levantou de suas cadeiras e foi sentar

no tablado, ao lado dela, ou no chão, fazendo uma roda em volta.

Um estudante comentou, no final da aula, que esse momento trouxe para ele uma

lembrança menos de uma sala de aula e mais de um ambiente familiar. Enquanto ela

cruzava as talhas, a conversa continuava. Depois, ela desafiou os estudantes a tentarem

também. Uns dois ou três se arriscaram e sentiram a dificuldade do processo. Dona Dica

marcou que tipo de conhecimento era aquele: ‘’não sei ano, dia e mês, nem sei ler, mas

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sei a lei da Natureza. Tem que respeitar. Tirar uma coisa que volte depois para lá’’. A

ideia de circularidade no lugar de poder em que ela estava, na produção do

conhecimento e no aprendizado se tornam visíveis e perceptíveis, assim, com a

disposição dos corpos no território.

Para desenvolvermos o último relato relacionado a essa ideia da preparação e

transformação do território para a construção de um lugar de aprendizado, vamos voltar

ao primeiro módulo, dos jongueiros, pelo fato de ter sido o único dia em que usamos o

território fora da sala aula. No último dia as duas turmas se juntaram na orla: jongueiros

(na disciplina da Psicologia com a Educação) e o mestre Kotoquinho (na disciplina das

Artes), baiano, criador do grupo Filhos de Ghandi aqui no Rio de Janeiro. O encontro

foi muito bonito, por podermos presenciar a enorme demonstração de respeito, pelo

carinho, entre os mestres.

Primeiro os jongueiros soaram os tambores e aqueles que sabiam, ou que

quisessem se arriscar, entravam na roda e se divertiram. Para descontrair Fatinha pediu

para desfazer a roda e todo mundo dançar por si. Depois de uns terem saído e outros

entrado, fecharam o ponto. Fomos andando, um atrás do outro, até voltarmos para o

nosso lugar de origem.

Kotoquinho puxou o batuque do samba e os estudantess, em sua maioria do

IACS, entraram na roda. Depois desse momento, o mestre entrou na roda e cantou

algumas músicas em Iorubá. Pediu para abrir a roda na parte em que as pessoas estavam

de costas para baia de Guanabara, fazendo assim, um ‘’U’’, em direção ao mar. Ele fez

uma reza e pediu para emanarmos boas energias para Iêmanjá e agradecer aquele

acontecimento. Continuou o canto e foi abraçando todos que estavam na roda e um

abraço bem carinhoso em Seu Mané – Mestre jongueiro de 98 anos que, quando

estavam tocando jongo, dançou com o apoio de sua bengala, esbanjando um largo

sorriso no rosto.

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Orla da UFF: Seu Mané, com seus 98 anos na roda de Jongo. Foto: Gabriela Moscardini

Entre meus amigos mais próximos, esse acontecimento foi comentado bastante

vezes. Era evidente que o que tinha acontecido havia sido histórico, não apenas na

história do Brasil, na história daquela universidade, mas também na história de todos ali

presentes, pois nunca se havia imaginado a possibilidade de um encontro desses naquele

lugar. O encontro entre mestres de lugares diferentes, professores e estudantes foi

marcante para cada um, porque foi marcante também enquanto um coletivo de pessoas

interessadas na produção do que estamos chamando de comum. A multiplicidade de

territórios, que cada um que estava presente ali trazia, entraram em diálogo na roda.

Nesse contexto, a roda é a tentativa da materialização do comum. A roda, por ser

circular, dinâmica e corporal, tem o intuito de produzir esse comum. Enraizado na

experiência, na partilha e na heterogeneidade, a roda, nesse caso, quer pensar mais o

conhecimento enquanto uma co-produção do que uma propriedade. Se pretende mais

enquanto pertencimento do que posse.

3.3. Um diálogo entre Mãe Márcia e Dom Juan: medo do desconhecido e

julgamento; medo e clareza:

Para iniciar esse tópico, vou me apoiar no relato da Sacerdotisa Mãe Arlene de

Katendê, presidente da Organização Não-Governamental CISIN (Centro de Integração

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Social Inzo Ia Nzambi)58 e coordenadora do maior bloco afro da baixada fluminense, o

Afoxé Moxambomba59, a respeito do chamado que recebeu do Candomblé. Até os 17

anos, Mãe Arlene era noviça da igreja católica, estudando para se tornar freira. Uma

amiga da época insistiu que ela fosse conhecer o Candomblé e, por curiosidade, foi.

Confessa que sentiu medo antes de pisar no lugar e, relembrando a história, percebeu

que tinha medo porque não conhecia – era o medo do desconhecido. Já lá, durante um

ritual, ela desmaiou. Quando acordou estava uma gritaria incessante e a primeira coisa

que pensou era em como ela podia sair dali. Tomando consciência, descobriu que a

gritaria era de sua família, querendo retirá-la do terreiro, só que a Mãe de Santo da casa

não permitiu, pois precisava dos devidos cuidados que só podiam ser oferecidos ali.

Contando esse relato, de forma bem descontraída, Mãe Arlene brinca que o que era para

ser só uma visita, virou um carinho e um afeto que cultiva por 44 anos pela cultura

candomblecista. Ela conta que demorou uns 8 meses para entender o chamado que

recebeu de seu Orixá, Inquice, naquela noite, mas que logo percebeu o prazer que é ser

convocada a ser parte desse modo de ser.

Duas passagens desse relato me chamam atenção e que, nesse momento,

pretendo desenvolver a primeira e, mais a frente, a segunda: (1) quando sentiu medo de

ir, o medo do desconhecido e (2) quando decidiu, assim mesmo, ir, por curiosidade.

Para relacionar com a noção de medo mencionada por Mãe Arlene, vou dialogar com a

fala de Mãe Márcia, que veio logo em seguida nessa aula. De início, começou a fazer

referência à missão dos candomblecistas, uma missão coletiva, na mesma ideia já

comentada de que ‘’ninguém transforma nada sozinho’’ (Mãe Márcia, 2017), da

passagem aqui nesse mundo: ‘’ajudar o maior número de pessoas, mesmo que essas

pessoas tenham medo de nós’’.

Para a Sacerdotisa, nós temos dois inimigos: (1) o medo do desconhecido e (2) o

julgamento. Deixa claro que um depende da existência do outro. O medo de algo cria

vigor dependendo do tanto de julgamento que se depositou nessa mesma coisa. E o

medo, agindo enquanto uma repulsa para evitar relações, ao contrário do que se pensa,

também atrai uma porção de outras coisas: ‘’tudo aquilo que você não quer’’. Se, por

um lado, se julga por ter medo, por outro, também se tem medo do julgamento. São

mecanismos de um funcionamento complexo das relações sociais, onde julgar é o ato de

58 Ver site: http://www.polifoniaperiferica.com.br/2011/08/cisin-resgate-e-divulgacao-das-expressoes-

culturais-de-origem-africana/ 59 Acompanhar grupo no Facebook: https://www.facebook.com/Afoxé-Maxambomba-198912243897016/

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produzir verdades, baseado sempre em uma legitimidade pré-estabelecida e ter medo é o

ato de corresponder e reproduzir essas verdades legitimadas. Sentir medo do outro se

diz enquanto êxito da construção de uma sociedade que pensa as relações de poder

através de muros e hierarquias fixas, muito bem definidas.

Para entender o medo enquanto atravessador de experiências cotidianas ao longo

da história e a produção de subjetividade que implica esse processo, Santos, chama

atenção para ‘’ o quanto de julgamento está inscrito no interior de uma experiência que

tendemos a viver como espontânea, natural e idiossincrática’’ (2003, p. 55). Para ela, é

preciso estar atento às emoções em seu constante embate com as crenças que sustentam

as nossas experiências. Dessa forma, pode-se dizer que, no contexto que estamos

trabalhando aqui, não se sente medo de uma coisa qualquer de maneira aleatória. Sente-

se medo daquilo que foi construído social e politicamente para se ter. Dando nome aos

bois, sente-se medo (e como vimos, medo projetado, ódio) do Candomblé (da cultura

afro e indígena como um todo) pois, historicamente, as elites brancas construíram ideias

de inferioridade nos cultos africanos para afastar a sua expressão e conhecimento de

mundo em prol das referências eurocentradas.

Fiquei por algum tempo surpreendido pelo fato de que, logo após terminar de

ler o livro de Carlos Castañeda, com os incríveis ensinamentos de Dom Juan, ouço em

alto e bom som, Mãe Márcia usar a mesma definição de ‘’inimigos’’ passa se referir,

especialmente, ao medo, tema central de análise da relação de poder que quero pensar

no meio universitário. Relembrando o que nos fala Antônio Bispo, de que não acredita

em coincidências, mas sim confluências, podemos dizer que parecem caminhar num

mesmo sentido. Dom Juan fala de quatro inimigos naturais: medo, clareza, poder e

velhice. Dentre eles, nesse trabalho, nos interessa apenas os dois primeiros. E percebo

que trazê-los seja um exercício fundamental para podermos relacionar com os inimigos

‘’medo do desconhecido’’ e ‘’julgamento’’, que nos fala Mãe Márcia.

No livro, Castañeda passa quatro anos no México com Dom Juan, brujo

indígena Yaqui de Sonora, com pontuais voltas ao Estados Unidos, onde estudava. O

antropólogo tinha o intuito de entender como era usada e o qual o sentido atribuído ao

uso daquela que dá nome ao livro, ‘’A erva do diabo’’ (e suas quatro cabeças: (1) raiz,

(2) haste e folhas, (3) flores e (4) semestes), porém, jamais pensou que faria uso dela,

como fez. Depois de sua primeira experiência com Mescalito, este avisa Dom Juan que

Castañeda era o ‘’homem escolhido’’ e que devia ensina-lo os segredos (o que antes não

revelaria a ninguém) para o ‘’caminho do conhecimento’’. O antropólogo estruturalista,

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metódico e racional, por não nunca ter passado o que passou naquela noite, fica com

medo: o medo do desconhecido. Para Dom Juan não há problema em senti-lo60, pois

‘’quando se tem medo, vê-se as coisas de modo diferente’’ (1968, p. 50). Castañeda,

muito preocupado consigo mesmo, o que o torna, segundo Dom Juan, ‘’surdo e cego

para todo o resto’’ (p.52), não procura perceber as maravilhas em volta de si e, então, o

brujo sugere que medite mais sobre o fato do Mescalito ter brincado com ele (o que

Dom Juan nunca tinha o visto fazer), ao invés do medo que sentia. Castañeda estava

ainda confuso e temeroso, levando Dom Juan a responder

[...] que os temores são naturais, que todos nós os sentimos e que não há nada

a fazer a respeito. Porém, por outro lado, por mais aterrador que seja o

conhecimento, é mais terrível ainda pensar num homem sem um aliado, ou

sem o conhecimento. (p. 55)

Eduardo Viveiros de Castro fala que, para se ter medo, ‘’é necessário um

mínimo de imaginação’’ (2011, p. 887) e, segundo Dom Juan, ‘’o que [o homem]

aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a ter medo’’ (1968, p. 83).

Percebemos uma relação íntima entre medo e imaginação que se expressa no

despropósito na construção do conhecimento, já que o primeiro ‘’permanece oculto em

todas as voltas do caminho, rondando, à espreita’’ (idem). Torna-se, enfim, difícil de

vencê-lo, pois age de forma traiçoeira. Dessa maneira, se não o enfrentar e fugir, nunca

aprenderá, tornando-se um ‘’tirano, ou um pobre homem apavorado e inofensivo’’

(idem). Ao contrário, se avançar, sentindo o medo plenamente, até o momento em que

não mais o teme, o seu primeiro inimigo recua e o sujeito começa a sentir-se seguro de

si. É quando, finalmente, ‘’seu propósito torna-se mais forte’’ (idem).

Neste momento, Dom Juan fala da clareza de espírito que apaga o medo.

Sabendo satisfazer seus desejos, sabendo para onde caminhar, ‘’o homem sente que

nada se lhe oculta’’ (p. 84). É assim que a clareza torna-se extremamente perigosa, pois,

uma vez se acomodando a ela, se extingue a possibilidade da dúvida. Clareza61 aqui tem

haver com segurança de si e um consequente fechamento de perspectiva, onde ‘’ela é

apenas um ponto diante sua vista’’ (p. 84). Agindo pela certeza, o sujeito impossibilita o

seu próprio aprendizado, já que este funciona por abertura de si para o outro e para as

60 Quando perguntei a Seu Augustinho o que entendia por medo, ele respondeu algo parecido: ‘’é algo

que você tem, que todo mundo tem’’. 61 O termo pode parecer pouco trabalhado, mas estamos abordando o termo agora para fazer sentido no

diálogo entre Mãe Márcia e Dom Juan. Ele será retomado no próximo capítulo quando formos pensar a

ideia de humildade na produção do conhecimento e no processo de aprendizagem.

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coisas do mundo. Dessa maneira, a clareza, que foi importante para vencer o medo, em

excesso, também cega e bloqueia os futuros encontros.

Ainda sobre o aprendizado, podemos relacionar as reflexões de Dom Juan sobre

a clareza com a pedagogia da autonomia de Paulo Freire que, ao se referir a essa

segurança absoluta de alguns cientistas, diz:

Não tenho dúvida do insucesso do cientista a quem falta a capacidade de

adivinhar, o sentido da desconfiança, a abertura à dúvida, a inquietação de

quem não se acha demasiado certo das certezas. Tenho pena e, às vezes,

medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que

não suspeita sequer da historicidade do próprio saber. (2002, p. 26)

Relembrando ainda o que, no capítulo anterior, nos dizia Bourdieu a respeito do

‘’interesse desinteressado’’ e a produção de uma neutralidade científica pela qual

legitima modos de agir e pensar nas relações de poder dentro e fora da academia,

podemos entender melhor o lugar de inimigo do medo e da clareza (ou julgamento) ao

qual Mãe Márcia e Dom Juan estão nos alertando. Percebo uma estreita relação entre os

dois mestres que veem, naquele que age pelo medo, uma impossibilidade para o

aprendizado futuro e, posteriormente, naquele que, quando acha que já sabe de tudo, age

novamente pelo seu desconhecimento, sem assumi-lo. Julgar, em Mãe Márcia e ser

claro, em Dom Juan, pela ideia que estou tentando desenvolver, são atravessados por

uma noção comum de que o aprendizado, a relação entre as coisas, com o próprio

conhecimento e consigo mesmo não podem progredir por conta de um fechamento de

perspectiva a respeito daquilo com que o sujeito está se relacionando. Se, de um lado,

para aquele que é claro é desnorteante a revelação de que não sabe algo, para Freire, por

outro lado, sente-se seguro de si ‘’porque não há razão para [se] envergonhar por

desconhecer algo’’ (2002, p. 50).

Por fim, também é comum a ideia de que é preciso desafiar esses inimigos.

Sabendo que o saber é político e todo resultado vai depender da luta que ali se trava, é

cabal não se acomodar. Dessa maneira, para que comecemos a almejar um processo de

aprendizado sem medo e sem julgamento ou clareza, é preciso operar uma abertura na

perspectiva, é preciso aproximar as concepções de mundo e fazê-las dialogar, é preciso

um incessante espaço de trocas para que o resultado da luta possa, não se harmonizar,

mas, em algum momento, confluir.

3.4. Aprendizagem com curiosidade:

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Passamos agora para a reflexão do segundo ponto comentado no tópico anterior:

o fato de, mesmo com medo, Mãe Arlene ter decido ir ao terreiro, por curiosidade e,

depois, ter criado esse afeto indescritível de 44 anos. Não quero aqui pensar em termos

de causa e consequência, pois afinal essa experiência se diz enquanto pessoal e, logo,

sempre há inúmeros fatores que levam a decisão de dar continuidade a algo. O que me

interessa nas reflexões que aqui se seguem é, em primeiro lugar, como desenvolvido

anteriormente, a presença do medo e, em segundo, a presença da curiosidade na relação

com esse território, aprendizado e com o conhecimento, antes desconhecido por ela – o

que se aproxima bastante da experiência de um estudante que antes ignorava o saber que

os mestres trazem. Veja que o caminho a ser trilhado aqui é referente mais às reflexões

que a história de Mãe Arlene despertou em mim do que sua experiência pessoal em si.

Ao trabalharmos melhor essa questão, com ajuda de alguns autores, creio que o

percurso que pretendo realizar será melhor compreendido.

Para tal, me parece proveitoso refletirmos sobre a noção de curiosidade.

Anuncio, desde já, que a chave teórica que vou trazer será por via de Paulo freire que,

ao pensar o termo ‘’curiosidade epistemológica’’, enfatiza a exigência da mesma no

processo de aprendizagem (2002, p. 33). Para o autor, a noção está atrelada a uma ideia

de incompletude e movimento. O que torna as reflexões do autor ainda mais

interessantes é que a curiosidade não se dá por uma independência absoluta da

curiosidade de outrem ou pela sobreposição de uma sobre a outra. Deixa claro que,

dessa forma, ‘’nenhuma curiosidade se sustenta eticamente no exercício da negação de

outra curiosidade’’ (p. 33) ou ainda, que ‘’a curiosidade que silencia a outra se nega a si

mesma também’’ (idem). Podemos inclusive nos arriscar a dizer que, uma curiosidade

que nega outra ou que se sobrepõe por outra, reproduz a mesma lógica de mérito,

excelência e competitividade a qual descrevemos no capítulo passado. Um sujeito que

enaltece seu ego diante do fracasso de outros, introjeta a ideia de que é, de forma

superior, mais capaz que outros.

Dito isso, podemos dizer de forma mais consistente que, para Freire, curiosidade

é o meio pelo qual o ensinar e o aprender entram em movimento e garantem uma busca

por algo de seu interesse ou de um interesse compartilhado por mais pessoas. Dessa

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maneira, é que ‘’satisfeita uma curiosidade, a capacidade de inquietar-[se] e buscar62

continua em pé. Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo,

sem a transitividade de nossa consciência’’.

Chegamos a um ponto muito interessante, pois, nessa passagem, fica viva a ideia

de abertura, busca e movimento que a palavra curiosidade produz. Ao contrário do

medo, que age por meio de evitar relações e leva o sujeito a fugir do conhecimento ou a

se embrutecer diante uma situação, a curiosidade, nesse sentido colocado, leva as

pessoas, mesmo se há a presença do medo, a vencer as barreiras que ele coloca em jogo

e permite o sujeito avançar no processo de aprendizagem. Se curiosidade se diz

enquanto movimento e ela é uma palavra básica na metodologia freiriana, logo,

aprender só pode ser entendido enquanto um trânsito pela forma: um processo constante

de transformação.

No IV Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, realizado em outubro de

2016, em Santarém-PA, a indígena Célia Xacriabá, ao longo de sua fala trouxe seu

entendimento acerca de duas palavras que intuo serem interessantes para entender

melhor como estou querendo pensar a noção de curiosidade: (1) mudança e (2)

transformação. Para ela, a diferença que fazia com que ela desse muito mais valor à

segunda, era que, na mudança, havia perda, enquanto na segunda, havia soma. Na

mudança deixa-se de ser o que se era para se tornar algo novo, enquanto que na

transformação, as coisas coexistem: se é o que se era, sendo algo novo. No contexto em

que falava isso, era referente ao fato de os indígenas serem constantemente

descriminados, na sociedade e na academia, pela incorporação de acessórios,

tecnologias, modos de viver e práticas não-indígenas. Herança ainda de uma concepção

unilinear e cronológica do tempo, que vê o futuro em apenas uma única direção e

sentido (a civilização), não permite, àqueles que discriminam, perceber a soma que pode

haver na relação com o novo. A ‘’curiosidade epistemológica’’ freiriana se relaciona

mais com transformação, onde, antes da busca existia uma forma; ao longo da busca

transitamos pela forma; até chegar em uma outra forma no final da busca. Ao fim dela,

há a tendência, se estimulada, de movimentar outras curiosidades que irão iniciar outras

buscas para outros lugares que ainda não foram percorridos – outras formas.

62 Tal busca, segundo Rancière, pode ser conduzida por um mestre ignorante na verificação não do

resultado em si, mas na continuidade, no processo da pesquisa do aprendiz, pois, ‘’quem busca, sempre

encontra. Não necessariamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas

encontra alguma coisa, a relacionar à coisa que já conhece’’ (2015, p. 56-57).

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Pensar dessa maneira permite enxergarmos a existência de uma relação

diferenciada com o território, que é percorrido de acordo com os encontros entre

curiosidades que movimentam e despertam outras curiosidades. Na política, é

fortalecida a ideia de luta contra sentimentos, discursos e práticas que impeçam o

acontecimento desse movimento; na epistemologia, a curiosidade, no caminho de seu

movimento, vai descobrindo e fazendo outros descobrirem coisas antes ignoradas; e na

pedagogia, já que tudo é parte de um grande e interminável aprendizado, os deslizes, os

erros e os conflitos tornam-se motores para futuros acertos e afetos.

É certo que o relato de Mãe Arlene não continha todas essas questões que aqui

abordo, mas vieram, com certeza, para que pensamentos que já estavam em mim se

tonassem mais vivos. A sacerdotisa, vencendo o medo que sentia de um território

desconhecido através da curiosidade que sua amiga (essa sim conhecida por ela)

despertou, acabou por se fazer presente naquele lugar e, com o passar do tempo, torna-

lo cada vez menos desconhecido, ao mesmo tempo em que permite uma abertura para

aprender, colocando em cheque, como nos fala Dom Juan, sua própria clareza.

3.4.1. Curiosidade e atenção:

Podemos dizer que, para vencer o primeiro inimigo do homem, o medo, foi

preciso, para Mãe Arlene, a ação da curiosidade na relação com o desconhecido. Penso

que, até hoje, essa curiosidade é alimentada não apenas por ela, mas por todos os

mestres que passaram pelo Encontro de Saberes. Digo isso, pois era indiscutível a

atenção que a presença deles fazia na sala de aula. Os corpos que estavam presentes

expressavam a sua curiosidade pela atenção em que demonstravam, pelos sorrisos que

davam quando ouviam algo, com as palavras que falavam nos momentos em que se

abria para perguntas, com a presença do olhar. Curiosidade havia porque havia interesse

naquilo que os mestres estavam trazendo, seja por uma relação prévia de algumas

pessoas que exerciam ali a continuidade de uma relação, seja pelo desconhecimento de

muitos que tiveram, pela primeira vez, a oportunidade de fazer contato com os mestres,

devido a um espaço que foi historicamente negado a eles. De uma forma ou de outra, a

atenção havia e isso era reconhecido pelos mestres que agradeciam a todos os

envolvidos de forma incessante.

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Luciana, aprendiz jongueira, ao falar do seu envolvimento e aprendizado com o

jongo, diz: ‘’eu sempre prestei muita atenção’’. Logo depois de dizer essa frase,

relaciona com sua entrada na universidade (em Educação do Campo, em 2010 na

UFRRJ). Ou seja, atenção é um fator necessário para qualquer um que deseja conhecer e

aprender algo. O conhecimento se relaciona com o tanto de atenção que se deposita no

caminho que se percorre. Entendendo isso, Pai Roberto em quase todas aulas se

manifestava para buscar a atenção dos seus ouvintes: ‘’você está bem aí? Você está

confortável’’? E ainda brincava, ‘’Você quer ficar mais pertinho de mim, né’’? Além

disso, outra vez, também elogiou a disposição das cadeiras e a relação disso com a

atenção da turma: ‘’quem solicitou que as cadeiras ficassem em arco foi muito feliz, a

atenção da turma está perfeita’’! Parece que querer atenção da turma é também um

movimento dos mestres prestarem atenção nos estudantes: uma aula é uma troca de

atenções.

Ao falar sobre o processo de aprendizagem, os mestres acreditam, obviamente,

que a sala de aula seja apenas mais um dos espaços de aprendizado. Pai Roberto diz que

‘’a pessoa pintando, varrendo, cozinhando, fazendo qualquer coisa, está aprendendo

também’’. Tirando o peso do aprendizado da razão e do cérebro, como o imaginamos no

nosso modelo de aprendizagem, aqui é possível dizer que outras partes do corpo

também pensam quando estão fazendo e isso é tanto mais eficaz dependendo do tanto de

atenção que é dedicado no momento da tarefa. É nesse sentido que Pai Roberto

acrescenta que ‘’quem mais pergunta é o que menos aprende. É assim no Candomblé’’,

pois longe de tudo ter que passar pela lente da razão (e apenas isso se considerar

entendimento), antes é preciso explorar outras formas de sentido que é possível no

nosso corpo e investir na atenção que potencializa essas formas de percepção.

Mãe Márcia fala, por exemplo, que seus ancestrais ‘’corriam para a chuva para

sentir e ouvir os sons das gotas na pele, nas poças, no mar, nas folhas. Tudo tem um tom

diferente’’! No princípio dos tempos, segundo ela, havia uma atenção aos movimentos

da Natureza e isso permitia uma conexão única com a música. Ao falar disso, solta um

verbo inexistente que acaba, para mim se tornando um trocadilho muito interessante

para pensar o que diz: ‘’observasom’’63. Logo depois conserta para observação, mas

achei interessante, pois no momento em que foi dito coube muito bem. Quando a chuva

63 Encontrei, no livro de Castañeda, Dom Juan falando da visão, na experiência com a planta Datura, em

um sentido parecido: ‘’na verdade, a visão é para ser escutada, mais do que vista’’ (1968, p. 114) ou que

‘’a gente pode sentir com os olhos, quando estes não estão olhando diretamente dentro das coisas’’ (p.35).

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cai sobre algo aqui na terra, a sua materialidade observável, propicia um som que já não

é mais possível ser vista. É aí que a audição precisa entrar em cena para compor aquele

acontecimento. Poderíamos pensar o mesmo do olfato do cheiro de terra molhada, do

tato de tomar um banho de chuva ou do paladar da água descendo em uma garganta

seca. Enfim, o que digo aqui são duas coisas: (1) no princípio dos tempos havia uma

atenção ímpar para com a Natureza (responsável pela existência de todos e todas as

coisas) e (2) a experimentação dessa atenção com a Natureza não passava apenas no

olhar (no ‘’ver para crer’’), mas por todos os sentidos.

Pensando nisso, acho proveitosa a relação que se é possível entre os sentidos que

nos são disponíveis a utilizar e o trabalho intenso exercido sob o corpo que está

envolvido pela vivência de saberes tradicionais. Benites questiona, nesse contexto:

‘’corpo, o que é o corpo? É para esse corpo se movimentar, tornar-se um corpo

saudável. Uma pessoa saudável e equilibrada. Esse corpo que o Guarani, de modo geral,

trabalha muito’’. Os sentidos são do corpo e é a ele que Sandra nos fala que se é

depositada tanta atenção. Em uma única frase que pode ser pensada por diferentes

aspectos, opto por trazer a noção de trabalho que foi marcada nessa frase. Um corpo

trabalhado é um corpo que merece uma atenção contínua64.

Rancière está atento a essa questão, pois para trazer o método do Ensino

Universal, inaugurado por Joseph Jacotot, pensa dois pontos imprescindíveis ao mestre:

[...] ele interroga, provoca uma palavra, isto é, a manifestação de uma

inteligência que se ignorava a si própria, ou se descuidava. Ele verifica que o

trabalho dessa inteligência se faz com atenção, que essa palavra não diz qualquer coisa para se subtrair à coerção. (2015, p. 51)

Em outras palavras, para nos aproximarmos da discussão feita acima, o mestre é

aquele que provoca a manifestação de uma curiosidade no aprendiz. Sem cair nas

armadilhas de um autoritarismo, devido ao seu lugar de poder, o mestre não avalia o

resultado final, mas o processo, a atenção depositada no percurso: ‘’Ele não verificará o

que o estudante descobriu, verificará se buscou. Ele julgará se estava atento’’ (2015, p.

54). O aprendizado, então, não se diz pela avaliação, por meio de nota, do que o

estudante tirou daquilo que o mestre passou, mas o quanto dedicou a sua própria

curiosidade no caminho que trilhou, tendo em mente que, ‘’nesse sentido, a atenção

64 Para mais, ler: ‘’A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras’’, SEEGER, MATTA e

CASTRO, 1979.

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enquanto uma abertura para o mundo não é nem passiva nem uma atitude natural’’

(ALVAREZ, 2007, p. 122).

É possível ainda trazer, nesse contexto, o que Dom Juan diz a Castañeda acerca

dos caminhos que têm coração. Isento de medo e ambição, o caminhante experimenta

quantas vezes for preciso o caminho. Depois, ciente de que todos caminhos não nos

conduzem a lugar algum, é feita essa pergunta chave: esse caminho tem coração? Se

tem, o caminho é bom, se não tem, o caminho não presta:

Mas o homem que atravessa os caminhos da vida é tudo [...] Para mim só

existe o percorrer os caminhos que têm coração, em qualquer caminho que

possa ter coração. Ali eu viajo e para mim o único desafio que vale a pena é

percorrer em toda sua extensão. E ali viajo... olhando, olhando, arquejante.

(1968, p. 178)

Assim como Guimarães Rosa (1967) que, no livro ‘’Grande Sertão: Veredas’’,

termina a grande saga do jagunço Riobaldo com a palavra travessia, Dom Juan expressa

o seu ensinamento pela sabedoria em percorrer um caminho. Tendo em vista de ‘’que

um caminho não é nada mais do que um caminho’’ (p. 104), Dom Juan propõe um

aprendizado além das fronteiras (sentido da palavra experiência) a partir de uma atenção

(olhando, olhando...) na viagem. Substituindo o medo pelo desafio de caminhar, tem

ânsia (arquejante) de aprender, curioso pelo porvir e cauteloso na verificação se há ali

coração.

Afim de dar término a esse capítulo e adentrar acerca da noção de cuidado,

palavra parceira para enfrentamento do medo, proponho a relação sugerida no título

entre curiosidade e atenção no processo de aprendizagem existente na relação com os

mestres dos saberes tradicionais na Universidade. É impossível, assim, separarmos essas

palavras: uma pessoa curiosa é uma pessoa atenta. Isso se diz interessantíssimo pois

podemos marcar que o que importa no caminho é o próprio caminho.

Tendo isso em mente é que podemos repensar a relação entre território, política,

epistemologia e pedagogia feita no capítulo anterior. Antes, pensamos o medo no centro

das relações entre as instâncias, o que, no decorrer da escrita, percebemos que tem a

agência ou de evitar relações ou fazê-las agir de forma coercitiva e autoritária entre si. A

proposta é, então, que possamos trazer a curiosidade no centro dessa relação para que

mundos distintos possam se aproximar, fazendo com que os muros criados pelo medo

sejam derrubados e outros formas de se relacionar se criem.

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Não vejo esse movimento enquanto uma solução, pois o que a curiosidade causa

é a abertura de mundos e isso pode gerar ainda mais problemas, porém, a presença dessa

abertura ainda se apresenta necessária. A distância com que os territórios, políticas,

epistemologias e pedagogias dos mestres foi operada na relação com a universidade é

clara e a inesperada presença desses mestres nesses espaços é recebida de diferentes

maneiras. Ainda sim, o caminho, que na verdade é muito vasto pela forma que se chega

em cada um que fez parte dele, parece ter tido coração e o que se espera é que haja o

exercício constante de não haver uma sobreposição de curiosidades no processo de

aprendizagem:

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Capítulo 4 – O cuidado na curiosidade e uma possível universidade descolonial

Antes de dar início às reflexões desse capítulo, sugiro que possamos dedicar uma

retrospectiva bem rápida para nos atualizarmos no processo de escrita. O capítulo um

foi escrito, basicamente, para contextualizar o ponto de partida, de análise, de reflexão e

de caminhada. Ali trouxe informações que indicam o percurso empírico, com o objetivo

de trazer o leitor para o contexto da escrita.

No capítulo dois o movimento é outro. Ele tem claramente uma proposta teórica.

Ele foi escrito no intuito de trazer o leitor a um campo de reflexões que acompanharam

a minha experiência empírica. Para fins de melhor entendimento daquilo que estava

pensando, resolvi dedicar um capítulo inteiramente teórico, e situado em escalas de

análise diferentes (‘’racismo estrutural’’, ‘’medo na sociedade’’, ‘’medo e poder’’, para

então chegar na ‘’universidade embrutecida‘’ e ‘’medo na aprendizagem’’), para

entender a ação do medo no espaço universitário, lugar este historicamente embrutecido.

Por fim, o terceiro capítulo se caracteriza mais por seu aspecto etnográfico,

mesmo que haja, no decorrer da escrita, reflexões teóricas, afim de entender como a

curiosidade age na circularidade das instâncias territorial, política, epistemológica e

pedagógica na experiência do Encontro de Saberes. Como narro no início do capítulo

passado, foi uma escolha cruzar os pensamentos e reflexões dos mestres, de autores

acadêmicos e minhas, pois a ideia do Encontro de Saberes se realiza justamente nas

encruzilhadas das perspectivas.

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Pois bem, esse último capítulo foi pensado em torno da palavra cuidado. O

percurso que resolvi trilhar para abranger o sentido dessa palavra, na aliança com a

curiosidade para o possível enfretamento do medo, desenvolvidos nos capítulos

anteriores, será o seguinte: (1) reafirmar a construção, a produção e a reprodução do

saber, do conhecimento, enquanto um jogo político, enquanto uma luta, percebido em

sua produção contextual; (2) adentrar, com base etnográfica e teórica, a ideia de

humildade, na relação com o processo de aprendizagem juntamente com a ideia de

abertura que ela implica; (3) refletir sobre a relação dos povos tradicionais com o

segredo, a responsabilidade e o cuidado na processualidade do aprendizado; (4) trazer

essas reflexões para o contexto do Encontro de Saberes para, assim, pensar como essas

noções podem ser eficientes para enfrentar a produção perigosa do exótico na relação

com a diferença (ou daquilo que Paulo Freire chama de ‘’sobreposição de

curiosidades’’), baseado na avaliação dos estudantes no final do curso e dos mestres em

um seminário ocorrido na UFF, em outubro65; e (5), por último, como o Encontro de

Saberes pode, ou não, se consolidar como uma experiência de descolonização da

universidade embrutecida.

Assim como fiz com a noção de curiosidade, a palavra cuidado deve aparecer

conectada com as outras reflexões. No decorrer da escrita, porém, devo utilizar alguns

autores que trabalham com a ideia, mas o que pretendo dizer aqui é que curiosidade e

cuidado são noções que norteiam, ao mesmo tempo, a produção de uma subjetividade e

de uma metodologia que agem no intuito de transformar as relações pautadas pelo

medo, contextualizadas no espaço universitário.

4.1. O saber no jogo político:

Quando fizemos o quadro esquemático no segundo capítulo, com o medo no

centro, e no terceiro, com a curiosidade, ligamos quatro instâncias em que, segundo a

discussão de José Jorge de Carvalho, o Encontro de Saberes tem o intuito de agir: o

aspecto institucional (no que preferimos chamar de território institucional ou apenas

território), o político, o epistemológico e o pedagógico. Sugiro, neste momento, que

65 Isso será baseado na avaliação dos estudantes no final do curso e dos mestres em um seminário

ocorrido na UFF, em outubro.

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possamos nos centrar sob a relação entre poder e saber, mesmo que já tenha sido

comentada e trabalhada nos capítulos anteriores.

Michael Foucault (1975), ao escrever o texto ‘’A Verdade e as formas

jurídicas’’, pretende, em primeiro lugar, entender a formação histórica dos domínios de

saber a partir das práticas sociais. Assim, já deixa o leitor avisado que não entende o

conhecimento dado por definitivo, como algo em si. Em segundo lugar, fala de um

processo metodológico, que chama de análise do discurso. Nesse método, o autor vai

além da linguagem em si, mas tenta perceber, no discurso, a presença de jogos

estratégicos de ação e reação, de dominação e de luta. É, dessa maneira, uma

reelaboração da teoria do sujeito: não prevê uma posição absoluta dele. Foucault mostra

que essa concepção essencialista de sujeito é frequente nas ciências embrutecidas

(psicanálise, sociologia, história criminologia, etc) e que, especialmente através de

problemas jurídicos, surgiu uma forma de análise chamada examen (exame), a qual seria

estrategicamente usada por certos controles políticos e sociais que estavam surgindo ali

no final do século XIX.

O autor se apoia na leitura de obras de Nietzsche e nos alerta: o conhecimento

foi inventado. ‘’Quando fala de invenção é para não dizer origem’’ (FOUCAULT,

1975, p. 14), já que este último termo revela uma anterioridade preexistente, inata,

natural ou essencial do ser humano. Falar de invenção é falar de obscuras relações de

poder que envolvem e envolveram uma determinada fabricação no processo de se

conhecer algo:

O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem [...], o

conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do enfrentamento, da

junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se

encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um

compromisso, que algo se produz. Este algo é o conhecimento (p. 16).

O que se sucedeu na história do conhecimento ocidental, diz o autor, é uma

ilusão de continuidade entre aquilo que se sabe e aquilo que ainda se vai saber. É como

se houvesse uma linha evolutiva e harmônica no saber. O discurso de passividade no

conhecimento humano, ao qual se baseia o pensamento ocidental, é um ocultamento

constante da violência e violação sob outros corpos e outras formas de saber, pelas quais

tornam-se indizíveis e invisíveis na narrativa da história. Foi preciso uma fabricação e

produção constante de ideias e práticas sociais que afirmassem a existência de uma

essencialidade do conhecimento humano, para, estrategicamente, ser legitimada uma

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ideia de completude inserida no homem-europeu-branco-racional. Seja Deus, seja a

ciência, ambos trabalham em prol da harmonização do conhecimento e das coisas do

mundo. Assim, segundo Foucault, não é de se estranhar que o criador do que se entende

hoje por ciência racional moderna, Descartes, se viu obrigado a admitir a existência de

Deus.

É indo contra todo o tipo de harmonização, pacificação ou amorosidade na

fabricação do conhecimento que Foucault, por Nietzsche, reitera a todo momento a

existência do poder no saber: ‘’o conhecimento vai aparecer como a faísca que brota do

choque entre duas espadas’’ (NIETZCHE apud FOUCAULT, 1975, p. 22). É nesse

sentido também que autor marca dois aspectos que me parecem importantíssimos: (1) a

distância, pois mantendo aquilo que se quer conhecer a distância, é possível diferenciar-

se, proteger-se e, inclusive, dominá-lo; e (2) o movimento, pois achar que uma

estabilização momentânea é o conhecimento, é ignorar o estado de guerra, de luta aos

quais os corpos e as ideias estão. Percebendo esses meandros que envolvem os sujeitos,

é que podemos, segundo Foucault, nos aproximar, ‘’não como filósofos, mas como

políticos’’, do que seria a fabricação e produção do conhecimento ou da verdade.

Por último, o autor, ao dizer que o conhecimento é o efeito de uma batalha,

revela um caráter estratégico de sua formação. É a relação estratégica do conhecimento

com as coisas do mundo que definirá o seu efeito. Assim sendo, o resultado dessa

batalha é sempre parcial, perspectivo. É sempre alguém, em um tempo e espaço, que

profere algo sobre alguma coisa. Isso permite-nos dizer que o conhecimento aqui é,

além de tudo, contextual, localizado e territorializado.

Boaventura de Souza Santos (2010) nos ajuda a dialogar com essas questões

quando diz que ‘’a injustiça global está, desta forma, intimamente ligada à injustiça

cognitiva global’’ (p. 40). O pensamento abissal do mundo moderno ocidental opera por

distinções, visíveis e invisíveis, que impossibilitam a ‘’copresença dos dois lados da

linha’’ (p. 32). A manifestação cognitiva e intelectual produzida do lado de lá é

produzida enquanto inexistente por não caber nem enquanto alternativa, muito menos

enquanto centro da disputa epistemológica ocidental da ciência, da filosofia ou da

teologia. Os conhecimentos do lado de lá, tornados incomensuráveis e

incompreensíveis, encontram um não-lugar na ‘’negação radical da copresença’’ (p. 34):

O meu argumento é que esta realidade é tão verdadeira hoje como era no

período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar

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mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano, de

tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas

desumanas (BOAVENTURA, 2010, p. 39).

A pretensão hegemônica, universal e homogeneizadora, do pensamento

ocidental ganha legitimidade pela voz da ciência moderna que, segundo Boaventura,

pertence ‘’simultaneamente ao campo das ideias e das crenças’’ (p. 55). Elas pertencem

tanto na construção de nossa subjetividade e identidade, daquilo que somos (crenças),

quanto naquilo que nos é exterior, daquilo que temos (ideias). Além disso, ela é vista

ainda como ‘’única forma de conhecimento válido e vigoroso’’ (idem). É dessa forma

que, para o pensamento ocidental se fazer legítimo, foi preciso, antes, produzir essa

legitimidade em cima de conhecimentos outros. Foi, e é, preciso introjetar uma ideia de

inferioridade epistemológica naqueles situados abaixo da linha para que o lado de cima

se auto preserve enquanto detentor da verdade. É aqui que as ideias de Foucault e

Boaventura se encontram: se é verdade que a produção da verdade se dá por relações de

poder, então é verdade que, na história do conhecimento, muitas outras verdades

ficaram invisíveis e indizíveis, justamente por pertencerem a lugar nenhum na escala

universal de pensamentos válidos. O conhecimento abaixo da linha é invisível e

indizível porque o lado de cima invisibiliza e cala, não por que ele não exista66.

4.1.2. O saber no jogo político de Dom Juan:

Para podermos adentrar sobre as questões que envolvem a ideia de humildade e

de como, no processo de aprendizagem das comunidades tradicionais, ela ganha vigor,

vamos relacionar os autores acima citados com a noção que Dom Juan, já comentado no

capítulo anterior, tem sobre a construção do conhecimento e que, felizmente, dialoga

bastante com o que estamos querendo pensar aqui.

O indígena Yaqui marca diversas vezes o desafio do homem para àquilo que

ainda se vai conhecer, por exemplo, quando diz que ‘’o homem só vive para aprender’’

(p. 64) e, ao mesmo tempo, que ‘’aprender era a tarefa mais difícil que o homem

poderia empreender’’ (p. 54). Dentre os quatro inimigos que surgem em caminhos que

não tem coração (medo, clareza, poder e a velhice), Dom Juan fala de um conhecimento

66 Para ler mais sobre o dizível e o enunciável na formação histórica dos discursos no pensamento de

Foucault ler Deleuze: Foucault, 1986, Editora Brasiliense.

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gradualmente adquirido que é preciso ter para vencê-los, afinal, o problema real é se

render, se sujeitar ou se imobilizar na luta. Erro é movimento, já que as tentativas

frustrantes do combatente dão bases para, no processo gradual da aprendizagem, poder

acertar. Conhecer é um ato de batalha: ‘’o homem tem de desafiar e vencer seus quatro

inimigos naturais’’ (p. 81). Dom Juan define o ‘’homem de conhecimento’’ como todo

aquele ‘’que, sem se precipitar nem hesitar, foi tão longe quanto pôde para desvendar os

segredos do poder e da sabedoria’’ (idem). Além desse aspecto combativo que existe na

concepção Yaqui de conhecimento, ainda é preciso marcar que uma pessoa de

conhecimento não é um estado fixo e eterno. Alertando sobre a imprevisibilidade de

resultado que tem cada luta com cada inimigo, deixa claro o caráter temporário e

passageiro que tem esse momento, já que ‘’a pessoa torna-se um homem de

conhecimento por um instante muito breve, depois de derrotar os quatro inimigos

naturais’’ (p. 82).

Sendo assim, temos que, primeiro, conhecer é um ato de combate e, segundo que

não é um estado fixo, ao qual uma vez conquistado, estará garantido para todo o sempre.

Essas duas ideias expressam uma concepção de movimento que é típico do que os

povos indígenas, de maneira geral, entendem por conhecimento, já que ele passa por

uma relação intrínseca com a Natureza. Esta não como um território a ser explorado

para servir a cultura, a civilização humana, mas sim enquanto um ente vivo, dotado de

subjetividade e agência.

Juntando os pontos, creio que todos os autores que trouxe dialogam

intensamente para fortalecer a relação íntima existente entre o conhecido e com aquilo

que se vai conhecer. Pensando o que quero pensar, aquilo que ainda está em disputa do

que é importante ser conhecido, do que se tornará visível e dizível, implica mutuamente

uma categoria política e uma categoria pedagógica. Pensando, então, que para Foucault

toda produção de conhecimento é o efeito que se sucede após uma árdua batalha, e que

para Boaventura a manutenção das relações de subordinação depende da eficácia na

produção de uma legitimidade do que se entende enquanto verdade, Dom Juan, por fim,

nos ajuda entender que conhecer é movimentar-se e isso exige um aprendizado porque

não é um movimento qualquer feito a qualquer hora. Conhecer, no pensamento de Dom

Juan, passa por um movimento ecológico (BOAVENTURA, 2010), não egológico com

as coisas do mundo. É preciso, enfim, inferir uma abertura na relação com o novo, e,

nessa relação, cultivar a humildade.

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4.2. Humus: humildade e humanidade:

Para iniciar esse tópico, Paulo Freire (1996), ao discorrer sobre sua prática

enquanto professor, atuante político e pedagógico entre o saber e o não saber na relação

com o educando, nos ajuda a pensar questões acerca da importância da humildade no

processo de aprendizagem, especialmente, quando se pergunta: ‘’como posso respeitar a

curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compressão do papel da

ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? (p. 27)’’

Se, primeiro, Foucault, na esteira de Nietzsche, produz uma quebra necessária

entre o conhecimento e as coisas do mundo, entre o que se inventou por conhecimento e

o que se quer produzir enquanto verdade, entre o que se diz e o que ainda é indizível,

entre o conhecido e o desconhecido, agora, Freire (e isso é também presente no processo

de aprendizagem que Dom Juan nos traz) assume o aspecto de inacabamento do ser

humano. A posição de poder do professor, aquele que foi, pela tradição ocidental,

imbuído de dar seguimento à essa relação de continuidade, passividade, linearidade e

harmonia com o conhecimento, é colocado em questão. Aprender em Freire é assumir

uma ignorância. É assumir, assim como em Foucault, que o conhecimento é

contextualizado e, se assim o é, logo uma abertura na relação com o desconhecido é

produzida, já que sempre vai haver uma ignorância do professor justamente por não

habitar o contexto do conhecimento do estudante.

No dicionário67, humildade é:

Modesto; que tem noção de suas limitações; que não se valoriza nem é vaidoso:

banqueiro humilde.

Que demonstra obediência, respeito ou submissão: ações humildes.

Simples; que não é pretensioso; sem ambição: sonhos humildes.

Que não é rico; cuja situação econômica é modesta: povo humilde.

No primeiro tópico, a humildade é percebida por suas limitações, por

fronteiras rígidas: aquele que não consegue. Por não se valorizar, desconhece sua

própria potência. A noção sugerida internaliza uma ideia de incapacidade na pessoa

67 Consultar em: https://www.dicio.com.br/humilde/

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humilde: é aquele que pensa que não é aquilo que poderia ser. No segundo, é aquele que

é menor diante algo. A pessoa humilde é aquela que se submete a alguém ou a alguma

situação. É a ilegitimidade de si. É o respeito distanciado e impessoal para com uma

autoridade legitimada. Humilde aqui é curvar-se. No terceiro, humildade é carência. É a

suma da falta misturada com a incapacidade de si: sonhos humildes são sonhos

pequenos, quase que sem relevância. No último, humildade se confunde também com

carência, só que agora com o aspecto financeiro. Ser humilde é definida pela ausência

de riquezas materiais. Humildade é não ter posses.

As reflexões de Foucault tornam-se ainda mais pertinentes: quando uma

definição se diz definida, é porque, depois da batalha, silenciou, violentou e submeteu

os instintos ao que chama de conhecimento. A definição de humildade se diz como

aceitação de uma verdade que se impôs. O dicionário, assim, corrobora para uma

legitimidade de determinadas formas de saber em detrimento de outras, quando

impossibilita o entendimento da humildade enquanto uma abertura, enquanto um

cuidado no lugar em que se chega, enquanto uma horizontalidade na relação com os

outros, ou mesmo, como veremos melhor mais a frente, em sua relação com o prefixo

humus, de terra.

Nos deparamos frente a uma disputa de sentido: se ela existe de determinada

maneira no dicionário, é porque tal maneira foi produzida. É preciso deixar marcado

que essa palavra existe de forma diferente em outras situações, quando outros sujeitos

fazem uso dela. Em Freire, ser humilde não é ser carente de algo, é, na verdade, algo

que não se deve ser carente. É imprescindível ter humildade como meio de respeito ao

saber de outrem – do seu educando, no caso. Ser humilde é propiciar uma abertura na

relação. É se aproximar, não filosoficamente, mas politicamente (pois de forma terrena)

das coisas do mundo. É perceber a incompletude e o estado caótico no processo de

aprendizagem. Aprender, por sua vez, exige humildade, pois é através dela que o

desconhecido vai se tornando conhecido. Ele se torna conhecido não de forma pacífica e

harmônica, mas o embate, a luta, o conflito é assumido e, assim, potencializa-se meios

de confluência, de escuta e de um cuidado maior no porvir.

Proponho, neste momento, nos debruçarmos sob duas etimologias68, pois creio

que sejam de grande importância para realizarmos algumas conexões:

68 Consultar em: http://origemdapalavra.com.br/site/

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Humildade: ‘’a origem é o Latim humus, derivado por sua vez do Indo-

Europeu ghyom-, ‘’terra’’.

Humano: humano veio do Latim humanus, relacionado a homo,

‘’homem’’, e ‘’humus’’, ‘’terra’’, pela noção de ‘’coisas terrestres, em

oposição a ‘’seres divinos’’.

Sem ter conseguido datar o surgimento de tais palavras, ainda sim posso afirmar

o quão interessante é o fato delas compartilharem essa relação com a terra. O primeiro

aspecto notável é a origem patriarcal imbuída na ideia de humano, surgida na concepção

de ‘’homem’’, relegando às mulheres e crianças um lugar inferior, fora ou distante da

ideia de humanidade, muitas vezes os associando ao mundo animal, à natureza. Curioso

notar também que, primeiro, a definição do dicionário, humildade, de diversas maneiras,

se relaciona com uma incapacidade, falta, carência, limitação, inserida na ideia de

‘’humilhação’’, condição de não se erguer do chão de alguns humanos; e que, segundo,

na definição etimológica, humano aparece em uma relação do homem enquanto ser

terrestre em oposição a ‘’seres divinos’’. Dessa forma, me parece implícita uma ideia de

que alguns homens, na terra, são quase divinos, o que, pensando o conhecimento

enquanto produção e fabricação, são divinizados, se erguendo da terra e se localizando

verticalmente na relação com outros humanos.

Um humano, ‘’carente de humildade’’, como nos fala Paulo Freire, (que é uma

carência de terra ou uma carência de si mesmo), produziu, historicamente, uma forma

de se auto divinizar: ‘’vocês são humanos, mas nós somos mais humanos que vocês, na

escala evolutiva de humanidade, porque vocês estão mais próximos da Natureza’’69, ou

seja, do humus. Em suma, A ideia de uma superioridade essencial, pautada pela relação

entre raça e a exploração do trabalho no acúmulo de bens (aqui entra a exploração dos

recursos naturais em grande escala), é construída a partir de uma auto destruição: a

destruição de si na relação com a origem da palavra que o constituiu, a terra.

Percebemos então que a produção da ideia de homem, no mundo ocidental, é

pautada por um distanciamento somado a uma subordinação da terra, rumo à

civilização, à cultura, à luz – referência ao iluminismo. Essa ideia bate de frente com

uma outra concepção de homem, a partir de uma reflexão sobre a humildade que me

proponho a pensar. Donna Haraway (2016) constrói uma crítica que se aplica na

69 Argumento resumido dos evolucionistas sobre os indígenas da América no final do século XIX, ainda

presente no senso comum.

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discussão que estamos abordando. A descrição da era do ‘’Antropoceno’’, para

descrever a contemporaneidade, é, para a autora, um evento limite e marca

descontinuidades graves. Conceito pensado enquanto uma destruição irreversível,

produz uma ideia de fim de tudo, o húmus literal: ‘’O Antropos construiu uma era final

do planeta para chamar de sua e concluiu que sem o Homem nada mais importa. É o

tempo do Homem, para o mundo do Homem, destruído pelo Homem ‘’ (CHIODI,

2017)70.

Haraway, motivada a trazer de volta uma atenção do humano na sua relação

com a terra, propõe a ideia do ‘’Chthuluceno’’. Um termo que expressa uma

coexistência entre ‘’passado, presente e o que está por vir’’ (Haraway, 2016, p. 2),

Chthulu é referente à palavra grega khthôn, terra ou da terra, e à espécie de

aranha Pimoa Chulhu. É dessa forma que sugere uma possível relação interespécie de

forma colaborativa e que, assim, possa haver uma descentralização dos acontecimentos

sob uma óptica distanciada da Natureza, da terra, do humus. Logo, Haraway se declara

‘’uma compostista, não uma pós-humanista: somos todos compostos, adubo, não pós-

humanos’’ (2016, p. 3).

A referência à espécie de aranha mencionada é também permeada de sentido. O

termo, por ser multiescalar e, assim, ter a potência de propiciar uma abertura para ser

pensada em diferentes contextos, é apresentado pela autora enquanto um movimento

tentacular. Por isso, ela traz ‘’Medusa, um monstro ctônico – isto é, das profundezas da

terra, em oposição aos deuses do Olimpo – além de ser uma figura feminina’’ (CHIODI,

2017) e ter cobras em sua cabeça, o que fazem alusão ao modo tentacular de produzir

conhecimento, pensamento e relações. Penso que a ideia de permear nossas cabeças

com cobras, seres essencialmente terrenos e rasteiros, é uma tentativa da autora de

diminuir a prepotência do Homem com H maiúsculo que se posiciona num patamar

entre seres terrestres e seres divinos, hierarquizando posições fixas de autoridade e

dominação, o que pressupõe relações verticais – nunca relações tentaculares, circulares

ou terrenas.

No Candomblé, povos de matriz africana, a hierarquia entre mais velhos e mais

novos, seja por iniciação seja por idade, é presente, porém, as relações entre as pessoas,

70 Referência da resenha de Vitor Chiodi: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7321

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entre os orixás71, e entre as pessoas com os orixás se dá de maneira terrena, o que gera

uma aproximação, uma intimidade, um parentesco72. Por mais que haja relação daqueles

que estão na terra com outro plano espiritual, o plano dos orixás, a ideia de uma relação

terrena se realiza ora pela comunicação (a qual Exu se encarrega), ora no próprio corpo

da pessoa:

Pois, como já foi dito, no Candomblé o deus não é elemento apenas exterior

ao homem, reunindo-se periodicamente a ele, mas habita no seu interior, é

feito

dentro dele ao mesmo tempo que sua pessoa. No Candomblé, o santo

não ‘’baixa’’, ele ‘’vira’’ como dizem os praticantes. É claro que essas funções são parciais e temporárias, e o sistema se extenua nessa busca de

uma unidade tão essencial quanto impossível (GOLDMAN, 2017, p. 7).

O ser humano, dessa maneira, torna-se parte integrante e ativa de uma totalidade

cosmológica, em sua relação com a Natureza e com a Cultura. Ou melhor, a Natureza e

a Cultura coexistem em um mesmo plano (dentro e fora de si). Podemos inclusive

reproduzir novamente a frase pronunciada por Pai Roberto (2017) para enfatizar a

relação dos povos de matriz africana com a natureza (o que vale o mesmo para os

indígenas, quilombolas e caiçaras): ‘’nosso culto é da natureza, não do espírito’’. Veja

que, se o culto é da natureza, a relação não se dá de forma transcendente, mas de forma

imanente. A natureza é algo que se deve reverenciar, pedir e agradecer. A relação deixa

de ser necessariamente personificada na imagem semelhança do homem e passa a

constituir uma relação com o ambiente que estão envoltos.

Tendo em mente o que construímos, a partir de relatos etnográficos, no capítulo

passado, a respeito da transformação do território acadêmico ocidental por parte de cada

um dos mestres, parece ser possível relacionar isso com a proximidade valorizada com a

terra, com a natureza, logo, com o humus. A partir desse momento, sinto que os pontos

vão se conectando: o saber e o processo de aprendizagem são uma produção territorial,

contextualizada; o saber dos mestres dos saberes tradicionais têm uma relação intensa e

terrena com a natureza; a humildade é justamente a abertura necessária de quem

aprende e de quem ensina na relação com a terra; ser humilde é ser humano; ser humano

é compartilhar um aprendizado e um saber territorializado, contextualizado (aqui o ciclo

termina e recomeça).

71 Orixás, inquices ou voduns, dependendo da nação. 72 Donna Haraway exclama uma frase afim de movimentar uma resistência: ‘’faça parentes, não bebês!’’

(2016, p. 3). Não vou adentrar nessa questão, mas isso se dia de maneira muito interessante na produção

relações tentaculares, já exercida pelos povos tradicionais, de diferentes maneiras. ‘’Fazer parentes é fazer

pessoas’’ (p. 4).

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Pensando dessa maneira, podemos melhor entender o porquê de Mãe Arlene ter

sido tão enfática ao discorrer sobre humildade:

‘’O maior dom do Candomblé é a humildade! Isso é lembrado o tempo todo

pela hierarquia, pelo ritual, pela reza. Humildade não é inferioridade!

Humildade é sempre estar aberto a aprender com o outro. Você pode sempre

aprender com o outro: o que ele pensa, vive, como conduz a vida...’’ (2017).

Veja, como falamos anteriormente, a hierarquia presente no Candomblé não é

exercida na ideia de uma superioridade intelectual, na ignorância de que o estudante é

totalmente ignorante. A hierarquia é um ato de lembrar da humildade, de exercer uma

abertura no processo de aprendizado. Aprender está ligado com o que se vive, com a

prática diária, logo, a vivência de alguém se dará com o tempo dedicado ao

aprendizado. Não se cobra um resultado final, mas, como me disse o aprendiz Bruno

Reis (2017), é a ideia de que ‘’o Candomblé é uma universidade onde a gente aprende,

aprende e nunca se forma’’, mas que está sempre se formando.

Pai Roberto dialoga com a questão de forma interessante quando comenta que

‘’lavar um banheiro é um ótimo lugar de aprendizado. É assim no Candomblé: você

pintando, varrendo, cozinhando... tá aprendendo também!’’ Nessa passagem, Pai

Roberto enfatiza o conhecimento em uma relação intensa com a vida. As salas de aula

da universidade, lugar historicamente privilegiado de ensino, parecem ficar menos

importante e se tornar apenas mais um lugar de aprendizado. A universidade e o

banheiro se horizontalizam – ou pelo menos se transversalizam73. Deixam de ser

comparados de forma vertical e descem para a terra: mais um lugar, mais uma

oportunidade para aprender. É aí que a humildade entra: uma abertura para aprender,

para percorrer o território e as peripécias do saber.

Enviei uma mensagem no Facebook para Mãe Márcia quando descobri que

humano e humildade tinham a mesma etimologia. Ela agradeceu a lembrança e disse ser

muito interessante e esclarecedor, pois ‘’a divindade conhecida como dono da Terra é

também o senhor da saúde e da humildade’’. Parece que realmente nada surge do nada.

73 No projeto de extensão ‘’Etnoeducação patrimonial em Oriximiná-PA’’ fazemos o exercício de pensar

alguns conceitos que nos ajudem a tornar materiais algumas demandas na cidade em questão.

Transversalidade foi pensada no sentido de encontro entre o vertical e o horizontal. Como na matemática,

uma linha atravessa as linhas horizontais e verticais gerando algo novo que ninguém sabe ao certo o que

é, mas em que os dois deixam de ser o que são para construção de algo novo, de algo comum, produzido

coletivamente.

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As coisas se atravessam e é no encontro e na relação possível entre as coisas que o saber

se realiza.

Não me parece também à toa que a divindade da terra e da humildade seja

também senhor da saúde. Os mestres da tradição que passaram pelo Encontro de

Saberes compartilham uma ideia de fazer da passagem aqui nessa terra algo alegre,

vivo. São feitos incessantes trabalhos para que as doenças, físicas, emocionais,

psíquicas e espirituais não permaneçam no corpo da pessoa74. É dessa forma que o

conhecimento e o aprendizado giram em torno de como é possível estarem mais felizes,

ou seja, mais saudáveis. Seu Augustinho, com 98 anos e extremamente saudável, nos

relata sobre a importância da alimentação tradicional, da casa de reza e da vida em

Araponga, afirmando uma relação de aprendizado compartilhado com a terra que

valoriza a saúde do corpo. Esse aprendizado, porém, é processual e, como todo

conhecimento que se aprende, exige uma responsabilidade, um cuidado.

4.3. O segredo, a responsabilidade e o cuidado no aprendizado:

‘’O conhecimento, uma vez que você

alcançou a informação, você nunca mais

vai dormir tranquilo’’

(Emicida, 2015)75.

Para iniciar este tópico, trago Viveiros de Castro (2011). Ele faz referência à

crença moderna de que nossos ancestrais, contemporâneos pré-modernos, tinham medo

de tudo, o que justificava o avanço da ciência em prol do progresso:

74 Não vou me aprofundar nessa questão, mas vou abordar um pouco melhor no próximo tópico. Já

adianto o leitor, porém de alguns trabalhos que tem envolvimento com as tradições que passaram pelo

Encontro de Saberes, que é o caso de Pissolato (2007), que, a partir da concepção da busca pela Terra sem

Mal, elaborada pelos Guarani, pensa, entre outras coisas, o a relação dos Mbyá com aquilo que adoece o

corpo, estados de infelicidade; Santos (Psicologia de Terreiro, 2016) que vai abordar o conhecimento

acerca do cuidado e saúde entre os povos de terreiro (a qual vou me apoiar nesse tópico); e Caprara

(1998) sobre os labirintos da doença em Omulu, orixá da doença e da cura, simultaneamente, para

elaborar o conceito de ‘’médico ferido’’ na abordagem de um paciente na medicina. 75 Acessar entrevista completa em: https://www.youtube.com/watch?v=5ESpUsVmMpQ&t=1453s

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Como se sabe, eles viviam morrendo de medo: medo dos outros humanos,

medo da natureza, medo da morte, medo dos mortos, medo do novo, medo de

tudo. A luz da razão, vindo dissipar as trevas da superstição e seus terrores

imaginários, e a ciência, vindo diminuir a impotência dos humanos em face

dos perigos reais do mundo, iriam finalmente nos fazer aceder a um estado de

sereno destemor, um estado de segurança e de conhecimento. Nada

temeremos, porque tudo compreenderemos; e o que se puder prevenir,

preveniremos (p. 888).

Mais à frente, o autor descreve uma ilusão que se concretiza em uma desilusão,

pois a esperança da sociedade não ter mais medo se transforma em um medo da própria

sociedade, ‘’organizada em torno do risco que ela própria cria’’ (idem). Querendo se

adiantar frente ao perigo, a sociedade ocidental opta por tudo conhecer. Essa seria a

forma que se encontraria para combater o medo e criar zonas preventivas, de cuidado.

Não é para menos que inúmeros especialistas se formam para dar conta de um assunto

específico.

Segurança tem haver com conhecimento, mas não um conhecimento

contextualizado, capaz de ser usado em um momento tal. Qualquer e todo

conhecimento, afim de tudo saber e a qualquer hora sobre tal coisa. Ou se conhece

apenas para agir, ou se conhece apenas para pensar – e nunca se conhece para sentir, ou

se conhecer sentindo. A integração entre pensar, agir e sentir é impossibilitada.

Por quê isso? Ainda Viveiros de Castro nos abre um caminho quando descreve,

de forma tão interessante, o modo de produção do conhecimento científico:

a categoria do objeto fornece o telos: conhecer é objetivar; é poder

distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito

cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente

projetado no objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar, explicitar a

parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo

ideal. Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como

resultantes de processos de objetivação: o sujeito se const itui ou

r econhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece

objetivamente quando consegue se ver ‘de fora’, como um ‘isso’. Nosso jogo ep i s t em ol óg i co se ch am a objet i va ç ã o; o que nã o

foi obj e t i va do per m an ece irreal e abstrato. A forma do Outro é a

coisa (2002, p. 231).

A construção do argumento do autor parece esclarecer a forma como a ciência

lida com aquilo que ela busca conhecer: objetivando. Juntando os argumentos, a ciência,

além de querer conhecer tudo para se prevenir e escapar dos temores que nossos

ancestrais viveram, conhece de uma maneira específica, como descrita. A ciência se

auto declama neutra e imparcial para legitimar o seu conhecimento sobre o Outro, que

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se apresenta em forma de coisa. O ato de conhecer é realizado quando se retira do

objeto, ou do sujeito, sua subjetividade.

Podemos dizer, assim, que a prepotência com que o discurso científico adota é

perceptível, nessa análise, em duas características: (1) pela voracidade com que conhece

as coisas: produtividade, resultados e eficiência; (2) pela objetificação daquilo que quer

compreender: distanciamento e neutralidade. Essas duas características parecem compor

aquilo que Dom Juan chama de ‘’o segundo inimigo do homem’’, a clareza (1968, p.

84). Uma vez que a ciência se coloca em um lugar em que tudo sabe, ‘’obriga o homem

a nunca duvidar de si’’ (idem). Ela, que ilumina, e elimina o medo, também cega. Por

isso torna-se tão perigosa e nociva a si mesma e a outros, pois age pela ilusão da vitória,

age pela obviedade de um único caminho, de respostas claras, esclarecidas pela razão. A

diferença raramente encontra espaço na clareza de alguém, já que a concepção desse

alguém é tão clara que impossibilita questionar-se e, assim, diferenciar-se.

Em determinada parte, no livro ‘’A erva do diabo’’, Castañeda protesta diante

um momento de impaciência de Dom Juan e diz desejar ‘’saber tudo o que puder’’

(p.27), justificando que o próprio Dom Juan afirma que saber é poder. Dom Juan solta

um ‘’não!’’ enfático e diz: ‘’o poder reside no tipo de poder que a gente tem. Do que

adianta saber coisas inúteis’’? Essa parte do livro me leva a justamente refletir sobre as

questões colocadas acima, só que agora de uma nova óptica, uma óptica Yaqui de

poder. O poder, assim como o saber, não é sobre tudo, a qualquer hora. Ele é

contextualizado e depende muito do conhecimento que se tem sobre aquilo e do tipo de

uso que será realizado com o que se sabe. Não adianta saber coisas inúteis, porque o que

importa no saber é o uso, o poder, que se fará dele. Mais à frente, Dom Juan diz que

acredita que ele só entenderia isso quando, a partir da ‘’alucinação’’ que se teria das

plantas, se concentrasse nesses estados e omitisse outros aspectos do conhecimento.

Há uma situação no livro em que Dom Juan pede para Castañeda encontrar o

ponto dele na varanda, o ponto em que ele se sentisse mais confiante, seguro. Castañeda

não quer ter trabalho e espera que Dom Juan pudesse auxiliá-lo. O que não acontece,

fazendo com que fique ao longo de toda a noite nesse propósito. Dom Juan justifica que,

se ele tivesse falado onde o ponto ficava, Castañeda ‘’nunca teria tido a confiança

necessária para considerar aquilo o verdadeiro conhecimento. Assim, saber era

realmente poder’’ (p. 55).

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Veja que para saber ser poder, para Dom Juan, ele precisa ser poder

experienciado, vivido. Além disso, esse saber é adquirido de maneira que se tenha

confiança naquilo que está se aprendendo. Para considerar algo enquanto aprendizado,

logo, enquanto um saber, é preciso que haja uma confiança de que algo está se

desvendando: é um segredo posto em confiança a alguém. Um segredo não é segredo

por ser sempre oculto, ele é segredo por ter um momento certo para ser revelado e

continuar sendo segredo sucessivamente para quem não está preparado para recebê-lo.

Dom Juan diz que ‘’certos tipos de conhecimento eram poderosos demais para a força

que [Castañeda] possuía, e que falar sobre eles só [lhe] faria mal’’ (p. 55).

Quando o Encontro de Saberes terminou, nós organizamos uma viagem ao

Nimogarai, batismo do milho, na aldeia do mestre Augustinho, em Araponga, Paraty.

Ele é o ritual mais importante da comunidade pois, ao mesmo tempo em que se batiza o

milho para o sucesso de seu plantio, crescimento e colheita, também ocorre o batismo

das crianças pequenas que estão começando a falar – alguns juruá também são

batizados. Estou trazendo, de forma não aprofundada, este episódio para que possamos

dar continuidade nas reflexões acerca da importância do segredo no processo de

aprendizagem para os mestres que participaram do Encontro de Saberes. Os ritos do

Nimongarai acontecem na parte da noite e, durante o dia, não há um plano objetivo do

que fazer. Estávamos, então, sentados em frente à casa de reza conversando e, de

repente, uma Guarani, a qual não me lembro o nome, começou a relatar sobre o assunto

em questão. Disse que ela não sabe de muita coisa que acontece no ritual e que, Seu

Augustinho e Dona Marciana, quando o estão realizando, falam em outro Guarani,

pouco ou quase nada compreensível para o resto da comunidade. Antes de mudarmos de

assunto, ainda criticou os muitos pesquisadores que ficam sabendo de coisas que foram

confiadas a eles em segredo e que, depois, ficam sabendo que falaram delas na

universidade.

Já foi comentado no capítulo passado o que Pai Roberto disse: ‘’os acadêmicos

iam lá e ficavam no cantinho nos observando. No passado, fomos muito usados para

legitimar o que muitos acadêmicos falavam de nós’’ (2017). Nessa passagem há um

acréscimo na fala Guarani: primeiro revelam os segredos, depois legitimam a sua

própria fala sobre o Outro, como diria Viveiros, em sua forma de coisa. Na disciplina,

Pai Roberto, quando se refere ao que o Candomblé faz, é extremamente preciso e

enfático: ‘’o que a gente faz é cuidar dos nossos segredos’’ (2017). Isso se confirmava

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quando se recusava a responder certas perguntas de discentes e docentes, justificando

que não poderiam ser reveladas – o mesmo acontecia com Seu Augustinho.

Goldman dialoga bastante com a questão quando diz que é um grave erro reduzir

o Candomblé a um sistema ‘’totêmico’’, intelectual e cognitivo:

[...] não levar a sério a afirmativa eternamente repetida pelos fiéis e

sacerdotes de que o importante não são os esquemas classificatórios ou

mesmo o aspecto visível e espetacular das grandes festas públicas, mas o que é feito em segredo, dentro da camarinha, longe dos olhares dos leigos – os

‘’fuxicos. (1990, p. 6)

Em suma, o que quero deixar claro, desde o início do capítulo é que o

conhecimento é contextual e, como afirma Dom Juan, o saber se realiza enquanto poder

quando este último é utilizado em algum contexto. Não é de se espantar, assim, que os

mestres sempre nos convidam para irmos em seus respectivos territórios. Se o

conhecimento é contextual, fará muito mais sentido se for realizado onde ele é

tradicionalmente utilizado: o saber se empodera, pois o uso é melhor manipulado

(CASTAÑEDA, 1968, p. 85). Não é de se espantar, então, que toda luta dos povos

tradicionais se efetua na luta pelo território, pois é lá que o saber é utilizado de maneira

correta – a verdadeira76 forma de se viver é na terra, compartilhada com os parentes.

Pois bem, acho que pudemos abordar a noção de segredo de uma forma bem

interessante na relação com o conhecimento, de forma que ele possa ser entendido em

sua dimensão política: conhecer é uma ação processual, em determinado contexto, que

implica uma vivência e um tempo de dedicação a algo. O que quero pensar, agora, é a

relação de se ter um segredo confiado, com a responsabilidade e o cuidado que se deve

ter, pois se, certamente, isso exige uma curiosidade do aprendiz, também exige um

‘’cuidado para não meter os pés pelas mãos e o nariz onde não é chamado’’ (Mãe

Arlene, 2017).

Mãe Arlene disse essa frase ao se referir à curiosidade, pois já viu muita gente

se deparar com situações às quais se apresentam em lugares onde não foram convidadas

e não estavam suficientemente preparadas para lidar, fazendo-lhes mal. Abrahão Santos,

membro do grupo do Encontro de Saberes na/da UFF, recolhe um relato de Mãe Arlene

em que diz que as energias, compreendidas em uma inseparabilidade entre o aspecto

espiritual e psicológico, podem “curar, adoecer, enlouquecer, manipular, fazer amar ou

76 Paula Pissolato (2007), entre os Guarani Mbya, trabalha com essa ideia.

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odiar, matar ou fazer viver” (2016, p. 23)77. Dessa maneira, o aprendiz descuidado e

apenas curioso pode se deparar com saberes, ou energias, que não necessariamente irão

potencializar seu corpo, sua mente ou seu espírito. É nesse sentido que o aprendizado se

dá de forma processual, entendendo o momento certo em que o aprendiz deve aprender

algo. Emílio Nolasco conta que uma vez na aldeia Guarani estava com Alberto Tuparay,

também meu amigo, que lhe disse a seguinte frase: ‘’se a gente não entende alguma

coisa, é porque a gente não está preparado para entender’’.

Partindo dessa ideia, Pinto (apud SANTOS, 2016, p. 24) afirma que ‘’Inquice78

vem do quicongo nkinsa, que quer dizer cuidar, tomar conta’’. Esse cuidado ele não se

realiza apenas em uma relação de si consigo mesmo, mas enquanto algo compartilhado,

‘’visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades’’

(2016, p. 25), no sentido que o problema na mente, no corpo ou no espírito de um é um

problema para todos.

A pedido de Abrahão, Mãe Márcia, no Encontro de Saberes, fala um pouco de

como se dá essa ‘’psicologia de terreiro’’. Conta a história, a princípio ficcional, de uma

pessoa qualquer que vai ao terreiro, com vários problemas, ainda não identificados. Ela

perguntaria uma vez como ela está. A paciente não responderia. Ao invés de insistir na

pergunta, Mãe Márcia a convidaria para um chá. Ela aceitaria. Começam a tomar e Mãe

Márcia comentaria: ‘’você sabe que esse chá é de uma planta que tem aqui no

terreiro?’’. Quando ela fala isso, já conquistaria o primeiro olhar da paciente: ‘’você não

gostaria de ir lá ver?’’ Ela responderia que sim. Vão para fora e comentaria que essa

planta é boa para dor de cabeça, mal-estar, depressão, etc. Ao falar isso já conquistaria

um segundo olhar, o que seria suficiente para uma pequena abertura do que a paciente

estaria sentindo.

Essa história que parece abordar uma metodologia do cuidado nos ensina muito

sobre a dimensão de responsabilidade presente no conhecimento. Responsabilidade está

ligada, etimologicamente, a uma habilidade de resposta, o que me parece uma palavra

feliz no contexto. Mãe Márcia foi cuidadosa para com sua paciente por quê, carente de

soberba, soube habilmente responder ao que a situação lhe pediu, de forma que gerou

77 Clastres (2003) fala de algo parecido acerca do xamã nas sociedades indígenas: ‘’respeitado, admirado

e temido’’ (p.160). Ao mesmo tempo em que curam e protegem a comunidade, também podem

representar uma ameaça, alguém que se deve ter medo. É o ‘’senhor da morte como da vida’’ (idem). 78 Nações de Candomblé Jeje, Keto e Angola chamam essas ‘’energias que cuidam’’ de Vodun, Orixá e

Inquice, respectivamente.

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uma abertura na angústia daquele com quem se comunicava. A humildade,

desenvolvida no tópico anterior, parece ser também um aspecto cabal no método de

desvelamento de segredos, pois abarca em si a curiosidade e o cuidado – um ‘’saber

chegar’’ tão comentado entre as periferias de muitas cidades.

Para finalizar esse tópico, reproduzo aqui a noção de cultivo que Johnny

Alvarez, membro do grupo Encontro de Saberes na/da UFF, desenvolve em sua tese de

doutorado sobre o aprendizado da capoeira angola, a qual se aproxima bastante do que

estamos dizendo aqui:

No cultivo a relação plantador e planta não é de submissão, mas de imbricação e complementação, tanto o plantador cultiva a planta quanto esta

também cultiva nele o interesse pelo cultivo. Esse fato permite ao plantador

um “Dedicar-se, aplicar-se a” (FERNANDES, 2000), dispondo de tempo e

principalmente de cuidado que permite o desenvolvimento de uma atenção

que lhe propicia “ver” o processo de dentro, acompanhando-o (2007, p. 99).

Na passagem acima, o autor destaca que no cultivo há complementação,

dedicação de um tempo e cuidado e de uma atenção no processo de aprendizagem, além

de possibilitar uma imbricação, por dentro, no processo. É isso que estamos afirmando

aqui: os mestres dos saberes tradicionais, imbuídos de humildade na relação com o

saber, incluem uma curiosidade e um cuidado na relação com o novo, na relação com o

desconhecido, o que vai de encontro com as formas de relação que a universidade

historicamente prezou, desenvolvida no capítulo dois. A produção do medo na relação

com aquilo que ainda se vai conhecer sofre uma considerável diminuição de influência e

o ‘’cultivo do interesse’’ aparece de uma forma muito interessante. Passemos agora para

a experiência do encontro entre os mestres e as pessoas que estavam lá, que os

receberam: soubemos exercitar esse cuidado? Estávamos preparados para recebe-los ou,

como nos diz Mãe Arlene, metemos os pés pelas mãos e o nariz onde não fomos

chamados? Ou pior, metemos os mestres em lugares que não precisariam estar?

4.4. Curiosidade sem cuidado: a produção do exótico

Mãe Márcia, afim de que pudéssemos entender melhor as motivações que a

levaram a falar sobre sua cultura em outros espaços além do terreiro, afirma: ‘’somos

povos tradicionais desde o início dos tempos. Resolvemos abrir um pouquinho dos

nossos segredos para que as pessoas nos entendam melhor e não falem tanta besteira por

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aí’’ (2017). Ou seja, abrir os segredos se diz mesmo enquanto um ato político: uma ação

de estratégia para evitar um falso conhecimento sobre o Candomblé.

Não é para menos que, na avaliação do Encontro de Saberes entre os mestres,

aprendizes e integrantes do grupo da/na universidade, foi levantada a questão da

‘’propaganda’’ e ‘’divulgação’’, por Pai Roberto, mestre Kotoquinho e mestre

Edimilson. Para Pai Roberto é necessária uma abertura de fato da disciplina e que se

faça um convite para os estudantes dos mais diferentes cursos na universidade. Mestre

Kotoquinho e mestre Edimilson compartilham a ideia de que mais pessoas fariam a

disciplina se soubessem que estava acontecendo.

Pois bem, sobre essa estratégia, vimos, especialmente no capítulo passado, o

quão impressionante é propiciar essa abertura e o quanto foi rica a experiência de

compartilhar um processo de aprendizagem totalmente diferente do que

tradicionalmente conhecemos, por via da ciência ocidental. Agora, neste tópico, vamos

abordar como que nessa experiência pôde coexistir impressões mais críticas acerca do

encontro e de como seria possível retornarmos em nossa caminhada para aprendermos

com nossos erros.

Se abrir os segredos nos povos tradicionais, como vimos nos tópicos anteriores,

é algo processual que parece ser necessária a presença constante da humildade, é

também verdade que nem toda forma de recepção de um conhecimento age por esse

princípio. Diferentes formas de se receber determinado conhecimento coexistem num

mesmo lugar, ainda mais quando esse lugar é uma sala de aula, com várias perspectivas

e diferentes territórios, momentaneamente compartilhado por todos. O que quero trazer

são questões como essas: como um conhecimento desses, fechado por tanto tempo à

sociedade (e mais ainda aos espaços da universidade), chega nos ouvidos de quem o

ignorava? O que será feito com o pouco tempo de convivência com esses mestres? Qual

é o preparo territorial necessário que a universidade, e as pessoas que nela atuam, deve

se ater para receber esses conhecimentos?

4.4.1. Questões práticas na avaliação da disciplina:

Fiz uma pesquisa para saber, mais ou menos, quantas pessoas passaram pelas

aulas dos mestres durante as duas disciplinas. Fiz um cálculo estimado que agora

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compartilho. Nos grupos do Facebook, onde se encontram estudantes, professores e

monitores da disciplina do IACS e da disciplina da pedagogia/psicologia têm 33

membros no primeiro e 45 membros no segundo. Sendo que 8 pessoas são as mesmas

vamos para 25 e 45, respectivamente. A professora Marli Andrade trouxe da cidade de

Pádua mais 10 estudantes. De ouvintes e pessoas que passaram pelo curso temos ao

menos 20 pessoas – o que acredito, na verdade, ter sido bem mais, pois variavam muito

em cada aula. Por último, 40 mestres e aprendizes, das 7 tradições convidadas vieram à

UFF. Isso totalizaria algo em torno de 130 pessoas envolvidas mais diretamente nas

aulas dos mestres.

Esse cálculo arredondado nos ajuda a enxergar a mobilização do projeto em seu

aspecto mais geral, em sua amplitude. É claro que esse número é relativo, pois o

impacto de cada um é referente à relação que tiveram com as aulas e com o que os

mestres passavam. Além disso, há pessoas que, apenas por verem os mestres e

aprendizes passando pelo espaço acadêmico, se surpreendiam de alguma forma com o

que estava acontecendo, mesmo que não pudessem estar presentes nas aulas.

Dessa maneira, a importância da presença das tradições convidadas não se diz

apenas de uma maneira e, logo, o questionamento mais geral do Encontro de Saberes,

de que a universidade se diz enquanto um modelo exclusivamente ocidental e

eurocentrado, é relativo aos diferentes modos que isso chega para os que fizeram, de

algum modo, parte do movimento.

Assim sendo, decidimos que se formos falar das realizações que o projeto teve e

dos desafios que ele precisa enfrentar não pode ser de qualquer lugar, pois corre risco de

acabar vindo de lugar nenhum. Decidimos, então, que precisamos situar o lugar de

questionamento e de auto-crítica pelas pessoas que viveram de forma mais densa o

percurso do projeto. Para pensar algumas questões relativas a essa experiência, as

situamos em dois caminhos (além, claro, de minhas próprias impressões): (1) a

avaliação dos estudantes feita no final do curso; (2) e a avaliação dos mestres realizada

no dia seis de outubro de 2017. O conjunto de relatos que compõem a avaliação tem o

intuito de perceber os deslizes e os meios pelos quais a experiência pode se

potencializar.

Tanto alguns estudantes quanto alguns mestres parecem compartilhar uma

vontade de explorar outros territórios no processo de aprendizagem. Isso aparece de

várias formas. Entre os estudantes as questões levantadas foram essas: (1) ‘’senti falta

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de sair da sala de aula’’, o que poderia ter acontecido ao longo do curso – realmente, só

usamos uma vez o espaço de fora da sala; (2) ‘’poderíamos fazer um trabalho de campo

no segundo módulo’’, para conhecer o território do saber. Entre os mestres: (1) ‘’espaço

maior e melhor’’, referência principalmente para a próxima edição; (2) ‘’usar o espaço

de fora’’, repito essa frase, pois parece ser um desejo compartilhado; (3) ‘’aula in loco’’,

algo também comentado entre os estudantes; (4) ‘’trazer os jovens da aldeia/terreiro

para a universidade’’, para irem aprendendo a linguagem do terreiro e a linguagem da

vida (KOTOQUINHO, 2017).

Tais críticas e sugestões práticas para a próxima versão parecem interessantes

para a continuidade do projeto, pois os pontos fazem referência ora do modo que

poderia ser feita a troca, ora da soma, àquilo que também poderia existir. Há uma

preocupação de que o Encontro de Saberes possa crescer, mas também uma

preocupação em como ele vai crescer, no sentido metodológico para ser apresentado,

como disse Pai Roberto, ‘’a dança, a fala, o canto – a tradição’’ (2017).

4.4.2. ‘’Um tempo específico para cada coisa’’:

A frase acima é de Sandra Benites (2017). Na avaliação dos mestres, depois de

mostrarem interesse em divulgar ainda mais o Encontro de Saberes, Sandra relata um

pouco de sua experiência fora da aldeia para que sua proposta se faça mais clara. Diz

que o fato de ter circulado por outros mundos a deixou mais sensível para a relação com

a diferença. Rapidamente relaciona isso com uma necessidade de ‘’deixar o seu

conforto’’. E é nesse momento que a humildade tem que se fazer presente e que

entender qualquer coisa exige um tempo, uma vivência.

Veja que o que Sandra nos traz dialoga imensamente com o que estamos

desenvolvendo. Para trazer tais questões para o Encontro de Saberes, ela é enfática ao

dizer a frase que dá título ao tópico, pois é importante ‘’viver para entender melhor’’ e,

assim, que os estudantes possam viver uma tradição de cada vez. Um tempo maior e

mais dedicado a uma única tradição daria, segundo Sandra, uma noção maior das

diferenças sensíveis existentes em cada uma – isso não impossibilita obviamente que os

mestres de uma tradição não possam estar presentes na aula de outro ou de

compartilharem um momento pedagógico.

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Ao longo da reunião fica perceptível, para mim, que as duas sugestões não são

dicotômicas. A divulgação precisa se aliar com o tempo para cada coisa. Já no final, eu

fiz uma fala que parece ter tido sentido para os mestres, professores e estudantes

presentes. Relatei um pouco sobre a o processo de escrita dessa monografia e o quanto a

curiosidade parecia entrar presente por via da divulgação (despertar interesse nas

pessoas) e o cuidado vinha com a dedicação desse tempo (cultivar esse interesse).

Entre os estudantes, houveram sintonias com o que Sandra disse: ‘’seria

importante um tempo maior com os mestres’’. Sentiu-se que era algo muito passageiro

haver apenas três aulas com cada tradição, o que instigou uma vontade de maior

imersão. Houve um desejo de continuidade com cada um dos mestres. Não tínhamos

muito tempo para refletir sobre o que tínhamos aprendido, pois na outra sexta já

começava outra tradição com mais inúmeras questões. Em suma, foi pouco tempo para

muito conhecimento.

O mesmo se passou com relação a nós, estudantes e professores da universidade:

‘’seria muito bom um tempo maior entre nós, também’’. Não foi inteiramente comum

essa ideia, já que foi alertado que isso poderia fazer-nos cair em um

‘’interpretativismo’’: traduzir aquilo que os mestres falaram para uma linguagem

acadêmica. Emílio Nolasco, no entanto, chamou atenção para o ‘’como’’ e o ‘’o que’’

faríamos em um encontro entre nós. Ele disse que até poderia se transformar em um

‘’interpretativismo’’, mas se nos propuséssemos a fazer desse espaço um lugar a mais

de troca e de uma significativa percepção nossa na relação com os mestres, na recepção

da presença física e epistemológica deles, talvez fosse de fato interessante esse espaço.

Com relação ao ‘’tempo específico para cada coisa’’, dialogamos diretamente

com as questões críticas a um território que compartilhamos: a abertura desse espaço, de

forma que as diferenças entre cada tradição possam se cruzar e também ter seu espaço

próprio de expressão, com um tempo maior, seja na universidade, seja in loco. Assim,

com relação a essas questões mais práticas, dos modos de funcionamento da disciplina,

ficaram várias questões em aberto para criar um campo de reflexão sobre como será

feita a continuidade do projeto. Da mesma forma, as impressões críticas sobre essa

experiência, que também dialogam com essas questões mais práticas, foram ouvidas e

nos leva a várias problemáticas importantes a serem trabalhadas.

4.4.3. A recepção e o exótico:

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Quando foi decidido, no final de 2016, quais tradições iriam estar presentes no

Encontro de Saberes de 2017, eu, como membro do grupo, me encarreguei, entre outras

coisas, de fazer a divulgação online e também presencial da disciplina. Foi aí que houve

um primeiro incômodo com relação a essa questão79. Me sentia estranho anunciando

todas essas tradições – a princípio eram oito, depois o mestre Tantinho da Mangueira

não pôde, totalizando sete. Toda vez que falava para alguém sobre quem estaria na

disciplina, parecia uma exaltação da diferença de forma pouco aprofundada, fazendo

com que as complexidades de cada conhecimento fossem esvaziadas. Isso ganhou

espaço nas críticas de alguns estudantes, principalmente negros, do curso.

Importante dizer que os relatos dos estudantes não se centram em uma tentativa

de culpabilização de estudantes e professores, mas o quão significativo é fazer esse

retorno para a continuidade do projeto, aprendendo com os erros. João Vitor Santos,

estudante negro, integrante do grupo e responsável pela gravação audiovisual dos

encontros, concedeu um relato, na avaliação da disciplina, que nos faz refletir e

fazermos uma auto-crítica na relação com os mestres. Sua primeira pergunta se

relaciona diretamente com a proposta desse tópico: ‘’como que nosso corpo [estudantes

e professores] recebem essas pessoas [mestres e aprendizes]’’? A frase parece nos

alertar para o nosso corpo no território acadêmico e a recepção de outros corpos, que

trazem consigo outros territórios. Como a recepção, tanto presencial quanto daquilo que

os mestres nos falam, pode ser uma ponte para realização daquilo que dá nome ao

projeto, um encontro de saberes?

Mais à frente, João Vitor fala de um desconforto enorme que sentiu percebendo-

se quase em um zoológico, pautado numa relação de distância com a diferença, o

exótico. Como fazia a filmagem dos encontros, conta que a sua posição de contribuição

para esse distanciamento fazia esse desconforto aumentar ainda mais. Afirma ainda:

‘’não quero ser quebra-mola de ninguém. Quero que todo mundo desça a ladeira, mas é

importante voltar e olhar o caminho’’. A crítica do estudante é uma tentativa de

aprender com os erros, não de se imobilizar no percurso. Pensando que o conhecimento

79 Na verdade, tais questões já tinham se iniciado para mim no início de 2016, quando entrei no grupo, a

partir das conversas com Kaiah Akwira, filho de pai de quilombola com mãe Wai Wai de Oriximiná-Pará.

Experimentava na época ser professor convidado pelo departamento de psicologia. Tais conversas me

despertaram um senso crítico da relação com o saber dos povos tradicionais e o devido cuidado que é

preciso nessa relação.

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dos mestres se apresenta enquanto coletividade, acho interessante frisar que ‘’voltar e

olhar o caminho’’ se apresenta na tentativa de perceber os momentos em que andamos

em direções que impossibilitaram essa coletividade emergir.

Veja, não devemos perceber essas reflexões a partir de uma ausência dos

estudantes ou dos professores que praticaram esse olhar distanciado que esvazia o

sentido da relação, do encontro, mas sim enquanto um ‘’como’’ isso será feito. João

Vitor (2017) parece mobilizar-nos a nos perceber nesse encontro: ‘’a gente tem que

ocupar esses espaços, mas como vamos ocupar’’? Essa é a questão. Na relação, as

partes se mostram para compor algo conjuntamente. O desafio parece ser aquele mesmo

em que Paulo Freire postula em ‘’Pedagogia da autonomia’’ (1996), quando diz que é

preciso haver uma atenção no processo de aprendizagem para que não haja

‘’sobreposições de curiosidades’’. Ou seja, um cuidado para que a curiosidade daquele

que recebe um conhecimento não seja maior que suas pernas (‘’e acabar metendo o

nariz onde não é chamado’’), podendo este exercer a prática da escuta, tendo ciência de

que a prioridade seja a soma do conjunto de questões, não a resposta que gostaria de

saciar.

Parece interessante perceber que, como vimos no capítulo anterior, o Encontro

de Saberes é antes um encontro de territórios, pois eles coexistem num mesmo espaço.

Além disso, podemos acrescentar agora que há também uma coexistência de

temporalidades. Cada um carrega em si, em sua devida vivência pelos territórios que

vivencia, tempos de fala, de escuta e de relação que se diferenciam. Parece que, nas

questões de João Vitor, habitam desafios para que esses tempos possam se tornar

confluentes e que as vezes seja preciso deslocar o nosso tempo para o tempo dos

mestres, valorizado no modo de recepção daquilo que estão trazendo, por mais que isso

não seja instantâneo e exija um trabalho. Isso nos provoca a pensar, também, que seja

preciso um preparo do corpo discente e docente para essa novidade que é os mestres em

território acadêmico.

Além disso, houve um questionamento que se soma à necessidade desse

cuidado. João Vitor provoca à reflexão quando diz que ‘’as vezes estamos sendo abertos

para o afeto, mas fechamos os olhos para certas coisas’’ (2017). Rosa Caitanya, também

estudante negra, ex-membra do grupo, é ainda mais enfática ao dizer de ‘’como pelo

carinho e pelo afeto, se disfarça uma reprodução de práticas históricas de opressão’’

(2017). Isso nos leva a voltar no início do capítulo quando dissemos, por via de

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Foucault, que a produção do conhecimento ocidental para legitimar uma verdade, cria

uma ideia de amorosidade, harmonia e continuidade. Os discentes parecem questionar

esse tipo de produção ao destacarem o aspecto político, de guerra e de descontinuidades

que são presentes na produção do conhecimento. Não é uma tentativa de inviabilizar a

existência do afeto, da alegria ou do prazer na aprendizagem, mas ter cada vez mais

consciência da herança violenta herdada de uma sociedade historicamente desigual.

Isso parece nos mover frente aos erros que cometemos pelos caminhos. No

último dia do módulo Guarani, por exemplo, fizemos as duas primeiras horas do

encontro na sala de aula e, depois, a proposta era irmos para o auditório Macunaíma

para que se formasse uma mesa com os mestres Seu Augustinho e Dona Maciana,

juntamente com o aprendiz Tupã, e o professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio

de Janeiro) José Ribamar Bessa.

Para entender melhor, voltamos ao trabalho de campo quando, antes de começar

a disciplina, no início de 2017, fomos (Emílio Nolasco, Sandra Benites e eu) em

algumas aldeias Guarani na região de Paraty para conversar com os mestres sobre o

projeto. Ao chegarmos lá, encontramos com toda equipe do MAR (Museu de Arte do

Rio), a qual Bessa fazia parte. Eles estavam lá para pensar, conjuntamente com os

indígenas da região, Guaranis e Pataxós, uma interessante exposição que tratava, através

de recursos de filmagem, artesanatos, fotos, entre outros, a vida dos indígenas no Rio de

Janeiro. A partir daí, houve uma primeira conversa entre os dois projetos e fizemos um

convite a toda equipe para participar.

Naquele momento não existia a ideia de trazê-lo para uma mesa e, ao longo do

curso, essa proposta foi muito pouco conversada. Como tínhamos muito trabalho ao

longo da disciplina, não pudemos sentar e pensar como seria realizado este momento. A

ideia surgiu e decidiu-se realizar. Pois bem, muitos estudantes relataram sentir um

incômodo geral, perguntando-se qual era o propósito daquilo. Acredito que o propósito

seria de que isso daria uma visibilidade à questão Guarani e uma possível valorização de

seus conhecimentos, estando lado a lado com o professor na mesa do auditório. A

questão, então, se coloca, inclusive para mim, de maneira oposta: porque não trazer o

professor para a terra (ou para o humus, como vimos) ao invés de alavancar os dois em

uma mesa de auditório? Eram visíveis o cansaço e uma generalizada desatenção de

muitos que estavam ali – podemos imaginar o quanto os mestres se sentiam, já que são

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bem mais velhos. O que era para terminar seis da noite, acabou apenas as sete, situação

que foi vista como desatenção para a hora do jantar dos mestres.

A palavra ‘’exótico’’ se diz enquanto ex e óptico. É o olhar de fora, o olhar do

estrangeiro que, desconhecendo o contexto de produção de certo conhecimento, acaba

por fazer uma tradução em termos que esvaziam o sentido daquilo que se quer conhecer,

ferindo uma subjetividade do grupo. Frade (2014, p. 2524) fala que isso se mescla

‘’com o próprio desejo legítimo de conhecer o outro, de estabelecer vínculos sensíveis e

conhecer novas formas de vida’’.

Podemos ainda lembrar que o exotismo se apresenta enquanto produção de uma

realidade. Consciente ou não, é preciso que estejamos atentos à herança que o Ocidente

produziu da América e dos povos que aqui vivem. Smiljanic nos ajuda a elaborar essas

questões quando constrói uma

tentativa de compreender o peso do imaginário na elaboração de “realidades”

sociais e históricas’’, demonstrando que o exotismo é um elemento

constitutivo do Ocidente e, como tal, não pode se ausentar de suas

manifestações mais poderosas, como é a ciência. (2012)

A produção da alteridade no Brasil passa, segundo a autora, pela produção

científica. O que se disse sobre os indígenas (no texto, sobre os Yanomami) fala mais

sobre os próprios autores e do contexto de produção a qual estavam inseridos do que

daqueles sobre o qual estavam escrevendo. Dessa forma, o indígena, de um lado

descrito sob características animalescas e, de outro, sob aspectos sobre-humanos, nunca

foi visto sob sua própria óptica. E o que estamos dizendo aqui é que a produção de

conhecimento científico corroborou e ainda corrobora para aquilo que se entende por

indígena. Dessa forma, é importante estarmos atento à essas construções, por vezes,

fáceis de serem reproduzidas, justamente por seus discursos estarem estrategicamente

maquiados.

Sobre isso, tenho duas conversas que nos ajudam a entender alguns dos cuidados

aos quais os estudantes apontam. Primeiro, José Jorge de Carvalho relatou a nós, alguns

colegas do grupo e a mim, depois de uma palestra que fez na UFF, que o projeto foi

bem mais fácil de se institucionalizar na UNB por quê aqueles do departamento de

antropologia que eram contra as cotas, não viam no Encontro de Saberes uma ameaça.

Viam apenas como algo exótico. Segundo, em uma conversa, a professora Joana Miller

pôde observar, mesmo sem participar do projeto, que parece ter tido um deslocamento

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da questão visivelmente política que é o programa de cotas para uma proposta

epistemológica.

Não acho que o Encontro de Saberes tenha abandonado esse aspecto, mas por

sua centralidade ser a questão epistemológica, talvez seja preciso marcar a importância

do aspecto político do projeto para que assim seja tomado enquanto uma instância

norteadora. Não me parece ter sido coincidência que Rosa Caitanya tenha dito que ‘’o

Encontro de Saberes tem que estar mais atento ao aspecto político que há nele’’. Só

dessa forma que podemos produzir um cuidado para a sutil diferença entre a valorização

e a produção do exótico.

Como vimos neste capítulo, saber é poder. Mas, para não cairmos em um saber

que quer saber tudo a todo momento e que opere por meio da objetivação na produção

do conhecimento (CASTRO, 2002 e 2011), precisamos operar o cuidado no uso do

saber. E, assim, que esse poder possa ser usado enquanto resistência às artimanhas de

todas formas de opressão e constrangimentos que o poder hegemônico possa exercer.

Acrescento ainda à fala de Rosa que o Encontro de Saberes tem que estar atento

ao caráter territorial existente nele. Saber, como estamos insistentemente tentando dizer,

é contextual, pois é em determinado contexto que tal conhecimento faz sentido. Falar de

território é, então, falar de terra, falar da relação que tais grupos têm com ela. Tendo em

mente essas questões talvez possamos encara-las de outra maneira e, assim, termos um

preparo maior para a relação com essas tradições. Se pudermos, com base no princípio

da humildade, nos relacionar de maneira a perceber a importância da processualidade do

aprendizado no respeito ao segredo dessas tradições, podemos localizar melhor as

nossas curiosidades, não havendo, assim, sobreposições.

Proponho, enfim, esse quadro para entendermos o que esse capítulo quer pensar

através do quadro a seguir:

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4.6. A luta continua: uma universidade descolonial:

Mesmo com todas as questões colocadas nos tópicos anteriores, podemos

afirmar uma vontade compartilhada por todos os mestres, aprendizes, professores,

monitores, estudantes e ouvintes que passaram pelas aulas de que deva haver uma

continuidade do projeto. A inexistência do mesmo não foi indesejada em nenhum

momento. Ao contrário, todas as críticas que apareceram se voltam para que o projeto, e

cada um de nós, se repense, se perceba nesse encontro para, assim, melhorar a cada

nova versão. O Encontro de Saberes parece ter sido capaz de despertar uma questão já

antiga: a universidade precisa ser arejada com saberes cuja a presença foi historicamente

negada.

No festival ‘’Interculturalidades’’80, em 2017, a liderança jongueira, Toninho do

Canecão, afirma com todas as palavras quando se refere ao projeto: ‘’isso não pode

parar. Porquê para a senzala a gente não volta’’. Em uma parceria que já dura em torno

de 20 anos com o projeto ‘’Pontão do jongo’’, ele chama atenção ainda para um

encorajamento que se deu a partir da aproximação com professores e estudantes da

UFF: ‘’a única coisa que faltava para o negro é oportunidade’’. E tal oportunidade

parece ser também algo que todos nós devemos cultivar na presença dessas pessoas no

espaço acadêmico.

80 É um festival nacional realizado pelo Centro de Artes – UFF e tem como foco a cultura popular.

Mesmo evento cujo o qual tivemos a avaliação, pela parte da tarde, da disciplina pelos mestres. Ver site:

http://www.interculturalidades.uff.br/

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No mesmo intuito de afirmar a importância desse momento, Tupã, aprendiz

Guarani, traz um adendo: ‘’não estamos lutando para estar dentro da universidade.

Estamos lutando para ser vistos como qualquer ser humano’’. Isso me leva a refletir que

a luta por uma verdadeira igualdade (RANCIÉRE, 2015), precisa ser feita em todo e

qualquer lugar. A universidade, sendo este lugar de legitimação de conhecimento, é

apenas mais um espaço onde isso deve, antes tarde do que nunca, emergir.

É assim que o Encontro de Saberes pretende se aproximar dos movimentos de

‘’fuga da grande narrativa universal’’ (LANDER, 2005, p. 26). É preciso manter

insistentemente o objetivo de romper com essa forma de vida hegemônica que

homogeneíza a diferença e os modos de expressão no mundo. O ‘’universalismo

eurocêntrico excludente’’ (2005, p. 34) e seu modelo naturalizado de referência superior

e universal não são, nem nunca foram, admissíveis a essa heterogeneidade que é a

produção de conhecimento.

Portanto:

Toda democratização possível da sociedade na América Latina

deve ocorrer na maioria destes países, ao mesmo tempo e no

mesmo movimento histórico como uma descolonização e como

uma redistribuição de poder. [...] isso quer dizer,

definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza

somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas

em todos e em cada um dos âmbitos (QUIJANO, 2005, p. 272).

Os autores descoloniais nos sugerem um movimento de desnaturalização,

desuniversalização e desconstrução para ‘’deixar de ser o que nunca fomos’’

(QUIJANO, 2005, p. 274). Pela proposição do enfretamento do poder hegemônico, aqui

neste trabalho expresso pela ação do medo, abrimos caminho para pensarmos, nunca um

só, mas futuros possíveis (SEGRERA, 2005). Percorrendo caminhos desconhecidos,

assumimos que não sabemos muito bem para onde vamos e o que virá pelo caminho,

mas assim mesmo marcamos um lugar de recepção daquilo que vem pela vigorosa

presença da curiosidade e do cuidado.

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Considerações finais

Depois desse caminho percorrido, percebemos uma gama de questões que foram

levantadas e talvez seja aí onde more, ao mesmo tempo, a inconsistência e a riqueza

desse trabalho. Não foi nossa intenção que tivéssemos uma grande teoria ou uma linha

teórica de apenas um campo do saber. Se não ficou claro até o momento, reiteramos que

tivemos o propósito de pensar a experiência do Encontro de Saberes e, assim, dos

mestres dos saberes tradicionais dentro da universidade, enquanto um movimento

descolonial. Não há resposta se ele se consolida enquanto um, mas, indiscutivelmente,

abre caminho para pensarmos tais questões e para trabalharmos para futuros possíveis

(SEGRERA, 2005).

Como vimos, o medo, para além de uma manifestação meramente biológica, é

um ‘’componente básico da experiência humana’’ (SANTOS, 2003, p. 48) e, como tal,

é produzido e reproduzido para determinados interesses, em sua íntima relação com as

relações de poder. Pensar o medo enquanto algo organizador e manipulador de relações,

e também que é produzido e reproduzido, pôde abrir nossas reflexões para inúmeras

conexões teóricas. Percebemos também que para falar do Encontro de Saberes (e antes,

rapidamente, das cotas), tivemos que construir uma reflexão sobre o racismo e o quanto

o medo age para a autopreservação egóica da branquitude (BENTO, 2002). Por fim,

identificamos que Carvalho (2014) fala que o projeto pretende agir nas instâncias

institucional (chamamos de territorial), política, epistemológica e pedagógica. Isso nos

permitiu dizer que, no modelo eurocentrado de produção de conhecimento da

universidade, o medo, na lógica superior-inferior (RANCIÈRE, 2015) ou na lógica

ganhador-perdedor (BOURDIUE, 2014), está presente.

No diálogo que envolve a curiosidade enquanto método para abertura do

desconhecido, vimos o quão importante é a sua presença na relação de aprendizagem

com os mestres dos saberes tradicionais. A transformação do território acadêmico, no

encontro com os territórios das comunidades, propiciou outros modos possíveis de

relação onde o medo, se não estava ausente, sofreu ao menos um grande racionamento.

O ser curioso, sendo um ser atento, pode se relacionar de maneira que o corpo, a

cognição e o espírito estejam presentes. A questão do capítulo seguinte surge quando

essa presença é tão forte que acaba passando por cima de outras presenças: sobreposição

de curiosidades (FREIRE, 2002).

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Para finalizar nosso caminho, trouxemos a noção de cuidado. Para abordá-la,

tivemos que passar por reflexões que nos devolvem a importância política da terra, do

território (HAESBAERT, 2004). Se pensar na relação é repensar a terra em que pisamos

e a terra de onde os mestres e aprendizes estão vindo: um encontro de territórios antes

de um encontro de saberes. Foi aí que desenvolvemos a noção de humildade (humus,

terra) e da processualidade no processo da aprendizagem, dizendo que essa abertura

para o desconhecido, além da curiosidade, precisa de um cuidado consigo, com os

outros e com o mundo. No contexto do Encontro de Saberes, nos deparamos, a partir

dos relatos de alguns estudantes negros do curso, com a produção do exótico (ex –

óptico, olhar de fora) e de como precisamos nos repensar para caminharmos mais

conscientes, rumo a uma experiência cada vez mais descolonizalizada.

Podemos, de forma resumida, então dizer que o primeiro capítulo nos

contextualiza acerca do projeto; o segundo trabalha a ação do poder por via da produção

do medo no espaço acadêmico; o terceiro indica as transformações territoriais, políticas,

epistemológicas e pedagógicas agindo por meio de um método de abertura para o

desconhecido, a curiosidade; e o quarto nos permite desacelerar para não sobrepormos

curiosidades (FREIRE, 2002), mas sim que esta se alie à noção de cuidado.

Podemos dizer, por fim, que as noções de curiosidade e cuidado, que

procuramos desenvolver, partem para um questionamento da estrutura, cujo o medo é

central ator nas relações de poder. O Encontro de Saberes pretende movimentar as

quatro instâncias (territorial, político, epistemológico e pedagógico) de maneira

diferenciada. Sugerimos assim, ao longo de nossa escrita, trazer a curiosidade e o

cuidado para que a experiência possa se consolidar enquanto descolonial:

desnaturalizada e desuniversalizada (LANDER, 2005):

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