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1 MICRO-AÇÕES AFIRMATIVAS – POSSIBILIDADES DE SUPERAÇÃO DA DESIGUALDADE ETNICORRACIAL NOS COTIDIANOS ESCOLARES Autora: Regina de Fatima de Jesus / UERJ – Faculdade de Formação de Professores e-mail: [email protected] Palavras-chave: micro-ações afirmativas, relações etnicorraciais, cotidiano escolar. Palavras iniciais As práticas pedagógicas de participantes da pesquisa Micro-ações afirmativas no cotidiano de escolas públicas do município de São Gonçalo i , realizada no período 2008 – 2010 são trazidas ao diálogo neste trabalho a fim de discutir o caráter das micro-ações afirmativas cotidianas bem como as motivações para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, estabelecendo aproximações entre a noção de micro-ação afirmativa e o conceito de ação afirmativa. A desigualdade racial encontra, na educação, um importante locus de naturalização de práticas racistas e professores(as), formados(as) por uma educação eurocêntrica, certamente encontram dificuldade em desnaturalizar tais práticas, mesmo porque, em geral, não as percebem como racistas. Os dados estatísticos têm revelado a exclusão histórica com a qual convivem os negros em nossa sociedade. Segundo as análises realizadas por Henriques: “... a pobreza no Brasil tem cor. A pobreza no Brasil é negra. Nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre. A população negra concentra-se no segmento de menor renda per capita da distribuição de renda no país” (2002, p. 29). Desta forma, a constatação e visibilização da desigualdade racial são fundamentais para a compreensão da desigualdade social, levando-nos a outra questão, também relevante: não é verdadeira a hipótese de que não haja distinção etnicorracial dentro das classes populares, pois pobre é pobre, seja negro ou branco, porque os dados revelam que na base da pirâmide, dentre os pobres, os mais pobres são sempre os negros.

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MICRO-AÇÕES AFIRMATIVAS – POSSIBILIDADES DE SUPERAÇÃO DA DESIGUALDADE ETNICORRACIAL NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Autora: Regina de Fatima de Jesus / UERJ – Faculdade de Formação de Professorese-mail: [email protected]: micro-ações afirmativas, relações etnicorraciais, cotidiano escolar.

Palavras iniciais

As práticas pedagógicas de participantes da pesquisa Micro-ações afirmativas no cotidiano de escolas públicas do município de São Gonçalo i, realizada no período 2008 – 2010 são trazidas ao diálogo neste trabalho a fim de discutir o caráter das micro-ações afirmativas cotidianas bem como as motivações para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, estabelecendo aproximações entre a noção de micro-ação afirmativa e o conceito de ação afirmativa.

A desigualdade racial encontra, na educação, um importante locus de naturalização de práticas racistas e professores(as), formados(as) por uma educação eurocêntrica, certamente encontram dificuldade em desnaturalizar tais práticas, mesmo porque, em geral, não as percebem como racistas.

Os dados estatísticos têm revelado a exclusão histórica com a qual convivem os negros em nossa sociedade. Segundo as análises realizadas por Henriques: “... a pobreza no Brasil tem cor. A pobreza no Brasil é negra. Nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre. A população negra concentra-se no segmento de menor renda per capita da distribuição de renda no país” (2002, p. 29).

Desta forma, a constatação e visibilização da desigualdade racial são fundamentais para a compreensão da desigualdade social, levando-nos a outra questão, também relevante: não é verdadeira a hipótese de que não haja distinção etnicorracial dentro das classes populares, pois pobre é pobre, seja negro ou branco, porque os dados revelam que na base da pirâmide, dentre os pobres, os mais pobres são sempre os negros.

Em Fernandes (1978) podemos identificar a origem de tal problemática quando o autor discute e questiona a integração do negro à sociedade de classes, que consistiu em “uma pressão integracionista, que opera no sentido de compelir o negro e o mulato a absorverem as normas e os padrões de comportamento e os valores sociais da ordem social competitiva” (p. 333). Porém, tal integração não previa a inclusão social de forma mais abrangente, tampouco o negro oferecia qualquer tipo de problema no sentido de competir com o branco em igualdade de condições, pois a mesma sociedade que propunha uma ordem integracionista não possibilitava serem dadas a ele tais igualdades.

Sempre que um negro ou uma negra ascende socialmente, tal fato é tratado como exceção e, esta atitude, portanto, demonstra que a suposta homogeneidade racial, que aparece nos discursos, de fato não existe e atua como um mecanismo que dificulta ações contra-hegemônicas, enfim, é um fator que traz efeitos negativos para a população afrodescendente.

A invisibilização da desigualdade racial torna-se um entrave para a superação da desigualdade social, pois a população negra, que, de acordo com os dados estatísticos, representa 46% da população brasileira, sendo a segunda maior população negra do mundo, encontra-se marginalizada. E, no que concerne à escolaridade, mesmo que os dados estatísticos comprovem, pelos números apontados, que há uma

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desigualdade entre a população negra e a população branca, sendo maior a escolaridade dos brancos em relação aos negros, Henriques aponta para uma tentativa de invisibilizar a continuidade da discriminação racial nos próprios gráficos que são construídos de forma a mostrar apenas que a escolaridade de ambas as raças cresceu ao longo do último século (XX): “As curvas ali descritas parecem construídas com intencional paralelismo, descrevendo, com requinte, a inércia do padrão de discriminação racial observado em nossa sociedade” (HENRIQUES, 2002, p. 42).

Não é de surpreender que no século XXI ainda estejamos lutando por políticas de inclusão da população afrodescendente e que as Políticas de Ação Afirmativa continuem criando tanta polêmica na sociedade. Tais políticas, mesmo que tardiamente implementadas, desestabilizam a conformidade social, que sempre reservou ao segmento negro da população um papel de subjugação na História, mesmo que o discurso seja o da democracia racial (JESUS, 2004) e os dados da pesquisa desenvolvida também revelam que esta subjugação ainda se faz presente no todo social.

Gusmão nos convida a pensar em como se sentem os(as) afrodescendentes na sociedade e, em geral, nos cotidianos escolares, pois a questão é a diferença de quem é considerado outro e sua identidade: “que exige que se abdique daquilo que se é, para assumir a identidade do eu como modelo a ser imitado. O eu nesse caso é o branco, ocidental, cristão, medida de todas as coisas e como tal, superior” (2000, p. 12). Neste sentido, ao construir a noção micro-ação afirmativa cotidiana, parti do conceito de ação afirmativa, por considerar que há muito a fazer no espaço micro – o cotidiano escolar – por meio de práticas pedagógicas de caráter antirracista, que não se inspiram, meramente, na Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino.

Assim, importa pensar, no âmbito dessa discussão, quais são as micro-ações afirmativas cotidianas que têm sido implementadas por professores(as) da rede pública de ensino do município de São Gonçalo, no sentido de buscar transformar a realidade de racismo. Compreendido não só em relação aos eventos de preconceito e discriminação racial, mas enquanto fato estrutural, produtor de desigualdades sociais e de hierarquizações nas relações estabelecidas no âmbito social. Com a pesquisa desenvolvida percebemos que as micro-ações afirmativas possuem caráter diferenciado, tanto por sua motivação, quanto pela forma como vem sendo desenvolvidas nos cotidianos escolares.

Opções dialógicas

A história oral, mais que metodologia de pesquisa, constitui-se em uma opção político-epistemológica, por compreender a importância da palavra na trama cotidiana e na construção identitária em que o eu e o outro são percebidos de forma dialógica. E, se “... a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros”, como nos ajuda a pensar Bakhtin (1995, p. 113), tenho buscado, no processo investigativo, me aquecer com “o calor da voz humana”, valorizando a oralidade como elemento de perpetuação da memória (NIANE, 1982). Assim, a experiência tem sido compreendida tal qual nos ensina a tradição oral africana: como um dos seus fundamentos, como um dos seus princípios, como forma de conviver, de ensinar-aprender em comunidade (BÂ, 1982, 2003).

Assim, as narrativas orais são consideradas locus privilegiados para a apreensão e compreensão das ações da prática cotidiana, trabalhando com a concepção de que a palavra oral tem valor por si, pois... “o que se encontra por trás do testemunho,

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portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho (...) a ligação entre o homem e a palavra” (BÂ, 1982, p. 182).

Portelli (2007) reforça a argumentação em relação à opção pela história oral quando diz que: “como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem nossa experiência” (p.17). Ao tomarmos as fontes orais como fundamento, como base em uma investigação, é por entendermos que os saberes que buscamos para compreender a realidade pesquisada não estão conosco, mas com os sujeitos informantes, com as pessoas com as quais dialogamos. Ainda, segundo o autor: “...a narração oral da história só toma forma em um encontro pessoal causado pela pesquisa de campo” (PORTELLI, 2010, p. 19). Sendo a relação dialógica e interativa entre sujeitos que possibilita o evocar de conteúdos da memória para que sejam verbalizados.

Foi com esta compreensão que realizamos, durante o processo investigativo, entrevistas, de caráter aberto, com professores(as) da rede pública de ensino gonçalense que desenvolvem o que temos chamado micro-ações afirmativas cotidianas e, tendo lido previamente o projeto, aceitaram participar da pesquisa.

Foram entrevistados(as) 37 professores(as) de escolas públicas estaduais e municipais de São Gonçalo. Sendo uma pesquisa de caráter qualitativo, não tivemos a preocupação em abordar profissionais de todas as instituições de ensino do município. O processo de pesquisa, com a realização de entrevistas, se estabeleceu numa rede de experiências. A solidariedade entre os(as) professores(as) foi marcante, pois muitos(as) fizeram referência aos trabalhos de colegas da rede pública gonçalense, indicando outros nomes ou mesmo creditando sua motivação para o trabalho a outro(a) professor(a) cuja prática pedagógica está a serviço da transformação social por meio da transformação das relações raciais. E, ouvindo a sabedoria da tradição oral africana, na palavra de Bâ (1982), “nos mantivemos à escuta”ii, seguindo as pistas cotidianas.

Buscamos, assim, ler as palavrasmundo (FREIRE, 1988) dos sujeitos da pesquisa inscritas nas narrativas a fim de compreendê-las em sua complexidade e não, meramente, interpretá-las sob nossos pontos de vista. Por isso, a noção de encruzilhada (MARTINS, 1997), presente no sistema filosófico-religioso de origem iorubá, foi tomada não só como metáfora explicativa para as tramas entretecidas pelas narrativas, mas como princípio epistemológico para as tramas entretecidas no âmbito social, envolvendo as relações etnicorraciais. Assim, nos ajuda a encontrar múltiplos sentidos nas experiências narradas pelos sujeitos cotidianos, pois a encruzilhada representa um entrelugar: “é lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação” (MARTINS, 1997, p. 28). Como lugar terceiro, a encruzilhada muito pode anunciar de possibilidades.

Nas tramas do processo de pesquisa

As ações afirmativas e as micro-ações cotidianasA desigualdade racial, entendida como um dos fundamentos que ajuda a

compreender a desigualdade social brasileira, de acordo com o que temos percebido, é consequência histórica de um pensamento hierarquizante em relação às raças, etnias e culturas que compõem a sociedade brasileira e, para transformar este quadro, da igualdade formal, princípio jurídico a ser respeitado por todos, passa-se à igualdade material, como objetivo constitucional a ser garantido pelo Estado e pela sociedade. Gomes (J. B., 2003) nos diz que a experiência e os estudos de direito e política

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comparada têm demonstrado que, “tal como construída, à luz da cartilha liberal oitocentista, a igualdade jurídica não passa de mera ficção” (p. 18). Por isso, o autor vai discutindo as possibilidades que se colocam na conjuntura atual, que:

...recomenda, inversamente, uma noção “dinâmica”, “militante” de igualdade, na qual, necessariamente, são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas na própria sociedade (GOMES, J. B., 2003, p. 19).

Nesta perspectiva surge a ideia de igualdade de oportunidades, em que o ser humano, de ser genérico, passa a ser percebido e tratado em suas especificidades. E, além da garantia de igualdade de oportunidades, dentre os objetivos das políticas de ação afirmativa, está o objetivo de “induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de superioridade de uma raça em relação à outra, do homem em relação à mulher” (GOMES, J. B., 2003, p. 30).

Assim, Henriques (2002, p. 96) coloca a necessidade de uma ação antirracista que enfrente o desafio histórico de integrar as perspectivas ‘universalista’ e ‘diferencialista’ com a finalidade de desnaturalizar a desigualdade racial, tendo em vista que distribuição da escolaridade entre negros é significativamente pior do que entre os brancos. “... além disso, na medida em que avançamos para níveis superiores de escolaridade, os negros perdem posições relativas frente aos brancos” (ibid, p. 35).

Partindo do pressuposto de que precisamos de ações de caráter antirracista, em sua dimensão macro, por meio da implementação de “políticas públicas explícitas de inclusão social”, em que se enquadram as ações afirmativas, trazemos algumas micro-ações afirmativas, pois entendemos que também vem ao encontro do dito por Gomes anteriormente, em relação “à indução de transformações de ordem cultural, psicológica e pedagógica”, demonstrando compromisso com a transformação da realidade de racismo presente nos cotidianos escolares.

As narrativas recolhidas revelam, a priori, que as práticas de caráter antirracista, fator que as aproxima dos propósitos de uma ação afirmativa, se relacionam com as próprias histórias de vida dos(as) professores(as), com suas palavrasmundo (FREIRE, 1988), com suas construções identitárias, com a percepção que têm do racismo ainda presente na sociedade brasileira.

Ao colocarmos em diálogo a noção de micro-ação afirmativa com o conceito de ação afirmativa, percebemos que estas, para serem consideradas afirmativas, devem ser ações que têm sua continuidade e sistematicidade, pois visam superar a realidade de racismo e transformar relações etnicorraciais no cotidiano escolar. São práticas pedagógicas que fazem parte de uma práxis do(a) professor(a) de interferência cotidiana contínua, ou seja, as ações, decorrem da escuta e observação do(a) professor ao que este micro-espaço tem a dizer por meio de seus sujeitos cotidianos e de comprometimento com a superação do racismo: “Quando eu olho na minha turma, né?! De escola pública como essa! Eu posso dizer que 70% das crianças são negras... nos diz a professora Patríciaiii. E continua: “Então, nenhum tipo de preconceito eu suporto e muito mais a questão do preconceito racial...”,

Sendo assim, poderíamos dizer que as micro-ações afirmativas são as práticas pedagógicas que possuem caráter sistemático e ocasional. Sistemático quando as práticas de caráter antirracista perpassam todo o currículo escolar, independentemente da área e/ou disciplina lecionada, e ocasional, quando surge a

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necessidade de fazer uma interferência no cotidiano escolar e evidenciar o conflito, buscando superar a situação de racismo. No entanto, embora ocasionais, ocorrendo de acordo com as circunstâncias, elas fazem parte da prática pedagógica dos(as) professores(as).

Ao estabelecer estes referenciais, encontramos semelhança com as categorias elencadas por Iolanda de Oliveira (2006), em pesquisa realizada com egressos do curso de especialização na Educação da População Negraiv. A autora, ao pesquisar sobre a inclusão dos estudos sobre a população negra no seu trabalho pedagógico em sala de aula, categorizou as práticas em inclusão ocasional, sistemática e ocasional/sistemática (p. 182). Considerando que a situação ideal é a que alterna ações de caráter sistemático e ações emergenciais.

Refletindo sobre o caráter, a abrangência e os propósitos das ações cotidianas, vimos que práticas pedagógicas “pontuais”, que alguns/algumas professores(as) atribuem caráter de ação afirmativa, decorrem de motivações externas, são ações provisórias, não se colocam em prol dos sujeitos que se encontram em situação de desigualdade e acabam por garantir a manutenção do status quo, acomodando em determinados eventos e/ou datas cívicas, a história, a cosmovisão, bem como as matrizes culturais africanas. Neste sentido, estas ações pontuais não visam uma transformação das relações raciais.

Embora nossa preocupação não seja com as ações que decorrem da Lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino de “História e cultura afro-brasileira” nas instituições de ensino, a temática foi recorrente em muitas entrevistas. O professor Reinaldov, ao iniciar sua narrativa sobre a prática, nos questiona: Por que essa Lei não sai do papel? Eu sempre tive vontade de estudar História da África, depois que veio a Lei então, fiquei mais animado!.

Há ainda a preocupação quanto à forma e ao conteúdo a serem trabalhados: “Esses temas têm que ser discutidos nas aulas de Artes, de Literatura e de História. A gente tem que ter muito cuidado porque senão ele vai ser discutido como folclore!” (Profª Josinete)vi.

Algumas narrativas parecem responder os questionamentos. A professora Palmira disse que há muitos equívocos na leitura da lei, mesmo por parte da Secretaria de Educação, pois o texto diz que os conteúdos devem ser trabalhados “especialmente” nas áreas de História, Artes e Literatura, não, “meramente” nestas áreas. E, sobre a implementação: “... Eu vi maior dificuldade com os professores” (Profª Palmira)vii. Considerou, em seu trabalho, muito difícil convencer os professores, pois em decorrência da “falsa” democracia racial há muita rejeição e há, também, um descaso e tratamento pejorativo com questões que se relacionam ao segmento negro da população.

Tendo em vista ser o município de São Gonçalo, majoritariamente, afrodescendente, percebe-se uma preocupação tanto com o oferecimento de referenciais de identificação, individuais quanto com a valorização das raízes culturais que remetem à ancestralidade africana e fazem parte das práticas e valores locais. Há, também, narrativas que remetem à religiosidade e à ancestralidade africana como elementos de afirmação identitária a serem valorizados na escola. Consideramos que, independentemente do caráter dessas ações compartilhadas nas entrevistas e das temáticas mais recorrentes, elas cumprem um papel de buscar transformar a realidade de racismo, visam superar as relações desiguais no cotidiano escolar, buscando a garantia do oferecimento de oportunidades iguais às crianças e jovens negros(as). E, com o intuito de cumprir esta meta, muitos(as) professores(as) oferecem um tratamento diferenciado aos que são, historicamente, tratados de forma desigual e hierarquicamente inferiorizados.

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A construção da identidade etnicorracial e o desvelamento da realidadeA professora Flávia Herculano, do Colégio Municipal Alberto Torres, traz

em sua narrativa, elementos que nos ajudam a complexificar o diálogo, ela, assim como outras professoras: Rosângela, Elizabeth Therezinha e Érica,viii, que narraram suas experiências e trouxeram suas práticas pedagógicas evidenciando micro-ações afirmativas cotidianas, ttazem em comum o fato de terem a identidade etnicorracial assumida, afirmada e se colocarem como referenciais para seus alunos e alunas afrodescendentes. Tanto estética como culturalmente falando elas revelam seu pertencimento e o afirmam potencializando as raízes africanas que nos constituem como brasileiros (as). E, neste sentido, a narrativa de Flávia, vem nos ajudar a continuar alinhavando os fios ao contar como foi tomando uma atitude afirmativa, primeiro, no espaço doméstico, em relação a sua filha:

Porque a gente é assim mais... a gente não é muito vista como negra, minha filha não! Minha filha tem a pele preta, né? Preta mesmo, dos cabelos bem ouriçados, bem crespos. Então, eu trançava aqueles cabelos e a trança ficava linda! Aquela trança gigante linda! Mas ela não conseguia se perceber. E aí, mesmo eu dizendo para ela, ela não percebia. E aí, eu comecei a me ver lá na infância e o que me dissesse eu também não perceberia. A minha autoestima era extremamente baixa porque eu só percebia nas minhas características algo muito negativo que era o cabelo crespo, né? O cabelo que o pente não passa com facilidade. Então, tudo isso foram aspectos que me marcaram muito na infância e a minha filha está vivendo a mesma questão. Eu falei: “Não, eu não posso permitir que a história se repita!” E foi quando eu comecei a investir nessa questão da negritude dela e acabei descobrindo a minha. Porque realmente é uma questão de descoberta! (Profª Flávia Herculano)ix.

A narrativa da professora nos remete aos estudos realizados por Gomes (N. L., 2002) que nos leva a refletir acerca da maneira como os afrodescendentes tem sido vistos, ao longo dos tempos, pela nossa sociedade. Sociedade esta que emite opiniões sobre os corpos, os cabelos e a estética negra de forma, muitas vezes, preconceituosa e negativa deixando marcar intensas e dolorosas na vida dos sujeitos (GOMES, N. L., 2002, p.43). Apesar de sabermos que para diversos grupos etnicorraciais a manipulação dos cabelos se dá sem grandes conflitos, para os negros esse processo é, na maioria dos casos, doloroso e carregado de conflitos que mexem com a autoestima e com a subjetividade. “Esses embates podem expressar sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e, até mesmo, de negação ao pertencimento étnico-racial” (GOMES, N. L., 2002, p.44).

A população negra é, continuamente, influenciada pelas relações sociais e pela mídia, dentre outros meios que veiculam mensagens de que para ser aceito tem que se encaixar nos moldes estabelecidos socialmente. E o modelo da sociedade brasileira tem sido historicamente, o branco, o ocidental e o cristão. Dessa maneira, como nos relatou a professora Flávia acerca da não identificação positiva com a própria estética, por parte de sua filha, muitas crianças negras não se vêem representadas nos espaços sociais, pois a estética branca ainda é a que predomina e que reina isoladamente, inferiorizando as demais estéticas, principalmente aquela que mais se aproxima do tipo negro africano.

No caso da professora foi preciso ajudar a filha a mudar a maneira como era vista e se percebia, assim como, mudar a sua própria maneira de ser, de pensar e,

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principalmente, mudar sua estética para que sua filha pudesse construir uma “auto-reapresentação positiva sobre o ser negro/a” (GOMES, N. L., 2002, p.46) na sociedade brasileira. Ao transformar-se, afirmando sua identidade, a professora pôde contribuir com seus alunos e alunas negros(as), possibilitando-lhe referenciais de identificação positivos para que assumam suas próprias identidades.

A autoformação e a busca por alternativas pedagógicasA relação praticateoriapratica se faz presente nas narrativas. O professor

Marcos Antônio, diz ter sido em função de uma necessidade colocada pela prática que buscou ampliar sua formação, retornando à pratica pedagógica de forma a transformar a realidade por meio de micro-ações afirmativas, que foram, também, contagiando outros(as) professores(as):

... a primeira vez que eu tive essa percepção do trabalho com negro foi quando nós resolvemos fazer, aqui na escola, há uns dez anos atrás mais ou menos, um teatro sobre o período colonial no Brasil. E aí nós começamos a esquematizar a peça. O senhor de engenho, dono de engenho, da cana-de-açúcar, fazendeiro, a mulher dele, a esposa dele, a família dele, e aí... nós não encontramos, não tínhamos escravos que... ninguém queria ser escravo, não tinha negro na escola, os negros sumiram. (...) Ninguém queria ser negro. E aí eu fui começar a me especializar... A educação da África. Ainda nem se falava na Lei. E aí a partir daquele ano, eu comecei a colocar isso sempre na minha prática. (...) E aí isso também fez com que alguns colegas... que já tinham a mesma preocupação... começassem também a fazer os trabalhos. Nós não temos aqui a Semana da Consciência Negra. Nós temos é o ano todo, falando sobre isso: sobre a questão racial no Brasil, sobre a questão do negro, a educação do negro; sempre estamos apresentando trabalhos, mostrando trabalhos... (Prof. Marcos Antônio).x

A partir da narrativa do professor, muitas questões poderiam ser abordadas, percebemos o quanto a prática pedagógica coloca-nos diante de encruzilhadas para que busquemos possíveis caminhos ou desvios para seguir adiante. A surpresa do professor diante da constatação de que nenhum aluno queria ser escravo poderia coincidir com o fato de nenhum aluno querer ser um personagem negro? Ou se daria pelo fato de ninguém querer assumir o papel de escravo, reconhecer-se como descendente de escravos? Eis algumas questões a destacar para pensarmos, pois como diz a professora Josinete, ao serem questionadas sobre seus antepassados, é muito comum, crianças e jovens, localizarem logo suas origens e dizerem, orgulhosas, que descendem de italianos, espanhois etc, no entanto, não ocorre o mesmo com as crianças negras, que, nas raras vezes que dizem, remetem apenas ao continente africano, desconhecendo o país de origem de seus antepassados. O que nos revela a omissão histórica do estudo de História da África, da valorização das matrizes africanas de nossa cultura, da visibilização de personagens negros(as) que fazem parte da nossa história. No entanto, parece que o próprio professor, cuja narrativa foi trazida ao diálogo, encontra uma saída nesta encruzilhada: vai estudar a História da África.

A professora Elizabeth Therezinha, do Colégio Estadual Pandiá Calógeras, que também buscou um curso de especialização neste sentido, conta como tem trabalhado atualmente e, sua narrativa, de certa forma, ajuda responder os questionamentos feitos pelo professor em relação à dificuldade de seus alunos assumirem a identidade etnicorracial:

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O que sabemos até hoje é que nos fomos escravos. Então, é preciso contar outra história para nossos alunos se perceberem. A gente sempre estudou com a visão eurocêntrica. Os brancos, os brancos e os brancos; os negros, aquela história. Nem falavam na época que os negros foram trazidos, falavam: “os negros vieram”. Como se fosse algo espontâneo. Os negros foram trazidos, a gente sabe, e que aconteceu aquela exaltação à princesa Isabel... Eu trabalho muito através da identidade racial, das várias identidades que nós temos. (...) porque inicialmente eles não conseguem se perceber. Tem a pele clarinha é branco. E falar negro é complicado, aí ele vai trazendo o nome moreno, mulato, seja lá o que é, mas ele nunca fala negro. Então, a gente começa a fazer esse trabalho da árvore genealógica, quem são os pais, avós, bisavós essa coisa toda para eles começarem a se entender, conhecer a sua família para saber quem é a sua família. Nós temos muito preconceito de marca. Nos Estados Unidos é preconceito de origem, mas nosso preconceito é de marca e eles vão se conhecendo (Profª Elizabeth Therezinha).xi

A fala da professora nos reporta ao pensamento de Oracy Nogueira Nogueiraxii (1985). De acordo com o autor o preconceito no Brasil é de marca (fenótipo: cor da pele, tipo de cabelo, nariz, lábios, ou seja, aparência física), diferente do racismo nos Estados Unidos, que seria de origem (one-drop de sangue africano caracterizaria o indivíduo como negro). Assim, no caso brasileiro, a mestiçagem, articulada à condição socioeconômica do indivíduo, poderia facilitar a transposição da linha demarcatória de cor, ou seja, o indivíduo poderia fazer o passing – embranquecer e ascender socialmente. Se houvesse, efetivamente uma democracia racial no Brasil, não haveria porque “tornar-se branco” para ser aceito, mas os depoimentos do(as) professores(as), por suas histórias de vida e por sua inserção no cotidiano escolar, demonstram que o preconceito de marca ainda se perpetua.

Atentos ao que narra o próprio cotidiano escolar e aos seus movimentos, os professores vão buscando uma interferência a partir do seu lugar e das concepções epistemológicas que têm e/ou estão construindo no descortinar da realidade e na busca por aprofundamento teórico.

Professor de Geografia, Marcus Vinícius, nos conta das lacunas em sua formação no que se refere à História da África:

“... eu não lembro dessas discussões, dessas coisas quando eu estudei África, por exemplo. A gente tem a geografia regional e eu não lembro dessas conexões África – Brasil. Então, eu acharia realmente uma coisa poderosíssima que tem muita coisa ainda pra ser discutida elaborada”...(Prof. Marcus Vinícius)xiii.

“Os colonizadores prepararam um assalto à nossa história”, nos diz Ki-Zerbo (2006). Para o autor, embora mais curta que o tráfico dos negros, a colonização foi mais determinante, causando maior alienação. “A África é o berço da humanidade. Todos os cientistas do mundo admitem hoje que o ser humano emergiu na África. Ninguém o contesta, mas muita gente esquece isso” (p. 13). E em relação à ausência de referência à história da África durante seus estudos, sua formação: “... mas nada sobre a África! Pouco a pouco essa exclusão foi-me parecendo uma monstruosidade” (p. 14).

O pensamento de Boaventura de Sousa Santos encontra-se com o de Ki-Zerbo, ao trazer a discussão acerca do silenciamento submetido às ditas “culturas dominadas”, nos aponta para o desafio que representa perceber a escola como um espaço intercultural. E, segundo o autor, um dos elementos que mais dificultariam a

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proposta do estabelecimento de um diálogo intercultural, deve-se ao “epistemicídio” ocasionado pelo colonialismo ocidental, ou seja, a eliminação das inúmeras formas de saber dos povos colonizados. Em nome de “uma razão”, imposta hegemonicamente, as demais racionalidades foram consideradas “irracionalidades”. Cosmovisões que diferiam da hegemônica, com seus saberes, culturas, lógicas etc, foram sendo silenciadas sob o rótulo da ignorância e atraso.

A professora Palmira nos conta da tentativa de desenvolver um projeto na escola:

Pediram minha contribuição. De vários saberes. Pra que a gente pudesse montar um projeto na escola de valorização da vida afro-brasileira, né? E a matemática... de conhecimentos trazidos, oriundos desse continente, pra matemática no mundo. Aí, tem um professor que diz o seguinte: Que não tinha tido nada. Que os negros não tinham contribuído pra nada! Que ele não podia falar de um grupo que nunca tinha feito nada pela matemática do mundo! Ele falou: “Você me diga o nome de alguém que ganhou o prêmio Nobel na área de exatas?” Ele falou assim: “Não tem ninguém! Então, os negros não serviram pra nada.” (...)Eu vi maior dificuldade com os professores. (...)E eu acho que esse seria um caminho onde micro-ações... Elas existem!... (Profª. Palmira)

O racismo explícito do professor traz embutida a ignorância, falta de conhecimento acerca da sabedoria africana e Cunha Jr. e Menezes (2003) trazem esclarecimentos sobre o que tem sido omitido pela história oficial: “o desenvolvimento do pensamento matemático-geométrico é intrínseco à história africana. Segundo GERDES (1982), a simetria é uma das características mais presentes em muitos padrões das diversas culturas africanas” (p.312). E, exemplificando, trazem a tecelagem africana, com sua complexidade na padronagem. Os autores nos dizem ainda, que um professor de estudos comparativos em Ohio State University, percebeu padrões geométricos complexos nas estruturas de áreas de assentamentos africanos (fractais) e, segundo Cunha Jr. e Menezes, “ficou comprovado que seu uso é intencional e permeia a vida dos povos africanos, desde o trançado dos cabelos, os sistemas de contagem, passando pelos rituais religiosos e relações sociais” (2003, p. 313). E essa “exclusão mostruosa”, intencional e ideológica, muitos danos têm causado às construções identitárias afrodescendentes.

Micro-ações em uma rede de experiências Dois projetos mencionados pelos professores William e Marcus Vinícus,

respectivamente no Colégio Estadual Walter Orlandini e, do Instituto Estadual de Educação Clélia Nanci, dialogam e trazem interfaces, pois além do caráter coletivo, ultrapassam os muros escolares, havendo participação do entorno da escola e da comunidade gonçalense.

O professor William traz uma narrativa rica em detalhes sobre o projeto implementado na escola, reconhece que foi ao perceber – ouvindo e sentindo o cotidiano que o Movimento Hip Hop, tornou-se um projeto no coletivo da escola, pois os alunos demonstram por sua corporeidade, uma relação íntima com o ritmo: “dançando sem música mesmo”:

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Quando eu entrei como concursado no Estado em 2004, como professor de Educação Física, percebia em São Gonçalo que tinha um Movimento... e o Hip Hop... havia um Movimento pelos grafittes, uma vez eu tive um contato... passei por uma praça e vi um Movimento, então, comecei a pensar assim: poxa, quem é que está fazendo isso aqui, quem é que está fazendo isso acontecer aqui? Aí tomei contato com alguns rappers e aí conversei e percebi que era possível, era significativo fazer um projeto para a escola. Aí eu tive a ideia de criar um projeto com dança de rua e mostrei a diretora e ela gostou e comecei a fazer esse projeto em 2005 e fiz em 2006 que visava além de levar esse contato da dança de rua para esses alunos que estavam interessados levava, também, essa ideia de desconstruir esse ideal do branqueamento. Então, tem as duas coisas juntas aí (Prof. William).xiv

A valorização das manifestações culturais de matrizes africanas presentes no cotidiano da comunidade de São Gonçalo tem sido importante referencial formador e informador aos sujeitos escolares, marcando assim, o pertencimento local. Ou seja, a valorização é pensada, também, em função do lugar. E o professor Marcus Vinícius, nos conta sobre o Projeto “Portal da Consciência”, que ainda traz uma perspectiva de formação contínua de professores:

O “Portal da Consciência”, basicamente falando, ele... no primeiro ano ele foi uma revista ou foi um jornal repercussivo e com imagens. O nosso pouco, que a gente trouxe, foram questões e reflexões ligadas à africanidade e ligadas a São Gonçalo. Então, uma coisa está vinculada à outra. E... o que a gente tentou, junto dessa metodologia, é trabalhar um pouco na perspectiva da resiliência. Quais são as coisas que a gente pode trabalhar pra fazer com que nosso aluno, ele comece a incorporar práticas, que ele mais à frente vá conseguir superar os obstáculos que a vida coloca. Não apenas em relação a sua negritude, mas sua negritude e seu lugar. Aí entra minha ação como professor de geografia. Com o espaço ou trocar com os professores essa coisa mesmo que é São Gonçalo. (...) Então, o Portal, na minha opinião, ele tem realmente esse vetor da africanidade, dessa cultura brasileira. De revelar essa cultura, de fazer e tentar criar os pontos entre uma coisa e outra. De pegar essas expressões contemporâneas que a gente tem e que deu essa africanidade. Hoje ela está no samba, ela está no rap, ela está no funk, ela está nas poesias, ela está viva, ela está latente. (...) construir um discurso e apresentar esse discurso, e apresentar essas pessoas pra que as crianças vejam (Prof. Marcus Vinícius).

A fala e a prática do professor nos remetem às “africanidades brasileiras”, ou seja, marcas de um pertencimento já ressignificado e assumido por muitos(as), independentemente da origem etnicorracial:

Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm origem africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprias dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia (SILVA, P. B. G., 2000, p. 151).

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Há marcas ancestrais que singularizam as práticas cotidianas e as formas de expressão dos(as) afrodescendentes na sociedade brasileira e essa originalidade, fruto da herança ancestral, está presente na narrativa do professor Marcus Vinícius, que entrelaça ações e comentários sobre as ações. A própria questão de se trabalhar o projeto na perspectiva da resiliênciaxv nos dá oportunidade de complexificar o diálogo, no sentido de pensarmos se não são as micro-ações afirmativas cotidianas, práticas pedagógicas de caráter resiliente, pois visam promover a superação da realidade adversa com a qual convivem os sujeitos cotidianos. Uma realidade que desafia crianças e jovens afro-descendentes, pertencentes às camadas populares a buscarem “saídas” que nem sempre os(as) potencializam e/ou potencializam seu pertencimento etnicorracial.

As práticas narradas reafirmam as possibilidades transformadoras dos sujeitos e de suas realidades. O professor continua falando sobre o projeto:

A gente tem outra parte que também é muito legal! Que é o Movimento Hip Hop São Gonçalo, que é um movimento muito forte de uma garotada muito boa! De gente de muito talento! E que quando o “Portal da Consciência” abre, eu não sei de que maneira eles se comunicam, que vem todos. A gente tem uma verdadeira convergência dessa garotada aqui. Outra coisa, também, muito boa, não sei se você sabe disso... É que nossos garotos do grafitte aqui de São Gonçalo são excelentes! São os melhores do Brasil, também. (Prof. Marcus Vinícius).

E sua narrativa se encontra com a do professor William, revelando esta rede de experiências entrelaçadas, pois ambos reconhecem a riqueza das práticas culturais de matrizes africanas presentes em São Gonçalo:

Os alunos, eu percebo assim... as sementes plantadas que não foram só eu que plantei, foi São Gonçalo em peso. (...) eu percebo quando paro para observar os alunos no cotidiano escolar, inclusive alunos que não fizeram parte do projeto (Dança de Rua) comigo dançando sem música mesmo, então percebo aquela corporeidade, aqueles movimentos que se relacionam com o Movimento Hip Hop como um todo. Então, percebo que para os alunos é super significativo. Se eu der continuidade há uma chance de sucesso com relação a isso (Prof. William).

As narrativas que retratam práticas pedagógicas preocupadas não só com a dimensão pessoal da construção identitária e do pertencimento etnicorracial dos sujeitos e sua potencialização, mas com a dimensão coletiva, de pertencimento a um lugar que traz marcas culturais de herança africana, nos traz a perspectiva da interculturalidade. Nesta perspectiva, diferentes matrizes culturais são colocadas em diálogo, sem a supremacia de uma cultura em relação às outras nos permitindo pensar o diálogo “entre” e não “sobre” culturas, deslocando o olhar e o foco, provocando o repensar a encruzilhada cultural que nos constitui como brasileiros(as).

Os projetos narrados anteriormente, nos parecem comprometidos com esta perspectiva, não só com a transformação da realidade dos alunos, mas que buscam a formação contínua dos professores, para além da unidade escolar que abriga tal projeto: “A nossa maior luta dentro desse espaço é pra conquistar o professor a perceber o quanto que a contribuição da cultura afro-brasileira ou africana no Brasil, melhor

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dizendo, ela se faz necessária e se faz viva e presente. (...) A gente colocou no projeto capacitação de docente e discente...” (Prof. Marcus Vinícius).

Palavras provisoriamente finais

É neste terreno fértil da escola pública que temos recolhido as micro-ações afirmativas cotidianas. Reconhecemos que neste espaço micro germinam práticas construídas numa rede de solidariedade e comprometimento coletivo com a transformação da realidade de racismo. Há muitos caminhos a percorrer, são muitas as encruzilhadas encontradas. Neste locus marcado pela complexidade, como nos aponta Martins (1997), nos aproximamos de práticas pedagógicas que rompem com a linearidade de um cotidiano conforme e partem para ações instituintes, anunciando possibilidades emancipatórias. Embora nossa preocupação não tenha sido, a priori, de apresentar propostas no sentido da implementação da Lei 10.639/03, este pode ser um “lugar terceiro”, apontado pelas encruzilhadas da pesquisa. Com estas pistas, estamos percebendo e reafirmando a urgência de formação e a falta de políticas públicas mais incisivas e pontuais neste sentido. É inegável a importância das Ações Afirmativas e, com ela, a Lei 10.639/03, mas é preciso que seja subsidiado o trabalho dos profissionais nas instituições de ensino que denunciam a lacuna histórica em suas formações iniciais e a ausência de uma formação contínua.

Consideramos que o cotidiano escolar nos parece fértil no compartilhar de saberes e na co-construção solidária de conhecimentos emancipatórios. Neste sentido, o trabalho com as narrativas orais é fundamental pela valorização da palavra dos sujeitos cotidianos que fazem viva a história da educação. Precisamos, pois, avançar em espaços de investigação-formação, estimulando que as histórias anônimas, as memórias, as experiências da prática pedagógica fertilizem novas ações, favorecendo a reflexão sobre as experiências compartilhadas.

Em um município, majoritariamente formado por afrodescendentes, estes caminhos precisam ser trilhados e esta é uma possibilidade para novos projetos.

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i A pesquisa contou com uma bolsa Apq1 – Faperj, no período 2008 – 2009 e Pibic – UERJ, no período 2008 – 2010.ii As bolsistas Luciana Santiago da Silva e Rosilene Vieira da Costa fizeram parte de todo o processo de pesquisa.iii Em entrevista realizada no dia 17 de setembro de 2008, no Colégio Municipal Ernani Faria, localizado no bairro de Neves.iv Curso ministrado pelo Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb/FEUFF).v Em entrevista realizada no dia 20 de agosto de 2008, na FFP – UERJ, pois o professor Reinaldo, que trabalha na Escola Municipal Raul Veiga estava na instituição em função de sua participação em uma pesquisa orientada por pesquisadora do Departamento de Educação da FFP – UERJ.vi Em entrevista realizada no dia 10 de setembro de 2008, no Colégio Estadual Nilo Peçanha, localizado no bairro de Zé Garoto. vii Em entrevista realizada no dia 12 de agosto de 2008, no Colégio Municipal Ernani Faria, localizado em Neves.viii Respectivamente, professoras do Colégio Municipal Ernani Faria, do Colégio Estadual Pandiá Calógeras e da Escola Municipal Profª Zulmira Mathias Netto Ribeiro.ix Em entrevista realizada no dia 16 de setembro de 2009, no Escola Municipal Alberto Torre, localizada no bairro de Mutondo, em São Gonçalo.x Em entrevista realizada no dia 26 de novembro de 2008, no Colégio Municipal Almirante Alfredo Carlos Soares Dutra, localizado em Alcântara.xi Em entrevista realizada no dia 22 de outubro de 2009, no Colégio Estadual Pandiá Calógeras, localizado em Alcântara.xii Oracy Nogueira, sociólogo, que desenvolveu suas pesquisas nos anos 50 (século XX), afirmava que, quanto mais próximas estivessem as pessoas negras do tipo físico africano, maiores as probabilidades de serem discriminadas, de sofrerem por preconceito, enfim, de serem impedidas de ascender socialmente no Brasil, tendo em vista ser o preconceito, em nossa sociedade, de “marca” e não de “origem”, como nos EUA.xiii Em entrevista realizada no dia 17 de outubro de 2008, no Instituto Estadual de Educação Clélia Nanci, localizado no bairro de Brasilândia.xiv Em entrevista realizada no mês de novembro de 2009, na FFP – UERJ, pois o professor William, além de atuar no Colégio Estadual Walter Orlandine, faz parte do quadro de professores contratados do Departamento de Educação, da FFP- UERJ, ambas as instituições localizadas no bairro de Paraíso.xv Resiliência é um conceito da Física, significando a capacidade da matéria voltar a sua forma original após sofrer um impacto. Apropriado pelas Ciências Sociais, resiliência significa a capacidade que um indivíduo tem de superar situações adversas, mesmo que todo o contexto de vida revele a dificuldade, ou mesmo, a incapacidade de superação.