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Conflitos socioambientais no território globalizado: os casos da mineração na Amazônia e da produção sucroalcooleira em Minas Gerais. RESUMO Este artigo apresenta, através de dois estudos de caso - o primeiro relacionado à mineração na Região Amazônica e o segundo à produção sucroalcooleira em Minas Gerais - conflitos de cunho socioambiental em territórios dominados por grandes corporações. Estas, ao se instalarem, reconfiguram/refuncionalizam/fragmentam o território, intensificando as relações de poder, gerando novas territorialidades e atores sociais. Por vezes, estão ligadas a conflitos socioambientais com comunidades locais e também com comunidades tradicionais, povos que possuem em sua essência a identidade ligada ao território, uma vez que o mesmo dá condição para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica do grupo. Os conflitos tratados neste artigo demonstram resultados negativos do território globalizado, em que o lado mais forte – no caso as grandes corporações – ao assumirem a gestão do território, acabam por impor ao ambiente e às comunidades locais seu modus operandi e as consequências deste, indiscriminadamente. Palavras-chave: conflitos socioambientais; grandes corporações; território; globalização; desterritorialização. ABSTRACT This article presents, through two case studies - the first related to mining in the Amazon region and the second to sugarcane production in Minas Gerais - socio-environmental conflicts established in areas dominated by big corporations. These, when installed, reconfigure/reframes/fragment the territory, intensifying the power relations, creating new territorialities and social actors. Sometimes they are involved with socio-environmental conflicts with local and traditional communities, people who have in essence their identity linked to the territory, since it gives them condition for cultural, social, religious, ancestral and economical reproduction. The conflicts discussed in this article demonstrate negative results of globalized territory, when the strongest side - in case big corporations – takes over the management of the territory, they eventually impose on the environment and local communities their modus operandi and its consequences, indiscriminately. Key-words: socio-environmental conflicts; big corporations; territory; globalization; deterritorialization. Introdução

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Conflitos socioambientais no território globalizado: os casos da mineração na Amazônia e da produção sucroalcooleira em Minas Gerais.

RESUMOEste artigo apresenta, através de dois estudos de caso - o primeiro relacionado à mineração na Região Amazônica e o segundo à produção sucroalcooleira em Minas Gerais - conflitos de cunho socioambiental em territórios dominados por grandes corporações. Estas, ao se instalarem, reconfiguram/refuncionalizam/fragmentam o território, intensificando as relações de poder, gerando novas territorialidades e atores sociais. Por vezes, estão ligadas a conflitos socioambientais com comunidades locais e também com comunidades tradicionais, povos que possuem em sua essência a identidade ligada ao território, uma vez que o mesmo dá condição para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica do grupo. Os conflitos tratados neste artigo demonstram resultados negativos do território globalizado, em que o lado mais forte – no caso as grandes corporações – ao assumirem a gestão do território, acabam por impor ao ambiente e às comunidades locais seu modus operandi e as consequências deste, indiscriminadamente. Palavras-chave: conflitos socioambientais; grandes corporações; território; globalização; desterritorialização.

ABSTRACTThis article presents, through two case studies - the first related to mining in the Amazon region and the second to sugarcane production in Minas Gerais - socio-environmental conflicts established in areas dominated by big corporations. These, when installed, reconfigure/reframes/fragment the territory, intensifying the power relations, creating new territorialities and social actors. Sometimes they are involved with socio-environmental conflicts with local and traditional communities, people who have in essence their identity linked to the territory, since it gives them condition for cultural, social, religious, ancestral and economical reproduction. The conflicts discussed in this article demonstrate negative results of globalized territory, when the strongest side - in case big corporations – takes over the management of the territory, they eventually impose on the environment and local communities their modus operandi and its consequences, indiscriminately.Key-words: socio-environmental conflicts; big corporations; territory; globalization; deterritorialization.

Introdução

O Brasil é um país cuja história é marcada por conflitos, sejam eles políticos,

ambientais ou sociais. Desde a época da colonização até os dias atuais, o país passou por

uma série de transformações: modificou relações (escravidão/serventia-trabalhador

assalariado, trabalhador rural-mão de obra urbana); deixou de ser rural para se tornar

predominantemente urbano; estruturou e reestruturou sua base político-econômica (Colônia-

Império, Império-República, Ditadura-Democracia), enfim, transformações que

inevitavelmente vieram carregadas de conflitos, desde ideológicos a práticos, dentre os mais

variados grupos. Dos inúmeros embates, merecem destaque os de cunho territorial oriundos

da formação histórica do Estado brasileiro, atrelado ao processo de globalização

contundente no século XX.

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A abertura do país ao capital estrangeiro, iniciando-se na Era Vargas após a grande

crise de 1929 e acrescido e fortalecido no período Kubistchek, coloca o Brasil nos rumos da

globalização. Esta, pungente após a segunda guerra mundial, afetou intensamente o

território, principalmente através da instalação de grandes corporações em determinadas

localidades do país, ocasionando uma reconfiguração político-econômico-territorial. Corrêa

(1992) discute o controle do território em tempos de globalização, ao refletir que:

[...] a gestão do território constitui-se em uma faceta da gestão econômica, política e social, a ela estando subordinada, mas também condicionando-a. É a dimensão espacial do processo geral de gestão, confinando-se ao espaço sob controle de um Estado ou de uma dada empresa. (CORRÊA, 1992, P. 35).

A gestão do território sob os moldes da economia globalizada vem acarretando, ao

longo dos anos, consequências diretas e indiretas ao ambiente e as comunidades que o

habitam, gerando conflitos, em especial os de cunho social e ambiental. Acselrad (2004)

conceitua “conflitos ambientais”, como sendo:

[...] aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis...decorrentes do exercício das práticas de outros grupos. (ACSELRAD, 2004 apud LASCHEFSKI E ZHOURI, 2010, p.5).

A partir da conceituação de Acselrad, Laschesfki e Zhouri (2010) entendem que os

conflitos ambientais podem ser divididos sob três formas: “Conflitos ambientais distributivos”,

são aqueles em torno do acesso e da utilização dos recursos naturais que indicam graves

desigualdades sociais; “Conflitos ambientais territoriais”, marcando situações onde há

sobreposição de reivindicações de segmentos sociais possuidores de distintas visões de

mundo sobre o mesmo recorte espacial, por exemplo, área para a implantação de uma

hidrelétrica versus territorialidades da população afetada; e os “Conflitos ambientais

espaciais”, que abrangem os conflitos gerados em decorrência de efeitos ou impactos

ambientais que ultrapassam os limites entre os territórios de diversos agentes ou grupos

sociais, como emissões de gases e poluição da água.

Neste trabalho, serão tratados dois conflitos territoriais em particular que se

enquandram nas três formas postas acima, tornando sua dissolução algo ainda mais

complexo. O primeiro caso remete aos tempos de ditadura, quando começam as

campanhas de ocupação do oeste brasileiro, sobretudo da Região Amazônica. E o segundo,

mais recente, envolve a indústria sucroalcooleira e uma comunidade quilombola no

município de Pompéu/MG. Ambos refletem uma forma de atuação da globalização no

território através de grandes corporações que, ao se instalarem,

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reconfiguram/refuncionalizam/fragmentam o território, intensificando as relações de poder,

gerando novas territorialidades e atores sociais e, por vezes, estabelecendo conflitos

socioambientais.

1. O caso da Amazônia e a mineração

1.1 A consolidação da Região Amazônica no âmbito da expansão de fronteiras e integração do território nacional

Para compreender como a Região Amazônica se tornou uma potência em termos de

extração de recursos minerais e, consequentemente, território de grandes corporações,

torna-se necessário voltar à década de 70 no Brasil, onde a preocupação com o processo

de integração nacional ficou evidente.

A intenção de tornar o território nacional integrado e desenvolvido regionalmente

tornou-se meta para o governo brasileiro, cuja organização política-administrativa

encontrava-se centrada em um regime totalitarista, que buscava mecanismos de controle do

território. A ocupação de áreas periféricas, historicamente pouco ou não povoadas,

apresentou-se como solução para essa demanda. Apoiada em um discurso

desenvolvimentista, se deu através do estabelecimento de programas como o Plano de

Integração Nacional (PIN) instituído em 19701. Segundo Becker (2004) “a intervenção do

Estado, do poder estatal autoritário, tecnocrático, foi fundamental na criação das regiões”

(Becker, 2004, p. 16), fato esse evidenciado pela região Amazônica, através da Amazônia

Legal que foi a “primeira intervenção governamental que criou realmente uma região”

(BECKER, 2004, p.16). Para tanto, o Estado utilizou-se de redes de integração, articulando

rodovias implementadas no governo Kubitschek (1958-1960) às já preexistentes na região e

integrando-as a outras redes como ferroviárias e de comunicação. (BECKER, 2004).

Sobre as regiões brasileiras, Becker (1972) propõe uma divisão (ou categorização)

da estrutura espacial brasileira em quatro tipos: Regiões periféricas dinâmicas ou em

desenvolvimento; Regiões periféricas em lento crescimento; Regiões periféricas deprimidas;

e Regiões de fronteiras de recursos ou regiões de novas oportunidades, sendo esta última

de interesse para este estudo de caso, uma vez que compreendem: “áreas de “avanço de

frentes pioneiras ativas sobre terras despovoadas e matas por desbravar”, aí incluída a

Amazônia como uma periferia não integrada” (MAGNAGO, 1995, p.80).

A discussão da região como instrumento de ação e controle é retomada por Corrêa

(2002) ao salientar que distintos conceitos de região podem ser empregados de maneira 1 Plano criado através do Decreto-Lei Nº 1106, de 16 de julho de 1970, cujo slogan era: “Integrar para não Entregar” procurava através da construção de estradas e corredores de ligação entre as regiões brasileiras, tal como a “Transamazônica”, colonizar a região Norte promovendo a ocupação e integração do território nacional.

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combinada para ação e controle do território. Desse modo, Corrêa elucida a “região de

planejamento” com auge no Brasil das décadas de 60 e 70, voltada à ocupação e

desenvolvimento econômico do território, ao afirmar que “no capitalismo, as regiões de

planejamento são unidades territoriais através das quais um discurso da recuperação e

desenvolvimento é aplicado”. (CORRÊA, 2002, p. 48).

1.2 Globalização na prática: a influência de uma grande corporação sobre o território

Várias foram as formas pelas quais a globalização concretizou-se no Brasil,

conforme apontado por Corrêa (1999). Dentre elas a “incorporação de novas áreas e

refuncionalização de outras” e as “mudanças na organização empresarial” com o advento de

grandes corporações no território nacional, são concretizações que podem ser

particularmente percebidas na Amazônia, especialmente a partir da década de 70.

Sathler, Monte Mór e Carvalho (2009) em seu estudo sobre a urbanização da

Amazônia Brasileira refletem sobre o processo de formação e desenvolvimento das cidades

dessa região, e sua relação com a globalização:

No que se refere ao processo de formação e de desenvolvimento das cidades na Amazônia Legal, pode-se traçar algumas tipologias bastante úteis. Na maior parte dos casos, essas tipologias apresentam um ponto em comum: as atividades econômicas que promoveram o surgimento das cidades amazônicas estiveram direcionadas para o mercado externo. (SATHLER; MONTE MÓR; CARVALHO, 2009, p.18).

Dentre as atividades econômicas voltadas ao mercado externo que fizeram surgir e

desenvolver as cidades amazônicas tem-se a mineração, atividade econômica acentuada na

região através das iniciativas de integração nacional. Kohlhepp, (2002), resume o advento

da extração mineral na região:

Depois que os minérios manganês e cassiterita começaram a ser explorados no Amapá e em Rondônia a partir de meados dos anos 1950 e 1960, as novas descobertas de enormes jazidas de minério de ferro na serra dos Carajás, de bauxita no rio Trombetas e também de ouro e diamantes revelaram a riqueza de recursos minerais da Amazônia, sendo iniciados grandes projetos na região, nos anos 1980 (KOHLHEPP, 2002, p. 40).

Na década de 80, foi implementado o programa “Grande Carajás” que se tornou o

maior programa de desenvolvimento regional e procurou estabelecer vários projetos que

envolviam infraestrutura, mineração e indústria nos 900 mil quilômetros quadrados da mais

importante jazida de minerais na serra dos Carajás, no qual a empresa Vale (antiga

Companhia Vale do Rio Doce) é detentora do direito de exploração.

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A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi criada pelo Decreto-lei nº 4.352, de 1º de

junho de 1942, como uma empresa estatal e de economia mista, durante o governo de

Getúlio Vargas. A empresa constituída no período da Segunda Guerra Mundial tinha o

objetivo de extrair, transportar e embarcar o minério de Itabira, na quantidade prevista em

acordo assinado para os países aliados durante três anos (ZAGALLO, 2010; MELLO; DE

PAULA, 2004). A CVRD tornou-se a maior exportadora mundial de minério de ferro na

década de 1970 e iniciou a expansão das atividades de mineração de ferro em outras

regiões. Tal fato foi marcado pela implantação do Projeto Ferro Carajás, com a exploração

das reservas minerais no Estado do Pará, inaugurado em 1985 (ZAGALLO, 2010; MELLO;

DE PAULA, 2004).

Atualmente, a Vale trabalha na expansão do Complexo Minerador de Carajás. O

projeto denominado “Ferro Carajás S11D” terá investimentos de US$ 19,49 bilhões, e deve

dobrar a capacidade de extração de ferro no local, a partir de 2016. S11D é o maior projeto,

não só da história da Vale, mas da indústria de minério de ferro do mundo. (PROJETO

FERRO CARAJÁS S11D, 2012).

O Projeto Grande Carajás está sediado na cidade de Parauapebas, porção sudeste

do Pará. Esta cidade, que em 2013 completou 25 anos de autonomia política, foi criada em

decorrência dos processos minerários locais, que atraíram grande contingente populacional

para a região. Inicialmente, Parauapebas era uma vila pertencente à Marabá, cidade que

recebeu o projeto em seus primórdios na década de 70. Com o processo migratório para a

região (de pessoas que vinham de todos os cantos do país) a vila cresceu, se urbanizou e

se emancipou em 1988. Segundo dados do IBGE, entre os anos de1991 e 2010 a

população de Parauapebas saltou de 53.335 para 153.908 pessoas. Evidencia-se, portanto,

nos termos de Palheta da Silva (2004) uma ação “político-econômico-territorial”

reestruturadora da Vale perante o território, uma vez que:

“[...] a extração mineral, diferentemente da castanha-do-Pará, acabou direta e indiretamente desestruturando o regime político-econômico da oligarquia do Tocantins, fazendo surgir uma nova elite, composta por fazendeiros empresários, funcionários da CVRD ou de suas contratas ou subsidiárias, bancos, profissionais liberais como médicos, advogados, políticos e comerciantes. O arranjo político local ocasionou uma fragmentação na estrutura político-econômico-territorial do município de Marabá, fazendo com que fosse pleiteada a criação de novos municípios, desmembrados de seu território”. (PALHETA DA SILVA, 2004, p. 73).

A região por onde passa a Estrada de Ferro Carajás é marcada por conflitos territoriais envolvendo vários atores sociais, dentre eles as empresas, os garimpeiros, os sem terra, os ruralistas, os políticos, os indígenas, os quilombolas, dentre outros. Palheta da Silva (2002) afirma que a região

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[...] apresenta-se como um palco de transformações ocasionadas por conflitos e pelos diferentes interesses gerados nas negociações para se definir a gestão do território e a resolução dos interesses contrários e diversos dos atores presentes no território de Carajás. (PALHETA DA SILVA, 2002, p. 172).

Os conflitos envolvendo a empresa Vale, demais empresas ligadas ao minério

extraído na região (como as siderúrgicas) e a população local, recebem destaque

atualmente uma vez que vem se intensificando - principalmente devido às obras de

duplicação da ferrovia - e inúmeros processos tramitam na justiça.

1.3 Conflitos socioambientais e luta pelo território

A Vale inaugurou em 1985 a Estrada de Ferro Carajás, ligando à região mineradora

no sudeste do Pará ao Porto, em São Luís no Maranhão. De acordo com dados da própria

empresa são 892 quilômetros de ferrovia por onde passam regularmente um trem de carga

com 330 vagões e também um trem de passageiros, recortando 27 municípios nos Estados

do Pará e do Maranhão. Atualmente essa estrada de ferro encontra-se em obras de

duplicação, fato que vêm gerando inúmeros impasses com as comunidades estabelecidas

ao longo desse trajeto. Mesmo antes do projeto de duplicação, as comunidades já se

articulavam com a finalidade de relatar as formas pelas quais vem sendo afetadas,

buscando providências. O projeto de duplicação e expansão intensificou esse processo e

cada vez mais promove uma disputa territorial e o exercício do poder local.

Grande parte das comunidades ao longo da ferrovia se uniu ao movimento dos

Atingidos pela Vale que, no ano de 2010, realizou seu primeiro encontro no Rio de Janeiro.

Figura 1 - Complexo minerador de Carajás. Fonte: Projeto Ferro Carajás S11D. Ano: 2015

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Desse encontro surgiu à Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale que, dentre as

várias deliberações, propõem lutar pelo que consideram como violações à sociedade e ao

meio ambiente, devido às atividades exercidas pela mineradora.

Documentos produzidos pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale como

o “Relatório de Insustentabilidade 2015” e o “Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no

Mundo” relatam inúmeros problemas que, de acordo com a Articulação, estão diretamente

relacionados às atividades da mineradora e de outras empresas ao longo da Estrada de

Ferro. Em síntese, os problemas relatados por quase todas as comunidades atingidas estão

relacionados à poeira de minério, barulho dos trens, risco de atropelamentos (com vários

casos confirmados inclusive pela própria mineradora), impedimento de passagem dos

moradores, danos nas edificações do entorno da ferrovia, aterramento de nascentes,

represamento de igarapés, dentre outros.

Há casos particulares de conflitos com povos tradicionais como indígenas e

quilombolas que historicamente ocupam a região. Dentre os conflitos mais expressivos

estão àqueles relacionados aos remanescentes de quilombos das comunidades

maranhenses Santa Rosa dos Pretos e Monte Belo:

A Vale chegou a impugnar oficialmente junto ao INCRA o reconhecimento de terras das comunidades remanescentes de quilombos das comunidades maranhenses Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, cujas áreas são de interesse da empresa para a realização das obras de duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC). (RELATÓRIO DE INSUSTENTABILIDADE DA VALE, 2015, p.23).

Os povos indígenas Xikrin, do Pará, realizaram vários protestos em 2014 para

denunciar os malefícios das atividades da Vale em sua comunidade, conforme relatos

presentes no Relatório de Insustentabilidade, onde “os indígenas Xikrin denunciam que a

extração de níquel está causando diversos danos à saúde da população e afetando o Rio

Cateté, que serve à comunidade”. (Relatório de Insustentabilidade da Vale, 2015, p.23).

Esses são apenas alguns relatos presentes nos referidos documentos. A Vale, por

sua vez, também divulga relatórios que trazem medidas almejando a minimização e/ou

remediação dos impactos causados por suas atividades na região, tais quais os “Relatórios

de Sustentabilidade” e documentos como o intitulado “Projeto Ferro Carajás S11D – um

novo impulso ao desenvolvimento sustentável do Brasil”. Nesses documentos são

apresentadas diversas ações da empresa pela promoção da sustentabilidade e

compensação de danos socioambientais de suas atividades, como o desenvolvimento

econômico promovido na região, geração de renda e emprego, além de afirmarem promover

diálogo com as comunidades e respeito às culturas tradicionais.

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Desse modo, percebe-se que nos dois lados dos diferentes conflitos há justificativas

norteadoras de ações que, por um lado, alegam à promoção do desenvolvimento regional e,

por outro, defendem que suas terras estão recebendo inúmeros danos socioambientais e

não partilham de fato de tal desenvolvimento.

Diante do exposto cabe fazer ressalvas sobre o caráter de empreendimentos

minerários, conforme elucidam Sathler, Monte Mór e Carvalho (2009) :

Ademais, se por um lado a instalação de uma grande mineradora em uma região pode criar uma série de oportunidades econômicas, a exemplo do que hoje acontece na cidade de Parauapebas, que usufrui dos royalties da Vale, percebe-se que o esgotamento do minério pode condenar ao fracasso toda uma cadeia de serviços com alto nível de dependência dessa atividade. Além disso, a concentração local de capital em atividade dinâmica inserida no mercado globalizado atrai enorme quantidade de pessoas que não conseguem inclusão na economia exportadora local e encontram apenas condições precárias para sobrevivência econômica e reprodução social. (SATHLER; MONTE MÓR;CARVALHO, 2009, p.19).

Empreendimentos minerários que movimentam a economia e proporcionam a

ocupação de áreas com histórico de pouco ou nenhum povoamento, possuem um caráter

preocupante. Após a exaustão dos recursos naturais da mineração, a empresa que nutre a

região parte em busca de outro local para se estabelecer - o que acaba gerando uma

situação de desemprego e desestruturação econômica, uma vez que a localidade que

recebe o empreendimento pode vir a estabelecer uma relação de dependência ao mesmo,

caso não haja uma dinamização da economia.

2. O caso da produção sucroalcooleira em Minas Gerais

2.1 Conflitos ambientais e o processo de desterritorialização: a realidade da Comunidade Quilombola Saco Barreiro, de Pompéu/MG.

As “comunidades remanescentes de quilombos”, ou comunidades quilombolas, são

grupos sociais que se distinguem do restante da sociedade brasileira devido sua identidade

étnica. Esta, que é base para sua organização, sua relação com os demais grupos e sua

ação política (COSTA-FILHO, 2011).

[...] a definição de Quilombo generaliza suas características, definindo descritivamente seu caráter normativo: ruralidade, forma camponesa, terra de uso comum, apossamento secular, adequação a critérios ecológicos de preservação de recursos, presença de conflitos e antagonismos vividos pelo grupo e, finalmente, mas não exclusivamente, uma mobilização política definida em termos de auto-identificação quilombola. As comunidades remanescentes de quilombos estão inseridas no contexto das “comunidades ou povos tradicionais”. (ARRUTI, 2006 apud COSTA-FILHO, 2011, pg.2).

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Por sua vez, “comunidades ou povos tradicionais” é um conceito novo, inserido na

legislação brasileira apenas em 2007, através do Decreto 6.040, artigo 3º, de 07/02/07, que

define:

Povos e Comunidades Tradicionais são entendidos como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que provem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.

A partir da definição exposta acima, fica evidente que tratar de comunidade

tradicional sem adentrar no aspecto territorial é impossível, uma vez que, como na própria

definição do conceito está bem claro, o território é o elemento principal que dá condição

para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica do grupo. Ao contrário

das sociedades inseridas nos moldes capitalistas de produção, predominantemente

urbanas, cuja relação com o território físico para a sua reprodução social é em grande parte

indireta, mediada pelas relações do mercado, para uma comunidade tradicional o território é

o substrato material essencial para sua sobrevivência. Porém, não é apenas a materialidade

do território que o conforma e o transforma enquanto elemento significativo para uma

comunidade tradicional, geralmente este possui inúmeras dimensões simbólicas: é nele que

estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantém viva a memória do

grupo, onde estão enterrados os ancestrais e contêm os sítios sagrados, acaba por

determinar o modo de vida e a visão de homem e de mundo e é apreendido e vivenciado a

partir de sistemas de conhecimentos locais. Assim como é importante para as noções de

pertencimento a um território e para a identificação com um ecossistema específico.

Portanto, para esses povos, o território é muito mais do que apenas este espaço da

natureza “que uma sociedade reivindica como o lugar em que os seus membros encontrarão

permanentemente as condições e os meios materiais de sua existência” (HAESBAERT,

2006). “O território é espaço de vida e morte, de liberdade e de resistência. Por essa razão,

carrega em si sua identidade, que expressa sua territorialidade” (FERNANDES, 2005).

No caso do Quilombo Saco Barreiro, observa-se que esse território tão importante

para a manutenção da vida (orgânica e não orgânica, vida enquanto grupo étnico) da

comunidade está sendo completamente ameaçado pelo modus operandi da Agropéu

(Agroindustrial de Pompéu/SA) - empresa produtora de etanol e açúcar através do

processamento da cana-de-açúcar - cuja apropriação do espaço e atividades realizadas nos

canaviais tem gerado uma série de conflitos ambientais e levado a comunidade a situações

de extremas dificuldades, inviabilizando os quilombolas de exercerem sua territorialidade.

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Neste contexto, pretende-se discutir o conflito que ocorre na região através do

conceito de “desterritorialização”, a partir de uma indagação central: a Comunidade

Quilombola Saco Barreiro estaria passando por um processo de desterritorialização?

2.2 Explicitação do conflito

A comunidade Quilombola Saco Barreiro (Figura 2) está localizada na área rural do

Município de Pompéu, Mesorregião Central de Minas Gerais, à aproximadamente 22 km do

centro da cidade.

A área contornada é todo o território onde a comunidade reside atualmente,

possuindo em torno de onze hectares. A área destacada com o balão “A” era parte da

Agropéu. Esta foi recuperada pelo quilombo entre os anos de 2011 e 2012 em comum

acordo com a empresa e hoje está inclusa nestes onze hectares atuais, transformando-se

em um campo de futebol utilizado para partidas contra os moradores dos assentamentos

próximos e contra o povo indígena da região, os Caxixós. Ao norte da imagem é possível

observar algumas pastagens. Atualmente, segundo constatou-se no mês de agosto de

2015, em visita à comunidade, toda a pastagem foi substituida por cana-de-açucar, ou seja,

o quilombo agora está literalmente ilhado pelos canaviais. Dos onze hectares que a

comunidade vive, boa parte está localizada em Áreas de Preservação Permanente (APP),

áreas cuja ocupação e uso dos recursos naturais são proibidos. Sua utilização só é

permitida com autorização do governo federal e, mesmo assim, apenas para a execução de

atividades de utilidade pública ou de interesse social (SENADO, 2012).

Figura 2 – imagem via satélite da Comunidade Quilombola Saco Barreiro. Fonte: Google Maps. Ano: 2015

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Nem sempre a comunidade se situou em APP, muito pelo contrário, é um fato

relativamente novo. Segundo relatado pelos moradores, isso se justifica em decorrência -

resumidamente - de um processo histórico, em que muitos deles viviam como meeiros em

terras de fazendeiros. Com a chegada da Agropéu em 1981 (instalada na região devido os

investimentos do Governo Federal no Programa Proálcool) e sua respectiva expansão nos

anos posteriores, esses fazendeiros passaram a arrendar ou a vender terras para a

empresa, modificando completamente as relações sociais existentes até então. Assim, os

quilombolas foram perdendo acesso e consequentemente acabaram ocupando a beirada do

córrego, onde residem atualmente. Importante salientar que a comunidade já é reconhecida

como quilombola pela Fundação Palmares desde 2008.

É comum às atividades do agronegócio brasileiro, sobretudo este em questão, se

apropriar de bens e recursos naturais antes compartilhados por outros grupos,

hegemonizando-os. O modus operandi da indústria canavieira frequentemente acaba

determinando não apenas o andamento de sua cadeia produtiva, mas também a vida de

populações circunvizinhas. Ademais, essa “privatização” dos bens naturais aliado às outras

atividades, como as aplicações de agrotóxicos e defensivos agrícolas que acabam por

ultrapassar o território político e físico de seus domínios - uma vez que os mesmos são

carregados pelo vento e chuva - por sua vez terminam de construir um cenário inevitável de

conflito. Esta é a realidade que vive atualmente a Comunidade Quilombola Saco Barreiro,

em Pompéu/MG.

Um dos conflitos caracterizados na área é exatamente relacionado às restrições que

estão sendo impostas no uso e apropriação, por um agente sobre o outro, dos bens naturais

componentes do espaço em disputa, ou seja, é aquele embate em torno do acesso e da

utilização dos recursos naturais que indicam graves desigualdades sociais. Este tipo de

conflito é denominado como um “conflito ambiental distributivo” (LASCHEFSKI E ZHOURI,

2010). Neste caso, faz-se referência basicamente ao bem mais importante de todos: a água.

Apesar de ser um requisito primário para a existência de qualquer organismo vivo, e

nesse sentido todas as pessoas e seres são iguais, é fundamental visualizar, no entanto,

que a importância da água para algumas populações vai além da sua necessidade

biológica. Só a partir da compreensão destas diferentes percepções se torna possível

mensurar o grau dos impactos que atualmente estão atingindo a comunidade Saco Barreiro.

É sempre bom lembrar que a água é fluxo, movimento, circulação. Portanto, por ela e com ela flui a vida e, assim, o ser vivo não se relaciona com a água: ele é água. É como se a vida fosse um outro estado da matéria água, além do líquido, do sólido e do gasoso – estado vivo. (PORTO-GONÇALVES, 2008, p.3).

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Por exemplo, as formas de uso por parte de uma comunidade tradicional e como esta

enxerga este bem é totalmente contrária à forma como uma sociedade predominantemente

urbana, imbricada nos moldes capitalistas de vida, a significa. Nesta linha de pensamento,

Diegues (2009 apud LASCHEFSKI e ZHOURI, 2011) demonstra essa diferenciação de

significados afirmando que,

A água doce é um bem em grande parte domesticado, controlado pela tecnologia (represas, estações de tratamento), um bem público cuja distribuição em alguns países pode ser apropriado de forma privada ou corporativista, tornando-se um bem de troca ou uma mercadoria (p.5).

O significado dado à água pela Agropéu, no caso do Córrego Pari - historicamente

utilizado nas demais formas pela comunidade e atualmente principal abastecedor dos

canaviais - é exatamente neste sentido mercantilista. Para esta empresa, ela não tem outro

significado senão um importante recurso necessário à reprodução da cana para a produção

do etanol e açúcar, ou seja, a água não passa de um objeto do mercado, voltado para o

lucro, cujo valor é estritamente econômico. Por outro lado, para a Comunidade Saco

Barreiro o córrego é muito mais do que um recurso econômico, é antes de tudo um bem

natural, tradicionalmente utilizado de forma intensa pelos comunitários para os afazeres

cotidianos e práticas domésticas. Além dos usos físicos, o córrego em si faz parte da

paisagem local. É lembrado, como relatado por seus moradores, como parte integrante dos

melhores momentos por eles vividos, remetendo-lhes a períodos de felicidades de outrora.

Dessa forma, ele é parte da memória e da própria história de vida do grupo.

A chegada da Agropéu, no entanto, marca uma mudança profunda no uso e na

significação do córrego. A notável redução de sua vazão, somada às instalações de grandes

bombas de sucção pela empresa e a desconfiança de um risco real de contaminação por

agrotóxicos, retirou da comunidade uma relação que era de bastante proximidade. Se

historicamente o Córrego Pari foi utilizado para consumo próprio, pescas, banhos e outras

atividades domésticas, atualmente ele mal abastece a horta dos moradores. Desta forma, a

hegemonização da água está forçadamente mudando as tradições e impondo novas

condições de reprodução sociocultural da comunidade. Além disso, outras externalidades

negativas estão sendo geradas, haja vista que tais fatores forçaram os quilombolas a

buscarem fontes alternativas de abastecimento, gerando gastos monetários adicionais

nunca antes necessários, por exemplo, com a abertura de poços artesianos.

É justo colocar, porém, que outras atividades além dos canaviais podem também

estar comprometendo o abastecimento e a qualidade da água em toda a região, como é o

caso das plantações de eucalipto situadas há alguns quilômetros do quilombo e da pedreira

à montante do córrego. Contudo, segundo relatos dos moradores da comunidade, o marco

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em relação aos problemas relacionados à água é a chegada e expansão da Agropéu.

Ademais, sabe-se que a irrigação é responsável em todo o mundo por consumir mais de

70% da água doce disponível e, no Brasil, este índice chega a 72% (WALBERT, 2013).

Apesar do conflito em torno do uso e acesso à água ser relevante e merecer bastante

atenção, ele não é apenas o único e nem o mais grave. O que mais se destaca é o “conflito

ambiental espacial”, ou seja, é aquele efeito ou impacto que ultrapassa as fronteiras

territoriais de diversos agentes ou grupos sociais, como emissões de gases e poluição da

água (LASCHEFSKI e ZHOURI, 2010). Neste caso, o conflito se origina a partir do momento

em que a aplicação de agrotóxicos e defensivos agrícolas por parte da Agropéu afeta a

comunidade através do ar, água e solo, gerando um série de externalidades negativas.

Em época de aplicação é comum os moradores sentirem ardência nos olhos,

irritações na garganta, dores de cabeça e mal estar, principalmente quando o uso dessas

substâncias é feito por avião. A aplicação aérea se caracteriza um grande problema

principalmente em decorrência dessa proximidade da comunidade com os canaviais, haja

vista que o vento transporta parte dessas substâncias diretamente para o quilombo. Um dos

casos por intoxicação mais sérios denunciados ocorreu com uma senhora, moradora do

Saco Barreiro. Enquanto caminhava próxima aos canaviais, um avião da Agropéu a

sobrevoou enquanto aplicava as substâncias, atingindo-a diretamente. Tal acontecimento

fez com que desmaiasse, tendo de ser socorrida por familiares e levada imediatamente ao

posto de saúde no centro de Pompéu. Após este episódio, ela sofre com ataques de

epilepsia e precisa tomar remédios de forma controlada para evita-los, conforme relatou.

Em visita realizada à Agropéu em Novembro de 2013, foi informado que as

substâncias aplicadas por aviões são maturadores, ou seja:

[...] produtos químicos que induzem o amadurecimento de plantas, causando, assim, a translocação e o armazenamento dos açúcares na planta. São utilizados para antecipar e otimizar o planejamento da colheita. Os maturadores podem, ainda, apresentar substâncias que dessecam a planta, o que favorece a queima e diminui as impurezas vegetais ou que inibem o florescimento (ROSSETTO,s.d.).

Os maturadores não estão afetando exclusivamente a saúde dos moradores, mas

também a economia daqueles que possuem plantações, principalmente de espécies

arbóreas (uma vez que a contaminação ocorre pelo ar). Segundo relatos, é bastante comum

em época de aplicação a perda de produção em decorrência da morte de espécies. Assim,

produtos que antes eram vendidos na feira deixam de ser comercializados, reduzindo a

renda mensal das famílias.

Os conflitos ambientais espaciais vão além da aplicação dos maturadores, estes são

também decorrentes do emprego terrestre de agrotóxicos. Em épocas de chuva, toda a

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produção do quilombo se perde, haja vista que o produto aplicado nos canaviais escorre

para as plantações. Como agravante, só é possível cultivar novamente no solo afetado após

dois meses da ocorrência da chuva, segundo relatado por moradores. Por este motivo,

apesar da escassez de espaço físico na comunidade, aqueles que produzem estão sendo

obrigados a mudar as hortas de local. Da mesma maneira, o Córrego Pari corre o risco de

estar sendo contaminado através da água lixiviada, pois além da possibilidade de infiltração

no lençol freático, a distância entre as plantações afetadas e o mesmo é pequena. Além

disso, segundo constatado, três famílias ainda precisam do córrego para consumo próprio

uma vez que não possuem poços artesianos, portanto, podem estar com a saúde

ameaçada.

2.2 O processo de “desterritorialização”

A partir de todos os dados elencados, percebe-se que a territorialidade dos

quilombolas está comprometida. A restrição ao uso de recursos naturais historicamente

apropriados pelos moradores; a dúvida em relação à qualidade dos mesmos; a perda de

usos e relações tradicionais com o território; enfim, todos esses aspectos e outros mais

transformaram e ainda transformam as tradições do quilombo. Dessa forma, pode-se

perguntar: estaria a comunidade Saco Barreiro se desterritorializando?

Termo cunhado por Deleuze e Guattari na obra “O Anti-Édipo”, em 1972,

desterritorialização, de forma bastante resumida, significa “o movimento pelo qual se

abandona o território, ‘é a operação linha de fuga’” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.224

apud HAESBAERT e BRUCE, 2009, p.08).

O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.323 apud HAESBAERT e BRUCE, 2009, p.08).

Porém, para Deleuze e Guattari, o processo de desterritorialização é seguido

obrigatoriamente por um processo de reterritorialização. Esse movimento concomitante de

desterritorialização e reterritorialização está expresso no “primeiro teorema” da

desterritorialização ou “proposição maquínica” (HAESBAERT e BRUCE, 2009:08):

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Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua. Daí todo um sistema de reterritorializações horizontais e complementares, entre a mão e a ferramenta, a boca e o seio (1996,41).

Pode-se afirmar que, no caso em análise, a Comunidade Quilombola Saco Barreiro

está se desterritorializando sob duas perspectivas: uma, que ocorre de forma implícita e

outra, que ocorre explicitamente. A primeira é aquela que levou a comunidade a viver

atualmente em Área de Preservação Permanente.

A partir de processos legais, como a compra ou arrendamento de terras dos

fazendeiros da região, a empresa foi encurralando a comunidade. Ainda que não houvesse

por parte dos quilombolas um território próprio, legalizado, com titulação (muito pelo

contrário, eles viviam como meeiros nas terras dos fazendeiros) - pode-se afirmar que ali

eles constituíram um território. As relações que foram se estabelecendo com a paisagem e

os recursos naturais ao longo das décadas e as tradições religiosas e festivas que se

conformaram no lugar, dentre outros motivos, fazem dessas terras território da comunidade,

ainda que na informalidade. Portanto, a partir do momento em que a empresa passa a

comprar e arrendar terras para a plantação de cana-de-açúcar, ela inicia o processo de

desterritorialização da Comunidade Saco Barreiro, e ao mesmo tempo reterritorializa a área

a partir de suas formas próprias de apropriação do espaço.

Por sua vez, o processo de desterritorialização explícito é aquele que ocorre de

forma violenta, extralegal, como o conflito já exposto neste trabalho. As atividades da

empresa; as formas como a mesma se apropria dos bens naturais historicamente

compartilhados entre os membros da comunidade; os ônus das atividades que recaem

sobre os moradores do quilombo, como as possíveis contaminações da água, solo e ar - a

partir da aplicação de agrotóxicos e outros defensivos agrícolas; o calor gerado pela falta de

árvores, uma vez que todas foram cortadas para a plantação da cana; enfim, uma série de

impactos diretos e indiretos estão continuando o processo de desterritorialização da

comunidade, iniciado décadas atrás.

Assim posto, parece claro que a situação em que se encontra a Comunidade

Quilombola Saco Barreiro é grave. O processo de desterritorialização - se é que já não se

pode considerá-lo completo, haja vista que a comunidade hoje se encontra em apenas onze

hectares com boa parte deles situados em APP, um território irrisório se comparado ao

antigamente ocupado - está certamente colocando em risco a existência do quilombo. As

atividades antigamente realizadas com e no córrego Pari; as relações com a terra e a

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paisagem; os cultos e festanças; todos esses aspectos são fundamentais para a construção

identitária do grupo. Mas não apenas isso, são fundamentais para sua reprodução cultural e

para a manutenção da vida de seus habitantes.

Como exposto no inicío da explicitação deste caso, o território para uma comunidade

tradicional é mais do que um espaço da natureza em que uma sociedade reivindica como

lugar de residência. Ele é “espaço de vida e morte, de liberdade e de resistência. Por essa

razão, carrega em si sua identidade, que expressa sua territorialidade” (HAESBAERT,

2006). Ou seja, desterritorializar uma comunidade tradicional é a mesma coisa que extingui-

la, “aculturaliza-la”: é uma forma de etnocídio. Portanto, a Comunidade Quilombola Saco

Barreiro não está sofrendo apenas uma desterritorialização, diante do cenário atual, ela está

sendo extinta.

Considerações finais

Ao mesmo tempo em que a globalização aplica um discurso desenvolvimentista,

apresenta-se também de forma perversa, como propôs Santos (2001), ao tratar o mundo

globalizado enquanto fábula e enquanto perversidade. As implicações ao se compreender a

globalização enquanto fábula estão fundamentadas ao assumirmos que tal processo

aparenta ser algo que não é. A globalização - que por vezes aparece como um processo

que integra culturas, economias, políticas, como algo unificador e que diminui as distâncias

entre os povos - não ocorre uniformemente, gerando enormes desigualdades. Ou seja, a

globalização deixa de ser um processo integrador, transformando-se em um processo

segregador, onde apenas determinada parcela da população é beneficiada por suas

consequências, emergindo então a perversidade.

Os conflitos tratados neste trabalho ilustram bem essa situação. Modos de vida

modificados, territórios desconstruídos e/ou ressignificados, tradições transformadas e/ou

destruídas; tudo isso são frutos dessa perversidade, em que o lado mais forte – no caso as

grandes corporações – ao assumirem a gestão dos territórios, acabam colocando como

imposição ao ambiente e às comunidades locais o seu modus operandi, deixando de se

preocupar com os ônus advindos de sua apropriação espacial, gerando consequências

muitas vezes irreversíveis para grupos e comunidades próximas.

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