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Angela Dutra de Menezes

O Livro do Apocalipse Segundo uma Testemunha

2001

Para minha mãe, sua força e seu amor silencioso.

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S u m á r i o

0 toque da primeira trombetaOs anjos e a voz do céu Visão inicial A batalha final e outras novas As pragas A mulher, a besta e a prostituta As almas dos mártires Revelação Os sete cálices vazados Epílogo

(...) e eis que sobreveio um grande terremoto e se tornou o sol negro, como um saco de silício; e a Lua se tornou toda como sangue; e as estrelas caíram do céu sobre a Terra, como quando a figueira sendo agitada dum grande vento deixa cair seus figos verdes, e o céu se recolheu como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas se moveram de seus lugares (...) porque chegou o grande dia da ira: e quem poderá subsistir?(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 6, versículos 12-17)

(...) e eles profetarão por mil duzentos e sessenta dias.

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(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 11, versículo 3)

Além do gato Felipe Augusto que passou dias sem comer, tremendo embaixo do sofá e impossibilitado, por motivos óbvios, de anunciar seus trágicos pressentimentos, somente minha tia materna, Maria Alzira Alencar Albuquerque do Canto e Silva, intuiu o Juízo Final.Os tremeliques do gato não chegaram a me espantar. Pari passu às sete vidas — deslavada mentira, Felipe Augusto embarcou na primeira cacetada —, os felinos cultivavam intuição infalível. Nisto sim, acreditava. Apenas rara intuição explicaria por que, quando o mundo era mundo, os gatos escolhiam donos carentes, com um pé na infelicidade, garantia de carinhos que eles jamais se sentiram na obrigação de retribuir: um egoísmo doente marcava a alma dos gatos. Enfim, se sabiam farejar os bons lucros da existência, por que não ceder-lhes crédito na premonição da morte? Tentando acalmar meu gato, papariquei-o à exaustão. Acabei me irritando, amar egoístas cansa. Também eu, àquela altura, andava ne-cessitando de conforto e proteção.É triste, mas verdadeiro. Quando, finalmente, Felipe Augusto desencarnou, esmagado por uma das milhares de pedras incandescentes disparadas sem rumo ou prumo pela ira do Senhor, achei ótimo. Apesar da aflição, agradeci ao Divino por me livrar de um trambolho. No circo pegando fogo, Felipe Augusto, sua fome irracional, sua racionalíssima chatice, tornara-se um entrave em minha incoerente luta de tentar sobreviver cristãmente. Concentrar-me em temas pios com um bichano medroso se esfregando em minhas pernas pareceu-me impossível:"Ou eu vivo, ou sou cristã. Resumindo: ou rezo, ou mato o gato. As duas atividades, treinadas no simultâneo, carregam antagonismos. Provocam risco de vida, além de crises de angústia", argumentei com um dos 24 sábios coroados de ouro, murchamente silenciosos nos tronos de

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esplendor, senadores do céu, guarda imperial de Deus Todo-Poderoso.(...) Estavam também ao derredor do trono outros

vinte e quatro tronos: e sobre estes tronos se viam assentados vinte e quatro anciãos, vestidos de roupas brancas, e nas suas cabeças coroas de

ouro (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 4, versículo 4)

Nenhum me contestou. Desanimada, procurei inutilmente conversar com minha tia. Somente um anjo simpático nominado Baltazar — que eu ainda não sabia, mas não me abandonaria durante o apocalipse, contou-me tantas histó-rias que na verdade tornou-se co-autor da minha obra — reparou minha angustura e aconselhou-me silêncio. Esvoaçante faceiro entre os primeiros destroços, Baltazar me informou que nada mudaria o roteiro. As previsões se cumpririam:"Por favor, fecha a matraca. Senhoras autoridades para lá de excelentíssimas esforçam-se sem sucesso em desatar este nó. Não será você, reles carioca desempregada, quem conseguirá alguma coisa. Trata de se aquietar, detesto gente xereta."Obedeci. A maior parte do tempo mastreada na man-gueira, quintal da casa serrana de tia Maria Alzira, dediquei meus últimos dias a apreciar o apocalipse. Não incluísse meu nome na relação de vítimas, aplaudiria de pé. Espetáculo belíssimo. Animais de quatro asas, oito chifres e dez olhos. Dragões voadores, bestas coloridas, anjos atarantados sem nenhuma educação: só conversavam aos berros. O cenário incluiu inclusive um estupendo mar de vidro. Lindo, façamos justiça. O mar-maravilha, ponto alto do programa, crescia em ondas perfeitas, esculpidas em cristal. Deslizavam bailarinas, volteavam delicadas sem jamais estilhaçar. Também

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assisti de cátedra excesso de epidemias, de vulcões, de terremotos. Aliás, vulcões e terremotos repetiram-se diariamente. No final, nem assustavam. Shows de pirotecnia pareciam os preferidos da administração celeste, eclodiam a cada instante.Enfim, uma agitação. Com exceção de tia Maria Alzira que, ao constatar a Hora, avisou que a festança duraria exatos 1.260 dias e tocou a vida em frente, o resto do mundo desabou. Literalmente, contarei em detalhes. Por enquanto, basta-nos saber que anunciada a função, muitos habitantes do Primeiro Mundo protestaram irritadíssimos ao se verem despachados direto ao purgatório. Destino do qual escapou a periferia — em purgatório terreno desde seus primórdios —, 144 mil viventes da tribo de Israel, 144 mil de variadas tribos menores e uma inumerável multidão de outros marcados. Entre eles, claro, minha tia. O resto da família dividiu-se. Metade baixou ao inferno; a outra metade salvou-se.Eu, estranhamente tratada desde o início da trama, acabei no purgatório incumbida da missão de relatar o vivido, criar a nova versão do Livro do apocalipse revisto e revisitado. Exato a função de agora, plugada no purgatório, narrando insubsistente enquanto me purifico nas chamas da esperança. Adianto a meus leitores que o purgatório é espantoso. Queima, machuca, incomoda, mas cultiva a esperança da breve ressurreição. No final é igual à vida na qual nos aporrinháva- mos distraídos pelos sonhos.Purgatório é a mesma droga, talvez um pouco melhor. Ao menos guarda a certeza de final consolador. Um dia, no Paraíso, encontrarei minha tia ascendida em corpo e alma. Levaram-na anjos e santos sob uma chuva florida: rosas, gerânios, antúrios, girassóis despetalados. Quase desapa-recendo nas nuvens, coroada em santidade, tia Maria Alzira assinou sua vida com inesperado gesto. Ou não seria ela. Sorrindo um riso bondoso, rosto de beatitude, ela piscou um olho e lascou uma banana. Intrigante, chorei ao

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notar o gesto. De espanto, de saudade e talvez de humilhação. Conto o tempo que me falta para rever minha tia e pedir explicações.Afinal senso de humor não costuma encostar em santos e divindades.A salvação de tia Maria Alzira não surpreendeu ninguém — nem a Deus. Minha tia surpreendera a vida inteira, seguindo um destino doido no qual tudo escapou à normalidade. Já nascera aprontando, no sertão do Ceará. Espoucou para a vida seis meses após a morte do pai, nos minutos de a parteira, aborrecida com a lentidão das contrações de minha avó, sumir para cachimbar e refrescar a cabeça pois — palavras dela — mulher branca empesteava, não prestava para nada:"Nem parir as desgraçadas conseguem."A velha praguejou e tia Maria Alzira pulou do ventre materno, a boca plena de dentes, incluindo os molares. Armou-se uma romaria, todo o povo do em volta assuntou a assombração. O vício de extravagâncias perseguiu-a até o instante de sua ascensão ao céu.Na aurora dos seis anos, o navio que a traria para o Rio de Janeiro, de mudança com a família, naufragou em Pernambuco — litoral, naturalmente. Apesar dos prejuízos, a parentada salvou-se graças à menina Alzira, desde a manhã do sinistro avisando a acontecência. Fez e implorou. Acabou convencendo a avó a se enfarpelar, e todos os Alencar Albuquerque do Canto, em salva-vidas. Motivo de chacota para os passageiros, acidentados mais tarde. Muitos, nos estertores, imploravam perdão à tia Maria Alzira. Excetuando o comandante, convencido de que a pirralha aprontara alguma boa e desmaterializara o navio. Barafundado nas ondas, o homem olhou minha tia e cuspiu um desaforo: "Bruxa nojenta."Nos finalmentes, o de cujus manteve a pose. Defuntou-se heroicamente, repetindo a elegância dos almirantes batavos. Pena, só tia Maria Alzira testemunhou seu gesto,

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a História ignorou-o. O certo é que mutatis mutandis a costa nordestina já escutara aquela frase:"O mar é a única sepultura digna para um capitão brasileiro."E afundou. Não sem antes, com a mão fora da água, sinalizar um gesto pornográfico que tia Maria Alzira só entendeu anos depois, na conturbada época de seu romance com um padre. Verdade seja dita, ela e o santo homem não mediram esforços tentando cumprir à risca a vontade do afogado.No Rio, instalada na Tijuca, despencou com o elevador. Completara oito anos e pela primeira vez apareceu nos jornais. Os bombeiros resgataram-na entre o quarto e o quinto andar, a cabine balançando em inquieto cai-não-cai. Minha tia, desfalecida, pipocou da emergência no colo de um soldado. Constatado o salvamento de sua filha caçula, minha avó ajoelhou e orou na portaria. Em voz alta e cho-rando agradeceu a São Expedito, ao Corpo de Bombeiros e à firma de manutenção dos elevadores. Um vespertino carioca explorou o episódio sob a manchete Milagre. Logo abaixo, destacava-se declaração do diretor da firma de elevadores reiterando os agradecimentos a São Expedito, mas garantindo que judeus, budistas, ateus, umbandistas e protestantes podiam sentir-se igualmente protegidos já que sua companhia esmerava-se em revisar os ascensores, sem distinção de raça ou credo. Na carona do episódio, o comandante dos bombeiros solicitou novo material para a corporação, obrigada a trabalhar com artigos obsoletos:"A criança não morreu graças à ação do sargento. Herói, desdenhou a própria vida."A Assembléia Legislativa condecorou o herói e prometeu estudar o pedido de verbas, aprovado duas décadas mais tarde quando o elevador da Assembléia enguiçou, em tremeliques, justo quando transportava o presidente da casa. Tia Maria Alzira passou o resto da vida subindo e descendo escadas, exercício que, em sua opinião, ajudou a

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modelar as pernas perfeitas, de coxas roliças, sem celulite ou deslizes.Outras e incríveis histórias enfeitavam-lhe o currículo. Nada em tia Maria Alzira realizava normal. Adolescente, testemunhou um assassinato e emudeceu de pânico. Transcorreu meses balbuciando sons guturais, vasculhada e apalpada por gênios da medicina. A família desdobrou-se em cuidados e asnices na intenção de sará-la. A irmã de minha avó sugeriu um gargarejo, antigo segredo indígena transmitido, há séculos, por sábio pajé tapuia. A receita, além de ervas, levava titica noturna, se possível de pássaro. Uma trabalheira. Minha avó diariamente saía após o jantar atrás do ingrediente. Nessa época descobrimos que aves não cagam à noite. Driblou-se o grave problema gastroornitológico com a compra de canários, alimentados somente quando o sol se escondia. Tiro e queda, os bichos evacuavam. Nunca soubemos ao certo se a poção funcionou, ou se tia Maria Alzira farejou o atrevimento de lhe servirem melado de cocô de passarinho. O fato é que um belo dia acordou normal, resolvida a apaixonar-se.Começou a namorar com o pé esquerdo. O primeiro candidato entalou no sanduíche e faleceu aos pés dela. A quase-futura-viúva não o perdoou. Afirmou, constrangida, que o pretendente escolhera desenlace proletário, sem relevância ou nobreza:"Esfaimado e sem requintes. Avançou no sanduíche com esganação plebéia. Não daria bom marido, era politizado demais."No esforço de esquecer o evento doloroso, internou-se no convento. Acabou nos braços do padre que, aliás, a engravidou. A confusão desse filho espúrio, registrado como meu irmão, filho legítimo de minha mãe e meu pai, criado por minha avó, terminou anos depois com o rapaz ganhando o mundo para ser monge no Tibete.Após o parto, e resolvidos os entraves morais e bu-rocráticos, tia Maria Alzira voltou à casa materna, iniciando sua temporada funérea — algum mistério insondável enca-

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minhava os defuntos direto aos braços dela. Estreou no en-gasgado, um fmado de vanguarda. Algum tempo depois, sucederam-se minha avó, meu pai, dois vizinhos e o porteiro do edifício que, consertando a antena coletiva, despencou do terraço e se esborrachou no chão. No afa de socorrê-lo, minha tia se tornou a fiel depositária do último desejo: "Me enterre em São João de Nepomuceno." Pensou de o porteiro sobreviver pois pronunciara Nepomuceno sem tropeçar numa sílaba:"Vê lá se alguém agônico realiza tal proeza?" Apesar dos enes e emes articulados com clareza, o cidadão despachou-se. Tia Maria Alzira gastou as economias e atendeu ao pedido. Voltou de Minas exausta e, mais do que nunca, decidida a largar a solteirice. Antes de tio Abelardo, vetou quatro candidatos.O segundo — na verdade terceiro, já que o padre a estreara e o segundo, como vimos, se entalou — confessou- lhe às vésperas da boda sofrer do mal de impotência. Só desencantava após enterrar no braço alguns miligramas de testosterona. Problema que, afirmou o médico morador do oitavo andar, não apenas carecia de romantismo, como profetizava um futuro câncer de próstata. Prática e consciente, tia Maria. Alzira desfez o noivado.Meses depois, apaixonou-se de novo. Entrou em clima de festa: beijos, abraços, apertos, mais apertos e afagos, arrulhos, consumação. Até que o contraente revelou o desejo de observá-la na cama, desfrutando com outro homem:"Nojento", vociferou tia Maria Alzira, injuriando-o de vulgar cornudo demente, rasteiro e despudorado.Chorou semanas a fio, engoliu medicamentos sob as ordens de um doutor. No tempo correndo às pressas, minha tia arribou. Até pela novidade de novo candidato rodopiando na esquina.Pobre tia Maria Alzira, faltava-lhe a boa sorte. O cidadão em questão sofria do mal de gases. Agravado, se nervoso.

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Sabedora de que homens, tão logo se vêem casados, investem no figurino de marido massacrado, com nervos em pandarecos, tia Maria Alzira evaporou o dispéptico. Explicou-se aos parentes em apenas duas linhas:"Droga por droga, preferia o broxa. Ao menos com a injeção oferecia confortos. Flatulência, eu dispenso. É mui-to constrangedor."O último a remeteu à sua única crise nervosa. Também, pudera, além de metido a sebo, concentrava os defeitos de seus três antecessores: impotente, tarado e peidoso. Es-queci de anunciar que o padre e o engasgado não engrossam esta estatística, costumávamos relatar os homens de minha tia a partir do impotente, drama grave por demais.Voltando ao metido a sebo: minha tia amalucou. Chorou, perdeu os cabelos, danou de grasnar sandices. Chegaram a cogitar trancafiá-la no hospício. Graças às orações de minha avó, tio Abelardo materializou-se. Um santinho, enfatizava minha mãe referindo-se ao cunhado, autor da felicidade de sua única irmã.Tio Abelardo surgiu assim, meio do nada. Discreto, magro, coitado e funcionário público. Pouco para as pretensões de minha tia, sonhadora de esposar-se na mais alta refmância. Concordou em aceitá-lo devido à emergência — já pendurara no armário seu vestido de nubente — e pelo deslumbramento com o humor do candidato, eternamente encantado com os desvios de rota na vida da prometida. Na hora do casamento caiu uma tempestade e faltou luz na igreja. No escuro, a mãe de tio Abelardo estatelou-se no altar de onde a retiraram em estado comatoso.O acidente não embaçou o brilho da lua-de-mel, viagem curtíssima da qual tia Maria Alzira regressou alvissareira. Sorrindo de orelha a orelha, contou para minha avó que a magreza do marido escondia assombramentos:"Realmente, quem vê cara, não vê coração. Não apostava um tostão nos impulsos do Abelardo. No entanto, ele excedeu-se, superou até o padre. Verdadeiro talento."

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Viveu dois partos absurdos. O primeiro — tio Abelardo, inocente, desconhecia a origem do irmão falsificado que enfeitava minha vida — dentro do elevador. Meu primo Juliano, morgado do casal Silva, pulou para a luz do dia quase chegando ao térreo, a vizinhança encantada aplaudiu a efeméride. O segundo, à sombra de uma jaqueira, happy end surpreendente ao piquenique inventado em honra ao Dia daPátria. Gastamos nosso latim, convencendo minha tia a não batizar a recém-nata com o nome de Bonifácia. Até minha avó discretíssima, habituada a calar-se para driblar as encrencas, costurou um palpite:"O patriarca dispensa homenagens de mau gosto. Minha neta não é culpada de nascer de mãe maluca."Temendo uma herdeira nominada Bonifácia, tio Abelardo escapou e registrou a menina com alcunha modernosa: Brenda Lúcia. Tia Maria Alzira gargarejou desaforos e rendeu-se ao consumado. Mas até ficar viúva acusou tio Abelardo de traição ignóbil:"Nomes marcam destinos. Bonifácia representa um arsenal de talentos. Brenda Lúcia não deslancha. Ninguém batizada assim foge da mediocridade."Meus primos herdaram a placidez paterna e sorriam compreensivos ante as confusões da mãe. Brenda Lúcia honrou a previsão, inflando em ignorância. Casou-se com um agrônomo — de extrema importância quando o mundo terminou —, pariu crias langanhentas e complicou nossa temporada final, recusando-se peremptoriamente a morrer. Tanto embromou Baltazar para escapar da hora que irritou o anjo. Lá pelas tantas, exausto das delongas de Brenda Lúcia, Baltazar meteu-lhe um pedaço de estrela — pedra, desprezariam os céticos — no meio da testa. Sem dó, nem piedade. Depois, claro, benzeu-se:"Deus me perdoe, perdi a paciência com sua prima. Também existe gente que só entende porrada."Meu primo Juliano, músico de pouco talento, faleceu tocando flauta. Seu coração não resistiu à visão do cor-

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deiro de sete chifres e dez olhos. Morreu bem acompanhado, ante tal aparição multidões infartaram e partiram antes da hora de medo e de aflição.A vida de bem-casada de tia Maria Alzira — filhos, netos, esposo/amante — encerrou-se com viuvez repentina, bem ao estilo dela. Em uma manhã de setembro, tio Abelardo desapareceu. Verdadeiro escarcéu, notícia de rodar mundo, até o New York Times enviou correspondente. O fato justificava. Não era assim todo dia que a Terra engolia um homem.Segundo o relato de minha tia — testemunhas con-firmaram —, o casal passeava na orla do Rio de Janeiro namorando a beleza do amanhecer das praias, quando subitamente uma cratera abriu-se aos pés de tio Abelardo, tragando-o. Imediatamente, o buraco fechou sem largar rastro ou traço. Não contasse com o apoio de três porteiros, vários safenados, duas babás e alguns surfistas — os primeiros desfrutando à força o luminoso alvorecer; os últimos sofrendo por convicção —, tia Maria Alzira seria acusada de assassinato com agravante de ocultação de cadáver.Jornais de todas as línguas acompanharam o sumiço. À procura do instantâneo desaparecido, as companhias de saneamento, água, luz, telefone e esgoto abriram imensos buracos. Tamanha provocação ofendeu as Organizações Não Governamentais. Uma delas, inglesa, dedicada a amparar filhotes de baleia precocemente desmamados, registrou em matéria paga no Herald Tribune que a vida de um brasileiro não justificava tamanho dano ao ecossistema. Alguém, por acaso, imagina a quantidade de tatuís e minhocas mortos neste revolver de terras para encontrar o corpo de um aposentado que não fedia, não cheirava e representara um amargo prejuízo ao PIB das superpotências?, rugiu o editorial. Em inglês, of course. Tia Maria Alzira recorreu ao genro agrônomo para entender as ofensas e reagiu insolente:"Minhoca é a rainha deles."

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Aproveitando-se da situação, o presidente de uma multinacional de alimentos aderiu ao disse-me-disse e apoiou os ingleses. Para sublinhar seu gesto de louvor à natureza, descobriu em Abrolhos um filhote de jubarte aparentando ótima saúde. Mesmo assim, decretou que a mãe, nadando ao lado, sofria de raro mal bloqueador da produção láctea. Doou toneladas de leite em pó ao filhote e toneladas de dinheiro à ONG inglesa. Publicaram sua foto pelos cinco continentes e a ONG embirutou tentando dar mamadeira ao bem alimentado recém-nascido. Encerrada a operação-salvamento, contavam-se quatro óbitos: três ativistas e o filhote. Os primeiros esmagados pelas rabanadas da baleia-mãe enfurecida. O segundo, de alergia ao leite em pó. Tia Maria Alzira não perdeu a ocasião:"Só lamento pelos cetáceos. Eram as estrelas do show e nem cachê receberam", declarou a um jornal, encerrando a discussão sem nenhuma sutileza.Assim, comentadíssimo, tio Abelardo sumiu sem sequer dizer adeus. A falta de despedida — indelicadeza imper-doável pois morto de si prezante capricha no derradeiro, sacrificando a família em agonia infindável — chamou a atenção de um sábio sueco, especialista em efeitos colaterais das drogas pesadas. Diretamente de Estocolmo, ele anunciou que tia Maria Alzira, os três porteiros, os vários safenados, as duas babás e os alguns surfistas sofriam de delirium tremens, síndrome típica dos brasileiros viciados em café forte, apesar de o Primeiro Mundo já ter sinalizado que chique mesmo era descafeinar a rubiácea, tornando sua infusão apenas um caldo quente que tanto servia para degustação, como para ablução das partes íntimas, dependendo do gosto do freguês. No diagnóstico do pesquisador, imediatamente convidado pelo governo brasileiro para sondar o episódio, tio Abelardo não desaparecera terra abaixo. Apenas fugira, aproveitando-se da crise coletiva de overdose de cafeína:

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"Brasileiro não sabe tomar café. O senhor Abelardo escafedeu-se."Após esta afirmação, delirantemente aplaudida pela imprensa nacional, despencou a cotação internacional do café e o cientista sueco recebeu o Nobel. Tia Maria Alzira, convidada para a entrega do prêmio, compareceu elegantemente vestida em chantilly azul-marinho. Traje que, no jantar de gala seguinte à cerimônia, provocou o desastroso de enganchar-se em delicada escultura do século XVII. A peça permaneceu alguns segundos equilibrada nos arabescos da renda e se espatifou no chão. Na opinião de intelectuais europeus, este acidente corroborou a tese do laureado: a brasileira Maria Alzira Alencar Albuquerque do Canto e Silva não passava de abjeta drogada, sujeita portanto a surtos psicóticos.Sugeriram a internação de tia Maria Alzira, salva por um psiquiatra italiano, famoso pela defesa de tratamento do-méstico aos doentes mentais. Enquanto discutiam o destino da desatinada senhora, minha tia retornou ao Rio de Janeiro onde amargou o descrédito da opinião pública e a desgraça do não-reconhecimento oficial de sua viuvez.Quase dez anos depois, a mesma calçada da orla carioca voltou a se abrir e vomitou um esqueleto com o calção, camiseta e boné que tio Abelardo vestia na desditosa manhã da volatização. O exame de DNA — pago pelo Ministério da Saúde, após muita discussão — atestou o já sabido por tia Maria Alzira: os ossos pertenciam ao senhor Abelardo da Silva. Cumprida a burocracia — encrenca de mais dois anos —, ela recebeu o atestado de óbito, o sorriso dos vizinhos e a pensão, não retroativa. Nessa altura, o cientista sueco havia falecido e os herdeiros recusaram-se a devolver o dinheiro do Nobel. A imprensa mundial permaneceu caladinha.Com esta ficha inusitada, quando tia Maria Alzira previu, na entrada do novo milênio, que o final do mundo aconteceria no entardecer de 20 de dezembro de 2001, não sobrou quem duvidasse. Após gritos, desespero,

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choros e ranger de dentes, alguns parentes e amigos suicidaram-se. Fracos de espírito, lamentou tia Maria Alzira:"Rejeitar o apocalipse é pecado sem perdão. Há milênios os céus preparam o espetáculo. Pertencemos à geração escolhida para assistir à catástrofe. Privilégio irrecusável."Lamentou-os pouco tempo. Acoçava-lhe a urgência de iniciar os planos para o armagedon. Acrescentou cômodos ao sítio e reforçou o telhado com grossas chapas de aço. Decidira que nos esconderíamos no refúgio serrano. Sabia, fonte segura, que a tragédia eclodiria com a subida dos mares. No mundo inteiro, cidades litorâneas desapareceriam em instantes. Sob as ordens dela, compramos toneladas de alimentos, caixas de medicamentos — principalmente pomadas para queimaduras e tranqüilizantes —, colchonetes, cobertores, água, combustível, bebidas, sementes, livros, lanternas, pilhas, velas, armas, munições, dois computadores ligados à internet, antena parabólica, além de preservativos. Masculinos e femininos, pois cavalheiros e damas sofrem lá necessidades, não importa o apocalipse. Esfalfamo-nos em trabalho, mas reunimos o básico capaz de oferecer um sobreviver em paz — enquanto sobrevivêssemos e enquanto houvesse paz, impossibilidade constatada logo nos primeiros dias.Na organização das tralhas, Juliano surgiu com ervas aromáticas pois a mãe lhe garantira que, apesar do furor celeste, sobrariam alguns momentos de tranqüilidade. Convidativos, quem sabe, a alimentos cheirosos, entornados da panela — rotina de toda a vida, nós nunca desconfiamos como sempre fora bom.Bem, nem sempre foi tão bom. Tia Maria Alzira também aprontara boas na beirada do fogão. Seus bolos, apesar das receitas respeitadas às minúcias, solavam rotineiramente. Jamais ela conseguiu apresentar um bolo crescido, estufado, exalando o aroma morno de delícia recém-pronta. Até lavando espinafre, rotina sem emoção

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de qualquer dona de casa, minha tia, certo dia, armou um grande furdunço pois, entre as folhas de um molho, achou uma cascavel viva e chocalhante. Tia Maria Alzira relatava que as duas se encararam até ela dar um berro — nem preciso esclarecer referir-me à minha tia; no mundo de antigamente, répteis de fato e feito não costumavam falar, embora medrassem viçosas as más línguas viperinas. Mas isto é outra história.Cada qual correu a um,lado. A cascavel, esperta, direto para o fogão. Acudiram parentes, vizinhos, curiosos e o onipresente Corpo de Bombeiros, corporação rotineira na vida de minha tia. Após horas de luta, novamente a imprensa a postos, surgiu um técnico do Zoológico — que minha mãe garantiu ser São Miguel disfarçado — e desentocou a venenosa, encavernada no forno. Superado o susto, tia Maria Alzira organizou a família e jogou na cobra. Deu borboleta, desencantando-a até o final dos tempos com os jogos em geral. Incrível, logo ela alimentava a pretensão de acreditar na lógica:"Não confio em nada dependente da sorte."Quem diria, Deus do céu, alguém tão imprevisível ousar a inconseqüência desta tonta afirmação. Talvez por isto mesmo, sua absurda capacidade de surpreender, ninguém tenha duvidado quando ela anunciou a data do apocalipse.Enfim, liderados pelo entusiasmo de tia Maria Alzira gastamos o ano 2001 preparando o fim do mundo. Em outubro, pouco antes de Felipe Augusto começar a tremer, a família inteirinha reuniu-se na serra. Muita gente reagiu, preferiu ficar no Rio — partir nas primeiras horas, morte rápida, indolor, sem grandes compungimentos. Minha tia, aborrecida, impediu as deserções. Não sei se agiu no certo. Assistir ao apocalipse marcou-se experiência notável e esplendorosa. Mas dolorosa e inútil. Sofremos sem esperança e com exceção de mim, tripulando honroso Pentium nas chamas do purgatório, sem desfrutar o prazer de relatar a alguém que fôramos os eleitos, as desesperadas testemunhas do encerrar do planeta.

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(...) E o anjo tomou o turíbulo e o encheu de fogo do altar, e o lançou sobre a Terra, e logo se

fizeram trovões, e estrondos, e relâmpagos e um grande terremoto (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 8, versículo 5)

O Toque da Primeira Trombeta

20 de dezembro de 2001 amanheceu estranho. Ar parado, pesado, nem uma leve brisa amenizava o calor. O galo não cantou, pássaros se encolheram nos ninhos, cachorros enfiaram o rabo entre as pernas, vacas não minaram leite, Felipe Augusto entrou em convulsão, galinhas encruaram, mulas empacaram. Até animais menores, provocadores de asco, protegeram-se nos cantos. Ratos, minhocas, baratas, pulgas, vespas, mosquitos. Ácaros, talvez. Nem o mais vil inseto manifestou sua graça.No sítio, o vaivém começou cedo, últimas necessidades demandavam providências. Movíamo-nos angustiados. Menos tia Maria Alzira, comandando o expediente com ale-gre brilho nos olhos. A mim, entregaram a tarefa de cozinhar macarrão, panelões de angu, assados e mais assados. Tudo que, no estupor das primeiras horas, acalmasse nossa fome sem maiores confusões. Juliano responsabilizou-se pela imprensa agitada e excitada, plantada defronte ao sítio. Cada jornal, prestimoso, prometia mundos e fundos na tentativa infrutífera de marcar uma entrevista, de preferência exclusiva, com a guru do apocalipse.

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Televisões transmitiam ao vivo, criticando a nova seita de cunho milenarista que esperava o fim do mundo sem sequer considerar os dados de Nostradamus. Resumindo, uns bobalhões pois previsão que se preza, como sabem os informados, é artigo europeu. Onde já se viu, perguntava o repórter no ar ao vivo e em cores, mestiços de negro e índio, meio sangue degredado, entenderem do riscado?Prevenindo quebra-quebra caso o presságio falhasse, a polícia apareceu e bloqueou a porteira. De não sei onde surgiu o secretário estadual de segurança com jeito preocupado. Não pelo fim do mundo, declarou:"O mundo não acabará sem mais nem menos, na data determinada por uma velha maluca. Atesta-lhe a idiotice a sua vida pregressa, repleta de casos raros. Basta lembrar o antigo episódio, fartamente explorado pelos jornais, de seu vício impertinente de hipnotizar animais. Os letárgicos perus de Natal da família Silva entregavam o pescoço à faca da cozinheira na maior descontração. Um crime, um assassinato. Eu mesmo, pessoalmente, vi a foto aterradora da má índole desta facínora. No verdor da mocidade, ela hipnotizava bichos indefesos, inclusive um pobre cão que acabou sacrificado. Dona Alzira não conseguiu retirá-lo do transe e o cachorro, coitado, urinava e defecava onde lhe dava na telha. Armou a maior lambança na batina de um padre que tentava exorcizá-lo. Portanto, sobre tal senhora nada a declarar. Peço, porém, a meu povo que mantenha a confiança. O Estado decretou e publicou no Diário Oficial que o mundo não acaba hoje. Futura e inconteste data é competência exclusiva da área do Vaticano. No momento meu anseio é manter a ordem pública."Cidadãos de outras fés, contrários ao monopólio avocado pelo papa no caso do apocalipse, ensaiaram protestar. Atitude abafada no bulício dos fotógrafos equilibrados nas árvores, dependurados nas cercas, catando o melhor ân-gulo de sua excelência, vaidosa e empertigada. Aliás a excelência, prevendo tanta atenção à sua humilde pessoa,

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caprichara na gravata e enfarpelara um terno digno do fim do mundo. Simplesmente pavoroso."Gosto não se discute", afirmou a repórter da mais importante coluna social brasileira.Opinião contestada por renomado colega, um craque em reportagens de matizes culturais:"Gosto se discute, sim. Quem determina o belo? Quem é dono da estética? Sua visão é elitista."Na tréplica e contratréplica, a conversa se alastrou enquanto arribava mais gente. Vizinhos, curiosos, excursões de turistas, muitos de língua estrangeira. Tia Maria Alzira observava o palavrório, a multidão aumentando e suspirava, ansiosa:"Credo, quantas bocas inesperadas para alimentarmos. Deus seja louvado, sobram-nos provisões."As horas passando aumentaram as emoções. Nós, de dentro de casa, confrangíamos e sofríámos igual condenado à morte à espera da execução. É preciso viver isto para conhecer a dor, a angústia dilacerante. Nem o assassino mais mórbido, habituado a requintes de cruel perversidade, permite-se a brutalidade de avisar à sua vítima a data da execução — então merecia acabar o malsão mundo nojento, aplicante desta prática em alguns seres humanos geralmente indefesos por pobreza, indigência, doença, incapacidade; Deus me livre, nosso horror dilacerado à espera do fim do mundo, fora o horror de milhares esperando o próprio fim, acrescente-se a estes as dores da solidão, do desespero calado; ao menos eu me apoiava em minha própria família, tão condenados e aflitos quanto minha aflição.Lá fora porém o clima animava. No meio da tarde materializaram-se os ambulantes: cerveja, cachorro-quente, sanduíche natural, camisetas estampadas com frases apocalípticas, ventarolas, algodão-doce, refrigerantes e sucos. Vendia-se de tudo. Inclusive café Fim do Mundo, com ou sem açúcar. Segundo o vendedor, um derivado do natimorto Café Abelardo, idéia de uma

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fábrica de café instantâneo que, logo após o sumiço de meu tio, inventou de investir no episódio, tentando lançar no mercado um produto com o nome dele — a crer-se na publicidade, pó capaz de se liqüefazer em segundos. Naquela ocasião, tia Maria Alzira reagiu ofendidíssima:"Meu marido não se liqüefez, igual aos demais cadáveres, contentou-se em decompor-se. Considero esta idéia um insulto."Não cedeu sequer às ofertas mirabolantes para emprestar o nome do falecido — temia que a acusassem de lucrar com a tragédia —, e ouviu de má vontade o argumento de que o Café Abelardo passaria por processo de descafeinização, método capaz não só de evitar os prováveis efeitos colaterais da cafeína, mas também a chatice do cientista sueco. Este último argumento quase a convenceu. Quase. Acabou prevalecendo o respeito ao desencarnado.Oportunistas não perdem a ocasião. Com minha tia outra vez sob a luz dos refletores, logo surgiu alguém disposto a lucrar com as lembranças da viúva subitamente catapultada a líder do armagedon. Ao flagrar o camelô apregoando o café Fim do Mundo, possível subproduto do Café Abelardo, tia Maria Alzira injuriou-se e profetizou desenlace rápido para o cidadão que, atrás de lucro fácil, ofendia-lhe a dor:"Este pivete não sabe com quem se meteu. Vou despachá-lo em instantes."O primeiro susto bateu passava das cinco da tarde. De repente, escureceu. O céu se cobriu de nuvens e soprou um vento frio. Lufadas fortes, cada vez mais fortes, desaguaram em chuvarada. Parecida com o dilúvio, comentou tia Maria Alzira com a segurança de quem navegara na arca, companheira de Noé. Quanto mais chovia, mais o céu escurecia e mais as nuvens baixavam, provocando a impressão do esmagamento da Terra. Começou o pânico. Meus parentes soluçavam, implorando adjutório a Deus, seus anjos e santos. Sentei-me no canto

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da cozinha, abaixei a cabeça, o coração disparado e lamentei minha vida precocemente perdida. Se prevesse tal desfecho, cairia na esbórnia assim que o corpo rogasse. Pouco adiantava, na hora do apocalipse, aprender que os prazeres, além de doces pecados, constituem dom divino, festanças inadiáveis.Graças à prudência de tia Maria Alzira, pesadas trancas nas portas impediram a multidão de invadir a casa. A polícia amedrontada mostrou-se incompetente no controle do povaréu. Quem antes debochara e rira de minha tia, ou dispersava às pressas, ou suplicava abrigo. Tia Maria Alzira conservou a compostura, nem tremer, tremeu. Demonstrava experiência diante de apocalipses, controlou a parentela com palavras de incentivo:"Levantem a cabeça. Pela contagem humana, esta história durará três anos e quatro meses. Portanto, nada de desespero."Depois gritou aos de fora que, por favor, se acalmassem. Quando a chuva amainasse, ela pessoalmente convidaria à casa os capazes de respeito:"Entre o final da chuva e a chegada do Senhor escoará meia hora. Há tempo de socorrê-los. Ajeitem-se como puderem. Até porque já vem raio."Parecendo aguardar a ordem de tia Maria Alzira, o céu vomitou fogo. Coriscos de ouro e prata rasgaram o Ar-mamento, incendiaram as árvores, racharam rochas imensas, iluminaram a noite nesta altura desabada. Imaginei o estrago que viria pela frente ao examinar a turba. Pelo menos a metade jazia estraçalhada pela ciência dos raios com mira de precisão. Do vendedor de café nada sobrou, além do boné com a sigla de um partido político neoliberal.Acuado e acovardado, o público sobrevivente resolveu se esgoelar. Sons terríveis, massacrantes. Agora em meia-paz, sofrente no purgatório, às vezes acordo assustada escutando os mesmos gritos e anseio pelo céu. Acho que apenas lá conseguirei me livrar do alarido clamante da

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massa em flagelação — Deus, que coisa terrível, impuseste-nos sanções muito além de nossos erros, quem pensava cristãmente, paz, perdão, fraternidade, tentou mas não Lhe entendeu.Perdemos a noção do tempo, ninguém alçava afirmar se ainda era noite, ou se nascera a manhã. Minha tia deu a pista, jantando qual abadessa. Apesar de reclamar do paladar da comida:"Insossa. Parece mingau de anjo." Papo cheio, ajeitou-se na sala, distante e ignorante da balbúrdia do arrabalde. Solicitou a meu primo a fineza e gentileza de ligar a televisão:"Notícias frescas apenas mais dois dias. Depois, nem televisão, nem jornal, nem mesmo rádio. Tratemos de aproveitar assistindo ao fim do mundo em cada canto do mundo. Deslumbro-me com a tecnologia. Somos fiéis testemunhas, em tempo real, da eclosão do universo."Decisão equilibrada. A família esqueceu a parafernália cósmica, trovoadas nunca vistas, e pregou os olhos ávidos na telinha da tevê — maquininha insuperável, distraía comatosos, ninguém murmurou palavra acompanhando as notícias. Não batesse em minha mãe um coração generoso, capaz de se emocionar diante de gestos nobres, ninguém presente na sala lembraria o apocalipse. Mas mamãe, inoportuna, inventou de recordá-lo, apontando aos soluços as feições desfiguradas dos espantados repórteres, relatando a mesma história, igualzinha, nos detalhes, dos recantos do planeta:"O mundo desmilingüindo e os meninos trabalhando. Olha, Maria Alzira, repara nos olhos deles, nevoados de pavor. Considero uma injustiça a exploração desta gente.""Explorados, mas distraem. Portanto praticam atos de ajuste social. Quantos, neste instante, esqueceram as amarguras e escutam as novidades? Não seja tola e aquiete-se", respondeu tia Maria Alzira acrecentando que há um tempo de tudo. "Eclesiastes, filho de Davi, um rei em Jerusalém, reparou e escreveu que a vida é

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determinada; há época de plantar e de colher; de rasgar e de coser; de muito amor, muito ódio; pois então não existiria um momento programado de nascer e de morrer?" Ajeitando-se na poltrona, tia Maria Alzira encerrou o palavrório:"Surgisse o apocalipse no auge da Idade Média, os mestres-de-cerimônias seriam os bobos da corte. Cada época, cada bobo. Os nossos são eletrônicos, luxo inquestionável. Agora, calemo-nos. Quero assistir à hecatombe."Palavra perfeita. O planeta mergulhara em tragédia inenarrável. No Oriente e Ocidente, o drama ecoava igual. Latitude, longitude, rotação e translação, parâmetros de harmonia haviam volatizado. Do extremo Norte extremo ao Sul extrematizado igualavam-se os eventos. Mesma chuva, mesmos ventos, potência dos mesmos raios. Sumiu o contar das horas, o valor mais respeitado no impor ordenação. Em qualquer simples quadrante, o tempo espelhava o mesmo. Nem de noite, nem de dia, apenas o lusco-fusco colorido por fagulhas. Jornalistas abismados informavam o espanto de os relógios quebrarem. Inclusive o Big Ben rodopiava às tontas, marcando instante nenhum. Um colunista britânico assomou-se da verdade:"É o fim do mundo. O único cronológico certo é o da Central do Brasil, local de pobres famélicos lá no Rio de Janeiro."Nos Estados Unidos, o bem-posto anchorman dispôs-se a falar com a Nasa. Não lucrou pescar respostas, a Nasa desentendia a extensão do fenômeno. O porta-voz da agência, jovem pós-graduado, capaz de glosar o mundo através de equações, garantiu que cientistas, todos com doutorado, alguns com estudo além, debruçavam-se nas máquinas, potentes computadores, vasculhando explicações. Nomes reverenciados da ciência e da política debatiam a hipótese de enviarem sondas espaciais com dotes de averiguar sobre a estratosfera, sobre Marte, sobre Júpiter:

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"Meanwhile, don't worry: O norte-americano deve se tranqüilizar. Costumamos perder guerras, jamais perdemos a pose. Provavelmente lidamos com armamento novo de alguma seita xiita."O anchonnan afobou-se:"Xiitas? Eles são imprevisíveis, planejam nos explodir. Na certa surrupiaram o arsenal atômico estocado na extinta URSS. Cansamos de aconselhar bombardeios cirúrgicos nesta região do mundo. Imploramos ao governo para queimar os xiitas, empilhá-los na fogueira. Ninguém nos escutou, quem escutou acusou-nos de imperialistas sangrentos. E calúnia, sangue de carbonizado coagula, não escorre em hemorragias. O perigo ameaçando-nos e os nojentos pacifistas, monte de desocupados, enfiando seus bedelhos em discursos idiotas melados de amor e paz. Agora, olha aí a merda."Dois marines arretados retiraram-no do ar em histérica crise nervosa. Oculto nos bastidores, o anchonnan desvai-rado imputava aos palavrões a culpa sobre os islâmicos. O diretor da tevê — potente canal a cabo de alcance interna-cional — adentrou pelo estúdio e of fered his apologizes a russos e muçulmanos:"Por favor, perdoem-nos. Sumidades médicas já entraram em ação. Inclusive perguntaram-nos se o homem foi mordido por algum cachorro louco. Após os comerciais, antenem-se na Europa."Decorridos alguns minutos exaltando e conclamando as delícias do consumo, surgiu uma locutora bem vestida e maquiada diretamente da França. Com sotaque de Paris, narrou o desastroso para a produção vinícola:"Seguindo este climatow, as uvas se negarão a ofertar a doçura necessária na devida época. Podemos estar às portas de desastre inigualável. Ou consertamos o tempo, ou nem a indigência anual do Beaujolais Noveau lançaremos no mercado. Coitados dos brasileiros, como irão se divertir fantasiados de enólogos?"

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Seqüenciou o trabalho falando sobre Paris, ofendida e injuriada diante do inconcebível: um raio mais abusado destruíra a Torre Eiffel. Quando ia comparar a conjuntura agitada com os versos de Nostradamus — um francês, naturalmente —, a tevê italiana pediu espaço urgente. Subitamente encarnados, mil leões esfomeados invadiam o Coliseu devorando nonnas e sigorinas em um banquete sangrento. Martírio documentado por turistas japoneses, teimosos em bater fotos apesar da pouca luz. A elegante francesa, antes de ceder espaço, permitiu-se ironizar:"S'il vous plait, com certeza são leões?"A imagem zerou dúvidas. Com exceção de minha tia, fechamos nossos olhos ante as atrocidades das feras enlouquecidas. Não trocamos de canal pois a voz de um alemão cortou a do italiano, narrando traumas dantescos. Descontrolada pela tempestade elétrica, a torre do aeroporto de Munique espalhara aviões pela Baviera inteira, grandes jatos destroçados jaziam nas plantações. Na pequenina Erding, a tevê focalizou um airbus sobrevivente que conseguira aterrar no meio de um morangal. Os passageiros chocados permaneciam sentados, receosos de enfrentar as sinistras trovoadas — apesar da maravilha dos frutos adjacentes.Na sala ninguém falava. O início do apocalipse pre-nunciava o calvário. Excetuando minha tia, intercalando os olhos entre a tela iluminada e o delicado bordado, enfeite na camisola destinada à Brenda Lúcia, o restante da família arrasara-se em silêncio. O repórter português puxou-nos da letargia, descrevendo de Lisboa as agruras lusitanas. Transmitindo do Rocio, com água pela cintura, o gajo se esmerava em entender a borrasca:"Como os senhores comprovam, está a chover. Não podemos informar se a imensa inundação é a água que caiu, ou o Tejo que subiu. Mas o resultado não muda: iremos nos afogar. Notícias urgentes relatam tal e qual confrangimento em todas as terras lusófonas. Resumindo,

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o mundo inteiro. Voltaremos em instantes, caso estejamos vivos."A câmera se deslocou ao Castelo de São Jorge, imagem fantasmagórica. A construção milenar, destacada pelos raios, parecia anunciar a volta de Afonso Henriques para uma nova matança. Nesta altura Portugal convenceu-se do recado: enfim chegara o momento de o rei desaparecido chegar de Alcácer Quibir. Multidões correram às ruas saudando dom Sebastião e o início do Quinto Império. O repórter animou-se e, tal qual o confrade inglês, imiscuiu-se na pista:"Ainda vivo e falante, cá estou a anunciar o ansiado retorno do amado soberano. Enfim dom Sebastião e sua corte de nobres, degolados e ensacados nas distantes terras d'África, retornam a nosso convívio. Apesar de extasiados, atestando o fato histórico, preocupa-nos a todos, homens de letras e ciências, como atrelar as cabeças a seus devidos corpos. Imaginem a confusão se em dom Sebastião, um doutor desavisado reimplantar as idéias do rei Abdelmalek? Senhoras e senhores, isto é o fim do mundo. Não é à toa que o universo endoidou."Tia Maria Alzira, cansada de más notícias nascidas no exterior, solicitou a meu primo para sintonizar as notícias brasileiras — quando o flagelo é vizinho, nos flagela muito mais. Igualzinho aos estrangeiros, jornalistas brasileiros desfilavam ar de pânico, disfarçado heroicamente. Minha mãe verteu mais lágrimas em prol destas criaturas dispostas a trabalhar, apesar das contingências. O clã imitou-lhe o gesto, mas lastimando a cidade outrora maravilhosa. O Rio literalmente submergia. Óculos dependurados, tia Maria Alzira desdenhou-se da emoção:"Se qualquer chuvinha fina inundava a cidade, imagina este chuvão, precursor de outros transes. Aviso aos inte-ressados que desta vez não cabe culpa ao prefeito. Não há rede pluvial capaz de deter a água que precede a parusia. Nós escolhemos bem, escondendo-nos na serra."

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Talvez não. Além da fulminação, alívio libertador das lides do apocalipse — cada dia um partia, cada dia dor maior —, perdemos a ocasião de morrer qual cariocas: alegres e debochados, encharcados de cerveja. Entrevistada ao vivo, direto de uma birosca, a malandragem brindava o augúrio de minha tia: "Aquela velha maluca, assassina do marido, não anunciou que o mundo acaba hoje? Pois então, antes que ele se afogue, nóis se afoga nas bebidas, homenagem ao apocalipse."Quase um metro de chuva invadindo a tal birosca, o resto dos irmãozinhos empoleirado nas mesas, aproveitou o ensejo. Despejou o gole do santo e tratou de mandar beijos à senhora dona Alzira:"Se a madame rogou praga, garanto que vai primeiro. Somos filhos de Yansã."Ante tanto desrespeito, minha tia indignou-se: "Não acreditam em mim. Pensam que a tormenta é igual a várias outras habituais da cidade. Veremos quem tem razão."Como para consolá-la, a tevê mostrou o sítio. Na sala, o medo aflitivo transformou-se em excitação. Cada qual falou mais alto em tom de alegre orgulho: "Olha a porta, precisa pintar." "Nossa mangueira, tão linda...""Repara na luz da sala." "Bem que a casa é bonitinha."Palpites se misturaram. Brenda Lúcia, eterna chata, drenou a animação:"Que coisa deselegante, esquecemos a roupa na corda. O Brasil nos assistindo, quem sabe o mundo inteiro, e nós nos apresentando qual coija de favelados? Um horror."Rolaram gargalhadas, Juliano levantou e preparou as bebidas — nada como ser notícia. A alegria findou-se quan-do as imagens mostraram a estréia do pesadelo: uma abastança de corpos bloqueando a porteira e a repórter aflita narrando vicissitudes:"Na serra fluminense, diante do sítio de dona Maria Alzira Alencar Albuquerque do Canto e Silva, ninguém duvida do acerto da previsão. Ou o mundo está acabando, ou a até

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então desconhecida senhora anteviu uma convulsão atmosférica de conseqüências dramáticas. Já não se pode contar a quantidade de óbitos provocados pelos raios."Da porta de nosso sítio às capitais brasileiras: Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia, Recife, Fortaleza, Belém e, culminando, Brasília. Cada uma repetia a mesma atribulação. A massa espicaçada pelo terror da tormenta tentava fugir. Para onde, ninguém sabia. As estradas entulhavam-se engarrafadas de medo. Somente em Brasília reinava paz, apesar da coriscada e do monte de defuntos. O presidente da República prometera falar em rede nacional de rádio e televisão e o ministro da Defesa preparava um relatório, baseando-se em dados fornecidos pela Agência Espacial Brasileira, localizada em São José dos Campos, cidade onde aliás pululavam falecidos, culpa da mesma agência, pródiga em pára-raios.Lá pelas tantas — a família exaurida, consumida de emoção —, surgiu na televisão o primeiro mandatário brasileiro com pose de austeridade e um sorriso pimpão, tentativa agradável de tranqüilizar o povo. O discurso otimista esforçou-se em convencer-nos dos confortos ofertados por nosso rincão natal: nem tufão, nem terremoto. Fim do mundo? Nem pensar:"Não há razão para pânico. Mantemos constante contato com os mais destacados centros da ciência mundial. Todos nos garantem que as chuvas e trovoadas são rebuliço à toa. Nada que prejudique os esforços do governo para manter o controle de nossa moeda estável. Aceitem uma sugestão: enquanto durar o caos mantenham-se em suas casas. Comam bem, leiam bons livros, sofistiquem os ouvidos com o Requiem Alemão de Brahms. A vida é esplendorosa. Aproveitem este intervalo, oferta da natureza, e relaxem fazendo amor. Mas usem preservativos pois a verba da Saúde costuma criar mais mortos do que esta inclemência. Creiam-me, não é o fim do mundo. Nem a imensa tempestade, nem a verba da

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Saúde. Com jeito e boa vontade, o Brasil segue seu rumo de líder do continente. Nossa meta é o futuro. Boa noite."Desfeita a rede nacional, tia Maria Alzira zapeou mais novidades. A República do Panamá naufragara. Transbordara o canal unindo os oceanos, carregando de roldão todo o país e seu povo. Buenos Aires chorava a dor da calamidade, nenhum país do planeta sofria mais que a Argentina. Portenhos vociferavam, conjurando Itaipu. Planejada e construída para resistir às chuvas, inclusive milenares, a represa transbordava e se expunha em rachaduras, encharcando os argentinos:"Estes vão rapidinho", sentenciou minha tia.O Chile sinalizava o início de terremotos: os Andes malemolentes começavam a desabar. A Colômbia assustava-se ante a possibilidade de o toró bloquear sua rica exportação. A África viu engrossar a fila de desterrados. O Japão se preparava, aguardando inundações — sensores delicadíssimos detectavam sinais de terrível maremoto. A Califórnia sumira. Finalmente, a falha de Saint Andreas provocara o Big One.Amortecidos com as novas, ninguém murmurou palavra. Emudecemos de horror. Minha tia reparou, desligou a televisão:"Melhor dormirmos. Necessitaremos de força quando o script mudar."Só então observamos o estado defuntado de uma velha tia-avó. O coração lhe falhou de susto e assombramento. Pela rigidez do corpo, embarcara há muitas horas, talvez no inicio exato da grande atrapalhação. A descoberta macabra desnorteou a família: como enterrar o corpo? Tia Maria Alzira desembrulhou o impasse:"Vamos arrumá-la bonitinha. Breve vocês verão a rota dos fenecidos."Atendemos-lhe as instruções. Enfeitada e penteada, depusemos a anciã sentada perto da cerca. Alguém rezou apressado e nos trancamos em casa. Cada qual em sua cama, cada qual mais sorumbático. Eu então mal me

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mexia, oprimida pelos danos das funéreas transcorrências. Lembro-me vagamente de meu asco e da revolta — recusava o tratamento de vil inseto nojento, alguém me estraçalhando sem chance de escapatória. Antes de dormir, exausta e amargurada, rezei as rezas de sempre com leve alteração — Senhor, qual pecado horripilante exige um resgate assim?

(...) E apareceu o cavalo amarelo: e o que estava montado sobre ele tinha por nome Morte, e

seguia-o o Inferno, e foi-lhe dado poder sobre as quatro partes da terra, para matar à espada, à fome, e pela mortandade e pelas alimárias da

terra.(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 6, versículos 7 e

8)

Os Anjos e a Voz do Céu

Acordamos mareados com a voz de minha tia anunciando animada a minoração da chuva. Breve, afirmava, estrearia o melhor. Restava-nos pouco tempo às providências práticas: banho, trocar a roupa, coar um café bem forte:"Abusemos da cafeína pois o próximo espetáculo, maravilha incomparável, concretizará real. Meu Deus, emoção extrema, enfim cada ser humano reverenciará a face divina."

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Se tia Maria Alzira garantia tal façanha, não restava a menor dúvida. Tanta certeza lembrou-me a segurança com que, a vida toda, ela ajudou a polícia carioca a destrinchar crimes bárbaros. De tanto sofrer assaltos, geralmente à mão armada, tia Maria Alzira tornou-se sofisticada especialista no reconhecimento de facas, pistolas, garruchas, escopetas e canivetes. Pouco antes de anunciar o apocalipse, retornou ao noticiário ao decifrar o seqüestro de importante industrial. Ato mau de gente boa, conhecedora do assunto, não largou uma só pista além de seguranças mudos de assustamento com o tipo de armamento portado pelos bandidos. Após confabular com a Secretaria de Segurança, tia Maria Alzira decretou:"No Rio de Janeiro apenas Francisco de Sousa, vulgo Adisabeba, utiliza cimitarra. O seqüestro é obra dele."Além do nome e apelido, forneceu o endereço. Resgataram o industrial, Adisabeba converteu-se à Igreja Universal — honestíssimo fiel, depositava o dízimo pontual e mensalmente sem atrasar um segundo — e tia Maria Alzira recebeu polpuda recompensa. Com o dinheiro comprou o sítio no alto da serra onde, reunidos, assistimos ao fim do mundo.Acreditando piamente nas palavras de tia Maria Alzira resolvi embelezar-me. A ocasião merecia. Caprichei na vestimenta, prendi belos meus cabelos, usei brincos de ouro combinando com anel. Encharquei-me de perfume e, por fim, saltos altíssimos. O espelho me aplaudiu, considerei-me elegante. Sensação evaporada no sermão de minha tia:"Você se equivocou. As santidades chegantes lixam-se ao esplendor destes trajes emergentes. Vá se trocar, use roupa confortável. A lida que nos espera é dura e estafante."Sábia tia Maria Alzira. Insistisse em usar saltos, seria uma condenada com a perna fraturada, saltos não resistiriam à faina avassaladora. A turma lá de fora quando entrou, en-trou demente. A chuvarada, os relâmpagos, o crescente de

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defuntos levaram-na ao frenesi. A turba esperneava, agitava- se sofrente, esfomeada e sem rumo — Deus do céu, que desatino, trabalhamos igual eqüinos, até colo oferecemos aos mais desconsiderados, mais ralados de amargura.A repórter da tevê decidiu voltar ao ar e anunciar ao vivo os zelos de minha tia, assim como os preâmbulos de um evento glorioso. "Furo" extraordinário, os coleguinhas mal-dosos acusaram-na de má-fé. Porém as alfinetadas não lhe chegaram aos ouvidos. Após contar a verdade, a repórter assustou-nos. Dependurou-se em um anjo e se transladou aos céus:"Até já", gritou de longe, as nuvens prejudicando a beleza do momento."Até, minha santa, eu ainda permaneço", respondeu tia Maria Alzira com o sorriso mais bonito que jamais a vi sorrir.A ascensão da repórter travejou-se em merecências. Coube a ela, até então uma anônima, a honra de veicular a notícia dos milênios: anjos baixavam à Terra. O mundo de cabo a rabo escutou a novidade."Mata a cobra e mostra o pau", aconselhou minha tia.A jornalista afiada acatou a sugestão. Empunhou o microfone, solicitou um sinal e disparou o torpedo. A tevê nos detalhou os estragos da explosão. Milhões de suicídios, além de crises nervosas. Templos superlotados. Acusações assustadas de manuseio de imagem e mau uso da notícia. Demissões sumárias no board da estação. Reação estupefata de aiatolás e rabinos.O papa descontrolou-se, expulsou às caneladas o cardeal responsável pela área de RP. As elites do budismo, xintoísmo e hinduísmo engalfinharam-se às tontas. Líderes de relevância articularam correndo um encontro do G-8. O Mercosul imitou-os, embora desconhecesse o motivo de fazê-lo. As televisões mundiais copiaram a matéria e exploraram ad nausea a temática dos anjos. Esotéricos

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desfilaram a euforia afrontosa de quem afinal acertara o prêmio de loteria.Presídios se rebelaram. Conventos esgoelaram a cantoria em latim pois para tudo é mister existir trilha sonora.Preocupada em provar eficiência e justiça — sabe lá se o Senhor cobraria pelo atraso — a Suprema Corte dos Estados Unidos ligou a cadeira elétrica. A maligna ferramenta incendiou, um a um, centenas de condenados. Esfalfou-se a tal cadeira, findou por suicidar-se em auto-choques de altíssima voltagem, não sobrou-lhe uma arruela. Seitas universalistas quadruplicaram os dízimos devidos pelos fiéis. Zerou a mercadoria dos chefes do narcotráfico, até os não-viciados renderam-se à entorpecência. O mesmo ocorreu ao álcool, sumido das prateleiras. Maciça corrida aos bancos desmontou dos alicerces o mercado financeiro. Saquearam o comércio. Descontrolaram-se instintos, mulheres e homens arfantes rolaram de braço em braço sem nem escolher parceiro. Resumindo, o possível acontecente quando o desespero é muito, afinal aconteceu.Também, não era para menos. A repórter detalhou o advento dos anjos e assinou o recibo. Mostrou-os na majestade da beleza adolescente, recolhendo os tristes grãos da fatal primeira ceifa. Sorridentes e educados, interromperam o serviço, saudaram o distinto público e então recomeçaram a limpeza do quintal. A câmera os captava, inclusive no instante em que leves voejavam, apesar da carga fúnebre.Primor de noticiário, vasculhado nos detalhes. Até na ironia jovem da censura sem pudor. Aos críticos desagradou a cena de anjos rindo, um deles desalojando os restos do secretário, menosprezando o bom gosto da autoridade morta:"Gravata mais horrenda, credo. Quem escolhe um troço desses merece mesmo o inferno."Gargalharam e decolaram, em que rumo eu não sei. Naquele exato instante, apesar do esplendor da celestial

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milícia, eu fitava minha tia dirigindo-se à porteira, tentando verificar se restava mais alguém necessitando cuidados. Acompanhei-a nos passos, tia Maria Alzira Alencar Albuquerque tio Canto e Silva caminhava majestosa, segura, forte, imponente, amiga sem cerimônia daqueles seres divinos com quem conversava rindo em total intimidade. Era mesmo diferente, sempre fora, desde sempre. Recordei de minha avó que, na menarca da caçula, perdera todas as dúvidas sobre a originalidade da filha surpreendente. Episódio espantoso, rendeu tanto palavrório que até o arcebispo sentiu-se na obrigação de prestar explicações:"A natureza não costuma pedir licença para agir, não cabe culpa à menina. Maria Alzira não é santa, nem herege. É somente uma coitada que, um dia, nasceu mulher, ser fa-dado a contratempos."Fora o tom meio xenófobo que irritou minha avó, o bispo acertou a mão. Somente tia Maria Alzira provocaria o desastre de menstruar pela primeira vez no dia da primeira comunhão, manchando o vestido de organza, entremeado de rendas, com o vermelho da vida. Um escândalo na igreja. Houve quem sussurrasse a ocorrência de milagre. Mas também apareceram os desbocados, capazes de acusá-la de desrespeitar os santos. Para azar dos Albuquerque do Canto, um jornalista ateu registrou a ocorrência e publicou em revista de orientação marxista. Isto naqueles tempos em que o pensamento marxista afrontava a Igreja, a família e os bons costumes. A fotografia rendeu tanto bate-boca que quase excomungaram tia Maria Alzira.Quem a assistisse agora, fraterna do apocalipse, apostaria naqueles que a declararam santa. Eu mesma me espanta-va com a total sem-cerimônia com que ela previa os fatos e conversava com anjos — quem seria minha tia?Esqueci tais pensamentos ao escutar Juliano convocando-nos à sala para comprovar no mundo o mesmo estranho fenômeno. Igualzinho no sítio, um exército de anjos

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sacolejava o planeta, levando os primeiros mortos, provo-cando assombração. Grudamos na telinha, apesar da objeção de tia Maria Alzira:"Ah, Jesus, isto é vício. Pois se podem comprovar o mesmo extraordinário ocorrendo no terreiro, por que se penduram todos em volta deste aparelho?"Invocou, chamou, pediu, impôs ordens rigorosas. Re-solvemos ignorá-la. Preferimos a tevê, capaz de flagrar vida igual imenso mosaico — vários dramas repartidos não montam drama nenhum, um consolo meio besta pois a verdade não pára, mas ao menos divertimo-nos.As imagens mostravam na Grã-Bretanha anjos negros, marroquinos, indianos, irlandeses, anjos egípcios e bôeres, alguns querubins chineses, todos em harmonia limpando o centro de Londres. Em Portugal voejavam anjos índios, africanos, brasileiros e asiáticos. Na contramão, anjos lusos desabaram na Indonésia — nada de muito sério, problemas no trem de pouso. Na Espanha, maias e incas, esplêndidas asas de prata, ombreavam anjos astecas. Liderava-os Motecuzuma que o espanhol prepotente batizou de Montezuma. A França se deparou com serafins da Argélia, Caribe e Senegal. A Holanda recebeu querubins orientais. Horror nos Estados Unidos: pousaram anjos comanches, latinos e asiáticos. No comando, um anjo negro com as vestes reluzentes de ouro sobre brocado.Quedamo-nos estarrecidos quando a tela revelou os anjos que arribavam nos centros de fé islâmica: um batalhão de mulheres, os negros cabelos longos esvoaçantes ao vento. Altivas e organizadas, aceleravam o resgate na competência ile homens. Brasil, Argentina e Uruguai reconheceram em seus anjos a face dos paraguaios. O Chile escandalizou-se com serafins araucanos. Na antiga Iugoslávia voavam anjos croatas, bósnios e sérvios, além de — suprema afronta — disciplinada esquadrilha de serafins comunistas. Na Alemanha arribaram milhões de anjos judeus. O Estado de Israel recebeu levas de arcanjos, os seres mais graduados da hierarquia celeste. Reverência

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ao passado, afinal coube a este povo a autoria da Bíblia. Embaçava a homenagem um tropeço diplomático: eram arcanjos palestinos. O Vaticano assustou-se com a colméia eficiente de anjinhos cristãos-novos. Coitadinhos, chamuscados, mas lavando a Santa Sé gentis e resignados.Altos anjos holandeses cuidaram da Escandinávia. Alegres anjos eslavos invadiram a Europa. Valentes anjos papuas organizavam despojos no deserto da Austrália. No Nordeste brasileiro, anjinhos amarelados de barriga estufada desempenhavam o papel de sumir com usineiros. Os arcanjos cariocas pecavam no figurino: volitavam pelas praias com trajes de gente pobre, odor de periferia. Os anjos brasilienses esfalvavam-se cansados:"São tão poucos", lastimou-os Brenda Lúcia."É cidade-capital, sempre carente de anjo, um problema mundial", murmurou alguém, nem prestamos atenção já que a tevê mostrava os anjinhos aterrantes na cidade de São Paulo. Magotes do Ceará, Pernambuco e Alagoas. Sal-vador gerenciava seus querubins jesuítas. Resumindo, con-fusão. Não bastasse a tempestade e os milhões de falecidos, surgira a novidade dos anjinhos deslocados, oficiando as lides em cantos surpreendentes. Nem precisava buscar previsões em minha tia, lógico que um anjo negro cuspindo ordens em frente à Casa Branca acabaria mal."Deus é audacioso", comentou minha mãe com os olhos marejados, amedrontada de os homens tentarem algum mau-trato aos enviados divinos.Tentaram, claro. A tevê mostrou ao vivo. O presidente norte-americano endureceu o discurso. Nunca admitiria que povos alienígenas manchassem a soberania dos se-nhores do planeta:"Neste momento difícil, somente os anjos voam, os aviões que decolam não conseguem aterrissar, nós, do grupo G-8, as nações mais importantes, merecedoras da glória de escaparem ilesas, realizamos um meeting através da

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internet. Enquanto não concluímos um plano de salvamento, determinei às forças armadas atirar para matar. Nunca admitirei invasão ao nosso solo. Quando estes povos pobres apareciam murchos, de orelhas abaixadas, o vil rabo entre as pernas, fazíamos vista grossa. Afinal criavam lucro, trabalhavam por merreca. Mas um bando de estrangeiros querendo falar grosso? E em frente à minha casa? Sou o comandante-em-chefe, despacho-os para o inferno."O tom de ameaça azeda repetiu-se igualmente até em governos fracos, incapazes de expulsar as moscas da padaria. Com algumas exceções. O Brasil e a Argentina, aliados ao Uruguai, fundaram a Neotríplice-Aliança. Imputada a culpa da guerra do Paraguai à intrigante Inglaterra, o presidente brasileiro, cadeia de rádio e televisão, desculpou-se em nome dos três países:"Meus amigos, cometemos um erro histórico. Reconhecemos nossos pecados. Em atos de covardia, nós trucidamos vocês. Realmente, um desastre. Mas se vão quase dois séculos, nossa geração é outra. Aceitem nossos perdões. Desviem suas rotas e pousem no Reino Unido. Nós, pelo nosso lado, resolveremos o caso esquecendo Itaipu, largando de atazanar por causa dos brasiguaios..."Discurso interrompido em falha do protocolo, permitindo a um repórter melar a nova aliança com sugestão rasteira:"Vossa Excelência tem certeza de que os anjinhos paraguaios não são falsificados?"A excelência engasgou-se, esforçou-se na firmeza, mas seus nervos fracassaram:"Claro que tenho. Os órgãos de segurança da Neotríplice-Aliança garantem-lhes os antecedentes. Concluindo... Porra, como posso assegurar-me se não são robôs fabricados na Coréia ou em Taiwan? Sei tanto quanto vocês. O caos deste continente, emperrado desde sempre, enfim se materializou em realismo fantástico. Eu não entendo mais nada. Mortes, ventos, tempestade e de repente esta horda de seres desconhecidos, afirmando

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procedência de cunho celestial, e o fim do mundo, minha paciência acabou. Quero que os brasileiros, os argentinos, os uruguaios e esta penca imbecil de anjinhos paraguaios vão todos à merda. Estou renunciando."Seguraram a excelência, enfiaram-lhe na goela um remédio de pressão e, no rebote, calmantes. Permanecemos na curiosidade. A tevê não informou se o presidente acalmou-se ou renunciou de fato. Logo notícias mais frescas invadiram a telinha. Primeira vez na História em que as televisões do planeta uniram-se em pool.Privilégio merecido, o falante era o papa, ladainhando uma encíclica redigida aos tropeções, mas com o objetivo título In articulo mortis. Na ocasião da morte, explicou-nos cons-trangido enquanto exortava seu rebanho, e os rebanhos alheios, a encarar a verdade: chegara o apocalipse, cumpriam-se as profecias divulgadas há dois milênios por um excelso católico, a seqüência de eventos indicava em sangue e lágrimas que a santa Igreja de Roma agasalhava a razão.Meio arrivista, meio arrogante, completamente esquecido das agruras do passado, tantas mortes violentas em nome do Santo Deus, o pontífice, lendo diretamente do texto latino — noblesse oblige —, proclamou verdades insofismáveis:"Horresco referens, ou seja, lamento informar que o mundo chegou ao fim. Deo Gratias. É ótimo ver acabar o inferno rotineiro das complicações normais: ir ao banco, ao banheiro, à feira, ao supermercado, controlar o contrache-que, pagar contas, repagá-las, rever o cartão de crédito. Isto sem referirmos ao que dói mesmo na vida e a lista é interminável. Egoísmo, traições, injustiça, usurpações, mentiras e falsidades, coações, medo, desgostos, afrontas e desespero. Pela falta de saúde, pela falta de dinheiro, pela angústia diuturna de nos negarem respeito. Juntamente com o mundo evapora a covardia, emblema da nossa espécie. No fogo do apocalipse queimarão as

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canalhices, essência do ser humano independente do credo."Inspirara-se a santidade debaixo de sua mitra. Comoveu imensamente a todos os respirantes. Convenceu-nos, ipso facto, da astuta sabedoria de enviar ao beleléu o mundo e seus habitantes, ambos provas concretas de que nem Deus acerta a mão se a gente entra no meio:"Omnia mors aequat. Quero dizer, igualados pela morte desfrutaremos a tranqüilidade e a paz do Paraíso. Nunca mais enfermidades, nunca mais a mendicância, nunca mais fatalidades, torpes agressões morais. A eternidade acena com vivência de harmonia, sitie cura, sine die: sem hora e encucações. Lembrai-vos, nestes instantes de dolorosos tormentos, salus publica timor Domini, digo, o temor de Deus salvará o povo. Em horas de brutusfulmen, raios perdidos no espaço, rezemos e confiemos. Entreguemos nossas almas ao Pai, nosso criador, porque homo est animal bipes sine pennis..." Tropeçou o Santo Padre:"Homo est animal bipes sine pennis? O homem é um bípede implume?"E logo explodiu em cólera esquecido das câmeras, dos bilhões de assistentes — tola inutilidade de, exato no apocalipse, demitir um cidadão alegando justa causa:"Quem foi o imbecil que traduziu a encíclica? Expulsem-no do Vaticano e não lhe paguem um tostão. Com certeza é umbandista. Eu pego este desgraçado."O sorriso amarelo do cardeal camerlengo sobrepôs- se ao escorregão da irritação do papa. Alegando falha técnica na geração de imagens, o calmo reverendíssimo ditou para o público-alvo o endereço de um site:"www.articulomortis.com Católicos e não católicos que quiserem acessar podem entrar neste portal. Nele en-contrarão consolo e confissões virtuais, além de conselhos práticos para enfrentar a degola. Os senhores, homens modernos, conhecem as excelências da internet, substituta certeira de todas as emoções."

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Brenda Lúcia animou-se. Lutou uma eternidade com o provedor, com as linhas, com o excesso de acessos — a humanidade inteira percorria a mesma trilha. Finalmente conseguiu e invadiu o site, house organ eletrônico das empresas moderninhas. Além das fotos de sempre — muitas na contraluz, amador é um caso sério — e recursos multimídia, o portal ofertava textos em disparatadas línguas: do sânscrito ao português. Em versão tatibitate, como é de praxe. Entre a língua mal falada e aquela mal escrita alinhavavam-se linhas em dialeto estranho, talvez próximo ao galego, embora o autor da obra o classificasse de excelente português.Nascida com poucas luzes, emaranhado genético agravado pelo nome, Brenda Lúcia arrematou o único insigth brilhante de sua vida medíocre:"Como não percebemos? A internet era o cavalo amarelo, a irracionalidade, a peste devoradora da inteligência dos homens. Empacou em nossa cara e nós não vimos. Devorou-nos, suas vítimas, e nós ainda aplaudimos. Gente, nós somos a grande besta. Tanto castigo ainda é pouco, merecemos falecer."Mas a moda se instalara, não existia retorno. A família aglutinou-se em torno da maquininha, potente computador pertencente a Juliano, viciado nos bons tempos em amar pela internet. Como, nunca entendemos já que esta atividade exigia cheiro e formas, além de sombras, ruídos, sussurros, palpitações. Apesar do modo estranho, as trepadas virtuais pareciam prazerosas, Juliano ostentava um jeitinho alvissareiro. Conseqüência, ele afirmava, de alcançar o orgasmo sem danos para a saúde:"Livro-me dos riscos. Nem contaminação, nem paixão. Embora conheça casos de relações tão ardentes que ge-raram mal venéreo. Os de saúde curaram-se, quando passíveis de cura. Os de paixão fervilharam e desaguaram em rotina, o destino das paixões."Tanto tempo escoado, nem importava mais. Importava àquela hora confessar-nos com o papa através da grande

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rede. Excetuando tia Maria Alzira, todos nos redimimos narrando nossos horrores. Pensamentos, atos, palavras, maus desejos, bons desejos ou simplesmente desejos — na nossa religião qualquer vontade era crime. O perdão e a penitência chegaram via e-mail. Antes de iniciarmos as rezas protocolares selando absolvição, o premier de Israel, comboiado pelo pool, adentrou-se pela sala:"Senhoras e senhores, boa noite. Ou boa tarde. Ou bom dia pois ninguém neste planeta consegue saber as horas. Após escutar o papa que finge não saber, mas representa na Terra dois judeus de boa estirpe, alerto a humanidade que o mundo receberá Deus Pai e Deus Filho. Apesar da ironia, já que coube aos romanos a idéia de crucificar um deles, avisei ao Vaticano que abri nossas fronteiras às supremas divindades. Nossa casa é a casa deles. Meu governo compromete-se com a segurança de ambos. A mossad já entrou em estado de alerta máximo. Exigimos de outros povos o necessário respeito pois tanto o Pai quanto o Filho são cidadãos de Israel.Os pagãos, por gentileza, enfiem a viola no saco. Lançaremos mão de armas atômicas se alguém desrespeitá-Los. Ao menor sinal estranho, cairemos de porrada.Nem estouro de manada causaria mal maior. As outras religiões armaram o maior berreiro. Os sunitas e xiitas estabeleceram trégua em prol da unidade islâmica. Desancaram com o papa e o líder de Israel, os dois se vangloriando enquanto o ovo rolava na barriga da galinha. Rápidas conferências indicaram um velho rei, dinastia muçulmana enraizada no tempo, para retrucar a ambos — prepotentes, elitistas, convencidos e abusados, disparou a majestade, argumentando com o óbvio:"Alguém sabe com certeza que Deus aparecerá? Aconselho paciência. Precedendo o Indubitável, as montanhas andarão, já se passou com os Andes, e os homens se comportarão qual borboletas dispersas, exato nos comportamos. São as leis de nossa crença e nem por isto

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arrotamos que o Deus anunciado é de nossa pertencência. Até o Senhor chegar, reconhecemos apenas na brasileira Maria Alzira Alencar Albuquerque do Canto e. Silva a devida autoridade no referente à Hora. Fora as palavras dela, tudo mais é indagação."Do Tibete, o Dalai Lama concordou com os ismaelitas e apoiou minha tia, primeira a anunciar a barafunda reinante: "Convivemos com um monge de extrema piedade, parente próximo dela. A família é confiável, além de honesta e pia."Xintoístas e hinduístas reclamaram seu espaço e brilharam nos estúdios, espinafrando o Ocidente centrado na psicose de dominar o planeta até em temas de fé. Surgiram sobreviventes templários, devidamente escondidos nos fundos de Portugal, proclamando envaidecidos a volta da grande Ordem. Pena que Felipe, o Belo, autor do golpe sujo que massacrou a irmandade, não lograsse assistir ao valente ressurgir dos audazes Cavaleiros.Embora as conversões se contassem às toneladas, os ateus e agnósticos aferroaram-se à fé de não crer em coisa alguma e exigiram espaço no pool de televisões. Escolheram o porta-voz e mandaram seu recado. Os incréus, representados por um banqueiro suíço — a escolha oscilara entre ele e um colombiano, exportador de produtos de refino inigualável —, culparam os americanos, igualzinho aos ativistas dos velhos anos 1960. Terno e gravata Armani, suando muito dinheiro, o banqueiro suíço enfatizou o discurso:"Não vê quem não quer. A chuvarada, os raios, a arribada de anjos são efeitos especiais, macaquices made in USA, com certeza para filmes de ficção científica. Comprova tolice extrema acreditar em fantasmas, produtos da mente humana..."Não chegou a terminar, um súbito raio despedaçou- lhe a cabeça, horrorizando a platéia. Diante de tanto sangue, punhados de miolos grudados na câmera, minha mãe em-

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borcou desmaiada. Despertou-a a voz pausada do líder da Grã-Bretanha:"O Grupo dos Oito lamenta informar não compreender mais nada. A mente anglo-saxã tende ao cartesiano e o surrounding surrealism é um filme de Almodóvar. No entanto, asseguraremos a vida e a tranqüilidade de nossos concidadãos. Se a razão pertencer à senhora brasileira, arauto do fim do mundo, determinaremos ao Senhor que as nações do G-8 terão prioridade no processo de triagem. Por ordem alfabética, ressuscitaremos os mortos e permitiremos o julgamento dos vivos. Não nos resta outra escolha. Mas, ao menos, nossos pares manterão o seu bom trato. O resto do mundo dane-se, é nossa filosofia. Obrigado."A Comunidade Européia ameaçou reclamar, mas concluiu que os ingleses não pisoteavam a bola. Quem de fato merecia garantia seu lugar. Nesta altura a tevê já reunira críticos e organizava debates sobre os temas palpitantes. Especialistas em anjos, em trovões, carnificinas, em religiões diversas, em judeus e muçulmanos, em entraves jornalísticos, em premonições e santos, armamentos e heresias discutiam acalorados os rumos do armagedon. Até um velho erudito, considerado maluco, com mestrado e doutorado, versado no fim do mundo, emitiu opinião:"Vocês ainda não notaram que dona Maria Alzira é enviada de Deus? Um anjo solto na Terra comandando o destrambelho?"Resolveram ignorá-lo. O senil amalucado irritara os companheiros. Retrucou-o outro doutor, luminar em astrologia: "Imagina se Deus, supimpa em sapiências, escolheria um profeta com quadratura em Plutão, filha do Terceiro Mundo? Ainda por cima, mulher? Por favor, poupe-nos, o senhor é irreversível, doido de quatro costados. Seu signo é Sagitário?"Impossível, o consenso. Mesmo porque a turma, sofisticada finesse da inteligência terrena, quase se estraçalhou. Além das incongruências comuns quando

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sobram sábios, metade examinava a estética do apocalipse, enquanto a outra metade caía de pau na ética — apesar de achar belíssima a hora de esplendor:"Morrer assim é um luxo", explicou a autoridade em balangandãs e rendas, não à toa brasileiro, carnavalesco de fama. Sua escola ostentava a invejável honraria de sagrar-se campeã no derradeiro desfile.Unanimidade apenas contra tia Maria Alzira. O catedrático de Teologia Medieval da Universidade de Florença reduziu-a a pó:"Claro que é o apocalipse. Mas só uma subdesenvolvida anunciaria o fato com tamanha antecedência. E culpa exclusiva da sigimora Silva a extensão da tragédia. De tanto ouvi-la falar e babar o fim do mundo, o céu se viu obrigado a cumprir a previsão. Se fosse uma européia se armaria outro enredo. Européias são distintas, evitam implicar com os santos. Eu sabia, desde o descobrimento as insânias indicavam que o Brasil acabaria provocando o fim do mundo."A cada flash do susto, um douto cuspia normas.O connaisseur de Escrituras sofismava redundâncias quando o interromperam com outra nova pungente. Igualzinho à chegada, caprichando em discrição, os anjinhos iam embora.Decolavam, asas ao vento, e sumiam no horizonte. As autoridades já começavam a tecer considerações sobre este pousa-e-decola — não existia no mundo um Centro de Controle de Vôo capaz de organizar aquele excesso de rotas — quando um assombro absurdo lhes calou a voz. Lentamente, pelo mundo, os oceanos começaram a se afastar da costa.Impossível descrever a histeria reinante nas cidades litorâneas. Chutamos os luminares. O seletor de canais nos levou a Roterdã, Hong Kong, Kiel, Miami, Recife, Málaga e Tóquio, cidades e seus habitantes em espasmos de terror. Tentando entender melhor o tamanho do embaraço, focali-zamos o Rio — misericórdia, que horror. Carros abandona-

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dos nas avenidas da orla. Engarrafamento monstro nas estradas serranas. O bonde do Corcovado, apinhado de famílias, encalacrara nos trilhos. Descabelada, uma plêiade impedia- lhe a passagem, trotando desordenada rumo ao cume da montanha. Nos túneis abarrotados, multidões se sopapavam na ânsia de escapar. O bonde do Pão de Açúcar balançava abandonado, o vulgo amontoado no teto do teleférico. No topo de cada morro, os chefões do narcotráfico recepcionavam igualmente plebe e sociedade, ambas na ânsia aflita de fugir do afogamento. Inutilmente, o prefeito de colete salva-vidas esforçava-se em impor ordens, berrando ao megafone:"Nosso plano de emergência inclui refúgio sereno nas estações do metrô.""Nós não somos tatu", respondeu-lhe um camelô vendendo bóias de braço com lucro de mil por cento, apregoando a excelência e firmeza do produto, único eficiente contra a ducha apocalíptica.O estoque nababesco esgotou-se em minutos. Senhoras de fino trato, senhores de compostura, surfistas experientes, menininhas graciosas de enfeitar a Zona Sul circulavam com as boinhas, rosa, verdes, amarelinhas, na crença de flutuar. Em todos se refletiam os mesmos traços de medo pois o mar negava trégua. Afastava-se incomplacente, pro-metendo retornar com fúria destruidora.Jornalistas desistiram. Largaram o equipamento focando exatamente o espanto da maré quando o oceano passou além das ilhas Cagarras. Cenário apavorante. Peixes estrebuchantes, rochas inesperadas, carcaças enferrujadas de embarcações naufragadas, alguns corpos esquecidos pelos anjos-faxineiros e um som ameaçador. Surdo, constante, arrulhento, anunciando que as ondas cumpririam o destinado: elas iam, voltariam e engoliriam tudo.De repente, aconteceu. Precisamente no jeito descrito por minha tia. Uma parede de água de incomensurável altura armou-se no horizonte e partiu assobiante em direção à

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costa. Enregelei, vendo-a aproximar-se. Passou nos pri-meiros prédios, igual passava na areia de meus idos de menina, soçobrou pelos maçicos, gargarejou na Baixada e estourou rugindo nas fraldas da Serra do Mar de onde voltou com raiva, arrasando o arrasado, transformando a cidade em lagoa de despojos onde agora afundava a história da minha vida.In articulo mortis, afirmara o papa.Embora atarantada, minha mente refulgiu um enten-dimento lógico:"Estamos fritos."Desmaiei.

(...) O que vês, escreve em livro (...) e me voltei para ver a voz que falava comigo e vi sete candeeiros de

ouro e no meio dos sete candeeiros há um semelhante ao Filho do Homem (...) e seus cabelos eram brancos como a lã branca, e como a neve, (...)

e seu rosto resplandecia como o sol na sua força. Logo que eu o vi, caí ante a seus pés como morto (...) ele afirmou: não temas, eu sou o primeiro e o último e o vivente; e fui morto, mas eis aqui estou

eu vivo por séculos dos séculos, e tenho a chave da morte e do inferno.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 1, versículos 9-18)

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Frescuras e viadagens não constavam do roteiro relativo ao fim do mundo. Ninguém me prestou socorro. Despertei abandonada, a televisão chiando, a família evaporada. Na sala, além de mim somente um primo distante que, coitado, faleceu no susto da queda d'água. Passei por cima do corpo e saí rumo ao quintal, atraída pelos sons de celestial beleza e para averiguar se tia Maria Alzira sobrevivera a mais um afogamento. O último em que se metera quase matou minha avó. Pobre vovó, passara meses chorando, enfiada em sua cama, sem comer, sem tomar banho, apenas lamuriando a perda da caçulinha afogada em um riacho no interior de Minas.A verdade verdadeira é que no decurso da vida, tia Maria Alzira quase afogou-se oito vezes. O mais sério episódio ocorreu a caminho de Belo Horizonte, onde ela consultaria uma cartomante. Aportando destino, o veículo derrapou, despencou da ponte e gargarejou no rio — afundou sem complacência. Em seus jovens 20 anos, minha tia desa-pareceu. Minha avó desesperou-se. Quando enfim começou a conformar-se com o precoce passamento, tia Maria Alzira reapareceu desmemoriada e feliz, zanzando em Ouro Preto. Começava a se afamar qual esperta pitonisa, até importantes políticos escutavam-lhe os conselhos. Custou uma mão-de-obra comboiá-la à realidade. A imprensa andava assanhadíssima com o enredo fantástico de Iemanjá pessoalmente tê-la pescado de dentro d'água. Diariamente, em destaque, minha tia descrevia nos jornais os longos cabelos negros da deusa enfatiotada em vestes da cor-do-mar.Apesar de tratamentos variados — inclusive eletro- choque —, o milagre do restabelecimento realizou-se graças ao faxineiro do prédio. Aproveitando-se de seu ar songa-monga, o rapaz apalpou-a nos devidos lugares, provocando um sorriso maroto, além de longo suspiro: "Ai, Vanderbal, não tenta."O reconhecimento de Vanderbal e seus doces dotes táteis curou-a da maluquice. Tia Maria Alzira lembrou-se

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instantaneamente que Iemanjá era um hippie de cabelo emaranhado, usando uma bata azul — seres então em moda. Minha avó declarou-se eternamente agradecida aos talentos de Vanderbal e premiou-o com uma passagem de volta a Garanhuns, com ordens de jamais voltar ao Rio de Janeiro: "Não quero Maria Alzira metida com retirantes." Vanderbal pegou o primeiro ônibus, sem direito a defender-se. Recordando este episódio e as lágrimas de minha tia com a injustiça da mãe maltratando o cavalheiro que a salvara da demência, consegui alcançar o quintal. Constatei aliviada que tia Maria Alzira sobrevivera à nona ameaça de afogamento. Mas, desta vez, metera-se com entrantes, bastava olhar para o céu. Nem se minha avó quisesse — isto se viva fosse —, ela devolveria a fila de santidades a seus locais de origem. Do purgatório, garanto: ainda não inventaram transportes que ousem tamanho milagre.Tropeçando em desmaiados, em mortos, em estupefatos, calculando que o embalo prometia — mal estreara o evento e meia tropa esgotara fulminada em assombramentos —, encostei em minha tia que admirava em transe a faustosa procissão no palco do firmamento.Por favor, acreditem-me, é de fato este relato. Assisti com minhas vistas que a ex-Terra já comeu. Não à toa tanta gente desmaiara ou falecera, nem todos igual a mim deti-nham nervos de aço, coração pulsando firme, capaz de manter o ritmo diante do milagroso: a chegada em carne e osso de Deus Pai pessoalmente.Chegou e chegou marcante, esmagando em imponência, revestido em nobre pompa. São João nos alertara, prevendo com pertinência. Errou, mas errou por pouco. Coube a mim, uma coitada, o honroso privilégio de contar o fim do mundo. Construo por experiência a versão definitiva do Livro do apocalipse. Testei em meu próprio corpo as previsões do apóstolo e entrego a quem me segue a lição do armagedon, Espero ajudar a muitos, as dores guardam sentidos, parece ser marca humana só

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aprender na chibata. Se ao menos um vivente compreender a mensagem, já terá valido a pena.Os eventos seguem um tempo e agora importa apenas narrar o inenarrável. Apoiei-me em minha tia, esfreguei os olhos turvos e encarei o destino. Quase desmaiei de novo. No céu embruscado e cinza abriu-se um rasgão de luz. Lentamente o luzidio reforçou sua voltagem até o éter inteirinho brilhar qual teto de prata. Espalhados no horizonte, do mais remoto da Terra ao ápice da ástrea abóboda, anjos de nobre origem com as túnicas cingidas por cinturões de ouro assopravam as trombetas em hinos estonteantes. Nunca antes meus ouvidos acolheram sons tão puros, tão intensamente belos.De repente, caminhando como se o ar fosse sólido, surgiram as excelências. Um cordão interminável, bela heterodoxia. Fraternalmente ombreavam santos, espíritos, beatos, profetas, orixás e deuses. Brancos, negros e amarelos, cada qual com sua moda, vestimenta especial. Minha tia explicou-me, apontando Yansã:"Veja e compreenda. As reverências da Terra espalham-se no céu, um sinal seguro e firme de que o Deus anunciado é o Deus de qualquer fé. E Deus e somente Deus, o pai de seus muitos filhos, não importando em qual rito alguém Lhe prestou as honras."Passo a passo acompanhei o luxo da cerimônia. A fileira interminável de escolhidos do Senhor espalhou-se em meio círculo, ocupando o firmamento. Quem reparasse ve-ria São Francisco e suas aves chilreando com Vishnu. Uma dezena de sufis, o peito desnudo e magro, sorriam ouvindo histórias narradas por Scherazade. Madalena descansava, o braço apoiado em Marta. Xangô e o bispo Nestório nem notaram quando Bach, Beethoven e Brahms interromperam-lhes o caminho, atrasados e apressados para ocuparem lugar.Emocionei-me. Então, as santidades não se resumiam apenas àqueles de vida pia. Os feitores da beleza, luminares da ciência, homens e damas prendados que

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ofertaram as vidas em prol do progresso humano, engrossavam a comitiva, sagrados e coroados. Poetas, músicos, pintores, doutores e cientistas — Santo Deus, mas quem diria, enxerguei Pablo Picasso escutando curioso o debate que Max Weber não alçou manter em vida com a agudeza de Karl Marx. Em rodinha, animados, Camões, Dante e Camus. Michelangelo e Da Vinci matutavam, distraídos. Avicena e Albert Sabin debatiam com Hipócrates. Distante, meio emburrado, distinguia-se Van Gogh, e seu terno era amarelo, igual ele merecia.Meu peito inchou de orgulho ao notar os brasileiros. Além dos santos de praxe, os useiros de terreiros, reconheci a virtude de um mulato sereno: Machado de Assis. Esportistas havia às pencas e curiosos também, aqueles que de bobeira despacharam-se ao céu pela graça impertinente de uma bala perdida — uma lindeza, Jesus, tanta vaidade da pátria, solucei de emoção.Juliano avisou o retorno da tevê. Sobreviventes estações, nos pontos altos da Terra, transmitiam o rebuliço. Cor-remos alvoroçados, mas a imagem não mudava. Qualquer ponto do globo registrava cena igual à que víamos do sítio. Nenhuma leve mudança, sequer de perspectiva, atrapalhava o cenário. Mesmos anjos, mesmos santos, mesma luz onipresente. Tia Maria Alzira, de passagem pela sala, alertou-nos que o conforto, imagem ao vivo e em cores, terminaria em horas:"Interessante agora apenas as reações dos useiros em mandar. O resto, Deus planejou nos trinques."Planejara, sem dúvida. Cansados de apreciarmos a muda visão estática, voltamos para o quintal. Exatamente no instante em que no céu apontavam os 24 eleitos, ordenados desde sempre a rodear o Altíssimo. Os anjos, em revoada, traziam tronos de ouro e os colocavam no ar. Suspensos em coisa alguma, os tronos permaneciam. Devagar, seu ocupante desabrochava do nada e sentava majestoso. Reconheci Ceres, Dionísio, Íris, Zeus, Tupã,

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Cibele e Buda. Abraão, Davi e Moisés manifestavam orgulho pela invenção do Livro provocante da embrulhada:"A culpa cabe a João", escutei Moisés falar, abraçado a Abraão.Jesus, São Pedro e São Paulo honraram Tomás de Aquino concedendo-lhe assento. Maomé, Martinho Lutero, Calvino e Alan Kardec precediam Oxalá que se atrasou um tantinho. Encerrando os escolhidos, os quatro evangelistas, São João meio encolhido. Segundo tia Maria Alzira, ele se entristecia assistindo aos apocalipses:"É sensível e delicado. Sempre se emociona ao encenar sua história."Reforçaram-se as trombetas em som mavioso e puro enquanto anjinhos voavam, ajeitando cuidadosos os candeeiros dourados em torno de um grande trono enfeitado em pedrarias, em lua, em sol, em estrelas, cometas e maravilhas. Então, aconteceu. Surgiu Ele, o próprio Deus, precedido por arcanjos e um cordel de mulheres. Lindas, jovens, vaidosas, no vigor de cada raça. Levantaram-se os eleitos, ajoelharam-se os santos. Atirei-me ao chão, emocionada e tremendo, sem condições de encarar a presença do Divino.Com exceção de tia Maria Alzira, igualmente ajoelhada, repetindo os gloriosos, o resto da família imitou-me. Rosto colado na terra, ousei uma olhadela. Perdi o ar, o impulso, a força e a energia. Deus, em magnificência, cabelos brancos ao vento, ocupara sua cátedra envolta pelo arco-íris. A frente Dele nascera, artimanha milagrosa, um oceano de vidro bamboleante em ondas de refinado cristal. A Seus pés descansavam um leão, um novilho e uma águia. Isto é, se realmente aquilo configurasse animais e não erro de clonagem pois cada bicho ostentava seis asas e tantos pares de olhos que Juliano morreu. Coitado, tentou disfarçar o medo engatando na flauta um sambinha ultrapassado. Mas enfartou de assombro. Igual a ele, milhares.

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Nem nos coçamos com o passamento de Juliano. Sabíamos que breve os anjinhos faxineiros carregariam o corpo — tanto espanto e emoção, quem derramaria lágrimas pela morte de alguém? Nem tia Maria Alzira, triste mãe do falecido, manifestou nervosismo. Mandou afastar o corpo e seguiu em reverências. Acertou, outra vez. Tão logo ela se calou, Deus em tom trovejante instruiu São Miguel a iniciar o drama:"Não temais. Sou o primeiro e o último, o vivente e o que morreu. E tenho as chaves da morte e do inferno. Miguel, traga o livro."Primeira e única vez de escutarmos-Lhe a palavra. Até o final dos tempos — fora alguns suspiros de raiva, frutos da prepotência de quem com o pé na cova insistia em discutir ou contradizer-Lhe as ordens — o Senhor emudeceu. Miguel, Rafael e Gabriel, arcanjos mais graduados, serviram de porta-voz.Assim que ouviu o pedido, tia Maria Alzira levantou- se, alisou a saia e comandou a família de volta para a tevê:"O circo pegará fogo. Na Terra e no Céu. Lá porque perderam o livro, acontece toda vez que Senhor destrói o mundo. Aqui porque as autoridades tentarão mostrar poder. Vamos, cambada. Depois é miséria. A distração finda agora."Muito esperta, minha tia. Novamente, foi na mosca. Mal descansamos na sala, chegou-nos o grande brado de um anjo enlouquecido:"Meu Deus, cadê o livro?"Depois, claro, desculpou-se, reverente ante o trono:"Por favor, perdoe-me. Este meu Deus exclamado é figura de linguagem, não falava com o Senhor. Imagina, que bobagem."

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(...) E vi um anjo forte que dizia a um grande brado: quem é digno de abrir o livro, e de

desatar seus selos.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 5, versículo 2)

Desmanchou-lhe os bons modos a gritaria cósmica. Anjos, arcanjos e santos, querubins e serafins se esgoelavam sem modos, perguntando pelo livro, um acusando o outro de pouco caso nas lides. Cada qual berrava mais, instalou-se o caos celeste. Tia Maria Alzira suspirou resignada:"Jesus, eles não aprendem. Entra apocalipse, sai apo-calipse, toda vez é a mesma coisa. Esta confusão do livro parece não acabar.""Como você sabe disto?", imprensei minha tia. Abismava-me constatando que em termos de fim do mundo ela soprava detalhes. "Eu li. Ora, vá tratar de sua vida. Vamos, aumente a televisão, o presidente dos Estados Unidos reclama de alguma coisa."Assim escapou-me a chance de desvendar minha tia pois normal, tal qual as tias, ela não podia ser. Seu destino encaroçado e agora a confiança ante a bagunça reinante indicavam outro caminho:"Você por acaso é santa?""Menina, pára de aborrecer. Aumenta a televisão."A curiosidade em decifrá-la diluiu-se na ousadia do imperador da Terra desafiando Deus. Desviei minha atenção para o norte-americano. Até onde entendia, o potentado exigia que o Senhor lhe apresentasse divinas credenciais. Prometeu acelerar as provas de autenticidade dos papéis divinais, garantindo que os testes realizar-se-iam em nobre laboratório escondido no Pentágono:"Nossos Ph.Ds. garantem resultados de precisão cirúrgica."Cirurgia neurológica, acrescentou, tentando afastar ilações entre os testes e a Air Force que em escaramuças recentes

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bombardeara a Disneyworld, embora o precípuo alvo fosse o Oriente Médio. Irado, o presidente norte-americano esqueceu a educação. Cuspiu e socou a mesa, ameaçando os santos:"Se os senhores desconhecem que invadir espaço aéreo configura grave crime, aviso-os que não aceito desafios. Quem garante que a visão apresentada no cosmos é de Deus e de Seus santos? Quem me assegura que islâmicos, em fúria ensandecida, não inventaram a técnica de hipnotizar o mundo? Enquanto este cidadão não provar por A + B incorporar o meu Deus dos ofícios de domingo, concedo-lhe só três horas. Depois, mando atear fogo."Absolutamente, protestou o papa irado falando de dedo em riste do púlpito do Vaticano. Mesmo reconhecendo o poder e a importância do líder americano, o papa advertiu-o que o sagrado privilégio de queimar inoportunos pertencia, em exclusivo, à santa Igreja Católica, especialista no assunto:"Onde já se viu um batista, tremendo pé-de-chinelo em assuntos clericais, tentar se apropriar de tecnologia de-senvolvida pelos pastores romanos? Repudio a ameaça. Bombardear pode, queimar é de nossa alçada. Disto não abro mão. Concordo com o presidente, lidamos com um caso estranho. Se este senhor é Deus, com certeza não é católico. Assisti à procissão e quase caí fulminado. Imagina se meu Deus andaria com um herético, igual ao bispo Nestório. Ou se misturaria a divindades pagãs, a artistas, a desordeiros, a cientistas ateus que explicaram a vida através da matemática. Eu esperava um cordeiro, um Jesus crucificado, alguém incapaz de força ou mesmo de agilidade. Jamais alguém democrático às voltas e intimidades com outras religiões. Aconselho meu rebanho a manter em banho-maria a derradeira encíclica. In articulo mortis?, não sei. Prudens in loquendo est tardus. Quero dizer, em boca fechada não entra mosca. Aguardemos, é mais prudente."

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Esperar, nem morto, avisou o primeiro-ministro britânico preocupado com as horas:"Não aceitamos atrasos. Haja vista a competência com que destruímos a África. Tudo no tempo certo, exata medida exata. Até hoje aqueles negros carregam o pesado fardo da inglesa precisão. Seja ou não seja anglicana, esta en-tidade é Deus. Ou alguém esqueceu que a Inglaterra afun-dou e eu falo de um navio em nome de mais ninguém? Para nós, da Grã-Bretanha, o mundo já acabou. Rogo que se encontre o livro e se comece a contagem. Como instruiu o G-8, os milionários primeiro. Requeremos o bom trato dispensável a outros povos: é questão de vício."Protestou o americano à proposta do inglês. Intrometeu-se o alemão apoiando o americano. O francês articulou-se em grande praticidade pois suas terras encontravam-se mergulhadas dentro d'água:"Merde, merde, merde, será que ninguém enxerga? Me-tade do mundo naufragou, inclusive territórios franceses. Sumiram a Bélgica, a Holanda, os povos escandinavos, boa parte da Alemanha e da Pensínsula Ibérica, o Japão, ilhas pacíficas, o litoral brasileiro. A Patagônia e seu povo afogaram-se, consternados. Nada resta das Antilhas. Gente, presta atenção, não podemos discutir se o homem é Deus ou não. O fato incontestável é que ele acabou com o mundo. Ou, ao menos, parte dele. Deixemo-lo falar e apresentar propostas. Quem sabe nós conseguimos resgatar alguma coisa?"Cada qual se expressava em seu próprio idioma, sem tradução simultânea, como a televisão agia nas transmissões normais. Entendeu quem entendia e tia Maria Alzira colocou-se entre os eleitos. Até da fala do papa, emitida em latim, ela captou as vírgulas. Saiu-se com um comentário que me redimiu as dúvidas. Alguma ela escondia. Somente um demiurgo, capaz de flanar no tempo, lembraria àquela hora de um Thiranossauro Rex:"Nossa, quem diria, os dinossauros deram menos trabalho, apesar dos muitos meses esperando pelo livro, fuçado por

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Rafael em canto abandonado de uma nuvem de segunda. Agora, olha o forrobodó, todos se esgoleando e bostejando sandices. Só absolvo o francês, este agiu com senso prático."Senso prático inútil. A própria tia Maria Alzira confessou-se, distraída:"Deus me avisou. Este apocalipse destina-se a marcar época uma vez que o ser humano, erro divino de cálculo, estreou fazendo merda e na merda ia morrer. Assumimos nossa culpa. O protótipo desandou, não pudemos controlá-lo e armou-se a desgraceira, danou-se a espécie inteira, das já viventes na Terra seguramente a pior. Tentamos consertar, bem que tentamos. Enviamos muitos anjos na inútil investida de ajeitar os mortais. Ghandi, pobre, esforçou-se, quase faleceu de fome, mostrou resultado zero. Para aprimorar a raça, não nos sobrou opção além do apocalipse. Mas o povo é encruado, não entende coisa alguma. Em 24 horas obramos vários milagres. E ainda há quem discuta se meu Deus é Deus ou não?"Escutei estas palavras, a prova de sua áurea. Depois, a imprensaria. Agora me concentrava nas imagens da tevê — sem diretor de imagem, sem jornalista atuando, sem sequer um produtor —, mas cumprindo sua sina de revelar epopéias. Os líderes mundiais insultavam-se na tela, cada qual com exigências impossíveis de se crer. O premier do Canadá demitiu-se do cargo disposto a morrer sorrindo. Ele, a esposa e a amante, os três em ternura idílica em romântico chalé nas Elevações Rochosas. O papa ditou às pressas uma nova e curta encíclica — Quid est veritas, literalmente, Que é a verdade — e um novo tradutor repudiou este Deus de hábitos desconcertantes, acompanhado de tipos de má fama rotineira. A encíclica terminava exortando os fiéis a sequer olhar o céu.Falando aos carneirinhos da janela de seu quarto, o pontífice caprichou. Envolveu-se em raro manto, buscou seu melhor cajado. Uma preciosa mitra, ornada em brilhante e ouro, coroava-lhe os cabelos. Cardeais o

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rodeavam, sérios e adjutórios. Todos enfarpelados em puríssima seda púrpura, aplaudindo o speech:"Não será o Vaticano, com dois mil anos de praia, que cairá na tramóia de comprar vapillos pro lana. Ou seja, gato por lebre. Sob pena de excomunhão aviso aos católicos romanos que este trapezista insano, dependurado no céu, não pertence à nossa Igreja e de fato não é Deus. Roma locuta, causa finita. Traduzindo: papo encerrado."O fogo cuidou do resto. Um relâmpago seco e firme atingiu certeiro a mitra. Desmilinguiu-se o papa. Os cardeais bandearam, fugindo horrorizados, esbarrando-se nas escadas, tremelicantes de espanto. A tevê impessoal focou a tranqüilidade do arcanjo São Miguel soprando a própria espada, ainda incandescente pela chama emitida, e comentando faceiro com o colega Rafael:"Falando na língua deles: Qui gladioferit, gladio perit. Ou no jeito abusado de utilizar outras línguas, quem com ferro fere, com ferro será ferido. Despachei-o comme il faut. Com fogo, no bom estilo católico."Fés de todo o planeta, seitas de todas as cores, crenças de todas as raças caíram em estado de choque e desandaram a brigar. Cada um argumentando que o Deus bom e amoroso pertencia aos próprios dogmas e o Deus surpreendente, equilibrado nas nuvens, à fé dos ignaros. Movidos por devoção e pelo amor piedoso todos mataram todos. Como aliás é costume e uso religioso.Nesta altura o presidente da nação americana lançou o seu ultimato. Fosse o assombro o que fosse, de hipnose coletiva a apocalipse de fato, o fato é que extrapolavam. Abusavam do direito de turvar-lhe o galinheiro. Nunca antes o planeta vivera tal quiprocó. Sendo ele o poderoso, supremacia da raça, obrigavam-lhe os costumes a finalmente intervir.Em gesto humanitário decolou no Air Force One e mandou tocar em frente, diretamente ao Altíssimo pois um Deus fala com o outro. Tudo se acalmaria, nem que bombas

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nucleares se tornassem necessárias. Antes de embarcar, expressão preocupada, manifestou sua meta:"É a última tentativa. Metade da humanidade morreu neste enfrentamento. Em respeito aos irmãos aflitos, modifiquei minha agenda e posso receber Deus. Falar-Lhe-ei com a franqueza inerente ao caráter de meu povo americano. Do Norte, claro. Não me refiro aos latinos, esta é outra praga, quase outro fim do mundo. Mas voltando ao que interessa. Exigirei do Senhor Seu retorno ao paraíso. Nossa pilha de armamentos, nossos tanques voadores, nossos aviões anfíbios, nossas bombas adestradas, nossa competência atômica Lhe inspirarão respeito. Garanto que em poucas horas a encrenca acabará."O mundo testemunhou: quanto mais o One voava, mais se afastava do rumo. Subiu, desceu, subiu de novo, volteou e embicou. O repertório inteirinho de manobras radicais, o piloto executou. Nem de longe aproximou-se de algum sobrenatural. Os anjinhos gargalharam, imitando com as asas as asas do grande jato, ecoando com as vozes o ruído das turbinas. Voando em esquadrilha no vácuo da aeronave, debocharam arreliados do digníssimo a bordo. Esbaldaram- se, os meninos. Armaram imenso recreio sob as vistas complacentes de arcanjos e divindades preocupados apenas que eles não se ferissem — garotada é tudo igual, sempre inventa estripulia.Durou horas, muitas horas. Quando enfim zerou o combustível, surgiu na televisão a última imagem pública do imperador da Terra. Com a barba por fazer, cabeleira desgrenhada, a suprema autoridade da nação americana pronunciou o impensado. Que horror, comentou tia Maria Alzira, calma e atentamente tirando o esmalte das unhas:"Desde sempre sabíamos que o fim deste planeta se concentrava na arrogância dos Estados Unidos. Poder de-mais, dinheiro demais, armamento demais, orgulho demais. Gente assim não cede nunca. O Senhor simplesmente marcou o dia. O resto deixou rolar na certeza absoluta de que os homens se matariam ao

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comprovar a derrota deste planetinha besta, um asteróide de quinta escondido no espaço."Dito e feito. A bordo do Air Force One, incapaz de aterrar igual avião da plebe, o senhor dono do mundo mandou destruir o mundo. Um discurso emocionado exortou os americanos a suportar a intempérie:"Esta desgraça é em defesa da nação. Desconheço o inimigo, mas pelo visto é potente. Antes que acabe conosco, acabaremos com ele. Determinei ao Pentágono que ative o plano Mortis. Ou seja, um bombadeio maciço de ogivas nucleares. Parabéns aos bombmen, ao menos ficarão vivos. Ofereço-me em holocausto, é um preço baratinho pelo muito que mandei, o muito que mando agora. Virão tempos difíceis. Suplico a meu povo para não esmorecer, um dia renasceremos com a mesma força e poder. Senhores, detonem as bombas."Espantada com o discurso, tia Maria Alzira levou as mãos à cabeça:"Deus nos livre, este homem é doido. Será que ele imagina que toda esta mão-de-obra é para refazer igual? Não vim para perder tempo."Não consegui responder, olhos postos na tevê, sem piscar de estonteada. Nem sei quem usou as câmeras. Pelo ângulo, algum arcanjo. Mas a telinha mostrou-nos os nichos abrindo as portas e os imensos foguetes brotando qual cogumelos. Rumo leste cruzaram o espaço, levando o bojo apinhado de explosão e de morte. Do outro lado do mundo, outras nações responderam na proporção do ataque. Mais ogivas nucleares cruzaram o firmamento, desta vez em rumo oeste.Começou o armagedon.

(...) E ouvi o número dos que foram as-sinalados, que eram 144 mil assinalados de todas as tribos dos filhos de Israel; da tribo de Judá, 12 mil assinalados; da tribo

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de Rúben, 12 mil assinalados; da tribo de Gad, 12 mil assinalados; da tribo de Aser, 12 mil assinalados; da tribo de Manasses, 12 mil assinalados; da tribo de Neftali, 12

mil assinalados; da tribo de Simeon, 12 mil assinalados; da tribo de Levi, 12 mil

assinalados; da tribo de Issacar, 12 mil assinalados; da tribo de Zabulon, 12 mil

assinalados; da tribo de José, 12 mil assinalados; da tribo de Benjamim, 12 mil assinalados (...) inumerável multidão de outros marcados (...) que vieram de uma grande tribulação e lavaram suas roupas

no sangue do Cordeiro (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 7, versículos 4-8,14)

A Batalha Final e Outras Novas

(...) e seduzirá as nações que estão nos quatro ângulos da Terra, a Gog, a Magog, e as

congregará para dar batalha, cujo número é como a areia do mar.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 20, versículo 7)

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As televisões saíram, definitivamente do ar. Relato a partir de agora o que ouvi de Baltazar, apesar de o anjinho manter-se assoberbado por conta da derradeira guerra. Uma tarde apareceu — magro, aguado, um tanto anêmico — e se aboletou na cerca, descrevendo o cataclismo fatal do Hemisfério Norte:"Custou-nos um suadouro reunir todos os corpos. Isto é, os que sobraram pois grande parte das gentes volatizou em explosões. Nem gosto de pensar na hora determinada para a ressurreição. Já pensaram a encrenca? Juntar montes de cinzas, separá-las, numerá-las para evitarmos o risco de criar um novo ser sem passado e sem pecado, sequer sem merecimentos?"Na angústia do anjinho conheci a honraria de nascer e residir ao sul do Equador, parte do mundo poupada do desastre encadeado pelo norte-americano, agindo no pressuposto de derrotar o Senhor com detonações atômicas. Fracassou neste intento e arrasou com a casa. A dele e a de milhões, viventes habituados ao conforto luxuoso de morar no andar de cima. Abanando-se na cerca, Baltazar nos relatou os extremos alcançados:"Vocês não calculam. Nem nós, no apocalipse, armaríamos pior. Os humanos inverteram os prognósticos. O cavalinho vermelho, representação da guerra, segundo em ordem de entrada, galopou antes de todos. Até do cavalo branco, atestado de esperança à humanidade inteira. Claro, o cavalo branco recolheu-se assustadiço e continua empacado, recusando desfilar. Também, não é para menos. Ficamos pasmos com a agressividade. Explosões dantescas, o fogo lambendo tudo, milhões ou bilhões de mortos. Os raros sobreviventes apresentavam-se em estado da pior conservação. Nem andar conseguiam. E certo, morreriam. Para isto vim aqui. Mas precisavam apressar-se, matar-se daquele jeito? Olha, Maria Alzira, já participei de muitos finais de muitos mundos. Igual a este,

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nenhum. Bem que nos avisaram tratar-se do encerramento de um submundo mesquinho."

(...) E vi um cavalo branco, e o que estava montado sobre ele tinha um arco, e lhe foi dada

uma coroa e saiu vitorioso para vencer (...)

E saiu outro cavalo vermelho. E foi dado poder ao que estava montado sobre ele, para que

tirasse a paz de cima da Terra, e foi-lhe dada uma grande espada.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 6, versículos 1 e 2; capítulo 4, versículos 1 e 4)

Minha tia suspirou, acariciou o anjo e relatou as novas acontecidas no sítio, um oásis de milagre solto no apoca-lipse. Lá ao menos se comia, dormia, tomava-se banho."Como Deus determinou", interrompeu Baltazar."Sim, eu sei, precisávamos de alguém disposto ao de-poimento, escolhi minha sobrinha", explicou minha tia en-quanto detalhava as ocorrências domésticas desde a primeira explosão, tanto e tanto repetida que repercutiu nas serras do antigo estado do Rio:"Aqui virou hospício. Se piorasse, nem o tal depoimento alcançaria arranjar. Só sabe do apocalipse quem o carrega nas costas. Cada vez aprendo mais."Arrazoava-se minha tia. O nosso cotidiano virou de ponta-cabeça sem chances de revirar. Nuvens negras taparam a visão belíssima do Senhor e seus santos durante longo período. Caiu a temperatura, as verduras não brotaram, espalhou-se poeira cinza sobre toda a natureza. O imobilismo da morte congelou as ilusões. O ar pesado, difícil de respirar, recomeçou a colheita. Um a um partiram todos. Restamos somente quatro: minha tia, Brenda Lúcia,

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o agrônomo marido — aliás, fosse bendito, agiu com utilidade, inventando verduras no tronco do mamoeiro — e eu.Sofremos o inconcebível. Ignoramos as causas de tamanho desconforto: se as explosões atômicas ou a ira do Senhor. O fato é que, volta e meia, caía uma tempestade. Raios diluvianos, pedras incandescentes que queimaram nossa horta, esturricaram o pomar, esburacaram o telhado, esmagaram idiotas que por azar ou descuido se plantassem no caminho. Entre eles, Felipe Augusto, meu gato de estimação, que partiu sem um miado. Simplesmente esborrachou-se após um meteorito desabar-lhe na cabeça.Quando a chuva serenava, sacudia terremotos e a terra exalava terrível cheiro de enxofre, autor de sufocamentos de fatal perversidade. Minha mãe morreu assim. Omitirei os detalhes. Discuti com minha tia, reclamei do pormenor de matar seres humanos igual se matava peixe — há maneiras e maneiras, esta me soou estranha, cruel demais a meu gosto. Após tanto acontecido, referia-me à minha tia como parte dos celestes. Já não me restavam dúvidas que, no evento apocalíptico, tia Maria Alzira detinha parte atuante. Às vezes, determinante:"A tia não enxerga o que faz? Matou os próprios netos como se mata barata?""Você em algum momento, a vida correndo frouxa, pensou na dor dos peixinhos, na humilhação das baratas? Também são seres viventes.""Ora, tia Maria Alzira, são bichos sem sentimentos, sem alma, sem pensamentos.""Saiba que as baratas, entes sofisticados, pertencem às raras espécies que ainda ficarão. Sofrem há bilhões de anos e contudo permanecem. Salvaram-se do apocalipse destinado aos dinossauros. Salvaram e sobreviveram. Só porque você as considera vis insetos nojentos não merecem o esmigalhamento, vício mau entre os humanos. Contudo, gentis baratas, elas jamais reclamaram. Sua

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opinião, minha linda, é por demais escolástica. Aprenda uma coisa: o belo nem sempre é bom. E vice-versa."Perdia os argumentos pois para mim escolástica não era a filosofia que Santo Tomás inventou, misturando na panela as idéias de Aristóteles com as de sábios islâmicos e usan-do de tempero preceitos da fé católica. Só conhecia a Escolástica que lidou de faxineira na minha casa materna, nos bons tempos em que o mundo insistia em respirar. Todo dia um dia novo, carregado de belezas — eta, mundinho bom. Nestes idos a Escolástica — falo da empregada, não me reporto ao santo — primava pelo bom gosto, o acerto, a disciplina, apesar do jeito sonso de volta e meia esconder os objetos domésticos. Detestava seu jeitinho de explicar paradeiros apelando à razão:"Raciocina que aparece. A função da cabeça não é separar orelhas. Heart and mind, minha princesa. Acredite no objeto que ele surgirá à frente."Engoli mais estes dramas — a morte de minha mãe e a lembrança de Escolástica —, e o céu seguiu em frente com o apoio de tia Maria Alzira capaz de aplicar o rótulo de fenômeno natural a qualquer evento novo, inclusive os mais terríveis, de perfil horripilante."Vocês armaram pior", encerrava minha tia se acaso eu resmungava.Como nada em qualquer vida escapole da rotina, também o apocalipse aderiu ao usual das emanações diárias de ácido sulfúrico. Protegíamo-nos com leite, carvão, pano limpo, um lenço encharcado de água na altura do nariz. Nenhum método funcionou. Morreu a família inteira, além de seus convidados, a turma capturada defronte da residência tão logo espoucou o drama. Quem restou, restou doente, os pulmões esburacados, cuspindo a própria traquéia — menos minha tia, esbanjante de saúde.Salvamo-nos de pura sorte, explicou-nos Baltazar que arribou uma tarde excitado e alvissareiro, alvoroçando as asas, parecia um beija-flor. Tão mimoso, coitadinho, voejava excitado, aflito com a novidade. Findou por se

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enganchar no arame do jardim. Corremos a socorrê-lo e de longe escutamos a notícia ansiada: o livro de ocorrências, quem fizera o que com quem, essencial instrumento à destinação humana, finalmente aparecera:"Alguém o largou à toa no teto do Vaticano. Com certeza, algum querubim cristão-novo. Mas agora o que importa?"Realmente não importava se junto com o livro, não evaporasse a chave capaz de o destrancar. Ou seja, estaca zero. Baltazar desanimou. Mas recuperou as cores — en-quanto nos assustávamos — ao notar o céu se abrindo e de novo ressurgindo a visão celestial do Senhor e seus eleitos. Adiantado no palco, o arcanjo São Miguel anunciava aos brados uma decisão histórica:"Este é o último apocalipse em que usamos papel e lápis. Objetos ultrapassados, simplesmente uma pobreza. Daqui para a frente é era tecnológica. Vamos informatizar a rotina das pessoas, no próximo apocalipse trabalharemos em bytes. Ufa, fazia-se tempo. Só pela maravilha da exclusão do percalço de, em todo final de mundo, nos esmurrarmos às tontas catando o maldito livro, anunciamos solenes que Bill Gates vai para o céu. Decisão que absolutamente não significa nossa opção pelos produtos Microsoft. Existem outras empresas, testaremos todas, além de realizarmos algumas auditorias. Mas pela idéia brilhante de tornar o ser humano mais rápido e imbecil, Bill Gates merece a glória de entrar no Paraíso."Bill Gates sorriu discreto. Na verdade, merecia. Mudou o pensar humano. Para o bem ou para o mal, só o tempo nos diria, se algum tempo restasse. Mas algo indiscutível, ve-locidade instantânea de organizar idéias por um preço baratinho, qualquer zé-mané à toa comprava computador, nós devíamos a ele. Idéias arquivadas não primando em inteligência, não se lhe imputava culpa. Culpa cabia àqueles capazes de confundir o veloz com o importante. Vimos o americano ascender ao paraíso carregando um nailtop, objeto moderníssimo: 100 mil gigas de memória no tamanho de uma unha de neném recém-nascido.

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"Camarada porreta, dará as primeiras aulas", anunciou tia Maria Alzira, orgulhosa com os avanços na esfera celestial. Como se rezasse um terço, apenas murmurejando, comentou consigo mesma e eu ouvi cada sílaba:"Se retornar algum dia, voltarei com um nailtop ou qualquer substituto. Receberei mais respeitos. Os terráqueos idolatram quem necessita de máquinas para juntar A com B. Meu Deus, que povinho estranho."Resolvido o entrave de santificar Bill Gates, voltou- se ao drama da chave, obstáculo transposto por um sábio português. Sorte ou bênção divina, ele estava na Suíça no naufrágio lusitano. Portanto, claro, salvou-se. Exatamente na hora arrombava cofres-fortes, profissão exercida legal e decentemente com metodologia própria, desenvolvida em Lisboa.O início do esquema, infalível em destrancar o trancado pelo mundo, nascera na mente ágil de um ancestral ilustre que, em 1o de novembro de 1755, inaugurou o sistema na tentativa frutífera de abrir a porta enguiçada do santo Convento do Carmo. Azares do destino, o gajo abriu a por-ta, mas armou um terremoto de proporções gigantescas."As santidades entendam, ainda não conhecíamos os bons detonadores. Acabamos com Lisboa, não sobrou reles ruinha. Uma pena, uma tristeza, cidade tão bonitinha que Pombal reconstruiu lá pela cachola dele, gostava mais como antes. Ora, pois..."Interrompeu-lhe um arcanjo, solicitando a fineza de o cristão explicar como abriria o livro sem destroçá-lo em pedaços pois quem destranca uma porta, destruindo uma cidade, não inspira confiança. Sacando um notebook, o homem tripudiou. Mostrou contas, esquemas raros, mágicas equações. Enfim, a glória da lógica. Convenceu as entidades que lhe entregaram o livro com a severa advertência de trabalhar com cautela pois ali se escondiam, trancados há milhões de anos, alguns cavalos selvagens.

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Manuseando massinhas, ele destravou o livro sem machucar uma vírgula, um simples ponto final — eficiência perfeita. O fato de lastimância residiu na liberdade do eqüino negro, representante da fome que comeria o planeta. Pisado e escoiceado faleceu o português. Trapalhada resolvida na canonização simultânea. Exalou o último suspiro, ressuscitou entre os santos. De modo que nunca soube de seu súbito passamento. Até o final dos tempos, o luso se acreditou um feliz abençoado, transportado para o Éden pela competência técnica e finura científica — encanto de português, os arcanjos indicaram-no protetor de adestradores em civilização futura, predestinada a surgir.Eis que revelado o livro, anunciou-se o momento de conferir as contas e de marcar os eleitos. Tia Maria Alzira explicou-nos cruamente que ninguém se animasse com salvação instantânea, como se faz leite em pó. Incluindo as bilhões de almas residentes no planeta desde o início do mundo. São João determinara quantidades ínfimas predestinadas à glória. Além de uma multidão de qualquer credo ou raça, sobrava uma mixaria: 144 mil almas da tribo de Israel e outras 144 mil de várias tribos menores. Resumindo, um escândalo, falta de organização, apontei à minha tia:"Injustiça, basearam estes cálculos sobre a população do primeiro ano mil. Pelo jeito só vai para o céu quem mora no Oriente Médio. Vocês nos acusam de tantas coisas, mas não podíamos acertar. Nascemos condenados, a alma já conhecendo a destinação às chamas. Imaginem, praticamente o mundo inteiro baixará ao inferno. Com esta superlotação não existirá caldeira capaz de funcionar. Ocorrerão arruaças, insolência e rebeldias. Satanás, provavelmente, graduou-se na Febem para lidar com o problema. Não contem com meu apoio.""Nem com seu apoio, nem com sua opinião, Deus não precisa disto, Ele sabe com quem lida", encerrou tia Maria

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Alzira, defendendo a justeza e a pureza das contas. Pelos cálculos dela, São João marcou na bucha:"Será que alguém pensa que fidelidade é fácil? Sobra facilidade em amar a Deus e aos homens? Em praticar a justiça, a bondade, a caridade? Em discursar a verdade, mesmo ela preterindo nossos interesses próprios? Cultivar dignidade em qualquer situação? Em honrar o semelhante? Ignorar preconceitos? Agir com ajusta pureza de toda religião, pregado- ras todas elas de se amar os irmãos como se ama a si mesmo — e nestes irmãos se incluem até os mais deserdados? Espanta-me seu espanto. As fés variam nas formas, mas o cerne de todas é o amor. Vocês andaram na Terra ocupados com os detalhes e sem cuidar da essência. Pregaram mais que agiram. Acredite, minha filha, após os milhões de séculos são mesmo gatos pingados os dignos de salvação. As contas são generosas. Dependesse de meu gosto, salvaria menos gente."Baltazar, indicado para marcar no sítio os destinados à glória, concordou com minha tia, acrescentando pavores. Entre outros que São Pedro, renomado especialista em leitura transversal, técnica dinâmica de acelerar processos, quase desmaiou de susto com o tenebroso anotado. Pelos mais fúteis motivos, até em nome de Deus, o homem se especializara em matar e trucidar, apelando para técnicas de rudeza e perversão. Em nível doméstico, versão suavizada, o drama se repetia: famílias se massacravam em guerrilha extenuante:"Concordo com sua tia. Vocês armaram um fiasco e reconhecem a lambança. Tanto que em todas as línguas rola o mesmo ditado com poucas variações: 'De boas intenções, o inferno está cheio.'"Nem pensar em discutir com um anjo e um fenômeno. Aprendi no apocalipse, santos não cedem nunca e não existe argumento capaz de os demover. Se nós somos um fracasso, o céu cisma em teimosia. Portanto, calei a boca e engoli a revolta. Esplêndida decisão. Baltazar na mesma hora sapecou-me o carimbo do destino purgatório, com

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ordens de relatar o sofrido e assistido. Não esmoreço na lida. Todo dia, o dia inteiro, escrevinho sem parar. Não por amor às letras, motivo dos escritores, os reais e os nem tanto. Escrevo de aterração — sabe-se lá se o anjo, descobrindo-me parada, me chuta para o inferno? Quero não, quero esperança; eu quero é ver minha tia, descansar no Paraíso e, quem sabe, transformar-me na primeira escritora capaz de enviar meus livros diretamente do além, sem o auxílio de médiuns.Marcar os eleitos do sítio resolveu-se em minutos. Apesar das trapalhadas, recusas de Brenda Lúcia, que irritou Baltazar ao ponto da agressão. Acabou como narrei, minha prima despachada por uma estrelada na testa. Menos uma. Sobramos eu, minha tia e o tal do marido agrônomo que, naquela altura da vida, andava experimentando enxertar semente de abóbora em alguns raros tomateiros, tentando criar um tomate gigantesco, rico em vitamina C, capaz de matar a fome quando a comida faltasse. E não é que conseguiu? Serviço de minha tia, penalizada com o genro:"Pedi a quem de direito que liberasse o milagre. No mundo a espoucar existirão alimentos tal e qual ele fabrica. Já imaginou o tamanho da salada? Vamos redimensionar as alfaces, as rúculas, os agriões. Tudo em homenagem a ele.""Quem diria, minha tia, nepotismo celestial?""Você está meio amarga, isto se chama afeto. Exercito a humildade de doar minha alegria. Ele amou a minha filha, amo-o por este amor."Nepotismo ou afeto, o fato é que o tomate, jeito e bossa de abóbora — batizado tomatóbora por artes de Baltazar —, alimentou muita gente no final do apocalipse. Daqui onde vivo agora, noto que as grandes redes de cadeiafast-food adoraram a novidade, apesar de ignorarem sua origem an-gustiante. Facilitou o trabalho, reduziu custos e no Brasil, um sucesso, impediu os empregados de o levarem no bolso, mania arraigada no planeta de outrora. O genro de

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minha tia, criador deste tomate com corpo dejerimum, não assiste a seu sucesso. Coitado, está no inferno, portanto inabilitado a ganhar o Prêmio Nobel.Encerrados os trâmites de carimbar nossas testas, Baltazar volatizou. Sem poder contar o tempo, não afirmo quantos meses o anjo se ausentou. O sítio cumpriu rotina, agora mais perturbada pela introdução da fome. Coices do cavalo negro, explicou-nos minha tia, estimulando o genro a prosseguir as pesquisas. O danado caprichou. Além das verduras latentes em caule de mamão-macho e do instante de glória em que o tomate brotou, o agrônomo armou milagres. Colheu feijão temperado, limão com açúcar e vodca, laranja já espremida, repolho em tom de chucrute, mandioca raladinha e misturada à cebola, ponto certo de farofa."Ficarão ao novo mundo", exultava minha tia.Hoje eu não duvido da armação do enredo: o agrônomo apaixonou-se e casou com Brenda Lúcia para inventar o futuro. Espiando a nova Terra, direto do purgatório, com-provo a veracidade desta minha teoria. Os neoterráqueos acham naturalíssimo árvore de laranjada, pomar de caipiri-nha, plantação de feijoada. Nem desconfiam do agrônomo meio sábio, meio santo, que foi parar no inferno por culpa de um erro de cálculo do apóstolo João. Introduzo no relato as invenções deste gênio para lhe ceder as glórias. Ninguém presta atenção usufruindo os confortos que, sob péssimas condições meteorológicas, o agrônomo criou.Prosseguíamos o dia-a-dia de trovões e terremotos, fome, sede, ansiedade, uma tristeza manhosa perturbando os pensamentos, quando Baltazar voltou. Exausto sentou na cerca e gritou por minha tia:"Vocês sequer imaginam o mundão de novidades." Baltazar gastou horas explicando o infaustoso corrente na Terra inteira. A novela dos carimbos transformou-se em revolta. Primeiro porque os anjos de visual inimigo açularam a ira humana, e os homens, prepotentes, insistiam em afrontar quem achavam inferior. Mesmo que

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o julgador vestisse bata branca, sacolejasse as asas e usasse na cabeça a auréola da redenção:"Alguém pode imaginar chileno avaliado por índio araucano?"Claro, armava-se bate-boca igual raro neste mundo. Intervinham as entidades, a turma-do-deixa-disso. Se a briga extrapolava, trabalhava a milícia especialista em borduna:"Não foram poucas as vezes de usarmos a pauleira. Acreditem, surgiram ocasiões de o próprio Deus irritar-se. Gente, exauri-me. Necessito deste sítio para me voltarem as forças."Chupando laranjas da safra já laranjada — e elogiando o sabor —, Baltazar esticou a novela, esmiuçando os de-talhes. Além deste tititi, ocorreu um imprevisto. Apesar das contas feitas, refeitas e avaliadas, a demanda se excedeu. Quantas testas carimbadas, quantas mais necessitavam de receber o carimbo. Os anjos se esgotaram e, como se fossem humanos, deixaram a produtividade cair. Começaram a pipocar casos de carimbagem mal-feita, gente selada e marcada na altura da orelha, no ombro, no antebraço. Enfim, atrapalhação.Forró apocalíptico. Nada que o Senhor não resolvesse em instantes, batizando o acidente de Definitivo Ordálio — aqueles assim marcados marchariam ao purgatório. Mul-tidões se revoltaram e apresentaram provas: o Livro de São João não citava, uma só vez, casos de falta de mira, não existindo portanto jurisprudência no assunto. Choveram reclamações. Principalmente italianas, turma predestinada a fiar lamentações. Sobre as colinas de Roma discursou o primeiro-ministro, Baltazar se comoveu:"O homem cuspia fogo. Em respeito à senhora e à senhorita presentes cortarei do repertório ditos de baixo calão, nos quais o italiano realmente se excedeu."Dependurado na cerca, reproduzindo o sotaque, o gesticular arfante, meu anjinho imitou o infeliz condenado sem juízo ou explicação:

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"Nem sei a quem me dirijo, mas exijo explicações. Tutti buona gente, sim? Protesto que se agraciem as orelhas carimbadas com o destino purgatório. Favorece-se assim os escolhidos por último e não é o nosso caso. As vagas celestiais são ninharia e prejudicam meu povo? Em honra ao Vaticano nos carimbaram primeiro, impondo-nos prejuízo, oitenta por cento da Itália baixará para o inferno. Acho bom recomeçar com anjos mais competentes. Mas se nem carimbar eles sabem, como podem encaminhar-nos à condenação ou à vida? Bando de incompetentes."Com os olhos naufragados em raiva e estupefação, interrompi Baltazar, apoiando o italiano:"Claro, ele tem razão. Prejudicaram os italianos, povo religioso, hospedeiro de uma crença. Há milênios os católi-cos perturbam-lhe o território para terminar assim? Nesta injustiça tamanha?"Leve sorriso irônico no rosto de Baltazar, minha tia me abraçou:"Querida, na vida não há justiça ou injustiça. Há sorte ou falta dela. Esta é outra lição nunca, jamais, aprendida. Muito nos esforçamos para que vocês compreendessem. Inclusive inventamos este odioso ordálio, o meio menos capaz de indicar honestidades. Salvam-se nesta prova somente os iluminados. Mas vocês não entenderam, morrerão sem perceber. Aprenda, minha filha, embora já pouco adiante, sem sorte não se vai longe. Cai-se na migalhice do coditiano tolo, morre-se de baboseira. Caso dos italianos, fracassados no ordálio por falta de boa estrela."Sorte, azar, inconsistências, a vida me apresentada qual um fabuloso nada. Tentei perguntar por Deus, mas percebi a evidência. Ousasse questionar, minha tia explicaria que, afinal, é assim. Há o Deus crucificado e o Deus iluminado. Há o Deus Jesus-Menino e o de gestos insanos. Há o Deus eternecido passeante no evangelho e o Deus compreensivo habitante do Alcorão. Há o Deus que não esquece e o que nunca perdoa. O Deus que detém

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destinos e um outro aristotélico, distante e impessoal. Resumindo, Deus sou eu nos meus múltiplos momentos, dependendo quais das faces eu decida apresentar. Pensei e me assustei. Optei por me calar. Não enfrentar minha tia com heresias, calúnias, palavras destruidoras capazes de a magoar.Bela tia, minha tia. Penetrou meus pensamentos, inundou-me de afeição:"Isto mesmo, Deus é você e os outros. Cada um de nós é Deus. O assunto é complicado, você se pôs a caminho. Um dia seu coração poderá elucidar o mistério de o Senhor ter vários nomes e no entanto ser Um, vivo e atuante na mente de cada homem, revelando-se da maneira que este mesmo homem O vê. Doce, amargo, compreensivo, bon-doso. Não lhe disse, Baltazar, que escolhera direitinho?, esta moça é encantadora, escreverá um relato que orientará o mundo quando o mundo renascer."Espero corresponder a tamanha confiança pois descrever com certeza o miolo do mistério é de todo irresponsável. Discernir, eu não discerni. E quem era o Deus que eu vi? Majestoso, onipotente, sentado em seu lindo trono, co-mandando o apocalipse? Mas decidi pelo óbvio, relatar sem perguntar. Sempre sobra um vasto espaço entre os homens e o Divino. Recuso-me a percorrê-lo. Outros mais nobres, valentes, mais informados de luzes, tentaram e recuaram sem respostas convincentes. Portanto, não há saída, escolhi testemunhar. Narrar o apocalipse sem enrolar-me em detalhes. Reconheço a importância deste meu dever imposto. Se um grande dinossauro cuidasse de descrever o final de sua espécie, talvez construíssemos o mundo de um jeito bem melhor.

(...) e apareceu um cavalo negro: e o que estava montado sobre ele tinha na mão uma balança. E

ouvi uma voz que dizia: meia oitava de trigo

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valerá um dinheiro e três oitavas de cevada, um dinheiro (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 6, versículos 5 e 6)

Baltazar permaneceu alguns dias descansando. Voava de galho em galho, desfiava novos casos, dormia sereno e jovem à sombra da mangueira, na época amadurando suco de manga enlatado. Afligia-se o agrônomo, assustado de as latas amadurarem e caírem, fraturando a cabeça do anjinho adormecido. Vicissitude evitada, Baltazar escapou de uma latada na testa, mas se estrepou no neolimoeiro. Provou um limão maduro, o gosto aperfeiçoado no açúcar e na vodca, e repetiu a aventura. Não lhe atiçasse a vontade de exagerar na dose, o anjo retornaria a seu lugar de origem na pureza original.Qual, nem anjo escapava ileso às gulodices da Terra, sabores daquela Terra, tudo com jeito melado, insinuante, gostoso, inventado no intuito de obrigar a pecar. Derrapou Baltazar no exercício da virtude. Empoleirou-se no galho do pé de caipirinha e se encharcou com os frutos. Um e outro, outro e um, sugado e apreciado até a gota final. Não tardou o resultado do exagero etílico. O anjo cambaleou, dependurou suas asas, inventou de desbocado desfilar pelo quintal, abusado e matraqueiro. Desastre angelical, custou à minha tia severo aborrecimento, além de uma mão-de-obra recuperá-lo sem danos, com direito inclusive a manter-se utilizando o título de santo anjo.Tia Maria Alzira enfiou-o em ducha fria, obrigou-o a engolir canecas de café forte. Pobre Baltazar, um anjinho tão faceiro. Passou horas derrubado, as asas emaranhadas pelo banho extemporâneo. Aprumou-se envergonhado e ouviu, de minha tia, sermão ofensivo aos homens — bando de desocupados, bêbados, alcoviteiros, capazes de engambelar a pureza e a bondade de um espírito habituado aos usos celestiais:

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"Você também errou, Baltazar. Então, o cavalo negro correndo e escoiceando, endoidecendo os viventes com o sofrimento da fome, e um anjo cede aos instintos da limita-ção humana? Se esbalda em bebedeira? Você não sabia que nosso neolimoeiro é planta experimental? Será que desentendeu o trabalho deste sítio? Ignora a excelência da pesquisa extenuante, interessada somente em sofisticar o mundo que está para surgir? Faça o favor de partir antes de maior encrenca. Anjo não anda na Terra, só arcanjo experiente. Isto é um valhacouto. Voa rápido, vamos, cuide de seus afazeres."Despachou-se Baltazar, decolando às carreiras. Ante a ira da sogra, o agrônomo se escondeu. Voltou com o rabo entre as pernas, mais discreto e mais calado, trazendo na algibeira a revolucionária idéia de introduzir aspirina nos genes da acerola. Não garanto os resultados. Provavelmente, acertou. Recebi a informação de que há países trilhardários somente na exportação de acerola manipulada, tiro e queda em resfriados, gripes e escorbuto. Preocupa-me somente a ressurreição de um erro. Distribuíram a esmo as mudas do genro-agrônomo. A conseqüência é lógica. Alguns cantos do planeta acumulam capital, enquanto outros arrastam-se em pobreza quase bíblica. Quando encontrar minha tia, apontarei o desvio — por que fecharam o barraco para depois reabri-lo no feitio original?Sem a alegria ingênua do anjinho Baltazar, refrigério em nossos dias, voltamos ao ramerrame do sobreviver diário, pesadelo horripilante agora incrementado pela tragédia da fome. O tal do cavalo negro, introdutor da melodia da fatal inanição, continuava pastando nos quatro cantos do mundo, matando gente aos magotes. O sítio livrou-nos do espanto. Esgotado o estoque escondido na despensa, alimentávamo-nos com as bossas geradas nas terras de minha tia. Não me queixo, apesar de uma certeza. Nunca mais na minha vida — nesta e em outras vidas, quantas e quantas vidas me obrigarem a viver — nunca mais

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mastigarei um pedaço de tomate, um quibebe de abóbora. Louvo-os, devo-lhes a vida, verso e contraverso, a gratidão tem o uso de alimentar tensão. Quem morou no antigo mundo sabe disto muito bem. Bastava emprestar dinheiro, estender a mão amiga e surgia uma encrenca. Tão logo o necessitado se aprumava na vida, fugia de quem lhe vira em fase de humilhação. Sinceramente, fomos gente muito rude.Continuou o cavalo negro seu rumo destruidor. Empinava orgulhoso a força e o poderio quando estradas o levaram a longínquas regiões onde lhe riram na cara — imagina se a fome provocaria surpresa no Nordeste brasileiro, no interior da África, no entorno empobrecido das estranhas megalópoles onde riqueza e pobreza resolviam seus entraves apelando ao tiroteio?Encurtando a história. Em partes do planeta, o cavalinho negro passou pelo grave risco de transformar-se em churrasco. Escapou de esperteza pois entendeu que a fome, sua derradeira oferta, era useira e vezeira entre a população, acostumada a niná-la e driblá-la toda noite. Vexado com a performance de nenhuma emoção pelos rincões periféricos, o cavalo desistiu. Recusou o aviltamento de servir de brincadeira a uma turma desdentada, horrível, descabelada, infestada de piolhos. Credo, turba horrorosa, resmungou o cavalinho passando o expediente ao colega alazão, signo da grande peste:"Cuide-se. Aquela gente é misteriosa, sobrevive de teimosa. De alguma triste maneira lembra as bactérias modernas e autoritárias, resistentes a antibióticos. Ambas impressionam, ninguém lhes decifra a força. A primeira de viver, a segunda de matar. Se duvidar esta malta driblará o apocalipse."

(...) e caiu uma chuva de pedra, e de fogo, misturados com sangue que caiu sobre a Terra

(...)

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(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 8, versículo 7)

As Pragas

(...) e as figuras dos gafanhotos eram parecidas a cavalos aparelhados para a batalha, e sobre

suas cabeças tinham umas como coroas semelhantes a ouro: e os seus rostos eram

como rostos de homens. E tinham cabelos como cabelos de mulheres, e os seus dentes eram como os dentes de leão. E vestiam couraças, como couraças de ferro, (...) e tinham caudas

semelhantes às dos escorpiões, e havia aguilhões nas suas caudas e (...) tinham sobre si

um rei que, segundo o latim, quer dizer Exterminador (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 9, versículos 7-12)

Até tricotando um drama é preciso disciplina. Escapole, inventa o novo e de novo explode a dor. Assim passou com a chegada do cavalo amarelo que renegou o script e entrou barbarizando. No sítio, nós pressentimos o nó apertando a força através de alguns detalhes. Pioraram as tempestades, os raios, os terremotos. Espoucou um tão intenso que estragou os sismógrafos, além de movimentar as cordilheiras e ilhas, cada qual distanciada de seu devido lugar. Até onde me recordo, mostrou-se o pior tremor. Tia

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Maria Alzira vendo-nos desesperados ditou o nosso consolo:"Tranqüilizem-se. O sítio se localiza no único monte poupado, pois palavras e alimentos estão guardados aqui. Esqueçam os terremotos, nada acontecerá."Baltazar apareceu — meio sem graça, é verdade — relatando estranhas novas de uma nova geografia. O Himalaia acabara, os Andes mergulharam nas profundezas pacíficas, o Amazonas transbordara e afogara o Caribe:"Achei bonito. Surgiram espaços imensos destinados a abrigar a geração-a-nascer."Graças à cara feia de tia Maria Alzira ainda aborrecida com a angelical bebedeira, Baltazar partiu sem recitar mais detalhes. Lamentamos-lhe a falta enquanto a Terra roncava e se distorcia em fendas mais profundas e capazes de exalar mais enxofre. O verde à nossa volta — uma floresta tão linda, xodó dos ecologistas quando o mundo exercia seu balé de rotação — sentiu a poluição e minguou esturricado. Apesar do céu aberto, a escuridão aumentou. A luz da cenografia — sol, estrelas, via-láctea — murchou bruxuleante, incapaz de brilhar em espasmos de alegria. Momento de espanto: a Lua caiu do céu e se perdeu no infinito — pobre Lua, linda Lua, encantou tantos amantes; mudou de endereço mas não perdeu a magia, em volta de outro planeta permanece embalando historietas de amor; do Purgatório a vejo, sempre me emo-ciono; amei demais sob ela.Tanta novidade rara e anjos inventaram a moda de assoprar as trombetas. O ruído agressivo estilhaçava os ouvidos. Cansei de largar, no susto, atividades domésticas irritada com o instrumento de agudo desagradável."Isto não é nada", surpreendeu-nos Baltazar esvoaçando sobre nossos penteados, apesar do ar zangado de tia Maria Alzira. Viveram uns dias de birra, mas os dois confabularam nos extremos do quintal. O agrônomo e eu, tocaiados na mangueira, escutamos os cochichos, pirraças

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e arruaças. Encerrado o blablablá, minha tia recompôs sua boa aparência:"Perdoei Baltazar. Eu e quem mais devia. O anjinho é importante para relatar-nos fatos e ajudar-nos na lida. Lá no céu também requerem as novidades do sítio."Expressamente vetados os vôos de Baltazar para os lados do pomar — condição aceita em documento assinado, Baltazar e minha tia sapecaram o jamegão em papel fluorescente de uma espécie raríssima, produção artesanal de santos do Armamento —, o ir-e-vir do anjinho transportando novidades transformou-se em rotineiro. Fato fundamental à criação deste livro. Como eu escreveria sem conhecer os detalhes das atividades fúnebres recorrentes pelo mundo? Devo-lhe co-autoria, embora nem tenhamos discutido sobre direitos autorais. O próprio anjo matreiro, quando toquei no assunto, garantiu-me que uma esmola — por miserável que fosse e na certa iria ser — aumentava-lhe os pontos na promoção a arcanjo:"Andei pisando na bola no caso do neolimoeiro. Coloque os trocados do nosso direito autoral em seu bolso, quando bolsos retornarem e caso eles voltem à moda. Céus, que confusão. Resumindo a cantilena: considere caridade eu lhe ditar o assunto. Três tostões não marcam falta."Talentos sobrando na vida e eu com jeito para escrever — isto, sim, é triste sina. Então, no meu nascimento, não podiam outorgar-me pendor para o futebol? Para a cirurgia plástica? Contrabandear haxixe? Eleger-me deputada? Assuntar esoterismos ou aplicar capital, principalmente o alheio? Delibero ultrajante este meu engenho inútil para produzir dinheiro. Preferia atividade com menos arte e mais lucro. Mil vezes escolheria a singela ignorância, mas com a conta bancária incapaz de desgostar-me.Enfim, foi feito, está feito, não me cabe reclamar. Volto à atividade de falar do apocalipse. O cavalinho amarelo armou e armou perfeito. Provocou tanto estrago que zerou as assustanças determinadas à besta e, depois, à prostituta.

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Fofocas de Baltazar: a besta e a prostituta reclamaram ofendidas pela perda do espaço de poder e arrogância. São Miguel extenuou-se resolvendo a pendenga, por um triz não naufragou no mar da insensatez. Recuperou-se da história decidido a ordenar apocalipses mais limpos. Com menos alegorias, menos vaivém de dramas, menos vaidades em jogo pois governar vaidades exigia pulso forte, além de uma paciência que o arcanjo dispensava. Há bilhões de anos a fio, em bilhões de outros planetas, cabia-lhe o privilégio — duvidoso, é verdade — da direção de cena. Após os coices da besta e os guinchos da prostituta, ambas culpando a Peste no gosto de aparecer, São Miguel perdeu a pose:"Chega, enchi. Depois deste apocalipse, último ao velho estilo, aplicarei a ciência da explosão nuclear. Ou acabo com a internet e o mundo vem abaixo. Tanta tecnologia e nós ainda insistindo em cavalos e trombetas? O próximo armagedon ribombará em segundos. Não agüento mais o circo de entra um e sai outro, todos excitadíssimos na ânsia de ressaltar-se. De que me serve o título de Príncipe dos Arcanjos se levo a eternidade comandando desgraceira? Com licença do Senhor, encerro estes exageros. A ciência evoluiu. Daqui para a frente, os pontos finais surgirão com rapidez e bom gosto."Besta, o nome define. Soltou os coices de praxe e se aquietou na bestice. A prostituta, coitada, habituada a calar-se, calou-se magoadíssima. O cavalo amarelo, aproveitando o momento de irritação divina, desembestou e sumiu. Observando, é claro, os conselhos do antecessor — evitou África, Ásia, toda a América Latina, famosos cantos terrestres de grandes pestes endêmicas —, ele cavalgou a morte. Nos intervalos, pastando, criava azucrinações passíveis de assombramento. Partiu da cabeça dele a maquinação macabra da tempestade de sangue.Emoção aterradora. Recolhia a roupa limpa dependurada na corda, Baltazar sossegadinho, aconchegado em meu

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ombro, quando caíram os primeiros pingos. Gotas imensas, nojentas, sangue vermelho-vivo. Arterial, comentou o pri-mo agrônomo materializado em instantes:"Você por acaso morre? Ou menstruou no dantesco, ao estilo fim do mundo?", perguntou-me curioso, mas dis-posto a ajudar.Apalpei-me horrorizada catando algum ferimento. Examinei Baltazar. Escrutinei o agrônomo atrás do sinal da peste, solucei por minha tia que chegou contrariada, como se a incongruência lhe escapasse ao controle:"Sosseguem. Isto é chuva."Uma cortina de sangue pingava do firmamento, empoçava coagulada, encharcava meu cabelo, infiltrava em minha boca, meu vestido, meu sapato, lambuzava Baltazar, também ele assustadiço, revelando claramente seu medo da novidade:"Que é isto, Maria Alzira?""Não sei. Passa daqui rapidinho e não volte sem resposta."Nauseada com a cena, nojento cheiro de morgue, paladar repugnante maltratando-me a garganta, simplesmente desmaiei. Recuperei-me deitada, limpa e esterilizada, pro-tegida na cama. Carinhos de minha tia que, com semblante triste, segurava-me a mão. Bocejei, espreguicei-me, perguntei por Baltazar:"Onde está nosso anjinho?""Não sei", sussurrou tia Maria Alzira, explanando que o imprevisto insistia em respingar. O dilúvio ensangüentado gotejava asqueroso. Ela pessoalmente jamais testemunhara um doloroso igual. Em nenhum apocalipse. Nem em planetas medonhos, de medonhos habitantes, seres ainda piores que os desgraçados terráqueos, a barca de Caronte naufragara em hemorragias:"Ninguém merece algo assim."Reparei algumas lágrimas — enfim, uma santidade revelava piedade pelo plutônico evento com que encerrava o mundo. Ia parabenizá-la pelo súbito ataque de sentimentos humanos quando escutei Baltazar esbarrando

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na janela, implorando aflitíssimo permissão para entrar. Antes de qualquer palavra, enfiou-se no chuveiro disposto a lavar o sangue.Depois de ensaboado, esfregado à inclemência, asas desembaraçadas, perfumado de jasmim, Baltazar anunciou terríveis acontecências:"O cavalo amarelo tomou gosto de poder. Claro, mordeu o freio e partiu desembestado. Fazendo e acontecendo, julgando-se no direito de omitir explicações. Partiu da cachola dele esta chuva endiabrada que alaga o mundo inteiro. Morre gente aos borbotões de susto e enojamento. Não se consegue encontrar o cavalo deslumbrado, o danado se escondeu. As altas autoridades, principalmente a Altíssima, revelam aborrecimento nunca antes assistido. Você sabe, Maria Alzira, defendo a opinião de que bons apocalipses resumem-se a tomadas. Eletrocuta-se e pronto. E limpo, rápido e fácil. Mas o gosto divinal por espetáculos barrocos, beirando a magnificência, sempre finda em confusão. Agora, resta aguardar."Sentindo meu pé na cova, tanto e tanto mal-estar, tentei argumentar que os dois se equivocavam. Pelo teor da conversa, celestiais divindades pasmas com o atrevimento de um animal afoito, senti-me quase excelsa, prenha de conhecimentos, sul-americana esperta, experiente no assunto de cavalos no poder. Ao menos em meu continente não causavam surpresa eqüinos mordendo freios. A experiência ditava-me o negrume do porvir:"Preparem-se. Este assunto, conheço. Salvo intervenção divina, pois Ele pode, sabemos, vem aí assombração."O acerto da previsão rendeu-me dividendos de maior solicitude de Baltazar e minha tia pois seguiu-se o indescritível, torturas sofisticadas, horas de puro pavor. Baltazar encapotado — capa, capuz e galochas — decolava aos trambolhões. Todo dia à mesma hora, enfrentando, amargurado, golfadas de hemoptise, Baltazar batia asas à cata de novidades. Tia Maria Alzira praticamente

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catapultava-o. O anjinho remanchava em mergulhar no asqueroso:"Detesto a coagulada, cheirosa a morte e desgosto a que assisto lá de cima. Sou anjo, não sou vampiro. Enfie a viola no saco, eu não sairei daqui."Findava obedecendo, minha tia jogava duro. Ameaçava delatá-lo, diminuir-lhe os pontos arduamente conquistados na promoção a arcanjo. Coitado do Baltazar, apelava a qualquer santo, desembolsava desculpas beirando o inconcebível: "Não posso, Maria Alzira, não estou habilitado para voar embrulhado. Se a Infraero me pega, cassará o meu breve.""Pensa que me engana? Você está é com nojo. Vamos, arranca daqui."Lá se ia Baltazar voando sem a elegância e a graça costumeiras — realmente tanta roupa atava-lhe a embicadura. Uma vez voltou danado. Violenta turbulência jogara-o direto ao chão. Neste dia, ele encrencou:"Olha, Maria Alzira, você não voa há milênios. Sequer fez a reciclagem de segurança de vôo. Portanto, aviso-a. Permanecendo estas malditas condições meteorológicas, exigirei turbinas. E quase impossível manter velocidade de cruzeiro debaixo desta sangueira. Conheço meu trabalho, você está extrapolando."Difícil, muito difícil, Baltazar se irritar — um anjinho de doçura, mimosura de pureza. Depois constatamos o por-quê do humor enviesado. Neste dia, além do tombo, ele comprovara triste o agravo da angustura. Agora, além da chuva, o mar se passava a sangue. E o cavalo amarelo, autor da destrambelhança, permanecia sumido. Pior, aliciou mequetrefes que lhe prestaram apoio intentando aparecer. Ou seja, golpe de Estado. Ou golpe divinal. A melhor definição ofereço a meus leitores, cada qual julgue por si.O fato é que, apesar das aparências — quem olhasse o firmamento veria cenas lindíssimas, santa paz celestial —, o clima entre os divinos começara a azedar. Necessitou

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inclusive São Miguel proclamar a vontade do Senhor em discurso extemporâneo, escrevinhado às carreiras:"Largaremos o cavalo armando cavalgaduras para o povo aprender quem ele é realmente. Elemento sem limites, sem ética, sem compostura, deslumbrado com o poder que jamais lhe pertenceu. Interviremos na hora, desintegrando-o a pó. Por enquanto, paciência. Desculpem-nos os imprevistos. O sofrimento aumentou, mas resta-nos a lição essencial ao futuro. Duvido que novamente vocês concedam espaço a animais de qualquer cor."Confiante de o Céu lhe abonar as loucuras — e certo da impunidade —, o cavalinho amarelo desandou em insen-satez. Secou a água dos rios, ensangüentou oceanos, envenenou as lagoas, matou peixes, bichos, gente, agiu sorrateiramente, requintes de crueldade. Esgotadas as tramóias, planejou nova burleta e desfechou nos viventes nuvens negras, poderosas — cúmulos-nimbos, ensinou-nos Baltazar —, de gafanhotos imensos com ordens determinantes de maltratar os humanos. Dia e noite, cinco meses."Cinco meses é o tempo médio das pragas de gafanhotos. Desta vez, tudo ao contrário, pode passar diferente. Não há verde disponível, de que se alimentarão?", sentenciou o agrônomo, encantado com os espécimes passeando pelo sítio.Confesso ignorância. Batizei de gafanhotos os repulsivos insetos pela falta de outro nome pois estanquei-me ater-rada com a aparência das feras. Corpo e cor de gafanhoto nas cabeças coroadas com diademas de ouro. Cabelos longos e dentes afiados, igual dentes de leão. Suas agressivas caudas semelhavam-se, em tudo, às caudas de escorpiões, inclusive no veneno. Barulhentos, provocadores, recobriam os corpos gordos em invencíveis couraças talhadas em ferro frio. Voando ou atacando atendiam ao comando de um auto-intitulado O Exterminador. Ou seja, antes de eu escrever o Livro do apocalipse revisto e revisitado, alguém farejara o drama

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pois Hollywood enricou às custas de um reles plágio — o nome exterminador escrevia-se na Bíblia há cerca de dois mil anos. No meu mundo encerrado enricava primeiro quem primeiro enganava, sempre se agiu assim.O advento estapafúrdio causou-nos um susto imenso. Enfileirei-me entre os poucos capazes de enxergar além da aparência má. Confesso sinceramente que notei nos gafa-nhotos idéias originais. Talvez surrealistas. Tendendo ao pós-moderno. Quem sabe merecedoras do epíteto de neobarrocas. Enfim, sobrasse tempo e cabeça para gastar conversa em alguma mesa de bar, os gafanhotos macabros renderiam discussão — belos dias, papo solto, excesso de vida à toa fraseando nulidades; hoje vejo com clareza, desperdiçamos as horas discursando coisa alguma, em vez de nos empenharmos em atos de salvação.Retorno ao apocalipse. Ao deparar-me com as feras, sedimentei a certeza de não restar-me retorno. Navegava brutalmente rumo ao final do mundo. Assim, limitei-me a comentar que os estranhos gafanhotos não primavam pelo timing. Deixaram escapar a chance de surgirem anos antes no meu Rio de Janeiro. Claro, no carnaval:"Bela Comissão de Frente para o Grupo Especial. Visual nota dez."O agrônomo encucou-se, xeretando-lhes os ferrões: "Pós-modernos, neobarrocos, o nome pouco me importa. O problema dos bichanos é a intenção assassina. Há veneno nestas caudas."Avisou e comprovou, um lancinou-lhe o dedo. Desgraçou o pobre agrônomo, viúvo de Brenda Lúcia, discreto e eficiente inventor das novidades que encantam o paladar do mundo recém-nascido. Partiu este cientista sofrendo de dores mórbidas. Até mesmo Baltazar, encarregado do evento, constrangeu-se com os espasmos determinantes do óbito. O coitado padeceu.Estranha predileção pelo clima chinês enxameou o Oriente das bizarras criaturas. Lá morreu-se aos bilhões, en-

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garrafando o sistema de despacho de cadáveres. Nem todos os anjos juntos alçaram cumprir a faina, os corpos se amontoaram. Solicitado às pressas para ajudar na empreitada de faxina e ordem pública. Baltazar partiu aflito, não sem advertir à tia Maria Alzira que o cavalo amarelo libertara aquela praga — erro do laboratório celeste onde gênios manipulavam a inocente criatura predestinada adiante a repovoar a Terra —, com intenção de assustar e assim apropriar-se do poder mais poderoso:"Cuide-se, Maria Alzira."A partir deste aviso, tia Maria Alzira esmagava gafanhotos com sonoras chineladas. Com o tempo, perdi o medo. Sem coragem de pisá-los, recorri ao meu humano: encharcava-os de álcool e depois riscava o fósforo. Ao flagrar-me incendiando-os, minha da ensandeceu:"Isto é coisa que se faça? Maltratar alguém assim? Há milênios sua raça flamba os inimigos sem pensar nas conseqüências. Imagine-se queimando devagar e lentamente. Céus, vocês são monstros, piores que os gafanhotos pois os coitados não pensam."Concordei com minha tia, lamentei, chorei desculpas. Mas continuei queimando-os. Teimei em manter-me humana até o fim de meus dias — afinal, a teimosia foi um dos traços marcantes dos povos da minha espécie.

(...) as cabeças dos cavalos eram como cabeças de leões e de suas bocas saía fogo, e fumo, e enxofre (...) as suas caudas assemelhavam-se

com a das serpentes e têm cabeças, e com elas danam.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 9, versículos 17-19)

Acossava esta praga quando aflorou nova encrenca, encarnada desta vez em bichos horripilantes. Assustaram,

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de início. Mas depois nos revelaram o lado encantador. Mal-encarados, mas doces. Não rugiam, nem relinchavam. Cantavam qual rouxinóis.Na medida do possível, esforço-me em descrevê-los: corpo de cavalo, cabeça de leão, cauda igual serpentes. No mais, suavam candura. Balançavam suas cobras de ar ameaça-dor para espantar mosquitos. Minha tia acreditou que no caldo gerador daqueles bichos estranhos boiava suco de lesma:"São cordatos, os pobrezinhos. Fadados à danação, como todos os sensatos."Apontei à tia Maria Alzira outra falha do episódio. Além de falharem na estética, os monstros apresentavam um desvio metabólico: inspiravam oxigênio e expiravam fumaça — com certeza carregavam DNA de fumante.Abismadas com o surreal pastando defronte ao sítio, recebemos Baltazar. Desta vez pousou raivoso, xingando e rogando praga ao laboratório celeste, autor das barbaridades que o cavalo amarelo descobriu e liberou. O anjo espumava raiva contra a manipulação genética realizada às pressas:"Soltar um produto híbrido ajuíza punição. Mas também os cientistas deviam se precaver. Recebi informações de que eles, na aflita emergência de inventar o novo ser, mistu-raram às apalpadelas genes de várias espécies. Surgiram aberrações, algumas irritadiças, com pressa de andar às soltas." Excesso de gene humano, determinou minha tia: "Nunca existiu ninguém mais viciado no uso de procurar seu caminho. No outro apocalipse há que se reestruturar nosso laboratório. Este falhou duas vezes. Mesclou indevidamente e permitiu a entrada de estranhos no recinto. Se o cavalo os libertou, o cavalo lá entrou. Muita incompetência junta."Soube depois de morta, um arcanjo me informou para minha narrativa não nascer sem coerência. O chefe dos inventores, em vida um cientista agraciado com o Nobel, acabou demitido por justa causa, sem direito inclusive ao

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seu FGTS, lá no céu pago em dólares. Substituiu-o outro gênio, menos cansado, mais jovem, com idéias bem pensantes na divina obrigação de parir as novidades que habitam e habitarão os bilhões de outros astros, cada um a sua hora vivendo o apocalipse.Admito a balbúrdia reinante entre os cientistas pois o nosso apocalipse primou por entes esdrúxulos. Excesso de olhos, de asas, chifres em profusão, quadrúpedes de oito patas. Na minha opinião, episódio imperdoável, fermentado na vaidade e excesso de confiança. Ninguém em sã consciência manipula a genética e cria deformidades. Recomendo atenção na reconstrução da vida a partir de despojos, cromossomas congelados que um dia foram lixo. Não cultivo pessimismo — aliás, minha alma é zen —, mas isto ainda acaba em merda. Haja vista o apocalipse.Com Baltazar viajando, farejando novidades, o cavalo amarelo recebeu bilhete azul. Passou-se tudo em um átimo. Quase perdi o ar, as pernas me bambearam. Minha tia gargalhou: "Eu aposto neste arcanjo. Ele é incomparável." Apostou, embolsou lucros, São Miguel não vacilou. Aproveitando o descuido do cavalo amarelo pastando ervas capazes de soltar-lhe o intestino, emperrado por excesso de comida oriental, o arcanjo o enlaçou. Sem dó, nem piedade. O cavalinho amarelo já arribou enforcado na nuvem de São Miguel, limitado em comentários:"Não é a minha vontade, mas se vamos prosseguir com as normas habituais, o nosso laboratório deve providenciar novo signo da peste, menos vaidoso e arrogante. Este bateu as botas em final bem merecido."Pasmei-me com o acontecido. Como o cavalo amarelo, majestoso em indisciplina, permitira-se a tolice de se abandonar no pasto, mastigando alegremente sem pensar nas conseqüências? Como esquecera tão rápido o papel desafiante de líder de insurreição? Como um ditador, agressor das leis celestes, permitira o laçamento com

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tanta facilidade? Minha tia apenas riu. Relembrou-me o destino de quem atropela as normas muito além do concebível:"Romper regras é saudável, mas exige algum limite. Todos que mordem o freio e saem desembestados, de um modo ou de outro, encerram suas vidas com a corda no pescoço. A onipotência é cega. Quem a exerce não vê sequer o despenhadeiro. Malandro demais se atrapalha, bela frase brasileira que repetirei ad aeternum. Agora, toquemos a vida. A festa anuncia o fim, esta praga peçonhenta sinalizou o desfecho. Conheço demais o assunto, desvendo qualquer sinal. O que vi de apocalipses ultrapassa qualquer conta. Baltazar comprovará."Baltazar demorou a retornar. Pousou magro e abatido quando tia Maria Alzira e eu devorávamos o quadragésimo sétimo tomatóbora. Não lhe suportava o gosto. Enfim, paladar pouco importa, cada um cultiva o seu, hiena comia bosta e ainda gargalhava. Outra vez eu devaneio e escapulo do assunto. O certo e documentado é a volta de Baltazar, definhado de dar dó.Andava mal-humorada. Só me distraía a mente namorar o espumar das ondas esparramadas no encanto de mil cores: amarelo, verde, azul, vermelho, violeta, estonteante arco-íris encimando o mar de vidro inventado pelo céu. Verdadeira obra-prima, não cansei de admirá-lo durante o final do mundo. Cristalino mar cristal, nele afogava as mágoas de morrer a cada dia, a pior condenação. Desejo sinceramente que no mundo inaugurante ninguém precise morrer. Apenas durma encantado, como previu docemente um escritor brasileiro, meu poeta da linguagem. Por conta da irritação de saber-me condenada, recebi mal meu anjinho:"Você emagreceu além da conta, ficou horrível. Pro-vavelmente, morrerá. Não será comendo a droga do tomatóbora que suas forças retornarão.""Anjos não morrem, menina. Já cumpriram seus destinos, ganharam imortalidade. Você pode chegar lá."

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E sentou-se esfomeado, devorando tomatóbora. Pela cara e pelo jeito, o gosto não o afligia. Nem afligiria, com-preendeu tia Maria Alzira:"A comida do céu não prima na qualidade. Não há frituras, temperos, gostosuras, gulodices. Nunca encontrei um santo com colesterol alto. Em compensação, jamais algum desfrutou da boa glutonaria. Este é dos poucos pontos em que na Terra é melhor. Para nós um tomatóbora guarda gosto de delícia."Primeira vez de minha tia referir-se a si própria como alguém celestial. Decidi lhe perguntar toda a verdade. Minha tia intuiu:"Meu amor, por favor, não fale. No justo e certo momento você me conhecerá. Por enquanto apenas saiba que eu lhe quero muitíssimo."Levantou-se apressada, largando-me com Baltazar. Entre tosses e soluços, um naco de tomatóbora entupindo-lhe a goela, ele adiantou-me um pouco do muito que arden-temente almejava decifrar:"Maria Alzira, claro, é codinome. Ela é importantíssima, velhíssima, sapientíssima. Quando me informaram que neste apocalipse deveria assessorá-la, quase desmaiei de susto, senti-me na realeza. Pareceu-me bom indício de promoção a arcanjo. Se imitar-lhe os exemplos, talvez em milhões de anos quase consiga igualar-me às santas virtudes dela."A conta estratosférica, falar em milhões de anos, com-primiu minha cabeça habituada a pensar na imensidão de um século. Baltazar entendeu minha estupefação e dispôs-se a me explicar as diferenças do tempo. Um na Terra, outro no Céu:"O tempo daqui é ilógico. Comprove pessoalmente. Um minuto de delícias evapora em segundos, começou e acabou, mal se pode aproveitar. Quer um exemplo? Teste no microondas, esquentando seu jantar, o valor de um mi-nuto. O tempo escoa tão longo que se assemelha a horas. Depois teste no amor: uma hora é um segundo. Dois

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pesos, duas medidas, aqui vale a atividade. O feliz passa correndo, o infeliz na lerdice. No Céu, não. Lá o tempo raciocina, flui com tanta inteligência que é possível aproveitá-lo. Paz, amor, felicidade, dignidade, sossego, a cadência é sempre igual. Portanto, livre de angústias."Tostando no purgatório, compreendo Baltazar. Pelo andar da carruagem — a Terra desenvolvida, outra vez luxu-riante, já coalhada de seres procurando se expressar através de qualquer arte —, calculo em alguns milênios meu cumprimento da pena. Acumulo experiência e consigo contestá-la. Tempo digno e suave, passível de previsão, é sem angústia, mas chato. Aqui se antecipa tudo, sei de cor o calendário. Inclusive me preparo quando chega a temporada de pôr lenha na fogueira. Escondo o computador — digito um super-Pentium 1.755.000 — e agüento estoicamente. Conheço exatamente o minuto e o segundo em que o fogo abaixará. Acaba em monotonia, nem a ardência das chamas consegue me consumir. Preferia a anarquia da minha vida terrena. Passou- se um erro de escolha na figura da escrivã, a perfeita opção caberia a uma suíça. Eu, meu Deus, sou brasileira.

(...) uma mulher vedtida de sol, que tinha a lua debaixo de seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. E estando pejada, clamava com as dores do parto que a atormentavam. Foi vusto outro sinal no céu: e eis aqui um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez cornos

(...)(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 12, versículos 1-

3)

A Mulher, a Besta e a Prostituta

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Após confabulações, Baltazar e tia Maria Alzira con-cordaram: o mundo finalizava, faltavam poucos detalhes para a banda dispersar e encerrar a opereta. Breve a civilização quedaria enterrada até ressurgir nova espécie e retomar o caminho destinado a concluir-se em novo armagedon. O ciclo se repetia desde sempre, eternamente. Sempre se repetiria. Tremi com a afirmação pois chegava minha hora. Confesso o desespero de saber aproximar-se o instante de morrer. Portanto, engambelei-me em sonhos de adiamento:"E a besta e a prostituta não irão aparecer?" De olhos arregalados pela santa ignorância da principal testemunha do fim do mundo High Tech — através da mesma fórmula aplicada em outras eras para dizimar amebas e, mais tarde, dinossauros —, minha tia se irritou:"Você não sabe de nada ou se finge de pateta?" Convencida da burrada, a escrivã juramentada des-conhecia elementos de essencial importância ao correto relatório, erro sem cabimento pois o nosso apocalipse introduzia o costume da ISO 9002, tia Maria Alzira imprensou Baltazar. Reduziu-o a titica. Xingou-o de incompetente, irresponsável, vaidoso, mais ocupado em exibir-se do que cumprir obrigações, desastre inaceitável em caráter de arcanjos. Isto se arcanjo, após tamanha lambança, Baltazar alçasse ser. Encerrou a cantilena, excesso de palavrório, obrigando o anjinho a relatar-me em detalhes o passante no planeta antes de o próprio acabar. Ou ela o acusaria, perante quem de direito, de único culpado do próximo apocalipse não ganhar certificado de excelente qualidade na prestação de serviços:"As coisas mudaram, meu filho. Pensa que persiste o antigo vício danoso de empurrar com a barriga sem prestar satisfações? Cumpra sua tarefa, para isto lhe

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escolheram entre milhares de anjos. Trate de informá-la sobre todo e qualquer assunto relativo ao fim do mundo. Ai de você, Baltazar, se escapar algum cisco. Tiro-lhe as asas no susto."Assustado àquela hora somente Baltazar — céus, que anjo lindinho, tremia encolhidinho, escondido no armário, envergonhado com a bronca. Comoveu-se minha tia, removendo-o do cabide onde ele se enganchara:"Vamos, menino, acalme-se. As coisas não estão tão pretas."Dei-lhe chá de água-de-flor, embalei-o no carinho até vê-lo adormecer. Cansaço, suspirou tia Maria Alzira admirando o anjinho aconchegado no colo, as asas tão relaxadas que roçavam meus joelhos:"Tremenda envergadura, um garoto de futuro." Também ela afagou-o, enternecida com o belo da boquinha delicada, sonhando entreaberta, possivelmente com dias de menos agitação. O céu é uma mão-de-obra, surpreen-deu-me minha tia:"Se pudesse, igual a ele, encolhia em algum colo e dormia para esquecer. Você pensa que é moleza minha vida de artista? Qual o quê. Fecho este apocalipse, descanso al-guns dias e enfrento outra missão. Recomeço a maratona em outro planeta distante, de outra distante galáxia. Só eu sei a trabalheira, cada vez um povo novo. Chego meio aos trambolhões, imiscuo-me entre ele, tento lhe entender os hábitos, divido o cotidiano para depois ajudá-lo a vencer a privação. Há milhões de anos executo a triste lida de organizar a morte. Cansa, minha filha. Mas capricho na incumbência, não admito deslizes. Igualzinho Baltazar, eu quero me promover. Chego lá, ora se chego. Um dia vivo a beleza de desfilar entre os santos."Emoção no excessivo. Finalmente, sem pudores, minha tia discursara sua real transcendência. Escolhi não responder. Escapuli com o anjinho, sentei-me sob a mangueira, larguei-me durante horas — Baltazar e seu soninho enrascados em meu colo —, matutando meu papel no

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enredo complicado. Que fazia eu ali, bem no meio do furdunço? Sobrinha de entidade, amiga de um anjinho e dona do privilégio de inaugurar a escola literária apocalíptico-fantástica? Letras espetaculosas capazes de retratar o avesso do universo? Será que o povo culto renderia homenagens à estréia inusitada da escriba no purgatório, teclando e driblando chamas enquanto pensava o texto? Afinal, por que eu? Faltava um elo na história, cumpria o determinado sem alçar compreendê-lo.Continuo não entendendo. Embora guarde a esperança de poder esclarecer quando enfim me libertarem desta atrapalhação de escrever e queimar-me. Em termos, a mesma coisa. Mas aqui no purgatório vivido ipsis litteris. Talvez por isto, há milênios, eu rascunhe esta história sem conseguir terminá-la. Acontece algumas horas de o fogo esturricar uma frase floreada, transformando-a ante meus olhos em cinzas inconseqüentes. Esclareço aos doutos críticos que organizar palavras sentada sobre a fogueira é de todo impossível. Realizo milagres. Não à toa sou sobrinha de tia Maria Alzira, com certeza algum mistério se esconde em meu destino.Pensamentos, nada além. Interessa ao relato o anjinho estremunhando, quentinho, espreguiçando, já no ponto de acordar. Sapequei-lhe um par de beijos, Baltazar abriu os olhos, esticou as suas asas — nossa, quanta preguiça. Sentou- se e me encarou:"Menina, temos novidades. Concordo com sua tia, relaxei na obrigação. O mundo se desmilingüe e nossa testamenteira não sabe da missa a metade. Acomode-se no conforto pois lhe tomarei o tempo. Qualquer dúvida, me interrompa. Debaixo desta mangueira vou graduá-la doutora em assuntos de armagedon."E desandou a falar. Começando pelo óbvio de o sítio afastar-me dos incidentes mais trágicos. O Céu planejara assim, eu era predestinada a durar até o fim. Ultimo segundo do ultíssimo minuto já que detinha a honra de relatar o episódio à raça subseqüente. Na opinião do anjo,

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proteção demasiada pois eu me igualava às idiotas que desfilaram na Terra sem chance ou necessidade de lutar para viver: "Idiota, eu?" Reagi, ofendida. "Exatamente, a senhora. Não corresse o grave risco de rebaixar os meus pontos cuspindo palavras feias, afirmaria sem medo que você é uma babaca. Não a ofendo, entenda. Apenas lhe ofereço sua verdadeira face: a de menina mimada, vigiada além da conta. Quindim do apocalipse, você não sofreu metade do sofrido em fogo e sangue pela humanidade inteira. Largou-se aqui bonitinha, agarrada às santas saias da santa Maria Alzira. Mas contarei os detalhes. Já que lhe cabe a glória de assinar a edição revista e revisitada do Livro do apocalipse, você saberá de tudo. Prepare-se, aí vem bomba."Através de Baltazar viajei por ocorrências para lá de assombrantes. Aprendi que a geografia já se deslocara inteira. Em seu aspecto físico, o mundo estalava o novo. A Europa virara um imenso arquipélago onde reinava o calor:"Ou seja", explicou-me o anjo, "lá as coisas dançarão em ritmo caliente. A nova população remanchará na espe-rança que o futuro ajeite os erros. Quem resiste a sol e praia? Você é brasileira, entende nossa intenção de na nova encar- nação redistribuir riquezas."Não apenas entendia, apoiava-lhe a idéia — lugar muito prazeroso é difícil de engrenar. Alguém pode imaginar as delícias cariocas na disciplina germânica? Tudo a tempo e a hora funcionando perfeito? A mim não cabiam dúvidas, se o Rio de Janeiro andasse em passo alemão a humanidade inteira trataria de mudar-se à minha antiga cidade, sucursal do paraíso de tão bela e organizada. O mundo embasbacado curvaria ante o Brasil e o governo de Brasília teria que endurecer e fechar nossas fronteiras, algemar os imigrantes, pegá-los no aeroporto e despachá-los de volta com inaudita grosseria, igual agiam conosco nos idos de antigamente:"Realmente, desastroso. Nós, gentis e cordatos, suando xenofobia, julgando-nos superiores ao resto dos semelhan-

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tes. E, Baltazar, Deus sabe o que faz distribuindo benesses de acordo com o clima. O Rio organizado encarnaria o Nirvana."Baltazar me aplaudiu:"Bravo, bela donzela, o caminho é por aí."Pedi que continuasse, morria de aflição de xeretar novidades. O anjinho me atendeu. Após um vôo rasante, a ponta de suas asas comichando meu nariz, ajeitou-se na mangueira, abriu uma lata de suco e dissertou sobre a África:"Virou de ponta-cabeça. Enxertamo-la agora em região temperada. O Saara mudou-se para os Estados Unidos e se uniu ao sobrevivente deserto do Arizona. Determinamos ao Sol incrementar ao máximo o calor da região. Acho que finalmente os norte-americanos aprenderão o que é bom para a tosse. Pobres, cortarão um dobrado ao se verem despejados do éden paradisíaco que lhes abrigava o conforto."Em compensação, a novíssima África recebera de bandeja tudo de bom e melhor. Inclusive a vocação de vencer interesseiros, um propósito divino de reparar os defeitos cometidos nesta era:"Aquela gente sofreu, nossa. Em vida, provou o inferno. Agora desfruta o belo de se instalar no céu, glória mais que merecida. Dali só saiu santo."Encerrado o passeio pelo continente África, Baltazar me explicou que o velho Mar do Caribe banhava as novas costas da ensolarada Suíça. A América do Sul enxugara o território e levara um empurrão: espalhava suas terras ao norte do equador. Nunca mais as belas praias, nunca mais calor gostoso, nunca mais povo otimista que traduzia em música — excelente, por sinal, reconheceu Baltazar — a miséria cotidiana:"Será uma Inglaterra maior. Mesmofog, mesma chuva, a mesma falta de jeito nos sabores da cozinha. Veremos se agora vai. Fizemos a nossa parte. A antiga Inglaterra, como você sabe, afundou no maremoto do início do

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apocalipse. Não é nossa intenção repescá-la no oceano. A antiga Grã-Bretanha não merece esta honraria. Quando detinha poderes revelou-se agressiva muito além do suportável. O mundo que nascerá não merecerá o carma de engolir outra Inglaterra. Finalmente, ela acabou. Esperamos que o molejo do latino-americano suavize a região. Na contramão apostamos que a posição geográfica anulará a indolência. Sei lá, aguardemos."As ilhas do Oceano Pacífico, incluindo o Japão, agruparam-se em um território meio sem definição, cortado pelo Himalaia. Ali se aplicariam testes de clima, solo, flora e po-pulação, passíveis de aplicação em outras remotas galáxias se na Terra os resultados se mostrassem positivos:"Em qualquer apocalipse realizamos ensaios. Neste mundo que acaba ensaiamos no Brasil. Depurando aqui e ali, chegaremos à perfeição. Embora eu sempre afirme que este planeta manhoso não se preste a novidades. Tentamos de mil maneiras, nada aqui acerta. Mas o Senhor insiste, o jeito é continuar. Não passo de um reles anjo, bem ágil na esperteza. Afirmo sem cerimônia que a Terra desmoraliza qualquer plano divinal de colocá-la nos eixos. Na minha opinião, deveríamos encaixotá-la, fechá-la para balanço. Através de auditoria, descobrir vícios e erros, tropeços e vocações. Saneados os caprichos, marcaríamos a reinauguração. Sou voto vencido. A turma aposta que isto pegará no tranco. Duvido."Despencou-se Baltazar do galho para meu colo, boquinha lambuzada com restos do suco de manga, a latinha amassada e pendurada na asa pois o anjo pretendia levá-la à sementeira:"Senão como nascerão os pés de suco de manga, en-latados e pasteurizados, invenção do sábio agrônomo, viúvo de sua prima? Você nem imagina, mas as descobertas do augusto falecido são mantidas em canteiros zelados pelos arcanjos. Florescerão pelo mundo, no mundo que nascerá."

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E voltou a relatar a novíssima geografia. A China se repartira em centenas de territórios, cada qual com um microclima. Metade da Rússia sumira. As calotas esverdearam na intenção declarada de pulsar o pulmão do mundo, como pulsou a Amazônia. Notando meu espantamento, Baltazar justificou-se:"Enfim a explicação do abuso de terremotos. Rearrumando a casa, provocamos agitação. Não pense em má vontade ou intenção de assustar. Nunca achamos outro jeito de modificar a área. Confesso meu lado prático, apóio os terremotos. São instrumentos potentes, na verdade indispensáveis. Na relação custo/benefício não existe tecnologia capaz de melhores lucros. Veja bem, simultaneamente mudamos os continentes e recolhemos as almas, metas essenciais de qualquer apocalipse. Terremoto é fundamental. Sem eles, pouco faríamos."Pensando objetivamente, Baltazar tinha razão. Qualquer séria operação clama por praticidade. Sem dureza na ação, o mundo não acabaria. Lamento naquele dia não lhe apresentar apoio. Na verdade, eu me encontrava em pré-estado de choque. Além do nó no meu mundo faxinado e revirado, Baltazar virou a página e desandou a tratar do encerramento da trama com pureza angelical. Explanou sobre os sinais sem notar meu desespero. Preocupava-o apenas que eu me inteirasse do enredo para não restar lacunas no relato agora escrito. Seu dever, sua tenência. Exagerou no egoísmo, não esperava do anjo um defeito desta monta.O feitio displicente envergado no sermão sobre a re-viravolta que distorceu meu planeta, Baltazar utilizou para indicar-me os sinais do início do final. Eu não vi, zangou-se ele, de cega ou ignorante. O dragão avermelhado de sete cabeças e dez cornos saracoteou no céu à disposição dos olhos de quem quisesse notar. Bastava olhar para cima. Além do livro perdido com o destino dos viventes, outros dois apareceram sem eu sequer perceber. Ambos de importância, pois marcavam na ampulheta a areia

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escoando e prestes a terminar: "Maria Alzira deveria escolher escritora mais atenta. E não uma alma penada, zanzando por este sítio ocupada em lastimar-se, desmaiando a cada susto, ao feitio das dondocas. Seu destino é importante, você não entende isto? Preciso eu me alongar, esmiuçando minúcias que pertencem em exclusivo à sua atenção?"Falou e se arrependeu, notou que me magoara. Brejeiro, ajeitou as asas e se encolheu no meu colo. Solicitou- me desculpas, os cílios pestanejosos sob os olhos azulados dos quais escorria açúcar, tal o meigo do olhar. Afinal quem não perdoa um anjo lindo e cheiroso, tão pleno de gestos leves, tão imerso em maravilhas? Sorri para meu anjinho:"Vamos, Baltazar, pára de reclamar e continue o relato."Anjos são mesmo assim, viciados nos encantos com que conquistam as pessoas. Não reparam e exageram. Se aca-so ferem alguém, não notam, mantêm o ritmo. Seguem em frente inocentes, lampeiros e orgulhosos de suas graças tamanhas, capazes de infernizar as idéias dos mortais. Baltazar não renegava esta tendência egocêntrica comum nos angelicais. Também ele exercitava o seu charme irresponsável. Voltou a matraquear sem notar meu desencanto de viver o derradeiro: "Existem alguns detalhes que, por morar no sítio, você não podia saber. Isto é serra, imagina, os eventos se passaram no meio do oceano. Apenas sobreviventes litorâneos — novos litorais, explique-se, como as praias da Bolívia — testemunharam o ocorrido. São marcos fundamentais, indicam a proximidade da descida da cortina. Ocaso, ponto final, recomeço da história."Depois do dragão vermelho, desenhou-se a estréia de outro drama genético, desdenhou o meu anjinho. A besta programada para assustar blasfemos desandou no laboratório. Assim, levantou do mar mais que besta, um grande assombro. Corpo de leopardo, patas de urso gigante, boca e dentes de leão, além de sete cabeças

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encimadas por dez cornos, cada um enfarpelado em vistoso diadema:"Três cabeças com dois chifres e quatro em unicórnio. O nosso laboratório está de miolo mole, manipula ex-centricidades dignas do Guiness Book. Quando deparei com a besta, por um triz não desmaiei. Até lembrei de você. Mas a história não terminou, quando o monstro abriu a boca, cuspiu obscenidades. Quase o céu desmoronou com o tamanho do escândalo. Completando a assustança, surgiram representantes da Tradicional Família Mineira propondo um abaixo-assinado contra o excesso de desmandos. Mineiro não falha nunca, aparece pelos cantos em horas surpreendentes.A tal da TFM acuou até os santos. São Miguel se aborreceu, achava que os mineiros já estavam dizimados. Espantou-se com os dez que puxavam riquixá no interior da China e que, constatado o apocalipse, adotaram o estilo sonso de se fingir de mortos. Claro, salvaram a pele e só se denunciaram ao soltarem o manifesto. Resultado? O céu determinou que mineiros não verão o próximo mundo, excelente punição pela tola intromissão no enredo apocalíptico. Há santidades hostis à insana decisão de largarem a mineirada flanando pelo infinito, desocupados, matreiros. Claro que encrencarão, afirmam as hostes contrárias à ordem de São Miguel. Sabe como é, mineiro é turma política, habituada a tramar. Tecerão na maciota e, se nós facilitarmos, assumirão o comando do próximo apocalipse. Enfim, uma confusão", lastimou-se Baltazar.

(...) Quem tem inteligência, calcule o número da besta.

Porque é número de homem: e o número dela é 666.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 13, versículo 18)

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Quanto à besta, a contragosto, as divindades aceitaram-na. Convocaram uma Cimeira e discutiram o assunto. Após muita discordância liberaram uma nota, conjunta e oficial, redigida em retórica puramente lusitana:"Está aqui, não está? Portanto, não resta jeito. Que a besta siga em frente."Um pequeno detalhe salvou o laboratório de falência fraudulenta: o bicho era numerado, prova suficiente de que os sábios se empenharam em acertar a mão. Produziram antes daquela 665 bestas. Muita incompetência junta: todas descartadas por piores distorções.Com aval das santidades, a besta pintou e bordou. Inclusive, um desassombro, introduziu outra besta ainda mais bestial. Esta chegou arrogante e logo fez chover fogo, torrou milhões de viventes. Baltazar me confessou que, no susto do incêndio, ele próprio se escondeu:"Apesar de saber que o evento vulcânico testava a fé dos eleitos, tratei de cair fora. Escondi-me no sítio e escapei do espetáculo. Detesto o estilo over. Neste ponto avalizo a opinião mineira: Merda é assunto íntimo. De qualquer modo, menina, estas bestas representam que seu mundo terminou."Gracinha, secou minhas lágrimas. Lastimou-se por contar efeitos tão desastrosos. Enroscou-se em meu cabelo, paparicou-me, dengoso:"Por favor, não chore. Há novidades piores. Como posso relatá-las com você nesta emoção?"Funguei, parei de chorar. Dei chance a Baltazar de falar aos borbotões, descrevendo a prostituta flutuando sobre as ondas. Gorda, imensa, provocante. Mas — Deus fosse louvado — seguindo o regulamento: uma cabeça, dois braços, par de olhos, par de pernas. Excesso de normalidade em erro de visual, a mulher exagerara na toilette de bordo: tubinho escarlate bordado em flores de ouro. Além de jóias, muitas jóias. Sublinhando a

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ostentação, a marafona empunhava uma flûte de ouro transbordante de champanhe. Safra requintadíssima, só o aroma entontecia. Mas meu anjo não gostou:"Tubinho, como se sabe, exige medidas certas, achei o modelito meio preconceituoso. Quem disse que prostituta necessita do figurino de puta de cais do porto? Sei, todo mundo sabe, as piores prostitutas vestem roupinhas simples, investem no estilinho sofrente-desamparada. Não faltou a esta Terra, que em boa hora termina, mulheres sem classe, sem resquício de escrúpulos. Jamais as vi enfiadas em toilettes de ouro. Aliás, aqui para nós, são tão chinfrins as coitadas que ficariam ridículas. Nossa, fofoca é ótimo, invenção de primeiríssima da espécie de vocês. Bem, voltando ao que interessa que afinal sou um anjo, não posso afiançar-me em veneninhos terrenos. Sei que nossa prostituta causou profundo espanto pousada no oceano."Baltazar aproveitou, desancou a humanidade. Morrendo esgoelada, vendo Deus pessoalmente e mesmo assim se julgando capaz de criticar. Entre os humanos restantes armou-se uma discussão, cada qual se acreditando dono da explicação de a puta não afundar. Dia e noite sobre as ondas sem cansaço ou resfriado, a dona fincou-se meses enfiada dentro d'água sem emitir um espirro. E entornando champanhe, parece que o presidente dos Alcoólicos Anônimos espinafrou com o vício da anfíbia meretriz, exemplo vexa- minoso ao porvir deste planeta. Não por puta, mas por bêbada.Em meio ao disse-me-disse, murmuraram-se teorias de variadas espécies para explicar o milagre de a madame flutuar: um equipamento hidráulico comandado pelos santos mantinha-na sempre à tona; sentava em algum trono de material inflável; bóias invisíveis impediam o naufrágio; baleias domesticadas serviam de anteparo. Baltazar dobrou de rir:"Vocês são arrogantes, credo. Com o pé no cada- falso e teimando em ditar regras à boiante prostituta. Ninguém

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aventou o óbvio de assistir a um milagre. Deus decidiu e pronto, dispensa explicações. É simples, sem discussão. Mas não para o ser humano, morrendo na prepotência de achar que nesta vida tudo tem que se ajeitar segundo a lógica dele."Replicar para quê? Baltazar se arrazoava, a humanidade arraigara em natureza turra. De modo que me calei, permaneci escutando as novas do anjinho descrevendo o simbolismo da puta e das bestas. A primeira indicava o poderio das damas:"Mulher não pedia licença, esmagava os escolhidos na maior sem-cerimônia. E os panacas dos homens gostavam e agradeciam. Repito de escutar, jamais experimentei, mas se deitar com as mulheres é alcançar de algum jeito a porta do paraíso, receber amostra grátis da feliz eternidade. É, garota, mulher é barra pesada, digna de admiração. Exatamente por isto é ordem de Nosso Senhor torná-las menos airosas no tempo ainda vindouro. Talvez haja menos guerras, menos dores, menos brigas, menos sofrimento rude. Fabricaremos também machos mais espertinhos. Este que acabou, nossa, que bestalhão."Agradeci comovida. Eu concordava com ele, embora identificasse uma ponta de exagero na crença de Baltazar. Idiota, o homem foi. Mulheres sabiam disto desde o início do mundo. Sabiam e se aproveitavam. Mas também classificá-los de rematado desastre configurava exagero. Sorri um riso maroto para o meigo Baltazar:"Meu amor, homem é charme. Jamais viverei sem eles. Impossível uma Terra sem a força, a competência, o jeito desajeitado, a intenção de acertar, a vaidade, a inocência, o desejo exacerbado destes velhos companheiros capazes de nos olhar com olhos de mil delícias. Em lugar carente de homens, acredite, eu estou fora. Nossa, será um tédio."Baltazar se aborreceu com a minha truculência, igual a meus semelhantes tentando ensinar a Deus. Desceu-me uma cacetada:

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"Ensinava os simbolismos e já expliquei a puta. Quanto à besta, ela é você, assim como os blasfemos. Agora, presta atenção. Quando falo dos blasfemos, falo daqueles crentes de fé tão enraizada que enxergam pela frente única e exclusivamente a própria religião. Saiu dali, pau em cima. Como se Deus concordasse em Se revelar apenas a grupelhos pequeninos. Esta idéia amalucada só poderia caber na cabeça humana, orgulhosa no excessivo. Resultado da melodia? Durante o correr da História surgiram alucinados provocando danação, não conseguindo entender que Deus é Um e se encanta com o nome que Lhe derem, louvores que Lhe prestarem, não importa língua ou credo, muito menos raça e cor. Blasfê-mia para o Deus Uno, justo, bom e generoso, além de bem- humorado e excelente dançarino, é a falta de respeito de um ser humano ao outro. O resto não importa."Imobilizei-me tonta com o monte de gente amiga, fiéis honorabilíssimos, mas incapazes de olhar o semelhante humilde com olhos mais fraternos. Ou aceitar outra fé com o mesmo respeito sério dedicado à sua própria:"Nossa, Baltazar, então o inferno é hiperdimensionado.""É, minha bela, infelizmente. Desonrar os semelhantes, único grande pecado, virou vício entre vocês. Isto, la-mentamos, não perdoaremos. Desrespeito é crueldade. As-sistimos lá de cima a centenas de movimentos em defesa de animais. Filhotes de baleia, mico-leão-dourado, serpentes defenestradas, órfãos de chimpanzés, jacarés divorciados, um monte de baboseira. Pelo bem do homem, nada. A não ser raros momentos de alguém santificado que a mídia espremeu até transformar em lixo. Era fácil, muito fácil, sossegar a consciência ofertando adjutório a animais inocentes, incapazes de falar, denunciar o errôneo da roubalheira de verbas, das engrenagens políticas, da falsidade escondida nos discursos de amor. Conhecemos vários casos de protetores de animais agasalhados com as peles de seus pobres protegidos. Bolsa de crocodilo e sapato de lézard aprimoravam a elegância. Credo, vocês

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não prestavam, apocalipse é pinto perto das atrocidades a que a Terra assistiu."Antes que eu argumentasse, desviou o assunto. Voltou a me indicar a importância dos sinais: chegava ao ponto de bala o final de meu mundinho. As bestas e a prostituta morreriam derrotadas pela força e imponência do forte cavalo branco, símbolo da redenção. Breve, eu assistiria ao surgir de uma dama linda e resplandecente, em plenas dores do parto. Chamava-se Grande-Mãe e de seu ventre viria a raça de doravante. Mas antes encararíamos um drama inexcedível: a indescritível encrenca da ressurreição dos mortos. Baltazar desanimou:"Ressurreição é pedreira. Assisti a alguns milhões, não consigo habituar-me. Surgem antepassados de muitos milhares de anos. Claro, se surpreendem. Às vezes ficam agressivos; em outras, choraminguentos. O planeta superlota, quase despenca do eixo. Prepare-se, nem dá para imaginar o tamanho da barafunda."Sentado à minha frente, olhos açucarados glaçados em severidade, Baltazar destrinçou experiência, não esqueceu detalhe. Queria se assegurar de eu não tremer na hora, largando de observar:"E também de tomar notas. Exponho cruamente a dureza do espetáculo para você enfrentá-lo com frieza de repórter. Veja lá o que vai fazer."Desenrolou-se em minúcias. Tão logo os mortos res-surgem, ensinou-me devagar, começa uma brigalhada pelos pedaços de corpos. Pernas, braços, coxas, bundas são disputados a tapa. Cada qual quer o mais belo. Como ressurgem nus, manifestam-se os tarados e os de recato excessivo. Arma-se uma gritaria, atentados violentos ao pudor e à compostura. Entram em cena anjos valentes. Bondosos, mas musculosos, distribuindo porrada no crânio de quem merece:"Decoro exige equilíbrio. Descambou para um lado, consideramos tarado. O céu também não aprova a virtude

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exagerada, pois não é o corpo humano cria de Nosso Senhor?"Prosseguiu o meu anjinho, confiando-me a bagunça prestes a acontecer. Distante de meu espanto, Baltazar me cochichou que em todo apocalipse carecas desandam encrencas. Traumatizados em vida pela humilhante calvície, aproveitam a bela chance e tentam se apropriar das melenas de alguém. Geralmente algum roqueiro que, honrando seu passado, reage na gritaria. Enfim, peleja-se por ninharia. Disputa-se a toilette envergada no enterro, surrupiam-se sapatos, arrancam-se dentaduras:"Troca de sapatos não compromete ninguém. Mas dentes refletem status. Neste caso, intervimos. Chamamos anjos-dentistas que, vendo necessidade, pedem o DNA. Caso preocupante já que o laboratório revelou-se ultimamente um berço de porcarias. Manipulando errado acabará enfiando os caninos do Drácula na boquinha encantadora da inocente Cinderela. Antevejo alguns monstrengos com certidão de uso e posse. Aguardemos, mas prevejo um cataclismo."Continuou Baltazar, confiando-me a desdita de remontar os humanos a partir de simples cinzas, sem misturar um pedaço. Empreitada dificílima, os anjos se distraindo ressurgiam frankensteins. Santidades se esgotavam, driblando como agüentavam o embate entre os anjos-montadores e a vaidade renascida dos redivivos pimpões. Com olhos desfalecentes, só de pensar na labuta que o espreitava à frente, Baltazar se lastimou:"Frenesi melodramático, só se vendo para crer."Quando enfim os mortos-vivos conseguiam sossegar, contentes em ser de novo a porcaria que eram quando atuantes na vida, explodia o mais terrível. Ajudá-los a superar o trauma ideológico:"Você pode imaginar um cavaleiro cruzado lado a lado a um comunista? O homo habilis olhando uma drag queen? Uma mulher das cavernas entrando em elevador? Um albigense fanático plantado no Vaticano? Um monte de

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povo rude, antes do ano mil, esbarrando em computadores? Nossa, é uma loucura. Custa uma trabalheira sossegar os faniquitos. Inclusive há suicídios, inaugurando a rotina do morrer e reviver. Um saco, dizem vocês. Aliás, com propriedade. Finalmente surge o dia de os zumbis se ajeitarem, acertarem na engrenagem. Aleluia, Aleluia. Pois, acredite. E só os ressuscitados encaixarem-se em seus passos que se anuncia o momento de matá-los outra vez. Minha flor, é um desatino, sempre temo endoidecer. Por sorte, depois é nada. Senão, eu morria junto."Absolutamente pasma com o enredo de Baltazar, incapaz de decifrar o porquê da insensatez de misturar na ca-çamba os pós e os pré-defuntos, apontei a meu anjinho a incoerência do método. Um simples computador resolveria em segundos quais partes eram de quem, quando ocorrera o óbito, enfim, detalhes pequenos de crucial importância, capazes de evitar a previsível balbúrdia de corpos no vazadouro procurando seus pedaços:"Não consigo acreditar. O céu conserva o ritmo dos idos do Big-bang. Além do mais, Baltazar, por que morre tanta gente no início do apocalipse se está determinado que irão ressuscitar? Um erro de fluxograma de conseqüências danosas. Urge atualizar o processo aplicado. E muito enrolado, credo, e ainda falam mal da gente."O anjo coçou as asas, suspirou em desalento, pediu-me guardar segredo: ele também discordava dos conformes assentados em todo final de mundo. No ocaso dos dinossauros armou-se uma miscelânea de proporções gigantescas. Precisou em emergência invocar-se um cometa que mandou para o espaço as bestas ensandecidas. Nem assim mudou-se o esquema. Gente boa, lá no céu, comandava forte lobby contra o modus operandi. Os mundos se expandiam em progressão geométrica, manter o estilo antigo cada vez custava mais. Os santos e entidades — sem falar na hierarquia de anjos e seus arcanjos, os operários da morte — terminavam cada

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ceifa em estado lastimável. Apocalipse após apocalipse, a encrenca aumentava. Talvez o certificado ISO 9002, uma excelente idéia da ala protestante, capitalistas adeptos da escola time is money, ajudasse o infinito a tentar modernizar-se:"Nossos apocalipses revelam um gosto barroco destoante do perfil minimalista do final da sua era. Mas existe quem defenda o respeito à tradição. Enfim, esta discussão se estenderá por séculos. Atividades celestes guardam um ranço burocrático. Não sei, minha menina, o forró é gigantesco. Quem sabe Bill Gates descobre um jeito mais fácil. Torço para ele conseguir porque, santa, estou exausto."Interrompeu a conversa a chegada de minha tia, arfante, descabelada, apontando o firmamento. A Grande-Mãe majestosa triunfalmente adentrava. Vestida de maravilha, o sol brilhando no ventre, a lua sob seus pés, a cabeça reluzente em diadema de estrelas. Ladeavam-na arcanjos envoltos em ouro e prata. Apesar das dores, a Grande-Mãe refulgia em luxos e louçanias. Amparada por seu séquito, passeou no infinito. Parava nas contrações, vergava sobre a barriga e então seguia em frente até sumir no horizonte. Uma chuva prateada, lágrimas pequenas pérolas, naufragaram os olhos calmos de tia Maria Alzira:"O parto se anuncia. Enfim, o mundo se acaba, outro mundo nascerá."Baltazar matusquelou, refletiu ar de tristeza. Transmitiu a informação pescada junto a agentes da Central de Inteligência — entre os quais, modestamente, listava-se ele próprio —, que o arcanjo São Miguel morria de ansiedade:"Medo de o laboratório não fazer algo decente. Tremo de imaginar alguém com três cabeças, todas três de camarão. Voltaremos ao jurássico, milhões de anos atrás, o que nos obrigará a refazer um caminho para lá de complicado. Concordo com São Miguel, a nossa parte eu garanto. Mas este laboratório..."

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(...) E vi os mortos, grandes e pequeninos, que estavam em pé diante do trono (...) e foram julgados os mortos pelas coisas que estavam

escritas nos livros. (...) E o mar deu os mortos que estavam nele, e a morte e o inferno deram os seus mortos, e se fez o juízo de cada um segundo as

suas obras (...). Esta é a Segunda morte. (...)

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 20, versículos 12-14)

As Almas dos Mártires

No início era o caos, no fim foi o caos completo.No meio, como sabemos, tentamos nos acertar.Mal e mal, é verdade. Percorremos o caminho — pré-história ao pós-moderno —, equilibrados no fio de uma aguda navalha. Mais para lá do que para cá, apesar da empreitada de raras almas penadas que tentaram a todo custo acertar nosso destino. Reagimos, esperneamos. Portanto não cabe assombro o decair da cortina, deixando-nos, péssimos atores, em estado lastimável.Mal as trombetas soaram anunciando o instante do nascimento varão, o céu se congratulou. Anjos, santos e entidades confraternizaram em risos. Materializou-se um charuto, gentileza de um caboclo incensando o advento. Minha tia abraçou-me, soluçando a emoção da obrigação cumprida: "Sempre me emociono quando a vida se garante. Graças a muito esforço ajudei a produzir o porvir do novo mundo."

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Tal e qual qualquer agente — disto sabia agora —, Baltazar bateu as asas e voou para o deserto. Cumpria sua missão de xeretar o evento. Retornou animadíssimo, babando contentamento, rasgando-se em elogios ao grande laboratório que, desta vez, felizmente, não metera o pé na jaca:"O menino é encantador, pele negra e olho azul, o tipo predominante no tempo que se inaugura. Mas a notícia melhor refere-se ao cérebro. O guri tem mais neurônios do que toda a humanidade somada no mesmo tacho. Resumindo, criamos gênios. Agora, resta aguardar o rumo destes neurônios. Sou contrário ao livre-arbítrio, nós criamos, nós mandamos. Liberdade é excelente, mas termina em anarquia. E se junto ã inteligência o rebento cultivar tendência ã opressão, à maldade, ao desrespeito? Acusam-me de pessimista, politicamente incorreto, fascista, mal-encarado. Mas nunca vi uma raça crescer nos nossos conformes. Mantenho a desconfiança. Se a estreante patuléia encaminhar-se nos trinques, a droga deste planeta guarda chances de arribar. Rezemos, cansei de apocalipses na porcaria da Terra."Nem consegui parabenizar a turma do Armamento, sossegar o meu anjinho com votos de confiança. Ritmo de apocalipse encosta no heavy-metal. A criança nasceu e do céu baixou a ordem para ressurgirem os mortos. Baltazar me instalou em um galho da mangueira. Segurança e conforto no confronto com assombros:"Não saia daí, minha linda, não sobrará um centímetro a seus gentis movimentos. A Terra entupirá. Além disto, pelo sítio passarão representantes de todas as épocas e mortes para você reparar e colocar em seu livro. Mantenha-se bonitinha neste galho confortável. Trar-lhe-ei comida e água. Eventualmente meu ombro para você descansar e derramar suas lágrimas. Minha doçura, prepare-se, não diga que não avisei."A ressurreição dos mortos ultrapassou em horrores a visão de Baltazar. Configurou-se récita de dramalhão de se-

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gunda. Confesso, em alguns momentos eu me esbaldei de rir. Impossível resistir aos homo habilis tropeçando extasiados no pé de caipirinha. Encantaram-se com as frutas, apesar da reação de tia Maria Alzira espantando-os no susto, igual se espantava galinha:"Habilidosos demais para meu gosto. Morrerão de bebedeira e escaparão do Juízo."Os habilis, porém, teimaram. Insistiram em embebedar-se, esbaldaram-se no porre até caírem de podres. Desabavam pelos cantos, ar de beatitude, um sorriso quase humano lhes iluminando a face. Em caráter de emergência, tia Maria Alzira invocou um batalhão de anjos-segurança, trei-nado e adestrado na ciência do porrete pelo exército de Israel. Jeito e gestos de meganha, o parrudo batalhão escondeu-se no pomar até a última hora. Providência um tanto inútil, os nossos tataravós preferiam enfrentar a força dos cassetetes a abrir mão do pileque, descoberta sedutora da após-ressurreição. Na opinião de Baltazar, exausto de socorrer moleiras despedaçadas — com a séria agravante de o dono do ferimento encontrar-se em estado etílico —, os homo habilis alcoólatras sinalizavam o mais destrutivo vício da extinta civilização:"Como ninguém notou? Teríamos reavaliado a tendência suicida que os homens, na esperteza, conseguiram en-garrafar. Santo Deus, o quanto erramos."Quanto ao congestionamento, Baltazar não se enganara, o sítio entupiu em procissão assombrosa de mortos excitadíssimos com a oferta milagrosa de retornarem à vida. Visitando o galho, o anjo me apontou o estilo dos zumbis, cada qual se comportando de acordo com o óbito. Infartados, por exemplo, caminhavam delicados, temendo que o coração voltasse a desengrenar. Afogados, aos milhões, receavam o riacho e, aos respingos de chuva, desesperavam-se tontos procurando onde abrigar-se. Um comandante de caravelas das grandes navegações — conchas, corais e lulas enrolados nos cabelos — destratou

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tia Maria Alzira quando ela lhe ofertou um singelo copo d'água:"Ora, pois, não estais a ver que disto eu quero distância? Água, minha senhora, guarda horrores de veneno. Prefiro morrer de sede, bem assim, devagarinho. Na hora do passamento, minutos de lambuja valem anos de delícias. A madame, uma neófita, com certeza ignora como é chato falecer. Portanto, não me apoquente."Tia Maria Alzira, matreiro risinho irônico, aliviou a sede de um passante festeiro, causa mortis natural, que se postara tranqüilo assistindo ao desfile da fila de atropelados e acidentados de trânsito. Apesar de estropiados, todos matraqueavam. Concentrei minha atenção e desvendei o motivo do acúmulo de decibéis: brasileiros disputavam pernas, braços e antebraços. Em alguns casos, cabeças. Na verdade, nausearam-me. Competiam em ferimentos apenas com os cruzados que trucidavam inimigos com a naturalidade com que eu fatiava queijos. Sem narizes, sem orelhas, com os dois olhos vazados, os cruzados ruminavam a velha ira assassina de esmigalhar infiéis. No caso, povos islâmicos, também igualmente tronchos, igualmente destrinchados. Frangos de padaria causavam males menores ao meu delicado estômago, só de vê-los senti náuseas.Os condenados à morte, estes, céus, não quis olhar. No surgir da procissão de gente guilhotinada, segurando a cabeça debaixo do braço esquerdo, quase caí do galho. Recusei-me a encará-los. Senão, eu desmaiaria. Despencava da mangueira, fraturaria o crânio, perdia massa encefálica, encerrava a obrigação de assinar o diário com as desavenças de bordo. Não cedi nem aos apelos de Baltazar e minha tia, insistentes afirmando que, por ser a testemunha, necessitava atestar. Senti nojo e vergonha. Enfrentei-os com ousadia. Afinal me dirigia a duas santidades capazes de me desintegrar a um estalar de dedos:

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"Nem morta encaro esta gente humilhada e desgraçada. Vocês, useiros e vezeiros em xingar a humanidade, des-conhecem meu instinto de odiar pena de morte. Nisto sim, o homem é verme. Além de verme, covarde. Não compactuo sequer relatando o hediondo. Danem-se, vocês dois. Despachem-me para o inferno, mas não esperem endosso à baixeza e à vilania de que foi capaz o homem. Até falar no assunto desperta a minha raiva. Há torpeza e desgraceira quando um homem mata outro. Mais torpeza ainda há quando alguém se dá ao luxo de avisar com antecedência a hora do desenlace. A vítima morre mais. Uma, duas, vinte vezes sente a faca lhe cortando, o nó apertando o laço na altura do pescoço. Descrevo as atrocidades inventadas por vocês. Narrar à posteridade a baixeza de meu povo, nunca, de jeito algum. Conservo alguns princípios de decência e elegância."Fechei os olhos e pronto. Afligiu-se Baltazar, temendo pelo meu livro que, se escrito capenga, talvez causasse a recusa do atestado de excelência ISO 9002. Portanto, avoejou e instalou-se ao meu lado, narrando no meu ouvido detalhes e acontecências de outros sacrificados que passeavam no sítio. Enforcados, eletrocutados, torturados, fuzilados, degolados, empalados, garroteados, esfolados, asfixiados, afogados, rasgados, envenenados, queimados vivos — a imaginação humana parecia ilimitada em maltratar o alheio. Disposta a não escutar, comecei a assoviar o último samba-enredo da minha escola de samba. Cega e surda, escolha minha, meu anjinho desistiu. Bateu asas irritado e gritou-me desaforos:"O feito está feito, independe de você. Descrevendo a morbidez que matou os condenados talvez impedíssemos o erro de ressurgir novamente. Mas a tetéia se aflige, arma siricoticos, ameaça cair do galho, suspira, chora, reclama. Bela escrivã me empurrou sua tia, nem às mal traçadas linhas você revela talento. Olha, menina, não esqueça. Se o Livro do apocalipse de sua nobre autoria editar com uma lacuna, eu mesmo, pessoalmente, lhe arranco do

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purgatório e lhe enfio no inferno. Seu tino é o seu destino, não assumirei a culpa das frescuras da escritora."Despachou-se, malcriado. Mas dispersou a turba que me atacava os nervos. Suspirei aliviada e reabri os olhos. Emoção além da conta. No quintal e no pomar espalhavam-se ressuscitados de mil raças, tipos, eras, exibindo os sinais das mais variadas mortes. Até homens das cavernas com a cabeça amassada por inimiga borduna. Romanos gladiadores, judeus escravos de Roma, massacrados pela peste, flechados, crucificados, gente de não sei onde, assírios, caldeus, babilônicos, engasgados, resfriados, japoneses evaporados no calor da bomba atômica, celtas, godos, visogodos, suicidas, assassinados, cristãos destroçados por feras, vítimas de muitas guerras, de doença inexplicável, de acidente médico, cinzas de multidões incineradas ao vivo pela bondade católica e desacerto germânico, escol dos navegadores, astecas, maias, guaranis, orientais aos magotes, alguns ainda insistindo no uso do haraquiri. Esfaqueavam-se, morriam, ressuscitavam em um círculo vicioso de morrer e de viver.Virgem, Nossa Senhora, apinhava tanta gente que escrevo no temor de Baltazar me buscar e levar-me para as chamas. Jamais poderei narrar a imensidão de mortos, imensidão de feitios com que cada um morreu. De tudo existia um pouco. Acreditem se quiserem, encostado na mangueira o nosso bispo Sardinha esforçava em recompor seus pedaços mastigados, processados no estômago e transformados em bosta. Destino desastroso, nem mesmo com muito esforço o indigitado bispo voltaria a exibir a igual exuberância com que entrara na panela.De repente armou-se a briga prevista por Baltazar. Tentei pescar cada uma, intento impossível, não sobrava um zumbi sem se atracar com outro pelos detalhes mais bestas. Os anjos desapartavam, falavam, aconselhavam e, em casos extremos, desmaiavam os encrenqueiros com pauladas nos miolos. Enxames de querubins voavam ao laboratório, ir-e-vir incessante de objetos em litígio,

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cabíveis de se prestarem ao. teste de DNA. Apesar de anjo, um cético, Baltazar reafirmou a triste desconfiança nos exames científicos, estréia espetacular do nosso apocalipse:"Isso não vai dar certo. Ciência é igual casamento, a verdade de hoje é o engano de amanhã. Temo a tecnologia, arrogante de certezas até que novos inventos anulem o anterior. Esta tragicomédia, assisto-a faz séculos. Vi centenas de descobertas transformarem o comprovado em deslavada mentira. Além do mais, minha filha, o nosso laboratório anda mal das pernas, cozinhou os nossos monstros do jeito que você viu: DNAs misturados, um delírio zoológico. Não serão estes cretinos, capazes de inventar tolices de três cabeças, que segurarão o tranco de alguns milhões de pedidos de checar DNA. Escreva o que lhe digo, acabaremos jurando que pedras neolíticas pertencem a foguetes da Nasa."Palavras de sabedoria, as testagens científicas ajudaram a complicar o roteiro complicado, por si só rocambolesco. Custou uma trabalheira convencer duas madames que DNA de perucas indicava a dona dos cabelos, não a dona da peruca. Ambas inconformadas exigiam atestado, com firma reconhecida de Cristo Nosso Senhor, de propriedade da peça, faceirice utilíssima quando elas respiravam nas soirées de Paris. A briga perpetuou até passar Malaquias — um irmão de Baltazar, com o jeitinho brejeiro de voar enviesado, artimanha das asinhas enraizadas na bunda — avisando ao mano que a peruca era sintética, made in Taiwan:"Não invente a novidade de enviar esta droga para exame, o laboratório trabalha em ritmo frenético. Surgiu novo problema de importância suprema: os transplantados. Há gente se esgoelando pelo mesmo coração, mesmos rins, mesmo fígado. Sairá jurisprudência, os sábios se reuniram para encerrar o assunto. Acredita-se que decidirão a favor dos doadores, apesar da pressão da turma dos

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transplantados. Baltazar, este apocalipse surpreende a cada instante, nunca vi tanto embrulho."Meio desequilibrado, bateu as asas com força e partiu a novo rumo. Baltazar ficou sozinho com a ira das dondocas, ofendendo-se ultrajadas só com a possibilidade de terem usado em vida a peruca Taiwan. Uma empurrava à outra a posse da indigência que acabou esquecida sob um pé de tomatóbora. Temendo o mal maior de afinal descobrirem a dona do falseado, as duas se aliaram e acusaram o Brasil:"Esta droga é pertencência de artista brasileira, expert em telenovela. Procurem naquelas bandas de indigentes convencidas. Uma delas certamente reconhecerá a peça."A discussão de dois homens, ambos norte-americanos, desalojou do cenário as carecas enricadas ao sol do Pri-meiro Mundo. Fortes, altos, elegantes, os machos se esganavam na intenção de salvar uma prótese peniana de extensão e diâmetro além dos padrões normais. O inusitado da trama estimulou a torcida. Anjos se permitiram intervalo na labuta, dividindo-se em dois grupos. Os a favor do yuppie — operador de Wall Street, bem-sucedido, faceiro, estressado ao ponto extremo de retorcer a engrenagem que alçava o dito cujo — e os ardentes torcedores do combatente capado em alguma guerra inventada pela cúpula de Washington.Claro que o pobre-coitado, promovido a herói às custas da macheza, congregou mais partidários. Antes de os litigantes se assassinarem em sangueira — e custarem a trabalheira de voltarem a respirar —, o arcanjo in charge do drama determinou exames em caráter de emergência. Despachou-se um querubim, inocente ser alado, com a prótese na mão. Visão pouco edificante, mas premente e necessária. Não restava outra maneira de o pênis superdotado chegar ao laboratório. Voltou a criaturinha em tempo indeterminado — dias não se mediam durante o final do mundo — comboiando a novidade:"Detectaram vestígios de pólvora, este troço andou na guerra. Portanto, é do soldado."

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O yuppie protestou:"Merda de laboratório. Namorei uma jovem do Sendero Luminoso. Apesar de linda, vivia com as mãos meladas de nitrocelulose, nitroglicerina, salitre, carvão e enxofre. Vocês anjos e arcanjos, sabe-tudos declarados, não per-cebem a evidência? O dele ficou na guerra. O meu passeou na guerra. Se há vestígio de pólvora, este utensílio é meu."A lógica do yuppie silenciou a torcida. O veterano chorou quando o arcanjo-chefe determinou a procura da companheira-terrorista-peruana. Melhor que o DNA, apenas ela, só ela, atestaria a origem do objeto em litígio. Encarapitado a meu lado, Baltazar me cutucou:"Não lhe disse? Existem evidências que só os olhos descobrem. Até próteses guardam singularidades. Aguardemos a peruana. Conforme o sorriso dela, conheceremos o pobre que precisou desta bosta para regalar na vida."Não gostei do linguajar do anjinho Baltazar, com certeza animado com a vilania cercante:"Anjos cultivam o uso da linguagem apurada. Faça o favor, Baltazar, não diga palavras feias. Não combinam com você, meu mimo de criatura."O mimo de criatura ignorou a censura. Agitou-se animadíssimo com a visão da señora adentrando no recinto. A torcida abriu a roda. Baltazar bateu as asas e sobrevoou a cena. Eu me equilibrei em pé, disposta a não perder um segundo da artimanha. Consegui testemunhar a imponência do arcanjo, com a baixaria na mão, achegar-se à peruana que se desgrenhou excitada:"!Pero, mira, si es mi amor...! Qué es lo que han hecho contigo? Te han destrozado. !Fueron a cortar la parte más dulce de tu cuerpo, la más difícil de olvidar! !Ay, cómo queria morirme! !O matar al desgraciado que te hizo eso! Cómo me gustaría que volvieses a apretarme entre tus brazos..."A paixão escancarada comoveu os circunstantes. Entre aplausos e lágrimas, o yuppie recebeu o troféu e atracou-

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se à amante. Instante de apreensão, a mulher o empurrou:"!Tenias un miembro falsificado! Ypensar que me enganãste todo el tiempo... Diós mio, qué desgracia, venir a enamorar-me de um pedazo de silicón.! Maldito, si tu tuvieras um cuerpo entero te estrangulaba, de rabia!"Tragédia clássica grega. A senderista matou o yuppie, o veterano suicidou-se. Ambos, em segundos, ressurgiram lado a lado. O yuppie, desalentado, desistiu de sua luta e entregou ao soldado a peça que para ele carecia de valor:"Sea lo que quiera Diós que sea, divirta-se. Nunca entendi direito para que servia isto, além de fazer pipi."Sem saber se osculava o presente ou o yuppie, o militar escapuliu disposto a aproveitar doces horas amorosas. Su-miu atrás do pomar. Segundo me informaram, nem uma habilis escapou de sua sanha. O veterano de guerra, atochado em sua prótese, escapou de falecer pela terceira vez ao se precipitar sobre Julieta. Romeu viu e não gostou, empunhou a sua espada. Acudiram, in extremis, os meganhas do pomar. Até a hora final de receber o carimbo que lhe liberava o céu — aliás, merecidíssimo, o homem passou a vida singrando pelo inferno de usar documentos falsos —, o cidadão regalou-se, não desperdiçou mulheres. Aproveitou o impossível sem danar na quebradeira característica dos machos após refrega amorosa. O corpo investia o mínimo, a ferramenta alcançava o tamanho desejado com simples gesto de mão. Baltazar apreciou o processo eficiente, capaz de livrar os homens do medo da falha técnica:"Aprovo o método. Incentivo, inclusive, o seu uso corriqueiro. As mulheres ignoram a gloriosa vantagem que o Céu lhes outorgou. Deitam e, gostando ou não, soluçam em ais e uis. A vaidade varonil se encarrega do resto. Acrescente a seu livro que sugiro ao arquiteto, sábio criador da vida, que homens nasçam com prótese. Brigas, mortes, suicídios, falências e separações cairão pela metade. Além do trabalho extra dos pobres anjos da guarda, lembrados e invocados quando o instrumental

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emperra. Coitados destes meninos, saracoteiam altas horas, atravessam madrugadas acudindo os enguiçados e contornando problemas. Creia-me, minha bela, para a ala masculina potência ainda é tudo. Por isto voto na prótese, invenção democrática que igualará as chances dos garanhões do planeta. Casais se enamorarão independente do sexo que jamais negará fogo. O encanto advirá pela inteligência, charme, experiência, beleza, os detalhes escondidos na alma de cada um. Não é mais honesto?"Voltou a enroscar-se no galho, confabulou com colegas que traziam novidade dos sete cantos do mundo. Sete, determinou-me:"Trate de não esquecer. Norte, Sul, Leste e Oeste acabaram juntamente com o mundo anterior. A nominação futura dependerá do idioma que inventar o novo povo."Encolhi-me em meu canto aguardando o resultado do confabular angélico. Desconfio que dormi. Acordei com Baltazar sentadinho em minha coxa e doido para conversar. Pela expressão malandra, estalava novidades:"A princesinha acordou? Dormiu bem? Sonhou com os anjos? Ok, amor, acomode-se. Preciso lhe relatar que, igualzinho ao sítio, o resto deste planeta não tem mais onde pôr gente e as confusões daqui são as confusões de lá."Começando com as tribos da antiga Europa. Os mortos ressuscitaram engalanados de acordo com o clima ante-rior. Capotes, peles, suéteres, grossas mantas de lã, sem falar nas armaduras. Diluída a euforia do reencontro com a vida, os pobres desmilingüiram, danaram a desidratar, inconformados com o sol inclemente e abrasador. Os anjos daquelas bandas pediram ao laboratório tambores de soro fisiológico, remédio de fácil uso, fácil manipulação. A novela começou quando zumbis mais antigos, ignorantes de agulhas, recusaram-se a aceitar aquela parafernália espetando suas peles. O Céu se preocupou, invocou uma

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entidade famosa pela doçura, pela gentileza ímpar, invulgar capacidade de lidar com ignorantes:"Nem ela, minha menina, nem madre Teresa de Calcutá convenceu os bárbaros dos avanços da medicina. Duas colheres de açúcar, uma de sal e pronto. Um lindo gosto de lágrima salvará sua vida. Pois, sim. Os brutamontes desconhecem açúcar e se assustaram com a madre, enfiada em uma roupa que lhes causou certo horror. Ameaçaram linchá-la, alguns anjos parrudos resgataram-na às pressas. Resultado: reunidos em Concilio, arcanjos oficializaram a desdita de morrer e renascer, sem pausa para descanso. Estão lá, nesta retreta. Desidratam, morrem, vivem e desidratam de novo. A Europa voltou a exalar o aroma de funéreo que acompanhou sua História. Incrível, parece carma, nem na ressurreição o Velho Mundo escapou da antiga e triste sina de ser palco de batalhas. Sim, senhora, pensa que é como aqui, onde o espaço verdeja? Além da inesperada desidratação, lá os res-suscitados procuram por suas casas já nas mãos de outras famílias. E tome de confusão."Na Europa, e também na Ásia, eclodiu a aflição que nenhum Banco Nacional de Habitação poderia resolver. Centenas de gerações ocuparam o mesmo espaço. Juntos e redivivos reclamavam sua posse. Prato cheio e regalado ao Movimento dos Sem-Terra. Passava pela cabeça do arcanjo São Miguel importar uns brasileiros para ajeitar o assunto. Ponderei com Baltazar que então o meu país se prestara de cobaia, espécie de pré-evento aos dramas apocalípticos:"Febem, BNH, MST, começo a concordar que vocês inventaram o Brasil e depois o transformaram em campo de treinamento. Tudo que acontece agora, eu já vi acontecer. Baltazar, que covardia."Bingo, sorriu Baltazar:"Mas eu já lhe disse isto, você não me deu ouvidos. Cheguei a acreditar que você não sacaria que a pátria amada surgiu para nosso adestramento. Ou você pensa

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que santa Maria Alzira nasceu aqui por acaso? Planejamos os tintins, desde Cabral, um dos nossos. Seu país serviu de prova para tantas novidades que decidimos evitar balançá-lo em terremotos. Senão, daria na vista. Às vezes me perguntava, assistindo ao surreal que acompanhava o Brasil, como vocês não desconfiavam. Não é possível, tudo virava susto, não se ajeitava um milímetro nos parâmetros normais. Pessoalmente acredito que exageramos na dose. Qual o quê, vocês engoliram tudo. Nem reclamar, reclamaram. Parabéns, menina, o brasileiro mostrou um excelente caráter. Sofria o inexplicável com a paciência crista de esperar corretamente o tempo da expiação: o carnaval, festa que lhes doamos para diluir os sustos. Funcionou, maravilha."Baltazar não se enganava, não percebemos de bestas. O país ostentava um currículo que, francamente, assombra-va. Geralmente alavancado por alguma caganeira, o rincão consolidou-se apoiado no improviso. Pela História oficial, descoberto por acaso. Um príncipe português com o intestino frouxo libertou-o de Portugal. A república nasceu pelas mãos de novas cólicas de um general monarquista. Sem esticar o assunto, citando fatos recentes, veio outro general, um dos pais da linha-dura, e se auto-nominou o autor da distensão. Sucedeu-lhe um deputado, fiel de primeira hora e raivo de quando em vez — aconteceram alguns dias de a tintura não pegar, mas isto não vem ao caso. O realmente importante é que este cidadão, alçado ao executivo por um drama intestinal, pariu a democracia:"Credo, Baltazar, quanta maluquice. Não vimos de irresponsáveis que o Brasil serviu de teste para o mundo que há de vir.""Certo, minha lindeza. Agora que você entendeu, vamos mudar de prosa. Urge a necessidade de você se enfronhar no passante em outras áreas, distantes de nosso sítio."Antenei atenção à conversa do anjinho, orgia de no-vidades. Já que Londres se afogara, Freud tomou um táxi rumo à Viena d'Áustria. Ressuscitou na Berggasse. Levan-

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tou, olhou em volta, escutou as novidades. Espantou-se com o número de seguidores, chocou-se com os ortodoxos:"Ortodoxo é sempre chato, em qualquer ideologia."Envergonhado ante as mães do finado século XX, vítima de caça às bruxas, xingadas e destratadas nos consultórios do mundo, o doutor se desculpou:"Aprendi já falecido que o afeto é anguloso e de vez em quando espeta. Sem maiores conseqüências. As coitadas das senhoras carregaram meio século a culpa pelas neuroses de um monte de incompetentes. Penduraram as genitoras na corda do enforcamento: frustração, melancolia, cistite, unha encravada, gastrite, miolo mole, septicemia, colite, seborréia, meningite, tudo se explicava pelos deslizes maternos. Aceitem o mea culpa. Assumo a responsabilidade da ampla, geral e irrestrita esculhambação das mães. Espero que, no vindouro, sumam os psicanalistas de enfoque ortodoxo. Lamento sinceramente, mas a chatice materna não me cabe evitar. Afinal, de um jeito ou de outro, a gente precisa nascer. Voltarei ao ponto morto na maior tranqüilidade. Poucos me ultrapassaram: ajudei e atrapalhei na exata medida exata. Entschuldigen sie mich, aber ich bin eingenie. Sorry, periferia, afirmei que sou um gênio."Encerrado o caso Freud, Baltazar desanimou. Estirou-se na mangueira, asas dependuradas, e sumiu em seu silêncio. Emergiu pouco depois, disposto a mudar de tática. Levantou-se e me encarou, os olhos preocupados sem o melado de sempre. O fato, explicou-me, é que se alongando tanto, citando nomes e datas, ele me expunha a dois riscos: o de um livro exagerado, ainda maior que a Bíblia, ou de misturar os casos relatando miscelâneas:"Não devo correr o risco. Se o texto revelar o estilo crioulo-doido, ou neobarroco-pós-tudo, ambos nos estrepamos. Com tanta informação fervilhando na cabeça, temo vê-la narrando que o leão de Daniel ressuscitou no zoológico ou que Átila, rei dos Hunos, mandou explodir os Alpes. A novíssima edição do Livro do apocalipse revelará mais

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tenência com informações gerais. Até porque os leitores já partirão da premissa de que o mundo terminou em imensa barafunda. Enfim, narrarei por alto, você aproveitará os lances predominantes. Sua alma, sua palma, a escritora é você."Engrenou primeira e rezou a ladainha até desabar exausto, morto de tagarelar. Não permitiu-se um descanso, um reles espaço de vírgula, um ponto suavizado, uma pobre exclamação. Eu que me esforçasse em acompanhar o compasso. Estreou a cantilena retratando a algazarra da China com bilhões de redivivos zanzando de lá para cá, sem espaço, de sentar:"O Circo de Pequim afamou no merecido, alma de chinês é alma de equilibrista. Os zumbis se apoiam sobre os ombros uns dos outros, montando barreiras incríveis, às vezes de dez andares. O tumulto se alastrou. Ouvi dizer, mas não creio, que o Juízo Final chinês se fará no par ou ímpar pois não sobra tempo útil para julgamento sério. Também quem mandou, nasciam igual coelhos, insuflados pelo clima ou fé cristã rigorosa. Ah, acabei de lembrar que professavam outros ritos. Olha, sei lá, começo a me perder, é informação demais. Eu não sou computador, limito-me a ser anjo."Esgotada a irritação de processar tantos dados sem estourar seu hard disk, Baltazar pediu-me sério para anotar no livro o dado horripilante da doação chinesa de milhões de anjos-meninas:"Tanto se discutiu sobre o sexo dos anjos. Pois saiba que sou menino. Portanto me alegrei em receber as anjinhas, apesar da covardia que lhes marcou a entrada no meu mundo divinal. Mudando de assunto, menina é sempre lindeza, você não acha?"Perguntou e se irritou, não queria gastar tempo parlando futilidades, nem ouvir-me discordar sobre suas pre-ferências. Intuiu minha inclinação aos dotes dos anjos-machos. Autoritário e insolente, calou a minha resposta:

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"Perguntei por perguntar. Sua opinião não me interessa. O céu funciona assim: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Estamos conversados."Após a proclamação de tradição democrática, respeito ao pendor alheio, deixei Baltazar falando o qualquer vindo à telha. Anjo irritado assusta. O último que me contaram acabara com Sodoma; no rastro, sumiu Gomorra. Com medo de Baltazar incendiar o meu sítio, matar-me antes da hora, incinerar o pomar, detonar os tomatóboras, inclinei-me humildemente:"Pois não, meu senhor, às ordens." O anjinho aquiesceu. Voltou a deitar no galho, relaxar as belas asas, reforçar o trololó de espalhar novidades. Da China pulou à Grécia, berço da civilização — a ocidental, é lógico — onde, naquela hora, reinava ausência de métodos. Em português claro, bagunça. Sócrates se encrespava com Platão, o discípulo brilhante mas um tanto atrevido parece que distorceu os pensamentos do mestre. Filósofos de todas as eras e de todos os matizes pugnavam o direito de afirmar que marcaram o pensamento humano. Espantando os conterrâneos, Aristóteles evitava a disputa imeritória. Sabia o quanto valia. Portanto distraía-se às voltas com o tricô, a linha correndo ágil de uma agulha à outra, passatempo favorito nos séculos de sepultado. Sentado ao lado, Eurípedes, pensador e dramaturgo, injuriado em seu tempo a quem a posteridade concedeu justo valor. Pobre Eurípedes, trazia de sua tumba o jeito meio abusado de se acreditar capaz de decifrar as mulheres. Uma crença perigosa, mulher é artigo dúbio, costuma surpreender. A sorte de Eurípedes é que ele voltaria a falecer antes de enfrentar a dama resolvida a encará-lo.Dada a eficiência dos mortos-vivos da Grécia dos idos de antigamente, as entidades prestavam-lhes finas solicitudes. Segundo afiançou-me o anjinho Baltazar, todos receberiam salvo-conduto para um vôo sem escalas entre a extinta Terra e o resplandecente éden:

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"Uma espécie de passaporte diplomático evita a pendenga das filas. Mas eles merecem, destacaram-se pelas mentes superprivilegiadas. Precisamos de quem repense nossas metas antiquadas."Confessando seu cansaço de voar de Seca a Meca atrás de informações, Baltazar chutou o resto. Da Vinci e Michelangelo esticavam um bate-boca, cada qual se afirmando o supra-sumo da Arte. Aflito e atrapalhado, van Gogh descabelava-se procurando o Pitanguy:"Vendem as minhas telas por muitos milhões de dólares. Não fica bem ao artista mais bem pago da História passear meio aleijado. Será que o Pitanguy reimplanta minha orelha? Ele lá, e eu aqui, somos os grandes papas da mais refinada estética."Apesar da interferência de nomes de tradição, van Gogh não alcançou a graça de ver o cirurgião. Pitanguy ganhara asas e descansava no céu, inclusive se adestrava para o próximo apocalipse, o tal da longínqua galáxia. Triste e inconformado de passar à eternidade com uma orelha faltando, o pintor cortou a outra. Baltazar perdeu o sono:"Nossa mãe, ficou horrível. Mas perdoamos, ele pode. Alcançou o paraíso, pintou-o em suas telas. Na verdade, querideza, van Gogh será um anjo, primo-irmão do Pitanguy. Garanto que o holandês ganhará novas orelhas."Após relato tão belo, duas almas singulares no exercício da beleza encontrando-se no céu, Baltazar se dedicou ao capítulo assustança. Napoleão, o de fato, praguejava a estratégia empregada contra a Rússia. Irritados com as pirâmides, extenuados escravos — não acabava nunca o esforço inaudito de arrastar pedras na areia — desacataram o zumbi do faraó Tutancâmon. Vikings se esgoelavam, exigindo o atestado de inventores da América. Enxames de jornalistas borboleteavam em volta, fuxicando explicações, pedindo fotografias que registrassem o episódio. Meu anjo preocupou-se:"O pessoal não entende que o mundo acabou e a História não muda. E jornalista, também, não rejeita ocasião, adora

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uma novidade. Onde já se viu vikings com fotografias? Menina, este apocalipse está me saindo um circo."Com direito a picadeiro, bandinha e cães amestrados. Novas de todo o jeito engordavam a versão revista e revisitada do Livro do apocalipse. Anotei as importantes, relato a meus leitores. Se algo faltar, desculpem. Resumir ciclos da História é tarefa complicada. Com esforço e diligência redijo estas pobres linhas na esperança ardente que o último apocalipse não tenha passado em vão. Alguma coisa de útil espero esclarecer à gente da nova raça. Quem sabe eles não acertam e a Terra enfim progride?Das azáfamas detalhadas pelo anjo Baltazar, lembro-me de eventos que me marcaram a cachola. Dois famosos cientistas, Copérnico e Andreas Vesalius, somente no fim do mundo entenderam a coincidência de apenas uma semana ter separado a edição das obras de cada um, ambas determinantes no progresso da ciência. Enquanto se abraçavam, Galeno cuspia fogo. Afinal coubera a ele, durante 14 séculos, a honra da autoria da bíblia da medicina que Vesalius desbancou.Alegando a ousadia de haver sido o primeiro a afirmar que o mundo continha exclusivamente varridos loucos de pedra — do papa ao ignorante, ralé da ralé da plebe, não escapava ninguém —, Erasmo de Roterdã exigiu um cama-rote com vista para o infinito. Baltazar o apoiou, concordava com Erasmo:"Grande Erasmo, a Terra é mesmo um hospício. Além disso, este sábio pôs o dedo na ferida, apontando os desejos, inclusive os mais fúteis, como molas impulsoras do tocar a vida em frente. Gente muito acertadinha, com a cabeça no lugar, nunca inventa nada novo. Dependendo deste povo, modesto e acovardado, você ainda estaria enfurnada nas cavernas."Copérnico murchou a crista quando um anjo lhe informou que a Terra não girava em torno de eixo algum. Geocentrismo, heliocentrismo, rotação e translação não

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passavam de delírios. Na verdade verdadeira, o planeta era uma imagem gerada no infinito por arcanjos-arquitetos:"O planeta é uma miragem estatelada no céu. Redonda e estabilizada. Igualzinho um ovo frito jogado na frigideira", esclareceu Baltazar.Johannes Kepler, coleguinha de Copérnico, lamentou que suas leis sobre as rotas do Universo, suadas e trabalhadas durante a vida inteira, reduzissem-se a nada em simples piscar de olhos. Protestou com as entidades:"Dei-lhes colher de chá afirmando que os planetas conservavam suas órbitas graças a anjos da guarda e de repente descubro que habito um ovo frito? Francamente, espanto-me. Soubesse desse milagre, em vez de abominar os ritos da astrologia para lhes ser agradável, eu criaria galinhas. Ficaria mais famoso."Sempre anti-social, Thomas Malthus ressuscitou no estilo depressivo. Caprichou no british accent e investiu contra humanistas, teólogos, socialistas, todos que em sua vida resolveram atazaná-lo. Esfregando-lhes na cara o acerto das previsões que o mundo acabaria qual um grande formigueiro, Malthus congratulou-se:"Como eu dizia, senhores, ferramo-nos. Mal pagos e mal comidos, implodimos o planeta. Porém o problema pros-segue na acumulação de almas aguardando o julgamento. Pelas graças do bom Deus, almas se alimentam de preces, tão faltosas e carentes quanto antes a comida. Prevejo nova hecatombe. Alguém soprou-me ao ouvido que algo de horripilante já acontece na China. Vejamos se finalmente os senhores me apoiam e param de me xingar."Hegel se desculpava com todo e qualquer zumbi pelo anúncio estapafúrdio de que a força de um Estado simbolizava a marcha de Deus no mundo — a marcha, ao vivo e em cores, inaugurara o desastre e o mundo se acabou. Oscar Wilde, afetado, rodou os olhos nas órbitas:"Santa, que loucura. Imagina se Deus permitiria simbolizar-se na mixórdia, preconceito, mentirada, abuso e ex-

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ploração que os Estados representam? Isto sim é um pecado capaz de condenação ao braseiro do inferno. Meu querido, estou chocado com sua inocência extrema. Cruzes!"Mais gente, mais assustança. Pero Vaz de Caminha lamentava a mentirada redigida no intuito de paparicar El Rei. Marcel Duchamps confessava seu trauma com bicicle-tas: levara um tombo na infância. Marcel Proust anunciou odiar madeleines, principalmente com chá. Andy Wharol espantou-se com as latas de sopa de validade vencida, descartadas da despensa em um dia de faxina, mas circulando pelo mundo com o status de arte. Karl Marx, desanimado, lastimava a barafunda:"Luta de classes de novo? Ai, meu Deus, haja paciência."

(...) Aquele que tem espírito ouça o que o espírito diz às Igrejas: Ao vencedor darei de comer da

árvore da vida que está no paraíso de meu Deus.

(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 2, versículo 7)

Revelação

Desculpem a interrupção, chamaram-me ao parlatório. Fiz back up de meu texto pois até no purgatório corremos riscos de vírus. Ajeitei a toilette, levemente chamuscada pelo braseiro do dia, um pouco mais saliente que no dia anterior — provavelmente era sábado, semanalmente arcanjos alimentavam a fogueira. Amarrei a cabeleira, ondulando maltratada para além de meus quadris. Um dos dramas do endereço no qual instalei-me por séculos passou-se na indigência de recursos à vaidade, catástrofe

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sem precedentes para almas cariocas, viciadas em froufrous. Por conta da mendicância de cremes e maquiagens assisti a muita disputa. Sem distinção de sexo, penitentes se ofendiam para garantir xampu ou passar um batonzinho. Confessaram-me, não juro, que cartéis colombianos — em complô com paraguaios, coreanos e chineses — fundaram um mercado negro de rematadas tolices. Tintura para cabelo, jóias e bijuterias, tratamentos para pele, principalmente hidratantes, pri-meira necessidade no clima desagradável, eternamente fervente da etapa purgatório.Perco-me em prosopopéias. O importante a narrar é a minha ansiedade de encontrar quem me chamava, talvez dono da notícia do final da minha pena. Apressei-me. Con-feri-me no espelho, engoli a triste imagem de agreste desenxabida, conseqüência de alguns séculos escrevinhando entre as chamas. Suspirei, desalentada. Nunca, em outros tempos, me igualaria em estampa às ratazanas de igreja. Mas quem vai ao purgatório, aprende a se desprezar. Consta das disciplinas o ensino obrigatório de atitudes rotineiras contra excesso de amor-próprio. Colossal idiotice, só resiste ao fim do mundo quem se ama por demais. Mas o céu não pensa assim, segue a ideologia de adorar humilhações, tragédias, compungimentos, expiações e remorsos.Pronta e engalanada, despenquei-me agitada no rumo do parlatório. Deparei com Baltazar, agora muito mais belo. Avantajado de corpo, alto, firme, musculoso, orgulhoso das dragonas distintivas dos arcanjos. Pelo visto seu serviço recebera recompensas. Agora, faltava o meu. Apesar da imponência, meu companheiro amoroso dos dias do apocalipse conservava a ternura e o meigo do olhar. Mal me viu, abriu as asas, aconchegou-me entre elas, estalando-me um beijo:"Boneca, você está linda. Os ares do purgatório lhe fizeram muito bem. Gostei de seu bronzeado, a pele amorenada, tostada no ponto exato. Realmente, uma beleza. Parece

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aquela doçura que desfilava a saúde nas belas praias do Rio."Na autoridade de arcanjo, Baltazar — ainda bem — conservava a ironia. Ou seria inocência? Preferia acreditar no uso da mente crítica misturada ao bom humor, só assim confiaria no QI de Baltazar:"E você nada mudou. Ou é bobo, ou espertíssimo. Eu estou é chamuscada, bem passada, costuma afirmar um gaúcho, ex-cantor de churrascarias e meu vizinho nas chamas. Mas, meu lindo, anjo amado, morri de saudades suas. Um arcanjo, quem diria, já cochilou no meu colo, gostoso de enroscadinho, c agora está aí explodindo de importâncias. Diga-me, o que o trouxe aqui?"O riso de Baltazar esbanjava bom humor. Pediu-me para esquecer os verbos angustiantes que definem apocalipses: morrer, tremer, explodir, sofrer, gemer, acabar:"Ganhei férias. Encerrado o seu mundo, ajudei mais três enterros. Cada qual pior que o outro, mas nenhum igual à Terra, um planeta empesteado que já começa a ensaiar o excesso de desmandos, aquilo lá não conserta. Enfim, eu me sentia esgotado, inclusive ameaçava algumas crises nervosas. A entidade-gerente na seção de RA, Recursos Angelicais, mostrou preocupação. Promoveu-me a arcanjo, acertou minha carteira e concedeu-me descanso. Um século de vadiagem, nem consigo acreditar. Antes de ir embora, voejando sem destino, cumpro a última missão: devolver-lhe a liberdade."Liberdade, quase não acreditei. Meu tempo se esgotara, expiara meus pecados. Iria a não sei onde abraçar a minha tia, viver o gozo eterno incapaz de terminar — bem, haja saúde, mas depois pensava nisto. Na gloriosa alegria de saber-me resgatada, recordei-me do meu livro. Pendurei-me em Baltazar — tão homem, tão forte, tão anjo — e danei de soluçar:"Oh, Baltazar, obrigada. Mas o livro não está pronto, não posso sair daqui."

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Baltazar aboletou-se em um canto do parlatóno e me indicou a cadeira, olhando-me docemente. Conhecia aquele jeito, o anjo sempre o usava quando no apocalipse precisava anunciar-me algum evento importante. Não me enganei. Baltazar olhou-me os olhos, murmurando sorridente: "Precisamos conversar."Atacado pela síndrome típica dos revisores — sem ser dono da escrita, querendo pôr ordem nela —, Baltazar incorporou a sua nova patente e desandou a mandar:"Coloque o ponto final. Fim, the end, kaput. Assim se terminam livros. Vamos ser práticos: quem folhear suas páginas necessita acreditar que aquilo aconteceu. E se a turma bobear, acontecerá de novo. Esqueça as firulas de estilo, seqüência de acontecências. Até porque, minha filha, o neo-povinho da Terra já está se organizando para idealizar um Deus. Urge a necessidade de lançarmos o proteta capaz de impor as normas."Senti a inutilidade de tentar argumentar. Depois de tanta porrada, sabia o suficiente sobre o céu e seus arcanjos, ambos anti-democráticos, capazes de cuspir ordens e condenar ao inferno quem ousava discordar. Decidi encerrar meu relato depressinha. Pedi e ganhei um prazo. Como o tempo aqui é outro, não consigo definir o quanto acrescentaram à data do dead line. Pelo enfoque terreno, cerca de uma semana. Meu arcanjo Baltazar recusava-se a esperar. Esfalfara-se bastante, sonhava com o momento de soltar asas ao vento:"Entenda, lindeza, eu só posso fazer isto com a publicação do livro.""Baltazar, arrume as malas. Você quer as suas férias, eu quero ver minha tia. Breve entrego-lhe o livro."Ouvindo minhas palavras, Baltazar se levantou, impondo sua imponência. Caminhou de lá para cá, subiu e desceu as asas, engoliu um nome feio. De repente, encarou-me:"Você é mesmo idiota ou brinca de ignorante para me atrapalhar?"

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Desmilingüi-me em lágrimas, o arcanjo se comoveu. Protegeu-me em seu abraço, dispôs-se a contar-me tudo. Confessou-se embasbacado de eu ainda cultivar completa ignorância sobre a máxima relevância da personagem que era:"Você não é só escriba. Deveria ter notado, dado as solicitudes com as quais nós a brindamos. Lamento sinceramente que a raça desgovernada, colona da nova Terra, receba esta profeta tão tola e despreparada. Você acredita mesmo que todos no fim do mundo morreram iguais a você? Abraçadinha comigo, sem dores, nem sacrifícios, bem limpinha e alimentada? Não lhe passou na idéia que a sobrinha escolhida da santa Maria Alzira, além da consangüinidade, dividia a mesma unção? Ela, arcanjo experiente; você, projeto de anjo? Garota boba, nem parece a divindade predestinada a lançar as boas novas na Terra, planeta que a acolheu e para onde voltará no reinicio de tudo. O perdão e o recomeço são a rotina celeste. Cultivamos a esperança de um dia acertarmos. Para isto, somos anjos.""Anjo? Eu? Profeta da nova Era? Você bebeu, Baltazar."Tonteei e desmaiei. Acordei com o parlatório apinhado de mais anjos, querubins acolhedores desejavam-me boas-vindas. Um deles se aproximou e pegou a minha mão. Ternamente, cuidadoso, guiou-a às minhas costas. Abaixo das omoplatas, um tímido par de asas ameaçava espoucar. Catei Baltazar com os olhos:"Por favor, mande buscar minha tia. Vou desmaiar de novo."Rosto iluminado, Baltazar lascou-me uns beijos. Lamentou a má notícia, mas santa Maria Alzira eu reveria somente daqui a milhões de anos pois ela se elevara a um círculo seleto, tornando-se inalcançável. Flanava no sétimo céu, privilégio concedido somente aos íntimos amigos de Deus Pai, Nosso Senhor. No jardim onde vivia, ninguém conseguia acesso. Arcanjos de muita idade carimbavam passaportes, caso precisassem entrar. Necessidades

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supriam-se através da internet, um ir-e-vir de e-mails solicitando o bem-bom: livros da melhor estirpe, CDs de sons maviosos, DVDs inigualáveis, iguarias de primeira regadas a vinhos raros, ilustríssimos bouquets. Um resort estreladíssimo, impossível aborrecer-se em sítio tão encantado. Neste Olimpo esplendoroso repousavam as sumidades — falando claro, os santos, cargo que ela perseguira com tenência e paciência. A fim de ocupar lugar neste ansiado nirvana, santa Maria Alzira não falhara uma só vez. Cumprira suas missões com orgulhosa humildade. Quem quisesse comprovar, bastava espiar a Bíblia.Fora ela, tão antiga, que surgira a Manué anunciando-lhe o filho e, então, nasceu Sansão. Também resgatara Ló do incêndio de Gomorra e avisara a Agar, escrava de Abraão, que o menino concebido com o esperma do patrão geraria descendência em número incomensurável. A força do braço dela salvara Isaac da morte, impedindo Abraão de sangrar o seu herdeiro. Santificara o pão ázimo assado por Gedeão. Com Jacó lutara em sonhos, batizando-o Israel. Voara no alto do Gálgala, criando o vale de lágrimas. Anunciara a Elias, de sobrenome Tesbita, a morte do soberano que reinava em Samaria. Contra sua vontade transmutara-se de doçura em anjo exterminador, autor da morte e da peste na velha Jerusalém. Chorosa e arrependida curou a mesma cidade, imunizando-a a doenças. Resplandecera a Gad, tornando-o mensageiro de um aviso a Davi: o templo em louvor a Deus deveria ser erguido à beira de Ornan Jebuseu. Davi comprou o terreno, Salomão geriu a obra, construindo o monumento com o qual marcou a História.Seguindo o regulamento, saudara a anunciação da encarnação do Verbo. Acercou Santa Isabel e contou de São João. Velara pelo Encarnado na pobreza do presépio, avisando ao pai-custódio da intenção de Herodes de matar os recém-natos. Acompanhara o crescer da milagrosa criança. Soluçara a morte dela, exultara o ressurgir. Ecoara

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pela voz de santa Maria Alzira a boa-nova aos discípulos, saudando a Ressurreição.Descansara um tantinho, pouco mais de cinco séculos. Logo enfrentara a batalha de ditar novo Livro, de nova religião. Cumprira apocalipses, muitos, vários, incontáveis. Até chegar ao Brasil no propósito honrado de ajudar os terráqueos no instante de morrer. O último armagedon foi o quarto apocalipse que zerou o planeta Terra. Todos quatro vistoriados por ela:"Creia-me, meu anjo, só santa Maria Alzira agüentaria este tranco. Coitada, como sofreu. Segundo me anunciou pouco antes de ascender, faria a despedida com um gesto obsceno, símbolo da alegria de não precisar voltar. A sua tia terrena pertence a excelente estirpe, desde o início dos tempos resplandeceu muita luz. Nascendo perto dela, você alcançou o momento de tentar brilhar também. Recomece o caminho. Há tristeza pela frente, mas também há gozo e glória. Você voltará à Terra. Sua primeira tarefa é tentar domesticar a turba ignorante, teimosa nos mesmos erros."Ainda atordoada, sagraram-me anjo à força. O arcanjo Baltazar, estalando de orgulhoso, apadrinhou-me no ato. Confesso minha vaidade: fiquei um charme de túnica. Extasiei-me galante com a coroa de flores enfeitando meus cabelos que antes foram aparados pois anjos descabelados não são aceitos no céu. Uma bela cerimônia. Música, luz, cantoria e um buffet de terceira. Recordei minha tia, no céu não se come bem.Santa Maria Alzira enviou-me um telegrama, paparicando conselhos e lastimando a tolice de na vida ousar de tudo, menos mandar e-mails. Temia computadores desde o dia em que uma amiga, às voltas com esta máquina, acabou sendo engolida, nunca mais ninguém a viu.Apesar de antiquado — telegrama, imaginem, veículo pré-histórico —, o texto, uma beleza, comoveu meu coração. Esbarrei pelos VGs, lembrando de camarões, novos frutos proibidos pois anjos se alimentam de pólen, nuvens e frutos. E ao primeiro PT percebi o meu futuro: política,

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fofoca, baixaria, um monte de trapalhada à espera de alma santa disposta a organizar as bandalheiras terrenas, não importando o partido — Deus do céu, que mão-de-obra, quanto sacrifício duro é a rotina celeste. Mas enfim voltando ao texto de santa Maria Alzira entregue por um serafim após meu ato de posse:"Querida vg felicidades pt Mantenha seu bom humor vg até assuntos divinos exigem enfoque irônico pt Talvez você realize o inalcançado antes pt No Livro do apocalipse vg aquele ultrapassado vg repousava a mensagem que escapou aos ex-viventes: 'Ao vencedor darei de comer da árvore da vida que está no paraíso de meu Deus pt' Você é uma vencedora e conhece seu destino pt Veja se não tropeça vg daqui de cima vigiarei os seus passos pt Beijos e saudades vg sua tia Maria Alzira Pt"Compreendi as palavras de minha tia querida: a Terra era o paraíso, desde sempre, eternamente. Voltaria para lá. Esgotaria meu sangue, mas ajudaria o povo a entender a beleza de viver e respirar sem danar seus semelhantes. Se compunha meu destino, cumpriria fielmente. Talvez exalasse a arrogância dos anjos recém-criados, ouvi risinhos à volta, mas encarei Baltazar e afirmei confiante:"Não se preocupe, eu acerto aquela merda. Fui da Terra há pouco tempo, sei de onde os ventos sopram. Anunciarei as novas do reino do amor fraterno, mas jamais me imolarei. Eu vou é descer porrada naqueles que se recusarem a escutar meus conselhos. Aproveite suas férias. Agora, a coisa deslancha."Assim, sem eu perceber, as asas desabrocharam. Bati-as suavemente e decolei rumo à glória de publicar o meu livro — vaidade dos escritores que jamais será curada — e salvar a nova Era. Veremos o que me trará honras primeiro. Baltazar que não me escute, queria que fosse o livro.

E ouvi uma grande voz, que saía do Templo, a qual dizia aos sete anjos: Ide, e derramai sobre

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a Terra os sete cálices da ira de Deus. (...)(Apocalipse de São João Apóstolo, capítulo 16, versículo 1)

Os Sete Cálices Vazados

Apenas um post-scriptum, ponto final do meu livro — tenho mais para fazer, retornei ao purgatório para arrumar minhas tralhas e terminar esta história. O ocaso do planeta foi um espasmo de terror. Simplesmente, dedetizaram-nos, igualzinho às baratas que santa Maria Alzira se esforçava em defender. Morremos esgazeando, igual peixe fora d'água, em aflição tenebrosa. Coitadinhas das baratas, agora as compreendo e avalizo as palavras de minha santa titia. Nem elas, seres nojentos, merecem o ponto final desta maneira ignóbil.Voltando à realidade. Quando os anjos derramaram a poção de suas taças — lindas, maravilhosas, de puro ouro encharcado com uma poção tenebrosa, organofosforado misturado a clumarina —, o caso alcançou extremos. Até os infelizes ressuscitados passaram pelo perrengue de morrerem outra vez. Pobres, penalizaram-me. Sabiam da solidão, o irreversível da morte, e agarravam-se à vida igual craca nos navios. Espernearam nervosos, excuso de relatar, não pretendo nausear os meus amáveis leitores. Mas justifico a revolta: não se mata gente assim sem honraria ou delongas, à maneira dos insetos.Pensei no instante último que afinal os Divinos cultivavam sua cota de aguda perversidade. Talvez a humanidade, que algum dia vestiram, resista aos ares celestes. Na ver-dade, isto me assusta. Começo a desconfiar que nosso lado obscuro sobrevive a qualquer prova. Mas enfim, eu tentarei. Baltazar determinou-me exorcizar dos terráqueos

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o velho jeito abusado de não respeitar ninguém. Nem sequer a eles mesmos. Uma coisa decidi: fundarei um novo estilo. Em vez de pregar doçuras, chegarei barbarizando. O homem — e eu já fui um deles — prima pela covardia e sempre abaixa a cabeça ao sentir medo de alguém.Depois de sagrada anjo, afinal compreendi por que eu vivi em paz durante o armagedon. Necessitava assistir para então testemunhar. Discurso de santidade assegura mais respaldo. Acredito que meu livro determinará limites à espécie florescente, livrando-a desta maneira do quinto apocalipse. Desejo ardentemente convencer a nova raça a se portar igual gente, evitando acontecer o que vi acontecer. Acreditem, é medonho.Para alcançar o intento de desvencilhar a Terra de novo final de mundo, já pousarei avisando: tratem de ler meu livro, descobrir o que os espera se novamente vocês aprontarem além da conta. O Céu é muito bonzinho, mas também não dá moleza. Quando desce o sarrafo, capricha na violência.Afirmo de experiente. Apesar de protegida, senti em meu próprio corpo os solavancos celestes. No instante derra-deiro, Baltazar me agasalhou, apertando-me em seus braços. Encolhi-me dentro deles e parti devagarinho. Aconchegada, gostosa, aliviada do medo no meigo de Baltazar. Simplesmente desmaiei, sem dores e sem angústia. Acordei no purgatório, já instalada em frente a meu Pentium um milhão 333, maquininha obsoleta.Hoje eu me divirto tentando adivinhar como comecei o livro pilotando tal carroça. Nem cozinhar frango, o desgraçado sabia. Mal e mal me auxiliava a descascar as batatas. O Pentium que deixo aqui, isto sim, é maravilha. Faz um fondant perfeitíssimo, açúcar no ponto exato. Sabe ler e escrever, inclusive emjavanês. Passa, lava, arruma, engoma e é chef de cuisine. Nos intervalos, charmoso, torna as chamas peso leve e me incentiva a sorrir. Um clone irretocável da mulher de antigamente, computador generoso.

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Falta apenas relatar como adentraram os anjos aspergindo o veneno que encerrou a audição. Como lhes contava antes, permaneciam os zumbis brigando por ninharias, os anjinhos em azáfama correndo de lá para cá, quando soou a trombeta. Exatamente a sétima, impondo a terminação. O Céu e a Terra pararam. Minha tia, sorridente, deixou-se envolver por anjos e então subiu aos céus. Fitei-a maravilhada, chorando sentidamente, emocionada com a cena, quando senti Baltazar me puxando da mangueira:"Chegou a hora, querida. Vem, abrace-se a mim." Fiquei aterrorizada. Emoção compartilhada com a barafunda ao redor. Ninguém queria morrer, desfazer-se eternamente, abrir mão da identidade, desistir de respirar, de comer, de suspirar, de mergulhar em bons livros, chorar com a boa música, de se enroscar em amantes, conversar, dançar, viver — Virgem, Nossa Senhora, falecer é um desacerto.Incrível, o firmamento ecoou a emoção de negar o encerramento da função apocalíptica. No clarão do infinito instalou-se a anarquia: anjo brigou com anjo, o dragão cus-piu na besta, a prostituta rasgou-se, o monstro de três cabeças arrancou o par de asas de um pobre serafim. Vishnu estapeou Oxalá, Oxóssi entrou na briga no estilo capoeira, não sobrou para ninguém. Voaram meteoritos, estilhaçaram-se estrelas, constelações despregaram e caíram no infinito. Divindades discutiam pelos motivos mais fúteis, até se valia a pena ressuscitar o Brasil.Neste clima adorável, anjos-dedetizadores desandaram a voar baixo apelando ao terrorismo. Isto, confesso agora, não consigo perdoar. A dor doía bastante, desnecessário assustar fingindo entornar veneno.A multidão acuada esgoelava em pânico nos momentos da bravata. Muita gente faleceu alguns minutinhos antes, óbito determinado pelo medo de morrer.De repente, aconteceu. Igual apito do mestre comandando a bateria, arcanjos viraram as taças no justo e preciso instante. Em contato com a Terra, o líquido evaporou-se na mortífera fumaça. Começou a danação.

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Todos se engasgaram, esforçando-se ao máximo na intenção de respirar. Vi gente de todo jeito. Igualzinho às baratas, de barriga para cima, os membros desgovernados.Indo-se devagarinho, na calma dos piedosos. Transes asfixiantes. O populacho morrendo sem roupa e sem elegância.No meio da aterração, Baltazar me apertou e beijou a minha testa:"Vá em paz, minha menina, breve nos encontraremos."

(...) Já estou no planeta Terra.(Livro do Apocalipse segundo uma testemunha, capítulo 1,

versículo 1)

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Já estou no planeta Terra.Há pouco lancei o Livro do apocalipse segundo uma teste-munha. Começo a colher os frutos. Muita gente me acusa do pecado de heresia; outros chamam-me santa. Precon-ceitos desta raça que mantém os mesmos vícios do povo de antigamente. Não sou santa, nem herética. Igualzinho a Baltazar, limito-me a ser um anjo. A bem da verdade, com perfil conservador, insisto no modelito do tempo que já acabou. Meus ares angelicais remetem ao pós-moderno ou, quem sabe, neobarroco. Cada qual julgue por si.Também aderi, vaidosa, à neopequena-burguesia. Não abro mão do conforto, nem de aparentar status. Após tanto sacrifício, milênios no purgatório, aprendi o essencial — jamais perderei a pose. Daí eu ter escolhido o estilo songamonga para narrar esta história. Sempre existe a esperança de vender mais um pouquinho. Afinal, livro é que não engorda, o filão do metafísico permanece inesgotável. Os meus amáveis leitores com certeza observaram. Apesar do apocalipse, o mundo mudou pouquíssimo — eta, asteróide doido.Entrei no ritmo celeste de trabalhar sem descanso. Como dizia minha tia, nossa vida de artista de moleza não tem nada. A Terra é uma mão-de-obra, estou apenas come-çando e me esfalfo de cansaço. Imaginem, inclusive um gatinho entrou em minha rotina. Apesar da nova estética — os felinos agora nascem com dois rabos, cavanhaque e um olho sempre atento perto da orelha esquerda —, nada mudou no caráter desses animais patéticos. Continuam comilões e chatos além da conta. O que mora em minha casa insiste em se enrascar nos meus falsos tornozelos e eu vivo aos trambolhões. Agora posso entender o excesso de assombros de santa Maria Alzira, naqueles idos

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passados em que vivia na Terra fingindo ser minha tia. A excelsa carga genética que trazemos lá do céu não é compatível aos conformes praticados cá na Terra.Enfim, aos trancos e barrancos dou conta dos meus encargos. Se me sobra um tempinho, lembro-me de Baltazar. Queria que ele soubesse de meus esforços estóicos na missão a mim entregue: convencer os neoterráqueos a viverem tal qual gente. O avisado lá em cima, antes de decolar rumo à minha obrigação, eu já coloquei em prática. Aterrei barbarizando. Aplico pedagogia resvalando no indecente, uso o método do medo. O povo virou cordeiro, temendo o falecimento através do abominável nominado apocalipse.Quando me param nas ruas, implorando garantias de o mundo não acabar, eu acalmo os mais aflitos. Enfatizo o verdadeiro, colorindo as tragédias que comprovei com meus olhos. Mas seguro morreu de velho, prefiro ser escolástica — omito que inventei a metade desta história.Afinal, tanto sofisma é incompatível com um anjo. Amém.

Teresópolis, RJ, dezembro de 2000