· Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural...

28

Click here to load reader

Transcript of  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural...

Page 1:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

TRABALHO DOCENTE E DIDATIZAÇÃO DE OBJETOS DISCURSIVOS:

UMA PROPOSTA DE ENSINO DE LENDA, FÁBULA E NOTÍCIA

Débora Cristina do Nascimento Ferreira*

Sueli Pinheiro da Silva**

RESUMO: Este artigo apresenta uma reflexão acerca de uma experiência de didatização dos gêneros discursivos lenda, fábula e notícia em uma escola pública da cidade de Belém-PA. O objetivo é discutir acerca do processo de ensino de gêneros do discurso, demonstrando tanto os encaminhamentos docentes adotados para a efetivação deste processo complexo, quanto as respostas construídas pelos discentes em resposta a esta proposta didática. Para tanto, buscamos suporte teórico em Gomes-Santos (2007), (Tardif e Lessard, 2009),Schneuwly e Dolz (2004) entre outros; mostramos os procedimentos metodológicos que orientam nosso trabalho de ensino de Português e analisamos três textos de alunos produzidos no âmbito de nossa pesquisa-ação realizada durante o primeiro semestre de 2010. A relevância deste investimento consiste, sobretudo, em repensar como o professor pode fazer uso dos constructos teóricos e metodológicos em favor da realização de um ensino de gêneros mais efetivo e produtivo, bem como refletir sobre os modos como os discentes se apropriam destes discursos e analisam o contexto social, cultural, político e ideológico em que estão inseridos.

ABSTRACT:This article presents a reflection about didactization of genre in a public school in Belém_PA. The aim is discuss about the process of teaching writing’s speech. For it, the work show the steps were adopted for teacher, as well the answers of students.Thus, theoretical basis useGomes-Santos (2007), (Tardif e Lessard, 2009),Schneuwly; Dolz (2004),the methodological procedures that resort to our teaching of Portuguese language,the texts analyzed were made by student in action research effective in first semester of 2010. The importance of this investigations is rethink as teacher can use theoretic and methodology to teach better genre and the students learn to write, criticize the social, cultural, political, ideology context.

PALAVRAS- CHAVE: Didatização. Gêneros do discurso. Ensino de Português.

KEYWORDS: Didactization. Discursive genre. Teaching of portuguese.

PARA COMEÇO DE CONVERSA...

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 1

Page 2:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

A prática da didatização de gêneros discursivos na escola brasileira passou a ser recorrentemente discutida no Brasil, a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997). Desde, então, percebemos o interesse no sentido de trabalhar a conceituação e a didatização de gêneros para fins de: (re) discutir a formação inicial e continuada de professores da educação básica, o encaminhamento didático a ser realizado no âmbito da produção, avaliação e distribuição de material didático, e, em especial, as práticas efetivas de ensino de língua portuguesa nos diferentes contextos institucionais da multifacetada cultura escolar brasileira.

Rojo (2000), ao discutir a proposta curricular que adota o gênero como objeto de ensino e o texto como unidade de ensino, ressalta que a transposição e apropriação do desenho curricular expresso pelos PCN para as práticas escolares voltadas ao ensino-aprendizagem de língua materna estão condicionadas a três eixos considerados basilares: “a construção de currículos plurais e adequados a realidades locais”, “a elaboração de materiais didáticos que viabilizem a implementação destes currículos” e “a formação inicial e continuada de professores e educadores” (p. 28).

Gomes-Santos (2007) propõe ainda atentar para a “realização do currículo em sala de aula”, isto é, o processo de didatização efetivo desse objeto de ensino por intermédio do trabalho docente. Para o autor, refletir acerca desse processo implica reconhecer que as mesmas possuem uma história, mais que isso, elas constituem e são (re) construídas no âmbito da chamada culturaescolar, conforme propõe Chervel (1998).

Em outras palavras, a inserção desse objeto de ensino como centro de convergência implica repensar: (i) a mobilização de outros modos de ensino-aprendizagem, reivindicando a convocação de dispositivos didáticos adequados para estes objetivos; (ii) outras posturas docentes e discentes em relação à produção e à recepção discursiva, as quais estão condicionadas ao tempo, ao espaço, aos interesses e fins na agência escolar enquanto instituição típica das sociedades do trabalho, do mundo usineiro e do Estado (Tardif e Lessard, 2009); (iii) interligações e sedimentações estabelecidas entre as práticas de ensino já consideradas legitimadas no processo de disciplinarização do Português e as práticas concorrentes que se querem instituir paulatinamente nas atividades escolares e que são respaldadas pelas contribuições acadêmicas, instituídas pela regulamentação oficial vigente para o ensino e transpostas para um dos principais instrumentos didáticos do professor: o livro didático.

Nessa direção, este artigo busca problematizar o desafio imposto ao professor de língua materna no sentido de didatizar os gêneros discursivos na supracitada conjuntura educacional. Trata-se de discutir como tem sido encaminhado o processo de didatização de objetos de ensino discursivos em objetosensinados por intermédio do trabalho docente em um contexto típico da realidade brasileira: a escola-usina (Gomes-Santos e Ferreira, 2010; Ferreira, 2008).

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 2

Page 3:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

1. A PROBLEMÁTICA DA TRANSPOSIÇÃO E DA ELEIÇÃO DOS SABERES DISCIPLINARES

Para Chevallard (1991, p. 27), a transposição didática consiste em um processo de transformação e adaptação pelo qual os objetos de ensino passam desde os meios acadêmicos até a sua veiculação nas salas de aula do ensino básico.

[...] o problema da transposição didática é definido, segundo Verret, pelas transformações que se operam, ou pela distância que se instaura, de um lado entre os saberes eruditos, e por outro lado, pelos saberes selecionados para o ensino e os saberes efetivamente ensinados [...](Chevallard 1991, p. 27, apud Bronckart e Plazaola Giger, 1998, p.37)

Consoante o autor, a transposição didática atua em instâncias distintas – propostas curriculares, livros didáticos, salas de aula – instâncias estas que, muitas vezes, apresentam interesses diversos. Refletir acerca dessas diferentes dimensões em que são configurados os processos de construção dos saberes escolares permite considerar não só uma visão epistemológica, como também uma visão social desses saberes.

O mesmo pesquisador discute que o processo de construção dos saberes escolares passa obrigatoriamente por uma reelaboração imposta pelos imperativos políticos e didáticos. A fim de que um determinado saber possa ser ensinado, é necessário que seja estabelecido um distanciamento em relação aos saberes de referência, em especial, o saber acadêmico. No entanto, na lógica interna do funcionamento do sistema didático, tal distanciamento, em geral, é negado em função da procura da legitimidade do saber escolar.

Nesse sentido, o conhecimento escolar, embora tenha sua origem no conhecimento científico ou em outros saberes ou materiais culturais disponíveis, não é mera simplificação, rarefação ou distorção deste conhecimento. É um conhecimento com lógica própria, que constitui um sistema − o sistema didático − definido por Chevallard (1991) da seguinte maneira:

A didática das matérias escolares tem por objetivo esta formação tecno-cultural que é o sistema didático. Sistema que, como sabemos, organiza uma relação (didática) entre os três polos: o professor, o aluno e o saber a ser transmitido. Este sistema é interligado pelos contratos didáticos e está organizado em uma temporalidade particular (o tempo didático). (Chevallard, 1991, p. 27, apud Bronckart e PlazaolaGiger, 1998, p.37)

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 3

Page 4:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Além da compreensão da existência de um sistema didático relacionado à mobilização de saberes, a problemática da transposição didática exige necessariamente uma análise dos fenômenos que circundam e influenciam o processo de constituição do referido sistema. Uma das questões que pode ser discutida diz respeito ao estatuto dos saberes originais. Estes últimos são considerados como aqueles advindos da produção científica (Bronckart e PlazaolaGiger, 1998).

Caillot (1996) questiona para o fato de o saber acadêmico ser a única referência/fonte para o saber ensinado, uma vez que existem saberes relacionados às práticas sociais e linguísticas não pertencentes ao saber elaborado pela comunidade científica, mas que fazem parte da elaboração do saber escolar. Nessa instituição burocrática, em que os alunos estão organizados em categorias (graus, séries, idade, etc) que são determinadas por tratamento escolar respectivo (horário, volume de trabalho, saberes a ensinar), o conhecimento também é burocratizado, institucionalizado, organizado em currículo, em disciplinas escolares e, obviamente, está sujeito à seleção e à exclusão de conteúdos, processo através do qual são instituídos e constituídos os saberes escolares. Lopes (1999, p. 03) atenta para o fato de que:

[...] os processos de seleção e legitimação não são construídos a partir de critérios exclusivamente epistemológicos ou referenciados em princípios de ensino-aprendizagem, mas a partir de um conjunto de interesses que expressam relações de poder da sociedade como um todo, em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles que fazem parte do contexto de produção do conhecimento de uma área e a comunidade de especialistas em educação. Atuam igualmente inúmeras outras instâncias culturais, políticas e econômicas de uma sociedade, que atuam direta ou indiretamente sobre a escola, sobre a formação e atualização de professores e sobre a produção de conhecimentos na área específica e educacional.

Outra razão articulada ao funcionamento do sistema didático é o ambiente social em que o processo de ensino é efetivado, uma vez que o ambiente pode reportar a compreensão de transformações periódicas nos saberes a serem ensinados, nas condições e consequências de todo o processo de transposição didática. Isto ocorre, porque os sistemas didáticos são integrados a um sistema de ensino, definido por dispositivos estruturais da ordem do ensino (tipo de estabelecimento escolar, natureza dos programas, instrumentos pedagógicos, tipos de regulação, a influência dos pais, as imposições de políticas de ensino oficiais e da própria administração escolar, editores de manuais didáticos, entre outros).

A tensão existente entre a necessidade de transformação/adequação do saber acadêmico em saber ensinado está na base do processo de naturalização dos saberes escolares, os quais tendem a ser compreendidos pelos agentes do campo como um saber atemporal. Podemos, então, verificar que os saberes escolares "envelhecem", o que provoca um maior distanciamento em relação aos saberes acadêmicos que outrora lhe serviram de

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 4

Page 5:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

referência, tornando-se defasados em relação ao progresso da pesquisa de determinada área e/ou de algumas temáticas que deixam de ser interessantes tendo em vista a produção científica mais atualizada.

Outro aspecto desse “envelhecimento” estaria relacionado à incompatibilidade dos saberes escolares em atender às demandas da sociedade em geral. Essa situação contribuiria para a instauração de uma crise de ensino de dada disciplina escolar, em que os saberes passam a ser menos interessantes, os alunos e os próprios professores não se identificam com os saberes trabalhados, são constatadas dificuldades de ensino-aprendizagem, etc. Em resumo, deflagra-se uma verdadeira crise entre o sistema didático, o sistema de ensino e a sociedade mais ampla.

2. DIDATIZAÇÃO DE GÊNEROS DISCURSIVOS: A BUSCA DE UM ESTATUTO NA ESCOLA-USINA

Em relação à disciplina Língua Portuguesa, pode-se observar que a crise supracitada vem eclodindo, em especial, a partir da década de 80. Se, por um lado, temos as pesquisas acadêmicas apontando para a necessidade de a escola trabalhar os gêneros orais e escritos, utilizando uma metodologia que possibilite a interação entre os sujeitos em sala de aula, bem como a realização de tarefas que privilegiassem a leitura e a reflexão das atividades de linguagem. Por outro lado, temos as práticas de ensino firmadas no ensino de objetos gramaticais aliadas ao uso de metodologias rotuladas genericamente como tradicionais, as quais, muitas vezes, ainda são solicitadas por pais, coordenadores, diretores, etc. e que possuem um dado mérito e/ou estatuto histórico- disciplinar como aula de português, isto é, o ensino de leis de funcionamento lógico da escrita.

Este estatuto encaminha para a reflexão de duas questões interessantes. A identidade docente atrelada ao professor de português como aquele que domina este conjunto de regras e precisa didatizá-las, a fim de ensinar Português não só para os alunos, mas para todos os atores sociais desprovidos desse saber legitimado sobre a língua, ainda que isto não esteja vinculado a um saber de referência de natureza acadêmica e científica, criando assim a postura dicotômica de que os profissionais que não seguissem esse roteiro “não” estariam ensinando português.

A outra questão diz respeito ao estreito vínculo estabelecido entre este modo legítimo de ensino e o fato da escola-usina subordiná-los a “regras impessoais, gerais,abstratas, fixadas por leis e regulamentos”(Tardif e Lessard, 2009, p.24),as quais deveriam, portanto, ser assimiladas, internalizadas não permitindo a instauração da polêmica, da discussão, da autoria. Isto permitiria, portanto, atender a grupos extremamente numerosos em um limitado espaço e tempo escolar. Tal pressuposto é um dos responsáveis por ações como a união de turmas pouco numerosas em contextos escolares públicos ou privados, seguindo a lógica da necessidade de corte de gastos, constrangendo o professor a assumir turmas cada vez mais populosas, em contextos cada vez mais precarizados e proletarizados.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 5

Page 6:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Espaço e tempo tornam-se aspectos fundamentais no mundo moderno, levando em conta a necessidade de se produzir em grande escala, em pouco tempo, com uma só pessoa fazendo o trabalho de muitos, e, consequentemente, resultando na racionalização do tempo, numa maior produção. Desta forma, na direção em que caminhamos o que nos intriga é pensar sobre o que se vem produzindo em nome da educação nas salas numerosas: conhecimento ou simplesmente informações? Formação para a vida ou diplomação para o mercado? (FORTES, 2000, p.70).

Conforme Portal (2008), recorrentemente, observamos em turmas consideradas numerosas: a veiculação de aulas expositivas, em que a interação didática entre professor-aluno tende a ser restrita; o uso quase exclusivo de provas objetivas (para otimizar a correção). Em outras palavras, a sala de aula cede o espaço onde poderia haver a construção dos saberes para ser lugar de mera veiculação de informações. Fortes (2000, p. 68) descreve este ambiente dessa forma:

No cotidiano interno da sala de aula, o que observamos é que a fala predominante é a do professor; o espaço é grande, cheio de carteiras, a sala em forma de auditório, composta de degraus onde ficam as carteiras [...] Porém, esse quadro, afirmamos, não dispersa as conversas paralelas, que chegam, às vezes, a tumultuar a fala do professor que se encontra em cima de um tablado, geralmente sem microfone, o que acarreta grande dificuldade de ser ouvido pelos alunos sentados na parte de trás.

Portal (2008) discute a complexidade referente ao ensino de produção textual para turmas numerosas no contexto educacional brasileiro, mais especificamente, amazônico. A autora resenha pesquisas sobre a temática e apresenta uma caracterização que aponta os aspectos positivos e negativos desse ambiente educacional considerado indesejável por boa parte dos profissionais em que é quase impossível efetivar um trabalho docente e decente, do ponto de vista, da construção do conhecimento por intermédio da interação didática, mas que, contraditoriamente, configura a realidade de muitas escolas, em especial, as instituições privadas em que muitos desses supracitados profissionais matriculam seus filhos por serem, mais uma vez contraditoriamente, tidas como “boasescolas”.

A conjugação desses fatores, obviamente aliados a outros fatores, tem contribuído para que a didatização de objetos de ensino discursivos na aula de Língua Portuguesa seja restrita. Embora já possamos observar a eleição do mesmo nos materiais didáticos e em práticas de ensino, seja como pretexto ou não para o ensino de gramática, seja para fins de leitura e de discussão de tópicos gramaticais do texto, o que caracteriza uma prática para além do mero pretexto, seja para a didatização do próprio gênero para fins prescritivos em lugar da boa e velha gramática normativa: novos objetos e velhas

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 6

Page 7:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

práticas como alguns insistem em “denunciar”. Entretanto, cremos que a discussão desses modos de ensino dos objetos discursivos extrapola a mera constatação, enumeração e descrição de críticas gerais sobre o trabalho docente.

Defendemos que investigar a epistemologia do conhecimento escolar e da prática do professor é fundamental e estratégico para a compreensão dos processos que estão em jogo nos diferentes ambientes escolares: o espaço e o tempo em que a aula é desenvolvida, o estilo e a formação docente, os objetivos institucionais, os materiais didáticos disponibilizados e seus respectivos projetos autorais, os recursos didáticos a disposição dos atores escolares, os interesses e motivações discentes e docentes, dentre outros.

Compreendemos que o movimento enunciativo de estabilização e de constante mudança dos processos discursivos e didáticos envolvidos no ensino-aprendizagem de português seja reconfigurado e reconstituído a partir das implicações de natureza social, histórica, cultural e outras a que está sujeita a aula de língua materna (Batista, 1997; Ângelo, 2005). Em um estudo que procura mostrar os trabalhos de pesquisa sobre como os objetos de ensino passam a ser reconstituídos nas práticas de ensino efetivamente, Schneuwly, Cordeiro &Dolz (2006, p. 78) pontuam que:

É claramente em um longo percurso que se constituem e se transformam os objetos de ensino. [...] Observar os objetos ensinados na sala de aula – sua delimitação, os modos com que é presentificado, sua ‘exercitação’ – assemelha-se, desse ponto de vista, a um trabalho arqueológico que reconstitui os diferentes estratos da ação de ensinar: uma fascinante viagem pelo passado através do presente.

3. DO OBJETO DE ENSINO AO OBJETO ENSINADO: DESAFIOS E AVANÇO

Muitos educadores estão interessados em adotar os gêneros em suas práticas escolares como objeto de ensino. Todavia, tal tarefa não tem sido executada na escola de maneira tão viável. Isto porque, esbarramos em uma série de dificuldades que vão desde problemas de estrutura física, até a formação docente. Para tanto, é necessário que o professor tenha uma formação inicial consistente e uma formação continuada efetiva, a fim de que esteja apto, seja para a escolha dos gêneros a serem trabalhados, seja para a produção das sequências didáticas adequadas para as possibilidades institucionais e estruturais de trabalho, seja, sobretudo, pela opção, pela escolha política, ideológica, acadêmica de adotar este novo, e ao mesmo tempo velho, objeto de ensino.

Tal escolha pressupõe um processo de convencimento do próprio professor em relação à validade do trabalho, um processo de convencimento das agências de letramento em que atuamos, para responder à pressão dos próprios colegas de trabalho e pais que insistem e enfatizam a adoção de modos e temas ditos tradicionais para o ensino de língua. Mais que isso, o processo de convencimento dos nossos alunos, fazer o próprio discente

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 7

Page 8:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

perceber, a validade e a consistência em produzir os gêneros do discurso, os quais os mesmos já dominam em alguma instância.

Nesse sentido, é pertinente, portanto, compreender o conceito de gênero do discurso para ensino de língua portuguesa. Para Bakhtin, são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, isto é, constituídos por uma estrutura composicional, temática e estilística sócio-historicamente construída ao longo do desenvolvimento das sociedades. Por conta disso, “os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN, 1997). Na releitura feita, por Schneuwly e Dolz, interessados em práticas de didatização, os gêneros são considerados como “instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação (e de aprendizagem)” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 64).

Os referidos autores entendem que os gêneros não são os objetos reais de ensino/aprendizagem, mas “práticas de linguagem que se materializam nas atividades dos aprendizes” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 74). Os objetos de ensino/aprendizagem são as operações de linguagem que, dominadas, tornam o indivíduo competente para o uso dessas práticas.

Segundo Bunzen (2006), o mérito de um ensino embasado nos gêneros do discurso está no fato de que, como uma força centrífuga, no dizer bakhtiniano, essa prática “vai procurar trazer para a escola não mais o homogêneo, mas o plurilinguismo, ou seja, o heterogêneo”. Esse novo contexto abre um vasto campo de possibilidades ao professor, tanto no que diz respeito à temática dos objetos ensináveis - que vai desde a discussão sobre os preconceitos linguísticos a partir dos objetos da gramática tradicional até o nível das operações discursivas mais profundas que permeiam a comunicação, passando pela co-autoria eu/outro, ou outros na construção e uso da linguagem e ainda pelas intenções e estratégias utilizadas pelo eu nesta relação, ao mesmo tempo harmônica e antagônica, para garantir seu espaço sócio-ideológico-discursivo - quanto ao lugar enunciativo que o professor vai assumir diante desses novos objetos, uma vez que, na ausência do livro didático que já traz um posicionamento orientado, o professor estará na condição de (re) construir seus próprios objetos, ou um modelo desses objetos, isto é, de construir uma versão escolarizada do gênero para didatizar (CHAVES, 2008). Os referidos autores constroem um modelo de como trabalhar um gênero em sala de aula. Eles propõem a elaboração de uma sequênciadidática – conjunto de atividades organizadas a serem trabalhadas em sala de aula em torno de um gênero textual oral ou escrito (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 97).

A sequência didática deve partir de uma produção inicial, em que os alunos tentam elaborar um primeiro texto do gênero escolhido, exprimindo as representações que possuem dessa atividade, permitindo ao professor detectar as capacidades que o aluno já possui e ajustar as atividades previstas na sequência, as possibilidades e dificuldades reais da turma. Essa fase inicial possibilita a preparação de diversos módulos que darão conta dos problemas que aparecerão na primeira produção, de forma a oferecer aos alunos instrumentos e mecanismos para alcançar o objetivo de produzir o gênero textual escolhido. Portanto, cabe ao professor construir as oficinas voltadas para a didatização do gênero.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 8

Page 9:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Vale lembrar que este procedimento didático pode ser adaptado às diferentes realidades em que atuamos. Nessa direção, assinalamos que no contexto de uma escola usineira, precisamos pensar na viabilidade de execução de algumas tarefas, tais como:

(i) construção de um banco de dados com textos de diferentes etapas de desenvolvimento, a fim de discutir problemas relacionados à escrita inicial e para fins de retextualização;

(ii) proposição de produção de textos em co-autoria em diferentes etapas do processo de ensino do gênero;

(iii) uso de recursos didáticos multimidiáticos (data show, quadro digital, captura de vídeos em suportes diversos como o aparelho celular, câmera digital, etc;

(iv) convocação de textos multimodais para leitura e discussão dos temas a serem desenvolvidos na produção discursiva final;

(v) necessidade de publicação dos textos em suportes gratuitos em redes sociais recorrentemente acessadas pelos alunos (facebook, orkut, blog, twitter).

O quadro a seguir mostra a construção de três oficinas dos gêneros discursivos: lenda, fábula e notícia:

FÁBULA LENDA NOTÍCIALeitura, análise e reescrita de fábulasproduzidas por alunos.

Leitura, análise e reescrita de lendas produzidas por alunos.

Leitura, análise e reescrita de notícias produzidas por alunos.

Leitura, análise e estudo de estrutura de fábulas, apólogos e parábolas.

Leitura, análise de lendas gregas, latinas, amazônicas e sua estrutura constitutiva.

Realização de tarefas para trabalhar aspectos problemáticos referentes à construção de uma notícia: construção do título, criação do olho da notícia e do lead, apresentação de informações de modo organizado, objetivo, coerente, conciso, correlação dos tempos verbais, criação de um fechamento ou conclusão para o assunto noticiado.

Exibição e discussão de vídeos inspirados em fábulas.

Exibição e discussão de vídeos, filmes, seriados baseados em lendas.

Exibição e discussão de notícias em diferentes suportes: rádio, TV, internet, observando traços constitutivos do gênero

Produção da escrita final, discussão e reescrita desses textos, publicação.

Produção da escrita final, discussão e reescrita desses textos, publicação.

Produção da escrita final, discussão e reescrita desses textos, publicação.

Fonte: Elaboração própria.

Para Schneuwly (2009), o objeto ensinado pode ser entendido como resultado da constante ação do trabalho docente, interligada diretamente e continuamente a uma outra ação lógica e almejada: a aprendizagem escolar. Ou seja, trata-se de refletir acerca do complexo processo psíquico e contínuo da transformação do objeto de ensino em objeto ensinado refratado nas ações discentes de apropriação de novos modos de pensar, de agir, de falar mediados pelas práticas de linguagem.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 9

Page 10:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

A seguir, passaremos a discutir três respostas discentes à ação de ensino docente, no sentido de constatar na materialidade discursiva questões relacionadas: a apropriação do objeto de ensino discursivo e a ação de (re) pensar e de agir por uma prática simbólica. Os textos aqui apresentados são resultado de nosso trabalho de ensino na educação básica, em especial, no nono ano do ensino fundamental, realizado em uma escola pública localizada na periferia da cidade de Belém-PA, no ano de 2010. O primeiro texto responde ao seguinte comando proposto pelo professor: Apartir da leitura dos textos em sala de aula, escolha duas fábulas e reescreva-as criando uma nova versão para as mesmas.

Fonte: Pesquisa-ação, 2010.

Neste texto, o aluno constrói um perceptível diálogo com as orientações do professor, que direcionam para que o aluno apresente uma versão para uma das fábulas lidas em sala de aula. O aluno então reescreve o texto “A cigarra e a formiga”, esta informação é veiculada pelo título, o qual referencia o título original, fazendo alusão aos personagens centrais da breve narrativa a ser construída, como lhe é orientado, e já anuncia um elemento da adaptação que será empreendida, a partir da utilização do termo ‘esquemas’ por isso, encontramos: A cigarra, a formiga e os esquemas.

O primeiro parágrafo da narrativa dedica-se a construção dos personagens por uma descrição adjetiva dicotômica (honesta/ corrupta, trabalhadora/ preguiçosa) e de descrições de ações ligadas a estes perfis (uma ganhou a eleição pelo voto da população e a outra pela ajuda de um “padrinho”), seguindo assim, de certa forma, a leitura ora efetivada em sala de aula e, ao mesmo tempo, respondendo ao que estava sendo solicitado: a ressignificação dos elementos apresentados a priori. Em relação ao espaço, o aluno transgride a orientação ora exposta, ele define o espaço – a câmara dos deputados- o que contribuirá para o desenvolvimento do enredo, tendo em vista as recorrentes denúncias de práticas ilícitas cometidas neste lugar.

Ao seguir, a máxima de que o homem nasce bom, a sociedade o corrompe ou o dito popular que enuncia que A situação faz o ladrão, a formiga renega seus valores, não só para proteger sua companheira, mas também para proteger a si mesma, tal como sinalizam o período coordenado adversativo e a modalização construída pelo aluno: “mas ficou com pena de afetar sua amiga e de algumaforma se afetar”. Corroborando assim com o discurso de que o meio corrompe o homem, quem muito fala pouco ouve,

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 10

A cigarra, a formiga e os esquemas

A cigarra e a formiga eram muito amigas, quase inseparáveis como unha e carne. Era uma amizade interessante, porque as mesmas representavam extremos totalmente diferentes, já que, a formiga era muito trabalhadora e abominava a corrupção e a cigarra era preguiçosa e com fortes tendências à corrupção. As duas trabalhavam na

câmara dos deputados, visto que a formiga foi eleita pela população sem ajuda de ninguém, enquanto que a cigarra foi eleita com a ajuda de um “padrinho”.

Lá na câmara estavam fazendo vários esquemas de lavagem de dinheiro, e é claro que a cigarra estava no meio desse processo, a única que não participou foi a formiga. Meses depois descobriram os esquemas e perguntaram se

Page 11:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

falar é prata, calar é ouro, enfim “Boca calada não entra mosca”. Finalização esta que volta a dialogar com as instruções professorais, o término da fábula configurado por um provérbio, cristalizado pela cultura e muito em voga ao se tratar dos escândalos apresentados pela mídia.

Pode-se perceber a explícita correlação entre este texto e os atuais escândalos de corrupção, desvio de dinheiro, conchavos, articulações, “acordos de cavalheiros” típicos não só das instituições ligadas às instâncias governamentais, os quais são frequentemente denunciados pelos meios de comunicação. Trata-se das relações discursivas estabelecidas entre os modos de agir, de pensar, de interpretar, de julgar a partir da memória discursiva, isto é, as práticas de linguagem que transitam no meio social mais amplo em que o sujeito está inserido (Furlanetto, 2007).

Isto vem revelar não somente a natureza dialógica, interativa do processo de produção-recepção de gêneros no seio de uma dada prática social (Gomes-Santos, 2007), como também a inscrição da dimensão crítica, sócio-ideológica do sujeito em relação à realidade que o circunda. Isso é possível devido à maleabilidade do objeto de ensino proposto, o cruzamento de vários discursos articulados no interior do texto, a conformidade dessa dimensão discursiva e ideológica manifesta em um gênero específico: a fábula.

Nessa direção, é possível perceber que a disciplina escolar apresenta determinados objetos a serem ensinados, os quais podem oferecer possibilidades de enunciar, de conceder o direito à palavra, à interação humana numa dinâmica cuja complexidade todos (re) conhecem de modo indubitável. Interatividade esta, que estabelece estreitas relações com o complexo processo de aprendizagem que, por sua vez, é fundado por mediações, orientações, cooperações que encontram no campo simbólico seu espaço privilegiado (Furlanetto, 2007).

O próximo texto é oriundo do seguinte comando, proposto pelo professor: Após a leitura dessas informações e sua leitura de mundo sobre o gênero textual lenda, produza uma lenda que esteja ligada à realidade amazônica. O texto pode se passar na capital paraense ou nos interiores do estado, deve conter os traços característicos do gênero em questão.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 11

A lenda do Sr Real

Certa vez em uma cidade esquecida no mapa, onde a desigualdade reinava havia um homem muito rico chamado Carlos Real. Ele era dono de uma grande construtora conhecida por seus grandes edifícios. Senhor real, como era chamado por seus funcionários, costumava se apressar para concluir seus projetos, não dando importância a segurança, sempre levando na consciência o velho ditado “tempo é dinheiro”. Dias antes da entrega de um grande empreendimento Mariano um homem que trabalhava para Carlos, foi até a sala do patrão e lhe disse que a construção não era segura e deveriam esperar mais um pouco antes de entregar-la para o comprador. O chefe ao ouvir o funcionário ficou com muita raiva, pois por mais que soubesse que a construção não era segura e corria riscos não podia adiar a entrega, então em um momento de fúria demitiu o pobre trabalhador e confirmou a data em que a obra acabaria. Semanas antes da conclusão da construção sentiu-se um pequeno tremor na cidade. Os habitantes ficaram desesperados e se perguntavam o que ocorrera. Era o prédio da empresa do Sr Real que havia caído. Alguns dizem, que o vento enfurecido derrubou o imóvel por estar decepcionado com o empresário, outros falam que foi uma lição de que as coisas devem ser feitas da maneira correta. E Carlos amarga até os dias atuais, a tristeza da tragédia.

Page 12:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Fonte: Pesquisa-ação, 2010.

Tendo em vista que todo discurso é tecido a partir de outros discursos e que é também uma resposta a outros discursos em uma cadeia discursiva social mais ampla. Nosso aluno apresenta uma resposta a um fato ocorrido na cidade de Belém-PA em janeiro de 2011, o desabamento de um prédio em construção da construtora Real. Esta resposta vem configurada em um gênero textual que tem uma excelente recepção na esfera escolar amazônica: a lenda. Conforme a modelização didática proposta para este gênero discursivo, ele tem como um de seus objetivos justificar a origem de algo ou de um dado comportamento, a partir de um pressuposto sobrenatural e não científico.

A partir disso, o discente apresenta uma explicação acientífica para responder à demanda social acerca das causas do edifício que desabou numa área prestigiada da cidade que provocou perdas humanas e materiais para segmentos sociais prestigiados e não prestigiados socioeconomicamente. O interessante é que uma das possíveis hipóteses levantadas por leigos e que chegou até mesmo a ser publicada em jornais, foi a hipótese da forte ventania daquela tarde ter sido responsável pelo desabamento.

Mais uma vez, a conjugação dialógica do discurso social mais amplo e do discurso professoral é convocada para a construção do texto discente conformado na lenda. A questão de a mídia abordar este assunto influencia também este desdobramento. Isso se justifica ainda em função das causas estarem em plena discussão nas conversas do dia a dia. O sujeito traz a vida, os fatos, o mundo para o seu texto. Esta atualização do gênero vem revelar que os gêneros são entidades maleáveis, dinâmicas, culturais e cognitivas de uma dada ação social. Mas que, ao mesmo tempo, comportam uma identidade que, no momento da produção textual, encaminham para opções não totalmente livres, muito menos aleatórias, as quais são materializadas pela escolha léxico-gramatical e estilística mobilizada, bem como pela criatividade e variação (Marcuschi, 2008). Nesse sentido, o aluno faz uso de um problema social sem explicação técnica imediata e do conhecimento acerca do gênero que permite a explicação de um fato ou de um comportamento. Nesse ínterim, ele responde a uma necessidade social e, ao mesmo tempo, revela a funcionalidade do gênero mobilizado, apresenta uma lição para o comportamento de alguém poderoso e imprudente em relação à segurança e evidencia que todos precisam ser respeitados e ouvidos, revelando ainda um traço de uma sociedade estratificada em patrões e empregados estabelecem relações sociais de poder assimétricas.

Assim, ele lembra desde o início do texto que a narrativa ocorre em “uma cidade esquecida no mapa onde a desigualdade reinava”, mais tarde neste lugar o senhor real “em um momento de fúria demitiu o pobre trabalhador”. Estas opções discursivas vêm sinalizar implicações de natureza sócio ideológica, políticas, econômicas, culturais que revelam o lugar e a posição dos nossos alunos e de seus familiares nas estruturas de poder estabelecidas, as quais extrapolam os muros da escola e da sua usina disciplinar e curricular, atravessa as atividades escolares e, de certo modo, faz refletir sobre a vida, a cultura, a sociedade e aponta caminhos para a crônica nossa do dia-a-dia.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 12

Page 13:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

A seguir, passaremos a discutir as respostas discentes à ação do trabalho docente realizado, no sentido de constatar na materialidade discursiva questões relacionadas: a apropriação do objeto de ensino discursivo e a ação de (re) pensar e de agir por uma prática simbólica. O último texto foi produzido a partir da seguinte proposta: após assistir ao vídeo Menino urubu, produzido pelo Instituto de Artes do Pará (IAP), e levar em consideração seus conhecimentos sobre a temática explorada, bem como sobre o gênero discursivo notícia de jornal, transforme o curta assistido em sala de aula em uma notícia de jornal. Levem em conta as seguintes características:

Fonte: Pesquisa-ação, 2010.

Pode-se verificar que o aluno seguiu a orientação apresentada a respeito da constituição formal do gênero notícia de jornal: construção do título, o qual foi realçado com asteriscos como se apenas as letras em caixa-alta não pudessem dar conta, produção de um olho da notícia, do lead (precisando as respostas aos questionamentos mencionados no comando da proposta), do corpo (apresentando a especificação do acontecimento), presença de uma finalização ou desfecho para o caso e a tentativa de construção de um discurso direto de uma testemunha e/ou autoridade que esteve presente no caso. Este último traço chama a atenção para o caráter verossímil que se quer atribuir ao fato ora noticiado, isto demonstra duas questões interessantes: um indício autoral de apropriação do gênero – narrar fatos reais de modo objetivo, conciso e convincente- e o evidente diálogo com os inúmeros e recorrentes casos de mulheres que têm abandonado recém-nascidos em lugares inapropriados.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 13

*BEBÊ É ENCONTRADO EM LIXEIRA*

Bebê é encontrado em uma lixeira por um catador de latinhas

Um catador de latinha, chamado pelo nome de Manuel Silva Costa, de aproximadamente uns 60 anos, encontrou na tarde de ontem por volta das 16:45, na avenida Magalhães Barata, próximo a Castelo Branco um bebê recém-nascido ainda com o cordão umbilical numa lixeira em frente a um supermercado.

Manuel muito assustado com o que tinha acabado de achar, pegou a criança e levou com urgência a um hospital mais próximo, o bebê ainda chegou com vida, mas o seu estado era muito delicado e a criança não resistiu. “O pediatra que atendeu a criança relatou que o seu estado era muito grave, por se tratar de um recém-nascido e ele

achou que não tinha nem 6 horas de vida”.

A polícia está a procura da mãe que abandonou a criança, nenhuma das pessoas que passaram por lá relataram ver alguém jogando alguma coisa suspeita e no supermercado não tinham câmeras. O bebê vai ser enterrado nesta tarde no cemitério do Tapanã.

Page 14:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Além disso, percebemos que o desfecho é mais dramático, pois em muitas notícias veiculadas na época da produção deste texto, as crianças sobreviviam, mas nesta produção constatamos que o personagem não resiste ao abandono e acaba morrendo. Isto aponta para uma direção articulada ao caráter não tão neutro e objetivo do gênero notícia, sinalizando então caminhos que nos levam a pensar nas marcas de autoria, em uma possibilidade de manifestação da criatividade ou, até mesmo, no sentido de denunciar aquilo que este sujeito-autor presencia no bairro periférico em que reside.

O desfecho para os indigentes também segue esta mesma linha: o fato dos mortos de famílias menos favorecidas economicamente serem levados para o cemitério público do Tapanã. Cabe atentar que, na cidade de Belém-PA, há áreas que ficam alagadas, na época do chamado inverno amazônico. O referido cemitério, inaugurado no início da década de 90, foi criado para substituir o antigo cemitério público da cidade, entretanto, ele está localizado em uma dessas áreas que ficam alagadas no inverno. Por conta disso, até mesmo, aqueles menos prestigiados em termos financeiros procuram pagar um serviço funerário, pois temem ter como destino o Tapanã, cemitério pantanoso em que os caixões viriam à tona, segundo relatos de populares. Portanto, a escolha deste local para o enterro do personagem noticiado reforça ainda mais a condição de abandono, descaso, vulnerabilidade, miséria a que estava sujeita à criança. Mais uma vez constatamos que a maleabilidade do objeto discursivo propicia aos sujeitos uma possibilidade de apropriação da escrita e das suas leis de funcionamento lógico, mas também instiga a denunciar e desvelar a realidade social, política, econômica, histórica, cultural, geográfica em que eles estão inseridos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das dificuldades de didatização de objetos discursivos, constatamos em nossa prática docente no seio do mundo usineiro que é possível paulatinamente implementar um trabalho docente proficiente no sentido de promover momentos de ensino propícios, os quais possam contribuir efetivamente para a apropriação dos gêneros orais e escritos.

Entendemos que a sequência didática a ser construída precisa estar articulada aos sistemas de ensino e aos ambientes institucionais em que as mesmas são implementadas, a fim de ser viabilizada efetivamente a partir das condições estruturais e humanas a que docentes e discentes têm acesso, tendo em vista as mais diversificadas e multifacetadas agências de letramento da sociedade brasileira.

Entretanto, defendemos que um pressuposto essencial para o desenvolvimento de uma prática docente desta natureza é a adoção de uma concepção interacionista de linguagem, uma vez que produzir práticas de linguagem situadas implica necessariamente convocar o heterogêneo, a variabilidade, a polêmica, a criatividade, a alteridade, a complexidade, a postura do sujeito mediante a linguagem, a sociedade, a vida e a cultura. Enfim, é naturalmente necessário convocar as práticas de letramento a

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 14

Page 15:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

que eles já têm acesso, como, por exemplo, lançar mão das informações de textos midiáticos.

Por exemplo, ao produzir a lenda, o aluno convoca a hipótese de que uma ventania que houve na cidade fosse a causa da queda do edifício, esta hipótese apresentada pelos jornais na época do acontecimento. Ao construir a fábula, o aluno rememora os frequentes escândalos ocorridos nas câmaras e assembleias Brasil afora, os quais são veiculados pelos meios de comunicação a que estes sujeitos têm acesso (internet, rádio, televisão). Assim também, ao tentar construir uma notícia, o sujeito faz uso de recursos informativos oriundos da esfera jornalística oral ou escrita, ouvida ou assistida, a saber: o detalhamento da notícia, o uso do argumento por autoridade, a proposição de que a polícia está tomando as providências para penalizar a mulher que abandonara o filho recém-nascido; a informação referente à ausência de câmeras de segurança no supermercado, as quais geram imagens que diariamente são exibidas pela imprensa para fins diversos, inclusive, para auxiliar em investigações policiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das dificuldades de didatização de objetos discursivos para turmas numerosas, constatamos em nossa prática docente no seio do mundo usineiro que é possível paulatinamente implementar um trabalho docente proficiente no sentido de promover momentos de ensino propícios, os quais possam contribuir efetivamente para a apropriação dos gêneros orais e escritos.

Compreendemos que a sequência didática a ser construída precisa estar articulada aos sistemas de ensino e aos ambientes institucionais em que as mesmas são implementadas, a fim de ser viabilizada efetivamente a partir das condições estruturais e humanas a que docente e discentes têm acesso, tendo em vista as mais diversificadas e multifacetadas agências de letramento da sociedade brasileira.

Contudo, defendemos que um pressuposto essencial para o desenvolvimento de uma prática docente desta natureza é a adoção de uma concepção interacionista de linguagem, uma vez que produzir práticas de linguagem situadas implica necessariamente convocar o heterogêneo, a variabilidade, a polêmica, a criatividade, a alteridade, a complexidade, a postura do sujeito mediante a linguagem, a sociedade, a vida e a cultura.

Nesse sentido, acreditamos que é tarefa da escola não só encaminhar o acesso a este processo de apropriação das práticas de linguagem, ao longo do processo de escolarização formal por via do trabalho docente; como também é tarefa das instâncias governamentais competentes incrementar, por intermédio de políticas públicas efetivas condições estruturais, para que o trabalho docente seja realizado de modo mais digno e viável, em especial, na escola pública, agência de letramento fundamental para pensarmos a real reinvenção da democratização da sociedade brasileira.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 15

Page 16:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

Referências

ANGELO, Graziela Lucci de. Revisitando o ensino tradicional de língua portuguesa. Tese de doutorado. Campinas: Unicamp, 2005.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. 196 p.BATISTA, Antônio Augusto G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BUNZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: MENDONÇA, Márcia; BUNZEN, Clécio (orgs.).Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola, 2006. p.139-161. (Série Estratégia de Ensino).BRONCKART, Jean-Paul ; PLAZAOLA GIGER, Itziar. La transposition didactique : histoire et perspectives d’une problématique fondatrice. Pratiques, n. 97-98, junho, 1998, p.35-58.

CAILLOT, M. La théorie de la transposition didactique est-elle transposable? In: RAISKY, C. e CAILLOT, M. (edit.).Au-delá des didactiques, le didactique.Débatsautourdesconceptsfederateurs. Paris: De Bœck, 1996. 

CHAVES, Maria Helena. O gênero seminário escolar como objeto de ensino: instrumentos didáticos nas formas do trabalho docente. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos). Belém: Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, 2008.

CHERVEL, A. L’ Histoiredes disciplines scolaires: réflexionssur um domanine de recherches. In: Histoire d L’ Éducation, n. 38. Paris: Service d ‘Histoire de l’Education de L’ I.N.R.P., 1998, p. 59-119.

CHEVALLARD, Y. La transposicióndidáctica. Del saber sabio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991. 

DEVELAY, M. Savoirsscolaires et didactiquedes disciplines: Une encyclopédiepouraujourd'hui. Paris: ESF Editeur, 1995. 

FERREIRA, Débora Cristina do Nascimento. Aula de português no Ensino Médio: a institucionalização de objetos gramaticais no trabalho docente. Dissertação(Mestrado

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 16

Page 17:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

em Letras – Estudos Lingüísticos). Belém: Instituto de Letras eComunicação, Universidade Federal do Pará, 2008.

FORTES, Nabade Cardoso de Oliveira Alves. Salas numerosas: espaço de conhecimento ou informação? Campinas: Editora Alínea, 2000.

FURLANETTO, Maria Marta. Práticas discursivas: desafio no ensino de língua portuguesa. In: BAGNO, Marcos. Práticas de letramento no ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola, 2007. p 131-150.

GOMES-SANTOS, S.; FERREIRA, D.C.N. Trabalho docente e ensino de língua na escola-usina: primavera nos dentes, digitalizado, 2011.

______ GOMES-SANTOS,. Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino. In: Salto para o futuro.Boletim3, abril, 2007. ISSN 1518-3157.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análisede gêneros e compreensão. São Paulo: Cortez, 2008.MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores: entre saberes e práticas. Educação e Sociedade, vol.22 no.74 Campinas Apr. 2001.ISSN 0101-7330. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em 04.01.08.PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

PORTAL, Michele Seabra.Contribuição da avaliação formativa para o ensino/aprendizagem da produção escrita em turmas numerosas. Dissertação de mestrado: UFPA, Belém, 2008.

ROJO, R. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos. In:A Prática de Linguagem em Sala de Aula. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

SCHNEUWLY, B. Les outils de l’enseignant – un essai didactique. Université de Genéve, Repères, no. 22, 2000.

_____, Bernard. La tâche: outil de l´ enseignant. métaphore ou concept?. In:Schneuwly, Bernard;Dolz, Joaquim et al (dir). Lestaches et leursentours em classe de français. Actesdu 8º ColloqueInternational de la DFLM. Neuchâtel, 26-28 september, 2001. Neuchâtel: IRDP [CD-ROM].

_____, Bernard; Dolz, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 17

Page 18:  · Web view... em um dado momento histórico. Assim, atuam sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o conjunto de professores, aqueles

_____, Bernard;Dolz, Joaquim; Ronveaux,Christophe.Le synopsis: um outilpouranalyserlesobjets. Didactique dês langues, FAPSE, Genève-Suisse. 2005, p.1-11 (mimeo).

_____, B., CORDEIRO, G. S. e DOLZ, J. A larecherche de l’objetenseigné: une démarche multifocale. Les dossiers des sciences de l’éducation, 14, 77-93, 2006._____, B. L’objetenseigné. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs). Des objetsenseignésen classe de français– Le travail de l’enseignantsurlarédaction de textsargumentatifs et surlasubordonnéerelative. Rennes, FR: PressesUniversitaires de Rennes,2009, p. 17-28. Tradução Sandoval Nonato Gomes Santos. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2011 [Uso restrito].

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.

*Professora da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Pará.

** Professora da Universidade do Estado do Pará.

________

1 As traduções apresentadas são de nossa responsabilidade.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 18