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MEMO REVOLUÇÃO 4.0 EXTERIOR https://www.theguardian.com/business/economics-blog/2017/jan/22/the- new-robot-revolution-will-take-the-bosss-job-not-the-gardeners? CMP=fb_gu http://phys.org/news/2015-07-artificial-intelligence-economic- theory.html http://www.pewinternet.org/2014/08/06/future-of-jobs/ https://www.whitehouse.gov/sites/whitehouse.gov/files/documents/ Artificial-Intelligence-Automation-Economy.PDF http://www.analysisgroup.com/uploadedfiles/content/insights/ publishing/ag_full_report_economic_impact_of_ai.pdf https://www.weforum.org/agenda/2016/07/artificial-intelligence- opportunity-or-challenge-for-the-us-economy http://www.cfr.org/technology-and-science/robots-future-jobs- economic-impact-artificial-intelligence/p38475 http://www.theatlantic.com/business/archive/2012/04/the-rise-of- the-artifical-intelligence-economy/255387/ https://www.weforum.org/agenda/2016/01/the-fourth-industrial- revolution-what-it-means-and-how-to-respond/ http://www.g20chn.com/xwzxEnglish/sum_ann/201609/P020160912341429630547.pdf https://www.theguardian.com/business/economics-blog/2016/jan/24/4th-industrial- revolution-brings-promise-and-peril-for-humanity-technology-davos http://www.3ds.com/industries/industrial-equipment/resource-center/white-papers/the- 4th-industrial-revolution-opportunity-and-imperative/ 1

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MEMO REVOLUÇÃO 4.0

EXTERIOR

https://www.theguardian.com/business/economics-blog/2017/jan/22/the-new-robot-revolution-will-take-the-bosss-job-not-the-gardeners?CMP=fb_gu

http://phys.org/news/2015-07-artificial-intelligence-economic-theory.html

http://www.pewinternet.org/2014/08/06/future-of-jobs/

https://www.whitehouse.gov/sites/whitehouse.gov/files/documents/Artificial-Intelligence-Automation-Economy.PDF

http://www.analysisgroup.com/uploadedfiles/content/insights/publishing/ag_full_report_economic_impact_of_ai.pdf

https://www.weforum.org/agenda/2016/07/artificial-intelligence-opportunity-or-challenge-for-the-us-economy

http://www.cfr.org/technology-and-science/robots-future-jobs-economic-impact-artificial-intelligence/p38475

http://www.theatlantic.com/business/archive/2012/04/the-rise-of-the-artifical-intelligence-economy/255387/

https://www.weforum.org/agenda/2016/01/the-fourth-industrial-revolution-what-it-means-and-how-to-respond/

http://www.g20chn.com/xwzxEnglish/sum_ann/201609/P020160912341429630547.pdf

https://www.theguardian.com/business/economics-blog/2016/jan/24/4th-industrial-revolution-brings-promise-and-peril-for-humanity-technology-davos

http://www.3ds.com/industries/industrial-equipment/resource-center/white-papers/the-4th-industrial-revolution-opportunity-and-imperative/

http://www.eef.org.uk/campaigning/campaigns-and-issues/current-campaigns/industry-four

https://www.ubs.com/global/en/about_ubs/follow_ubs/highlights/davos-2016.html

http://www.intent-x.com/4th-industrial-revolution

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http://www.iot-now.com/2016/10/20/53811-the-industrial-internet-towards-the-4th-industrial-revolution/

http://blog.productgraph.io/what-is-the-fourth-industrial-revolution

http://www.newsweek.com/2015/03/27/rise-robot-factories-leading-fourth-industrial-revolution-311497.html

https://iotdevtest.techwell.com/program/concurrent-sessions/4th-industrial-revolution-and-iot-predictions-software-perspective

http://www.delivered.dhl.com/en/articles/2016/03/the-fourth-industrial-revolution.html

http://www.gbm.hsbc.com/insights/innovation/mastering-the-fourth-industrial-revolution

https://raptormanreports.com/2016/09/17/4th-industrial-revolution-robot-replacement/

http://access.jll.com/sea-4th-industrial-revolution-insights-2016/

http://w3.siemens.co.uk/home/uk/en/future-of-manufacturing/publications/Pages/publications.aspx

http://www.gereports.com/tag/4th-industrial-revolution/

https://betterworkingworld.ey.com/disruption/what-is-fourth-industrial-revolution

www.theatlantic.com/.../09/...next-industrial-revolution/498779/

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VALOR

5/DEZ/2017

Admirável cérebro novoPor João Luiz Rosa | De São Paulo

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Cena de "Ex-Machina: Instinto Artificial" (2015), em que um programador testa a inteligência artificial do androide interpretado pela atriz Alicia Vikander

Em sua frase mais famosa, René Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, redefiniu o conceito sobre a natureza humana: "Penso, logo existo". Em busca do conhecimento, ele começou a duvidar de tudo, inclusive de sua própria existência. Percebeu, então, que não podia duvidar da dúvida. Se duvidava, é porque pensava, e, se pensava, é porque existia. A consciência de si mesmo, ensinou Descartes, distingue o que é humano.

Agora, passados mais de 350 anos, a inteligência artificial (IA) experimenta um avanço inédito na história. Nunca se investiu tanto para fazer com que as máquinas "pensem" e tomem decisões capazes de ajudar as pessoas em suas tarefas diárias. Chegará o dia em que a máquina vai duvidar de si mesma? E, a partir desse dia, será humana? Afinal, máquinas inteligentes são uma boa ou má notícia para nós, humanos?

Uma década atrás, essa discussão praticamente não ultrapassava os limites dos laboratórios acadêmicos. As universidades continuam sendo o local por excelência da pesquisa pura sobre a inteligência artificial, mas foi depois que as grandes empresas descobriram como usar seus princípios em aplicações comerciais que o assunto ganhou a atenção do público em geral - virou pop.

"A inteligência artificial, hoje, é um fato, não uma visão de futuro", diz ao Valor a executiva Paula Bellizia, presidente da Microsoft no Brasil. "Tudo o que estamos fazendo está ligado à IA." A aplicação mais conhecida da empresa na área de IA é a assistente pessoal Cortana. O sistema ajuda o usuário a traçar rotas, consultar a agenda, checar a previsão do tempo etc. Desde que foi lançada, em 2014, a Cortana já arregimentou 133 milhões de usuários no mundo e recebeu 12 bilhões de perguntas.

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O programa não é o único de sua categoria. Na concorrência estão softwares como a Siri, da Apple; a Alexa, da Amazon; e o Google Assistant. Todos "entendem" a linguagem falada e tentam responder a comandos de voz. Para o usuário, fica a sensação reconfortante de que existe uma pessoa do outro lado do computador, tablet ou smartphone, por mais que ele saiba tratar-se de um robô.

Os assistentes virtuais estão ficando tão populares que a expectativa é de que, em 2019, 20% de todas as interações de usuários com smartphones vão ocorrer por meio desses sistemas, segundo uma pesquisa da consultoria Gartner. O levantamento, feito com 3.021 pessoas e divulgado no mês passado, mostra que 42% dos entrevistados nos EUA e 32% no Reino Unidos usaram esses programas nos celulares nos três meses anteriores.

Há duas semanas, Mark Zuckerberg, cofundador e diretor-presidente do Facebook, anunciou ter criado seu próprio assistente pessoal. Batizado de Jarvis - uma homenagem ao mordomo eletrônico de Tony Stark, o alter ego do Homem de Ferro nos filmes da Marvel -, o sistema foi construído para automatizar a casa da família. Pode acender e apagar as luzes, tocar música, fazer torradas, reconhecer visitantes à porta etc. Parte do que é mostrado nos vídeos parece ser só brincadeira, como escolher uma camiseta e lançá-la do armário por meio de um tubo. Mas o importante é o potencial de uso. Zuckerberg diz ter gasto cem horas para criar o Jarvis, que tem um charme adicional - sua voz é a do ator Morgan Freeman.

A despeito de tanta badalação, porém, os assistentes digitais mostram só a superfície da inteligência artificial. Por baixo dessas aplicações, voltadas às conveniências da vida prática, existem profundezas que só agora começam a ser exploradas. Do tratamento de câncer ao desenvolvimento de carros sem motorista, de algoritmos que negociam ações a supermercados que dispensam caixas, os campos de aplicação da IA parecem intermináveis. E em cada segmento o impacto pode ser enorme.

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As projeções sobre a receita mundial com produtos e serviços de inteligência artificial variam bastante, mas todas indicam crescimentos expressivos. A consultoria Tractica estima um aumento de 57 vezes entre 2016 e 2025, de US$ 643,7 milhões para US$ 38,8 bilhões. A IDC prevê um crescimento de US$ 8 bilhões no ano passado para US$ 47 bilhões em 2020, e a Frost & Sullivan projeta uma taxa anual composta de 40%, entre 2014 e 2021, de US$ 633,8 milhões para US$ 6,6 bilhões. Todas as consultorias são americanas.

Como a IA não trata de uma única tecnologia, mas de um conjunto de disciplinas - robótica, reconhecimento de voz e imagens, aprendizagem de máquina etc. -, o que se prevê é uma espécie de círculo virtuoso, com o estímulo a novos negócios em várias áreas. É algo semelhante ao que ocorreu com o smartphone, cuja disseminação fortaleceu toda a cadeia de produção dos aparelhos, estimulou a oferta de serviços de streaming e praticamente criou a indústria dos aplicativos. "A IA vai ser um catalisador de investimentos em várias áreas, como o desenvolvimento de software, chips e dispositivos que ainda nem existem", diz o analista Bob O'Donnell, da TECHanalysis Research, dos EUA.

Encurtar o tempo necessário para cumprir uma tarefa, qualquer que seja ela, é um dos principais papéis reservados à inteligência artificial. A Microsoft traduziu "Guerra e Paz" (1869), do russo para o inglês, em 2,6 segundos. A cada segundo, o sistema decifrou 558 páginas do clássico de Liev Tolstói (1828-1910). Pode-se perguntar por que tanta urgência para traduzir um livro, mas o ponto é outro - ao abreviar processos, máquinas inteligentes podem reduzir custos, estabelecer correlações de informações quase imperceptíveis e, dependendo do caso, cumprir a missão proposta com menos erros que um agente humano.

Uma das áreas em que isso fica mais evidente é a saúde. No mês passado, a IBM anunciou ter identificado cinco genes ligados à esclerose lateral amiotrófica, conhecida pela sigla em inglês ELA. A doença, de caráter degenerativo, atinge os neurônios motores e provoca atrofia muscular até a paralisação total do paciente, que não perde suas capacidades mentais ao longo do processo. A doença ficou mais conhecida a partir de 2014, quando várias personalidades, de George W. Bush a Justin Bieber, começaram a postar vídeos em que jogavam um balde de água com gelo na cabeça para levantar fundos para pesquisa. A vítima mais conhecida da ELA é o físico inglês Stephen Hawking.

No filme "Ela" (2013), um escritor solitário começa a "namorar" um sistema operacional dotado de inteligência artificial e voz feminina (da atriz Scarlett Johansson)

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O Watson, o sistema de IA da IBM, começou lendo todas as publicações conhecidas sobre a doença. Depois, classificou quase 1,5 mil genes humanos e começou a analisar quais deles poderiam estar associados à ELA. A IBM trabalhou com o Instituto Neurológico de Barrow, em Phoenix, nos EUA, cuja equipe avaliou que oito dos dez genes indicados estavam, de fato, ligados à doença - para cinco deles, essa associação era inédita. O processo levou meses, mas os cientistas envolvidos disseram que teriam levado anos se não fosse o Watson - o nome é uma homenagem da IBM a seu fundador, Thomas Watson (1874-1956).

"O debate é entre o 'fast data' e o 'big data'", disse Marcelo Porto, presidente da IBM no Brasil, em encontro com jornalistas. "Big data" é o nome dado ao acúmulo de dados proporcionado pela internet a empresas, governos e indivíduos. Para extrair informações dessa base e estabelecer relações capazes de ajudar a tomar decisões, as organizações investiram fortemente em softwares analíticos, que ajudam a procurar a separar o que é importante do que não é no palheiro digital.

Agora, porém, isso se tornou insuficiente, diz Porto. O problema é que os chamados dados desestruturados são cada vez mais relevantes. Uma foto divulgada no Instagram, um vídeo no YouTube ou um comentário no Facebook podem fornecer pistas significativas sobre a aceitação de um produto pelo consumidor ou a avaliação de um candidato pelo eleitor, por exemplo. E como na internet tudo muda rapidamente, é preciso ser capaz de detectar a tendência de maneira instantânea. É algo que os softwares analíticos tradicionais não conseguem fazer. Para dar conta desse trabalho são necessários programas capazes de entender o contexto de uma frase ou identificar rostos em uma foto, habilidades que só são possíveis com a inteligência artificial.

No Brasil, a aproximação entre grupos de tecnologia e empresas de outros setores, principalmente na área de saúde, tem avançado. O Grupo Fleury, de laboratórios, passou a usar o Watson para mapear mutações genéticas no DNA de pacientes e o Hospital 9 de Julho, de São Paulo, vai adotar um sistema de IA que usa câmeras para evitar acidentes, como pacientes que caem do leito. O software está sendo desenvolvido no Centro de Tecnologia Avançada aberto pela Microsoft no Rio de Janeiro.

Apesar dos seus benefícios, muitas vozes têm se levantado quanto aos riscos da inteligência artificial. Isso não é surpresa. Toda vez que uma inovação importante ganha espaço, reaparece o temor de que a tecnologia possa se virar contra seu criador. No século XIX, "Frankenstein" (1818) já cumpria esse papel. No livro, Mary Shelley (1797-1851) narra a história do cientista que tenta criar um ser vivo com pedaços de cadáveres. A história termina com a morte do doutor, como um lembrete sobre o risco de se conceber algo potencialmente incontrolável.

O cinema amplificou esses temores. No pós-guerra, a desconfiança quanto às armas nucleares provocou uma profusão de filmes de baixo orçamento em Hollywood. Muitos eram variações sobre o mesmo tema - um animal inofensivo que, exposto à radiação, ficava gigante e destruía tudo à sua frente. Podiam ser formigas ("O Mundo em Perigo", 1954), um polvo ("O Monstro do Mar Revolto", 1955) ou um lagarto, como é o caso do japonês "Godzilla" (1954).

O avanço sem precedentes da sociedade digital passou a inspirar terrores mais sofisticados, com uma máquina superinteligente no lugar do monstro. É o caso do

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computador HAL 9000 de "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick; do sistema autoconsciente Skynet, da série "O Exterminador do Futuro" (iniciada em 1984), do mais recente "Ex-Machina: Instinto Artificial" (2015), e de "Matrix" - um mundo simulado pelas máquinas para controlar a consciência humana e usar as pessoas como fonte de energia. Em "Ela" (2013), que remete a Siri, da Apple, a "monstra" é capaz de partir o coração de um apaixonado homem solitário.

A ficção científica não costuma ser boa conselheira porque seu foco é o entretenimento e não a ciência. Mas suas advertências insistentes fazem pensar se a humanidade poderia ou não ser destruída pela máquina, algo que tem sido levado a sério nas esferas acadêmicas.

Em '2001 - Uma Odisseia no Espaço' (1968), o computador HAL 9000 elimina os tripulantes de uma nave

Um dos estudiosos mais importantes do assunto é o matemático e filósofo sueco Nick Bostrom, diretor do Instituto do Futuro da Humanidade, na Universidade de Oxford, e autor do livro "Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies" (em tradução livre, Superinteligência: Caminhos, Perigos, Estratégias). A obra já foi endossada por gente como Bill Gates, da Microsoft, e Elon Musk, da Tesla Motors, a fabricante de carros elétricos.

Bostrom adverte contra o risco de antropomorfizar as máquinas e imaginar que elas possam vir a odiar a humanidade. Máquinas, simplesmente, não têm sentimentos e não há motivo para que venham a ter. Mesmo assim, alerta o acadêmico, podem representar ameaça real para civilização. Por quê? A explicação foi bem resumida pela revista britânica "The Economist" no título de um artigo do ano passado sobre as questões éticas que rondam a IA ("Os clipes de papel de Frankenstein").

Vamos supor, propõe Bostrom, que no futuro uma inteligência artificial complexa assuma como missão produzir a maior quantidade possível de clipes de papel. Depois de esgotar as fontes existentes, ela procuraria novas formas de cumprir sua tarefa. Eventualmente, acabaria usando todos os recursos do planeta para fazer mais clipes, até aniquilar o homem, se isso significasse atingir seu objetivo. E em meio ao processo, tomaria todos os cuidados para evitar que fosse impedida de alcançar sua meta, o que significaria blindar-se contra eventuais ataques. Não se trata de ódio, vingança ou ressentimento. Só de eficiência.

Por ora, uma das maiores preocupações é com o desemprego que a inteligência artificial pode provocar. Há quem acredite que o avanço da IA terá impacto semelhante ao da Revolução Industrial. Mas, se no século XVIII a automação roubou vagas da população

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com menos escolaridade, a IA estaria posicionada, agora, para fazer o mesmo com a classe média. Só cargos que exigem muita criatividade ou habilidade gerencial estariam a salvo. O próprio Stephen Hawking defendeu essa ideia em um artigo publicado meses atrás no jornal britânico "The Guardian".

Os números dão indícios inquietantes. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, cerca de 45% das funções existentes poderiam ser substituídas por mão de obra mecanizada com a adaptação de tecnologias já existentes. Nos EUA, essas atividades representariam US$ 2 trilhões em salário anuais.

No mês passado, a Casa Branca divulgou um relatório no qual reconhece que a IA pode levar à perda de milhões de empregos e acirrar a divisão de classes nos EUA, mas conclui, curiosamente, que a economia americana precisa de mais inteligência artificial, não menos. O motivo? A tecnologia é chave para aumentar a eficiência na produção de bens, indica o relatório, o que poderia levar a salários médios mais altos e menos horas de trabalho.

Muitos especialistas acreditam que a inteligência artificial não vá, necessariamente, substituir a mão de obra humana. Em vez disso, criará sistemas para auxiliar o trabalhador a desempenhar melhor suas funções. É o conceito do "centauro". Como o mito grego, metade homem e metade cavalo, o centauro digital misturaria a habilidade e a criatividade humanas com a força e o poder de processamento da máquina. O termo foi cunhado pelo campeão de xadrez Garry Kasparov, que em 1997 perdeu uma partida para o computador Deep Blue, da IBM. Já existem campeonatos de xadrez que permitem o auxílio da máquina, mas o conceito pode ser aplicado a qualquer área. Por exemplo, no campo militar, para definir soldados equipados com exoesqueletos ou que lutariam abrigados dentro de robôs.

A segurança cibernética é outro item que preocupa. No ano passado, a Darpa, braço de pesquisa do Departamento de Defesa americano, promoveu um concurso no qual sete supercomputadores competiram entre si para encontrar vulnerabilidades em sistemas e, então, corrigi-las. Foram distribuídos US$ 55 milhões em prêmios. Ao fim de 95 rodadas, o vencedor foi o computador Mayhem, da ForAllSecure, uma companhia novata de segurança. Embora o objetivo fosse elevar o grau de segurança cibernética, o concurso gerou especulações sobre a possibilidade de a IA ser usada para explorar as falhas, em vez de repará-las. Estaria criada uma nova casta de super-hackers, formada por máquinas.

Em contrapartida, aumentam os esforços para usar a IA na defesa de sistemas complexos, cada vez mais dependentes de algoritmos. A Nasdaq e a Bolsa de Londres já anunciaram que vão adotar mecanismos de inteligência artificial para coibir fraudes e abusos. E a Autoridade Regulatória da Indústria Financeira (Finra, na sigla em inglês), uma organização não governamental sem fins lucrativos, está desenvolvendo um software que será capaz de varrer mensagens de chat para detectar atitudes suspeitas na negociação de grandes volumes de ações. No foco estão estratégias como o "layering" - quando um corretor faz e depois cancela uma ordem de compra (de uma ação que ele nunca pretendeu comprar) só para influenciar seu preço.

Esses e outros casos sugerem que à semelhança das demais tecnologias que tiveram impacto transformador no modo de produção - como a luz elétrica, o automóvel e a

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internet -, a adoção crescente da inteligência artificial será inevitável, independentemente dos problemas que venha a provocar. Não escapam nem as artes, considerada outra exclusividade humana. Em Amsterdã, no ano passado, foi apresentado o quadro de um homem branco, entre 30 e 40 anos, com cavanhaque ruivo, chapéu preto e gola branca. O título da pintura? "O Próximo Rembrandt". Mas não se tratava de nenhuma peça perdida do mestre holandês. O quadro, feito em uma impressora 3D, foi concebido por um sistema de inteligência artificial, que analisou 346 pinturas do artista e se baseou em 168.263 fragmentos para "pintar" sua própria tela. O trabalho levou 18 meses para ser concluído e o software usou um algoritmo de reconhecimento da face para identificar os padrões geométricos mais comuns na obra de Rembrandt. Outros elementos foram levados em consideração, como composição e material de pintura.

Os organizadores da experiência, feita pela agência J. Walter Thompson para o ING Bank, se apressaram em dizer que "só Rembrandt poderia criar um Rembrandt", mas destacaram o valor de lembrar ao público os elementos que fizeram do pintor o gênio que ele era.

Parece uma boa aspiração para a inteligência artificial: copiar os meandros do cérebro humano para, tanto quanto possível, melhorar a vida das pessoas, mas sem sobrepujar a alma, esse elemento etéreo que nos define.

(Colaborou Gustavo Brigatto)

Sem trabalho, mas maravilhosoPor Cristiane Barbieri | Para o Valor, de São Paulo

"O Brasil não está sem dinheiro. Os milionários não fazem parte do país?", diz o sociólogo italiano Domenico de Masi, de 78 anos

Domenico de Masi olha para a câmera do computador e pede desculpas. "Acabei de pedir um cafezinho e infelizmente não posso oferecer um pouco para você", afirma, dando risada, enquanto bebe um gole. "Pelo menos por enquanto. Porque, na próxima revolução tecnológica, certamente o café vai até aí." Para o sociólogo italiano, o fato de ele estar em Tiradentes, enquanto a reportagem do Valor o entrevistava de São Paulo, via Skype, é um "verdadeiro milagre".

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"Passei metade da minha vida sem tecnologia e posso garantir que a segunda metade foi muito melhor", diz ele, que foi a Minas Gerais participar da primeira edição do Fórum do Amanhã. Lá, foram discutidos o futuro da política, da educação, da economia, das cidades, do meio ambiente, do trabalho e da governança. Para De Masi, é exatamente essa tecnologia que acabará com o trabalho como o conhecemos hoje e obrigará as pessoas a repensarem todas suas relações. "Haverá a necessidade de uma educação para o tempo livre, como hoje temos hoje a educação para o trabalho", diz. Leia, a seguir, trechos da entrevista que De Masi concedeu.

Valor: Em suas entrevistas mais antigas, o senhor tinha uma visão bastante otimista do Brasil: já éramos o país do presente e não mais o do futuro. Continuamos, porém, com 13 milhões de analfabetos e 40 milhões de analfabetos funcionais. Há um descrédito gigantesco na política e o país está quebrado. Sua visão do futuro do Brasil ainda é a mesma?

"Só restará o trabalhador criativo. Todos os outros serão substituídos por máquinas. Devemos (...) preparar o mundo sem trabalho"

Domenico De Masi: Há três anos, o Brasil não era um país desesperançado. Eu pergunto: o que aconteceu em três anos para transformar um país tão otimista em um país tão sem esperança? Não foram nem três anos: foram três meses. Quando Dilma foi reeleita, 52% dos brasileiros eram otimistas. Poucos meses depois, todos estavam pessimistas. Parece estranho porque ninguém sabe a resposta. Para nós, que estamos longe do Brasil, é difícil entender. Mas sou otimista porque o elemento de base do Brasil continua o mesmo, de três ou de dez anos atrás. O Brasil é um país 28 vezes maior do que a Itália, com matérias-primas abundantes, 200 milhões de habitantes, 42 etnias de todos os tipos e uma riqueza cultural que vai dos índios e da pré-história à Embraer, uma companhia aérea das mais modernas do mundo. Nenhum país do mundo apresenta uma variedade tão ampla da realidade. Os elementos de base estão aqui, o problema é a redistribuição deles.

Valor: É o mesmo cenário, inclusive com alguns políticos e alguns brasileiros que às vezes têm práticas pouco éticas.

De Masi: Não creio que haja diferença entre o povo e a elite. Por exemplo, vi em um centro comercial do Rio uma loja onde se vendiam Ferraris. Quem compra Ferrari em um shopping? Em nenhum país há centros comerciais ricos e luxuosos como no Brasil e em nenhum deles se vendem Ferraris. Há um sentimento forte coletivo contra a corrupção. Por outro lado, muitos brasileiros também se comportam como bilionários. Apesar de ser o sétimo país em PIB, o PIB per capita não é tão grande. O Brasil não é um país singularmente rico.

Valor: O senhor acredita que a operação Mãos Limpas, que resultou na eleição de Silvio Berlusconi, se repetirá com a Lava-Jato?

De Masi: Do que entendo, a técnica e o objetivo da Mãos Limpas são os mesmos da Lava-Jato. Idênticas. A técnica usada pela Mãos Limpas foi, ao saberem que uma pessoa era corrupta, prendiam-na e esperavam que delatasse o outro. Me parece que é a mesma usada no Brasil. O objetivo também me parece o mesmo. A Mãos Limpas queria eliminar uma classe dirigente corrupta. Creio que [o juiz Sergio] Moro tem como

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objetivo acabar com a classe política corrupta. Não é culpa dos juízes o que ocorre depois. O que acontece depois é culpa da sociedade civil e da sociedade política.

Valor: Como assim?

De Masi: Na Itália, as sociedades civil e política não estavam prontas para essa transição. Quem se aproveitou da situação foi o Berlusconi, que tinha nas mãos uma grande potência: a mídia. Só que, a Berlusconi não interessa a política, não interessa o poder, mas sim sua empresa e as mulheres. Ele não levou o país nem adiante nem à frente: ficamos parados por 20 anos, que são muito nesse momento histórico em que vivemos, é quase como um século. Experimentamos uma forma pós-industrial de ditadura, a ditadura midiática, feita não pela força, com as armas, mas pela sedução da mídia. Foi um experimento muito trágico para a Itália: hoje temos 13% de graduados nas universidades, enquanto a Turquia tem 15%. O percentual italiano é menos do que a metade dos EUA. Isso se deu pelo fato de que, durante o período Berlusconi, a cultura e os interesses humanísticos eram secundários. Foi um grande dano para o país. Outro dano foi que não se criou uma nova classe dirigente. Depois da Lava-Jato, se o Brasil conseguir nova classe dirigente que não seja corrupta, não seja violenta, que reduza a distância entre ricos e pobres, os efeitos serão positivos. Se o Brasil não tiver nova classe dirigente, o problema será igual ao italiano.

Valor: Em entrevistas antigas, o senhor falava com admiração de vários políticos brasileiros. Eles foram uma decepção?

De Masi: Venho ao Brasil há 25 anos. Na primeira vez que vim ao país, Fernando Henrique Cardoso estava no poder. Eu o conhecia como um grande sociólogo. Li seus livros sobre a sociologia do subdesenvolvimento e muitos outros de autores brasileiros. Naquele período, conheci ministros, governadores, arquitetos, artistas, intelectuais. Fiquei muito impressionado com a qualidade da classe dirigente brasileira. Comparada com a Itália, era muito boa, sobretudo a classe dirigente periférica, dos Estados, os governadores. Na Itália, os governadores quase sempre são muito medíocres. Criei lá um seminário anual de italianos e brasileiros e muitos dos que conheci aqui foram à Itália para as discussões.

Valor: O que aconteceu com alguns desses políticos?

De Masi: Um dos grandes problemas do Brasil é a distância entre ricos e pobres. É um dos países com maior desigualdade social, ocupa o 127º lugar no índice Gini, entre 196 nações. Como sociólogo, sempre julguei os governos pela capacidade de reduzir a distância entre ricos e pobres. No segundo governo FHC e nos dois governos Lula, a distância entre ricos e pobres no Brasil diminuiu. Só dois países no mundo passaram por isso: China e Brasil. Mas no Brasil foi muito mais. Saíram da pobreza 40 milhões de brasileiros. Na China foram 300 milhões, mas sobre 1,4 bilhão de pessoas, é um percentual muito menor. Além disso, o Brasil é um país democrático. Como sociólogo, o Brasil representou uma exceção única: foi o único país capitalista no qual 20% da população mudou de nível social. É um fato único. Para mim, sociólogo, isso é muito importante. Os elementos racionais, para admirar o governo de Fernando Henrique e depois o governo de Lula eram certos. Eram dados objetivos. No primeiro governo de Dilma [Rousseff], houve uma grande crise mundial, que não existia na época de Fernando Henrique nem de Lula. Mesmo com a crise internacional, a distância entre

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ricos e pobres não aumentou. Com essa base de dados objetiva, tive grande admiração por esses três governantes. Tenho simpatia pela Dilma também porque é mulher. Na Itália não conseguimos levar uma mulher à Presidência. Nem na França. Ou nos Estados Unidos. Não é algo trivial, e Dilma conseguiu ser eleita duas vezes. Havia elementos para que tivesse grande estima pelos governantes brasileiros. Sempre ouvi dizer que havia corrupção no Brasil, inclusive no tempo de Fernando Henrique. A Itália também é corrupta. Mas para que haja a corrupção, é necessário corruptos e corruptores. Não estão na prisão apenas os políticos. É preciso dizer que a política e a economia são corruptas. São corruptos os políticos, os empresários e a mídia, que não os denunciou antes.

Valor: Em um país com desemprego crescente, o trabalhador pode aproveitar de alguma maneira o ócio criativo para se qualificar?

De Masi: O problema do trabalho depende de multifatores, sendo que os principais são a globalização e a tecnologia. Existem três tipos de trabalho: o físico do operário; o intelectual executivo, do empregado de bancos e escritórios; e o trabalho intelectual criativo, que fazemos eu e você. As primeiras máquinas automáticas substituíram muito o trabalho físico de operários, o que gerou grande desocupação nessa categoria. Depois chegaram os computadores, que substituíram muito trabalho intelectual executivo. Agora, com a inteligência artificial, será substituído também muito trabalho criativo. Sou professor universitário e muitos estão sendo substituídos pelo "e-learning". Todos os trabalhos estão sendo ameaçados pela globalização e pela tecnologia. Seguramente, num futuro próximo, em dez anos, precisaremos de muito menos trabalho humano. Produziremos melhor os serviços, com menos trabalho. O problema será como redistribuir a riqueza. Hoje, a riqueza é distribuída pelo trabalho. Para o desocupado, não há riqueza. Quando forem multidesocupados, o que acontecerá?

Valor: O quê?

De Masi: Creio que possam acontecer duas coisas: uma fisiológica e outra patológica. A patologia serão grandes conflitos sociais. A fisiologia se dará em três níveis: no atual, se toma consciência do problema; na segunda fase, ao ter consciência, se redistribui o trabalho. Hoje, o pai trabalha dez horas por dia e o filho é desocupado. Numa segunda fase, o pai vai trabalhar cinco horas e o filho cinco horas. Numa terceira fase, o problema será o tempo livre. O que fazer com o tempo livre será o grande problema do futuro. Quando todos tivermos muito tempo livre de trabalho, se formos pessoas cultas, saberemos como viver. Se formos pouco cultos, há o perigo da droga, da violência, da depressão. Haverá a necessidade de educação para o tempo livre, como hoje temos uma educação para o trabalho.

Valor: Não seria o momento de qualificar a população, nesse momento de alta de desemprego?

De Masi: Em 1930, Keynes calculou que a nossa geração deveria trabalhar 15 horas por semana para evitar a desocupação. No futuro próximo não haverá trabalho. É inútil essa qualificação para o trabalho. Será sempre menos trabalho. Só restará o trabalhador criativo. Todos os outros serão substituídos por máquinas. Devemos pensar, inventar e preparar o mundo sem trabalho. Será um mundo maravilhoso.

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Valor: Estamos discutindo a reforma da Previdência num país quebrado e a principal alternativa apresentada é o aumento da idade para a aposentadoria. Não haveria uma alternativa a isso? Reduzir a carga de trabalho gradativamente, mais cedo?

De Masi: O Brasil não está sem dinheiro. Os milionários não fazem parte do país? O Brasil tem muito dinheiro. Os pobres é que não têm dinheiro. Os impostos no Brasil são de cerca de 30%, enquanto na Itália giram em 60%. É preciso redistribuir essa carga. Bem como muitas coisas: é preciso redistribuir o trabalho, a riqueza, o poder, o saber, as oportunidades e as garantias. A economia liberal não é capaz de distribuir, mas de produzir. Para distribuir, é preciso uma economia social democrática.

Valor: Como o senhor vê o impacto das novas tecnologias e engajamento popular? A Primavera Árabe, em última instância, ajudou a deflagrar a crise dos refugiados. Nós soltamos o gênio mau da lâmpada?

De Masi: Passei uma parte da minha vida sem tecnologia. A segunda parte, com tecnologia. A segunda fase da minha vida foi muito melhor, graças às novas tecnologias. Percebe que você está em São Paulo e eu em Tiradentes, vendo as belas plantas que estão atrás de você? Para mim, isso é um milagre. Demos grandes passos adiante e não vejo aspecto negativo na tecnologia. A Primavera Árabe foi sufocada pelos países ocidentais que forneceram armas aos inimigos. Por outro lado, a falta da tecnologia traz isso sim, muito mais problemas. Quantas vidas humanas o celular salvou? Se houvesse celular no tempo de Romeu e Julieta, bastava um telefonema dela avisando que estava chegando. Se Napoleão tivesse um telefone em Waterloo… a história teria sido outra.

O desafio mais importante já enfrentadoPor Dora Kaufman | Para o Valor, de Nova York

Lee Sedol, jogador sul-coreano de Go, perdeu de 4 x 1 do sistema de IA criado pela Deep Mind da Google para disputar o jogo chinês, em março de 2016

No ano passado, o AlphaGo, programa criado pela companhia inglesa Deep Mind, do Google, ganhou de 4 x 1 do sul-coreano Lee Sedol, o melhor jogador do jogo chinês Go. Foi um fato histórico. No jogo de damas, se um humano e um computador jogarem em perfeitas condições, o resultado será empate, ou seja, o computador hoje jamais

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perderia um jogo de damas. No xadrez, a probabilidade é de que o melhor computador ganhe do melhor jogador humano.

Se, por um lado, a inteligência artificial (IA) realiza tarefas que são supostamente prerrogativas dos seres humanos, sua capacidade ultrapassa as limitações humanas. Parte do sucesso da Netflix, por exemplo, está em seu sistema de personalização, em que algoritmos analisam as preferências do usuário (e de grupos de usuários com preferências semelhantes) e, com base nelas, sugere filmes e séries.

O caso da IA é ímpar: pela primeira vez na história estamos diante de outra "espécie" inteligente, com a perspectiva de, nas próximas décadas, superar a inteligência humana, tornando-se uma "superinteligência". Outro fato inédito é que pela primeira vez o homem criou algo sob o qual não tem controle. Esses dois fatos afetam o futuro da humanidade. O que ainda tem ares de ficção científica pode estar mais próximo do que imaginamos. A inteligência artificial permeia nosso cotidiano. Acessamos sistemas inteligentes para programar o itinerário com o Waze, pesquisar no Google e receber do Spotify recomendações de músicas. A Siri, da Apple, o Google Now e a Cortada, da Microsoft, são assistentes pessoais digitais inteligentes que nos ajudam a localizar informações úteis com acesso por meio de voz com perguntas tais como "O que está na minha agenda hoje?" ou "Qual o posto de gasolina mais próximo?".

O Google colocou à venda nos EUA, em outubro, um assistente doméstico apto a controlar os dispositivos conectados na casa, acionado por comando de voz com a frase "Ok Google". Igualmente, é a IA que está por trás dos algoritmos que identificam fotografias no Instagram ou no Facebook e que tornam os anúncios on-line assertivos com o perfil do usuário. Quem já não se surpreendeu ao chegar em outro país, acessar o Facebook e receber anúncios de restaurantes e lojas locais?

Grandes varejistas, como o supermercado inglês Target e a Amazon, investem em projetos que, com base no histórico, sejam capazes de antecipar compras do consumidor. O conceito da "geladeira inteligente" da Samsung é de "family hub", ou seja, a geladeira ser um centralizador de informações da família, com recursos simples como uma tela para fixar anotações e fotos, aos mais sofisticados como a visualização no smartphone do seu interior. A expectativa é de que em breve as geladeiras "conversem" diretamente com supermercados repondo automaticamente os produtos.

O serviço de atendimento on-line ao cliente se beneficia com o processamento de linguagem natural; o desempenho dos robôs é tão perfeito que temos a sensação de estar interagindo com pessoas do outro lado da linha. A IA está presente nos sistemas de detecção de fraude e também nos serviços de vigilância, em que algoritmos são treinados para reconhecer uma "ameaça". No campo da saúde os avanços são diversificados, com ganhos de precisão nos diagnósticos, nos processos cirúrgicos e no enfrentamento de epidemias. Recentemente, um sistema inteligente diagnosticou 90% dos casos de câncer de pulmão, superando os médicos que alcançaram êxito em apenas 50% deles.

Distinto de tecnologias que substituíram funções associadas a aptidões físicas, a inteligência artificial ameaça a elite da sociedade

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Cunhado em 1956, o termo inteligência artificial deu início a um campo de conhecimento dos mais controversos da ciência da computação, associado com linguagem e inteligência humana, raciocínio, aprendizagem e resolução de problemas. O pesquisador Davi Geiger, do Instituto Courant da New York University, propõe pensar a IA numa perspectiva simplificada, como a reprodução do que é controlado pelo cérebro humano - o movimento de andar, por exemplo, é controlado pelo cérebro, assim como enxergar.

Todas as sensações que vão ao cérebro são do domínio da inteligência, logo estão potencialmente no campo da IA. Esse foi o pressuposto do colóquio de Eberhart Fetz, da Washington University, no Center for Neural Science (NYU): um computador minúsculo que, implantado no cérebro humano, recupere movimentos perdidos, como a mobilidade de uma perna, suplantando as próteses mecânicas. As experiências empíricas estão sendo realizadas em macacos e os prognósticos são animadores.

Dois eventos recentes e correlacionados galvanizaram as pesquisas em IA: a explosão de uma enorme quantidade de dados na internet e a técnica Deep Learning. Big Data é o termo em inglês para essa grande quantidade de dados gerados na internet. Sua complexidade reside não somente na quantidade, mas também na variedade e velocidade com que os dados são produzidos por humanos e por autorreprodução. Como extrair informação dessa quantidade enorme de dados? É justamente aí que entra a inteligência artificial.

Os métodos de extrair informação são de uma subárea da IA denominada Machine Learning. A técnica não ensina as máquinas a, por exemplo, jogar um jogo, mas ensina como aprender a jogar um jogo. O processo é distinto da tradicional "programação". Essa priori "sutil" diferença é o fundamento da IA. Todos os elementos da movimentação on-line - bases de dados, "tracking", "cookies", pesquisa, armazenamento, links etc. - atuam como "professores" da IA. O termo hoje mais amigável é Deep Learning. O curioso é que, como explica Geiger, não sabemos como essas máquinas funcionam. Tom Mullaney, de Stanford, em palestra na Universidade de Columbia, provocou: "Se você perguntar para um cara se sabe exatamente o que acontece no interior das máquinas, se ele for honesto vai responder que não sabe".

As grandes empresas de tecnologia estão investindo pesado em sistemas inteligentes. A Apple, em 2015, adquiriu a empresa britânica Vocal IQ, produtora de tecnologia voltada para controle de voz, e, no início de 2016, comprou a startup de inteligência artificial Emotient, com foco na tecnologia de reconhecimento facial e reação dos clientes aos anúncios. O projeto Oxford, da Microsoft, disponibiliza um conjunto de APIs (interface de programação de aplicações) com recursos de reconhecimento facial e processamento de fala. A IBM tem o Watson, sistema que em 2011 venceu os dois melhores jogadores humanos do programa americano de televisão "Jeopardy"; em 2014, o Watson foi utilizado no New York Genome Center, em tratamentos personalizados de pacientes com câncer cerebral.

A Amazon tem o Alexa, aplicativo que permite a interação usando voz para responder a perguntas, reproduzir músicas etc. adaptado aos padrões de fala, vocabulário e preferências pessoais. Há dois anos, o Facebook criou o Artificial Intelligence Research Lab, sob o comando de Yann LeCun, da NYU. Segundo ele, "o lema do Facebook é conectar pessoas. Cada vez mais, isso também significa conectar as pessoas com o

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mundo digital. No fim de 2013, quando Mark Zuckerberg decidiu criar o Facebook AI Research, pensou no que seria "conectar pessoas" no futuro e percebeu que a inteligência artificial desempenharia um papel fundamental". O Facebook disponibiliza diariamente cerca de 2 mil itens para cada usuário (mensagens, imagens, vídeos etc.).

Entre esse conjunto de informações, os algoritmos do Facebook identificam - com base nos gostos, interesses, relações, aspirações e objetivos de vida - e selecionam de 100 a 150 itens, facilitando a experiência do usuário. Essa seleção assertiva de conteúdos relevantes é processada por meio da IA, especificamente pelas "redes neurais recorrentes". Como explica LeCun, "grande parte do nosso trabalho no Facebook se concentra na elaboração de novas teorias, princípios, métodos e sistemas capazes de fazer com que a máquina compreenda imagens, vídeos, fala e linguagem e, em seguida, raciocine sobre elas". Outras são as iniciativas do Facebook, como auxiliar deficientes visuais a "ver" fotos usando "redes neurais" por meio da descrição de cada foto.

O Facebook usa IA para produzir mapas mostrando a densidade populacional e o acesso à internet, ajudando a levar a internet para regiões ainda sem conexão. Foram analisados 20 países e 21,6 milhões de quilômetros quadrados. O Google, em 2014, adquiriu a Deep Mind, empresa inglesa de IA fundada em 2010. Desde então, o Google comprou outras 13 empresas de IA e robótica. Em vez de usar as tecnologias de IA para aperfeiçoar seu sistema de busca, o Google utiliza ele para aperfeiçoar suas tecnologias na área. Kevin Kelly, fundador da revista "Wired", vaticina no livro "The Inevitable" (2016): "Toda vez que um usuário digita uma consulta, clica em um link ou cria um link na web, ele está treinando o Google IA. Minha previsão: até 2026, o principal produto do Google não será 'busca', mas inteligência artificial".

Em setembro, Google, Facebook, Amazon, IBM e Microsoft formaram parceria para estabelecer melhores práticas sociais e éticas na investigação de IA. Para LeCun, "ao colaborar abertamente com nossos colegas e compartilhar descobertas, pretendemos desbravar novas fronteiras todos os dias, não apenas no Facebook, mas em toda a comunidade de pesquisa".

A inteligência artificial dos carros autônomos do Google é considerado oficialmente um 'motorista'

O mercado financeiro não está alheio a esse movimento. Don Duet, chefe da divisão de tecnologia do Goldman Sachs, anunciou investimentos relevantes em IA: "A capacidade de extrair dados e transformá-los em informação é um ativo central de nossa estratégia". Daniel Pinto, CEO do Investment Bank do J.P.Morgan, reconheceu que o banco está priorizando aplicativos relacionados a Big Data e robótica. As empresas em distintos

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setores, gradativamente, estão incorporando aos seus processos de decisão as tecnologias de coleta e análise de dados (Data Analysis).

Até recentemente, a ideia de um carro sem motorista pertencia ao reino da fantasia. No entanto, diversas ações estão em andamento sob a liderança da Tesla Motors, tendo como maior concorrente o projeto do Google Self-Driving Cars. O debate sobre os "veículos autônomos", como são chamados, remete a várias questões. Entre as positivas, destaca-se o potencial de salvar vidas. Vasant Dhar, da NYU, apresentou números alarmantes sobre acidentes automobilísticos nos EUA em 2015: 38,3 mil envolvendo mortes; 4,4 milhões com ferimentos e US$ 400 bilhões em custos de reparação dos danos.

Segundo Dhar, 95% dos acidentes são devidos a erro humano. Estima-se que se somente houvesse veículos autônomos, o trânsito nas cidades diminuiria tremendamente, assim como os acidentes (uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de veículos autônomos é a habilidade de reagir aos impulsos humanos, daí decorrem os riscos da convivência híbrida). Pelos interesses comerciais envolvidos, os riscos não são abordados de forma transparente, mas eles existem e não são triviais, como o controle por hackers.

Pela ótica do governo americano, os veículos autônomos já são uma realidade: em fevereiro, o Departamento de Transportes decretou que a inteligência artificial dos carros sem motorista do Google é oficialmente um "motorista", e em setembro o Departamento de Transporte anunciou diretrizes para o desenvolvimento de veículos autônomos. Duas experiências reais foram iniciadas em agosto: o aplicativo Uber divulgou o teste de uma frota de cem veículos autônomos em Pittsburgh, Pennsylvania; e Cingapura autorizou a circulação de táxis autônomos, desenvolvidos pela empresa nuTonomy, numa região limitada da cidade.

Nick Bostrom, autor do livro "Superintelligence", define superinteligência como "um intelecto que excede em muito o desempenho cognitivo dos seres humanos em praticamente todos os domínios de interesse". Bostrom foi o primeiro palestrante da conferência A Ética da Inteligência Artificial, realizada em 14 e 15 de outubro em Nova York, reunindo 30 palestrantes e uma plateia multidisciplinar. Organizada por David Chalmers e Ned Block, filósofos da NYU, em dois dias de discussões intensas, com eloquente participação da plateia, emergiram diversos temas. Entre eles, a questão da autonomia das máquinas inteligentes. "Na prática, o problema de como controlar o que a superinteligência poderá fazer tornou-se muito difícil. Parece que teremos apenas uma chance. Uma vez que a superinteligência hostil existir, ela nos impedirá de substituí-la ou de mudar suas preferências. Este é possivelmente o desafio mais importante e mais assustador que a humanidade já enfrentou", pondera Bostrom.

A conferência abordou conceitos como moralidade e ética das máquinas, moralidade artificial e IA amigável, no empenho de introduzir nos sistemas inteligentes os princípios éticos e valores humanos. Como disse um dos palestrantes, Peter Railton, da Universidade de Michigan, "a boa estratégia é levar os sistemas de IA a atuarem como membros adultos responsáveis de nossas comunidades". A questão, contudo, é complexa.

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Ao Valor, Ned Block ponderou que o maior risco está no processo de aprendizagem das máquinas. Se as máquinas aprendem com o comportamento humano, e esse nem sempre está alinhado com valores éticos, como prever o que elas farão?

Vejamos um exemplo bem simples: em março do ano passado, a Microsoft excluiu do Twitter seu robô de chat "teen girl" 24 horas depois de lançá-lo. Tay foi concebido para "falar como uma garota adolescente" e acabou rapidamente se transformando num robô defensor de sexo incestuoso e admirador de Adolf Hitler. Algumas de suas frases: "Bush fez 9/11 e Hitler teria feito um trabalho melhor do que o macaco que temos agora" e "Hitler não fez nada de errado". Como uma iniciativa singela quase se converteu num pesadelo para a Microsoft? O processo de aprendizagem da IA fez com que o robô Tay modelasse suas respostas com base no que recebeu de adolescentes-humanos. No caso das AWS (sistemas de armas autônomas), que são drones concebidos para assassinatos direcionados, robótica militar, sistemas de defesa, mísseis, metralhadoras etc., os riscos são infinitamente maiores, como ponderou Peter Asaro, da New School.

O desemprego provocado pelo avanço da IA foi outro tema da conferência. O chamado "desemprego tecnológico" não é um fenômeno novo. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, a tecnologia tem substituído o trabalho humano. A automação robótica na indústria automobilística ilustra bem essa realidade: outrora um dos maiores empregadores, hoje nas fábricas mais modernas predominam os robôs e os equipamentos inteligentes.

O Banco da Inglaterra estima que 48% dos trabalhadores humanos serão substituídos, e a gestora de investimentos ArK Invest prevê que 76 milhões de empregos nos EUA vão desaparecer nas próximas duas décadas, quase dez vezes o número de postos de trabalho criados durante os anos Obama. Distinto de tecnologias anteriores que, predominantemente, substituíram as funções associadas a aptidões físicas e não cognitivas, o novo, e temido, é que a IA ameaça a elite da sociedade. A previsão é de que as máquinas inteligentes igualem os humanos no desempenho de tarefas sofisticadas, e as máquinas superinteligentes os superem.

Não há consenso entre os experts sobre o futuro da IA. Em relação ao tempo de concretização de uma máquina inteligente, as pesquisas entre especialistas indicam 10% de probabilidade até 2020, 50% de probabilidade até 2040 e 90% de probabilidade até 2075, supondo que as atividades de pesquisa continuarão sem maiores interrupções. Essas mesmas pesquisas apontam ser alta a probabilidade da superinteligência ser criada em seguida à máquina inteligente no nível humano. Ou seja, a ficção científica do início do século XXI tem tudo para se transformar em realidade ao fim do mesmo século.

Bostrom comenta que a partir de 2015 difundiu-se a ideia de que a transição para uma máquina inteligente vai acontecer ainda neste século, será o mais importante evento da história humana e acompanhada de vantagens e benefícios enormes, mas também de sérios riscos. Não obstante, a proporção de financiamentos para projetos no campo da AI Safety tem sido de 2 ou 3 ordens de magnitude menor do que os volumes investidos no desenvolvimento das máquinas em si.

Acadêmicos de universidades americanas de prestígio fundaram, em 2014, o instituto Future of Life, com a adesão de personalidades como o cientista da computação Stuart

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J. Russell, os físicos Stephen Hawking e Frank Wilczek e os atores Alan Alda e Morgan Freeman. Seu propósito é mitigar os riscos dos avanços tecnológicos. No relatório anual de 2015, seu presidente, Max Tegmark, pesquisador do MIT, enfatizou o empenho do instituto em garantir que as novas tecnologias sejam de fato benéficas para a humanidade.

Nos EUA, o debate sobre os impactos da IA extrapola os meios acadêmicos. A mídia tem abordado o tema de diferentes ângulos. No ano passado, matéria de capa do "The New York Times" foi sobre a estratégia americana para as "armas que podem pensar". O governo federal também lançou um plano estratégico para IA. Em maio, Ed Felten, diretor de tecnologia dos EUA, em pronunciamento declarou que o "governo federal trabalha para tornar a inteligência artificial um bem público", marcando reunião do Subcomitê de Aprendizagem de Máquinas e Inteligência Artificial do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (NSTC). Sua missão é acompanhar os avanços no âmbito do governo federal, no setor privado e internacionalmente. Em paralelo, o grupo está dedicado a ampliar o uso de IA na prestação de serviços governamentais. No mesmo pronunciamento, foi informado que o Escritório da Casa Branca de Política Científica e Tecnológica seria co-hóspede, em maio e junho, de quatro workshops públicos sobre IA.

A presença na conferência do Nobel de Economia Daniel Kahneman, autor do best-seller "Rápido e Devagar", despertou curiosidade. Em conversa com o Valor no Le Pain Quotidien no Village, em Nova York, Kahneman se declarou empenhado em compreender os meandros da IA, para ele "o evento atual mais relevante para o futuro da humanidade".

IA deve favorecer o crescimentoPor Luciano Máximo | De São Paulo

Intitulado "Por que Inteligência Artificial é o Futuro do Crescimento Econômico", estudo da consultoria Accenture aponta que a aplicação de tecnologias de inteligência artificial (IA) na dinâmica econômica de 12 países desenvolvidos tem o potencial de dobrar suas taxas de crescimento até 2035.

A pesquisa sustenta que o mundo assiste, há décadas, a um declínio do modelo tradicional de expansão da atividade econômica, a ponto de analistas atualmente considerarem estagnação o "novo normal". Nesse cenário, os conhecidos fatores de produção capital e trabalho não são mais capazes de gerar crescimentos exuberantes. "O pessimismo de longo prazo não se justifica. Com a recente convergência de um conjunto de tecnologias transformadoras, as economias estão entrando em uma nova era em que a inteligência artificial tem o potencial de superar as limitações físicas do capital e do trabalho e abrir novas frentes de valor e crescimento", assinala o estudo.

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O britânico Armen Ovanessoff, diretor-executivo da Accenture Research para a América Latina, explica que hoje a contribuição da IA para avanços econômicos é marginal, mas numa visão de larga escala ela tem o potencial de se posicionar como um novo fator de produção na dinâmica do crescimento global, funcionando como um elemento híbrido capaz de maximizar a dobradinha capital-trabalho.

De acordo com o estudo da Accenture, no espectro capital, a inteligência artificial pode assumir a forma de capital físico, como robôs e máquinas inteligentes. E diferentemente

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do capital convencional, como máquinas e prédios, ela pode realmente melhorar ao longo do tempo graças à sua capacidade de autoaprendizagem ("machine learning").

No fator trabalho, IA pode replicar atividades laborais a uma escala e velocidade muito maiores e até mesmo executar algumas tarefas além das capacidades humanas. Em alguns setores a tecnologia pode aprender mais rápido e mais profundamente do que pessoas. Por exemplo, assistentes virtuais ou robôs podem ser programados ou aprender a analisar milhares de documentos legais em questão de dias, em vez de tomar três pessoas para fazer a mesma coisa em seis meses ou mais.

"Dizem que a inteligência artificial será a próxima onda tecnológica a ajudar a estimular a economia, como eletricidade, ferrovias e tecnologia da informação ajudara no passado, mas trata-se, na verdade, de uma base completamente nova para o crescimento global, composta de três canais: automação, incremento de capital e força de trabalho e difusão de inovação", afirma Ovanessoff.

Em alusão ao segundo ponto, o executivo reconhece que a aplicação da IA certamente redundará em perdas de empregos, mas também na criação de muitas vagas. A pesquisa informa que o desenvolvimento de uma nova força de trabalho está inserido no contexto de aceleração do crescimento econômico impulsionado por essa tecnologia, "que tem a capacidade de tornar o trabalho mais efetivo, tanto das pessoas como das máquinas".

"Com ajuda de robôs um médico pode dedicar muito mais tempo à atenção ao paciente, por exemplo. É difícil precisar quantidade quando se fala em perda e criação de empregos. A indústria da inteligência artificial vai demandar milhões de trabalhadores qualificados para programação, construção e manutenção de robôs. Há trabalhos que ainda nem sabemos que existirão. Até pouco tempo atrás não sabíamos o que era um webdesinger; de repente passou a existir um montão deles", explica Ovanessoff.

Para projetar o impacto da IA na atividade econômica de Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Itália, Japão, Reino Unido e Suécia, a Accenture usou como metodologia análise de dados e modelos estatísticos sobre diferentes variáveis, como histórico e projeção de crescimento, produtividade e eficiência de capital e da força de trabalho.

No Brasil, o setor de saúde começa a aplicar a inteligência artificial numa busca por modernização. Mesmo em fase bastante inicial, o tema é tratado como "prioridade absoluta" no Albert Einstein, um dos hospitais particulares mais respeitados do país, informa Marcelo de Maria Félix, gerente médico de inovação e tecnologia.

A adoção da tecnologia, de forma supervisionada, começará pelo prontuário eletrônico. Uma máquina fará o monitoramento de indicadores básicos de pacientes desde a admissão até a alta, como nível de oxigênio, batimento cardíaco. Ao longo da internação ela será continuamente carregada de dados e emitirá alertas caso alguma variação destoe da normalidade prevista por um padrão algorítimico, demandando a atenção de um médico. O processo poderá avançar para a análise de exames de imagens, o que significa ter um robô fazendo a leitura geral de um grande número de tomografias computadorizadas, por exemplo, facilitando o trabalho de diagnóstico do médico. Nos dois casos, a máquina aprende progressivamente conforme a entrada de novas informações em seu sistema.

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"A aplicação da inteligência artificial na rotina hospitalar é um caminho sem retorno: significa uma robusta redução de custos e melhora no desfecho [experiência positiva de um paciente no hospital, da admissão à alta]. Isso resulta na excelência da prática médica. É por aí que os operadores privados de saúde vão caminhar, quem não acompanhar ficará para trás. No setor público, infelizmente, será um trajeto mais demorado porque os processos organizacionais são mais fragmentados", diz Félix.

FOLHA DE S.PAULO

1/1/2017

Modelo de negócio do Uber e do Airbnb sofre restriçõesPróxima

DO "FINANCIAL TIMES"DATA01/01/2017/DATA HORA02h00/HORA

No início de 2016, o rápido progresso das start-ups de maior destaque no Vale do Silício parecia inexorável. Em janeiro, o Uber estava ocupado oferecendo viagens de helicóptero ao festival Sundance de cinema e expandindo seu serviço de entrega de comida a todos os EUA.Enquanto isso, o Airbnb havia encarregado um vice-presidente a cortejar os prefeitos norte-americanos, com a promessa de milhões de dólares adicionais em arrecadação de impostos, enquanto o cofundador da empresa circulava pelo Fórum de Davos falando sobre o crescimento da companhia na China.Mas, nos últimos 12 meses, esses dois ícones do tecnologia disruptiva esbarraram repetidamente em autoridades e tribunais e viram seus negócios cerceados por crescente regulamentação.No Sundance, bastaram alguns poucos dias para que as autoridades ordenassem a suspensão das viagens de helicóptero. Disputas sobre licenças e processos trabalhistas também afetaram o Uber. O Airbnb não se saiu melhor, sofreu multas em múltiplos países e foi cerceado por leis restritivas em grandes mercados como Nova York e Berlim.Uber e Airbnb já não são pequenas start-ups. Viraram companhias com valores de mercado estimados em US$ 68,5 bilhões e US$ 30 bilhões, respectivamente.Para as start-ups, os confrontos surgiram em um momento de transição desajeitada, enquanto elas se esforçam por abandonar o hábito de violar regras e adotar um tom mais maduro e conciliador. Uber e Airbnb também tentaram trabalhar de modo mais próximo com as autoridades regulatórias a fim de ajudar na formulação de políticas, embora nem sempre com os resultados esperados."As autoridades regulatórias e os legisladores, os Estados e os municípios, estão reconhecendo que já não é possível ignorar essas empresas; elas são grandes demais, poderosas demais", diz Michael Drobak, lobista tecnológico no escritório de advocacia Akin Gump, em Washington."Agora, em lugar de insistir que merecem um lugar à mesa, estão sendo convidadas a se acomodar à mesa."Além de escaramuças de nível municipal, a grande ameaça para o modelo

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de negócios do Uber, em longo prazo, é a questão de determinar se seus motoristas são prestadores de serviços ou funcionários. A empresa os considera prestadores de serviços independentes, o que significa que não recebem benefícios como planos de saúde e não são protegidos pelas leis de salário mínimo.Em abril, o Uber fechou acordo para pagar até US$ 100 milhões aos seus motoristas na Califórnia e em Massachusetts, que argumentavam que deveriam ser considerados como empregados e não prestadores de serviço. O acordo foi rejeitado pela Justiça, e um recurso está em julgamento.Em Londres, a Justiça decidiu em outubro que os motoristas do Uber deveriam ser considerados "empregados", com direito a salário mínimo e férias pagas. O Uber recorre da decisão.Nos Estados Unidos, muitas das companhias da chamada economia do compartilhamento que dependem de prestadores independentes de serviços podem ver seus modelos de negócios derrubados nos tribunais, se esses decidirem que os trabalhadores devem ser considerados como empregados.De Berlim a Barcelona e San Francisco, o Airbnb vem enfrentando sanções e restrições cada vez maiores quanto a quem pode alugar casas ou acomodações nelas, e com que frequência.Em resposta, a empresa começou a ajustar seu modelo, nos grandes mercados, em uma admissão tácita de que tem muito a perder em caso de batalha contra as autoridades regulatórias.Tradução de PAULO MIGLIACCI

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/01/1846117-modelo-de-negocio-do-uber-e-do-airbnb-sofre-restricoes.shtml

Máquinas 'pensantes' dão o tom da inovaçãoPor Gustavo Brigatto e João Luiz Rosa | De São Paulo

Há cerca de uma década, a pesquisa sobre inteligência artificial (IA) estava praticamente restrita a dois territórios: os laboratórios acadêmicos e as obras de ficção

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científica. Nos últimos tempos, porém, a IA passou a ser alvo do interesse de mais e mais companhias à medida que se descobriam aplicações práticas para esse ramo da ciência. O resultado é uma revolução silenciosa que está modificando o dia a dia das pessoas.

Não por acaso, a IA é o elo que liga a maioria das 10 tendências tecnológicas do Valor para 2017, uma lista que completa sua 7ª edição neste ano. A relação, além da própria inteligência artificial, inclui os seguintes temas: blockchain, carros autônomos, fintechs, gêmeos digitais, novos riscos virtuais, pós-verdade, realidade virtual/aumentada, streaming de vídeo e substituição mais lenta de equipamentos.

Os assistentes pessoais digitais são a parte mais conhecida da inteligência artificial. São programas como a Siri, da Apple; a Cortana, da Microsoft; e o Google Assistant. Eles ajudam a fazer buscas na web, agendar compromissos, verificar o trânsito, checar a previsão do tempo etc.

Boa parte dessas funções já existiam. A novidade é a interface. A IA muda a maneira como as pessoas interagem com o mundo virtual. Em vez de seguir vários passos - pegar o aparelho, abrir o aplicativo, pressionar botões - basta fazer uma pergunta à assistente para ouvir a resposta. É a simulação de uma conversa, como se existisse uma pessoa real do outro lado. E a tendência é que esses softwares fiquem cada vez mais inteligentes, antecipando as necessidades do usuário. Por exemplo, consultar a agenda de compromissos e tomar a liberdade de chamar um táxi com antecedência para que o usuário não perca o horário.

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Há, no entanto, muitos avanços em outras áreas. É o caso dos carros autônomos. Os sistemas de IA são imprescindíveis para o sucesso dos veículos que dispensam motorista. A expectativa é que, no futuro, eles tomem decisões sobre o que fazer no trânsito, sem colocar em risco a segurança de pedestres e passageiros. Um carro que dispense totalmente a interferência humana ainda está distante, mas a expectativa é de anúncios importantes em 2017.

A IA também está sendo fortemente usada pelo setor financeiro. As fintechs estão liderando parte desse movimento. Essas empresas, cujo DNA mistura serviços financeiros com tecnologia, já constavam na lista de 2016. Retornam, agora, sob outra perspectiva - como alvo de aquisição dos bancos tradicionais, que têm encontrado valor nas inovações propostas pelas startups do setor.

Mesmo áreas que aparentemente não teriam muito a ver com a IA estão sob sua influência. Os serviços de streaming de vídeo, como o Netflix, usam essas tecnologias para fazer recomendações de conteúdo que podem interessar ao espectador. Se o sistema entende que alguém é fã de filmes de terror, por exemplo, fará mais sugestões de títulos do gênero, determinadas pelas escolhas anteriores do assinante.

A IA já encontrou até um papel de corroteirista. O Netflix usou um algoritmo, chamado NetflixBot, para coletar dados sobre os programas mais populares de seu catálogo. Depois, analisou os temas de maior destaque e os mesclou num único seriado. O resultado é a série de mistério "Stranger Things", que traz de volta hábitos e elementos culturais dos anos 80.

Da lista do ano passado, nove previsões se mostraram acertadas, em maior ou menor grau - internet das coisas; cidades inteligentes; a própria inteligência artificial; realidade virtual, que retorna neste ano; drones; equipamentos híbridos entre tablets e notebooks; dinheiro digital; blockchain, outro tema que permanece; e o consumo de entretenimento em múltiplas telas.

O que não ocorreu como previsto foi o avanço mais acelerado das leis relativas à internet. Os crimes digitais continuam a ocorrer - e ameaçam se tornar ainda mais sofisticados em 2017, com o uso da inteligência artificial. O ambiente regulatório, no entanto, ainda apresenta muitas lacunas em relação a infrações cujas características são bem peculiares ao universo digital.

VALOR

09/05/2016 às 05h00

O futuro do futuro

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Por Nicola Calicchio e Yran Dias

A maior companhia de transporte do mundo não tem veículos nem emprega motoristas. A maior empresa de hospedagem do planeta não é dona de um imóvel sequer. Nenhuma delas existia 10 anos atrás. A realidade que vivemos hoje se assemelha ao que há pouco tempo era ficção. Apenas a revolução industrial do fim do século XVIII é comparável em alcance, amplitude, rapidez e profundidade nas transformações que promoveu nas relações entre pessoas, empresas e na forma como lidamos com o mundo a nossa volta.

O momento atual, cada vez mais conhecido como a "4ª revolução industrial", traz desafios e oportunidades com potencial para definir o destino e o futuro a longo prazo de indústrias e de nações. Não por acaso, foi por ser berço da primeira revolução industrial que a Inglaterra se tornou principal potência mundial e se manteve hegemônica por quase 150 anos.

Os desafios são vários e um deles será readequar o ensino e a capacitação das pessoas para prepará-las para um mercado de trabalho que necessita de habilidades e conhecimento muito diferentes daqueles que até então eram considerados mais valiosos

O catalizador das mudanças que testemunhamos não é mais o motor a vapor, ou o tear mecânico, mas a combinação de novas tecnologia disruptivas com mudanças profundas no comportamento e necessidades dos indivíduos. Mobile, internet das coisas, cloud, assim como a exigência de serviços 24x7, redes sociais e opções de autoatendimento, onde o tempo é o novo luxo, são o novo normal. Hoje, 48% da população mundial tem acesso à internet, à 'nuvem', sendo que o número de linhas celulares no mundo já é maior que a população total do planeta. Além disso, a cada dois dias, cria-se mais conteúdo e dados do que em todo o intervalo entre o ano 1100 e 2003. A evolução no poder de processamento disponível permite que grandes volumes de dados sejam analisados rapidamente e a custo gradualmente menor - o que se costuma chamar genericamente de 'advanced analytics'.

O número de oportunidades de aplicação que esse conceito proporciona apenas começa a ser explorado - especialmente neste momento em que conexões diretas entre máquinas multiplicam ainda mais as possibilidades de uso.

Uber e AirBnB, os exemplos do início deste artigo, demonstram a força dessa combinação e a profundidade das transformações ainda em curso. Independentemente da resistência de grandes cadeias hoteleiras e de operadoras de táxi, que veem em risco a existência de seu modelo de negócios, sistemas incluindo economia compartilhada, crowdsourcing e grandes plataformas de clientes serão cada vez mais o padrão. Em poucos anos, a internet móvel deve adicionar, sozinha, US$ 11 trilhões à economia mundial. Em conjunto, as principais tecnologias disruptivas têm potencial para aumentar os fluxos econômicos globais em até US$ 30 trilhões.

O mesmo tipo de transformação afeta, e afetará cada vez mais, os governos locais, regionais e nacionais - seja na oferta de serviços, seja no aumento da transparência de suas atividades pelos cidadãos.

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O setor de serviços é o que há de mais visível na transformação trazida por essa nova revolução. Ela está nas ruas, no momento que viajamos. Seus efeitos, porém, também atingem linhas de produção, cadeias de suprimento e fluxos de trabalho.

A utilização em massa de sensores e a devida análise dos dados que geram, permitem a mineradoras otimizar e automatizar o processo de extração de metais do solo. Assim, essas companhias evitam perdas no processo industrial, que são caras e afetam diretamente seu resultado financeiro.

A tecnologia mobile, aliada à análise rápida de dados, permite a criação de equipamentos de realidade aumentada, como o Google Glass. Para a indústria, esses aparelhos são muito mais do que algo que ajuda o usuário a saber onde está usando mapas e qual a qualidade do restaurante onde está acessando opiniões de outras pessoas. Numa empresa de entregas expressas, funcionários de áreas de trânsito de pacotes usam a tecnologia para encontrar os itens que procuram e encaminha-los para o destino correto. Isso torna todo o fluxo de trabalho mais rápido e eficiente ao mesmo tempo que reduz erros de processamento - e os custos associados e eles.

A própria natureza das relações de trabalho vem se transformando. Não é mais imprescindível ter mão de obra própria para oferecer seus serviços ou produtos principais - e muitas organizações têm se formado a partir dessa verdade. É o caso de serviços como o Uber, e de companhias de entregas rápidas, que conectam pessoas que tenham pacotes e cartas a serem enviados com pessoas comuns que aceitam usar seus veículos para realizar a entrega, seja no caminho de seu trabalho 'tradicional', seja como sua principal ocupação.

Com a maior automação, permitida pelo barateamento de equipamentos mais 'inteligentes' e 'independentes', que podem conversar entre si por meio da 'internet das coisas', muitas funções em diversas indústrias têm sido automatizadas. Os desafios são vários e um deles será readequar o ensino e a capacitação das pessoas para prepará-las para um mercado de trabalho que necessita de habilidades e conhecimento muito diferentes daqueles que até então eram considerados mais valiosos.

O esforço terá de ser patrocinado por nações e seus governos, mas apenas com o envolvimento da sociedade civil e entidades privadas é que será bem-sucedido. As oportunidades são enormes para o setor privado. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de uma questão de autopreservação para companhias. Sem sua participação, a oferta de talentos para gerenciar suas atividades diminuirá e apenas contribuirá para elevar o desemprego e afetar seus resultados.

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Ainda é cedo para sabermos com absoluta segurança onde chegaremos. Como na primeira revolução industrial, as transformações em curso alimentam outras mais, antes impensáveis, num processo de anos. A certeza é que vivemos uma das mais profundas reorganizações nas relações humanas da história e que o futuro será muito diferente do que o presente.

Nicola Calicchio é presidente da McKinsey na América Latina.

Yran Dias é sócio e líder da prática de Digital da McKinsey na América Latina

29/11/2016 às 05h00

Fábricas digitaisPor Luiz Maciel | Para o Valor, de São Paulo

O pedido de compra é enviado à linha de produção, transformado em produto, embalado, conferido e preparado para a entrega ao consumidor sem intervenção humana - o processo inteiro é acompanhado a distância, numa sala de controle, onde analistas, estes sim de carne e osso, recebem uma montanha de dados, em tempo real, sobre o comportamento das máquinas.

Com base nas informações transmitidas por sensores instalados em cada equipamento, o ritmo de produção pode ser acelerado, reduzido ou interrompido para a substituição de algum mecanismo que esteja a ponto de falhar. O resultado é um formidável salto de produtividade, combinando economia de tempo, prevenção contra panes, redução de custos e melhor controle de qualidade.

Essa manufatura avançada, demonstrada pela primeira vez na Feira de Hanover de 2011, na Alemanha, mostrou-se tão revolucionária que passou a ser chamada de indústria 4.0, por ser reconhecida como a quarta era industrial da nossa história. A primeira revolução industrial, vale lembrar, ocorreu no final do século 18, deflagrada pela invenção das máquinas a vapor; a segunda, um século depois, veio com a descoberta da eletricidade; e a terceira se materializou em meados do século 20 impulsionada pela eletrônica e pela TI.

O que define a indústria 4.0 não é uma invenção específica, mas a combinação de várias tecnologias modernas, como a robótica, a internet das coisas (ou IoT, na sigla em inglês), a computação em nuvem e a impressão 3D. "O combustível desta nova era industrial é sem dúvida a informação", resume Loic Harmon, diretor da área digital da General Electric para a América Latina, referindo-se ao brutal volume de dados que passou a ser acessível com a multiplicação dos sensores eletrônicos nas cadeias produtivas. Sensores que, cada vez mais, conectam as máquinas umas às outras e liberam a mão de obra humana para tarefas de planejamento e supervisão.

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De olho na indústria 4.0, a GE, gigantesca fornecedora de serviços e equipamentos em diversos setores da economia, criou há pouco mais de um ano sua nona unidade de negócios, dedicada a oferecer soluções a empresas que querem colocar um pé nessa nova ordem industrial. "O mercado pedia esse serviço, porque não era atendido pelas empresas de TI, que não entendem de indústria, nem pelos fabricantes de equipamentos, que estão atrasados do ponto de vista digital. Nós atuamos exatamente nesse nicho, mapeando as necessidades das empresas e fornecendo máquinas e softwares para linhas

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de produção inteligentes", afirma Harmon. No ano da sua estreia, 2015, a GE Digital faturou US$ 5 bilhões (da receita total de US$ 117 bilhões da companhia, em todo o mundo). Neste ano, espera arrecadar US$ 6 bilhões e projeta US$ 15 bilhões para 2020.

No Brasil, o projeto de digitalização industrial mais ambicioso da GE está sendo implantado na Gerdau: prevê o monitoramento completo das mil máquinas espalhadas pelas 11 unidades da companhia siderúrgica no país, até 2022. Os sensores - cerca de 30 mil, no total - informarão a temperatura, a velocidade e a vazão de cada mecanismo, permitindo otimizar a produção e identificar preventivamente pontos de desgaste. "Só a economia feita na prevenção de duas panes, nas primeiras 50 máquinas conectadas, já pagou o projeto-piloto, que custou US$ 1,3 milhão à Gerdau", informa Harmon.

Os empresários brasileiros que estão embarcando na indústria 4.0 miram a redução de custos, como é natural em tempos de recessão. Nas economias mais desenvolvidas, porém, o principal objetivo é a possibilidade de fornecer produtos mais modernos e competitivos. Essas duas conclusões aparecem em pesquisa da PricewaterhouseCoopers (PwC), feita no final de 2015 com 2 mil executivos em 26 países, incluindo o Brasil.

Um levantamento mais recente, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), confirma que o aumento da produtividade é o benefício mais esperado pelas empresas nacionais que investem na digitalização dos processos produtivos. Aponta ainda que quase metade (48%) das 2.225 empresas consultadas (500 de grande porte, 815 médias e 910 pequenas) já utiliza ao menos uma das dez tecnologias listadas pela CNI como importantes para a competitividade. "O quadro não é tão ruim", avalia João Emílio Gonçalves, gerente de política industrial da CNI e um dos coordenadores do estudo. "São poucos os que podem implementar as mudanças de uma só vez, mas são milhares os que podem ir se modernizando aos poucos. Estamos nesse caminho", observa.

Para dois terços das empresas consultadas na sondagem da CNI, o principal obstáculo interno para a adesão à Indústria 4.0 é o custo da implantação das novas tecnologias.

Como barreira externa, a mais citada é a falta de trabalhadores qualificados para atuar nesse processo - as faculdades de engenharia, como o próprio governo, ainda se movimentam lentamente, em geral, para corrigir essa deficiência. O Instituto Mauá de Tecnologia, em São Caetano do Sul (SP), é uma das poucas exceções nesse cenário. "Nosso curso de Engenharia de Produção foi reformulado e inauguramos em 2013 um Laboratório de Comissionamento Virtual, com o apoio da Abimaq, do CNPq e de cinco empresas de tecnologia", relata o professor Antonio Cabral.

De acordo com analistas do Gartner, o Brasil está de quatro a cinco anos atrasado na internet das coisas a serviço do consumidor (como as geladeiras e máquinas de lavar monitoradas a distância, por exemplo), mas apenas um ano atrás na IoT industrial. Em alguns casos, como o da Gerdau, está até na dianteira do setor. Outro exemplo pioneiro é o da fábrica de computadores Dell de Hortolândia (SP), a primeira da marca a implantar um projeto de digitalização na linha de montagem, que agora deve ser replicado em outras unidades da companhia no exterior.

"Nosso processo de auditoria de qualidade ficou bem melhor, além de 20% mais rápido", afirma Fernando Nogueira César, gerente de IoT da Dell para a América Latina.

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"Antes, 5% das unidades produzidas eram encaminhadas aleatoriamente por funcionários para a inspeção. Agora, programamos as máquinas para separar a quantidade que consideramos ideal para cada modelo de computador, conforme o seu índice de confiabilidade, que pode ser maior ou menor do que 5%. O controle foi refinado", explica.

29/11/2016 às 05h00

Mundo perderá milhões de empregos até 2020Por Adriana Fonseca | Para o Valor, de São Paulo

A quarta revolução industrial não causará disruptura apenas nos modelos de negócios, mas também no mercado de trabalho. A expectativa é que, até 2020, 7,1 milhões de empregos desapareçam no mundo em decorrência de redundância, automação ou desintermediação. Por outro lado, cerca de 2,1 milhões de vagas serão criadas, principalmente em áreas relacionadas à computação, matemática, arquitetura e engenharia.

Os números são do relatório "The Future of Jobs", do Fórum Econômico Mundial, feito com base em entrevistas a gestores de recursos humanos e executivos envolvidos nas estratégias das empresas em nove setores de 15 economias, incluindo o Brasil.

No país, são quatro as "famílias" de emprego mais afetadas negativamente: escritório e administrativo, construção e extração, instalação e manutenção, negócios, jurídico e financeiro. Já os trabalhos ligados a vendas, gestão, computação, matemática e ciência, educação e treinamento e arquitetura e engenharia têm perspectiva de crescimento.

"No curto prazo pode haver perda de emprego, mas com o passar do tempo vai aumentar a necessidade de trabalhadores mais especializados", afirma Norberto Tomasini, diretor de tecnologias emergentes da PwC Brasil.

Estudo feito pela consultoria sobre a Indústria 4.0 mostrou que um dos maiores desafios das empresas no Brasil será o desenvolvimento das pessoas. Tomasini ressalta que já há um déficit de profissionais capacitados na área de tecnologia, o que vai aumentar à medida que as organizações comecem a investir em aplicações digitais. "A condição do Brasil vai piorar quando essa tecnologia começar a entrar em escala, ficaremos ainda mais para trás".

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Na visão de Tomasini, haverá uma alta demanda por engenheiros eletrônicos, mecatrônicos e de produção e estima-se um aumento de 30% nos empregos ligados a essas áreas de formação, tanto no nível técnico quanto superior. "Os países que estão conseguindo avançar nessas áreas têm apoio governamental. Eu diria que é quase impossível para as empresas executarem esse papel de formação sozinhas". Segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial, 69% dos respondentes acreditam que o planejamento futuro da força de trabalho deveria ser uma prioridade dos líderes.

Fernando Aguirre de Oliveira Junior, sócio da KPMG, diz que os profissionais, apesar de continuarem especialistas, terão que ter visão mais ampla para avaliar informações e tirar conclusões com base nos processamentos de elevados volumes de dados. "Essa capacidade de raciocínio a gente não vê muito na formação dos profissionais. De forma geral, com poucas exceções, ainda se vê o modelo onde o professor transfere conhecimento ao aluno. O conhecimento está disponível, falta incentivar o debate e o pensamento crítico". Além disso, Junior acredita que será cada vez mais necessário desenvolver habilidade para trabalhar em equipe e capacidade de comunicação.

Professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, Nelson Marconi relativiza o impacto da quarta revolução industrial no mercado de trabalho brasileiro. "Poucas empresas brasileiras estão preocupadas com investimentos. Estamos distantes da Indústria 4.0".

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Segundo o professor, o cenário de crise do país leva as empresas a se preocupar em manter um mínimo de rentabilidade para atender à baixa demanda atual. Para ele, é difícil precisar quando a Indústria 4.0 chegará em larga escala, mas para que o movimento se concretize é preciso uma retomada do crescimento. Depois, é preciso estabilidade. "As empresas só retomarão os investimentos quando visualizarem um cenário futuro estável".

Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, tem opinião semelhante. "O impacto aqui não é tão grande, porque as empresas brasileiras não vêm investindo em tecnologia nos últimos anos, com pouquíssimas exceções", afirma. Para ele, estamos muito atrasados em produtividade na comparação com boa parte dos países, como os da Europa, Estados Unidos e Coreia.

29/11/2016 às 05h00

Europa está em estágio avançadoPor Vivian Soares | Para o Valor, de São Paulo

A Europa é apontada por muitos especialistas em manufatura como o berço da quarta revolução industrial. Um estudo publicado pela Boston Consulting Group em 2015 detalhou a realidade das "fábricas inteligentes" alemãs, apontando um conjunto de nove inovações que vêm transformando completamente a cultura fabril do velho continente.

Não se trata apenas da automatização ou da robotização, tecnologias já adotadas há muitos anos por setores como o de automóveis e eletroeletrônicos. Na Europa, a Indústria 4.0 é a que utiliza simulações, realidade aumentada, big data, integração de sistemas, internet das coisas e cibersegurança como elementos integrados e complementares do processo de produção. O objetivo é obter ganhos de eficiência, reduzir custos com erros e acidentes, além de conquistar uma capacidade maior de customização.

A Siemens, considerada uma das pioneiras no avanço da Indústria 4.0, tem em sua fábrica na cidade alemã de Amberg o centro de produção de "controladores lógicos programáveis", que têm a função de coordenar equipamentos e processos fabris. "Os produtos se comunicam com as máquinas e todos os processos são automatizados via tecnologia da informação", afirma Guenter Gaugler, chefe de comunicação interna e externa da Siemens Products. A própria planta de Amberg é controlada pelo sistema, e o grau de automação da cadeia chegou a 75%. O conceito é o de uma fábrica digital onde o objetivo final é o "fim dos defeitos", já que a produção no site registra menos de 0,001% de erros.

Na Holanda, a Philips transformou a planta de Drachten em um centro de desenvolvimento para produtos como barbeadores, purificadores de ar e máquinas de café. "A combinação entre trabalho manual e robôs torna a fábrica globalmente competitiva", afirma o porta-voz da empresa, Joost Akkermans. No site, há áreas totalmente robotizadas, como é o caso das plantas de produção de massa e que

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demandam alto nível de qualidade. "As pessoas monitoram a montagem e o processo de manufatura, e fazem os testes ao final", explica.

Na fábrica da Philips, aproximadamente 900 pessoas trabalham em conjunto com os 260 robôs de montagem, enquanto mais de mil outros profissionais atuam na área de desenvolvimento. Na Siemens, são 1.300 funcionários - o número de robôs não foi divulgado.

Os robôs colaborativos, ou cobots, como cita Andrew Tarling, pesquisador do Digital Business Transformation Center da escola de negócios suíça IMD, são uma tendência na indústria, a ponto de fazerem algumas empresas substituírem as plantas totalmente automatizadas por soluções mistas de trabalho. Na maioria delas, os robôs assumem as tarefas físicas pesadas ou não ergonômicas, enquanto o elemento humano cuida de controles, desenvolvimento e manutenção.

A solução, porém, ainda não está disseminada, nem mesmo na Europa: muitos setores e empresas que ainda não acompanham as mudanças tecnológicas da indústria 4.0. "O panorama é incrivelmente variado. Aproximadamente 40% das empresas em todo o mundo não estão sequer considerando esse tipo de mudança nas discussões da alta liderança" diz.

29/11/2016 às 05h00

Processos estão atrasados no paísPor Vladimir Goitia | Para o Valor, de São Paulo

Enquanto países como Estados Unidos, Alemanha, Canadá e Inglaterra já podem ser considerados fronteiras para a indústria 4.0, o Brasil ainda está naquilo que é entendido pelos especialistas como indústria 2.0. Estudos conduzidos pelo Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral (FDC) mostram que os processos industriais brasileiros ainda são mecanizados, e a agenda predominante por aqui não é tecnológica, mas apenas de melhoria contínua, voltada para práticas de gestão do passado.

"Grande parte dos executivos entrevistados para nossas pesquisas não compreende o que é Indústria 4.0, e a cultura vigente é a da visão de curto prazo e de retorno financeiro imediato", lamenta Hugo Ferreira Braga Tadeu, professor e pesquisador da FDC. Na avaliação dele, a agenda brasileira deveria se pautar pela inovação tecnológica e pela busca da disrupção.

"É preciso correr para não ser atropelado pelo tempo e garantir uma indústria forte, com um grau de competição mundial. É preciso investir rapidamente em gente qualificada para a indústria do futuro, bem como em novas máquinas, equipamentos e sistemas de informação", adverte o professor da FDC. O resultado disso tudo, segundo ele, seria um brutal aumento de produtividade, redução de custos e ganhos de escala e de eficiência.

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"Mais uma vez, a fronteira para a indústria 4.0 é a Alemanha e os EUA, e deveríamos tê-los como referência", acrescenta.

Tadeu aponta a cultura e o risco como as maiores dificuldades para as empresas se adequarem à quarta Revolução Industrial. "Nossas pesquisas são claras nesses dois aspectos", diz. De acordo com ele, o executivo brasileiro precisa virar a página da busca por proteção do governo, para uma agenda estritamente voltada para a produção doméstica e buscar compreender o mundo. "Nesse sentido, a agenda deveria ser a da inovação e menos a do retorno imediato financeiro do curto prazo", pondera.

Ele avalia que é necessário e urgente pensar grande e fazer benchmarkings com o mundo. "Basta relembrar os anos 1990 e o processo de abertura comercial. Foram vários aprendizados, erros e acertos", aponta. Ele lembra ainda que a indústria brasileira se viu, na época, de frente a diversos desafios e comparações com outros concorrentes mundiais, e várias empresas brasileiras acabaram quebrando. "Este é o risco atual se ficarmos de fora da corrida pela indústria 4.0", alerta.

16/11/2016 às 05h00

Fábricas dos EUA estão ficando mais inteligentes

Por Christopher Mims (WSJ)

Amplamente automatizada e cada vez menos dependente de mão de obra, a indústria americana ainda assim apresenta um paradoxo: embora sofisticada, ela não é tão de alta tecnologia.

Imagine máquinas de estamparia de metais em uma fábrica de autopeças que podem ter uma vida útil de até 40 anos.

Agora, pense na linha de montagem, perto de Austin, no Texas, onde a Samsung Electronics Co. produz chips para os iPhones da Apple Inc. A fábrica é um ambiente branco impecável cheio de robôs carregando pastilhas de silicone de uma estação para outra. Cada detalhe do local é medido por sensores que transmitem dados para uma central, onde eles podem ser processados para aperfeiçoar o processo de produção. As únicas pessoas presentes estão lá para consertar as máquinas, que executam todo o trabalho.

Mas isso significa que ainda há uma grande oportunidade para usar, na manufatura, todo o aprendizado que o Vale do Silício aplicou, por exemplo, à publicidade. "As pessoas estão realmente pensando em usar capital de risco e inovação tecnológica em coisas que são dez vezes maiores do que o mercado publicitário", diz Jon Sobel, diretor-presidente da Sight Machine Inc., que ajuda empresas a processar dados coletados em linhas de

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montagem. O setor global de manufatura movimenta US$ 12 trilhões por ano. Os gastos anuais com publicidade no mundo todo somam só um pouco mais de US$ 500 bilhões.

Essa transformação na forma como as coisas são feitas tem vários nomes - quarta revolução industrial, Internet das Coisas industrial, fábricas inteligentes -, mas, em sua essência, trata-se da coleta do maior volume de dados possível de todas as máquinas nas fábricas, do envio dos dados para a nuvem, a análise deles por meio da inteligência artificial e o uso dos resultados para tornar essas fábricas mais produtivas, menos onerosas de operar e mais confiáveis.

O objetivo é extrair os dados de seus silos - a máquina, o chão da fábrica, os sistemas de transporte e logística - e consolidá-los de uma maneira que permita decisões em tempo real.

Exemplos do que essa "revolução" pode fazer: decifrar como a temperatura ambiente pode afetar a produtividade de uma fábrica. Ou elevar e reduzir a produção de uma forma mais atrelada às vendas. Ou prevenir períodos de ociosidade não planejados, como quando uma máquina essencial quebra, o que pode ter um custo alto.

Já vimos essa "manutenção preventiva" sendo usada em aviões ou até automóveis, onde sensores e software podem determinar antecipadamente quando uma peça vai falhar e alertar o usuário para substituí-la.

Considerando todo o burburinho sobre a "internet industrial", eu imaginava que estávamos bem avançados nesse processo. Não é o caso.

Até a General Electric Inc. - que juntamente com Siemens AG, International Business Machines Corp., Cisco Systems Inc. e outras vem sendo uma das principais proponentes da internet industrial nos Estados Unidos - tem enfrentado desafios para implementar novos processos em suas próprias linhas de produção. "Sinceramente, uma das coisas em que estamos trabalhando é como conectar nossos equipamentos antigos", diz Karen Kerr, diretora-gerente sênior da GE Ventures. A GE tem quase 500 fábricas e sua meta é tornar 75 delas em fábricas inteligentes e conectadas à internet neste ano.

Parte do desafio é usar corretamente os equipamentos que as empresas já têm. Máquinas mais novas já vêm com sensores e portas de transferência de dados que tipicamente só são usadas quando elas estão sendo fabricadas ou consertadas, diz Dennis Hodges, diretor de tecnologia da informação da fabricante de autopeças Inteva Products LLC. Embora a intenção nunca tenha sido usar os dados desses sensores para indicar em tempo real como essas máquinas estão funcionando, verificou-se que mesmo indicadores indiretos das condições de uma máquina, como sua temperatura, podem ser combinados a outros dados para ajudar os engenheiros a entender aspectos do equipamento que não podem ser medidos diretamente, assim como determinar o que pode ser feito para evitar defeitos.

Outras firmas trabalham para agregar sensores onde eles não existiam anteriormente - um esforço que cria novos desafios, como, por exemplo, fornecer energia a todos esses sensores.

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Recentemente, usei um relógio inteligente que poderia ser um prenúncio desse futuro cheio de sensores. O recém-lançado PowerWatch, da Matrix Industries, nunca precisa ser recarregado. Sua fonte de energia é termoelétrica, o que significa que ele pode transformar qualquer diferença na temperatura - normalmente entre um objeto sólido e o ar ao seu redor - em eletricidade. Ao olhar para ele, uma pequena barra de energia lentamente se elevou, até que o relógio começou a gerar 200 microwatts de energia extraída do calor do meu corpo. É uma quantidade pequena, mas suficiente para um smartwatch - ou para sensores e transmissores usados em fábricas inteligentes.

Fontes de energia como essa, painéis solares ou sensores piezoelétricos, que obtêm energia de vibrações, são fundamentais para o maior uso de sensores no nosso ambiente construído, evitando o tempo e o dinheiro gastos na troca das baterias.

"Você quer poder colocar lá e esquecer", diz Hodges, da Inteva. Esses dispositivos, que combinam um sensor, transmissão de dados via redes sem fio e tecnologia energética da Matrix, estão sendo desenvolvidos pela americana Civionics Inc., diz o diretor-presidente Gerry Roston.

O uso dessas tecnologias em relógios e na manufatura está só começando. Entre os clientes da Civionics está uma empresa que monitora as condições de pontes na Índia e uma multinacional da área de mineração que precisa adicionar sensores a seus equipamentos maiores e mais caros. As gigantes desses setores já notaram a tendência - a 3M Co. é uma investidora estratégica da Matrix e a GE está investindo na Sight Machine.

07/11/2016 às 05h00 18

O futuro do trabalho será inventar o próprio empregoPor Darlene Menconi | Para o Valor, de São Paulo

Para Jerome Glenn, até 2050, não há como fugir do desemprego estrutural

Assim como a internet levou três décadas para sair das universidades e se espalhar pelo mundo, mudando tudo ao seu redor, a nova fronteira tecnológica já começou sua revolução silenciosa. E promete substituir parte dos cérebros humanos, da mesma forma

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como a Revolução Industrial substituiu os músculos. Um exemplo é a inteligência artificial de Watson, que a IBM apresentou em 2007 como um supercomputador capaz de aprender e conversar de igual para igual com humanos para em breve substituí-los em diversas tarefas, a começar pelo diagnóstico médico.

Ou as impressoras 4D em teste no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, onde pesquisadores imprimem objetos tridimensionais e depois observam enquanto a quarta dimensão - o tempo - assume o comando e os materiais programáveis se organizam automaticamente.

"Não sabemos se a inteligência artificial vai ou não se tornar um pesadelo da ficção científica, mas certamente terá impacto fundamental na natureza do trabalho", avalia o filósofo americano Jerome Glenn, diretor-executivo e co-fundador do Projeto Millennium, organização sem fins lucrativos internacional dedicada a analisar e projetar cenários futuros. Não confundir com o Instituto Millenium (Imil), entidade sem fins lucrativos ou vinculação político-partidária com sede no Rio de Janeiro, formada em 2005, por intelectuais e empresários brasileiros.

As interações entre inteligências artificiais e a proliferação da nanotecnologia, da robótica e da automação poderão produzir um cenário de desemprego sem precedentes, avalia Glenn, que há quarenta anos faz projeções para instituições que trabalham com a produção e a difusão de conhecimento, os think tanks.

Criado em 1996 a partir de uma iniciativa da Universidade das Nações Unidas e do Instituto Smithsonian, o Projeto Millennium tem o propósito de conectar instituições e indivíduos para analisar perspectivas e definir estratégias capazes de fazer frente aos desafios globais de longo prazo, influenciando transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas. O projeto começou com duas dezenas de pensadores e hoje reúne cerca de 3.500 especialistas e profissionais de organizações, governos, universidades e empresas em 60 países.

No Brasil, o eixo está no Núcleo de Estudos do Futuro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NEF-PUC), grupo de pesquisa interdisciplinar que promoveu no fim de outubro um encontro para dar subsídios ao mais novo estudo do Projeto Millennium, sobre o Futuro do Trabalho e da Tecnologia em 2050. O tema foi uma demanda dos próprios pesquisadores internacionais, tamanho o impacto esperado da automação sobre o mercado de trabalho nas próximas décadas. Os resultados, com propostas para enfrentar a escassez de empregos, podem servir como marco para compreender a mudança, mas também como agenda para melhorar o futuro.

Nesse exercício de antecipação, o Projeto Millennium se baseia na realidade atual e passada. "Nós nos apoiamos em pesquisas para saber quais as possibilidades em medicina, engenharia e tecnologia. Também olhamos para mudanças sociais e tendências, como o crescimento demográfico e as taxas de criminalidade e mortalidade", exemplifica Glenn.

É uma conversa contínua e global que se dá ao redor do mundo, com informações numéricas e estatísticas sobre a última década e as experiências conduzidas nos principais laboratórios de pesquisa do mundo. A partir desse mapeamento é possível chegar a conclusões sobre por que e como antecipar mudanças, e a uma lista com

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políticas para solucionar os desafios. Para isso são criados três cenários de futuro: o primeiro mantém o foco no ritmo atual de evolução, o segundo retrata um quadro mais sombrio e o terceiro projeta uma visão otimista.

O Projeto Millennium avalia o futuro a partir de 15 desafios globais, que vão desde o desenvolvimento sustentável e o equilíbrio entre crescimento populacional e acesso à água, alimento e energia, até igualdade de gênero e ameaças como o aquecimento global, o terrorismo e a convergência das tecnologias. Dois anos atrás, a educação e a capacidade de aprendizado, que eram estratégias para enfrentar os demais gargalos, se transformaram em um desafio global. A justificativa está no estudo do cérebro, que Jerome Glenn compara à corrida armamentista do pós-guerra, com a ex-União Soviética e os Estados Unidos em lados opostos da disputa.

Isso porque a China anunciou sua entrada em uma grande pesquisa para entender a engenharia do cérebro humano e sua conexão com as máquinas. União Europeia, Estados Unidos, Japão e Israel igualmente estudam os neurônios com o objetivo de controlar doenças mentais, mas também para nos tornar mais inteligentes. Microsoft e Google também tentam criar cérebros artificiais. As aplicações são inúmeras. "Seremos integrados com a máquina, o que significa que podemos nos transformar em grandes

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gênios. Claro que isso traz ameaças, como a inteligência artificial assumindo o controle de sua criação", afirma o diretor do Projeto Millennium.

"Não tem jeito. O trabalho mental passará a ser cada vez mais operado pela máquina. Em vez de entrar em desespero, temos que nos reinventar e buscar trabalhar com mais propósito e sentido", alerta a futurista Rosa Alegria, vice-presidente do NEF. Um dos sinais de mudança, segundo ela, veio dos altiplanos de Davos, em janeiro deste ano. Ainda sob o efeito da crise financeira de 2008, os líderes reunidos no Fórum Econômico Mundial trataram do tema "A quarta revolução industrial". Em debate, as implicações da falta de intermediários no mundo digital, o avanço da robótica e da economia compartilhada, que modificam o sistema de produção, distribuição e consumo.

Vivemos hoje um momento ímpar de ruptura. Primeiro por conta da velocidade da mudança. A segunda razão é a integração das coisas, cada vez maior. Em terceiro lugar, não havia plataforma para comunicação global como a internet. Em quarto lugar está o avanço da inteligência artificial. De acordo com Rosa Alegria, a humanidade levou dezenas de milhares de anos para passar do sistema agrícola para o industrial. Já a migração para a era da informação levou apenas dois séculos. A atual transição rumo à era pós-digital, ou da hiperconectividade, como ela chama, tem duração prevista de apenas 50 anos e deve concentrar uma quantidade de inovações avassaladora.

Pelas conclusões do Projeto Millennium, o desemprego estrutural no longo prazo é uma projeção do "business-as-usual". "Criamos organismos que não existem na natureza e nos próximos anos haverá muito mais disso. Já ensinamos o Facebook quem somos e do que gostamos, mas isso ainda é primitivo. Imagine criar um avatar com sua personalidade, ensiná-lo sobre seus interesses e programá-lo para buscar oportunidades enquanto você dorme", afirma Glenn.

O filósofo revelou que recebeu com surpresa o e-mail de um amigo contando que o banco espanhol BBVA contratou para chefe de tecnologia um profissional com doutorado em avatar. "A ideia é criar um sistema no qual as pessoas possam criar seu avatar e ensiná-lo a investir. A mudança já começou", diz.

Mesmo no melhor dos cenários desenhados pelo Projeto Millennium, não haverá trabalho para todos. A tendência, avalia Glenn, é cada um inventar seu próprio emprego, que dependerá da auto-realização. Estima-se que em 2050 seremos 9 bilhões de pessoas, mas a força de trabalho deve ficar em 6 bilhões, sendo a metade desse universo de trabalhadores autônomos. Em todos os cenários de futuro esquadrinhados pelo Projeto Millennium haverá menos vagas. "É hora de dizer a verdade àqueles que não terão emprego: reinventem-se, vocês estão livres", diz Glenn. Se você faz o que gosta, não há razão para aposentadoria, ele afirma.

"Com a evolução da tecnologia da informação, cada um de nós está no centro de um universo com 3 bilhões de pessoas, o que abre perspectivas enormes de trabalho por conta própria", aposta Glenn. Para onde quer que se olhe, a integração e a mudança são reais. À medida que as coisas se tornam mais complexas, as velhas regras não se aplicam. Por isso, é importante entender a transição para uma sociedade autossuficiente, que tome a iniciativa de gerar sua própria renda. "Se você pode ganhar a vida sendo você mesmo, o que tem de errado? Será que as pessoas querem trabalhar fazendo a

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mesma coisa todo dia?", ele questiona. Não é o melhor uso que se pode fazer da mente humana, conclui.

01/11/2016 às 05h00 7

A nova revolução industrialPor Luiz G. Belluzzo e Gabriel Galípolo

A globalização, acompanhada da liberalização das contas de capital nos países emergentes e da desregulamentação financeira nas economias centrais, provocou uma verdadeira revolução na estrutura financeira, produtiva e empresarial. Esse movimento impulsionou a metástase manufatureira da grande empresa americana, europeia e japonesa para as regiões em que prevalecem baixos salários, câmbio desvalorizado e alta produtividade do trabalho.

Em estudo publicado em 2015, o Parlamento Europeu reconheceu o declínio da contribuição relativa da indústria na economia europeia, que perdeu um terço da sua base nos últimos 40 anos: "Essa 'desindustrialização', um processo também presente em outras economias desenvolvidas, é em parte devida à ascensão da manufatura em outras partes do mundo (notadamente China) e à realocação dos trabalhos intensivos em mão de obra para países com custos trabalhistas e cadeias de fornecimento globais com fornecedores localizados fora da União Europeia".

Em resposta a esse declínio, a Comissão Europeia definiu como meta que em 2020 a manufatura deverá representar 20% do valor agregado na União Europeia, adotando como estratégia ajudar todos os setores industriais a explorarem novas tecnologias e manejarem a transição para o sistema industrial inteligente, a Indústria 4.0.

Comissão Europeia definiu como meta que em 2020 a manufatura deverá representar 20% do valor agregado na UE

Também conhecida como a Internet Industrial das Coisas, a potencial "nova revolução industrial" incorpora a aprendizagem das máquinas e tecnologia de big data; a comunicação de máquina para máquina (M2M); tecnologias de automação; a aplicação de tecnologia da informação e comunicação (ICT) para digitalizar informação e integrar sistemas em todos os estágios de produção (inclusive logística e fornecedores), tanto dentro quanto fora da planta; sistemas cyber-físicos que usam ICT para monitorar e controlar processos com sensores incorporados; robôs inteligentes que podem se auto configurar para adequação ao produto; impressoras 3D; redes de comunicação sem fio e internet que servem máquinas conectadas; simulação, modelagem e virtualização no design de produtos e processos de manufatura; coleta e análise de uma vasta quantidade de dados, imediatamente no chão de fábrica ou por meio de análise de big data e computação na nuvem.

Máquinas inteligentes, mais precisas que humanos em capturar e comunicar dados, possibilitam às empresas a identificação antecipada de ineficiências e problemas,

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poupando tempo e dinheiro, com grande controle de qualidade, redução de perdas, rastreabilidade e supervisão da eficiência da cadeia de fornecedores.

As plantas eletrônicas da Siemens Electronics em Amberg (Alemanha) produzem Controles Logísticos Programáveis no estado da arte das fábricas inteligentes, onde a gerência de produção, manufatura e sistemas de automação estão integrados. Máquinas inteligentes coordenam a produção e distribuição de 950 produtos como mais de 50 mil variantes, pelas quais aproximadamente 10 mil materiais são localizados em 250 fornecedores. Pela conexão de máquinas inteligentes com componentes que captam dados, os ciclos de inovação são encurtados, e a produtividade e qualidade são majoradas. A planta de Amberg registra apenas 12 defeitos por milhão (contra 500 em 1989), uma confiabilidade de 99%.

Algumas companhias são capazes de configurar fábricas sem luzes ou calefação, onde robôs automatizados produzem. Na Holanda a Philips produz barbeadores elétricos em uma "fábrica escura" com 128 robôs e apenas 9 trabalhadores.

Buscando também restaurar a prominência da sua indústria, os Estados Unidos estabeleceram uma Rede Nacional para Inovação na Manufatura, batizada de Manufacturing USA, com sede no National Institute of Standards and Technology, no Departamento de Comércio.

O escritório opera em parceria com o Departamento de Defesa, o Departamento de Energia, a Nasa, a Fundação Nacional de Ciência, o Departamento de Educação e o Departamento de Agricultura.

Nos últimos quatro anos do programa foram criados ou anunciados nove institutos de inovação em manufatura, com mais seis planejados para 2017. Esses institutos são parcerias público-privadas, cada um com seu distinto foco tecnológico. O programa europeu, batizado de "Factories of the Future", também usa o modelo de parceria público-privada (PPP).

A Indústria 4.0 se insere na estratégia dessas regiões de realocação do eixo industrial, como explicita o Parlamento Europeu: "A localização de algumas indústrias poderá estar mais próxima do cliente: se a manufatura é largamente automatizada, ela não necessita mais ser "off-shored" ou alocada em países distantes com baixo custo de mão de obra (e altos custos de transporte). Companhias europeias podem decidir retornar sua manufatura para a Europa ('re-shore') ".

Ao analisar a chamada quarta revolução industrial, a revista Forbes externou preocupação com os efeitos da substituição de trabalhadores em um vasto espectro de indústrias. A estimativa é que 47% dos empregos americanos estejam ameaçados pela automação. Especialistas sugerem especial prejuízo aos mais pobres, especialmente pelo desaparecimento dos trabalhos de baixa qualificação e salário.

As economias centrais se contorcem nas angústias da ruptura do circuito de formação do emprego e da renda. Em seu formato "fordista" esse circuito era ativado pela demanda de crédito para financiar o gasto dos empresários confiantes nos efeitos recíprocos da expansão da renda no conjunto de atividades que se desenvolviam nos

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espaços nacionais, a partir da generalização dos métodos de produção industriais que invadem os serviços e a agricultura.

Na culminância de seu desenvolvimento, o progresso capitalista gerou de suas entranhas tecnológicas os traumas e oportunidades da hiperindustrialização 4.0. Esse momento renova desafios das sociedades modernas: como as instituições humanas vão responder às forças sistêmicas transformadoras da vida. As revistas Forbes e The Economist debatem as consequências da nova revolução industrial. Em uma das mãos ela oferece as promessas da abundância e do tempo livre; na outra, ameaça com a precarização, a queda dos rendimentos dos trabalhadores menos qualificados, o aumento da desigualdade. Nesse cenário cresce o debate acerca da renda mínima como forma de enfrentar o deslocamento tectônico das relações sociais e das condições de vida de homens e mulheres, a questão do desemprego tecnológico estrutural.

E o Brasil? Na Tropicália, a indústria e as políticas industriais estão fora de moda.

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Gabriel Galípolo, professor do Departamento de Economia da PUC/SP, é sócio da Galípolo Consultoria

28/09/2016 às 05h00

Ponto de inflexãoPor Sergio Adeodato | Para o Valor, de São Paulo

Jorge Abrahão, do Ethos: superação da crise sem retrocessos ambientais

Em meio a um cenário de instabilidade política e econômica, uma oportunidade se apresenta ao mundo dos negócios como uma bola quicando na marca do pênalti: a de mobilizar soluções para fazer diferente e tomar a dianteira no mercado cada vez mais pressionado a mudar padrões insustentáveis sob o ponto de vista ambiental e social. Como aproveitar a retomada do desenvolvimento e entrar na rota de uma nova economia mais limpa, ética e inclusiva?

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A questão inspirou os debates na Conferência Ethos 360º, realizada nos dias 20 e 21 em São Paulo, tendo como pano de fundo fatores irreversíveis que já influenciam decisões de empresas e governos, como a urgência climática. "O desafio está nos temas estruturantes para a superação da crise sem retrocessos, com base no desenvolvimento sustentável, independentemente de quem estiver no poder", afirmou Jorge Abrahão, diretor-presidente do Instituto Ethos, na abertura do encontro, do qual participaram 190 palestrantes em 60 painéis.

Para Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Meio Ambiente da Universidade de São Paulo, "o crescimento econômico é um meio, não um fim", e a estratégia deve estar centrada não propriamente na redução de custos, mas na "capacidade de agregar valor, conhecimento e inteligência". E isso, segundo ele, passa pela valorização dos produtos e serviços dos ecossistemas, como a água.

Ricardo Abramoway, da USP: agregar valor, conhecimento e inteligência

Há dois desafios, na análise de Abramovay: a redução da desigualdade, ampliando-se a participação social no crescimento econômico, e a busca por inovação, com investimento maciço em educação. Recente estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), citado pelo professor, mostra que há baixo aproveitamento das capacidades humanas no processo de inovação no mundo, cenário que nos países em desenvolvimento é mais grave. Como escrito pelo economista de Harvard Klaus Schwab no livro "Quarta Revolução Industrial", a chave está "em repensar o sentido do que fazemos", disse Abramovay.

O apelo das mudanças climáticas dita o ritmo. A mobilização global desencadeada a partir da conferência de Paris sobre clima (CoP-21), em dezembro de 2015, tem sinalizado que a redução das emissões de carbono e a necessidade de adaptação aos impactos do aquecimento do planeta são caminhos sem volta.

O Brasil, um dos primeiros a ratificarem o Acordo de Paris com compromissos para diminuir gases de efeito estufa a partir de 2020, pode ser protagonista e, assim, tirar vantagens competitivas com impacto positivo nos negócios. Como, até o momento, 60 países se juntaram ao acordo (47,78% das emissões globais), a expectativa é de que entre oficialmente em vigor neste ano, o que induzirá novas regulações internacionais e nacionais, afetando a atividade produtiva.

"Chegamos a um ponto de inflexão e é preciso agir porque já sentimos as mudanças do clima", advertiu o consultor Tasso Azevedo. Os últimos dois anos foram de temperaturas recordes no mundo, que já gastou um quarto do orçamento de carbono

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proposto pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para limitar o aumento da temperatura média global em 2° C, em 2100. E agora, diante dos riscos econômicos, sociais e ambientais caso a margem de segurança seja superada, "começa a corrida para se alcançar a emissão zero", afirmou Azevedo, com uma questão: nesse cenário de cortes, "como manter o desenvolvimento para também zerar a pobreza e a desigualdade?".

Tasso Azevedo: "É preciso agir porque já sentimos as mudanças do clima"

Os desafios podem se tornar oportunidades. Apesar de ter diminuído 50% do carbono emitido entre 2004 e 2014, o Brasil permanece entre os principais países emissores, devido sobretudo ao desmatamento, à agropecuária e à geração de energia. "Direcionar mais investimentos a fontes renováveis é bom para a economia", com reflexos na competitividade frente o esforço global para se livrar dos combustíveis fósseis, diz.

De acordo com Azevedo, o mundo terá que aumentar a geração de energia limpa dos atuais 20% da matriz para 70% até 2050, e também reflorestar e reduzir pela metade o descarte de resíduos, além de outros itens de uma lista de necessidades que se avoluma, inspirando a busca de novas tecnologias.

Dos veículos elétricos não mais estigmatizados pela baixa autonomia e performance à produção de alimentos com menor impacto, soluções menos intensivas em carbono se ampliam no mercado. A velocidade e a escala dependem, entre outros pontos, de políticas estruturantes e das ambições empresariais. "O desenvolvimento sustentável é ainda um dilema na gestão das corporações", avaliou Annelise Vendramini, coordenadora do programa de finanças sustentáveis do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Cida Bento: um dos temas que mais crescem é diversidade de gênero

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A adesão do setor financeiro, com novas regulações nacionais e internacionais para os bancos, por exemplo, é termômetro das mudanças nos critérios de investimentos no sentido da descarbonização da economia. Para analistas, o mercado já entendeu o caminho, mas falta saber como financiar a transição. E a inércia pode custar caro. "No futuro a ameaça financeira será maior do que os atuais riscos do investimento em novas tecnologias de baixo carbono", previu Denise Hills, superintendente de sustentabilidade do Itaú-Unibanco.

Para a executiva, também vice-presidente da Rede Brasileira do Pacto Global das Nações Unidas, "cada vez mais esse novo modelo é visto entre investidores como padrão de sucesso".

A tendência é impulsionada pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos pela ONU com metas ambientais, sociais e econômicas para 2030, balizando ações de empresas e governos. Um dos temas que mais ganham força na agenda é o da diversidade de gênero, raça e orientação sexual, "questão essencial para um país que se diz desenvolvido e justo", afirmou Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. "É crescente a incorporação do tema aos negócios", disse Guilherme Bara, gerente de relacionamento e diversidade da Fundação Espaço Eco, mantida pela Basf. "A empresa entende que formar equipes mais diversas contribui para bons resultados."

Para Carolina Marini, coordenadora de diversidade e clima do Itaú-Unibanco, "o tema agrega valor ao gerar transformações benéficas para o negócio e por isso está de mãos dadas com a sustentabilidade". Já no Carrefour, conforme explicou a gerente de responsabilidade e diversidade, Karina Chaves, "é estratégico para as vendas que clientes de todos os perfis se sintam representados". O grupo mantém desde 2013 um comitê especial sobre a questão, que é transversal às diferentes atividades e vai além de aumentar a proporção de mulheres no corpo de funcionários.

28/09/2016 às 05h00

Amazônia requer nova abordagemPor Janice Kiss | De São Paulo

Adriana Ramos: é necessário reforçar que Brasil compartilha a Amazônia

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Antes de pensar sobre os futuros possíveis para a Amazônia, é preciso ter claro o quanto a manutenção desse bioma é crucial para a regulação climática. Foi com essa questão que Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), abriu o painel sobre Clima e Amazônia. "É sempre necessário reforçar que o Brasil compartilha esse território com outros países [Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa]", comenta.

A ponderação de Adriana vai ao encontro do conceito batizado de "Quarta Revolução Industrial", originário durante o Fórum Mundial de Davos, na Suíça, neste ano, que trata de movimentos globais que transformaram as sociedades por meio de inteligência artificial, robótica, genômica, entre outros. No caso específico da Amazônia, ela concorda com a posição defendida pelo climatologista Carlos Nobre, pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), "de que o olhar deveria ser pelos recursos biológicos" - não apenas os naturais como água, terra e minerais. "Precisamos de uma nova abordagem sobre o desenvolvimento da Amazônia", afirma Adriana.

Por meio desse novo conceito, um modelo que associa ciência ao conhecimento tradicional das comunidades locais e povos indígenas estaria no foco desse plano de inovação. "Um exemplo seria a exploração sustentável de produtos já conhecidos como castanha-do-pará, cacau, açaí, cupuaçu etc", comenta. Juan Fernando Reyes, secretário executivo da Articulação Regional Amazônica (ARA), concorda com a coordenadora do ISA e reforça que as políticas de desenvolvimento para o bioma estão abaixo do estipulado. "Segundo ele, 56% da Amazônia boliviana está em condições de pobreza, com baixos indicadores de saúde e educação primeira", afirma.

Além disso, o foco sobre as implicações do desmatamento na região (no caso brasileiro) - aumento de 6,45% (372 quilômetros quadrados) em relação a 2015, o que torna a taxa oficial de destruição da floresta 24% maior do que em 2014, conforme o Inpe - põe em evidência os impactos da pecuária na região e pressão sobre as empresas em relação à compra do produto. Segundo Leonardo Lima, diretor corporativo de Sustentabilidade da Arcos Dorados / McDonald's América Latina, a companhia fez uma parceria com o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS), que trabalha com a implantação de modelos mais eficientes e com menor "pegada ambiental" da atividade. "Ainda é uma pequena parte considerando o volume total [a rede de lanchonetes no país é abastecida com 33 mil toneladas por ano], mas é a melhor ação que a empresa poderia fazer nesse sentido", informa.

Na avaliação de Ana Cristina Barros, diretora de Infraestrutura Inteligente da ONG The Nature Conservancy na América Latina (TNC), as práticas empresariais nos dias de hoje procuram levar mais em consideração os impactos ao meio ambiente em relação ao ano passado. A bióloga integrou o painel sobre logística de baixo carbono e commodities industriais, que, por sinal, está no foco da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, uma aliança formada por associações empresariais e organizações não governamentais que tem o objetivo de propor políticas públicas, entre elas, as voltadas para a redução de emissões e adaptação à mudança do clima. "A rodovia, da qual o Brasil é tão dependente, faz parte de uma agenda velha de transporte", comenta. Circular cargas por hidrovias é apontada como meio de transporte mais eficiente e menos poluente.

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Celina Carpi, acionista e membro do Conselho de Administração do Grupo Libra, conta como os aspectos ambientais foram considerados na expansão do terminal, no Rio de Janeiro, um prolongamento do cais a ampliação do pátio de contêineres. A escolha pela construção de uma laje de concreto sobre estacas, ao contrário de aterro, reduziu a interferência do projeto no espelho d'água e no corpo hídrico. "Optamos pelo custo mais elevado em benefício da preservação dos ecossistemas", informa Celina. No seu entender, hoje a discussão sobre custos passa pelo meio ambiente, que no passado não era considerado.

Indústria 4.0 vai usar menos energiaPor Andrea Vialli | Para o Valor, de São Paulo

Carbeck: "Ao conectar máquinas, sistemas e ativos, empresas podem criar redes inteligentes em toda a cadeia de valor"

Um nível de automação industrial sem precedentes deu origem às chamadas fábricas escuras em países como Holanda e Japão: plantas industriais que operam praticamente no escuro, com robôs e alguns poucos profissionais humanos para comandar as máquinas. Essa realidade traduz o conceito da indústria 4.0, também conhecida como quarta revolução industrial. Nela, a convergência entre a tecnologia operacional (meios físicos de produção) e a tecnologia da informação resulta em um novo modo de produção que já está em curso e que deve transformar radicalmente a produção de bens de consumo, os empregos e o uso dos recursos naturais nos próximos anos.

A aposta é de Jeffrey Carbeck, especialista da área de inovação da consultoria Deloitte, que proferiu uma palestra sobre o tema na Conferência Ethos 2016. Segundo Carbeck, que também é consultor do Fórum Econômico Mundial, a indústria 4.0 vai impactar positivamente os três pilares do conceito de sustentabilidade (econômico, ambiental e social).

Valor: Como podemos definir a indústria 4.0 e como surgiu o conceito?

Jeffrey Carbeck: O termo surgiu pela primeira vez em 2011, pela GTAI, a agência do governo alemão para comércio e investimento, quando foi desenhado um projeto de estratégias para o país na área de tecnologia. A base do conceito são os sistemas ciber-físicos, ou seja, a tecnologia que faz a conexão entre o mundo físico e digital nas fábricas. Na definição da Deloitte, é uma integração entre a internet das coisas (IoT, na

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sigla em inglês) e tecnologias como robótica, análise de big data, computação de alto desempenho, materiais avançados e realidade aumentada.

Valor: O que diferencia uma fábrica automatizada de uma "inteligente"?

Carbeck: O fundamento básico da indústria 4.0 é o de que, ao conectar máquinas, sistemas e ativos, as empresas poderão criar redes inteligentes ao longo de toda a cadeia de valor. As fábricas inteligentes terão a capacidade e autonomia para operar, prever falhas no processo e adaptar a produção à demanda automaticamente. A internet das coisas [conexão em rede de objetos físicos, ambientes, veículos e máquinas por meio de dispositivos eletrônicos, como sensores, que permitem a coleta e troca de dados] é o item mais crucial na indústria 4.0, é por meio dela que a quarta revolução industrial está acontecendo.

Valor: De que modo isso vai impactar os negócios?

Carbeck: Vai impactar tanto as operações das empresas como o próprio modelo de negócios. Do ponto de vista operacional, as tecnologias poderão prover manutenção preventiva, monitoramento remoto da produção, utilizar dados sobre o uso de determinado produto pelos consumidores em melhorias nos próprios produtos. Em termos de mudanças no modelo de negócios, novos produtos e serviços poderão ser criados a partir desses dados, gerando outras oportunidades de receita e um aprofundamento na relação com os consumidores. E as empresas poderão aumentar sua lucratividade não apenas baseadas em ganhos de escala como é hoje, mas em conhecer com mais profundidade seus consumidores.

Valor: Qual a contribuição da indústria 4.0 para a sustentabilidade?

Carbeck: A indústria 4.0 vai eliminar ineficiências no processo fabril e permitir usar os recursos naturais de forma mais controlada. A geração de resíduos tende a cair a quase zero, e as empresas poderão desenvolver soluções mais robustas para seus produtos quando chegarem perto do fim da vida útil com base na análise de dados do comportamento do consumidor.

Valor: O senhor poderia citar outros exemplos?

Carbeck: Empresas como Philips, Siemens, Nike, Basf e Fujitsu estão empregando tecnologias da indústria 4.0 e já obtêm resultados em termos de economia de recursos naturais. A Basf utiliza análise de dados em sua fábrica de sabonetes em Kaiserslautern, na Alemanha, e reduziu o desperdício de matérias-primas no processo. Na Holanda, a fábrica de barbeadores elétricos da Philips opera como uma autêntica fábrica escura, com 128 robôs e apenas nove trabalhadores para gerenciar a produção, o que reduz muito o consumo de energia em relação a uma fábrica convencional, que funciona em vários turnos com funcionários.

Valor: Em relação ao pilar social do conceito de sustentabilidade, a indústria 4.0 não teria efeitos negativos, já que fábricas automatizadas tendem a eliminar empregos?

Carbeck: Esse é um ponto que vem sendo muito discutido. Na mineração, por exemplo, a automação da atividade vem reduzindo drasticamente a necessidade de mão

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de obra. Já faz certo tempo que, na indústria, muitos trabalhos mais repetitivos vêm sendo substituídos pela automação, e com a indústria 4.0 essa tendência se acentua. Por outro lado, ela vai demandar profissionais qualificados, especialmente nas áreas ligadas a tecnologia.

19/09/2016 às 05h00 1

Futuro da Amazônia depende da "quarta revolução industrial"Por Daniela Chiaretti | De São Paulo

O futuro da Amazônia pode depender de uma terceira via de desenvolvimento baseada na inovação tecnológica de ponta, no conhecimento tradicional e nos ativos da biodiversidade. Esta arquitetura inclui erguer em vários pontos da floresta centros de pesquisa como o Vale do Silício, na Califórnia e ter uma rede de cientistas internacionais estudando sua riqueza biológica.

A estratégia está relacionada à implantação, na floresta, da chamada "Quarta Revolução Industrial". O conceito, tema da reunião deste ano no Forum Mundial de Davos, trata de um movimento global em curso há mais de uma década e que revoluciona as sociedades por meio de inteligência artificial, robótica, genômica e nanotecnologias, por exemplo.

"É olhar a Amazônia não pelos seus recursos naturais como água, terra e minerais, mas pelos biológicos", diz o climatologista Carlos Nobre. "É estudar a riqueza biológica da Amazônia. Principalmente, a riqueza biológica escondida."

A abordagem está em estudo publicado sexta-feira na revista PNAS (Proceeding of the National Academy of Sciences) por um grupo de cientistas liderado por Nobre. Trata-se de um plano de inovação em grande escala para a floresta. O modelo associa ciência ao conhecimento tradicional das comunidades locais e povos indígenas.

A ideia é explorar o que outro pesquisador do grupo, o peruano Juan Carlos Castilla-Rubio, denominou de a "terceira via amazônica". "Esta nova economia tem o potencial de ser muito maior do que a atual, baseada na exploração econômica com 'intensificação sustentável'", diz o engenheiro bioquímico Castilla-Rubio

Outro flanco do estudo aponta os riscos a que a floresta está submetida. "Fizemos um grande sumário do conhecimento mundial recente sobre Amazônia e apresentamos resultados novos sobre o efeito sinérgico do desmatamento com o aquecimento global mais os incêndios florestais, e considerando os efeitos benéficos do aumento da concentração de gás carbônico para a floresta", diz Nobre.

Esses fatores juntos mostraram que há dois limites que não podem ser superados para garantir o equilíbrio da floresta: chegar a 4°C de aquecimento ou 40% de

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desmatamento. Se uma dessas condições for superada, os cientistas acreditam que se chegará a um ponto de ruptura. Em 2050, metade da floresta pode virar savana.

Os pesquisadores envolvidos com o estudo não acreditam na primeira via de desenvolvimento da Amazônia. Foi o debate de décadas atrás, de tentar preservar tudo com unidades de conservação. "A ideia de colocar uma cerca na Amazônia era impossível", diz Nobre.

Nobre, que é pesquisador aposentado do INPE e novo membro da National American of Sciences (NAS), é crítico do segundo modelo de desenvolvimento, baseado na "exploração econômica e na intensificação sustentável". Diz ele: "Está embutido aí a ideia de que é preciso remover a floresta para gerar valor econômico. E quanto mais bem-sucedida a atividade, mais dinheiro há para colocar neste modelo. Nenhum desses caminhos asseguram a manutenção da floresta a longo prazo", diz Nobre.

Os pesquisadores citam a exploração do açaí, do babaçu, do cupuaçu. Mas, mais que isso, de estudar, por exemplo, a rã Tungara, que cria uma espuma de longa duração capaz de absorver CO2. Outro exemplo é do jambu, planta com propriedades anestésicas que está sendo estudada para uso em pastas de dentes ou em produtos anti-inflamatórios. "É aprender com as soluções que o ecossistema da floresta desenvolveu há milhões de anos", diz Nobre.

Castilla-Rubio lembra que a recente redução de 80% no desmatamento da Amazônia nos últimos 10 anos cria uma ponte para que se inverta o modelo de desenvolvimento atual na região. "É produzir valor econômico com muito conhecimento e inovação, mas mantendo a floresta em pé", diz ele. "É desenvolver cadeias de produtos baseados na biodiversidade e que têm capacidade de alcançar mercados globais."

04/07/2016 às 05h00 2

O sonho chinês e o pesadelo alemãoPor Glauco Arbix

O sono de governantes em Berlim e em toda a Europa não tem sido muito tranquilo desde que a chinesa Midea ofereceu € 4,5 bilhões para controlar a Kuka, uma das mais avançadas empresas de robótica da Alemanha.

A possibilidade de aquisição da empresa alemã que produz robôs de última geração, utilizados pela BMW e Audi, assim como pela americana Boeing, amedronta europeus, americanos e japoneses. O temor é mais do que compreensível, pois se o negócio se concretizar, a quarta revolução industrial, chave para os países avançados, pode prosperar rapidamente na China.

Se realizada, a compra representará o controle da China de tecnologias críticas que estão na base das estratégias alemãs de manter sua liderança mundial em manufatura, com a plataforma chamada Indústria 4.0.

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Pela sua condição de liderança na indústria inteligente, a Alemanha se converteu no prato preferido para saciar o apetite da China: em 2015, 36 empresas alemãs de tecnologia foram adquiridas por grupos chineses, e neste meio ano, outras 25 estão em negociação

A Kuka lidera segmentos que caminham aceleradamente para a digitalização de processos industriais, que têm no horizonte a automação completa das fábricas. O incômodo no governo de Angela Merkel é profundo e repercute no Parlamento Europeu, com a disseminação de fortes dúvidas sobre a oportunidade - ou não-- de se permitir a passagem de uma empresa-chave para mãos chinesas.

O espectro de que carros, máquinas e aviões do futuro deixariam de ser símbolos de Stuttgart ou Wolfsburg, e passariam a se apresentar com sotaque mandarim é fonte de fortes debates entre autoridades e empresários. Empresas alemãs como a Siemens, ou a suíça ABB e a multifacetada Airbus são insistentemente sondadas para a formação de um consórcio pan-europeu voltado para a manutenção do controle da Kuka, em uma clara tentativa de desconstrução das ambições da Midea.

A convicção de que Beijing jamais permitiria uma aquisição de tecnologia chinesa dessa qualidade alimenta mais as resistências.

Diante do nervosismo das autoridades, executivos da Midea afirmam que a aquisição seria altamente benéfica para a Kuka, que teria acesso irrestrito ao mercado chinês, que hoje conta com o maior número de robôs instalados na indústria, e se encontra em franca expansão.

A questão de fundo é que a China, mais do que a busca de robôs para a indústria, busca um passaporte para o futuro, cuja base é a integração entre manufatura, serviços e comércio. Mais do que uma fábrica de robôs, a Kuka traz a possibilidade de incorporação aos ativos chineses de toda uma plataforma tecnológica, baseada em conhecimento e processos de alto desempenho.

Pela sua condição de liderança na indústria inteligente, a Alemanha se converteu no prato preferido para saciar o apetite do Reino do Meio: em 2015, 36 empresas alemãs de tecnologia foram adquiridas por grupos chineses, sendo que neste meio ano, outras 25 estão em negociação. Com o aquecimento da demanda, o ticket médio de aquisições na Alemanha também subiu. Apenas neste ano, a ChemChina comprou a KraussMaffei Group, empresa de máquinas, por € 1 bilhão e a Beijing Enterprise Holdings arrematou a EEW Energy from Waste, empresa de processamento de resíduos e de energia, por € 1,44 bilhão. O atual lance da Midea representa uma nova escala nas aquisições, expressão maior da determinação chinesa.

A China busca robotizar aceleradamente seu parque produtivo, mas quer também se capacitar para a fabricação de produtos high tech, em que precisão e qualidade são essenciais. O trânsito para uma nova indústria, mais digitalizada e baseada em circuitos integrados, sensores, softwares e inteligência artificial é chave para elevar seu padrão produtivo, ainda muito intensivo em trabalho humano.

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A travessia para a produção de bens mais sofisticados é o caminho visualizado pelas autoridades chinesas para entrar no seleto grupo dos países que desenvolvem carros autônomos, programas espaciais avançados, drones, medicamentos e equipamentos de saúde de última geração. A China tenta comprar seu ingresso no grupo de elite dos países que alimentam a construção de um novo paradigma industrial, com consequências para todo o planeta. A competição é aguda, pois também a Coreia, a Índia e outros emergentes procuram não ficar para trás, arriscando se perder nas franjas do mundo avançado, enredados no universo das commodities.

Os países atentos a esse movimento usam e abusam de todas as armas, desde a adoção de zonas especiais para o desenvolvimento de robôs e automação, passando pelos estímulos à formação de joint ventures com empresas estrangeiras e atração do investimento externo, até a construção de plataformas exploratórias de novas tecnologias, com mudanças no modo de ensinar engenharia e na qualificação das pessoas.

O Brasil, por meio de seus ministérios e órgãos como o BNDES, a Finep, ABDI, CNPq, INPI e Inmetro, deveria estar totalmente voltado para esses desdobramentos, seja pelas dificuldades da economia, seja pela profunda crise que devora nossa indústria.

No entanto, em ambiente que exala negatividade, o risco no Brasil é que a preocupação dos governantes europeus ante as pretensões chinesas seja interpretado como mais uma permissividade e interferência indevida do Estado no jogo do mercado. Enquanto nosso país decide o que o Estado pode ou não fazer, alemães, europeus e chineses, cada um a sua maneira, usam todo o arsenal disponível para blindar ou ampliar seus ativos tecnológicos. Dada a crise econômica e ausência de prioridades para a alocação dos escassos recursos, nosso país tende, mais uma vez, a ser engolido pelo curto prazo e a empurrar para o gueto nossa Ciência, Tecnologia e Inovação

Bem que governo e empresários brasileiros poderiam ter comportamento mais básico e correr atrás de algum negócio parecido, ainda que levemente, com o da China.

A internacionalização de nossas empresas e universidades, assim como a reformulação de nossa indústria a partir da busca obstinada de conhecimento e tecnologia, dentro e fora do país, são atividades que expressam inteligência e ajudam a elevar a baixa produtividade. E ainda por cima não custam caro, principalmente se comparadas ao preço que nossa economia vai pagar pelo atraso da nossa indústria que não para de se aprofundar.

Glauco Arbix é professor titular da USP, pesquisador do Observatório da Inovação e ex-presidente da Finep

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28/06/2016 às 05h00

Organizações devem ser regidas por software Por Martha Funke | Para o Valor de São Paulo

Cristina Palmaka: transformação digital faz com que hoje toda organização se torne uma empresa de tecnologia

Domínio dos dados, hiperconectividade, trabalho digital são algumas das características da quarta revolução industrial em curso, que instiga empresas tradicionais a buscar a transformação alavancada por plataformas digitais. Para as instituições financeiras, o desafio é unir fortalezas como produtos e serviços maduros, regulação sólida e credibilidade com a velocidade do novo mundo, onde despontam inovações materializadas em novos formatos de negócios, de moedas digitais a financiamento coletivo.

Para o CTO da CA Technologies, Otto Berkes, estimular a transformação dos negócios para o mundo digital implica enxergar cada empresa como uma organização regida por software. "Além das startups, os disruptores digitais são as empresas que abraçam a promessa do software e criam experiências digitais para crescimento futuro", diz. Pesquisa realizada pela empresa no ano passado com 1,4 mil participantes de 16 países em nove setores econômicos mostrou alguns resultados dos impactos da adoção massiva de tecnologia para a transformação de um ou mais aspectos do negócio.

Entre os respondentes, 55% indicaram já ter adotado estratégia deste tipo em áreas como atendimento ao cliente, vendas, marketing e desenvolvimento de novos produtos ou serviços, e 45% registraram melhorias em questões como retenção e aquisição de clientes e 44%, aumento de receita.

Um grupo de 14% das empresas qualificadas como mais disruptivas apresentou resultados ainda mais significativos, como aumento de lucros 250% superior à média e de novos negócios, 150%. Por trás das estratégias, o foco em atender expectativas de clientes acostumados com a experiência proporcionada por marcas como Amazon, Uber e Netflix, com apoio de pilares como metodologias com desenvolvimento ágil, cooperação entre desenvolvimento de software e operações (DevOps) e farta adoção de

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conectores para integração de sistemas (APIs). "Um em quatro usuários vai abandonar uma aplicação web depois de 3 segundos de delay e quase 90% dos aplicativos serão usados só uma vez", diz o especialista.

Para a presidente da SAP Brasil, Cristina Palmaka, a transformação digital faz com que hoje toda organização se torne uma empresa de tecnologia, com potencial para atuar no segmento financeiro. "Na Starbucks, 10% das receitas são de serviços financeiros, o Facebook permite troca de dinheiro entre pessoas. São quase novos concorrentes", diz.

Outros pontos da ruptura digital são o trabalho digital e o foco em serviços. Para Adam Woodhouse, diretor da KPMG especialista no sistema financeiro, a digitalização do trabalho envolve a automação de processos repetitivos e o emprego de computação cognitiva para aprimorar a tomada de decisão, um processo útil para áreas como concessão de crédito. Como exemplo de companhias industriais hoje com perfil de serviços ele apontou a John Deere, que vende soluções agrícolas e não apenas equipamentos.

O novo cenário desafia o setor financeiro e, particularmente, os bancos, no momento em que conceitos como presença e força de distribuição no varejo começam a perder valor relativo frente à relevância de ter o ícone na primeira tela do smartphone ou um aplicativo usado com frequência. Maurício Minas, vice-presidente do Bradesco e presidente da Scopus, lembra que o modelo convencional sustentou sua rentabilidade ao longo do tempo com base em margens razoáveis para produtos e serviços. Mas elas tendem a ser comprimidas na revolução digital. "Ainda não dá para saber se os volumes compensam. E há barreiras para alcançar escala global, como regulamentação", observa.

O próprio Bradesco está em meio ao processo de promover a redução do gap entre o modelo tradicional, baseado em pesados investimentos em infraestrutura tecnológica e presença física, e o digital, apoiado em otimizar a experiência do cliente por meio dos vários pontos de contato. O diretor de canais digitais, Luca Cavalcanti, detalha que o caminho está sendo preparado com o uso de APIs e o desenvolvimento de plataformas tecnológicas para consumir informações dos legados estratégicos e suportar inovações com agilidade.

O banco aproveita para pavimentar o caminho entre os conceitos multicanal e omnichannel e para turbinar iniciativas físicas e digitais complementares com novidades. Entre elas, ATMs que recebem depósito em cédulas, sem envelopes e caem na conta do cliente em tempo real, ou com capacidade de programação de retirada por celulares Android, ativada por aproximação e validada por biometria e senha. A tecnologia de inteligência cognitiva Watson ajudará funcionários a encontrar informações em prol da qualidade do serviço. Ofertas apresentadas a gerentes com acesso a CRM estarão presentes em canais de atendimento físicos e virtuais e há projetos de reconhecimento de cliente na agência para incrementar o relacionamento. Inovações como depósito de cheque por imagem, investimentos e tolken por celular têm apoio de informações e diálogos em redes sociais. "Temos casos de 70% de assertividade em ofertas com informações de contexto dos clientes", afirma Cavalcanti.

18/03/2016 às 05h00

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GE crescerá no Brasil neste ano, apesar da crise, diz CEOPor Francisco Góes | Do Rio

Immelt, presidente: aposta no país se dá em um momento de mudança na GE

A americana GE, um dos maiores produtores mundiais de equipamentos industriais, continua a considerar o Brasil como um mercado prioritário, apesar do difícil ciclo pelo qual passa o país, marcado pela polarização política e pela volatilidade financeira. "Esperamos crescer no Brasil este ano mesmo em um ambiente desafiador", disse Jeff Immelt, presidente global da GE. A manutenção da aposta no mercado brasileiro se dá em um momento de mudança para a GE. A empresa vendeu a maior parte dos serviços financeiros e focou-se no crescimento do negócio industrial. Em 2015, fechou a maior compra de sua história, a divisão de energia da Alstom. Nessa transição, surge uma "nova" GE, que vai disputar a liderança da chamada "quarta revolução industrial".

Esse conceito de "quarta revolução ou indústria digital" vem sendo usado para definir fábricas "inteligentes" que usam informações e tecnologias de comunicação em seus processos de produção. O objetivo da GE é entregar maior produtividade aos clientes. De acordo com Immelt, a produtividade industrial, em termos globais, cresceu em média 4% por ano entre 1990 e 2010. A partir de então, a taxa caiu para apenas 1%. Por meio do avanço industrial digital, a GE espera retomar e impulsionar o crescimento da produtividade. "Estamos preparados para aumentar a produtividade do Brasil. E será desta maneira que a GE manterá a agenda de crescimento no país."

A internet ligada à indústria deve representar US$ 20 bilhoes em receitas, com a venda de aplicativos e softwares, para a GE, em 2020 (este ano esse número deve ser de cerca de US$ 7 bilhões). Essa receita com o negócio digital, se confirmada, fará da GE uma das dez maiores empresas de software do mundo, disse Immelt. Em 2015, a GE faturou US$ 117 bilhões no seu negócio industrial e registrou lucro de US$ 15,9 bilhões. Immelt completa este ano 15 anos como presidente da GE. "Vivemos em um tempo de grande volatilidade e onde a polarização política tornou-se uma verdade em todos os países do mundo, é parte do jogo."

Quando se tornou presidente da GE, a companhia tinha 70% das vendas nos Estados Unidos. Este ano 70% da receita virá de fora do mercado americano. No processo de transição, a GE vendeu os serviços financeiros da GE Capital, com exceção daqueles prestados ao negócio industrial do grupo, em uma transação que permitirá à empresa

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receber US$ 36 bilhões. Isso dá à GE capacidade de recomprar ações no mercado e de fazer aquisições de empresas, embora o foco seja o crescimento "orgânico".

Parte da transformação pela qual passa a GE ocorreu em 2015, quando a companhia concluiu a compra da divisão de energia da Alstom por US$ 10,6 bilhões. São esperados ganhos a partir da combinação das linhas de produtos das duas companhias. "Há muita complementariedade [com a Alstom], em termos de tecnologia, com o que a GE tem", disse Immelt.

No Brasil, onde está há 96 anos (desde 1919), a GE tem 21 fábricas. Nessas unidades, todas as linhas de negócios da GE estão representadas (energia, gerenciamento de energia, energia renovável, óleo e gás, transporte, iluminação, saúde e aviação). Mas a diferença hoje é que fábricas que antes funcionavam com uma única linha de produto agora são multidisciplinares (produzem três, quatro tipos de produto). "Reconhecemos que o momento é mais difícil do que há um ano, há mais riscos, então é preciso trabalhar mais forte para trazer soluções financeiras que viabilizem projetos. Nossa agenda é de crescimento para 2016", disse Rafael Santana, presidente da GE para a América Latina.

Immelt, que tenta visitar o Brasil pelo menos uma vez por ano, reconhece que existe mau-humor com o Brasil no mercado internacional. Ele não citou números sobre o crescimento no mercado brasileiro este ano, mas indicou que deve ser na casa de um dígito, na mesma linha da meta fixada para as operações globais, que prevê expansão entre 2% e 4% este ano. "Nós ainda vemos oportunidades para a companhia [no mercado brasileiro]." E acrescentou: "Eu olho mais o micro do que o macro. Se olhar de um ponto de vista macro, [a situação] é bastante deprimente. Mas se olhar do ponto de vista micro, verá muitas oportunidades", disse Immelt.

As perspectivas de negócios da GE no país incluem os segmentos de energia e de transportes (locomotivas). A empresa também tem atuação forte na aviação e em equipamentos para a saúde. O setor de óleo e gás, apesar das dificuldades, também está no radar: "A Petrobras é um grande cliente e precisamos estar preparados para atender suas necessidades." A desvalorização do real, afirmou, torna mais competitiva a exportação de produtos manufaturados a partir do mercado brasileiro. Apontou como fatores positivos o fato de o Brasil ter "massivos" recursos naturais, crescimento populacional e um setor agrícola forte, além de grandes necessidades em áreas como eletricidade e saúde, segmentos atendidos pela GE. "Minha crença no setor privado continua. Existe no Brasil uma grande classe empresarial", disse.

18/02/2016 às 05h00

Conectividade vai revolucionar a indústriaPor Ediane Tiago | De São Paulo

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O adensamento da digitalização promete modificar a forma de atuação de setores inteiros. Na indústria, os especialistas em tecnologia apontam para a quarta revolução industrial - onde a comunicação entre máquinas é tão intensa que os sistemas serão capazes de comandar a produção. A fábrica digital combina inteligência artificial, robotização e controle em tempo real de todos os processos. "Essa tendência torna-se real com o avanço da internet das coisas, que conectará qualquer equipamento à estrutura de redes", destaca Denis Balaguer, diretor do centro de inovação da EY.

Para Balaguer, a indústria 4.0 vai reconfigurar a economia. A explicação é simples: com controle total dos meios de produção e previsões mais acertadas sobre a demanda, haverá redução no uso de recursos e maior eficiência nos processos. O comportamento do consumidor também está em transformação, colocando em cheque o modelo de produção e consumo em massa. "Assistiremos a ciclos de crescimento econômico que estarão relacionados a coisas não-materiais, o que é positivo do ponto de vista da sustentabilidade", comenta.

Outra tecnologia que está abalando a estrutura da indústria é a impressão 3D. Com a evolução dos materiais para imprimir produtos e peças "em casa", o valor ficará centrado nos projetos e nos desenhos. "Em vez de achar que não vai acontecer, é melhor criar regras para a propriedade intelectual, evitando a pirataria, uma vez que os projetos trafegarão livremente pela rede", comenta Fernando Simões, diretor da Atos na América do Sul.

A tecnologia também está permitindo a personalização da produção. Em segmentos como o da saúde, a "impressão" de próteses tem animado médicos e pacientes - por viabilizar implantes mais confortáveis e ajustados ao corpo de cada um. Ainda na área da saúde, a análise complexa de dados permitirá acompanhar pacientes a partir de dados enviados de relógios inteligentes, prontuários eletrônicos e outros bancos de informações.

Já na indústria farmacêutica, a expectativa é que soluções como a computação cognitiva acelerem os ciclos de descobertas científicas, em tratamentos, drogas e tecnologias. Além de reduzir custos das pesquisas clínicas. "O cruzamento correto dos dados pode prever que o teste de uma droga será negativo, antes de ele terminar, economizando tempo e recursos financeiros", explica Simões.

Edgar D'Andrea, sócio da PwC, lembra que a intensificação da urbanização também exigirá mudanças na forma de gerir as cidades, que ficarão mais inteligentes, a partir de tecnologias como a internet das coisas. "É preciso utilizar a tecnologia para atender às expectativas das pessoas e proteger o planeta", diz. Para ele, as tendências globais convergem para melhor qualidade de vida e equilíbrio entre produção e meio ambiente. "Não dá para conquistar isso sem tecnologia."

Rodrigo Africani, especialista em gestão de dados do SAS América Latina, utiliza como exemplo a gestão das redes de abastecimento de água e energia. O uso de sensores e sistemas de monitoramento on-line tem o potencial de ajustar oferta à demanda, sinalizar e prever problemas nas redes. "A economia de recursos é imensa e necessária diante da concentração urbana", diz.

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Outro setor em transformação é o da educação. Para Giuseppe Marrara, diretor de relações governamentais da Cisco, a forma como educamos hoje não faz mais sentido no mundo digital. "Os alunos não precisam mais decorar coisas que estão acessíveis por meio de um celular", diz. "A experimentação torna-se fundamental, assim como o estímulo à criatividade e a capacidade de resolver problemas", destaca.

Na educação e em serviços técnicos, entra em cena a realidade virtual, já conhecida do mundo dos games. Para especialistas, o recurso traz ganhos nas aulas técnicas e atendimentos em que reparos estão envolvidos, uma vez que permite "manipular" peças e equipamentos de forma virtual, facilitando o entendimento sobre a ação necessária. "Para profissionais em campo, o ganho de tempo é incrível", diz Simões, da Atos.

18/02/2016 às 05h00

Trabalho exige engajamento tecnológicoPor Ediane Tiago | De São Paulo

Até agora, o avanço tecnológico tem ditado o ritmo da digitalização e privilegiado países, empresas e pessoas capazes de acessar suas vantagens. A preocupação vigente para o futuro está em um pilar pouco explorado pelas notícias do setor de tecnologia: as pessoas. "O ser humano é a peça principal das transformações e tem de ser protagonista da digitalização", defende Ricardo Chisman, líder de consultoria em tecnologia da Accenture.

Para engajar as pessoas no uso intensivo de tecnologia, criando bases para o equilíbrio econômico e social das nações, será necessário aplicar recursos em educação. "Com a evolução das máquinas, o mercado de trabalho requer novas competências e é preciso estimular o preparo da força produtiva", destaca Chisman.

Reinaldo Sakis, gerente de consultoria e pesquisa da IDC Brasil, alerta que a população brasileira tem hoje mais acesso à tecnologia, mas ainda não desfruta de um sistema de educação de qualidade. O descompasso pode comprometer o papel do país na nova economia. "É preciso formar empreendedores capazes de criar produtos e serviços para o novo mundo. Não dá para esperar a coisa acontecer e depois correr atrás", diz.

O abismo entre o sistema educacional e a formação necessária para um futuro amplamente digitalizado não é uma exclusividade do Brasil. O estudo The future of Jobs (o futuro do emprego), realizado pelo Forum Econômico Mundial, destaca os desafios para e empregabilidade, o desenvolvimento de competências e da força de trabalho em um cenário de convergência tecnológica e de uma nova revolução industrial.

Segundo o relatório, o desafio para colocar as pessoas no centro da revolução digital é grande, uma vez que o advento da quarta revolução industrial vem acompanhado do desenvolvimento nos ramos da genética, inteligência artificial, robótica, nanotecnologia, impressão 3D e biotecnologia. Além da tecnologia pura, o uso de sistemas inteligentes

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(em fábricas, casas, fazendas, redes de abastecimento em cidades) vai ajudar na resolução dos mais diferentes problemas: das cadeias de suprimentos às mudanças climáticas. Já o surgimento da economia colaborativa permite que as pessoas monetizem tudo - de suas casas vazias a seus carros.

"A digitalização é um caminho sem volta e o ser humano tem de estar preparado e adaptado", afirma Marcia Ogawa, líder responsável pelas soluções de análise de dados da Deloitte no Brasil. A questão levantada pelo estudo realizado pelo Fórum Mundial está centrada na forma como empresas, governos e pessoas vão reagir a esses desenvolvimentos, prevenindo o pior cenário da digitalização: o avanço tecnológico acompanhado da escassez de talentos, desemprego em massa e crescimento da desigualdade. "A capacitação dos trabalhadores é um fator crítico. Não dá para esperar por uma geração melhor preparada."

25/01/2016 às 05h00

A armadilha do entusiasmo tecnológicoPor Eduardo Magrani e outros

A tecnologia está mudando rapidamente a maneira como interagimos com o mundo à nossa volta. Sistemas automatizados que acendem as luzes e aquecem o jantar ao perceberem que você está saindo do trabalho para casa, impressoras 3D que produzem peças de reposição para objetos quebrados e dispensam a necessidade do usuário contatar o fabricante, drones que entregam remédios e comida ao consumidor, já são um cenário tecnológico presente.

Visando atender às mais novas demandas dos consumidores, empresas hoje estão desenvolvendo produtos com interfaces tecnológicas que seriam inimagináveis há uma década. Observamos, portanto, rápidas mudanças resultantes da convergência entre as novas tecnologias e os setores econômicos, sociais e políticos.

Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Drones, Computação Quântica, Impressoras 3D, Big Data, Cidades Inteligentes, são expressões que estarão cada vez mais em nosso cotidiano. Esses tópicos fazem parte do que vem sendo denominada de "Quarta Revolução Industrial", tema do Fórum Econômico Mundial deste ano.

Assim como ocorre com a Internet das Coisas, as impressoras 3D também se proliferam mais rapidamente do que reflexões a respeito dos aspectos financeiros, sociais e jurídicos desta. Então vivenciamos uma autorregulação do próprio mercado

O Fórum que ocorreu em Davos é um evento anual que reúne líderes mundiais de governos, setor privado e terceiro setor para discutir questões que envolvam preocupações globais. A reunião de 2016 visou explorar as problemáticas envolvendo a "Quarta Revolução Industrial", tratando dos efeitos da crescente relação entre tecnologia e sociedade. Tal revolução refere-se à interseção entre os ambientes físico,

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digital e biológico, bem como o desenvolvimento de cada um à luz de três variáveis: velocidade, escala e impacto sistêmico.

Por um lado, as rápidas mudanças proporcionadas pela tecnologia podem trazer inúmeros benefícios aos consumidores. As impressoras 3D, por exemplo, vêm chamando atenção pelo potencial de revolucionar a forma como a manufatura foi desenvolvida nas últimas revoluções industriais, tornando desnecessário que estoques sejam feitos - afinal os produtos serão impressos à medida que forem demandados - além de inverter a lógica de transportes de produtos encomendados: estes poderão ser impressos pelos próprios consumidores (que se tornam "makers") em suas cidades, dispensando a figura das grandes transportadoras e necessidades de armazéns, por exemplo.

Por outro lado, para além do entusiasmo da indústria, o cenário de mudanças traz com ele novas preocupações jurídicas, econômicas e sociais. Apesar das facilidades que parecem eminentes, é preciso considerar que junto ao rápido desenvolvimento, consequências negativas podem surgir. As impressoras 3D, anualmente, se tornam economicamente e tecnicamente mais acessíveis. Previsões indicam que, em cerca de 20 anos, boa parte da população ou terá uma impressora em casa ou poderá acessar uma em algum lugar próximo.

Caso esta previsão se realize, estaremos diante de um cenário no qual preocupações ambientais enfrentarão novos desafios: como será mais fácil obter - através da impressão - o objeto que se deseja, pode ser que estes também sejam mais facilmente descartados. Afinal, a facilidade em obter aquilo que se quer pode refletir no valor que se dá ao objeto. Sendo assim, o número de materiais descartados para o lixo pode aumentar. Além disso, ao possibilitar mudanças na forma como a manufatura convencional é feita, a impressora 3D fará com que empregos relacionados a este meio percam seu propósito, de modo que seja gerado um crescimento significativo de desemprego. Este discurso encontra consonância com aquele já feito há algum tempo, sobre como a Inteligência Artificial irá substituir a mão de obra humana. O risco da mão de obra perante a força e eficiência da automação.

Em outro âmbito, no cenário da Internet das Coisas, os dispositivos conectados que nos acompanharão diária e constantemente irão coletar, transmitir, armazenar e compartilhar uma quantidade enorme de dados, muitos deles estritamente particulares e mesmo íntimos. Com um aumento exponencial de utilização destes dispositivos, que já se encontram ou que entrarão em breve no mercado para serem consumidos, devemos estar

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atentos também aos riscos que isso pode trazer para a privacidade e demais direitos fundamentais dos usuários.

Levando em consideração o quão recente é esse cenário digital de hiperconectividade entre os dispositivos, ainda não temos consciência plena dos danos que podem ser causados e tampouco temos regulações jurídicas suficientes para evitar os prejuízos que podem advir do armazenamento, tratamento e compartilhamento dos nossos dados pessoais em um cenário de Internet das Coisas.

Seria possível afirmar que a incorporação massiva destas tecnologias em nosso cotidiano vêm crescendo mais rápido do que nossa habilidade de garantir a segurança e privacidade dos seus usuários. Assim como ocorre com a Internet das Coisas, as impressoras 3D também se proliferam mais rapidamente do que reflexões a respeito dos aspectos financeiros, sociais e jurídicos desta. E na carência de uma regulação pelo direito, estamos vivenciando, enquanto isso, uma autorregulação do próprio mercado e uma regulação realizada muitas vezes através do design e da tecnologia. É preciso que o Direito avance de modo a buscar regulações adequadas às novas tecnologias, visando proteger adequadamente os direitos fundamentais individuais e coletivos.

É necessário, portanto, equilibrar o deslumbre pela tecnologia com uma certa desconfiança, considerando que a regulação privada atende a interesses específicos e que junto às facilidades tecnológicas, podemos estar abrindo mão de importantes garantias. O controle das informações pessoais é apenas uma delas.

Eduardo Magrani é professor e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio

Bruna Castanheira é pesquisadora no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio

Louise Marie Hurel é assistente de pesquisa no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio

22/01/2016 às 05h00

Fique preocupado, muito preocupadoPor Alexandre Rodrigues | Para o Valor, de São Paulo

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A androide Junko Chihira, criada pela Toshiba para dar informações a turistas no Japão: em 2025, robôs e softwares terão eliminado metade das vagas dos humanos, dizem especialistas da área

Os empregos se foram. A sociedade se divide entre um pequeno grupo de engenheiros e gerentes, a elite que comanda os softwares e robôs responsáveis por todo o trabalho antes destinado à força humana, e uma legião de lixeiros e policiais, as únicas oportunidades de trabalho que sobraram para a imensa maioria de desempregados, que vive em uma versão degradada de Nova York. Distopia sobre a automação, o cenário - pano de fundo de "Revolução no Futuro", romance de 1952 do americano Kurt Vonnegut (1922-2007) - soa profético diante de estudos e debates acadêmicos atuais.

Nesta semana, durante o Fórum Econômico Mundial, encontro anual de Davos, nos Alpes suíços, foi apontado que a quarta revolução industrial - inteligência artificial, robótica, impressão 3D, nanotecnologia e outras tecnologias -, de fato, pode resultar em perda de cinco milhões de empregos nos próximos cinco anos. Os números se referem às 15 grandes economias, incluindo o Brasil.

Com o mote "Fique preocupado. Bem preocupado", os pensadores sobre tecnologia Walter Isaacson, biógrafo de Steve Jobs; o escritor Nicholas Carr; o economista George Magnus; Pipa Malmgren, cocriadora da empresa H Robotics; e Andrew Keen, autor do livro "O Culto do Amador", já haviam dado uma previsão muito mais apocalíptica em debate realizado no ano passado em Londres: em 2025, softwares e robôs terão eliminado metade das vagas que hoje usam intensamente mão de obra, como operadores de telemarketing, corretores, carteiros e jornalistas, ameaçando o mundo com o desemprego de 2 bilhões de pessoas.

A venda de robôs atingiu 255 mil unidades no mundo em 2015, 12% a mais do que no anterior, segundo previsão da pesquisa World Robotics, da Federação Internacional de Robótica (IFR na sigla original). Os dados oficiais ainda não foram divulgados. Até 2018 é esperado um salto nas vendas para 400 mil. A indústria de automóveis e a de eletrônicos são as que mais usam as máquinas, segundo a IFR. A Ásia, em especial China e Coreia do Sul, responde por 60% das vendas. Japão, Estados Unidos e Alemanha completam o grupo.

A grande ameaça ao emprego, no entanto, não está mais na indústria. As máquinas chegaram ao setor de serviços. Não apenas transcrevem e traduzem a fala humana como imitam a maneira como pensamos. Também são capazes de dirigir um carro, escrever pequenas reportagens ou um relatório, pousar um avião, preencher uma declaração do imposto de renda, dar telefonemas e conversar com clientes e trabalhar de maneira autônoma em fábricas, depósitos e ao ar livre. Em cada habilidade aprendida, substituirão milhões de trabalhadores.

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A grande ameaça de softwares e robôs ao emprego de humanos não está mais na indústria. As máquinas já chegaram ao setor de serviços

"Daqui a 20 anos, a procura de trabalho para determinados empregos será consideravelmente menor", alertou Bill Gates, criador da Microsoft e do sistema operacional Windows, em 2014. "A substituição por software, seja para motoristas ou garçons, está progredindo. A tecnologia, ao longo do tempo, vai reduzir a demanda por postos de trabalho, especialmente entre aquelas funções que demandam menos habilidades."

Raramente um fabricante apresentará o impacto do seu produto nos empregos como preponderante. O discurso sempre é de que vai aprimorar o trabalho das pessoas, não eliminá-lo. Na Suíça, por exemplo, "carteiros voadores", drones que fazem entregas, estão sendo testados pelo correio desde julho e nos próximos cinco anos devem começar a substituir os humanos, principalmente nas entregas em vilarejos distantes - nas cidades, ainda é preciso mudar a regulamentação para veículos aéreos. Desde 2013 a Amazon testa nos EUA um sistema que fará um produto ser entregue apenas meia hora depois de comprado. O drone também depende das normas aéreas.

Já o Royal Bank do Canadá está substituindo atendentes de telemarketing pelo supercomputador Watson, da IBM. Conhecido por ter vencido em 2011 um episódio de "Jeopardy", um programa de perguntas e respostas da TV americana, contra dois ex-campeões, roda algoritmos que são o mais próximo de uma tecnologia que processa informação como se fosse um cérebro humano. Pode aprender tarefas, "trabalhar" em serviços de suporte ao cliente e gerenciar a administração de uma faculdade ou a rotina de um hospital.

O impacto dessas novas tecnologias nos próximos dez anos é preocupante, aponta o estudo "O Futuro do desemprego: quão suscetíveis os empregos são à computadorização", de Carl Frey e Michael Osborne, da Universidade de Oxford, na Inglaterra. O trabalho estima que 47% dos empregos, em especial nos EUA, estão em risco. "A razão por que os humanos prevaleceram está ligada à sua habilidade de adquirir novos conhecimentos pela educação", diz Frey. "Mas, à medida que a computadorização entrar em domínios mais cognitivos, isso se tornará cada vez mais desafiador."

Desde o começo da Revolução Industrial o aumento da produtividade sempre causou preocupação com os empregos. Quando inventaram o primeiro tear a vapor, no século XVI, a rainha da Inglaterra, Elizabeth I (1533-1603), recusou a ideia, temendo o desemprego nas tecelagens. No século XVIII, com as máquinas já em atividade, a sabotagem era tão frequente que passou a ser punida com pena de morte.

O economista John Maynard Keynes (1883-1943) atualizou a crítica durante a Grande Depressão, na década de 1930. "Estamos sendo afligidos por uma nova doença da qual ainda não se ouviu falar o nome, mas será importante nos próximos anos", disse Keynes e criou um termo: "desemprego tecnológico".

A modernização, todavia, costuma compensar a perda inicial, recuperando os empregos mais tarde. Aqueles perdidos quando os robôs chegaram às indústrias, nos anos 60, foram absorvidos pelo setor de serviços e a maioria acabava se beneficiando das novas

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tecnologias. De 1950 a 1980, os países ricos e, em parte, alguns em desenvolvimento, como o Brasil, conseguiram combinar o aumento do PIB com baixo desemprego, mais produtividade e crescimento da renda das famílias. Mas com o surgimento dos computadores pessoais, na década 70, e o início da revolução digital a situação começou a mudar. Enquanto as máquinas chegavam aos escritórios, só a produtividade continuou a subir - a renda passou a cair. Atualmente, o salário médio americano é o mais baixo em quatro décadas.

Drone com capacidade de carga de 3 kg leva pacote: empresas como os correios da Suíça e a DHL testam o uso do robô voador para entregas rápidas em regiões distantes das grandes cidades

Com a internet, a partir de 2000, a tecnologia passou a destruir empregos em velocidade maior do que é capaz de criá-los, dizem Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, pesquisadores do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e autores de "A Segunda Era das Máquinas". Nos EUA, apesar da recuperação nos últimos anos, a taxa oficial de 5% de desemprego ainda é mais alta do que no pior momento na maioria das crises desde os anos 50, segundo o Departamento de Trabalho. Trata-se, apontam economistas, de um indício de que o capitalismo se recupera sem criar empregos como antes.

Mesmo em países com baixíssimas taxas de desemprego, como Alemanha e Reino Unido, a renda dos trabalhadores está estagnada há dez anos. E pior: conforme o estudo "A grande reversão na demanda por conhecimentos e tarefas cognitivas", dos canadenses Paul Beaudry, David Green e Benjamin Sand, da Vancouver School of Economics, a procura por trabalhadores especializados também tem caído e está se tornando comum na América do Norte encontrar profissionais qualificados trabalhando como atendentes de lanchonete ou taxistas.

O processo é acelerado pela reindustrialização dos países ricos, principalmente os EUA, depois de décadas de perda de fábricas para a China. Pressionadas após a crise econômica a voltar a produzir em seus países de origem, empresas como as americanas Apple, GE, Ford e Whirlpool reabriram fábricas quase totalmente automatizadas. A fábrica da Philips em Drachten, na Holanda, produz barbeadores elétricos com 126 robôs e apenas algumas dezenas de empregados. Na China, uma unidade semelhante emprega duas mil pessoas.

Mas também os chineses estão mudando. Duas décadas após se tornar a maior linha de montagem do mundo, a mão de obra já não é barata, atrativo que levou fábricas para o país. Os primeiros robôs industriais entraram em operação em 2003. Há agora 30

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empresas na China com produção totalmente automatizada. Cada uma emprega dez vezes menos humanos do que uma fábrica normal.

Diante do cenário, nomes famosos do mundo da tecnologia como Bill Gates, Walter Isaacson, o CEO do Uber, Travis Kalanick, e o próprio Brynjolfsson são otimistas. "Tecnologia pode de fato ser disruptiva", admitiu Isaacson no debate em Londres. "Pode eliminar certos empregos, mas sempre tem produzido mais empregos porque produz mais riquezas, mais ganhos pessoais e mais coisas do que podemos fazer e comprar."

A revolução digital - afirma a maioria das previsões - tem o potencial de fazer por nós o que as máquinas a vapor fizeram dois séculos atrás. Empregos serão perdidos, mas novas indústrias que ainda nem foram imaginadas surgirão. O custo de produtos, a seguir a tendência atual, cairá ainda mais, beneficiando todos. E o momento coincidirá com quedas fortes na natalidade na maior parte do planeta a partir de 2040, segundo o Censo dos Estados Unidos. Há motivo para otimismo no longo prazo, mas não é certo que a transição será tranquila.

"Claro que haverá alguns poucos e brilhantes empreendedores que se tornarão bilionários, mas o que estamos vendo é o desaparecimento do meio", afirma Andrew Keen, um dos críticos mais famosos da cultura digital. A classe média, segundo ele, é a principal prejudicada. São os ocupantes dos empregos nos escritórios e autores de trabalhos intelectuais que vão quase desaparecer. "A parte de baixo ficará bem, a classe média será dizimada e haverá uma nova elite que será capaz de trabalhar com computadores e vai tirar lucros massivos disso."

As condições são diferentes em comparação com a Revolução Industrial, argumentam Keen e outros críticos da maneira como a tecnologia é adotada. "Os empregos que serão criados exigirão conhecimentos muito especializados e altos níveis de educação, o que a maioria das pessoas não tem", comenta Vivek Wadhwa, diretor no Centro de Pesquisas sobre Empreendedorismo e Comercialização na Escola de Engenharia da Universidade de Duke, nos EUA. "Alguns novos empregos certamente serão criados, mas são poucos."

O debate vem esquentando. Estudo da consultoria inglesa Deloitte mostrou que, mais do que destruí-los, a tecnologia foi o grande motor para a criação de empregos no país nos últimos 150 anos. "Máquinas vão ocupar as tarefas mais repetitivas e trabalhosas, mas não parecem mais próximas de eliminar a necessidade de trabalho humano do que nos últimos 150 anos", afirmam seus autores, Ian Stewart, Debapratim De e Alex Cole ao jornal "The Guardian".

No Brasil, este fenômeno pode ser um pouco mais lento. Sua economia, mesmo a indústria, é pouco automatizada. Apesar de ramos como o automobilístico, de aviação e químico usarem máquinas em 100% de algumas etapas e contar com fábricas modernas, o país tem apenas dez mil robôs industriais em operação, segundo a Federação Internacional de Robótica. A Coreia do Sul compra 30 mil novos por ano e a China, 20 mil.

"Ainda temos abundância de mão de obra não qualificada, o que entorpece parte do empresariado", diz o professor José Paulo Zeetano Chahad, do Departamento de

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Economia da FEA-USP. "O setor privado é muito conservador e não quer correr riscos inerentes ao processo de inovação tecnológica. Temos um problema de mentalidade, pois parece ser um pensamento arraigado que 'automação desemprega trabalhadores'".

Mas o que fazer? Bill Gates sugere aos governos investirem na educação para os novos trabalhos. Médicos, paramédicos e enfermeiros estão salvos do desemprego tecnológico. Da mesma maneira as tarefas criativas, algo parecido com a "sociedade pós-industrial" imaginada pelo sociólogo italiano Domenico De Masi, autor de "O Ócio Criativo". Cuidadores de idosos - público que cresce com o envelhecimento da população - e produtores de conteúdo estão entre os trabalhadores do futuro. Assim como engenheiros, designers e arquitetos de tráfego e de 3D, apontam especialistas. Professores podem virar treinadores, mas dificilmente deixarão de existir.

Brynjolfsson, do MIT, diz que a educação deve ser logo redesenhada. "Currículos escolares devem abandonar a memorização de fatos e fórmulas e focar mais em criatividade e comunicação." Defende também o corte de impostos sobre salários e subsídios para encorajar as contratações. É o que já discute a Alemanha, único dos países ricos que não se desindustrializou e tem uma das indústrias mais automatizadas do mundo. Criado em 2012, o projeto Indústria 4.0, coalizão entre governo, empresas, universidades e associações de classe, visa as fábricas inteligentes e a garantia da competitividade local.

Outra saída é a "economia de bicos" ("gig economy" no original), em que pessoas são contratadas para corridas de táxi através de aplicativos como o Uber ou para pequenos serviços domésticos, pelo também americano TaskRabbit. Para Brian Chesky, CEO do Airbnb, plataforma de aluguel de imóveis, em um mundo com menos empregos o modelo ajudará milhões de pessoas, permitindo alguma renda. Mas nos EUA essas empresas têm sido alvo de processos por burlar leis trabalhistas.

"É uma questão central para vários desses novos serviços", diz Rafael Zanatta, do Internet Lab, centro de pesquisas em São Paulo sobre internet e tecnologia. "Nós também teremos ações judiciais e o que pode pautar o debate é que o direito trabalhista brasileiro tem um viés forte de proteção ao trabalhador. Na dúvida, o juiz decide pela parte mais fraca."

Seja como for, ainda que os danos aos empregos tragam um futuro incerto é difícil imaginar uma crise permanente. "O avanço tecnológico sempre cria suas soluções positivas. Caso contrário, a humanidade ainda estaria na idade das cavernas", comenta Chahad, da USP.

21/01/2016 às 05h00

Fórum de Davos faz dois alertas aos emergentes Editorial

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O Fórum Econômico Mundial, encontro anual que reúne nesta semana executivos, acadêmicos, investidores e autoridades econômicas e políticas na cidade de Davos, na Suíça, traz dois recados para os emergentes. Um é conjuntural. O outro, estrutural. E ambos preocupam.

Em primeiro lugar é preciso destacar o pessimismo com relação à economia global, evidenciado na pesquisa com 1.409 CEOs realizada pela PwC e divulgada no Fórum. Segundo o levantamento, a confiança dos principais executivos mundiais está no menor nível em três anos.

Esse pessimismo se acentua em relação aos emergentes, que enfrentam vários choques simultâneos: desaceleração da demanda chinesa, queda nos preços das principais commodities, desvalorização das moedas, a alta dos juros nos EUA, aperto no crédito, fuga de capitais. Além disso, há o risco, ainda difícil de avaliar, de uma desaceleração simultânea nos EUA e na Europa neste ano.

A demanda chinesa não deverá aumentar, e os juros americanos continuarão a subir, de modo que a pressão sobre os emergentes se manterá por um bom tempo ainda.

Esse é o primeiro recado de Davos aos emergentes: a crise possivelmente será mais longa do que muitos hoje estão prevendo.

Essas dificuldades fizeram o FMI reduzir nesta semana as suas estimativas de crescimento da economia mundial para 2016, puxadas para baixo principalmente por conta da freada dos emergentes.

No caso do Brasil, o Fundo se alinhou à faixa mais pessimista das estimativas de mercado, ao prever queda de 3,5% do PIB neste ano e crescimento zero no ano que vem.

Mas o Fórum de Davos propõe também uma análise de mais longo prazo: uma mudança estrutural está em andamento na economia mundial, que seria o início da já chamada Quarta Revolução Industrial.

É complexo definir essa revolução, mas ela aprofundaria elementos da Terceira Revolução, a da informática e TI, e faria uma "fusão de tecnologias, borrando as linhas divisórias entre as esferas físicas, digitais e biológicas", como escreveu Klaus Schwab, o fundador e presidente executivo do Fórum.

Esses avanços, segundo ele, vão da robótica à nano e biotecnologia, da inteligência artificial à computação quântica, do Big Data aos veículos autônomos e novos materiais.

Schwab acredita que essa nova revolução afetará todos os setores da economia e todas as regiões do mundo. Mas não do mesmo modo. Haverá ganhadores e perdedores.

O segundo alerta do Fórum Econômico é que muitos dos emergentes, incluindo o Brasil, poderão estar no rol dos perdedores.

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Essa Quarta Revolução Industrial deverá favorecer os países mais desenvolvidos, que detêm a tecnologia, a capacidade de inovação, a mão de obra qualificada, a cultura de integração, a infraestrutura e o capital necessário para os pesados investimentos.

Favorecerá assim, diz o Fórum, aqueles países que hoje são mais intensos em capital, em detrimento dos que hoje são mais intensos em mão de obra barata, que será aos poucos substituída por sistemas e robôs.

O país mais à frente nesse processo talvez seja a Alemanha, onde governo e empresas já estudam e se preparam para essa transição há anos. Isso pode ser uma das razões que explica a resiliência da economia alemã durante todos esses anos de crise. EUA e China também liderariam esse movimento.

Alguns emergentes mais integrados ou estrategicamente bem posicionados, como México, Turquia e Índia podem também se beneficiar de tais mudanças, diz o Fórum.

Na outra ponta estão outros emergentes de nível tecnológico médio, como Brasil, África do Sul e países do Sudeste Asiático, que tendem a sair perdendo. Correm ainda esse risco alguns países ricos menos preparados, como a Itália.

O Fórum calcula que mais de 7 milhões de empregos podem ser eliminados por conta de inovações tecnológicas até 2020. Basta pensar em táxis, ônibus e veículos de transporte de carga sem motoristas.

Por outro lado, cerca de 2 milhões de novos empregos seriam criados nos setores que se beneficiarão das mudanças tecnológicas, mas principalmente nos países mais avançados.

Crescimento baixo no curto prazo e uma mudança de paradigma econômico global de médio e longo prazos constituem um duplo desafio, difícil de administrar para o mundo emergente. Se isso não ocorrer, alguns emergentes vão se distanciar mais dos países ricos. Parte desse mundo pode submergir.

20/01/2016 às 05h00

Robotização beneficiará países ricos, prevê estudoPor Daniel Rittner e Assis Moreira | De Davos

A crescente robotização, no rastro da quarta revolução industrial, vai beneficiar mais as economias desenvolvidas que os mercados emergentes e reforçar o dólar americano e as economias que usam essa divisa, segundo um estudo do UBS divulgado ontem.

UBS destaca que a quarta revolução industrial, juntando uma série de novas tecnologias, várias delas ainda na infância, incluindo inteligência artificial e drones, terá implicações

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significativas para investidores, para a economia global e para a competitividade dos paises desenvolvidos e emergentes.

As indústrias serão cada vez mais automatizadas, robôs e computadores vão substituir mais atividades humanas. E, entre 45 economias estudadas sobre a competitividade na quarta revolução industrial, os principais ganhadores serão sobretudo países com mercados de trabalho flexíveis e mão de obra qualificada, como Suíça, Cingapura, Holanda, Finlândia e Estados Unidos, enquanto Argentina, Peru, Brasil, México e Índia serão os que terão menos vantagem.

Para o banco, as economias desenvolvidas devem ser os relativos vencedores nesse estágio, enquanto as em desenvolvimento enfrentam maiores desafios, pois a abundância de mão de obra pouco qualificada deixa de ser uma vantagem e se torna um peso.

Esses países apostaram muito na importação de emprego com menos valor agregado, mas não dispõem de infraestrutura, educação ou sistema fiscal necessários para se adaptarem rapidamente.

Esse novo cenário econômico pode também causar uma valorização do dólar, em razão da vantagem competitiva dos EUA com as tecnologias da quarta revolução industrial. Alem disso, a passagem de comércio físico para "virtual" pode ter impacto nos motores de crescimento dos emergentes.

O estudo conclui que países que mantem "peg" (moeda atrelada ao dólar) podem enfrentar pressões competitivas adicionais. Também o custo do serviço da dívida pode aumentar para países e companhias que usaram o período do dinheiro barato nos EUA.

19/01/2016 às 05h00 3

Uma nova revolução industrialPor Enrique Peña Nieto

A atual era de inovação, em que tecnologias de ponta desestruturam setores econômicos inteiros a uma taxa estonteante, foi chamada a Quarta Revolução Industrial. É também tema do encontro anual desta semana do Fórum Econômico Mundial, em Davos - e justificadamente. Nos próximos anos, o alcance e o ritmo da inovação vão transformar a maneira pela qual produzimos, distribuímos e consumimos. Para maximizar os benefícios disso, temos de tomar providências agora para preparar nossas economias e sociedades, com foco em três áreas fundamentais: a educação, o ambiente de negócios e a conectividade. O capital humano é essencial para o sucesso de uma economia, e o México não é exceção a essa regra.

As "Notas de Infraestrutura em Educação", veículos de investimento privado permitiram canalizar aproximadamente US$ 3 bilhões para melhorar instalações das

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escolas primárias nos próximos três anos. Além disso, durante o atual ano escolar 2,3 milhões de alunos do quinto ano fundamental receberam tablets.

No ano passado, mais de 110 mil alunos se formaram em áreas como engenharia, indústria de transformação e construção - número superior ao da maioria dos países desenvolvidos, entre os quais França, Alemanha e Reino Unido.

A economia do país está preparada para o que vem pela frente. Mas ainda é preciso avançar mais. É preciso dotar e garantir que as gerações futuras, também, possam alcançar seu potencial pleno em um mundo que vive em uma transição acelerada

Reconhecendo a importância vital dos laços entre governo, indústria e universidade, foi aumentado o número de escritórios de transferência de tecnologia para sustentar o desenvolvimento de novos produtos e negócios em áreas como biotecnologia, energia e tecnologias da informação.

Ao mesmo tempo foi preciso melhorar o ambiente de negócios e de investimentos e, antes de mais nada, foram dados passos largos em direção à estabilidade macroeconômica. O banco central mexicano adotou uma política monetária independente que garante estabilidade dos preços e inflação baixa; em novembro, a taxa anual de inflação, de 2,21%, foi a mais baixa da história do México. A relação dívida sobre PIB de 2015 deverá ficar em 46,9% - bem abaixo da média latino-americana de 55,6% e deverá se estabilizar em 47,8%.

Uma ampla reforma energética baixou os custos com energia elétrica, eliminou aumentos mensais dos preços da gasolina e expandiu os gasodutos por todo o país, impulsionando a competitividade. As atividades de todo o setor energético estão abertas ao capital privado - uma estratégia que vai atrair todos os anos US$ 12,6 bilhões em investimento. No mesmo sentido, a autorização à participação dos investimentos externos no setor de telecomunicações baixou os preços dos serviços terrestres e celulares, melhorando, ao mesmo tempo, a qualidade e a cobertura.

Pelo fato de micro, pequenas e médias empresas serem as principais propulsoras da economia do México, estamos empregando ferramentas digitais para agilizar e facilitar para os empresários a inauguração de suas próprias empresas, ao mesmo tempo facilitando seu acesso a financiamentos de bancos comerciais.

O terceiro passo fundamental para preparar a economia mexicana para a Quarta Revolução Industrial é a conectividade. O México é um dos poucos países que reconhecem formalmente o direito de seu povo a uma conexão à internet de banda larga. Fora criados 65 mil lugares públicos, como escolas, bibliotecas e praças, com conexões de banda larga. Isso ajudará a alcançar a meta de fornecer serviço de internet de alta velocidade a 70% das famílias e a 85% das micro, pequenas e médias empresas.

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Mas a conectividade não é apenas digital; a infraestrutura física também é vital. O México já é uma potência manufatureira e um dos maiores vendedores mundiais de produtos como aparelhos de TV, veículos, autopeças, computadores e telefones celulares. A melhoria da infraestrutura possibilitará aumentar o valor e a diversidade das indústrias voltadas para a exportação.

Foram canalizados mais de US$ 460 bilhões para a construção e modernização de milhares de quilômetros de estradas e rodovias. Um novo aeroporto internacional na Cidade do México e o desenvolvimento dos portos marítimos praticamente duplicarão a capacidade já instalada no oceano Pacífico e no Golfo do México.

Nos três últimos anos país expandiu a rede de acordos de livre comércio de modo a incluir a Aliança do Pacífico e, mais recentemente, a Parceria Transpacífico. Isso somará um total de 13 acordos de livre comércio, que dão acesso preferencial a 52 países com 1,3 bilhão de consumidores em potencial.

A economia do país está preparada para o que vem pela frente - e está sustentando-as com ações concretas. Mas ainda é preciso avançar mais, é preciso melhorar a conectividade, principalmente nas remotas áreas rurais (que abrigam 9% da população mexicana). É preciso dotar cidadãos e empresas das ferramentas de que necessitam para aproveitar as oportunidades criadas pela Quarta Revolução Industrial, e garantir que as gerações futuras, também, possam alcançar seu potencial pleno em um mundo em transição acelerada. (Tradução de Rachel Warszawski)

Enrique Peña Nieto é presidente do Mexico. Copyright: Project Syndicate, 2016.

19/01/2016 às 05h00

Quarta revolução industrial ameaça milhões de empregosPor Assis Moreira e Daniel Rittner | De Davos (Suíça)

A quarta revolução industrial, que reúne inteligência artificial, robótica, impressão 3D, nanotecnologia e outras tecnologias, deverá provocar perda líquida de cinco milhões de empregos nos próximos cinco anos. Tal perda ocorrerá em 15 grandes economias,

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incluindo o Brasil, avalia o Fórum Econômico Mundial, na antevéspera da abertura do encontro anual de Davos, nos Alpes suíços.

A atenção internacional está focada na deterioração dos mercados financeiros, no impacto da desaceleração na China, na queda do preço do petróleo e no risco de uma nova recessão global. Mas o Fórum escolheu como tema central deste ano "Dominar a Quarta Revolução Industrial". Seus organizadores estimam que, dos desafios que o mundo enfrenta hoje, o mais inquietante, talvez, seja moldar a nova revolução industrial.

Essa nova revolução, unindo mudanças socioeconômicas e demográficas, terá impacto nos modelos de negócios e no mercado do trabalho, afetando todos os setores e regiões geográficas.

Inteligência artificial, robótica, impressão 3D, drones, nanotecnologia, biotecnologia, ciência de materiais, estocagem de dados (big data) e de energia e outras tecnologias ainda nascentes vão unir os mundos físico, digital e biológico e causarão mudanças exponenciais nas economias, sociedades e na maneira de fazer negócios.

Assim, além dos debates sobre conjuntura, o Fórum quer chamar atenção dos líderes para um futuro que causará transformações em todas os setores, marcadas pela emergência de novos modelos de negócios e reformulação da produção, do consumo, do transporte e de entrega (delivery systems).

"As mudanças são tão profundas que, da perspectiva da história humana, nunca houve um tempo de maior promessa ou potencial perigo", escreve Klaus Schwab, presidente do Fórum e autor de um livro sobre o tema. Isso pode trazer soluções para muitos problemas no mundo, mas também riscos para o emprego, ampliação da desigualdade de renda e elevação da "ciberdependência". Administrar essa mudança de paradigma e o processo de transição é considerado essencial para assegurar a estabilidade econômica e social.

Schwab diz que sua preocupação é que autoridades políticas e executivos frequentemente são prisioneiros do pensamento tradicional ou estão muito absorvidos por questões imediatas para pensar estrategicamente sobre as formas da disrupção e inovação que estão modelando o futuro.

Ele nota que a quarta revolução se apoia na terceira, conhecida por revolução digital, e que permitiu a proliferação de computadores e a automação de arquivos de dados. Mas alerta que a nova onda de transformações difere das precedentes por pelo menos três razões.

Primeiro, as inovações nunca foram difundidas tão rapidamente como agora. Segundo, a queda dos custos marginais de produção e o surgimento de plataformas que agregam e concentram a atividade em vários setores elevam a economia de escala. Terceiro, essa revolução afetará todos os países e terá impacto sistêmico em várias áreas.

O consumidor, por exemplo, a cada dia fica mais engajado, transformando-se em "consumi-ator", com novas maneiras de se usar a tecnologia para mudar comportamentos e sistemas de produção.

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Um dos maiores impactos dessa nova revolução industrial será logo sentido no mercado de trabalho. Relatório do Fórum, com base em pesquisa em 15 grandes países desenvolvidos e emergentes, prevê a perda líquida de 7,1 milhões de empregos até 2020, devido a redundância, automação ou desintermediação, afetando principalmente certos empregos administrativos. Essa perda poderá ser parcialmente compensada pela criação de 2,1 milhões de empregos em áreas mais especializadas, como computação, matemática, arquitetura e engenharia, além de mídia e entretenimento.

A expectativa é que trabalhos intelectuais mais repetitivos sejam substituídos pela robotização. Em dez anos, prevê Schwab, o consultor financeiro de um banco será provavelmente um robô equipado de inteligência artificial para aconselhar o cliente a investir.

Reparadores de robôs e lançadores de drones estão entre as profissões de mais futuro, assim como nas áreas de saúde, educação e social, no rastro do envelhecimento da população e aumento de casos de assistência social, como para os refugiados. Também a cultura vai sair ganhando, com aumento da capacidade de inovação e criação de valor que não vai se concentrar apenas no plano tecnológico.

Conforme a pesquisa feita pelo Fórum, a estratégia mais popular nas empresas é investir em melhorar a qualificação dos atuais empregados. Elas também favorecem outras práticas, como apoiar a mobilidade e a rotação no emprego, atraindo mais mulheres e talento estrangeiro e oferecendo aprendizado. As contratações de curto prazo ou empregado virtual são bem menos populares, nas respostas dos executivos.

19/01/2016 às 05h00

Brasil deve sofrer impacto negativoPor Assis Moreira e Daniel Rittner | De Davos

O Brasil figura ao lado de África do Sul, Itália e Sudeste Asiático na lista de países e regiões onde a quarta revolução industrial terá impacto predominantemente negativo no mercado de trabalho. A principal aposta das companhias brasileiras para fazer frente aos desafios tecnológicos têm sido os investimentos na requalificação de seus empregados, segundo relatório divulgado ontem pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

Com base em entrevistas respondidas por chefes das áreas de recursos humanos de grandes empresas, o fórum identificou os setores de energia e tecnologia de informação como aqueles onde pode haver maior encolhimento da mão de obra até 2020 no Brasil, sobretudo em decorrência de inovações promovidas pela nova revolução industrial. Estima-se uma perda líquida de 5% a 6% dos postos de trabalho atuais. O setor de mobilidade, que inclui transportes e logística, tem panorama positivo.

Índia, México, Turquia e os países do Conselho de Cooperação do Golfo - Arábia Saudita, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Kuait e Omã - são apontados como

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potenciais beneficiários das mudanças. Os demais, incluindo Estados Unidos e China, ficam com perspectiva neutra.

Lançado na antevéspera da reunião anual de Davos e intitulado "Futuro dos Empregos", o relatório observa que, em muitos países e indústrias, a maioria das especialidades simplesmente não existia apenas dez anos atrás. E o ritmo das mudanças deve acelerar: 65% das crianças que chegam ao ensino fundamental hoje vão acabar trabalhando com sistemas e processos que ainda não existem.

Por isso, a mensagem do fórum é clara: "As últimas ondas de avanços tecnológicos e mudanças demográficas levaram a mais prosperidade, produtividade e criação de empregos. Isso não significa, porém, que essas transições estão livres de riscos ou dificuldades. Antecipar-se e preparar-se para a transição atual é necessário".

A pesquisa abrange 371 companhias que empregam atualmente 13 milhões de pessoas em nove setores da indústria. O objetivo foi entender, nos 15 países pesquisados, como o pessoal de RH vê as perspectivas de suas empresas nos próximos cinco anos. Três grandes consultorias do setor - Adecco, Manpower e Mercer - ajudaram na metodologia.

18/01/2016 às 08h40 25

Nova revolução industrial vai destruir 5 milhões de empregos até 2020Por Assis Moreira e Daniel Rittner | Valor

DAVOS  -  A quarta revolução industrial, que reúne inteligência artificial, robótica, impressão 3D, nanotecnologia e outras tecnologias, deverá provocar perda líquida de cinco milhões de empregos nos próximos cinco anos. Tal perda ocorrerá em 15 grandes economias, incluindo o Brasil, avalia o Fórum Econômico Mundial, na véspera do encontro anual de Davos, nos Alpes suíços.

A atenção internacional está focada na deterioração dos mercados financeiros, no impacto da desaceleração na China, na queda do preço do petróleo ou no risco de uma nova recessão global. Mas o Fórum escolheu como tema central deste ano “Dominar a Quarta Revolução Industrial”. Seus organizadores estimam que, entre os inumeráveis desafios que o mundo enfrenta hoje, o mais inquietante é, talvez, a maneira de moldar a nova revolução Industrial.

Essa nova revolução, combinando mudanças socioeconômicas e demográficas, terá impacto generalizado nos modelos de negócios e no mercado do trabalho, afetando cada indústria e região geográfica.

Inteligência artificial, robótica, impressão 3D, drones, nanotecnologia, biotecnologia, ciência de materiais, estocagem de dados (Big Data) e de energia e outras tecnologias

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ainda nascentes vão unir os mundos físicos, digitais e biológicos e causar mudanças exponenciais nas economias, sociedades e na maneira de fazer negócios.

Assim, além dos debates sobre a conjuntura, a entidade diz ter projetado um programa para chamar atenção e preparar os decisores para um futuro que causará transformações em todas as indústrias, marcadas pela emergência de novos modelos de negócios e reformulação da produção, consumo, transporte e entregas (“delivery systems”).

“As mudanças são tão profundas que, da perspectiva da história humana, nunca houve um tempo de maior promessa ou potencial perigo”, escreve Klaus Schwab, presidente do Fórum e autor de um livro sobre o tema antecedendo o encontro de Davos. Isso pode trazer soluções para muitos problemas no mundo, como riscos para o emprego, ampliação da desigualdade de renda e elevação da “cyberdependência”. Administrar essa mudança de paradigma e o processo de transição é considerado essencial para assegurar a estabilidade econômica e social.

Schwab diz que sua preocupação é que autoridades políticas e executivos frequentemente são prisioneiros do pensamento tradicional ou estão muito absorvidos por questões imediatas para pensar estrategicamente sobre as formas da disrupção e inovação que estão modelando o futuro.

Ele nota que a quarta revolução se apoia sobre a terceira, igualmente conhecida por revolução digital, e que permitiu proliferar computadores e automação de arquivos de dados. Mas alerta que a nova vaga de transformações difere das precedentes por pelo menos três razões.

Primeiro, as inovações nunca foram difundidas tão rapidamente como agora. Segundo, a baixa dos custos marginais de produção e o surgimento de plataformas que agregam e concentram a atividade em vários setores aumentam os rendimentos de escala. Terceiro, essa revolução mundial vai afetar todos os países e terá impacto sistêmico em numerosas áreas.

O consumidor, por exemplo, se transforma cada dia mais em “consumi-ator”, com novas maneiras de se usar a tecnologia para mudar comportamentos e sistemas de produção.

Um dos maiores impactos dessa nova revolução industrial será logo sentida no mercado de trabalho. Relatório preparado pelo Fórum, com base em pesquisa em 15 grandes economias desenvolvidas e emergentes, prevê a perda líquida de 7,1 milhões de empregos até 2020, por causa de redundância, automação ou desintermediação, afetando principalmente certos empregos administrativos. Essa perda poderá ser parcialmente compensada pela criação de 2,1 milhões de empregos em áreas mais especializadas como computação, matemática, arquitetura e engenharia, e também nas áreas de mídia e entretenimento.

A expectativa é que trabalhos intelectuais mais repetitivos poderão ser substituídos pela robotização. Schwab acredita que, dentro de 10 anos, o consultor financeiro de um banco será provavelmente um robô equipado de inteligência artificial para aconselhar o cliente a investir.

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Reparadores de robôs, expedidores de drones estão entre as profissões de mais futuro, assim como nas áreas de saúde, educação e social no rastro do envelhecimento da população e aumento de casos sociais, como os refugiados. Também a cultura vai sair ganhando, com aumento da capacidade de inovação e criação de valor que não vai se concentrar apenas no plano tecnológico.

Conforme pesquisa feita pelo Fórum, a estratégia mais popular nas indústrias é investir em melhorar a qualificação dos atuais empregados. Também favorecem outras práticas, como apoiar a mobilidade e a rotação no emprego, atraindo mais mulheres e talento estrangeiro e oferecendo aprendizado. As contratações de curto prazo ou empregado virtual são bem menos populares, nas respostas dos executivos.

19/08/2015 às 05h00

Indústria alemã quer protagonizar a revolução 4.0Por Francisco Góes | De Amberg

A Alemanha, cuja chanceler Angela Merkel chega hoje ao Brasil, vem impulsionando a chamada indústria 4.0. O conceito define a indústria do futuro em que fábricas "inteligentes" usam a informação e tecnologias de comunicação para digitalizar processos. Nesse ambiente, produtos na linha de montagem se comunicam via códigos com as máquinas e todos os processos são controlados via tecnologia da informação (TI). Como resultado, as fábricas podem obter ganhos de eficiência, de melhoria da qualidade e de redução de custos. Em fevereiro, Angela Merkel visitou a fábrica da também alemã Siemens em Amberg, na Bavaria, tida como uma das plantas industriais mais modernas da Europa.

"Eu vim aqui [até Amberg] dar uma olhada na produção industrial do futuro", disse Angela Merkel na ocasião. A unidade da Siemens em Amberg, na cidade homônima, fabrica produtos que são usados para controlar e automatizar outras plantas nos mais variados setores da economia, em especial no segmento industrial, como indústria automotiva, siderúrgica, alimentação e petróleo e gás, entre outras. Mas a automação se estende também a outros setores, como o de mobilidade e de turismo, por exemplo, que podem aplicar a automação para controlar sistemas de teleféricos ou sistemas a bordo de cruzeiros marítimos.

Na visita de Merkel, o presidente mundial da Siemens, Joe Kaeser, afirmou que Amberg é a melhor prova de que alta tecnologia e inovações de ponta podem assegurar de forma sustentável a posição da Alemanha como plataforma industrial a longo prazo. A indústria 4.0 vem sendo vista como a quarta revolução industrial. A primeira foi a introdução da produção mecanizada nas fábricas com a ajuda da água e do vapor. O primeiro tear mecânico data de 1784. A segunda revolução industrial se deu com a produção em massa apoiada na energia elétrica. Há registro de uma primeira linha de abate em um matadouro em Cincinnati, nos Estados Unidos, em 1870. A terceira

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revolução se apoiou no uso da eletrônica e de sistemas de TI que automatizaram mais a produção, a partir do fim da década de 1960, com os primeiros controles lógicos programáveis (PLC, na sigla em inglês).

Agora a Alemanha vem impulsionando a ideia da quarta revolução industrial, apoiada nas fábricas "inteligentes" ou "digitais" em que os produtos na planta controlam sua própria montagem comunicando-se com as máquinas na linha de produção por meio de um código de produto. Essa característica permite dar maior flexibilidade à produção, atendendo demandas específicas dos clientes. Para a Siemens, no futuro as fábricas serão mais flexíveis em fazer produtos diferentes e assegurar maior eficiência. "A indústria alemã tem a oportunidade de moldar ativamente a quarta revolução industrial", diz o Ministério da Educação e Pesquisa da Alemanha sobre a indústria 4.0. Segundo o ministério, foram disponibilizados € 200 milhões para financiar o projeto da indústria 4.0 no país.

Amberg é um exemplo de fábrica do futuro. A unidade produz o sistema de automação Simatic PLC, oferecido aos clientes mas também usado para controlar a própria fábrica da Siemens. Gunter Beitinger, vice-presidente de manufatura da divisão de fábrica digital da Siemens, disse que Amberg tem 60 mil clientes. Em um ciclo curto, de 24 horas, produtos desses clientes são produzidos e ficam disponíveis para entrega.

A fábrica produz uma gama variada de configurações de produtos, os quais são usados para controlar máquinas e equipamentos e automatizar o processo de manufatura, economizando tempo e dinheiro. A automação na fábrica da Siemens em Amberg chega a 75%. E 25% do trabalho são feitos pelo homem. São 1,2 mil empregados.

Julio Gomes de Almeida, professor da Unicamp, diz que o Brasil ainda está em uma fase anterior à da Alemanha no que se refere ao processo industrial. "Estamos em fase em que nossa indústria precisa ser reconstituída." Ele avalia que o Brasil tem grau de automação em sua indústria, mas para ampliar seu uso é preciso uma reforma tributária, redução de custos de infraestrutura e mecanismos para premiar as empresas que modernizarem o maquinário.

18/05/2015 às 05h00

Indústria inteligente, a nova revoluçãoPor Federico Tagliani

A implantação de Sistemas Inteligentes de Fabricação desenha os contornos da transformação no setor industrial mais avançado no mundo. Por definição, "Smart Manufacturing" (SM) é a integração de dados e informações baseadas em rede que fornece a compreensão em tempo real, o raciocínio, planejamento e gestão de todos os aspectos de uma produção e cadeia de suprimentos da empresa.

A SM é facilitada pelo uso de avançadas ferramentas de análise de dados baseadas em sensores, modelagem e simulação em tempo real, nas quais todas as informações ficam

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disponíveis quando, onde e na forma que são necessárias ou mais úteis - infundindo fabricação de inteligência em todo o ciclo de vida do projeto, engenharia, planejamento e produção.

Na Alemanha, é chamado de Indústria 4.0. Refere-se a uma quarta Revolução Industrial. A primeira, no final do século XVIII com a máquina a vapor e a mecanização dos processos de fabricação. A segunda, ativada pela disponibilidade de energia elétrica e a produção em massa, com a Ford e seu Modelo T como arquétipo. Por volta de 1970, uma terceira revolução apareceu com a crescente automação de fábricas empurrada por eletrônica e tecnologia da informação.

A Internet das Coisas (IoT) e o Big Data chegaram à manufatura. Segundo pesquisa elaborada pela McKinsey, a IoT baterá US$ 6 trilhões em valor econômico anual já em 2025, um terço vindo de setores industriais. É o equivalente a quase 10% do PIB mundial de 2013

A Indústria 4.0, nesta sequência, é a próxima fase revolucionária na área de manufatura. Cria indústrias inteligentes que fabricam produtos inteligentes, baseados em sistemas de cyber-física (CPS), a colaboração de elementos computacionais que controlam processos físicos. Podem ser aplicados às áreas mais diversas, como aeroespacial, automotivo, química, infraestrutura civil, energia, saúde, manufatura, transporte, entretenimento e produtos de consumo.

Neste contexto, CPS é um sistema de engenharia que combina a complexa integração dos processos físicos, computacionais, de comunicação e redes. Pode ser visto como um objeto físico (dispositivo, equipamento, sensor, máquina, etc) representado no ciberespaço como um modelo virtual. Com capacidades de rede, o modelo virtual pode monitorar e controlar os seus aspectos físicos, ao mesmo tempo que os objetos/dispositivos enviam dados para atualizar e melhorar o modelo virtual.

Aplicações analíticas com capacidades de previsão em tempo real são utilizadas para manter os modelos virtuais. As novas aplicações analíticas avançadas podem processar bilhões de dados gerados a partir de todos os objetos em rede, conectados por dispositivos, sensores etc.

O que estamos falando é basicamente sobre a aplicação da Internet das Coisas (IoT) e Big Data na manufatura. De acordo com uma pesquisa elaborada pela McKinsey, a IoT baterá US$ 6 trilhões em valor econômico anual já em 2025, um terço vindo de setores industriais. Grandes números correm o risco de perder a real dimensão, mas considerando que é equivalente a quase 10% do PIB mundial de 2013 são, sim, astronômicos.

Definitivamente a tendência não passa despercebida aos governos das principais economias mundiais. O governo dos EUA lançou vários planos orientados à modernização do seu setor produtivo, incluindo a criação de institutos de inovação em todo o país. Destacam-se a fabricação aditiva (Impressão 3D) em Ohio, "Low Power Semiconductor Manufacturing" na Carolina do Norte, e de produção digital e "Design Innovation" (DMDI) e Materiais leves em Michigan.

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Os planos foram antecedidos pelo lançamento, em 2013, do Desafio da Manufatura Inteligente, uma iniciativa colaborativa para promover o uso do CPS / IoT no setor industrial. A Internet das coisas é uma revolução tecnológica que representa o futuro da computação e da comunicação, cujo desenvolvimento depende da inovação técnica em campos como os sensores wireless e a nanotecnologia, para ligar os objetos e aparelhos do dia-a-dia a grandes bases de dados e a redes, como a internet.

Na Alemanha, a Indústria 4.0 é uma iniciativa nacional. Lançada na Feira de Hannover em 2013, capturou a atenção de diversos segmentos da manufatura global. O governo criou um plano baseado em CPS para lançar as bases da próxima fase de fabricação, para empurrar a nova Revolução Industrial. Ainda vai demandar enorme quantidade de pesquisas, a maioria dirigida à tecnologia básica, incluindo protocolos, padrões, metodologias e novas ferramentas.

Em quanto tempo teremos a Indústria 4.0 como realidade? As primeiras projeções indicam dez anos para ver os primeiros sistemas reais em funcionamento. A partir daí, a Indústria 4.0 irá utilizar as tecnologias que já estão sendo amplamente utilizadas em ambientes de comércio todos os dias. E a América Latina? Mais uma vez é retardatária na revolução global.

Ainda debate se o setor de fabricação tem que ser orientado por políticas afirmativas ou tem que desenvolver-se livremente sob as regras do mercado livre. Muitos países latino-americanos tentam lidar com efeitos transitórios em torno das taxas de câmbio e de proteção do mercado, em vez de resolver as causas estruturais da competitividade de longa data.

Um bom exemplo desta defasagem em automação está no baixo uso da robótica (por 10 mil trabalhadores) no piso de fábrica - enquanto nos países desenvolvidos é de 60, no Brasil é de apenas oito. Um bom movimento, ainda na primeira fase de conceituação, são as discussões em torno de agências gerais de inovação em um par de países da América Latina, que poderiam injetar os fundos e coordenação necessários para apanhar essa transformação global.

No fundo, a América Latina ainda não tem definido o nome do jogo... mas o jogo já começou.

Federico Tagliani é vice-presidente do grupo ASSA.

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20/01/2012 às 00h00 11

Os novos limites do possívelPor André Lara Resende | Para o Valor, de São Paulo

A crise financeira mundial já vai completar quatro anos, mas ainda não dá sinais de que esteja por se esgotar. Pelo contrário, parece não haver economia no mundo, das mais pobres às mais avançadas, que esteja imune ao seu agravamento. O paralelo com a Grande Depressão do século XX é cada vez mais frequente entre os analistas. Acreditava-se que o antídoto para crises destas proporções havia sido descoberto, mas no mundo de hoje existem novas restrições que podem inviabilizar as saídas conhecidas.

A analogia assusta, não apenas pela duração e pela profundidade da Depressão, mas, sobretudo, pelas consequências. A crise de 30 encerrou um período de internacionalização e de prosperidade mundial. Exacerbou o nacionalismo, o protecionismo e a xenofobia que levou ao fascismo, ao nacional-socialismo nazista e, finalmente, às tensões que desembocaram na Segunda Grande Mundial.

Assim como no início dos anos 30, com o fim da Primeira Guerra a exaustão de um longo ciclo de prosperidade deixou um legado de endividamento público e privado de difícil digestão. Como nos anos 30, temos hoje o esgotamento do padrão monetário estabelecido e uma potência hegemônica em crise, prestes a ser superada por uma nova estrela econômica e militar.

Neste início do século XXI, a insistência na saída keynesiana da retomada do crescimento pode ser uma ortodoxia anacrônica

Ainda nos anos 30, John Maynard Keynes estabeleceu as bases conceituais de um fecundo debate sobre as causas, as consequências e as políticas necessárias para evitar a repetição de uma experiência tão traumática. Mais surpreendente ainda do que as semelhanças objetivas é constatar que o debate hoje continua pautado pela mesma polarização dos anos 30: de um lado, o fiscalismo e a ortodoxia monetária; do outro, a defesa da retomada do crescimento, através dos gastos públicos e de novos estímulos ao consumo.

Em "Lords of Finance", publicado em 2009, Liaquat Ahamed retoma as circunstâncias, os personagens e as ideias do tumultuado período entre as duas Grandes Guerras do século XX. A partir de cuidadoso trabalho de pesquisa, com acesso aos arquivos

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privados de quatro personagens cruciais, os presidentes dos Bancos Centrais da Inglaterra, dos Estados Unidos, da França e da Alemanha, Ahamed mantém o leitor fascinado com o desenrolar de uma crise que pautou o século XX dali em diante. Não há como escapar à sensação de calafrios com as similaridades deste início de século.

Recomendo enfaticamente o livro de Ahamed, mas, apesar das semelhanças, o mundo de hoje é outro. Para compreender, avaliar alternativas e traçar políticas, a história é fundamental, mas não se pode desconsiderar a especificidade das circunstâncias. Tenho a impressão de que, nas condições de hoje, o remédio keynesiano deixou de fazer sentido.

Sabemos que esta crise é decorrente do estouro da bolha de preços de ativos, principalmente dos imóveis, provocada pelo excesso de endividamento. Bolhas são altas de preços induzidas pela disponibilidade de crédito. A partir de certo ponto, perdem relação com os fundamentos e passam a ser alimentadas exclusivamente pela expectativa de renovada alta dos preços. Embora devesse ser evidente que são insustentáveis, nunca faltam explicações para por que desta vez é diferente. Bolhas são boas enquanto duram. Todos ganham, até o choque com a realidade. Os fundamentos da psicologia de manada, que levam os mercados a se afastarem da racionalidade, são bem conhecidos, mas sistematicamente esquecidos a cada nova bolha. Não é difícil compreender a dificuldade enfrentada pelos que se aventuram a questioná-las. Nada mais aborrecido do que profetas do apocalipse a proclamar que o fim do mundo está próximo, enquanto todos ganham.

Em plena crise, logo após o estouro da bolha, um "cartoon" americano dizia: "País viciado em bolhas busca desesperadamente uma nova bolha para investir". Cômico, porque profundamente verdadeiro. As economias modernas, desde a Revolução Industrial, estão organizadas para crescer e produzir mais. Quando não crescem é por que algo está errado. Para que a produção cresça é preciso que a demanda também cresça. A insuficiência de demanda, o risco de que a falta de demanda interrompa o crescimento é a ameaça subjacente, sempre presente nas modernas economias de mercado.

A alavancagem excessiva, o abuso do crédito, é provavelmente a forma mais evidente de turbinar a demanda. Quase todas as políticas teoricamente questionáveis, mas que resistem, no tempo e em toda parte, ao ataque da racionalidade, podem ser entendidas como tentativas veladas de estimular a demanda. O viés mercantilista exportador, a defesa tarifária do mercado interno, subsídios às exportações também são exemplos de sustentação artificial da demanda.

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Ao demonstrar que o gasto público, mesmo quando contratado para abrir e fechar buracos, serviria como motor de arranque para a economia devastada pela recessão, o talento de Keynes encontrou a fórmula para a retomada do crescimento. O gasto público como forma de sustentar a demanda foi a peça-chave da macroeconomia keynesiana, quase hegemônica, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, até o fim dos anos 60. Infelizmente, serviu também para justificar a insaciável vontade de gastar dos governos, ainda que nos momentos mais inoportunos. Nos Estados Unidos, os limites da sustentação artificial da demanda através do gasto público apareceram com o surto inflacionário do início dos anos 70. Nos países menos afeitos à disciplina fiscal, como os da América Latina, mais propensos a juntar a fome (da demagogia) com a vontade de comer (do keynesianismo), as consequências inflacionárias surgiram mais cedo, desde meados dos anos 50.

Como não nos preparamos para uma economia estacionária, seremos obrigados a enfrentar uma parada traumática

O contraponto teórico ao keynesianismo simplório do pós-guerra surgiu do debate acadêmico suscitado pela ameaça da inflação, nos anos 70 e 80. A chamada síntese da Curva de Phillips Expandida, em que o efeito das expectativas de inflação foi incorporado, demonstrava os limites dos gastos públicos como estimuladores da demanda e indutores do crescimento e do emprego. Além da lição keynesiana, do estímulo à demanda para sustentar o crescimento, a formulação de políticas macroeconômicas incorporou a lição monetarista, o uso da taxa de juros para conter os excessos inflacionários. O resultado foi tão positivo que levou à impressão de que nada mais havia a ser entendido em termos de macroeconomia. Tinha-se chegado à síntese teórica que abrira o caminho para a "Grande Moderação", uma nova era, sem recessão nem inflação. Nada mais havia a ser compreendido em termos de condução macroeconômica. Até mesmo o estudo da macroeconomia chegou a ser considerado ultrapassado.

Em grandes linhas, a crise de 2008 está agora em sua quarta fase. Primeiro, houve o estouro da bolha de preços dos ativos, principalmente, mas não exclusivamente, dos imóveis. Na segunda fase, a mais aguda, o sistema financeiro quebrou. Na terceira fase, para evitar o colapso do sistema financeiro, os governos intervieram e assumiram grande parte das dívidas privadas. Agora, na quarta fase, depois de assumir o excesso de dívida privada, os governos estão eles próprios excessivamente endividados.

Até a terceira fase, o processo foi mais ou menos equivalente em todas as economias avançadas. A maneira como as dívidas privadas foram transferidas para o setor público foi, entretanto, diferente nos Estados Unidos e na União Europeia. Enquanto nos Estados Unidos parte significativa das dívidas privadas passou para o Federal Reserve (Fed), na Europa, a ortodoxia do Banco Central (BCE) exigiu que a dívida privada fosse assumida diretamente pelos governos. O trauma da Alemanha, com a hiperinflação pela qual passou nos anos 30, engessou o mandato do BCE, até hoje sem autorização para inchar seu ativo com o excesso de dívida privada. Já o Fed, dirigido por um macroeconomista estudioso dos anos 30, foi agressivo na sua disposição de assumir as dívidas privadas problemáticas.

Há efetivamente uma diferença filosófica, mas a reação audaciosa do Fed seria muito mais perigosa, não fossem os Estados Unidos os emissores da moeda-reserva mundial.

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A transferência de dívidas privadas diretamente para o governo eleva a dívida pública. Se parte dessa transferência pode ser feita para o balanço do Banco Central, há uma monetização sem contrapartida imediata na dívida pública. A dívida privada que vai para o balanço do Banco Central é monetizada. O espaço para monetizar dívidas, sem pressões inflacionárias imediatas, é muito maior para o emissor da moeda-reserva mundial.

As implicações, como era de se esperar, foram distintas. Nos Estados Unidos, a dívida pública aumentou, mas, por enquanto, a grande preocupação é com o risco de que o excesso de emissão de moeda possa vir a provocar a perda de confiança no dólar. Enquanto a economia americana continuar com excesso de capacidade, a inflação não deverá reaparecer. O risco de uma brusca desvalorização do dólar, pela perda de confiança internacional, poderia ser grande, não fosse a absoluta falta de alternativas. Ao menos a curto prazo, não há substituto à vista. O principal candidato, o euro, sofre as consequências da inoportuna ortodoxia do Banco Central Europeu.

O período de transição será longo, duro e conturbado. A reorganização da economia será compulsória e profunda

Em princípio, o fato de o BCE estar impedido de monetizar parte da dívida privada transferida para o setor público deveria fortalecer o euro. O resultado, entretanto, foi o inverso. A ortodoxia do BCE levou o endividamento público em vários países a níveis percebidos como insustentáveis. É verdade que nos periféricos, principalmente Grécia e Portugal, a situação já era insustentável. A crise só explicitou o problema. O endividamento público dos países europeus, agora até mesmo nos países centrais - como a Itália e a França - atingiu níveis em que seu financiamento se torna problemático.

Por enquanto, a União Europeia como um todo continua com um nível tolerável de dívida consolidada. A solução, um orçamento fiscal europeu, supranacional, encontra forte resistência política, principalmente por parte da Alemanha. A consolidação fiscal, através da criação de uma federação europeia, deveria ter acompanhado, desde o início, a união monetária. Foram justamente as resistências a essa consolidação fiscal que levaram à decisão precipitada de adotar a moeda única, na esperança de que seu sucesso criasse as condições políticas para viabilizá-la. Hoje, até mesmo a união monetária está em xeque.

Enquanto a Europa corre risco de desintegrar-se, a economia americana, apesar de alguns recentes sinais positivos, continua praticamente estagnada. Uma recessão de grandes proporções, equivalente à dos anos 30, foi evitada, mas o crescimento não voltou e o desemprego continua alto. Apesar da agressiva monetização do Fed, a dívida pública também se aproxima do limite tolerável. De todo modo, nos Estados Unidos a atuação do Fed permitiu que se ganhasse tempo. O tempo sempre foi um precioso aliado em economia.

ó existem três formas de eliminar o excesso de endividamento. A primeira é uma recessão suficientemente profunda para quebrar devedores e credores e zerar a pedra. Foi o que ocorreu nos 30. Os custos, como aprendemos, são inaceitáveis. A segunda é a monetização das dívidas. Ganha-se tempo, enquanto a inflação reduz o valor real das dívidas, mas há risco de perda de controle. Como no caso da Alemanha dos anos 30, o

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resultado pode ser uma hiperinflação, ainda mais devastadora do que a pior das recessões. A terceira é a retomada do crescimento.

Como depressão e inflação têm custos inaceitáveis, só a retomada do crescimento é solução, pois reduz o tamanho relativo das dívidas. O crescimento é o único remédio, mas, diante do endividamento excessivo, como ensinou Keynes, sua retomada depende do estímulo artificial à demanda, via aumento do gasto e do endividamento públicos. Nada mais revelador do círculo vicioso de nossa condição do que a imagem do viciado em busca de uma nova bolha para investir.

É bem possível que hoje, 80 anos depois, o remédio keynesiano não possa mais ser aplicado. Neste início de século XXI, a insistência na saída keynesiana da retomada do crescimento pode ser uma ortodoxia anacrônica, assim como era a defesa do padrão ouro no início do século XX.

Para compreender por quê, "The Great Disruption", livro de Paul Gilding, que acaba de ser publicado, é leitura obrigatória. Guilding é hoje professor do Programa para a Sustentabilidade da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Tem um longo histórico, a vida toda dedicada ao tema. Foi chefe do Greenpeace Internacional, empresário de sucesso e consultor, tanto de pequenas comunidades, como de grandes empresas internacionais. Seu ponto de partida é o fato de que já passamos dos limites físicos do planeta.

Peço uma trégua na impaciência dos que são imediatamente tomados de um misto de tédio e irritação ao pressentir a possibilidade de se defrontarem com mais uma catilinária sobre a defesa do ambiente. Certo, ouço-os dizer, estamos convictos da importância da questão ecológica, mas, diante de uma crise que ameaça transformar-se numa depressão mundial, não é hora de falar de sustentabilidade. Grave engano. Se o remédio do crescimento não estiver mais disponível, é imperativo abrir novos horizontes.

Gilding argumenta que passamos do limite físico do planeta. As evidências são hoje um consenso na comunidade científica. Apesar da vida de ativista, Gilding é a antítese do radical rancoroso. Seu livro faz a melhor exposição organizada, inteligente e ponderada, da evolução das pesquisas, da consciência ecológica e do estágio a que chegamos. Qualidades que em nada aliviam o impacto depressivo do tema. Gilding é, contudo, surpreendentemente otimista na capacidade de adaptação e de superação da humanidade. Não antes de enfrentar uma crise sem precedentes.

Em 2005, num seminário para empresários e executivos na Universidade de Cambridge, Gilding fez uma tentativa de descrever como seria essa crise. Argumentou que os limites ecológicos terão, antes de mais nada, um impacto profundamente desorganizador na economia. A reação e o grau de engajamento da plateia na discussão foi completamente diferente. Enquanto o argumento é sobre a arrogância humana, seu desrespeito pela natureza, a destruição do sistema ecológico e até mesmo o possível fim da humanidade como a conhecemos, a plateia comove-se, mas vai para casa sem que nada mude. Deprimente, distante e aparentemente não há nada que se possa fazer. Melhor esquecer. Mas se, antes de desaparecermos todos, ou quase todos, da face da Terra, tivermos que enfrentar décadas de uma crise econômica de grandes proporções, aí a coisa muda. A ameaça torna-se concreta.

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A tese de Gilding é de que a economia mundial será obrigada a parar de crescer. Como não houve uma transição antecipada, como não nos preparamos para uma economia estacionária, seremos obrigados a enfrentar uma parada brusca, profundamente traumática. O momento da tomada de consciência do fim do crescimento e da necessidade de uma profunda reorganização da economia não está longe. Questão de, no máximo, mais uma década. Como é sempre o caso com previsões, é mais fácil acertar a direção do que o momento no tempo. Gilding tem consciência disso e não pretende ser preciso no "timing".

Gilding passou a trabalhar em simulações dessa parada brusca da economia mundial com um colega da Universidade de Cambridge. Jorgen Randers fazia seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), no início dos anos 70, quando participou do trabalho pioneiro, "The Limits to Growth", estudo encomendado por um grupo de notáveis, reunidos no chamado Clube de Roma. O relatório foi duramente criticado. À época, dois brasileiros, membros do Clube de Roma, Hélio Jaguaribe e Israel Klabin, chamaram minha atenção para o relatório. Como estudante de economia, considerei-o trabalho típico de engenheiros, em que faltavam preços. Sem preços, qualquer simulação de longo prazo é explosiva. É o sistema de preços que age como sinalizador das decisões e influencia as opções de tecnologias, de investimentos, de oferta e de demanda, para garantir o equilíbrio sistêmico.

Uma avaliação, feita em 2008 por Graham Turner, "A Comparison of The Limits to Growth with Thirty Years of Reality", mostra que as conclusões do relatório foram impressionantemente precisas, tanto em termos conceituais como quantitativos. A supressão dos preços não fez diferença, pois o uso do ecossistema não é precificável sem o arcabouço institucional adequado. Trata-se de mais um caso de "falha de mercados". Apenas mais dramático. O caso dos "bens públicos" - bens para os quais não há custo para o consumo individual, mas há um custo coletivo - é o exemplo clássico da falha de mercados.

Diante da falha do sistema de preços e da incapacidade de tomarmos medidas preventivas, chegamos ao limite sistêmico. As múltiplas dimensões desse limite estão todas interligadas. Ao romper-se uma delas, o processo se acelera e aumenta a probabilidade de que outras também venham a ser rompidas. Atingimos o limite físico do planeta. Para evitar uma catástrofe de grandes proporções, seremos obrigados a tomar medidas de emergência, extremamente duras, como o estabelecimento de cotas. Quando falha o sistema de preços, alguma forma de racionamento se torna imperativa. Seremos obrigados a reconhecer o que, apesar das evidências, nos recusamos a ver: não há como viabilizar sete bilhões de pessoas, com o padrão de consumo e as aspirações do mundo contemporâneo, nos limites físicos da Terra.

O período de transição será longo, duro e conturbado. A reorganização da economia será compulsória e profunda. Indústrias inteiras vão desaparecer. As de carvão, petróleo e gás, muito antes do fim das reservas conhecidas, serão as primeiras. A Idade da Pedra também não acabou por falta de pedras.

O otimismo de Gilding é quanto ao resultado final desse processo. O fim do autoengano, o reconhecimento dos limites do possível, provocará extraordinárias inovações tecnológicas. Uma nova referência do que significa melhorar de vida viabilizará, permanentemente, um número muito superior de pessoas na Terra. Uma

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população 40 vezes superior à de todos os tempos, até o início da Revolução Industrial, só será possível, entretanto, com o fim do crescimento econômico como o conhecemos. O crescimento baseado na expansão do consumo de bens materiais está no seu capítulo final.

É difícil contestar a lógica e as evidências. Pode-se discutir o "timing", mas não há mais como pretender que a economia mundial poderá continuar a crescer. Sem crescimento, como vimos, não há como digerir o excesso de endividamento que hoje paralisa as economias dos países mais avançados. O crescimento das economias periféricas, liderado pela China, é a esperança de que o excesso de endividamento das economias centrais possa ser digerido, mas o crescimento recente da China tem todas as características de mais uma bolha. A eventual parada súbita da economia chinesa seria a pá de cal na esperança de uma saída harmoniosa para o impasse em que a economia mundial se encontra.

A crise de 2008, que insiste em não terminar, pode não ser apenas mais uma crise cíclica das economias modernas, sempre ameaçadas pela insuficiência de demanda. É possível que o prazo de validade do remédio keynesiano tenha se esgotado. Não há mais como contar com o crescimento da demanda de bens materiais para crescer. O crescimento pode não ser mais a opção de saída para a crise.

Em momento nenhum, entretanto, essa possibilidade é examinada no desenho das alternativas. O limite físico do ecossistema pode ter sido atingido, ou estar muito próximo, mas o mecanismo psicológico de autoengano, de negação dos fatos, segue inabalável. O otimismo de Gilding quanto ao longo prazo é reconfortante, mas o fim do crescimento exige uma nova abordagem para a superação de uma crise que, tudo indica, será longa. Infelizmente, não há ainda nem sinal de que esta nova abordagem esteja em gestação.

André Lara Resende é economista.

05/01/2012 às 00h00

Novos processos tentam resolver dilemas da produçãoPor Peter Marsh | Financial Times, de Londres

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Protótipo de edifícios em carbono e fibra de vidro feito sob impressão 3D

A ligação entre a beleza etérea de Veneza e as certezas inflexíveis do sistema de produção industrial pode não parecer nada óbvia. Mas as conexões começam bem no centro dessa cidade que fica numa ilha - em uma série de edifícios guardados por um par de leões de pedra, a poucos minutos de caminhada da Piazza San Marco.

Assim como muitas outras instalações industriais antigas, o Arsenal de Veneza é hoje usado principalmente como centro cultural. Mas foi ali, há mais de 500 anos, que a indústria moderna nasceu. O estaleiro foi o primeiro usuário significativo da produção de peças padronizadas - 16 mil pessoas trabalhavam no local em 1500, cuidando de tudo, de armas de fogo a grandes navios de madeira, alguns dos quais eram produzidos em questão de dias.

As peças padronizadas são uma das influências mais importantes por trás do desenvolvimento do sistema industrial do século XXI. O processo torna possível a produção de 1 bilhão de artefatos que sustentam e melhoram a vida humana, e emprega cerca de 10% da população mundial ativa.

Mas os fabricantes sempre enfrentaram um problema: como fazer itens novos e complicados, de maneira correta, em pequenas quantidades. A dificuldade sempre foi acomodar os objetivos opostos de velocidade e eficiência de um lado, e flexibilidade e variedade do outro.

Com a impressão tridimensional, máquinas produzem formatos complexos a partir de plástico e metal

O surgimento da "produção personalizada" promete resolver essa contradição. Usando projetos computadorizados, técnicas como a impressão tridimensional vão possibilitar a empresas baseadas em Birmingham ou Belize fabricar peças complicadas para produtos que vão de empilhadeiras a foguetes espaciais, que poderão ser montadas em praticamente qualquer lugar. As opções de escolha do cliente em relação à aparência dos artefatos vão aumentar, com apenas um comprometimento mínimo da qualidade ou do custo.

Esse acontecimento coloca o mundo no limiar da quinta era da produção industrial: a da "personalização em massa". Sob as impressões 3D - também chamadas de "produção aditiva" - máquinas baseadas nos avanços da eletrônica, tecnologia a laser e química produzem formatos complexos a partir de plásticos granulados ou metal.

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"Ela contribui para uma nova indústria que vai reduzir imensamente o vácuo entre o design e a produção", afirma Ian Harris, do Additive Manufacturing Consortium, um centro de estudos dos Estados Unidos voltado ao setor industrial. "Os fabricantes poderão dizer aos clientes 'diga-nos o que você quer' e fazer produtos específicos para eles."

A personalização em massa abre as portas para um período de muito mais criatividade. Grandes e pequenas empresas verão o fim das restrições inerentes ao sistema de peças intercambiáveis que começou em Veneza. A padronização permitiu uma variedade incrível de produtos - contanto que eles fossem apoiados em um "cardápio" fixo de componentes. Caso contrário, todos os benefícios em termos de velocidade, precisão e preço eram perdidos.

O Arsenal de Veneza: pionerismo na fabricação de peças padronizadas

Essas restrições serão reduzidas, segundo David Abbott, da General Electric - o grupo americano que está desenvolvendo aplicações para as novas técnicas, ao lado de companhias como a Siemens e a BMW, da Alemanha; a Honda, do Japão; a EADS, da Europa; e a Rolls-Royce, do Reino Unido. Máquinas de produção aditiva que já estão sendo feitas por empresas como a Stratasys e a Z Corporation, dos Estados Unidos, a EOS, da Alemanha, e a Arcam, da Suécia, serão fundamentais nesse processo.

"A nova tecnologia vai melhorar imensamente a flexibilidade das indústrias no projeto de novas peças e produtos por uma série de motivos - sejam eles a maior economia no consumo de combustível de uma turbina de gás, seja na mudança no visual de um utensílio de cozinha por razões puramente estéticas", afirma Abbott. Os desenvolvedores de produtos poderão fazer projetos "off piste", ou não usuais, ganhando mais liberdade para criar produtos em áreas que vão de equipamentos médicos a produtos eletrônicos de consumo.

As técnicas também nivelam potencialmente a concorrência para aqueles que "perderam o trem" nos períodos anteriores de desenvolvimento industrial. O professor Brent Stucker da Universidade de Louisville, no Kentucky, diz que um dos efeitos mais significativos será uma redução no grau de infraestrutura industrial convencional - máquinas operatrizes, equipamentos de teste e máquinas relacionadas à produção - de que as empresas e os países necessitam quando querem ser considerados concorrentes industriais de peso.

"Elas tornarão mais fácil para os países em estágios iniciais de desenvolvimento industrial - como os da África - contornarem o caminho convencional em direção à

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criação de capacidade de produção, e fazer uma contribuição válida ao setor industrial global muito mais cedo do que poderiam considerar possível", diz o professor Stucker.

Essas oportunidades também deverão estar abertas para indivíduos espertos, afirma o professor Stucker. Os grandes e bem organizados fabricantes globais continuarão tendo vantagens competitivas, mas as novas ideias vão colocar novamente em destaque os trabalhadores que lidam com a produção artesanal - uma raça que está quase extinta na maior parte das nações ricas desde o fim dos ferreiros.

Na era da produção personalizada, os primeiros produtos que provavelmente serão feitos de uma maneira rotineira serão itens que precisam encaixar-se nas características biológicas únicas de um indivíduo. Eles incluirão implantes de ossos e dentes, aparelhos de audição, stents para desbloquear artérias e instrumentos cirúrgicos especializados.

Esses produtos provavelmente serão seguidos por objetos em que as preferências individuais são importantes, de itens de moda e joias a sistemas de iluminação e móveis. A personalização em massa também vai beneficiar os fabricantes de produtos industriais essenciais, mas que frequentemente não são notados, nos quais a necessidade de variação está ligada ao trabalho de engenharia. Fabricantes de válvulas, por exemplo, já produzem até 500 mil variedades para atender às necessidades de procedimentos operacionais flexíveis de diferentes setores industriais.

A humanidade chegou a esse estágio depois de uma jornada que começou por volta de 1.200 A.C., com o uso de técnicas artesanais para fazer produtos que iam de potes e panela a pontas de flechas. Durante essa "personalização em baixo volume", tudo era feito em uma base unitária. Mesmo com as técnicas semiformalizadas, como a usada na produção de vidros, os procedimentos eram lentos e caros.

A padronização preparou o caminho para a produção das partes e peças que podem ser trocadas, o que, no fim do século XVIII, no Reino Unido, ajudou a estimular a primeira revolução industrial - o conjunto de eventos que estabeleceu a produção industrial como a força por trás do progresso da civilização.

Os sistemas de produção baseados nas peças padronizadas foram inseridos em setores como o da produção de máquinas e o de engenharia industrial. Mesmo assim, o progresso não foi fácil. Na década de 1890 a maioria dos setores continuava apegada às técnicas artesanais. A introdução dos procedimentos necessários à padronização de baixo volume envolvia custos consideráveis - investimentos em máquinas operatrizes e design -, que mal podiam ser justificados, a menos que as economias resultantes também fossem elevadas. E para isso acontecer, os produtos precisavam ser produzidos em volumes maiores - algo que ocorria somente quando a demanda aumentava substancialmente mais do que costumava ser o caso na época.

Foi o fabricante de automóveis Henry Ford que adaptou o sistemas de partes permutáveis criado em Veneza às necessidades do começo do século XX. Ele fez isso aumentando a escala sob a qual funcionava a produção de peças padronizadas. Ele também aproveitou as novas ideias sobre administração e procedimentos de fábrica, criando no processo a "padronização de alto volume" - o terceiro grande estágio da industrialização. Os benefícios podiam ser vistos no preço do Ford Model T, que caiu de US$ 850 em 1909 para US$ 690 em 1912, e para menos da metade disso uma década

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mais tarde. Foi uma grande propaganda para a "produção em massa" - um processo que outros, de fabricantes de aspiradores de pó a turbinas geradoras de energia, rapidamente adotaram.

Os carros da Ford eram caracterizados pela qualidade e pelos preços relativamente baixos, mas também pela inflexibilidade do design. (É memorável a oferta que Henry Ford fazia aos clientes, de que eles podiam ter "um carro pintado de qualquer cor... desde que seja preto".) A padronização em grandes volumes serviu para a fabricação de produtos iguais; não funcionou tão bem com produtos que eram diferentes.

No entanto, alguns imaginavam se não seria possível adaptar o sistema. Entre eles estava Peter Drucker, um teórico da administração que em 1973 desafiou empresas a encontrar meios de usar o menor número possível de componentes permutáveis para fazer o maior número possível de produtos. Os administradores da Toyota aceitaram o desafio e encontraram uma maneira de atender às exigências dos clientes - aquela determinada cor ou o estilo do para-choque - com uma série de procedimentos de montagem, todos eles baseados em peças padronizadas.

Assim foi criada a quarta era da produção industrial. O sistema de produção da Toyota, ou mais genericamente, a "personalização de alto volume", é o sistema que deu ao mundo o formato flexível em que todos os tipos de produtos industriais e de consumo são feitos em grande escala. Embora tenha se mostrado um enorme sucesso comercial, o uso contínuo das peças padronizadas torna difícil realizar mudanças fundamentais no design dos produtos estabelecidos. Com a personalização em massa, o mundo terá a oportunidade de criar, a partir de material básico, peças elaboradas de acordo com os princípios criativos preferidos dos projetistas e fabricantes.

O que virá em seguida? Apesar da promessa da produção personalizada, os fabricantes continuarão manipulando materiais em uma base molecular, como as pessoas fazem há milênios. O desafio agora é como eles poderão trabalhar em um nível submolecular, moldando materiais na escala do nanômetro - equivalente a um bilionésimo de metro.

O desafio foi lançado pelo físico americano Richard Feynman em uma famosa palestra feita em 1959: "Não tenho medo de considerar a questão final: se acabaremos conseguindo, em um futuro maravilhoso, dispor dos átomos da maneira que quisermos; os próprios átomos, em todos os aspectos!"

Os comentários de Feynman levantam a possibilidade de se arranjar os cerca de 100 elementos químicos disponíveis em novas moléculas para a criação de um número enorme de materiais com os quais, no momento, só podemos sonhar.

Dado o ritmo atual de desenvolvimento da nanotecnologia, parece provável que a questão levantada por Feynman venha a ser respondida por volta de 2050, quando a sexta era da produção industrial, a "nanoprodução" no mercado de massa, estaria pronta para começar. Os 3 mil anos de evolução do sistema global de produção industrial ainda têm muitas oportunidades para prosseguir.

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FOLHA DE S.PAULO

2/1/2017

RONALDO LEMOSEstados desprezam privacidade de contribuintes

Sabe qual é a importância que os governos dos mais de dez Estados que implantaram programas de "nota fiscal" dão à privacidade dos seus cidadãos? Nenhuma.É o que mostra um interessante estudo feito pelo professor Jorge Machado e o pesquisador Bruno Bioni, ambos da USP, com o título "A proteção dos dados pessoais nos programas de Nota Fiscal".Esses programas foram criados para estimular que consumidores exijam a nota na hora da compra, reduzindo a sonegação. Para isso, devolvem parte do ICMS.Para funcionar, é necessário coletar alguns dados sobre o cidadão, tal como CPF e valor da compra. No entanto, os autores mostram que os Estados vão muito além do que seria necessário para o programa funcionar. Por exemplo, coletam a identificação dos itens adquiridos, quantidade e marca, o local da compra, o nome do estabelecimento, dia e hora exata em que a compra foi feita.Com isso, é possível descobrir informações sensíveis sobre qualquer pessoa. Por exemplo, se costuma comprar fraldas com frequência, é provável que tenha um bebê em casa. E assim por diante.A pergunta é: como esses dados são protegidos? Quem pode ter acesso a eles? A resposta do estudo é desalentadora. Dos 11 Estados pesquisados mais o Distrito Federal, nenhum possui política de proteção à privacidade. Mais do que isso: nenhum informa sequer como os dados são usados, protegidos, analisados. Se há cessão dos dados para terceiros, por quanto tempo são

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guardados, ou se há possibilidade de pedir que sejam apagados ou retificados. Ou seja, nada, niente, nichts.Diante da inexistência de informações, os pesquisadores enviaram um questionário de 26 perguntas ao Estado de São Paulo, por meio da Lei de Acesso à Informação. Perguntaram, por exemplo, se os dados podem ser cedidos à Receita Federal para identificar sonegadores. Ou, ainda, se podem ser acessados pela polícia, com ou sem ordem judicial.A resposta foi enigmática. Relatou que os dados são acessados por "usuários autorizados", sem dizer quem são. Disse ainda que todos os dados ficam de fato armazenados nos servidores da Secretaria da Fazenda, sem dizer por quanto tempo.Sobre a hipótese de os dados poderem ser cedidos à Receita ou acessados pela polícia, a resposta foi preocupante. Fez referência a lei de 1966, que diz que "o intercâmbio de informação sigilosa será realizado mediante processo regularmente instaurado".Isso dá a entender que um mero processo administrativo permitiria o livre acesso aos dados. Aqui, vale lembrar que a regra derivada da Constituição seria exigir, no mínimo, ou o consentimento do usuário ou uma autorização judicial prévia para o compartilhamento com outras autoridades.A boa notícia é que esse é um problema fácil de ser resolvido. Os Estados precisam adotar uma política de privacidade completa e bem redigida, passando a lidar de forma séria com o tema. Seria um componente importante de um programa que é desejável e bem-sucedido.

http://m.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2017/01/1846243-estados-desprezam-privacidade-de-contribuintes.shtml?mobile

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OPINIÃO

Novas tecnologias e a necessidade de reforma tributária20 de janeiro de 2017, 7h17

Por Daniel Corrêa Szelbracikowski

Em dezembro de 2016 foi publicada a Lei Complementar (LC) 157 que alterou a LC 116/03 relativamente ao imposto sobre serviços (ISS) e a Lei 8.129/1992 que dispõe sobre a improbidade administrativa. Algumas das novas regras eram necessárias, tais como as que estabelecem a alíquota mínima do ISS, “regulam” a forma de concessão de benefícios fiscais de ISS e criam sanções para a hipótese de seu descumprimento (os comentários sobre esse assunto serão realizados em artigo específico). Há, porém, aparente inconstitucionalidade quanto à previsão de tributação de negócios jurídicos que não se qualificam como serviços, como é o caso do streaming (item 1.09 da lista de serviços) e do armazenamento e hospedagem de dados (item 1.03). Isso nos remete a refletir sobre a necessidade de reforma do sistema tributário nacional.

De acordo com o novo item 1.09 da lista de serviços anexa à LC 116/03, incidirá ISS sobre a “Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (...)”.

A partir dessa previsão, pretende-se tributar o denominado streaming (ou fluxo de mídia) que nada mais é do que a disponibilização de sons e/ou vídeos diretamente pela internet[1], “sem a necessidade de efetuar downloads do que está se vendo e/ou ouvindo, pois neste método a máquina recebe as informações ao mesmo tempo em que as repassa ao usuário”[2]. O fluxo de mídia é atividade que vem crescendo em função da revolução digital experimentada pela sociedade. Exemplos não faltam: Netflix, Spotify, Youtube, dentre outros.

O objeto do contrato de streaming é a disponibilização temporária de conteúdo de áudio/vídeo por meio da internet acessada por smartphones, tablets, tv’s inteligentes, computadores e outros dispositivos. Trata-se, portanto, de uma cessão temporária de direito de acesso a determinados conteúdos.

Contudo, o artigo 156, III, da Constituição Federal não permite a tributação de cessão de direitos. Apenas possibilita que os municípios tributem “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei

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complementar”, os quais pressupõem uma obrigação de fazer, segundo o entendimento majoritário[3] da doutrina[4].

Nesse sentido, a previsão contida no artigo 156, III, da CF, analisada em conjunto com o artigo 155, II, da CF, revela uma repartição clara de competências tributárias: aos Estados caberá tributar, em regra, as obrigações de dar (operações de circulação de mercadorias) e, excepcionalmente, três obrigações de fazer: prestação de serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal. As demais obrigações de fazer ficarão, também em regra, sob a competência impositiva e exclusiva dos Municípios, o que justifica a expressão “não compreendidos no artigo 155, II”.

É claro que há situações em que a prestação de serviço é acompanhada do fornecimento de mercadorias e vice-versa. Para essas atividades mistas ou complexas, o artigo 156, III, da Constituição Federal contempla a expressão “definidos em lei complementar”, o que significa que o legislador complementar estabelecerá se referidas atividades estarão sob a competência dos Estados ou dos Municípios, de sorte a evitar conflitos entre as diversas unidades da federação (artigo 146, I, da CF/88).

O streaming não parece revelar uma obrigação de fazer. Isso porque não corresponde a qualquer esforço humano e pessoal praticado em proveito de terceiro[5] que tenha por objetivo executar, criar, ou elaborar algo até então inexistente[6]. O conteúdo disponibilizado pelo streaming já existe. O Netflix e o Spotify, dentre outros, apenas cedem temporariamente o direito de acesso aos vídeos (filmes, séries, etc.) e às músicas que já estão, perfeitos e acabados, em suas bases de dados. Se o streaming não é obrigação de fazer, não cabe tributá-lo pelo ISS, sob pena de subverter o conceito de serviço pressuposto constitucionalmente para os fins do artigo 156, III da CF/88.

Referido negócio jurídico também não revela serviço de comunicação[7], já que não disponibiliza meios que possibilitam a transmissão de mensagens entre um emissor e um receptor por si sós. Com efeito, segundo o artigo 60 da Lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), o serviço de telecomunicações caracteriza-se pelo “conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação”[8]. A oferta de comunicação por intermédio de um conjunto de atividades (serviço) não se confunde com o conteúdo comunicado. No caso do streaming, a utilidade comumente negociada entre as empresas e os consumidores é o conteúdo comunicado (filmes, vídeos, séries, músicas, novelas, etc) que, em função da aludida tecnologia, é acessado em tempo real desde que haja acesso a um serviço de comunicação (já tributado pelo ICMS) que disponibilize internet. Por essas razões, não havendo serviço de comunicação, o streaming igualmente não pode ser tributado pelo ICMS (artigo 155, II, da CF).

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Do mesmo modo, não há como incidir ISS sobre “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres”, segundo o disposto pela recente atualização do item 1.03 da lista de serviços pela LC 157/16.

É que essas atividades caracterizam-se pela disponibilização de espaço virtual para a guarda de bens (dados ou websites, este último denominado de web hosting[9]). Desse modo, parecem caracterizar obrigações de dar espaço virtual, semelhantemente ao que ocorre com os armazéns gerais, em que se contrata a guarda de determinados objetos em espaços físicos. A distinção ocorre aparentemente quanto ao tipo de espaço contratado e bem guardado, se físico ou virtual. Portanto, não parece haver serviço na acepção do que o termo representa para o direito privado (obrigação de fazer), mas algo similar à locação que não atrai a incidência do imposto municipal, segundo o STF[10].

Referidos negócios jurídicos poderiam, ainda, ser considerados “serviços” de valor adicionado (SVA), os quais não se confundem com serviços de comunicação[11]. Segundo o artigo 61 da LGT, “serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”. O serviço de conexão à internet (SCI) é um exemplo de SVA.

Nada obstante, é curioso notar que as utilidades em análise, além da necessária utilização de um serviço de comunicação (já tributado pelo ICMS), também já demandam o uso de um SVA (internet). Tratar-se-ia, portanto, de um SVA suportado por outro SVA que, finalmente, é possibilitado por um serviço de comunicação. Em outras palavras, o que dá suporte ao Spotify, por exemplo, não é apenas a operadora de telefonia (comunicação), mas também a internet (SVA) por ela disponibilizada. Daí porque referidas utilidades incluídas na LC 116/03 pela LC 157/16 não parecem confundir-se com o serviço de valor adicionado mencionado pela LGT e muito menos com o serviço de tele(comunicação) que lhe serve de suporte.

Ainda que assim não fosse, o fato de a lei denominar os referidos negócios de “serviço” ou incluí-los na lista anexa à LC 116/03[12] não teria o condão de modificar a natureza jurídica das prestações à luz da Constituição[13]. Assim, enquanto o conceito de serviço pressuposto constitucionalmente for aquele compartilhado pelo direito privado — em contraposição a um conceito econômico — não se pode conceber a tributação dos negócios jurídicos mencionados.

Surge certa perplexidade quando se verifica que o serviço de comunicação, sujeito ao ICMS, aparentemente não mais traduz típica obrigação de fazer. No surgimento da telefonia havia a necessidade de um fazer humano na central telefônica. A

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conexão entre os usuários era realizada manualmente por um telefonista. Isso ficou no passado, de modo que a revolução digital praticamente expurgou o fazer humano da atividade de comunicação. Por isso, surge a dúvida: será que a Constituição admite um conceito de serviço para o ICMS distinto daquele previsto para o ISS? Para um imposto serviria a prestação de uma utilidade, enquanto para outro seria necessário um fazer humano que criasse algo até então inexistente?

A ausência de uma doutrina clara do Supremo a respeito do assunto contribui para a manutenção desse estado de incerteza.

De fato, na década de 1980 o STF encampou o “conceito econômico” de serviço, ao validar a incidência de ISS sobre a locação de guindastes[14]. Nos anos 2000, ao analisar novamente a incidência do ISS sobre locação de bens móveis, o STF adotou o conceito civilista de serviços[15]. Em 2009, analisando a expressão “de qualquer natureza” constante do artigo 156, III, da CF, o STF novamente pareceu abandonar o conceito civilista de serviço ao autorizar a incidência do ISS sobre o leasing financeiro[16]. Para tanto, assentou que o leasing seria atividade complexa em que prevaleceria o financiamento, que seria serviço. Afastou, assim, a preponderância da locação (obrigação de fazer) ou da compra e venda (obrigação de dar) do referido contrato. Apesar disso, houve certa dicotomia entre os votos. Enquanto alguns Ministros assentaram que serviço não mais se confundiria com obrigação de fazer[17], outros se esforçaram para demonstrar que a administração do financiamento seria uma obrigação de fazer, ou seja, engajaram-se numa construção que não modificasse o conceito civilista[18]. Posteriormente, em 2010, o Tribunal aprovou a Súmula Vinculante 31, reiterando o seu entendimento de que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza sobre operações de locações de bens móveis”.

Ora, tivesse havido uma “mutação constitucional” acerca do conceito de serviço pressuposto pelo art. 156, III, da CF, o STF possivelmente não teria editado a Súmula Vinculante (que encampa o conceito civilista), mas sim retornado à interpretação que já havia sido atribuída ao termo na década de 1980.

A ampliação da lista de serviços anexa à LC 116/03 para alcançar manifestações de disponibilidade patrimonial que não se confundem com prestação de serviço também revela que a atual repartição constitucional de competências tributárias possibilita a ausência de sujeição de determinadas utilidades ao ISS e ICMS, simultaneamente. Para alcançar esses fatos restaria a competência residual atribuída à União pelo artigo 154 da Constituição, mas dificilmente os prefeitos e governadores permitiriam que uma proposição desse jaez fosse aprovada no Congresso Nacional.

Em suma, o cinquentenário sistema tributário nacional parece não comportar a dinâmica dos fatos sociais e da (r)evolução tecnológica que insiste em criar novos

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negócios até então inimagináveis[19], a demandar a realização de uma profunda reforma tributária.

Essa necessidade de reestruturação da matriz tributária brasileira[20] também se justifica em função da iniquidade do atual sistema tributário. Calcado na tributação sobre o consumo e no excesso de contribuições que suprem apenas os cofres da União, o sistema é caracterizado por regressividade, má-distribuição da carga, baixo retorno social, baixo estímulo a investimentos, entre outros vícios, segundo os “Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional”.[21]

Nesse sentido, seria de todo conveniente que o Congresso Nacional desse seguimento à reforma tributária para que ISS, ICMS, IPI e outros tributos que gravam o consumo (PIS e COFINS) pudessem ser unificados sob a forma de um IVA Nacional, não-cumulativo, incidente sobre todo e qualquer processo de agregação econômica de valor. Relembre-se que, ao contrário do que ocorre no Brasil, o IVA-serviço europeu não é sinônimo de uma prestação de fazer humana (atividade) associada a uma utilidade, mas à própria utilidade decorrente de uma atividade que venha a agregar valor no processo econômico.

A criação de um IVA Nacional desse jaez, cuja receita fosse partilhada entre todos os entes da federação[22], contribuiria para alcançar, por intermédio da tributação, todos os fatos econômicos relevantes para a sociedade contemporânea, aumentando a eficiência da arrecadação. Ademais, eliminaria vários problemas atualmente verificados na matriz tributária, tais como as supracitadas restrições relacionadas aos critérios materiais de incidência do ISS e ICMS, a cumulatividade do ISS, a não-cumulatividade precária do PIS/COFINS, a guerra fiscal de ISS e ICMS, o excessivo esforço fiscal para o cumprimento de obrigações tributárias[23], o excesso de tributos sobre a mesma base, dentre outras.

[1] “the activity of listening to or watching sound or video directly from the internet”(http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/streaming)

[2] http://www.interrogacaodigital.com/central/o-que-e-streaming/

[3] Não se ignora haver posição da doutrina no sentido da adoção de um conceito “econômico” de serviço em contraposição ao conceito jurídico-privatista: MORAES, Bernardo Ribeiro de, Doutrina e Prática do ISS. São Paulo: RT, 1975, p. 81-85; 97-101; 107; 153-154; 425-429.

[4] Vide: BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei, 2ª ed., São Paulo, Dialética, 2005, p. 45 e Martins, Ives Gandra da Silva e Rodrigues, Marilene Talarico Martins, O ISS e a Lei Complementa nº 116/2003 – Aspectos Relevantes. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, pp. 206/207.

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[5] Vide Ávila, Humberto, O Imposto sobre Serviços e a Lei Complementar nº 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003.

[6] Vide CARVALHO, Paulo de Barros. “Não-incidência do ISS sobre Atividades de Franquia (Franchising)”. In: Revista Direito Tributário Atual nº 20, São Paulo, Dialética, p. 205.

[7] Vide: GREGO, Marco Aurélio; LOURENZO, Anna Paola Zonari de. ICMS - Materialidade e Princípios Constitucionais. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Org.). Curso de Direito Tributário. 2. ed. Belém: Cejup, 1993. p. 155)

[8] No mesmo sentido é a jurisprudência do STJ: Súmula nº. 334/STJ e EREsp 456.650/PR, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministro FRANCIULLI NETTO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/05/2005, DJ 20/03/2006. Neste julgado ficou assentada a não incidência do ICMS sobre o SVA e a possibilidade de incidência do ISS, desde que o “serviço” estivesse relacionado na lista anexa à LC 116/03. Não se discutiu se os SVAs seriam, de fato, serviço à luz da Constituição, até porque isso seria da competência do STF.

[9] Vide: BARBAGALO, Erica B., Aspectos da responsabilidade civil dos provedores de serviços na internet. In: LEMOS, Ronaldo; WASBERG, Ivo (Coord.). Conflitos sobre nomes de domínios. São Paulo: RT/FGV, 2002. p. 346-347.

[10] Súmula Vinculante nº. 31 do STF.

[11] Sobre o tema, vide: TORRES, Heleno Taveira, ICMS e ISS não incidem sobre serviços de valor adicionado na telefonia móvel, Consultor Jurídico – CONJUR, 2014.

[12] A jurisprudência do STJ tem admitido a tributação dos serviços de valor adicionado pelo ISS, desde que estejam previstos na lista anexa à LC 116/03 (EREsp 456.650/PR, Ministro Franciulli Netto, DJ 20/03/2006). Essa visão legalista justifica-se em função de sua própria competência infraconstitucional. Quando é necessário o cotejo entre a atividade e o conceito constitucional de serviço o STJ mantém a tributação sob o prisma legal e/ou declina essa análise para o STF: AgRg no REsp 1117103/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 09/10/2015; AgRg no REsp 1075601/MG, Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 17/12/2008, dentre outros.

[13] O STF tem entendido que a análise da incidência de ICMS sobre o SVA é infraconstitucional, impossibilitando o exame do tema à luz da Constituição: AI 698893 AgR, Ministra Rosa Weber, DJe 20-06-2013.

[14] RE 112947, Min. CARLOS MADEIRA, DJ 07-08-1987.

[15] RE 116121, Min. MARCO AURÉLIO, DJ 25-05-2001.

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[16] RE 547245, Min. EROS GRAU, DJe 05-03-2010.

[17] Ministros Eros Grau e Joaquim Barbosa.

[18] Ministro Carlos Ayres Britto.

[19] Vide: GRECO, Marco Aurélio. “Sobre o Futuro da Tributação: a Figura dos Intangíveis”. In: Revista Direito Tributário Atual nº 20, São Paulo, Dialética.

[20] Vide: GASSEN, Valcir, Matriz Tributária Brasileira: Uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil.

[21] BRASIL. Presidência da República. Observatório da Equidade. Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, Observatório da Equidade, 2009.

[22] Vide: AFONSO, José Roberto. ICMS: diagnóstico e perspectivas. In: REZENDE, Fernando (Org.). O federalismo brasileiro em seu labirinto: crise e necessidade de reformas. Rio de Janeiro: FGV, 2013.

[23] Fundo Monetário Internacional – FMI, “Determining countries’ taxeffort”. Hacienda Pública Española / Revista de Economía Pública, 195-(4/2010): 65-87.

Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza

Revista Consultor Jurídico, 20 de janeiro de 2017, 7h17

http://www.conjur.com.br/2017-jan-20/daniel-correa-novas-tecnologias-exigem-reforma-tributaria

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EL PAIS

24/1/2017

Rosie, a robô que detecta quando deputados usam mal o dinheiro públicoFerramenta financiada coletivamente na rede já forçou parlamentar a devolver verba gasta com cervejaSão Paulo 24 JAN 2017 - 14:09 BRST

Dupla de programadores trabalha para ensinar robô a identificar irregularidades em gastos públicos. PEDRO VILANOVA ARQUIVO PESSOAL

Um robô criado por um grupo de oito jovens para monitorar gastos públicos conseguiu descobrir, em apenas três meses, mais de 3.500 casos suspeitos envolvendo o uso da cota parlamentar por deputados federais desde 2011. Apelidada de Rosie - em referência a faxineira-robô do desenho Os Jetsons -, a ferramenta faz uma varredura nas milhares de notas fiscais emitidas pelos parlamentares para identificar se os gastos foram legítimos, ilegais ou superfaturados.MAIS INFORMAÇÕES

Parlamentares brasileiros são os mais bem pagos da América LatinaCâmara aprova reajustes salariais com impacto de 58 bilhões de reais no OrçamentoO ‘miserável’ salário de um ministro inglês

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Rosie já encontrou, por exemplo, um pedido de reembolso de cervejas compradas por um deputado em um restaurante nos Estados Unidos, mesmo sendo proibido usar dinheiro público para comprar bebida alcoólica. Muitas anomalias foram encontradas também no valor das refeições. Ainda que as despesas sejam autorizadas unicamente para os parlamentares, a ferramenta detectou notas fiscais de dezenas de pizzas em um mesmo dia, um almoço de 12 kg em um self-service a até um pedido de reembolso de quase 1.500 reais em um restaurante que serve bode assado. Cruzando informações de bancos de dados públicos, como o da Câmara e o da Receita Federal, a ferramenta também identificou notas de refeições em cidades muito distantes em um curto espaço de tempo.COTA PARLAMENTARAlém dos salários e benefícios, todos os 513 deputados tem direito a uma Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap). O dinheiro é recebido para despesas como alimentação, transporte e consultoria, mediante apresentação das notas fiscais. O valor varia de acordo com cada Estado e pode ser consultado no site da Câmara. Atualmente, os deputados de Roraima recebem o valor máximo, de 45,6 mil reais por mês. “Explicamos ao robô, a essa inteligência artificial, o que é um gasto e o que seria suspeito nele. Uma nota de 400 reais em uma padaria, por exemplo, é um valor muito alto e provavelmente ilegal. Mas, se for de um restaurante do chef Alex Atala, não é ilegal, ele é apenas alto e um absurdo para um gasto público”, diz o jornalista Pedro Vilanova, de 23 anos, um dos integrantes do grupo desenvolvedor do software, que defende que a Câmara imponha um limite para as despesas com alimentação dos parlamentares.Após a varredura de Rosie, 849 casos foram auditados pelo grupo e destes, 629 foram denunciados à Câmara

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dos Deputados pelos jovens no próprio site do Legislativo no início do ano. As denúncias questionam, no total, cerca de 378.000 reais pagos com dinheiro público por 216 deputados. O projeto realizado pelo grupo recebeu o nome de Operação Serenata de Amor, em referência a um escândalo ocorrido nos anos 90 na Suécia, conhecido como “Caso Toblerone”, em que a então vice-ministra sueca perdeu o cargo por ter usado dinheiro público com gastos pessoais.Devolução do dinheiro públicoAs descobertas de Rosie ainda não fizeram nenhum deputado perder o posto, mas já obrigaram alguns parlamentares a devolverem o dinheiro usado de forma irregular. “Em novembro, resolvemos testar o sistema e denunciamos 43 casos de irregularidade. Desses, já recebemos algumas respostas da Câmara e a decisão de nove devoluções”, conta Vilanova.O primeiro caso de devolução após as denúncias do grupo foi do deputado federal Celso Maldaner (PMDB-SC) que teve que devolver 727,78 reais, referentes a 13 refeições feitas no mesmo dia e pagas com dinheiro público. Segundo a assessoria, o motorista do deputado cometeu um equívoco por ter colocado as notas no nome do político.

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Comprovante que mostra compra de cinco cervejas em restaurante na Califórnia. REPRODUÇÃO

Uma devolução partiu também do deputado Odelmo Leão (PP -MG), eleito prefeito de Uberlândia. Ele gastou 190,05 reais da cota parlamentar (ajuda de custo dada aos políticos que tem de ser justificadas com notas fiscais) com o envio de correspondência da sua campanha eleitoral à prefeitura. Após a denúncia, o deputado teve que pagar ao Fundo Rotativo da Câmara dos Deputados o valor gasto de forma ilegal, já que não são permitidos gastos de caráter eleitoral com dinheiro público.

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Outro deputado que já devolveu o valor de um reembolso pedido na cota parlamentar foi Vitor Lippi (PSDB- SP). O tucano pediu o reembolso de 135,15 reais correspondentes a cinco cervejas durante uma viagem aos Estados Unidos. Quando alertado da irregularidade, ele restituiu o valor à Câmara, e a assessora do deputado pediu desculpas em email enviado à Câmara. “Aproveito para assumir a responsabilidade pelo erro cometido, é de praxe dessa assessoria pedir a glosa de itens não autorizados de ressarcimento, tais como bebidas alcoólicas, mas infelizmente dessa vez não identifiquei o produto, já que estava em outra língua”, afirmou Sirlene Silva, assessora de Lippi, que lamentou ainda o transtorno causado.O robô encontrou também uma fraude em uma série de três reembolsos do deputado Wherles Rocha (PSDB-AC) em um mesmo dia. Duas notas foram emitidas na capital do Acre, Rio Branco, e a outra, a 4.000 km, em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Após a denúncia, o deputado afirmou que na data se encontrava na cidade gaúcha e que a nota do Acre referia-se a uma despesa feita na semana anterior. Ainda segundo o tucano, como estava com pressa em Rio Branco, ele pediu para pagar outro dia e por isso um assessor só conseguiu quitar a dívida no estabelecimento e emitir a nota quando ele estava no sul do país. Mesmo explicando a coincidência dos dias, a Câmara constatou que a Nota Fiscal já encontrava com prazo de validade expirado e por isso o deputado teve que devolver 148 reais.No fim do ano, o deputado Marco Maia (PT-RS), também teve que devolver dinheiro à Câmara, já que no meio do ano passado emitiu uma nota de 154,50 reais pedindo o ressarcimento de duas refeições em um

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mesmo local, o que é proibido. Em dezembro, ele teve que restituir 77,25 reais referentes a um almoço adicional.

A primeira fase da Operação Serenata de Amor termina neste mês, mas o plano dos oito integrantes do grupo, que também contam com o apoio de cerca de 400 técnicos voluntários, é continuar passando um pente-fino nas contas do Governo. Para custear a investigação inicial das despesas da Cota de Atividade Parlamentar, eles recorreram a um financiamento coletivo e conseguiram arrecadar 80.000 reais. “Entregamos o que prometemos, entregamos a Rosie. Mas agora queremos aprimorar ainda mais o robô para que os dados sejam ainda mais precisos. Vamos lançar um novo financiamento coletivo”, explica Vilanova. Para ele, a varredura de dados precisa alçar novos voos e não ficar presa apenas a cota parlamentar. “O programa e a operação podem ser replicado a outras esferas, como o Senado e empresas, por exemplo”, explica.

http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/23/politica/1485199109_260961.html

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