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1 UMA IMPRENSA, UM GRUPO SOCIAL: DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DO NEGRO Rosangela Ferreira de Souza Universidade de São Paulo/ Universidade Bandeirante [email protected] relações étnico-raciais/ imprensa negra/ história conectada da educação I. Considerações iniciais Este ensaio almeja apresentar as ações iniciais de pesquisa do projeto em nível de doutorado “Pelas páginas dos jornais: identidade, representações e escolarização do negro em São Paulo (1924-1940). Este pretende caracterizar as práticas de escolarização dos negros no início do século XX, veiculada por periódicos não-educacionais direcionados especificamente para essa população, sob a denominação de “imprensa negra” ou “jornais da imprensa negra”. Diferente de outras pesquisas, nas quais é utilizada a imprensa periódica educacional para se buscar compreender práticas de escolarização, a formação de professores, as características do alunado, da educação oferecida por órgão oficiais (Catani e Souza,1994), este trabalho pretende, a partir da organização e caracterização de uma imprensa que não se anunciava especificamente como órgão de propagação de idéias educacionais, reconhecer a constituição da identidade, representações e escolarização dos negros, em São Paulo, de 1927 a 1940. Proceder-se-á a análise do discurso propagado pelos jornais buscando-se retratar as condições sociais, de trabalho e educacionais do negro no Brasil no início do século XX, após a abolição da escravatura, e suas perspectivas quanto a sua escolarização, enquadramento ao “mundo dos brancos”, ascensão social, etc. Muitos foram os jornais que constituíram cabedais de informações sobre os negros no interior do conjunto das

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UMA IMPRENSA, UM GRUPO SOCIAL: DIFERENTES REPRESENTAÇÕES

DO NEGRO

Rosangela Ferreira de Souza

Universidade de São Paulo/ Universidade Bandeirante

[email protected]

relações étnico-raciais/ imprensa negra/ história conectada da educação

I. Considerações iniciais

Este ensaio almeja apresentar as ações iniciais de pesquisa do projeto em nível de doutorado “Pelas páginas dos jornais: identidade, representações e escolarização do negro em São Paulo (1924-1940). Este pretende caracterizar as práticas de escolarização dos negros no início do século XX, veiculada por periódicos não-educacionais direcionados especificamente para essa população, sob a denominação de “imprensa negra” ou “jornais da imprensa negra”.

Diferente de outras pesquisas, nas quais é utilizada a imprensa periódica educacional para se buscar compreender práticas de escolarização, a formação de professores, as características do alunado, da educação oferecida por órgão oficiais (Catani e Souza,1994), este trabalho pretende, a partir da organização e caracterização de uma imprensa que não se anunciava especificamente como órgão de propagação de idéias educacionais, reconhecer a constituição da identidade, representações e escolarização dos negros, em São Paulo, de 1927 a 1940. Proceder-se-á a análise do discurso propagado pelos jornais buscando-se retratar as condições sociais, de trabalho e educacionais do negro no Brasil no início do século XX, após a abolição da escravatura, e suas perspectivas quanto a sua escolarização, enquadramento ao “mundo dos brancos”, ascensão social, etc.

Muitos foram os jornais que constituíram cabedais de informações sobre os negros no interior do conjunto das publicações da imprensa negra, pretende-se com este ensaio verificar, no entanto, se as representações e aspirações educacionais e sociais entre os negros eram sempre as mesmas nos jornais; se existiam diferenças na abordagem dada ao negro brasileiro no interior dos artigos de dos jornais e por fim, apontar em que medida essas diferenças atraiam um maior número de leitores e garantiam formas próprias de circulação, leitura e apropriação das idéias propagadas. Pretende-se desconstruir o discurso, segundo o qual, a imprensa negra constituiria-se em um bloco homogêneo de informações acerca do negro e que sempre esteve disposta a defender e reivindicar seus direitos diante de uma sociedade pretensamente discriminatória.

Tal perspectiva de trabalho insere-se nas discussões realizadas no interior do campo da História Comparada, especificamente ligada aos estudos de Marcel Detienne, que propõem uma série de preocupações em afastar a história comparada de anacronismos (tão comuns à história sobre os negros). Para ele, ao isolar os juízos de valor que acompanham muitos exercícios comparativos é possível ao historiador na organização de uma diversificação dos olhares sobre os objetos de pesquisa:

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“O comparativismo construtivo de que pretendo defender o projeto e os procedimentos deve de início se dar, como campo de exercício e experimentação, o conjunto de representações culturais entre representações do passado, tanto as

mais distantes como as mais próximas, e os grupos vivos observados sobre o planeta, ontem ou hoje.” (DETIENNE, 2004)

Nesta proposta de reformulação dos estudos comparativos, o autor aponta, ainda, para a possibilidade da construção de uma nova metodologia de trabalho, segundo a qual não se sugere apenas apresentar as semelhanças ou diferenças entre séries documentos de uma determinada série, criando analogias superficiais, mas atentar para determinadas ausências nos discursos construídos em espaços e temporalidades diferentes com a construção de uma categoria comparável estabelecendo novas perguntas sobre os objetos de pesquisa. No livro Comparar o incomparável (2004) Detienne apresenta os mecanismos de pensamento do historiador nesta perspectiva ao buscar entender como diferentes povos buscavam entender o conceito de fundação, de território:

“O comparativista tem o sentimento de descobrir um conjunto de possíveis, cuja amoedação conceitual mostra elementos singulares e constitutivos de arranjos diversamente configurados decompondo a categoria ‘fundar’ no âmbito de ‘estabelecer um território’ por meio de uma dúzia de culturas mobilizadas para esta experiência, o comparativista procede a uma desmontagem lógica que lhe permite descobrir articulações entre dois ou três elementos, isolar microconfigurações abrindo-se sobre diferenças cada vez mais refinadas e contíguas” (p.56)

Importante ressaltar que a pesquisa de doutorado não pretende ressaltar somente as condições de precariedade, preconceito e racismo, as quais os negros estariam submetidos no período estudado, mas compreender a natureza das iniciativas de grupos de negros letrados, que anteriormente tiveram acesso a alguma forma de escolarização, na constituição de uma representação e identidade da população negra, diante de orientações transmitidas pelos periódicos em questão.

Tal abordagem das questões étnico-raciais aproxima este trabalho de uma vertente na historiografia da educação brasileira, que aspira a uma modificação nos procedimentos de construção de análises e produção de conhecimento sobre a população negra:

“É preciso uma avaliação mais segura sobre o papel que os aspectos raciais

desempenharam no processo educacional e social do Brasil, para que possamos dimensionar a importância deste tema na historiografia e a forma mais coerente

de integrá-la à história da educação” (FONSECA, 2007).

Nesta perspectiva historiográfica, ainda em construção, são inúmeros os trabalhos que lançam esclarecimentos sobre esta temática étnico-raciais. Pretos, pardos e crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX, de Marcus Vinicius da Fonseca, ao estudar os processos de escolarização dos negros em escolas mineiras do século XIX, anuncia em sua introdução a dificuldade em encontrar trabalhos que se propusessem a descrever a população negra desvencilhando-a da figura do escravo não escolarizado, sofredor dos mais diversos castigos, envolto em uma atmosfera de sofrimento e segregação racial. O autor procura, então, com seu

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trabalho apresentar as relações entre negros e a educação na sociedade mineira, buscando apresentar a questão racial como elemento estruturante da sociedade, justificando sua utilização por historiadores da educação. Na mesma linha de discussões destacamos a dissertação de mestrado de Surya Aaronovich Pombo de Barros intitulada “Negrinhos que por ai andão: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920)” na qual a autora discute aspectos da escolarização da população negra na cidade de São Paulo. O trabalho apresenta, ainda, uma discussão sobre as possibilidades de pesquisa da temática do negro em diferentes fontes, entre elas as memórias de famílias negras, literatura e a imprensa negra.

A escolarização da população negra na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, de Zeila de Brito Fabri Demartini revela através da análise de registros orais de personagens importantes do movimento negro como José Correia Leite, a importância da educação como instrumento na construção de ações desenvolvidas pela comunidade negra.

Esse tipo de abordagem também pode ser encontrado no texto de Maria Lucia Hildorf sobre as professoras negras na Primeira República em São Paulo e constituição do ensino municipal de São Paulo, que busca organizar a constituição da profissão docente das mulheres negras a partir de relatos orais e documentos do ensino oficial.

O texto de Maria Isaura Pereira de Queiroz, Coletividades Negras. Ascensão sócio-econômica dos negros no Brasil e em São Paulo apresenta um levantamento de questões importantes a respeito do negro antes e depois da abolição, como a heterogeneidade existente na população negra tanto no plano étnico como no de instrução e de conhecimento geral. No que diz respeito à instrução dos negros, a autora detecta a presença em São Paulo não só negros em condições sociais resultantes de sua condição de escravo, mas também negros que tiveram acesso a escola oficial, na qual aprenderam a ler e a escrever e puderam ascender socialmente.

Experiências de educação profissional para ex-escravos e cidadãos afro-descendentes, bem como idéias de ascensão social para os negros via educação no início do século XX aparecem no texto de Marcia Araújo e Geraldo Silva intitulado Da interdição escolar às ações educacionais de sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissionais, técnicas e tecnológicas, nos proporcionando entendimentos acerca do tipo de escolarização oficial oferecido ao negro.

A organização da população negra em movimentos de caráter reivindicatório no inicio do século XX aparece nos textos de Regina Pinto Pahim, Movimento Negro e educação do Negro: a ênfase na identidade, recuperação da trajetória histórica do movimento negro no Brasil, inclusive iniciativas educacionais, e O movimento negro em São Paulo: luta e identidade, sua tese de doutorado que trata especificamente do movimento negro denominado Frente Negra Brasileira e suas influências nos modos de pensar as condições do negro no início do século XX. Percebe-se em ambos os textos uma tendência em apresentar o negro em um nicho bastante específico da sociedade brasileira, que ora pretende criar uma identidade própria para a população negra, ora vincula-se a um discurso de enquadramento ao “mundo dos brancos”.

Por fim, nesta caracterização bibliográfica da questão étnico-racial, importante ressaltar o trabalho de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Identidade Negra: pesquisas sobre negro e educação no Brasil, que apresenta uma descrição detalhada de pesquisas sobre a temática que se aproximam da vertente que pretende apresentar o negro como elemento essencial na constituição da sociedade brasileira e, portanto, imprescindível em pesquisas de cunho educacional.

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II. Pelas páginas dos jornais: A circulação de representações sobre os negros

Ao tratar das fontes para a constituição de pesquisas em História da Educação muitos são os desafios enfrentados. Segundo NUNES e CARVALHO: ”os historiadores da educação dependem apenas das questões formuladas dentro de certas matrizes teóricas, mas também de materiais bons trabalhos na área sem respeitar a empiria contar a qual lutamos; e todos já nos deparamos com dificuldades de recolher fontes impressas e arquvísticas, geralmente lacunares, parcelares ou residuais.” (p. 176). Nos estudos no interior da temática das relações étnico-raciais, os problemas aumentam, à medida que se observa escassez em materiais oficiais que tragam informações sobre o negro descoladas de sua condição de escravo ou de grupo social submetido a todo tipo de discriminação e preconceito.

A pesquisa de doutoramento pretende apresentar a imprensa negra como fonte fértil na constituição de uma nova imagem do negro nas primeiras décadas do século XX, utilizando como categoria de análise os processos e estratégias de escolarização difundidas pelas páginas dos jornais da imprensa negra:

“uma imprensa que tem circulação restrita e penetração limitada à comunidade a que se

destina, irá exercer uma função social, política e catártica durante sua trajetória, mudando de conotação ideológica

com a passagem do tempo” (Moura, 2002, p. 6)

Para o desenvolvimento da pesquisa serão utilizados como fontes primárias os jornais da chamada “Imprensa Negra” Pretendemos elencar os redatores dos artigos, diretores, fundadores, co-fundadores, tiragem (lucro advindo da mesma), formas de circulação, buscar artigos que mostrem pressões e posições políticas do jornal, caracterizar historicamente o período de circulação e as figuras típicas da “imprensa negra”, assim como as premissas de caráter educacional propagadas por estes.

A análise dos artigos propiciará a sistematização das temáticas que permeiam os textos presentes aos jornais, o público a que exatamente se destinavam as publicações (suas expectativas), os interesses, valores e técnicas de cooptação do mercado editorial e o sistema de produção, circulação e consumo.

Tal perspectiva do uso das publicações periódicas como fonte de pesquisa foi realizada por Ana Luiza Martins no texto: Da fantasia à história: folheando páginas revisteiras: neste trabalho ressalta a relevância do uso de periódicos como fonte da pesquisa histórica, especificamente, as revistas, fornecendo pistas acerca da análise desta fonte chamando atenção para o fato que analisar um periódico não significa se limitar à análise apenas das páginas dos jornais, mas da desconstrução do discurso:

“Toda a rica gama de temáticas, públicos e conteúdos merece estudos circunstanciados no quadro da revista como fonte histórica. Razão pela qual também é temerário limitar-se tão somente à análise do discurso das publicações; ou pinçar de seus textos frases ou parágrafos avulsos que corroborem determinadas afirmações, desalinhadas de seus contextos. Assim como é importante o cotejamento com suas partes, bem como imperiosas sua contextualização e decodificação, seja na instância de sua emergência como naquela da desconstrução do discurso e análise das ilustrações que a compõem.” (MARTINS, 2003)

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Outros trabalhos já cuidaram de aspectos semelhantes aos pretendidos por essa pesquisa, no entanto, o tratamento dispensado aos periódicos ocorreu de forma geral ou bastante restrita a um único jornal, e não buscavam no interior de seus artigos referências às possibilidades de educação e instrução da população negra.

Entre eles citamos o trabalho de Roger Bastide, A imprensa negra no Estado de São Paulo que realizou a 1ª. periodização da imprensa negra. Para o autor, podemos dividir a circulação dos jornais em três períodos: o primeiro a partir de 1915, o segundo período de 1930 a 1937 e o último, a partir, de 1945.

Outra periodização bastante utilizada em pesquisas com esta fonte foi a realizada por Miriam Nicolau Ferrara intitulada A imprensa negra paulista (1963-1963). Para a autora, diferentemente de Bastide, há um período de circulação da imprensa que vai de 1915 a 1923: neste momento os jornais são veículos de comunicação preocupados em apresentar pequenas notas de falecimento, casamentos, festas religiosas, quermesses e colunas de fofocas da elite negra. Uma segunda fase corresponderia aos anos compreendidos entre 1924 a 1937, na qual os jornais teriam adquirido seu discurso mais politizado e reivindicatório. De 1945 a 1963, última fase representada pela autora a imprensa negra aumenta o volume de títulos publicados e em circulação e uma variedade de temáticas invade seus artigos. Como afirma Ferrara (1983), os jornais publicados entre 1904 e 1963, não eram apenas uma imprensa de informação; sua principal característica pode ser traçada a partir do tratamento dado às questões raciais e sociais que só se interessava pela divulgação de fatos relativos à classe da ”gente de cor”:

“Sua principal função era dar aos homens de cor o senso de solidariedade, encaminhá-los para lutas contra o complexo de inferioridade, superestimando os valores negros. Eram órgãos de educação e protesto. “(FERRARA, 1984)

Usando como referência estes dois trabalhos sobre a imprensa negra, juntam-se a esse rol de pesquisa os trabalhos de Gilmar Luiz de Carvalho e Carlos Eduardo Dias Machado. O primeiro intitulado, A imprensa negra entre 1915 e 1937: características, mudanças e permanências, apresenta a evolução da imprensa negra no quadro histórico paulista ressaltando seu papel na conscientização do negro em relação à busca de sua identidade e obtenção da cidadania. Segundo Gilmar Luiz, a imprensa negra “marca o início da postura da reivindicação direta, da valorização do negro como protagonista da história, da lembrança de seu papel na sociedade e da crítica à faltas de ação dos próprios irmãos” (p.109). População negra e escolarização na cidade de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930, de Machado traz uma caracterização da educação da população negra segundo a imprensa negra destacando os jornais “O Clarim da Alvorada” e “Progresso” e novamente o viés de que a educação proopagada por estes meios de comunicação serviria ao ideal negro de ascensão social.

Essas abordagens de periodização da imprensa negra em São Paulo podem ser consideradas derivadas do trabalho realizado por Nelson Werneck Sodré em História da Imprensa no Brasil, livro no qual o autor realiza um estudo historiográfico da imprensa brasileira, do período colonial ao republicano, retratando as origens e constituição dos jornais e revistas brasileiros, as influências políticas e sociais sofridas por seus editores a cada mudança na ordem política do país. Aponta, por exemplo, as alterações sofridas na estrutura administrativa e visual da imprensa brasileira na virada do século XX:

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“A passagem do século, assim, assinala, no Brasil a transição da pequena à grande imprensa. Os

pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas,

com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função. Se é

assim afetado o plano da produção, o da circulação também o é, alterando as relações do jornal como

anunciante, com a política, com o leitor.”( SODRÉ, 1999).

O trabalho de Sodré nos ajudar a lançar novos olhares sobre a imprensa negra, não como compêndio isolado de jornais, como em outros trabalhos de pesquisa, mas como parte integrante de uma outra imprensa em expansão no país na época estudada, sofrendo as mesmas influências e pressões para se manter ativa. Outra contribuição do referido texto ao trabalho com a imprensa como fonte primária são as categorias de análise dos textos dos artigos dos jornais da “grande imprensa”. Sodré analisa as mudanças ocorridas nos textos dos jornais do início do século XX, nos dando pistas de como proceder tal análise:

“O jornal, na alvorada do século, ainda é a anêmica, clorótica e inexpressiva gazeta da velha

monarquia, uma coisa precária, chã, vaga, morna e trivial. Poucas páginas de texto, quatro ou oito.

Apenas. Começa geralmente pelo artigo de fundo, um artigo de sobrecasaca, cartola e pince-nez, ar

imponente e austero, mas rigorosamente vazio de conteúdo, de opinião. O noticiário era redigido de forma difícil, empolada. O jornalismo era feito por

literatos é confundido com literatura, e no pior sentido.” (SODRÉ, 1999) .

O autor busca também caracterizar a imprensa paulista do início do século XX em duas referências possíveis: a imprensa política e a imprensa burguesa:

“A linguagem da imprensa política era violentíssima. Dentro de sua orientação

tipicamente pequeno burguesa, os jornais refletiam a consciência da camada para a qual, no fim das contas, o

regime era bom, os homens do poder é que eram maus;com outros homens o regime funcionaria maravilhosamente bem,

todos os problemas seriam resolvidos. Assim, todas as questões assumiam aspectos pessoais e era preciso atingir

as pessoas para chegar aos fins moralizantes “(SODRÉ, 1999)

Cabe refletir em que medida a imprensa negra, no discurso presente à segunda fase de suas publicações, repetia o tom moralizante da “grande imprensa” e colocava o negro como único sujeito social capaz de mudar sua própria condição no interior das relações sociais.

Especificamente para esse ensaio serão apresentados resultados preliminares da análise de alguns artigos, editoriais, propagandas e imagens do jornal “O Clarim da Alvorada”, jornal que circulou no período de 1927-1940, e o Jornal “Voz da Raça” de circulação de 1933-1937,

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periódico ligado ao movimento frentenegrino. A escolha dos dois jornais no âmbito da coleção de jornais da imprensa negra deve-se às aderências quanto aos objetivos para com a população negra e as divergências de caráter político que ao longo de sua circulação, os dois jornais apresentaram.

A constituição da categoria comparável aqui se assenta na possibilidade de que jornais de um mesmo bloco de publicações jornalísticas, a priori com idéias e ideais semelhantes entre si, teriam apresentados em seus discursos representações diferenciadas dos negros por conta de suas orientações políticas e apresentados ao público como portadores de uma mesma ideologia sobre o negro paulista no início do século XX: Quem é o negro a quem se destinam as publicações?; Como cada periódico define as condições sociais e econômicas e as reivindicações dos negros?, Qual a melhor instrução e educação a ser transmitida a este grupo social? Como cada jornal pensa junto ou em separado configurações inéditas sobre o negro?

O jornal O Clarim da Alvorada foi um jornal pertencente à segunda fase de publicações da imprensa negra, período no qual se acentua e desenvolve-se o caráter combativo da imprensa negra. Tal jornal foi fundado por José Correia Leite e Jaime Aguiar em 6 de janeiro de 1924 e foi um dos jornais que mais se destacaram em São Paulo, marcando a história da imprensa negra. Fundado para ser um jornal literário, tornou-se arma de luta contra a situação do negro na sociedade brasileira.

Apresentou duas fases: a primeira de 1924 a 1927, na qual guardou seu caráter literário com aspectos combativos e uma segunda fase de 1928-1938 quando assume o papel reivindicatório e de cunho político. Curioso observar o subtítulo do jornal que indica as tendências acima apresentadas: “O Clarim da Alvorada: órgão literário, noticioso e humorístico”, “O Clarim da Alvorada: órgão literário, noticioso e científico” até 1928. Após este ano, o registro do subtítulo do jornal é outro: “O Clarim da Alvorada: pelos interesses dos homens pretos, noticioso, literário e combate”. A representação do negro aparece, nas duas tendências do jornal, em editorais que insistem em apresentar o negro como elemento constantemente absorvido por processos de humilhação e discriminação:

“Se analysarmos o valor de nossos antepassdaos, veremos, através da história, a sublime coragem de uma raça que, embora escravisada, não se deixou dominar na lucta, em conquista de

seus direitos. Resignados passavam por toda a série de amarguras, esperando sempre sucumbir sob o ferro do feitor austero. Quantas gotas de lágrimas, custou àqueles mártires, que foram os

primeiros obreiros do progresso e da ordem de nossa pátria”. (O Clarim da Alvorada, 6 de abril de 1924, número 4)

O negro como mártir é também apresentado sobre a forma de poemas escritos pelos editores do jornal:

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O jornal não dispunha de capital próprio e o grupo custeava suas tiragens que variavam de 1000 a 2000 exemplares por mês. Os anúncios eram pagos, contribuindo para a manutenção do jornal. Não mantinha relações com grupos políticos ou econômicos. A distribuição acontecia gratuitamente nos bailes e associações. A periodicidade era mensal e a maioria dos exemplares apresentava de 4 a 6 páginas. Em muitos artigos desse jornal a educação é apresentada como caminho para a ascensão social dos negros. Comumente eram invocados os exemplos de Luis da Gama, José do Patrocínio, Cruz e Souza, dentre outros, como símbolo da importância da educação.

As ilustrações se dedicavam a apresentar apenas fotografias ligadas a grandes personagens da história dos negros. O periódico exalta, em suas páginas diversas gravuras, datas históricas ligadas à sociedade negra, principalmente datas como o treze de maio. Entre as ilustrações destacam-se, também, as propagandas, que chegam a ter páginas inteiras dedicadas a elas.

Aborda um conceito de educação sempre vinculado a uma concepção de civilidade e moralidade que pretendiam incentivar, além de artigos apoiados na valorização da educação enquanto meio de integração e ascensão social. O próprio jornal julga-se pedagógico e instrutivo. Muitos foram os artigos que procuravam incentivar o negro a uma tomada de consciência considerada adequada:

“Os nossos paes são os primeiros que se devem preocupar neste sagrado dever, par mais tarde, quando homens, sabermos de como educar os

nossos. A educação è a cultura da educação, tem por fim corrigir nossos vícios, reformar os hábitos e costumes e polir os males. É necessário esforçarmos!

Contra os ignorante sé que devemos labutar, a fim de chegarmos a perfeição.” (O Clarim da Alvorada, 3 de abril de 1924, número 2)

Percebemos, nos trechos extraídos dos números analisados, a preocupação dos jornalistas em incentivar os negros a processos de ascensão social mais aproximados de sentimentos de enquadramento ao mundo dos brancos.

O jornal “A voz da Raça”, com o subtítulo “órgão da gente negra”, apresentava como principal objetivo a ascensão social dos negros e para tanto as metas seriam: estímulo para trabalhar, ter a casa própria e progredir. Os exemplares apresentavam diversos assuntos, em sua maioria ligados à comunidade negra, bem como notícias esportivas, seções destinadas a anúncios de profissionais autônomos e de notas críticas a outros jornais da raça. Ao enunciar suas finalidades destacava a de promover a união política e social dos negros, “para a afirmação dos direitos históricos dessa gente, em virtude de sua atividade material e moral no passado”. (A voz da Raça, 31 de agosto de 1935). Com este intuito eram feitas as domingueiras reuniões doutrinárias, tendo por finalidade educar e conscientizar os negros; nestas ocasiões eram ministradas aulas de higiene e puericultura, aulas de religião e catecismo, etc.

Era um jornal combativo e chegou a ser divulgado no exterior, inclusive Angola e Estados Unidos. A “Voz da Raça” proclamava-se porta-voz das ideologias frentenegrinas, uma instituição que previa reeducar o negro, incentivando-o a concorrer com o branco em todas as esferas sociais. Já no primeiro número anuncia as idéia do grupo dirigente:

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“Este jornal aparece na hora em que precisamos tornar público, nos dias de hoje, de amanhã e de sempre, os interesses e comunhão de idéias da raça, porque as outras folhas, aliás, veteranas, por despeitos políticos, tem deixado de os fazer. (...) o programa do jornal é despresar as polêmicas em

geral e trabalhar com afinco e coragem dentro da concordia e da moral” (A voz da Raça, 18 de março de 1933).

Suas tiragens eram de 1000 a 5000 exemplares. O jornal era mantido com auxílios da Frente Negra e dos anunciantes. Dispunha de um corpo fixo de colaboradores e aceitava a colaboração de voluntários A Frente Negra, órgão ao qual estava associado o jornal, era constituída de departamentos que procuravam suprir as necessidades do grupo negro. Os serviços e cursos eram gratuitos; a organização mantinha barbearia, consultório dentário, escola primária com professoras nomeadas pelo estado, aulas de música, consultório médico.

Diferentemente do jornal “O Clarim da Alvorada”, o periódico “A voz da raça” costumava responsabilizar o grupo negro pela sua situação na sociedade dominante alertando-o para a necessidade da disciplina:

“os únicos culpados são os próprios negros que ainda não sabem ser disciplinados, para o seu próprio bem. Sem disciplina, o homem é como navio sem bússola, no mar ao sabor da tormenta. Não tem educação de

espírito, não tem atitude devida, nada lhe serve porque a idéia de desordem impera e assim julgando, tudo para ele é imprestável” (A voz da Raça, no. 12,

1933).

Chama atenção, ainda, para a heterogeneidade presente ao interior do grupo negro. Francisco Lucrécio, um dos editores do jornal, aborda vários aspectos da situação do negro dentro de seu próprio grupo dos fretenegrinos, inclusive a competição:

“O negro tem receio de progredir, mas tem intuição do mando sobre o que pertence aos seus irmãos de raça. Onde esteja não estão

satisfeitos. Com especialidade em se tratando de uma organização essencialmente de gente de cor. Existe uma persistente desconfiança, por

querer, o negro, saber igual, julgar-se do mesmo nível social e de conduta de todos os negros, coisa que não há fundamento nem lógica. Não pretendo fazer aqui uam seleção no meio negro, mas é justo que se observe e valorize aquele

que manifesta tendências para o que seriamnet beneficia uma coletividade. Esse é necessário que se respeite em todos os sentidos (...)” (A voz da Raça, no. 47,

1935).

Nesta análise inicial de uma pequena parte da documentação proposta para a pesquisa percebemos algumas discrepâncias iniciais na representação do negro, no início século XX, veiculadas e propagadas pelos jornais da imprensa negra, O 1º. , “O Clarim da Alvorada”, mostra os negros na posição de grupo social que ainda carrega as mazelas deixadas pelo processo da escravidão e seu esforço em superá-las. O 2º., “ A voz da Raça”, já parece descrever um negro portador de uma consciência política de suas condições sociais e de suas possibilidades de prosperidade. Para trabalhos posteriores, com a análise de um maior número de artigos dos jornais, por fim, caberá o questionamento acerca do alcance de circulação das idéias presentes aos dois jornais e as formas de apropriação de representações tão distintas do negro no período estudado.

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