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V

O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

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Miguel Reale

Filosofia do Direito1

A Temática Geral e os Temas Especiais

A Ontognoseologia Jurídica

122. Nas páginas anteriores, fizemos cotejo entre o critério de divisão da Filosofia do Direito seguido por Giorgio Del Vecchio, que supera a posição de Vanni, e o adotado por Stammler, concluindo com a observação de que, no fundo, há uma correlação entre as duas colocações, subordinadas ambas a dada orientação gnoseológica, a do criticismo transcendental.

Vamos agora mostrar como dividimos a Filosofia do Direito. Trata-se de divisão de caráter pessoal e que obedece àquilo que já foi esclarecido e posto no Curso geral de Filosofia2.

1 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1978.2 Embora com variantes terminológicas, mereceu o critério aqui proposto a aceitação do eminente RECASÉNS SICHES, em seu Tratado General de Filosofia del Derecho, cit., págs. 160-163, para discriminar as partes especiais da Filosofia do Direito. O que denominamos Epistemologia Jurídica recebe, na obra de RECASÉNS, a qualificação de Teoria Geral ou Fundamental do Direito, ao lado da Estimativa ou Axiologia Juridica e da Culturologia Jurídica (loc. cit.).

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Partimos da observação de que nos parece impossível uma solução monovalente ou monística da teoria do conhecimento, no sentido ou de reduzir o sujeito cognoscente ao objeto ou, ao contrário, de reduzir o objeto ao sujeito cognoscente.

Afastamo-nos, em suma, quer do monismo empirista, que faz do sujeito simples reflexo do objeto, quer do monismo idealista, que faz do objeto mera produção do sujeito, assim como — sempre é bom lembrá-lo — do dualismo que não leve em conta a correlação dos dois termos, pois entre ambos há uma ligação só explicável à luz de uma dialética, não de negação e resolução, à maneira hegeliana, mas de complementariedade.

São termos que se exigem reciprocamente e se completam, mantendo, porém, cada qual seu valor irreversível. É por essa razão que já dissemos, na Parte I, e aqui relembramos sumariamente, que toda Gnoseologia implica uma indagação do objeto, sendo, efetivamente, uma Ontognoseologia.

Na Ontognoseologia, porém, ora o problema é posto do ponto de vista do sujeito, ora do ponto de vista do objeto, sendo estas duas considerações complementares, não podendo ser separadas. Só podem ser distintas como aspectos ou momentos de um único processo. Poder-se-ia dizer — e o “símile” tem as mesmas raízes — que entre aqueles dois termos ocorre o mesmo que foi assinalado por Hans Freyer entre “relações de vida” e “conexões de sentido”, ou por outras palavras, entre “vida” e “sentido” como dimensões da realidade espiritual: — “Sua diferença só pode ser pensada dialeticamente, isto é, de maneira tal que em ambos os momentos se encontre contida a unidade do todo e, sem embargo,

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se mantenha entre eles a clara contraposição”3. Em ambos os casos, mais do que contraposição, o que há é uma “implicação” segundo um processo dialético de polaridade que, consoante explicação anterior, é essencial à compreensão de todo o “mundo da cultura”.

A Ontognoseologia Jurídica é parte geral da Filosofia do Direito destinada a determinar em que consiste a experiência jurídica, indagando de suas estruturas objetivas, bem como a saber como tais estruturas são pensadas, ou seja, como elas se expressam em conceitos.

A realidade social do Direito, na qual vivemos e em razão da qual elaboramos nossas cogitações, formulando juízos e teorias, deve ser estudada segundo esses dois prismas correlatos: em suas estruturas ônticas, e em consonância com as categorias racionais que tornam possível a sua compreensão.

Neste campo de indagações, é possível, com efeito, assumir duas posições distintas, embora correlatas: — ou nos colocamos do ponto de vista do sujeito, ou do ponto de vista do objeto, a parte objecti ou a parte subjecti, visando, sempre, porém, à unidade de composição e de processo que aqueles pontos de vista implicam.

Se nos pomos sob o ângulo visual do objeto, vemos o Direito como uma realidade ontológica, ou melhor, ôntica, cuja consistência nos cabe indagar. Trata-se, em suma, de responder, em um crescendo, a esta série de perguntas: — Em que consiste o Direito? Qual a estrutura da realidade jurídica e sua 3 Cf. HANS FREYER, La Sociología, Ciência de la Realidad, trad. de F. Ayala, Buenos Aires, 1944, pág. 30.

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situação no mundo da cultura? Quais os seus elementos componentes? Como tais elementos se põem em relação uns com os outros? Que é que marca a unidade dessa realidade, que temos em conta de jurídica? Que é que, em suma, nessa realidade a torna “compreensível” como jurídica?

Já ponderamos que a realidade é muito mais complexa do que parece à primeira vista, sendo dispensável repisar os dados do que denominamos Teoria dos Objetos. Só nos cabe, agora, determinar a que espécie de objeto se refere a Ciência do Direito.

A realidade jurídica, como veremos, não pertence à esfera dos objetos ideais, nem à esfera ou ao âmbito dos objetos psíquicos, pois lhe corresponde uma estrutura própria, a dos objetos culturais e, mais propriamente, a dos objetos culturais tridimensionais, por implicarem sempre elementos de fato ordenados valorativamente em um processo normativo.

A definição do Direito será o resultado concomitante da indagação sobre a consistência da realidade jurídica e as características dessa região ôntica.

À medida que situamos o Direito na esfera de realidade que lhe é própria, determinando a estrutura do objeto que lhe corresponde, volvemos a nós mesmos, indagando como aquela realidade se representa em nosso espírito como conceito. Caber-nos-á, em suma, determinar o “ser” do Direito e o seu “conceito”, em uma implicação de pesquisas. O problema que se põe, de início, por conseguinte, não é o de uma definição do Direito enunciada como algo de vazio e sem conteúdo, algo de puramente formal, porquanto deve envolver a realidade à qual se refere, ou que menciona de maneira necessária e universal.

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123. A Ontognoseologia Jurídica, como parte geral da Filosofia do Direito, reveste-se do caráter de uma teoria fundamental, não só no concernente à tarefa de determinar a natureza da realidade jurídica, em confronto com a Moral e demais expressões da Ética, como à de esclarecer os meios de compreensão correspondentes ao objeto Direito em geral, assim como a seus estratos ou aspectos considerados de maneira distinta, embora em função dos demais e em sentido de complementariedade.

Aparecerão, desse modo, em toda a sua unilateralidade e insuficiência, quer os esforços dos empiristas buscando nos fatos contingentes um conceito de Direito como produto de simples generalização, quer os dos aprioristas brindando-nos com enlaces formais de cujas consequências em geral se eximem, para que não fiquem envolvidos em seus esquemas os conteúdos dos comportamentos ilícitos...

Na indagação ontognoseológica, em suma, recebe-se o Direito no âmbito do processo cognitivo, ou da correlação sujeito-objeto, evitando-se apreciá-lo como um “dado natural”, já perfeito e acabado, pronto para ser decalcado pelo jurista, como também em sua pura expressão formal e adiáfora, capaz de dar cunho de “juridicidade” a uma conduta humana em si mesma de natureza econômica, religiosa, estética, mas nunca jurídica.

Revelada a natureza do Direito como setor distinto da vida cultural, incumbir-nos-á distingui-lo dos demais, em uma análise em profundidade do problema da conduta ou do comportamento, que nos fará compreender a estrutura tridimensional

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normativa do mundo do Direito, em confronto com as demais experiências que também apresentam as notas da tridimensionalidade.

A determinação da situação do Direito no mundo da cultura é um dos capítulos fundamentais e mais complexos da Filosofia Jurídica. Como já dissemos, a cultura é um sistema unitário de integração de valores. Poderíamos dizer que, assim como um dos princípios diretores da Física teórica é o de que o universo forma um iodo solidário, também vale igual princípio na esfera histórico-cultural.

Por essa razão, a distinção de um domínio no todo da experiência social, para ser objeto de estudo à parte, implica a necessidade de se terem presentes, sobretudo no final da pesquisa, as correlações efetivamente existentes, importando, por conseguinte, saber não só como o Direito se distingue, por exemplo, da Moral e dos Costumes, como também quais as suas ligações essenciais.

É somente em correlação com essas indagações ônticas, que será possível considerar o outro lado do problema, o do conceito do Direito: — só assim este possuirá um conteúdo vivo, uma significação repleta de vivência. Compreende-se, pois, a diferença entre o ponto de vista do filósofo do Direito e o do jurista na consideração do fenômeno jurídico.

A Ciência do Direito, ou Jurisprudência, caracteriza-se como estudo sistemático de preceitos já dados, postos perante o intérprete (administrador, advogado ou juiz) como algo que ele deve apreender ou reproduzir em suas significações práticas, a fim de determinar o âmbito da conduta lícita ou as

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consequências resultantes da violação das normas reveladas ou reconhecidas pelo Estado.

A Filosofia do Direito, ao contrário, em lugar de ir das normas jurídicas às suas consequências, retorna à fonte primordial de onde aqueles ditames de ação necessariamente emanam, ou seja, não observa a experiência jurídica de fora, como um dado ou um objeto externo, mas sim in interiore hominis.

Com razão observa Hegel que o conceito do Direito, conforme o seu devir, não se inclui na Ciência do Direito, mas é antes por esta admitido como um pressuposto ou um dado. Já no conhecimento filosófico a necessidade de um conceito é primordial, oferecendo-se desde logo à nossa meditação como problema a ser resolvido.

O Direito, porém, não é uma coisa, como uma árvore ou uma casa que o espírito compreende em suas estruturas, mas é um momento da atividade espiritual mesma, objetivada em relações sociais. Daí dizermos que o espírito, na especulação filosófica, dobra-se sobre si mesmo e torna a encontrar-se com o foco de todas as projeções práticas e volitivas, cuja trama compõe a convivência social, para indagar do por quê da experiência jurídica e não de como ela se processa.

Desse modo, as conexões entre Direito e Moral, Direito e Política, ou Direito e Economia encontram sua razão de ser, objetivamente, nos nexos que os comportamentos exteriores revelam; mas, de um ponto de vista subjetivo e correlato, residem na própria unidade espiritual, razão última e verdadeira daquelas conexões.

A Ontognoseologia Jurídica é, pois, o estudo crítico da realidade jurídica e de sua compreensão

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conceitual, na unidade integrante de seus elementos que, como veremos, são suscetíveis de serem vistos como valor, como norma e como fato, implicando perspectivas prevalecentemente éticas, lógicas ou histórico-culturais.

Daí o posterior desenvolvimento da pesquisa em três partes especiais, destinadas respectivamente ao estudo de cada um dos aspectos da experiência jurídica. Vejamos como se discriminam essas Partes Especiais, de conformidade com o seguinte esquema:

Divisão da Filosofia do Direito

Parte Geral: Ontognoseologia jurídica

Partes Especiais: Epistemologia jurídica, ou doutrina das

ciências do Direito (o problema da vigência e dos valores lógicos do Direito);

Deontologia jurídica, ou doutrinas dos valores éticos do Direito (o problema do fundamento do Direito);

Culturologia jurídica, ou doutrina do sentido histórico do Direito (o problema da eficácia social do Direito).

Epistemologia Jurídica

A Epistemologia Jurídica não é apenas a doutrina da Ciência do Direito ou Jurisprudência, consoante comumente se afirma, e era dito nas primeiras edições deste livro, mas constitui antes a doutrina do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades. É que, com o constituir-se de novos campos de estudo do Direito, tais como a Sociologia

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Jurídica, a Etnologia Jurídica ou a Lógica Jurídica, alargaram-se, concomitantemente, os horizontes epistemológicos, os quais não podem mais ficar adstritos às exigências da Ciência Dogmática do Direito, por mais que esta assinale o momento culminante do processo comum de investigação.

Uma das tarefas primordiais da Epistemologia Jurídica consiste, aliás, na determinação do objeto das diversas ciências jurídicas, não só para esclarecer a natureza e o tipo de cada uma delas (recorde-se o exposto supra, vol. I, pág. 264 e segs.) mas também para estabelecer as suas relações e implicações na unidade do saber jurídico. Compete-lhe, outrossim, delimitar o campo da pesquisa científica do Direito, em suas conexões com outras ciências humanas, como, por exemplo, a Sociologia, a Economia Política, a Psicologia, a Teoria do Estado etc.

É só graças a essa visão compreensiva que é possível situar com rigor os problemas epistemológicos da Jurisprudência ou Ciência Dogmática do Direito, a qual ocupa o centro do quadro jurídico, não só pela maturidade de seus estudos, devido a uma tradição mais que bimilenar, mas também porque representa, como já dissemos, o momento culminante da experiência do Direito.

Muitas são, pois, as questões com que se defronta a Epistemologia Jurídica, que poderia ser definida como sendo a doutrina dos valores lógicos da realidade social do Direito, ou, por outras palavras, dos pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, desde a Teoria Geral do Direito — que é a sua projeção imediata no

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plano empírico-positivo — até às distintas disciplinas em que se desdobra a Jurisprudência.

É nessa linha de estudos que caberá ao epistemólogo do Direito determinar, por exemplo, que tipo de experiência é essa que denominamos “experiência jurídica”; qual a natureza e o papel da Lógica Jurídica e a sua situação perante a Ciência Dogmática do Direito; como se põem os problemas de sistematização e integração dos institutos jurídicos: se nos quadros de um único ordenamento ou, ao contrário, numa pluralidade deles; qual a natureza da Hermenêutica Jurídica e os seus pressupostos, em função do papel por ela desempenhado na tela da Teoria Geral do Direito; qual a natureza e a estrutura das normas jurídicas, se elas devem ou não ser concebidas como “bens culturais de suporte ideal” (v. supra, pág. 226) insuscetíveis, portanto, de serem tratadas como simples “proposições lógicas”; se a tradicional teoria das fontes do Direito deve ou não ser atualizada à luz de uma teoria dos “modelos jurídicos”, e assim por diante4.

Poder-se-ia dizer, em suma, à vista desses exemplos, que a Epistemologia Jurídica recebe da Ontognoseologia Jurídica o conceito de Direito e o desenvolve na multiplicidade de suas projeções e consequências, especificando, em função das exigências práticas da vida jurídica, as “categorias regionais da juridicidade”, conforme a feliz

4 Para uma visão mais completa dos temas da Epistemologia Jurídica, v. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, cit. No que se refere às noções de “Dogmática Jurídica”, “Hermenêutica Jurídica”, “fontes” e “modelos jurídicos”, cf. nossas Lições Preliminares do Direito, cit.

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terminologia de Recaséns Siches5, tais como as de direito subjetivo, direito objetivo, relação jurídica, fonte do direito, modelo jurídico, instituição, ficção jurídica etc., que são como que as vigas mestras do edifício jurídico, assegurando-lhe validade lógica ou vigência.

Costumamos dizer que a Epistemologia Jurídica, ao estudar o Direito, considera, de maneira prevalecente, o problema da vigência, mas sempre em função da eficácia e do fundamento6.

Quando fixarmos as bases da teoria tridimensional do Direito, compreender-se-á melhor as razões pelas quais não destinamos rigidamente a cada uma das partes especiais da Filosofia do Direito, respectivamente, os problemas da vigência, da eficácia e do fundamento, acentuando que a análise de qualquer deles implica sempre a dos demais.

A tríplice perspectiva não deverá jamais partir a unidade essencial da experiência jurídica, na congruência e complementariedade viva de seus elementos.

Deontologia Jurídica

Ao lado do estudo de ordem epistemológica, como seu complemento, configura-se uma série de problemas pertinentes à Deontologia Jurídica. Não concordamos em chamar a esta parte de Estimativa Jurídica, porque também a Culturologia Jurídica,

5 Luís RECASÉNS SICHES, Vida Humana, Sociedad y Derecho, México, 1945, e “Adiciones” à sua trad. das Lições de DEL VECCHIO, Barcelona, 1930, vol. II.6 Cf. o cap. final do tít. X, quanto aos problemas do fundamento, da eficácia e da vigência.

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como veremos, tem caráter axiológico e, portanto, estimativo.

A Deontologia Jurídica é a indagação do fundamento da ordem jurídica e da razão da obrigatoriedade das normas de Direito, da legitimidade da obediência às leis, o que quer dizer indagação dos fundamentos ou dos pressupostos éticos do Direito e do Estado.

Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas quais nós, que nos temos em conta de seres livres, somos obrigados a nos subordinar a leis que não foram postas por nossa inteligência e por nossa vontade? É lícito contrariar as leis injustas? Qual o problema que se põe para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela, de maneira impressionante, contrária aos ditames do justo? Qual o fundamento do Direito na sua universalidade? Repousa ele apenas no fundamento empírico da força? Reduz-se o Direito ao valor utilitário do êxito? Brotará a estrutura jurídica, inexoravelmente, dos processos técnicos de produção econômica, ou representa algo capaz de se contrapor, muitas vezes, às exigências cegas da técnica? Ou o Direito terá fundamento contratual? Esta última é uma pergunta mais importante do que se pensa, visto como o contratualismo ocupa campo vastíssimo na história da cultura jurídico-política, e ainda hoje está implícito em doutrinas que se vangloriam de pureza metódica.

Quando um Rousseau ou um Kant fundamentam o Direito contratualmente, surge uma série de problemas. Poderemos perguntar, por exemplo, se é exato que o autor do Émile admitia a realização histórica de um contrato em determinado

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momento ou se, ao contrário, a sua concepção tem caráter puramente lógico ou hipotético.

Pensamos que Rousseau jamais imaginou o contrato social como fato efetivamente verificado, pelo encontro dos homens numa floresta, por exemplo, para “combinar” regras de bem viver. Isto jamais passou pela cabeça do grande genebrino. Sua ideia de “pacto social” é a de um modelo ideal como pressuposto da convivência humana, conforme doutrina que depois foi burilada magistralmente por Emmanuel Kant, que concebeu um contrato originário de puro valor transcendental.

Segundo Kant, no momento em que os homens se encontram, permutam utilidades e vivem em comum, já são governados por um contrato condicionante da vida social, que tem valor puramente lógico. No fundo, podemos dizer que, segundo os contratualistas mais evoluídos, nós vivemos “como se” tivesse havido um contrato. É uma ficção de ordem lógica e ética, para se explicar o fundamento da sociedade, do poder político e do Direito.

Este é apenas um exemplo para mostrar de que problemas cuida a parte da Filosofia Jurídica que denominamos Deontologia Jurídica. Poder-se-ia dizer, pois, que a Deontologia Jurídica é a teoria da justiça e dos valores fundantes do Direito7.

Esta explicação resulta da convicção que temos de que existe, sem dúvida alguma, um valor fundamental para a esfera jurídica, que é o valor do justo, mas que este valor implica a coordenação

7 Para maiores desenvolvimentos, v. MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito, cit. e Lições Preliminares de Direito, cit., capítulo XXVII.

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harmônica de outros valores, tais como a liberdade, a igualdade etc. Daí falarmos em valores fundantes do Direito, cuja harmonia em unidade compõe o justo.

A justiça social é uma composição harmônica de valores sociais, de maneira que cada homem possa realizar a plenitude de seu ser, e a sociedade atingir o máximo de bem-estar, compatível com a convivência pacífica e solidária.

Culturologia Jurídica

Realizando o estudo dos valores que determinam a experiência jurídica e marcam o significado da experiência histórica do Direito, surge um terceiro problema, que é de ordem filosófico-histórica. Toda esta parte poderia ser resumida nestas perguntas: — Que sentido tem a história do Direito? Será em pura perda o esforço multimilenar do homem através do tempo, fundando instituições, renovando institutos, elaborando códigos? Que fatores condicionam a concreção histórica do justo, e que se poderá afirmar dessa condicionalidade, nas suas exigências ideais? O que acontece no mundo jurídico será o resultado arbitrário de atos de homens singularmente dotados de inteligência e de vontade? Ou haverá, em última análise, uma tendência dominante e vinculadora no processo histórico do Direito? Marchamos para um crescendo de liberdade ou, ao contrário, nosso destino é uma igualdade amorfa? Qual o destino do homem vivendo a experiência do Direito?

São problemas palpitantes que nos colocam em contato com a experiência histórica, com os valores da Sociologia e da Teoria do Estado. Não se

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trata, notemos bem, de fazer-se um estudo de História do Direito, estabelecendo conexões entre fatos jurídicos no tempo ou buscando uma explicação genética dos acontecimentos jurídicos. Trata-se de receber os dados que o historiador do Direito fornece, para indagar de seu sentido ideal, de seu significado essencial, não apenas na órbita de uma experiência particular, mas na totalidade da existência do homem.

Importará, por exemplo, saber se existe continuidade no processo da experiência jurídica ou se esta é partida por ciclos históricos, isolados uns dos outros. Volvendo os olhos para o passado, vemos, por exemplo, a experiência jurídica romana, começando com um formalismo primitivo, balbuciando as primeiras regras rituais e míticas e, paulatinamente, se aprimorando até os frutos insuperados do período clássico, para esparramar-se e diluir-se na decadência do II Império e, finalmente, desaparecer, legando-nos a cristalização de uma cultura maravilhosa nos fragmentos lapidares do Digesto. Será esse o destino inexorável, previsível de toda experiência jurídica?

E se outros processos do Direito se sucedem, como o da Idade Média e o da Era Moderna, poder-se-á declarar que a história do Direito é formada de ciclos culturais estanques, separados uns dos outros, ou haverá, apesar de tudo, ligando tais experiências, um patrimônio comum, transferido de geração em geração? Haverá uma lei de progresso marcando a evolução jurídica total ou há “crises” e “retornos” como traços inevitáveis na experiência do justo, no evolver das civilizações?

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A esta terceira parte damos o nome de Culturologia Jurídica, porque é, no fundo, a vivência do Direito como cultura, como esforço humano de conquista e de preservação daquilo que se concebeu ou se sentiu como valioso.

Poder-se-ia também denominar a esta parte de Axiologia histórico-jurídica, porque se trata, em síntese, de um estudo de Filosofia da História do Direito, que se não deve confundir com o da História da Filosofia do Direito: — nesta refletem-se as questões postas pela primeira8.

É muito fácil confundir o ponto de vista do historiador ou do sociólogo, nesta matéria, com o do filósofo do Direito, mas uma coisa é a História e outra a Filosofia da História. É claro que um historiador, cuidando de um problema cultural, tendo como objeto de indagação a própria experiência humana, não pode deixar de ter uma atitude filosófica. Não se cuida do homem sem o prisma da Filosofia. Poderá ser uma atitude filosófica vacilante ou, então, primária, mas haverá sempre uma implicação filosófica em todas as cogitações sobre os problemas humanos. O historiador pode e deve, em suma, ter sua compreensão filosófica dos fatos humanos, mas não é o cunho de sua tarefa, o objeto próprio de sua pesquisa. O historiador examina os fatos em sua singularidade e também no seu sentido de conexão com os ciclos culturais, mas não os integra, enquanto historiador, em uma unidade de sentido, como elemento compreensivo do universo e da vida.

Há, portanto, complementariedade entre esses pontos de vista, mas é necessário que se distinga 8 Sobre esse problema do “sentido da História”, cf. nosso livro Experiência e Cultura, cit.

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entre o estudo do Direito feito pelo historiador e o elaborado pelo filósofo.

Eis aí, portanto, como dividimos a Filosofia do Direito, conservando algo das discriminações tradicionais, mas alterando-as em alguns pontos básicos, notadamente na parte em que não destacamos o “conceito” do conteúdo da experiência social e procuramos dar novo sentido à ligação apresentada por Stammler, formalismo à parte, entre o “conceito” e a “ideia” do Direito.

Desejamos, para concluir, lembrar, a propósito da divisão ora apresentada, que muitas vezes um problema volta a ser estudado pela parte seguinte, porque é impossível querer catalogar os assuntos filosóficos como quem corta fatias de uma coisa corpórea, distribuindo-as separadas umas das outras. Será impossível, por exemplo, tratar do problema da justiça sem envolver aquilo que já se indagou na Epistemologia Jurídica e, muitas vezes, no estudo da ideia de justiça, deveremos fazer referências a problemas da Culturologia Jurídica.

Em segundo lugar, desejamos ainda esclarecer que a divisão apresentada tem a finalidade de mostrar que a Ciência Jurídica não é uma ciência puramente formal, que só diga respeito a conceitos e categorias lógicas, porque nela predominam problemas de conteúdo, que são de natureza axiológica, social e histórica.

Nesta divisão tomamos posição contrária ao normativismo lógico tão em voga. Kelsen, por exemplo, não aceitaria jamais a divisão ora proposta porque, no seu entender, para o jurista como tal só existe Teoria ou Ciência do Direito em sua validade lógico-normativa, não implicando, senão

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relativamente, a consideração do conteúdo social ou estimativo para a caracterização das regras jurídicas.

Toda divisão da Filosofia do Direito pressupõe, é claro, uma tomada de posição e só deve valer como ponto de referência para quem procura ver a realidade do Direito na complementariedade de todas as suas perspectivas.

Miguel Reale

A temática geral e os temas especiais

A – Visão geral: parte de uma gnoseologia ou teoria do conhecimento

1. Recusa o monismo empirista e o monismo idealistaa) monismo empirista: perspectiva do objeto. Defende que o direito se define por seu caráter prático, ou seja, por sua realidade concreta, pela técnica, por sua instrumentalização. A recusa se deve ao entendimento de Reale de que o Direito não se resume a seu aspecto metodológico.b) monismo idealista: perspectiva do sujeito. Defende que o direito se define por seu aspecto teórico, por assim dizer, que envolve seu campo conceitual, a lógica do direito e a normatização. 2. Recusa a dialética negativa de Hegel.

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Reale entende que a abordagem do direito deve ser dialética, mas não aceita a dialética negativa porque ela pressupõe a afirmação de um aspecto pela negação do outro. Para o filósofo do direito, ambos são correlatos e complementares. Nem sujeito, nem objeto. Ora um, ora outro, não como negação, mas como complementariedade. Complementariedade: unidade do todo, momentos distintos de um único processo. Composição das partes

3. Proposta de Reale: dialética de complementariedade4. Divisão da filosofia do direito:

Parte geral: ontognoseologia jurídica – o que é? (compreensão geral conceitual)

Partes especiais: a) Epistemologia jurídica – para que serve?

(problema da vigência e dos valores lógicos do direito)

b) Deontologia – por que o direito obriga? (problema dos fundamentos do direito)

c) Culturologia – que sentido tem a história do direito? (problema da eficácia do direito)

B – As partes que compõem a divisão da filosofia do direito de Reale

I - Ontognoseologia jurídica

Definição: estudo crítico da realidade jurídica e de sua compreensão conceitual, na unidade integrante de seus elementos suscetíveis de serem vistos como

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valor, como norma e como fato, implicando perspectivas éticas, lógicas ou histórico-culturais.Tarefas: determinar a natureza da realidade jurídica, em confronto com a Moral e demais expressões da Ética; esclarecer os meios de compreensão correspondentes ao objeto.-- Reale entende que toda gnoseologia (como posso conhecer?) implica uma indagação do objeto (o que é?). Logo, trata-se de uma ontognoseologia. Do ponto de vista do objeto: realidade ontológica – teoria dos objetos1. Como a gnoseologia pergunta pelo objeto, é preciso defini-lo. Os objetos do direito não são ideias ou psíquicos, mas culturais tridimensionais (isto é, norma, fato e valor).2. Sob esse aspecto, ontognoseológico, deve-se investigá-lo em seu domínio próprio no mundo da cultural, ou seja, em seu âmbito cognitivo, a partir da correlação sujeito/objeto, o que evita tratá-lo como dado natural, já posto, ou como expressão formal pura. Do ponto de vista do sujeito, interessa a sua realidade conceitual. Do ponto de vista do objeto, 3. Distinção entre filosofia do direito e ciência do direito: a ciência do direito é um estudo sistemático de preceitos já dados (perspectiva externa ao objeto). A filosofia do direito retorna à fonte destes preceitos já dados (perspectiva interna). Apenas na filosofia do Direito o conceito é posto como problema. A ciência do direito parte de conceitos já postos e não questionados.4. As conexões entre Direito e moral, Direito e política, Direito e economia encontram-se no exterior, mas residem na unidade subjetiva. Exatamente por

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isso Reale entende que o Direito não pode ser investigado apenas a partir de uma abordagem.

II – Epistemologia jurídica

Definição: doutrina da Ciência do Direito; doutrina do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades; doutrina dos valores lógicos da realidade social do Direito, ou, por outras palavras, dos pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, da Teoria Geral do Direito à distintas disciplinas em que se desdobra a Jurisprudência.Tarefas: determinar o objeto das ciências jurídicas; delimitar o campo de pesquisa científica do direito em conexão com outras ciências humanas.Objeto: vigência, em função da eficácia e do fundamento.

III - Deontologia jurídica

Definição: a teoria da justiça e dos valores fundantes do Direito.Tarefas: indaga acerca do fundamento da ordem jurídica e da razão de obrigatoriedade das normas do direito, da legitimidade da obediência às leis.Problemas: Qual é o fundamento do direito? A força? O êxito? O contrato? Interesses econômicos? Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas quais somos obrigados a nos subordinar a leis que não foram postas por nós? É lícito contrariar leis injustas? Qual o problema que se põe para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela contrária aos ditames do justo?

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IV - Culturologia jurídica

Definição: vivência do Direito como cultura.Problemas: Que sentido tem a história do Direito? Que fatores condicionam a concreção histórica do justo? O que acontece no mundo jurídico será o resultado arbitrário de atos de homens singularmente dotados de inteligência e de vontade ou haverá, em última análise, uma tendência dominante e vinculadora no processo histórico do Direito? Marchamos para um crescendo de liberdade ou, ao contrário, nosso destino é uma igualdade amorfa? Qual o destino do homem vivendo a experiência do Direito?