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Nascido na Bulgária, Tzvetan Todorov deixou seu país natal aos 24 anos para continuar seus estudos na França, onde vive desde 1963. Naturalizado francês, adaptou-se totalmente ao novo país, lenta e naturalmente passando da posição de outsider para a de insider. Todorov só voltou à Bulgária em 1981, após 18 anos, para descobrir que, se não era mais um estrangeiro em Paris, não era também um francês, tinha "uma vida interior de duas culturas, duas sociedades diferentes". Essa sensação de pertencer a duas culturas ao mesmo tempo é o tema de O homem desenraizado, no qual ele reflete sobre o país onde cresceu, o país do qual ele se sente cidadão, e ainda sobre os Estados Unidos, que visita anualmente há três décadas e onde não consegue se sentir mais que visitante. Em um balanço autobiográfico crítico, o autor acerta as contas com seu passado e faz um diagnóstico da democracia e de seus males. Se sua descrição do totalitarismo na Bulgária e em outros países do antigo bloco soviético é cruel, ele também observa que as atuais democracias apresentam um quadro de racismo, hipocrisia, perda de autonomia individual. Todorov mostra que o homem arrancado de seu meio aprende a não confundir o real com o ideal, o cultural com o natural, e, superando o ressentimento pela hostilidade de seus anfitriões, descobre a tolerância, ao mesmo tempo que deflagra neles o processo de "estranhar-se" e a compreensão de que "somos todos híbridos". Crítico literário, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Sociológicas, Tzvetan Todorov é autor de numerosas obras sobre literatura e sociedade, entre as quais Uma tragédia francesa, Face à Pextrême, Êloge du quotidien, La Vie commune e Les Morales de L'Histoire, que recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau em 1991. zzz Capa: Victor tiurton O homem desenraizado Tzvetan Todorov Tradução de CHRISTINA CABO

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Nascido na Bulgária, Tzvetan Todorov deixou seu país natal aos 24 anos para continuar seus estudos na França, onde vive desde 1963. Naturalizado francês, adaptou-se totalmente ao novo país, lenta e naturalmente passando da posição de outsider para a de insider. Todorov só voltou à Bulgária em 1981, após 18 anos, para descobrir que, se não era mais um estrangeiro em Paris, não era também um francês, tinha "uma vida interior de duas culturas, duas sociedades diferentes".

Essa sensação de pertencer a duas culturas ao mesmo tempo é o tema de O homem desenraizado, no qual ele reflete sobre o país onde cresceu, o país do qual ele se sente cidadão, e ainda sobre os Estados Unidos, que visita anualmente há três décadas e onde não consegue se sentir mais que visitante. Em um balanço autobiográfico crítico, o autor acerta as contas com seu passado e faz um diagnóstico da democracia e de seus males. Se sua descrição do totalitarismo na Bulgária e em outros países do antigo bloco soviético é cruel, ele também observa que as atuais democracias apresentam um quadro de racismo, hipocrisia, perda de autonomia individual.

Todorov mostra que o homem arrancado de seu meio aprende a não confundir o real com o ideal, o cultural com o natural, e, superando o ressentimento pela hostilidade de seus anfitriões, descobre a tolerância, ao mesmo tempo que deflagra neles o processo de "estranhar-se" e a compreensão de que "somos todos híbridos".

Crítico literário, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Sociológicas, Tzvetan Todorov é autor de numerosas obras sobre literatura e sociedade, entre as quais Uma tragédia francesa, Face à Pextrême, Êloge du quotidien, La Vie commune e Les Morales de L'Histoire, que recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau em 1991. zzz Capa: Victor tiurton O homem desenraizado Tzvetan Todorov

Tradução de CHRISTINA CABO

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EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO

1999

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

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Todorov, Tzvetan, 1939 T572h O homem desenraizado / Tzvetan Todorov; tradução de

Christina Cabo. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Tradução de: L'homme dépaysé

Inclui bibliografia

ISBN 85-01-05137-3

1. Todorov, Tzvetan, 1939- . 2. Refugiados políticos

França - Vida intelectual. I. Título.

CDD - 306.4 aos meus 99-0193 CDU - 316.7 amigos

Título original em francês L'HOMME DÉPAYSÉ

Copyright © Éditions du Seuil, 1996

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição para Portugal e resto da Europa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-05137-3

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 EDITORA AFILIADA zzz Sumário

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Voltar 11

Em visita à própria casa, 15 A dupla vinculação, 19 Desenraizado, desenraizamento, 23

PRIMEIRA PARTE Originário da Bulgária 31

1. A experiência totalitária 33 Traços constitutivos, 33 Os charmes secretos, 39 Os grupos e o indivíduo, 41 Desdobramentos, 46

2. Os campos 53 Funções dos campos, 54 Perfis de prisioneiros, 56 Vida cotidiana, 60

3. O fim do comunismo 67

Razões do desmoronamento, 68 Melancolia pós-totalitária, 78

Tzvetan Todorov O homem desenraizado 9

Gerir o passado, 75 Seqüelas do traumatismo, 82

TERCEIRA PARTE Apreensões quanto ao futuro, 84 Visitante nos Estados Unidos

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SEGUNDA PARTE

10. A crítica literária 191

Cidadão na França Pós-estruturalismo, 192-Pragmatismo,197-Sobrevivências

91 marxistas - Humanismo crítico, 203

11. As humanidades 209 4. Os processos Kravtchenko e Rousset 93 O lugar dos intelectuais, 210-A acusação e a defesa, 213

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Estratégias de desculpa, 94 - Julgar o passado, 99 - Existe um cânon?, 217

5. O caso Touvier 105 12. O declínio da autonomia 223

Crimes contra a humanidade, 106 - O desaforamento, 111- Vitimização, 225 - Vinculação a um grupo, 227- Identidade e

O processo, 114 - Lições, 120 diferença, 231-A comunidade das vitimas, 23 5 - O futuro da

democracia, 239 6. Debates sobre o racismo 127

Os antianti-racistas, 129 - Diante do crescimento do racismo,

133 - O contexto atual, 136 Em Paris 7. Política dos intelectuais 141 243

As três vozes, 142 - A tentação da utopia, 144 -A insensatez Bibliografia 249

dos intelectuais, 146 8. Censura e liberdade de expressão 153

Liberdade e poder, 155 - A liberdade dos artistas, 157 -

Liberdade e responsabilidade, 161- O caso Rushdie:

os inimigos e os amigos, 164 - Os versos satânicos, 169 9. Cultura e vida cotidiana 173

A arte na vida, 174 - Obras e ações, 180 - A desumanização

moderna, 183 Voltar zzz Desenraizado, adj. que se desenraizou: Arrancado do seu lugar de origem: Povos desenraizados. // Que perdeu as suas características de origem.

Dicionário contemporâneo da língua portuguesa

Caldas Aulete

Durante muito tempo, acordei aos sobressaltos. Os detalhes se diferenciavam, mas, em linhas gerais, o sonho era sempre o mesmo. Eu não estava mais em Paris, mas em minha cidade natal, Sófia; havia voltado ali por uma razão qualquer e experimentava a alegria de rever os velhos amigos, meus pais, meu quarto. A seguir vinha o momento da partida, do

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retorno a Paris, e as coisas começavam a se desfigurar. Já estava dentro do tramway que deveria conduzir-me à estação (é o trem, o Expresso Oriente, que, anos antes, havia me levado de Sófia para atirar-me dois dias mais tarde, em uma fria manhã de abril, nas plataformas da estação de Lyon) quando descobri que a passagem não estava no bolso; sem dúvida,

eu a havia esquecido em casa, mas se voltasse para procurá-la iria perder o trem. Ou então o tramway parava de repente por causa de um tumulto inexplicável; os passageiros desci am, eu também. Tentava abrir caminho, com uma pesada mala na mão, mas era impossível: a multidão era compacta, indiferente, impenetrável. Ou, ainda, o tramway chegava à estação, eu me precipitava em direção à porta de entrada porque estava atrasado, mas, atravessado o umbral, descobria que aquela estação era apenas um cenário: do outro lado não havia hall, viajantes, trilhos, trens; não, eu estava só diante de um cam po, a perder de vista, a erva amarelada dobrava-se ao vento. Ou então eu deixava a casa em um carro dirigido por um

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amigo; ele decidia pegar um atalho, porque estávamos com pressa, mas se perdia, as ruas se estreitavam, tornavam-se cada vez mais desertas, para terminar em terrenos baldios.

Meus sonhos nunca paravam de inventar novas variantes para esta impossibilidade de partir novamente, mas o resultado final era sempre o mesmo: por razões puramente fortuitas, o retorno a Paris confirmava-se impossível. Eu deveria doravante viver em Sófia. A angústia, mesmo em sonho, tornava-se tamanha que eu acordava com o coração acelerado. Abria os olhos na penumbra e reconhecia pouco a pouco os contornos do quarto parisiense, tocava o ombro de minha mulher, que dormia a meu lado, e entregava-me com prazer à realidade. Havia sido apenas um sonho! Eu podia me levantar e reencontrar minha vida, minha verdadeira vida. Esquecia os temores noturnos até a próxima ocasião, algumas semanas, alguns meses depois. Compreendi depois que este sonho era comum a muitos imigrantes, ao menos entre aqueles que vinham do Leste europeu.

Meus sonhos de impossível retorno foram espaçando-se e desapareceram desde que voltei realmente à Bulgária. Isso aconteceu em 1981, exatamente dezoito anos depois de minha chegada a Paris. Havia tomado muitas precauções para que o sonho não se tornasse realidade. Para começar, não havia corrido o risco de fazer uma viagem particular: consegui ser convidado para um congresso que deveria celebrar o aniversário de mil e trezentos anos da criação do Estado búlgaro; portanto, uma manifestação muito oficial, e eu fazia parte da delegação francesa. Havia avisado os amigos de minha partida, sobretudo aqueles que poderiam ter acesso à mídia: eles deveriam constituir um comitê para exigir minha libertação caso me impedissem de retornar à França! Enfim, última precaução, casei-me, alguns dias antes da viagem, com a mulher com quem vivia, para que fosse esposa legítima e não concubina suspeita que viria até mim em caso de necessidade...

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Apresso-me a dizer que tal necessidade nunca se materializou. Algumas esquisitices espantaram-me no curso desta viagem, é verdade, mas voltei são e salvo, na data prevista, sem perder o avião ou esquecer os documentos. Aquela temporada, no entanto, revelou-me uma dimensão de minha identidade que gostaria de tentar descrever aqui.

Em visita à própria casa

A experiência que evoco aqui é a de um exilado retornando ao país depois de longa ausência (preciso que sou exilado "circunstancial", nem político, nem econômico: vim para a França em total legalidade, ao final de meus estudos universitários, para passar um ano a fim de "aperfeiçoar minha educação"; depois, o provisório tornou-se definitivo). Uma série de acasos tornou esta experiência particularmente intensa. Alguns homens descem ao fundo de grutas profundas para observar, em circunstâncias excepcionais, as reações do organismo; isso permite, em seguida, um melhor conhecimento de seu funcionamento normal. Embora não intencionalmente, participei, durante esses dez dias do mês de maio de 1981, de uma experiência também pouco comum: não uma descida a mil e oitocentos metros debaixo da terra, mas um retorno ao lugar deixado para trás dezoito anos antes.

As circunstâncias eram então: a duração da ausência; o caráter total da ruptura durante esses anos (não existe uma comunidade búlgara em Paris, ou, por falta de interesse, não a conheci; as notícias circulavam mal entre Sófia e Paris, a cortina de ferro contribuía para tal; e a descontinuidade entre estes dois lugares era realmente maior do que entre Paris e São Francisco, por exemplo); enfim, a identidade rigorosa dos lugares: eu morava, durante essa temporada, com meus pais,

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na mesma casa onde havia vivido a infância e a adolescência. Eis por que, sem procurar concentrar a atenção sobre mim mesmo, gostaria de transcrever aqui minhas impressões.

O exilado de retorno ao país natal não é de todo semelhante ao estrangeiro em visita - nem mesmo ao estrangeiro que ele mesmo foi, no momento em que debutou no exílio. Assim que cheguei à França, em 1963, ignorava tudo. Era um estrangeiro no seio da sociedade francesa, que apenas se tornou familiar a mim progressivamente; vivi, em meu contato com ela, não um salto brutal, mas uma passagem imperceptível da posição de outsider para insider (sendo o out e o in, o fora e o dentro, naturalmente, sempre considerados de

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forma relativa). Um dia, tive de admitir que não era mais um estrangeiro, ao menos não no mesmo sentido de antes. Minha segunda língua foi instalada no lugar da primeira sem choque, sem violência, ao longo dos anos. Mas é exatamente o contrário que acontece por ocasião do retorno do exilado. De um dia para o outro ele descobre ter uma vida interior de duas culturas, de duas sociedades. Bastou-me apenas encontrar-me em Sófia para que tudo me parecesse imediatamente familiar; eu economizava os processos de adaptação preliminares. Não me sentia menos à vontade em búlgaro do que em francês e tinha o sentimento de pertencer às duas culturas ao mesmo tempo.

Situação inviável? Se posso hesitar sobre a interpretação de minha experiência, uma coisa me parece certa, indubitável: esses foram para mim dias de inquietação e de opressão física. Acrescento de imediato, para afastar uma explicação que poderia vir facilmente ao espírito, que a origem da inquietação sobre a qual quero falar não me parece ter sido política, no sentido estrito da palavra, quer dizer, ligada à diferença de regime entre a França e a Bulgária. Minha hostilidade interior aos princípios deste regime não havia mudado durante os últimos vinte anos e, ainda mais do que antes, minha conduta

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não era a de um combatente. A dificuldade de ser que evoco aqui se situa em outro plano.

Tive um pressentimento dessa inquietação antes mesmo de partir para Sófia, enquanto preparava minha comunicação para o congresso ao qual havia sido convidado. Sendo o local do reencontro "a Bulgária", vi-me confrontado com uma questão, a do valor do nacionalismo. Minha tese era (simplificarei um pouco) que a defesa do grupo a que pertencemos não é mais do que um egoísmo coletivo; que as influências exteriores, longe de ser fontes de corrupção, são, ao mesmo tempo, inevitáveis e proveitosas para a evolução da cultura; que de qualquer forma vale mais viver no presente do que tentar ressuscitar o passado; enfim, que ali não havia grande interesse em fechar-se dentro do culto aos valores nacionais tradicionais.

Escrevi isso sem hesitação. As dificuldades surgiram no momento em que comecei a traduzir minha exposição, escrita originalmente na língua de empréstimo, o francês, para o búlgaro, a língua de origem. Não era um problema de vocabulário ou de sintaxe; mas, ao mudar de língua, vi-me mudar de destinatário imaginário. Tornou-se claro para mim, nesse momento, que os intelectuais búlgaros, aos quais meu discurso havia sido endereçado, não eram capazes de compreendê-lo como eu gostaria. A relação com os valores nacionais não tem o mesmo sentido quando habitamos um pequeno país (o nosso), situado na órbita de outro país, maior, ou quando vivemos no estrangeiro, em um terceiro país, onde estamos - como acreditamos - protegidos de qualquer ameaça proveniente de um vizinho mais

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poderoso. Paris era certamente o lugar propício a uma renúncia eufórica aos valores nacionalistas; Sófia o era muito menos. É preciso lembrar-se (porque as coisas estão muito mudadas desde então) que na época o discurso nacionalista representava a única oposição pública possível à ideologia comunista. Fazer elogios aos valores

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nacionais búlgaros significava, para todos os envolvidos, atacar as palavras de ordem oficiais; como o poder não queria ser contra as profissões de fé patrióticas, via-se obrigado a tolerar certa dose de anticomunismo.

Em grau menor, este problema é familiar a todo orador, a todo escritor: modifica-se seu discurso em função do auditório, do suposto leitor. Mas, a modificação que me sugeriram os ouvintes imaginários era mais do que isso: era preciso, sem rodeios, substituir uma afirmação por seu oposto. Eu compreenderia a posição dos intelectuais búlgaros se tivesse estado no lugar deles; provavelmente os teria dividido. No entanto, não estou mais entre eles, moro em Paris e não em Sófia e (então?) pensava o contrário. Mas, como dizer-lhes? Agir como se possuísse apenas a minha personalidade francesa e expor minha opinião sem dar-me conta daquilo que sabia a respeito da reação deles? Isso teria sido recusar-me a reconhecer que possuía acesso ao interior da cultura búlgara. Falar como se nunca houvesse deixado Sófia? Isso equivaleria a apagar os últimos dezoito anos de minha vida. Tentar combinar as duas posições, encontrar a neutralidade? Não se combina A e -A impunemente. Restava-me o recurso do silêncio...

Esta inquietação reproduziu-se sob outra forma por ocasião de conversas com amigos em Sófia. Por exemplo, alguém se queixou das condições de sua vida. Quando ouço o mesmo em Paris, posso tentar dar à pessoa diante de mim toda a espécie de sugestões; elas são mais ou menos convincentes, mas repousam forçosamente num fundo de existência dividido; desta forma ele ou ela aceita me ouvir. De qualquer modo, ele não iria a Sófia. Se eu tentava "colocar-me na pele" do interlocutor, assim como na de meu personagem búlgaro, propunha soluções especificamente "búlgaras" para seu problema. Percebia, então, que ele me ouvia com desconfiança: "Se as coisas fossem assim tão fáceis", parecia dizer seu silêncio

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reprovador (ou às vezes dizia sua voz), "por que então você não fica aqui para testar seu próprio remédio?"

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Eu nem ao menos podia replicar, nesta situação: "Oh, sim, você sabe, seus problemas... Eu, na segunda-feira, tomo um avião para Paris!" Isso era, no entanto, verdade e me veio o desejo de dizê-la, já que não encontrei solução para seu problema, ou que gostaria de fugir de seu sorriso desconfiado. Não, eu não podia exprimir-me assim, não apenas porque não teria sido polido mas também porque isso faria com que me situasse exclusivamente do ponto de vista de meu personagem francês, aquele que estava em Sófia apenas de passagem. Talvez pudesse combinar as duas posições? Já me senti bem sendo francês e búlgaro ao mesmo tempo, não posso encontrar-me a não ser em Paris ou em Sófia; a presença simultânea em dois lugares não era mais de minha competência... O teor de minha proposta dependia muito do lugar onde ela se anunciava para que o fato de encontrar-me aqui ou lá fosse indiferente. Minha dupla vinculação produzia apenas um resultado: aos meus próprios olhos, ela surpreendia por inautenticidade cada um de meus dois discursos, já que cada um podia apenas corresponder à metade de meu ser, ou então eu era um duplo. Fechei-me novamente no silêncio opressor.

A dupla vinculação

No curso de outras conversações, percebi que em resposta às perguntas sobre a vida na França eu falava com prazer daquilo que se assemelhava à vida na Bulgária, ou daquilo que não merecia nenhum elogio (com freqüência as duas coisas coincidiam: burocracia, espírito de mandarim, nepotismo...). Ao contrário, tudo aquilo do qual poderia me vangloriar mal passava pela minha garganta. No primeiro caso, eu ocupava uma posição tão acessível ao personagem francês

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quanto ao personagem búlgaro em mim, enquanto, no segundo, apenas o francês poderia falar; sendo também búlgaro, colocava-me no lugar de meus amigos e sofria as limitações que pesavam sobre mim. A palavra dupla revelava-se uma vez mais impossível e encontrava-me cindido em duas metades, uma tão irreal quanto a outra.

Sem dúvida acreditando me agradar, mas talvez também sendo sinceros, os velhos amigos que encontrei me diziam: "Você não mudou nada! Está exatamente a mesma coisa!" Ouvir isso não me agradou. Era uma forma de negar os últimos dezoito anos, de agir como se eles não houvessem existido, como se eu nunca tivesse adquirido uma segunda personalidade. Minha mãe havia guardado em uma gaveta um par de sapatos e os havia entregado a mim para que pudesse trabalhar no jardim; eu os tinha calçado, não havia nenhuma dúvida, eram meus, estavam deformados nos mesmos pontos e me cabiam perfeitamente. Reconheceram-me, aceitaram-me, e retomamos as conversas interrompidas dezoito anos antes. Tudo colaborava para me fazer pensar que esses anos simplesmente não

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haviam existido, que haviam sido um fantasma, um sonho do qual acabava de acordar. Por pouco iriam me oferecer trabalho, eu iria instalar-me, poderia me casar...

Teria desejado o contrário, que não me reconhecessem, que se espantassem com as minhas aparentes mudanças, e experimentei um certo alívio ao telefonar para o adido cultural francês: eu sabia falar francês, não havia sonhado! Além do mais, este senhor me conhecia de nome, sabia que eu iria vir: minha existência francesa não era um fantasma! Então, mesmo que o assunto da conversa fosse o mais corriqueiro (como fazer chegar mais livros franceses às bibliotecas búlgaras sem, no entanto, aumentar o orçamento?), sentia-me reaquecido pela cumplicidade de nossa troca: haviam-me confirmado minha existência. Se perco meu lugar de

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enunciação, não posso mais falar. Eu não falo, logo não existo.

O espaço (aliás) estava ameaçado de desaparecimento. O -tempo nunca havia me parecido tão longo: esses dez dias duraram quase dezoito anos. Toda noite me sentia envelhecer vários anos. No lugar das experiências vividas em Paris, cada conversa, cada reencontro me fazia imaginar aquelas que teria podido viver em Sófia; ou mais: fazia-me lembrar daquilo que havia vivido ali, embora ignorando. Não aprendi história à maneira de um estrangeiro, ou de um descendente longínquo, a quem é preciso explicar tudo porque ele vem do exterior; não, eu a recebi de dentro, por subentendidos, por alusões, pela imaginação. Esta possibilidade que tive de mais uma vez mergulhar imediata e totalmente na Bulgária que havia deixado tornou inverossímil aos meus próprios olhos a experiência do passado imediato, minha identidade francesa. Era impossível, com estas duas metades, fazer um todo; era uma ou outra.

A impressão dominante era a de incompatibilidade. Minhas duas línguas, meus dois discursos se pareciam muito, de certa forma; cada um poderia satisfazer à totalidade de minha experiência e nenhum era claramente submisso ao outro. Um reinava aqui, o outro lá, mas cada um reinava incondicionalmente. Eles se assemelhavam e podiam, em conseqüência, substituir-se um ao outro, mas não combinar-se entre si. Donde a persistência desta impressão: uma de minhas vidas deve ser um sonho. Em Sófia, era a vida na França que me aparecia como sonho e eu sentia esta impossibilidade de voltar atrás que experimentamos ao acordar. Eu me surpreendia a dizer freqüentemente, por ocasião de um novo reencontro: Veja, ainda um fantasma! ou indiferentemente: Eu sou um fantasma..., ou melhor, uma encarnação.

Aquilo fazia-me pensar em um conto de Henry James, O recanto agradável, onde o personagem principal está de volta a

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seu país após trinta e três anos de ausência. Este homem encontra-se confrontado com uma questão que não vem com freqüência ao espirito sedentário: o que teria sido eu, em que teria podido transformar-me caso tivesse permanecido em casa? O herói do conto vai até encontrar, no interior de uma casa vazia, um "verdadeiro" fantasma, seu alter ego, sua variante continua imóvel... De volta a Paris, é justamente ao acordar que me sentia mais perturbado: não sabia mais em que mundo deveria entrar. Minha mãe escreveu-me de seu canto: "Pergunto-me se você realmente esteve aqui ou se isso não foi um sonho." Sonho ou loucura, porque eu talvez não faça mais do que fingir ter vivido aqui e lá?

Cada uma de minhas línguas era um todo e é precisamente isso o que as tornava incombináveis, o que as impedia de formar uma nova totalidade. Antes desta visita, meu conhecimento do búlgaro não tornou em nada a minha vida na França perturbadora: ali, o uso de minha língua-mãe estava reservado a três ou quatro situações bem precisas. Algumas palavras para conversar com os raros búlgaros que conheci em Paris; a correspondência com meus pais, algumas leituras bem espaçadas; a tabuada e dois ou três palavrões: aí estão quase todas as circunstâncias onde, na França, eu me servia do búlgaro. A língua de origem estava claramente submissa à língua emprestada.

Eu podia, contudo, imaginar a situação inversa: morando na Bulgária, transformava-me em tradutor de francês ou falava com visitantes estrangeiros ou tornava-me um especialista em história da França. No entanto, isso não foi o que vivi durante minha visita de dez dias: não renunciei a nenhuma parte de minha personalidade francesa e, ao mesmo tempo, adquiri, reintegrei uma personalidade búlgara também inteira. Isso é muito para um único ser! Uma das duas vidas deveria eliminar a outra. Para evitar esta sensação, refugiei-me voluntariamente no trabalho físico solitário: aparei a grama

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do jardim, podei as árvores, removi a terra; um pouco como quando nos sentimos pouco à vontade na casa de pessoas que mal conhecemos e nos propomos a ajudar na cozinha, felizes por participar da interação do grupo sem ter que usar as palavras.

A lição deste retorno ao país natal, dezoito anos depois da partida, impôs-se pouco a pouco em mim. A coexistência de duas vozes tornou-se uma ameaça, conduzindo à esquizofrenia social, já que elas estão em concorrência; mas, se elas formam uma hierarquia cujo princípio tenha sido livremente escolhido, podemos superar as angústias do desdobramento e a coexistência torna-se o terreno fértil de uma nova experiência. Não importa qual hierarquia: em uma editora em Sófia, propuseram-me escrever o prefácio de uma coletânea de crítica literária francesa; hesito em aceitar, desconversando, agora que me surgiu a oportunidade de interpretar o papel de prefaciados na França. A razão é clara: a

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hierarquia do discurso, que agora é a mesma, se inverterá. Eu sei integrar a voz búlgara (estrangeira!) no quadro francês, não o contrário; o lugar de minha presente identidade é Paris, não Sófia. zzz Desenraizado, desenraizamento 23

Toda ruptura e toda cisão não são uma fatalidade. Sabemos que a este respeito as opiniões divergem. Malraux lembrou a este propósito uma opinião autorizada, a do coronel Lawrence "da Arábia": ele "dizia por experiência que todo homem que pertence realmente a duas culturas perdia a alma". Em nossa época de "crispação de identidade", de nacionalismo dissimulado, religioso ou cultural, tais intenções parecem ganhar nova atualidade, embora, em uma primeira forma - elogio da terra e dos mortos, condenação do desenraizamento -,

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já dominassem o debate na França na época do caso Dreyfus. É verdade que o discurso contrário nos é hoje igualmente familiar: numerosas pessoas, em particular os artistas e intelectuais, louvam a pluralidade das culturas, a mistura das vozes, a polifonia desmedida, que não conhece hierarquia nem ordem; elas se reconhecem dentro do cosmopolitismo, se não no nomadismo generalizado, quadro apropriado ao sujeito descentrado que seria cada um de nós. Eu não posso debater estas questões com julgamento imparcial, já que meu destino pessoal desvia forçosamente minha maneira de ver; mas posso tentar precisar o sentido de minha experiência.

No início de minha temporada na França, eu procurava e consegui mais tarde - a assimilação máxima. Falava exclusivamente em francês, evitando os antigos compatriotas; podia, de olhos fechados, reconhecer os diferentes vinhos e queijos do país; apaixonava-me exclusivamente por mulheres francesas... Este movimento teria podido prolongar-se indefinidamente, sem provocar nenhum terremoto: teria resultado, ao final da operação, em um menos búlgaro e um mais francês. O saldo teria sido nulo, sem perda nem ganho para a humanidade...

O que é preciso crer e lamentar é a própria desculturação, degradação da cultura de origem; mas ela talvez seja compensada pela aculturação, aquisição progressiva de uma nova cultura, de que todos os seres humanos são capazes. É verdade que não poderemos jamais nos libertar de certos traços decididos pela genética: a não ser que passasse por uma operação complicada, estou condenado a manter meu sexo, minha raça (no sentido das características físicas visíveis), a configuração individual do meu corpo. Deveriam, portanto, assimilar-se os traços adquiridos, como as tradições, a religião ou a língua? Condenar o indivíduo a continuar trancado na cultura dos ancestrais pressupõe de resto que a cultura é um código imutável,

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o que é empiricamente falso: talvez nem toda mudança seja boa, mas toda cultura viva muda (o latim tornou-se lïngua morta a partir do momento em que não pôde mais evoluir). O indivíduo não vive uma tragédia ao perder a cultura de origem quando adquire outra; constitui nossa humanidade o fato de ter uma língua, não o de ter determinada língua.

Contudo, minha aspiração à assimilação não deveria, na verdade, ser tão total quanto esta, já que nunca fiz esforço para perder o sotaque de origem. Pouco tempo antes de minha primeira viagem de volta à Bulgária, estes indícios de diferença irredutível se reafirmaram. Por quê? Uma das razões foi sem dúvida o próprio sucesso de minha integração na França: eu havia me tornado por naturalização um cidadão francês, trabalhava em uma instituição que era o que havia de mais oficial, o CNRS,1 tinha um filho que ia à escola como todas as crianças francesas. Outra razão surgiu, um pouco paradoxalmente, da própria evolução do meu trabalho. Eu experimentava a necessidade de estabelecer uma relação mais clara entre o objeto que procurava conhecer e o sujeito que eu era-uma relação que me parecesse pertinente no campo das ciências humanas, diferentemente do que se passa nas ciências da natureza. Senti uma necessidade, em meus textos sobre literatura e em outros discursos, não de desabafar mas de alimentar meu trabalho com algo mais do que a simples leitura de livros dos outros: com minhas intuições pessoais, logo com minha experiência. Mas um fato biográfico era difícil de ignorar: eu era um imigrante, um búlgaro na França.

Tive que render-me à evidência: não seria jamais um francês, ao menos como os outros. De resto, a mulher com quem me casei na véspera de minha viagem à Bulgária era, como eu, uma estrangeira na França. Meu estado atual não

1 Centro Nacional de Pesquisas Sociais. (N. da T.)

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corresponde, então, à desculturação, nem mesmo à aculturação, talvez mais ao que possamos chamar de transculturação, a aquisição de um novo código sem que o antigo tenha se perdido. Desde então, vivo em um espaço singular, ao mesmo tempo por fora e por dentro: estrangeiro "na minha casa" (em Sófia), em casa "no estrangeiro" (em Paris).

Não exagero para mim mesmo a originalidade desta experiência de biculturalismo. Além do mais, estou longe de ser o primeiro a experimentá-la; no campo da cultura e das artes, são numerosos os que foram atraídos por metrópoles como Paris ou

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Londres, Nova York ou Toronto, e este número continua a crescer todos os dias. E, mais, as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras, ligadas aos grupos pela idade, sexo, profissão, meio social; em nossos dias, então, todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos: somos todos híbridos. A origem cultural nacional é simplesmente a mais forte de todas, porque nela se combinam os traços deixados - no corpo e no espírito - pela família e pela comunidade, pela língua e pela religião. Por que, então, ela viveu às vezes na euforia e em outras ocasiões na tristeza?

Para alcançar a transculturação antes é preciso passar pela aculturação; para poder se desligar com sucesso de uma cultura, é preciso começar pelo autodomínio, pelo "falar". Posso evocar a facilidade que tive em assimilar-me na França, em um primeiro momento, sem julgar parecer imodesto, porque isso não implica nenhum mérito pessoal: deve-se, em parte, a meu meio familiar, que me levou a concluir o ensino superior e a aprender línguas estrangeiras; e, de outra parte, ao regime político que reinava em meu país natal, que incitou tantos compatriotas meus a fugir dele. Se minha partida tivesse sido obrigatória em vez de voluntária, se houvesse chegado à França privado da língua

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comum, assim como de toda competência profissional, teria certamente tido muito mais dificuldade em alcançar sucesso na primeira integração. Esta é, de qualquer forma, indispensável.

Admitamos que esta primeira fase de contato entre culturas seja desenvolvida sem obstáculos. A que poderia servir, então, a transculturação? Ao desenraizamento, em todos os sentidos da palavra.

O homem desenraizado, arrancado de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência. Aprende a não mais confundir o real com o ideal, nem a cultura com a natureza: não é porque os indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos. Às vezes ele fecha-se em um ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões. Mas, se consegue superá-lo, descobre a curiosidade e aprende a tolerância. Sua presença entre os "autóctones" exerce por sua vez um efeito desenraizados: confundindo com seus hábitos, desconcertando com seu comportamento e seus julgamentos, pode ajudar alguns a engajar-se nesta mesma visão de desligamento com relação ao que vem naturalmente através da interrogação e do espanto.

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Este próprio livro descreve, ao mesmo tempo, um desenraizamento geográfico e algumas visões desenraizadas.

Minha passagem de Sófia a Paris ensinou-me, hoje percebo, ao mesmo tempo o relativo e o absoluto. O relativo, porque não podia mais ignorar que tudo não deveria acontecer em todos os lugares como em meu país de origem. O absoluto também, portanto, porque o regime totalitário no qual eu havia crescido podia me servir, em todas as circunstâncias, de padrão do mal. Donde, sem dúvida, minha simultânea aversão, na prática do julgamento moral, a estes dois irmãos inimigos

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que são o relativismo do "vale tudo" e o maniqueísmo do preto e do branco.

O diálogo interior do qual falo não saberia subdividir-se ao infinito. Não acredito nas virtudes do nomadismo sistemático, da acumulação ilimitada de empréstimos culturais. Para estar à vontade em uma cultura, numerosos anos de aprendizagem são necessários; a duração limitada da vida humana nos impede de ir além de duas ou três experiências semelhantes. À Bulgária e à França somei, há uns trinta anos, um terceiro país, os Estados Unidos. Não penso mais, no entanto, em conhecê-lo realmente: apesar das ligações de amizade e até mesmo de parentesco que me unem a várias pessoas que ali moram, apesar das visitas quase anuais, devo admitir que esse país é para mim, acima de tudo, um lugar aonde vou para exercer a minha profissão. Isso consiste concretamente em dar uma conferência ou um curso no âmbito de um departamento de literatura - francesa, inglesa ou comparada. A visão que tenho dos Estados Unidos é na verdade limitada: só encontro ali, por assim dizer, universitários; eu mesmo moro em uma cidade universitária ou no quarteirão da universidade. O resto do mundo americano, percebo-o refletido nas indicações de meus interlocutores, dos artigos de jornal e das imagens de televisão.

Embora eu seja uma pessoa deslocada em três países, teci ligações muito diferentes com cada um deles. A Bulgária é o país onde cresci; o que me resta hoje, à exceção das lembranças pessoais, é a experiência - constitutiva - do indivíduo face a um regime totalitário. A França é a nação onde vivo; a seu destino estou ligado de coração, e dela me sinto cidadão. Os Estados Unidos são um lugar onde me encontro para exercer a profissão, onde reencontro mais colegas do que compatriotas. A única coisa que esses três países têm em comum para mim (mas outros estão na mesma situação)

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é o fato de que encontrei amigos com que continuo a conviver hoje, na presença ou na ausência. As páginas que se seguem são endereçadas e, por esta razão, dedicadas a eles. zzz PRIMEIRA PARTE

Originário da Bulgária

1

A experiência totalitária

O totalitarismo pode ser descrito, e o foi, de diferentes pontos de vista: filosófico ou político, econômico ou sociológico. Eu gostaria, de minha parte, sem ter que escolher entre estas perspectivas, de colocar-me no interior da consciência dos sujeitos em um Estado totalitário e evocar a imagem que eles fazem do regime em que vivem. O plano sobre o qual me situo é o de uma experiência comum, ele relaciona-se à psicologia coletiva em suas relações com a política. Baseio-me, esclareço, em minha própria experiência e na das pessoas que me colocaram a par das suas. É verdade que, desde minha partida da Bulgária, não deixei de ler o que diversos autores tinham a dizer sobre o totalitarismo, e isso certamente influenciou minha maneira de evocar e compreender o passado.

Traços constitutivos

Três grandes características do regime apresentam-se ao olhar de quem quer que procure analisá-lo: 1) ele afirma ter

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uma ideologia; 2) usa o terror para orientar a conduta da população; e 3) a regra geral de vida é a defesa do interesse particular e o reinado ilimitado da vontade do poder. Manter estas características separadas parece-me indispensável, não diminuindo nenhuma delas perante as outras. O totalitarismo corresponde à reunião destes traços e não à única ideologia, que era, ao que me concerne, comunista, já que ela era alhures nacional-socialista.

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Algumas palavras agora para precisar estes traços.

1) A ideologia. O conteúdo do ideal, a imagem da sociedade perfeita na terra que é apresentada como o início da sociedade real, absorve influências distantes: a do milenarismo cristão, a dos utopistas da renascença, a, já mais próxima, dos primeiros pensadores do socialismo. Seria, portanto, mais do que justo vinculá-la ao nome de Karl Marx, fundador do movimento comunista: é nele que se encontram os principais ingredientes da doutrina, tanto os econômicos quanto os sociais.

Vivendo em uma sociedade totalitária, temos tendência a subestimar a importância da ideologia: tudo isso parece ser apenas palavras no ar, poeira nos olhos, falsidade e mentira, sem a menor ligação com a vida real. "Eles" nos falam de um futuro radioso para tentar nos fazer esquecer a monotonia do presente, "eles" evocam o poder do povo para esconder sua avidez pessoal de riqueza e privilégios. Mais: por pouco que tenhamos um resto de memória, damo-nos conta de que o conteúdo da ideologia, ou ao menos da interpretação con- creta dos grandes princípios, varia consideravelmente de um momento para outro, já que são sempre apresentados como imutáveis porque únicos verdadeiros. A evolução das relações da União Soviética com a Alemanha hitleriana, no final dos anos trinta, ou com a China de Mao, ao longo dos anos sessenta, propõe exemplos particularmente expressivos, retirados da política exterior; e existiam mil outros à nossa volta.

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Enquanto isso, esta confrontação cotidiana com a mentira dos grandes slogans e o falatório corre o risco de esconder o verdadeiro papel da ideologia. De início, alguns domínios são bem regidos pelos princípios que dela derivam (não obstante os compromissos com o princípio de realidade), assim como uma grande parte da vida econômica. Daí vem a comunhão dos meios de produção ou da terra, a primazia dada à indústria pesada etc. (é claro que isso explica os resultados invariavelmente catastróficos desta economia: ainda mais do que a preocupação com a eficácia, são os grandes princípios políticos que a governam). Mais importante, a evocação da ideologia, qualquer que seja o teor desta, é indispensável como ação ritual. Os países totalitários podem ser submissos ao poder de uma pessoa ou de uma casta; no entanto - e isso é essencial - este poder nunca deve ser assim admitido, sob pena de desaparecer. A referência ideológica é como uma concha vazia; mas sem a concha o Estado não mais tem poder.

2) O terror. Quem descobriu que o terror poderia tornarse um meio de dirigir um Estado no cotidiano e obrigar a população a fazer o que querem seus dirigentes?

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A resposta é menos evidente aqui do que para o ideal comunista. Podemos dizer que, de certa forma, um Hobbes prepara o terreno, identificando o medo da morte como primeira e principal paixão humana (uma vez com ele nas mãos, o tirano pode ser tentado a fundamentar nele a sua autoridade). A Revolução Francesa já pratica uma forma de terror de Estado; os revolucionários russos dos anos sessenta do século XIX (Tkatchev, Netchaïev) projetam uma utilização sistemática do terror. Ernest Renan, em seus Dialogues philosophiques, aproxima-se singularmente deste traço do Estado totalitário; ele acredita que, para assegurar o poder absoluto em uma sociedade de ateus, já não é suficiente ameaçar os revoltosos com um fogo do inferno mitológico, e deve-se constituir um "inferno real", um campo de concentração que servirá para acabar com os

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revoltosos e para intimidar todos os outros. Acredita também na necessidade de constituir uma polícia especial, feita de seres desprovidos de escrúpulos morais e inteiramente devotados ao poder reinante, "máquinas obedientes prontas para todas as ferocidades". Um George Sorel, no início do século XX, refletirá por sua vez sobre a legitimidade da violência.

O mérito de ter sistematizado estas idéias e de as ter colocado em prática cabe no entanto, incontestavelmente, a Lenin, fundador do primeiro Estado totalitário, e a seus camaradas bolcheviques. São eles que articulam estes poucos principios simples: a intimidação da população em seu conjunto (Trotski: a revolução deve ser conduzida como uma guerra; "matando-se alguns indivíduos isolados, ela desencorajará milhares"); esta função de terror será confiada a um organismo particular, chamado originalmente Cheka, a Comissão Extraordinária (Dzerjinski: "Nosso aparelho tem ramificações por todos os lugares. O povo o teme"). A manutenção do terror será legitimada por uma fraseologia guerreira: "luta de classes", "ditadura do proletariado".

O inimigo é a grande justificativa do terror; o Estado totalitário não pode viver sem inimigos. Se lhe faltam, ele os inventará. Uma vez identificados, não merecem nenhuma piedade. Gorki, primeiro "clássico" da literatura soviética, é o autor desta fórmula brutal: "Se o inimigo se recusa a renderse, é preciso aniquilá-lo." Para facilitar a tarefa, começaremos por desumanizá-lo: os adjetivos habituais que daremos a ele são "vermes" ou "parasitas" (os nazistas procederão da mesma maneira com os judeus e com os inimigos políticos; farão, ademais, utilização macabra do adjetivo "extraordinário": Sonderkommando, Sonderbehandlung). O que permite aos policiais ou guardiães de campo declarar: "Nós, os comunistas, nos sentimos orgulhosos de matar um inimigo", ou ainda

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"Menos um inimigo, mais um pão para a pátria." Ser inimigo

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é uma aferição incurável e hereditária: um velho interno dos campos sempre terá prioridade para uma nova prisão, e as crianças da classe inimiga, "a burguesia" (ou sua variante Camponesa, os kulaks), são igualmente inimigas. A qualidade de inimigo não pode ser perdida, e até mesmo podemos transmiti-la aos outros; os inimigos são contagiosos: os amigos (a esposa ou o marido) de um inimigo são igualmente inimigos.

A ideologia nazista é muito diferente da ideologia comunista; mas a máquina do terror está igualmente presente aqui e lá. Insistimos às vezes no fato de que os judeus eram perseguidos não pelo que haviam feito mas pelo que eram: judeus. Portanto, isso não é diferente do poder comunista: exige a repressão (ou, nos momentos de crise, a eliminação) da burguesia como classe. O simples fato de pertencer a esta classe é o bastante, não é necessário fazer qualquer coisa; e os filhos dos burgueses permanecem marcados com o selo da infâmia. A Gestapo era, sem dúvida, mais brutal e mais cruel do que a Stasi, mas esta compensava com a quantidade: em uma mesma população ativa de dez milhões de pessoas, a Alemanha do Leste contava com cerca de cem mil agentes fixos, duzentos mil contratados e quase um milhão de colaboradores ocasionais...

O terror é uma ameaça de morte ou de repressão, e sabemos não se tratar apenas de uma palavra solta no ar. Uma vez instalado na sociedade, transforma-a profundamente. Em nenhuma sociedade os homens se alegram espontaneamente com a felicidade do próximo; muito pelo contrário, é o sofrimento de uns que faz a alegria dos outros, esta Schadenfreude de que fala (em francês!) Montaigne, a "volúpia maligna de ver sofrer o próximo". Na sociedade totalitária, o meio de fazer sofrer o próximo - o terror - é colocado à disposição de todos; ainda mais, somos encorajados e louvados por termos recorrido a este meio. Para mergulhar meu próximo (meu

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superior, meu inferior, meu rival, meu vizinho, meu irmão) no sofrimento, é preciso apenas apontá-lo, da maneira apropriada, aos órgãos do Partido ou da Segurança do Estado (há permeabilidade entre uma instituição e outra). A partir de então, ele não terá mais progresso, será privado do trabalho, expulso de sua moradia, deportado para a província, trancado em

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um campo de concentração, talvez assassinado! "Qualquer pessoa que queira, por uma razão ou outra, enviar alguém à morte, pode fazê-lo", constata um antigo detento dos campos búlgaros. O mal extremo colocado à disposição de todos, eis a inovação do sistema totalitário.

3) O reinado do interesse. Para o habitante deste país, a vida desenvolve-se. Evidentemente, não segundo os princípios codificados nos slogans oficiais,

mas segundo regras bem diferentes: é um combate sem gratidão para apossar-se da melhor parte do bolo. São o cinismo interessado e o desejo de poder que regem a vida cotidiana dentro desta sociedade; são eles também que descobriremos expostos no grande dia, uma vez levantada a máscara da ideologia. Este traço não é próprio apenas dos regimes totalitários; também pertence a uma potência desconhecida no exterior; o sistema é incompreensível se não o levarmos em conta.

O reinado incondicional do interesse não remete à ideologia de Marx nem mesmo à política de Lenin. Ao contrário, desde a tomada do poder por Stalin, está bem no lugar. O totalitarismo, tal como existiu na Europa Oriental, assemelha-se a esta segunda fase do Estado Soviético (nesta parte do mundo, todos os ritmos são acelerados, e ali, 1948

corresponde ao ano de 1934 na Rússia: Stalin já está no poder quando são instauradas as "democracias populares"). Sabemos que Stalin liquidará rapidamente toda a antiga guarda bolchevique, todos os que ainda acreditavam nos ideais. O comunista típico não é mais um fanático, mas um oportunista. A uma ordem, ele está pronto para mudar suas convicções;

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aspiram ao sucesso e ao poder pessoal, não à vitória longínqua do comunismo. Marx, Lenin e Stalin são as três fadas que estão debruçadas em seu berço e o provêm de suas principais virtudes.

A instauração deste modo de vida cínico e egoísta corresponde a uma concepção do homem e da sociedade da qual não será muito difícil estabelecer a genealogia, mesmo que este terceiro princípio da sociedade totalitária não seja jamais admitido oficialmente por ela. Podemos evocar aqui os materialistas franceses do século XVIII, um Helvétius, por exemplo, que via no interesse a única razão das ações humanas. A psicologia de Nietzsche também não está tão longe disso, já que este declara: "Todo corpo específico aspira

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a tornar-se senhor do espaço por inteiro e a estender sua força (sua vontade de poder), a afastar tudo o que resiste à sua expansão." Podemos ver aí uma descrição precisa o suficiente da luta subterrânea ou aberta à qual se entregam os diferentes agentes do poder soviético na sociedade totalitária. Muitos observadores do mundo soviético já salientaram que Stalin se comportava bem mais como adepto de Nietzsche que de Marx.

Os charmes secretos

Se um indivíduo comum desejar subir na escala social, como deve proceder? Ele procurará entrar para o Partido, colocando-se à disposição dos que já detêm o poder, dando sinais de uma submissão total e de uma aplicação zelosa. Se o alcançar, terá algumas (pequenas) vantagens materiais; e, sobretudo, gozará de privilégios simbólicos e aumentará seu poder sobre os outros: decidirá pela aceleração ou lentidão de sua carreira, verá o desenvolvimento global de sua existência. Se se elevar mais alto na hierarquia do Partido, terá acesso

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a novos privilégios: revistas especializadas, viagens ao estrangeiro. Se subir até o topo do Partido-Estado, influenciará a vida de milhares de pessoas. Se, ao contrário, não chegar a entrar no Partido, sempre lhe restará o caminho da delação e da calúnia: poderá, desta forma, desfrutar, ao menos assiduamente, de seu poder.

A condenação unânime que suscita hoje o totalitarismo pode tornar-se um obstáculo à sua compreensão. O habitante de uma democracia ocidental deseja acreditá-lo inteiramente estranho às aspirações humanas normais. Mas o totalitarismo também não se manteria por tão longo tempo, não teria arrastado tantos indivíduos atrás de sua doutrina, se houvesse sido assim. É, ao contrário, uma máquina de eficiência duvidosa. A ideologia comunista propõe a imagem de uma sociedade melhor e nos incita a aspirar a ela: o desejo de transformar o mundo em nome de um ideal não é parte integrante da identidade humana? Ao mesmo tempo reina nesta sociedade a lei da sobrevivência do mais apto, e o gozo do poder é ali afirmado como a última verdade da condição humana; os valores da "vida" também se encontram confirmados. Como já disse antes, ideologia e sociedade prestam-se uma assistência recíproca e o indivíduo se agarra a uma por conta de todas as decepções que experimentou por causa da outra.

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Ademais, a sociedade comunista priva o indivíduo de suas responsabilidades: são sempre "eles" que decidem. Mas a responsabilidade é um fardo sempre muito pesado de suportar. Não sonhamos muito secretamente, em alguns momentos, em voltar a ser crianças, deixando para os pais a preocupação de tomar as decisões? A felicidade do prisioneiro e a angústia daquele que recupera a liberdade não são uma invenção arbitrária. A atração pelo sistema totalitário, experimentada inconscientemente por numerosos indivíduos, provém de um certo medo da liberdade e da responsabilidade - isso explica a popularidade de todos os regimes autoritários (é a tese de

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Erich Fromm em O medo da liberdade); existe uma "servidão voluntária", já dizia La Boétie. O Homo sovieticus identificava-se automaticamente com o que dizia a autoridade e estava seguro; más nenhum outro Homo ignora por completo esta tentação. E porque havia alguma coisa de embaraçante na expressão "império do mal" aplicada à URSS, mesmo que, comparado à democracia, o totalitarismo seja incontestavelmente um mal: esta expressão permite identificar o mal em um lugar e em um regime, como se ele nos fosse inteiramente estranho, a "nós", encarnação confortável do bem. Não está mais trancado dentro do diabo, o mal não é propriedade exclusiva de nenhum império.

Os grupos e o indivíduo

A sociedade totalitária é umaditadura pseudo-ideológica: cada um de seus três termos descreve um ingrediente indispensável. O resultado da interação deles é a divisão da população em vários grupos bem distintos. No topo sentam-se todos os membros do aparelho (Partido, Estado, polícia, exército), os privilegiados, a nomenklatura. Na outra extremidade situam-se os inimigos, manifestos ou latentes, escolhidos em função de seus procedimentos pessoais e dos grupos a que pertencem. Enfim, entre os dois, a maioria: a massa, os que se submetem "apenas" aos inconvenientes comuns a todos.

A ideologia comunista afirma que estas sociedades são desprovidas de classes; ela tem razão parcialmente, porque os grupos em questão se assemelham mais às castas de certas sociedades tradicionais do que às classes próprias dos países capitalistas do século XIX. A diferença principal entre grupos não está no status econômico: já que o Estado é quase o único empregador, deste ponto de vista todos estão no mesmo barco. Como nas castas, as diferenças são antes de tudo

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políticas, no sentido lato da palavra; elas consistem na atribuição de um certo número de direitos e privilégios. O princípio da igualdade é constantemente atacado nos países que o reclamam. Mal podemos imaginar todos os domínios da vida que podem ser submetidos à política de privilégios. Assim com a educação dos jovens: ninguém tem direito de ir à universidade ou à escola de sua escolha. Assim com as moradias: distribuem-se os apartamentos (a crise habitacional é permanente) em função de um conjunto de critérios políticos e sociais. Assim também com o aprovisionamento: os armazéns para os membros do Comitê Central não se misturam com os do Bureau Político, ainda menos com os sinistros espaços com três quartos das prateleiras vazias reservados ao resto da população. O mesmo acontece com a circulação: algumas ruas são abertas a todos, outras a apenas alguns. Ainda as viagens ao estrangeiro: alguns não têm direito, outros só podem ir aos países irmãos, alguns têm acesso às divisas, outros não. Estas novas castas têm vários traços em comum com as castas tradicionais. Uma hierarquização minuciosa caracteriza todas elas. Porque não existem apenas as três grandes castas; cada uma delas se subdivide, por sua vez, em várias subcastas bem delimitadas. Entre membros do Partido ainda não se avança muito; podemos em seguida avançar até o COmitê Central, depois em direção ao Bureau Político (membros suplentes e membros titulares, secretários e vice-secretários). Ser um policial garante apenas um poder muito frágil; ser membro da polícia política já é uma posição mais invejável. Na Bulgária, esta chama-se Segurança do Estado e pertencer a ela garante um poder perigoso. Isso não é de todo suficiente: no início de uma certa época, criou-se uma terceira polícia, a UBO, verdadeira aristocracia da repressão, tendo notadamente como tarefa vigiar os membros da Segurança. Por outro lado, como nas castas tradicionais, o direito de pertencer

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a ela é hereditário: os filhos dos privilegiados são automaticamente privilegiados, e a prática da endogamia perpetua a identidade da casta. Donde uma evolução natural destas sociedades em direção ao princípio monárquico da transmissão do poder: a esposa de Ceausescu, o genro de Brejnev, o filho de Kim II-Sung, a filha de Jivkov são naturalmente designados para suceder o chefe de Estado.

No entanto, o que diferencia as novas castas das antigas, e as reaproxima, ao contrário das classes, é a possibilidade de mudar de casta. Esta passagem não é fácil, mas existe. Podemos, de um lado, nos desclassificar. Este foi o caso de um certo número de antigos combatentes ou heróis da resistência, que, à força de manter-se "honestos", perderam seus privilégios para confundir-se com a massa; eles mesmos, em alguns casos, tornaram-se "inimigos" e experimentaram as dificuldades da deportação. Sobretudo, podemos aspirar a subir de uma casta à outra: de inimigo passar para um grupo relativamente tranqüilo das massas, ou das massas para aquele, mais cobiçado, da nomenklatura. Por esta razão, a

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sociedade totalitária é, como as sociedades democráticas e ao contrário das culturas tradicionais, um mundo competitivo que atiça as ambições pessoais. Podemos partir de muito baixo e alcançar a esfera do poder supremo; para isso é suficiente compreender as regras do jogo.

Os grandes meios de promoção são simples: servidão aos superiores e delação com relação aos outros. A delação não é um meio pessoal ou passageiro: é um fator estrutural da sociedade totalitária. Para o poder, é a garantia de que nada lhe escapará: seus agentes jamais serão suficientes para a tarefa. Já que se deve vigiar a população inteira, é preciso que cada um vigie a si mesmo. Para os indivíduos, é o meio de subir na escala dos poderes: falar mal do próximo é eliminar um rival (sem falar na satisfação imediata que sentimos ao decidir o destino do próximo). Pouco importa se a delação é pura calúnia

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ou se contém elementos de verdade (o que não é difícil: ninguém está inteiramente satisfeito com o regime, então irreprovável); o importante é prejudicar os que o cercam. O único problema da delação é que, acessível a todos, pode também tomá-lo como objeto; então, os clãs de mútua ajuda e de solidariedade se desenvolvem e dão segurança em caso de uma delação.

Quanto à servidão, é de uso obrigatório com relação a todos os superiores. O "culto à personalidade" não caiu do céu nem se reproduziu por acaso em todos os países comunistas. Os escritores e os intelectuais revelaram-se sedutores particularmente inventivos, porque os chefes de Estado com freqüência os admitiram em sua intimidade. Cada pequeno chefe faz o mesmo e o lambe-botas ativo está sempre certo de obter alguns favores - limitados apenas, aí também, pelas rivalidades de clãs e pessoais. É o uso generalizado da servidão e da delação que explica a deterioração geral da vida moral, o desenvolvimento do cinismo nas sociedades totalitárias.

Se devemos encontrar um denominador comum aos traços característicos destas sociedades, será sua oposição à autonomia do indivíduo e à manutenção de sua dignidade. Em uma democracia, o indivíduo tem o sentimento de agir como sujeito autônomo e em conseqüência continuar um ser digno, já que se conduz em função de suas próprias decisões, quer dizer, de sua própria vontade. Pouco importa que em um bom número de casos isso se trate de ilusão e ele seja na realidade movido por suas forças inconscientes ou por fatores econômicos e sociais que o transcendem; o sentimento de dignidade é o resultado da representação que faz de sua própria ação, e até mesmo sua humanidade começa com a possibilidade de dizer "não". A autonomia não se confunde com a vontade de poder ilimitada: exige a liberdade do sujeito, não a submissão ou a eliminação dos outros. Mas tudo

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dentro da sociedade totalitária (e o termo é bem apropriado a este respeito) visa a impedir essa autonomia do indivíduo, essa possibilidade de ser a fonte de sua própria conduta. A maior virtude, e a melhor recompensa, é a docilidade; o princípio menos tolerado, a insubmissão.

A doutrina já privilegia, explicitamente, o grupo em detrimento do indivíduo; ela se dá os meios de fazer este último fracassar. Privando-o de toda a autonomia econômica. Daí o ataque à propriedade privada, a estatização dos meios de produção, a coletivização da terra. Daí, em outro plano, a preocupação de doutrinar as crianças desde a mais tenra idade (através da escola e das organizações paraescolares), opondo-se a submissão ao poder central à solidariedade familiar, fonte de autonomia incontrolável. Com o mesmo objetivo, aconselha-se vigorosamente às esposas dos "inimigos" (ou, eventualmente, a seus maridos) a pedir o divórcio: a escolha do indivíduo deve se curvar à do Estado. O terror se abate sobre todos os que ousam pensar diferente. Uma das tarefas mais difíceis é manter o senso de humor - sinal de distância com relação à autoridade e, portanto, de autonomia - e contar piadas políticas. É porque o totalitarismo só fez fanáticos: estes se arriscam um dia a agir de acordo com seus ideais, quando devem obedecer apenas às decisões do poder central; em contrapartida, fazem suas provas - e são preferidos - os "quadros" que passaram por várias abjurações sucessivas.

Contudo, a rejeição da autonomia em nada significa retorno a uma sociedade tradicional. Sabemos, na verdade, que esta se caracteriza, falando como os filósofos, pelo reinado da "heteronomia", a lei vem de fora: da profundeza dos tempos, da sabedoria ancestral. A autonomia do indivíduo tem apenas um frágil lugar. A sociedade totalitária participa da modernidade, em sentido amplo: o mundo social não é mais percebido como dado imutável, é antes o resultado de um

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projeto voluntário. Os homens são considerados aqui os senhores de seu destino em vez de serem joguetes. Na sociedade tradicional é o passado que é fonte de legitimação; no mundo totalitário, é o futuro: nada poderia ser mais diferente. Deste ponto de vista, como observou Louis Dumont, o totalitarismo é um "pseudo-holismo",uma farsa: uma sociedade moderna que escolheu, não pela força das tradições, revestir certas formas sociais tradicionais. A diferença com relação à democracia não está na simples presença ou ausência de uma atitude voluntarista, mas no lugar que ocupa o indivíduo em relação a este projeto social: aqui livre, lá submisso.

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Desdobramentos

Face à pressão do poder, o sujeito individual adota a estratégia do desdobramento. Esta consiste, essencialmente, em ele dispor de dois discursos, alternativos, o primeiro praticado em público, o outro privado. O discurso público é o que difunde a televisão, o rádio, a imprensa, o que ouvimos nas reuniões políticas; é ele que é preciso empregar em todas as circunstâncias oficiais. Usamos o discurso privado em casa, entre amigos, ou em todos os campos em que a ideologia não influi muito de perto, como o esporte e a pesca.

Os dois discursos, que se caracterizam por uma vocação à totalidade similar à que têm as duas línguas do bilíngüe, distinguem-se entre si pelo vocabulário, um pouco pela sintaxe, mas sobretudo pelo princípio de seu funcionamento. O discurso privado pode ser regido por várias exigências, bem como pela busca do prazer do interlocutor; ou ainda pelo que podemos chamar de verdade de adequação, devendo as palavras enunciadas descrever o mundo ou exprimir as opiniões do sujeito de maneira o mais exata possível. O discurso público só se preocupa com uma "verdade" de conveniência:

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para ser julgada, a palavra não é confrontada com a realidade empírica, ainda mais porque não se interroga a respeito do eventual prazer do parceiro; a única exigência é que seja conveniente a outros discursos, já existentes e conhecidos de todos, a uma opinião correta sobre qualquer coisa.

Este desdobramento não é o único que a sociedade totalitária conhece. Orwell imortalizou outra variante com o nome de doublethink, duplo pensamento. Em 1984, ele conta que o Partido introduziu uma técnica de manipulação das consciências que leva esse nome. Por razões inerentes à sua forma de ditadura, o Partido faz com freqüência afirmações contraditórias; ao mesmo tempo, declara sua completa e constante coerência. Como estes dois atos de linguagem podem ser reconciliados? Pela técnica do duplo pensamento, justamente. Ela consiste, segundo Orwell, em "saber e não saber, ter a consciência de ser completamente verídico quando se diz as mentiras cuidadosamente arranjadas, manter simultaneamente duas opiniões que se anulam uma à outra, sabê-las contraditórias e acreditarem ambas, utilizar a lógica contra a lógica, repudiar a moral no momento mesmo em que se a reivindica..." Isso lembra estranhamente esta outra descrição, de Bertolt Brecht, poeta e não adversário de um regime totalitário: `Aquele que luta pelo comunismo / deve saber lutar e não lutar / dizer a verdade e não dizê-la / cumprir suas promessas e não cumpri-las / expor-se ao perigo e fugir dele / fazer-se reconhecer e permanecer invisível."

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Em uma palavra, esta "técnica" permite fazer economia da lei da não-contradição, encontrar uma lógica ali onde reina a incoerência. Diante destes dados inconciliáveis - os enunciados contraditórios, por um lado; a exigência de nãocontradição, por outro - o Partido escolhe agir pela segunda, não aceitando suas contradições, mas habituando a razão a não percebê-las como tal, já que isto diz respeito à política do Partido.

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Outra comparação vem facilmente ao espírito: a dissidência, a que era praticada nos últimos decênios do regime comunista, tem igualmente traços do desdobramento. Colocados diante dos mesmos dados inconciliáveis, a incoerência dos atos e a coerência do pensamento, os dissidentes fazem a escolha inversa: eles mantêm a integridade do pensamento e denunciam as contradições do mundo onde vivem. E interessante observar que, bem antes do período da dissidência, o grande pensador russo Mikhail Bakhtin havia descrito a possibilidade e previsto conseqüências extremas. Na época, Bakhtin (ou seu amigo e testa-de-ferro Volochinov) mostrou-se de acordo com a ideologia oficial (sua deportação e seu próprio "desdobramento" eram, portanto, iminentes); descrevendo a variedade do que ele chamava de "diálogo interior", identificou nele uma forma de algum modo patológica, aquela onde as vozes interiores não correspondem mais às opções ideológicas estáveis e familiares. "Em condições sociais particularmente desfavoráveis, tal separação entre a pessoa e o meio ideológico que a alimenta pode conduzir no final a uma decomposição total da consciência, à loucura ou à demência."

A pluralidade das vozes resulta então, podemos dizer, na esquizofrenia (se quisermos guardar deste termo sua significação comum de cisão da personalidade, de incoerência mental, e sua associação a uma forma de tristeza). O duplo pensamento é também uma espécie de loucura, já que decidimos aceitar a incoerência, ver a contradição; é como uma vacina com a qual o Partido quer inocular todos para que a incoerência do pensamento esteja em harmonia com a incoerência do mundo: nós seríamos, desta forma, imunizados. Para Orwell e os dissidentes, a loucura - que eles desejam colocar em práticas da política do Partido - é bloqueada com a ajuda de um critério interno e quantitativo (é, em alguns casos, a aceitação da contradição), já que o próprio Partido identifica a

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loucura dos dissidentes (já que efetivamente os tranca nos hospitais psiquiátricos) com a ajuda de um critério externo puramente quantitativo: eles não pensam como todo o mundo deve fazer, então só podem ser loucos. Ser contra o regime é ser contra as normas, é ser anormal.

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O duplo pensamento imposto pelo Partido pede que haja apenas uma espécie de discurso, ao longo de toda a vida do sujeito, mas este discurso aceita a contradição em seu seio. O dissidente, por outro lado, pratica um mesmo discurso em todas as circunstâncias, o qual obedece à lei da não-contradição, e através dele denuncia as contradições e as incoerências do mundo. O desdobramento que evoquei anteriormente, ao contrário, o qual é bem mais comum do que essas duas atitudes extremas, dispõe de dois discursos, em geral um em contradição com o outro, mas cada um está adaptado ao contexto em que é empregado. O Partido exige a única "verdade" de conveniência, os dissidentes praticam a única verdade de adequação. O grosso da população, os que não se sentem com alma de herói ou de mártir mas desaprovam o regime, refugia-se em uma espécie de esquizofrenia social (e não mais pessoal): em público, ostenta a aprovação das palavras de ordem oficiais e finge docilidade; em particular, está de acordo quanto a falar mal e tenta fazer apenas o que manda sua cabeça. É bem assim que nos portávamos meus amigos e eu no tempo em que eu vivia em Sófia.

O que descrevi lá, ainda que eu dê a impressão de simplificar as coisas, não é nada além de uma situação típica. Na prática, as coisas são muito mais complexas. Eu as coloquei como entidades bem delimitadas: o Partido, de um lado, o dissidente do outro. Esta oposição é fragmentada no plano dos princípios, mais problemática, já que diz respeito às pessoas: o membro do Partido tem, evidentemente, um discurso público e um discurso privado. Isto é verdadeiro até mesmo para os funcionários do Partido (os membros do que Orwell chama

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de "o Partido interior"); simplesmente, os limites da separação entre os discursos não coincidem aqui e lá. A diferença é grande entre as palavras professadas na tribuna de um congresso e as trocadas entre colegas no local de trabalho; no entanto, ambas as situações são públicas. A fronteira do privado e do público é de resto bem instável: em tal momento, o discurso público tende a interpretações de filmes, livros, fatos históricos, nada mais adiante; em outro, cobre também as relações pessoais: existe um modo conveniente de amar, ou de ser amigo, e um só! A verdade de adequação, que acreditamos estar essencialmente no discurso privado, com freqüência se revela, por seu lado, apenas a verdade de outra conveniência, anterior ou exterior à do momento. Às oposições falta objetividade, mas, pude testemunhar isto, nós não deixamos de reconhecê-las.

Quando encontrava um personagem qualquer, era excepcional que um discurso homogêneo fosse produzido de uma parte e de outra ou, em uma situação inversa, que dois discursos inteiramente diferentes se confrontassem. Na realidade, havia sempre uma hierarquia de discursos que se articulava à outra hierarquia, semelhante, mas não idêntica. Coisa notável, a passagem de um discurso a outro; a escolha dos registros verbais era perfeitamente dominada por cada um. Sem que esta técnica houvesse sido aprendida na

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escola, nem sequer jamais nomeada. O que nos faz supor que além dos próprios discursos, público ou privado, cada um de nós possui um quadro englobador, uma instância reguladora que decide a dose de público e de privado, de conformismo e de lucidez por entrar neste ou naquele propósito particular.

Todos saberíamos fazer malabarismos com estes diferentes registros da palavra, dirigir uma vez um, outra vez outro circuito, segundo as necessidades do momento (as pessoas de minha geração, que cresceram depois do advento do comunismo, e as gerações seguintes ficavam mais à vontade

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neste exercício do que os mais velhos: parecíamos ter absorvido esta competência exatamente após o leite materno). No entanto, ninguém estava isento de falha e de culpabilidade. No meio da noite, a sós, subitamente nos dávamos conta de todos os estragos causados por esta preocupação com a adaptação que deveria sempre permanecer em alerta, e da automutilação por que ela era responsável. Sentíamos subir em nós o desejo de sair às ruas e de gritar, a plenos pulmões, a verdade, a simples verdade - como um louco; no entanto, sabíamos que não o faríamos. Em resumo, é esta a diferença entre o sujeito dos países totalitários e o de outro país: este já não ignora a divisão introduzida em seu discurso pela separação entre público e privado, entre verdade de adequação e "verdade" de conformidade, mas o sentimento de não poder escapar, não importa o que faça, ao erro e à culpabilidade.

É paradoxalmente isso o que assegura a vitalidade do totalitarismo. Praticando massivamente o desdobramento, a maior parte dos sujeitos do regime considera-se livre: naquilo que eles consideram ser sua verdadeira vida (o domínio privado), escapam do regime. Na realidade, o totalitarismo se acomoda bem a essa maneira que cada um tem de se consolar: isso deixa-lhe as mãos livres lá onde ele deseja. Tendo aceito a "vida dentro da mentira", para falar como Uaclav Havel, o indivíduo torna-se seu cúmplice: eis "o autototalitarismo da sociedade". Não era então verdadeiro, como queremos encará-lo, que apenas o sistema era "ruim" já que os próprios indivíduos eram "bons". Estávamos todos contaminados.

Quem, em uma sociedade totalitária, não teria nada para censurar-se? Apenas aquele que não a tivesse vivido. Como observou Havel, o próprio das ditaduras totalitárias, diferentemente das tiranias tradicionais, é que não há uma minoria que oprime uma maioria, mas cada um se encontra envolvido, por facetas diferentes de seu ser, no mecanismo da repressão: todos haviam sido, pelo menos em algum nível, seu

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sujeito e seu objeto. Simultaneamente carrascos e vítimas. "Cada um é, ao mesmo tempo, prisioneiro e carcereiro." A fronteira passa pelo interior de cada um, incluindo os membros do Comitê Central: em uma parte de meu ser, submeto-me ao sistema e sofro com ele; em outra, faço-o prosseguir. Esta é a trágica condição da vida que o totalitarismo impõe ao indivíduo.

2 Os campos

Vivi na Bulgária até 1963; os campos de concentração não ocupavam nenhum espaço em meu universo de então. Aqueles que ali ficaram trancados haviam, no entanto, habitado os mesmos lugares que eu, e senti-me culpado dos mesmos "crimes": eu usava as mesmas roupas, ouvia a mesma música, contava as mesmas histórias engraçadas e nutria os mesmos sentimentos com relação à polícia. O mundo deles me era perfeitamente familiar, com suas proibições e suas artimanhas, seus personagens atraentes ou desprezíveis. Eu ignorava, porém, todos os campos. Já era adulto e não tentava mais fechar os olhos nem tapar os ouvidos diante do que me cercava; contudo, o fato estava lá: o horror estava às minhas costas, eu ignorava-o e não fazia nada para que cessasse. Deime conta de que isso não era apenas puro acaso: eu pertencia a um meio relativamente privilegiado que - de certa forma - me protegia das "dificuldades" que conheciam os outros. Hoje não procuro culpar-me, sei até que não tenho nada em particular que me reprovar; mas sei também que por causa

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deste passado jamais poderei dizer a mim mesmo: essas histórias não me dizem respeito.

O que afirmo aqui sobre os campos, descobri-o muito depois de seu fechamento, depois que as línguas de seus antigos prisioneiros foram libertadas-'

Funções dos campos

os campos de concentração são duplamente emblemáticos dos regimes totalitários: são uma peça mestra, já que encarnam este "inferno real" de que falou Renan, e servem, ainda mais do que a morte em si, de fundamento ao terror; e um concentrado quintessencial, na medida em que o país inteiro está organizado à maneira de um campo sob o regime em questão. Uma sociedade onde os campos de concentração são impensáveis não

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pode ser qualificada de totalitária. A Bulgária, que corresponde a quase um quinto da França, tanto em território quanto em população, conheceu cerca de uma centena de campos de concentração entre 1944 e 1962, com um número de prisioneiros difícil de precisar, mas provavelmente próximo de cem mil pessoas.

Toda sociedade, obviamente, dispõe de um lugar onde tranca os que infringem suas leis. Mas a questão importante aqui é saber se a prisão é decidida pela justiça ou pela administração e se isso resulta na prisão ou no campo. Nos países do Leste, como na Alemanha nazista, é a administração (a polícia) que envia ao campo; a justiça envia os condenados à prisão. Esta diferença é crucial e foi precisamente posta em evidência por David Rousset, esse antigo deportado de Buchenwald que havia se engajado, nos anos cinqüenta, no combate

'Todos os testemunhos dos antigos presos são extraídos, exceto por indicação contrária, da coletânea Au nom du peuple (Edições de l'Aube, 1992).

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aos campos stalinistas. Os prisioneiros dos campos encontravam-se ali sem nunca ter sido condenados, por simples decisão da polícia; uma lei especial organiza esta arbitrariedade. A razão precisa desta situação é clara: a meta dos campos não é punir os culpados (estes, sim, são julgados e aprisionados), mas aterrorizar a população atingindo os inocentes. Os condenados são enviados à prisão, os que não podem ser condenados encontram-se no campo. (Na União Soviética, é verdade, a massa de condenados é tamanha que nenhuma prisão poderia abrigá-los; eles irão povoar, assim, os campos subárticos.)

No entanto, a justiça comunista é com freqüência uma paródia da justiça; todos sabem hoje em dia como eram montados os famosos processos stalinistas dos anos trinta, processos que deveriam servir de modelo aos dos anos quarenta e cinqüenta no Leste europeu. As condições de vida em algumas prisões, onde a tortura e o assassinato eram moeda corrente, não tinham nada de invejáveis. Mas isso nada impede: os que experimentaram os dois falam da prisão quase com nostalgia e as raras pessoas que conseguiram escapar dos campos de concentração cometiam às vezes um pequeno delito para retornar à segurança de uma prisão. O procedimento judiciário, que havia sido reduzido a pura formalidade, era melhor do que nada: a acusação deve produzir as provas, a defesa ousa às vezes demonstrar a inutilidade das mesmas. Por mais infame que seja a lei, ela engaja os dois lados em questão, a autoridade e o sujeito, que é submetido a ela; por mais terrível que possa ser a prisão, ela tem uma regra por meio da qual podemos respeitar e preservar a dignidade elementar do indivíduo.

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De início os campos impõem ao detento um regime muito mais duro, já que se trata de trabalhos forçados. No entanto, o pior não está aí; se tais detentos houvessem sido condenados apenas a trabalhos forçados!... Não foram condenados

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a nada, e a chave de sua situação está justamente na arbitrariedade de que são vítimas. já que não houve julgamento, não sabem por quanto tempo ficarão no campo: seis meses Dez anos? Até que a morte os leve? Como não lhes foi impingida nenhuma punição legal, não podem saber em que consistirá seu regime; são simplesmente colocados nas mãos de alguns torturadores cujas intenções são impenetráveis, mas certamente não benevolentes.

Cada campo privilegia sua própria forma de repressão: a fome em Buchenwald, o frio e a fadiga em Kolyma. A particularidade dos campos búlgaros - e especialmente de Lovetch, o pior de todos (em atividade entre 1959 e 1962) -parece ter sido a tortura, em sua forma mais primitiva: os golpes de cassetete. A libertação do interno ou ao menos a melhoria de suas condições de vida, na verdade toda a sua vida, não depende de nenhuma regra, por mais absurda que seja, mas do humor do indivíduo que o encara, munido de um cassetete, e então você passa a crer que ele o odeia, despreza e não encontra nenhuma satisfação além de fazê-lo sofrer. Depender assim da vontade caprichosa de um indivíduo (mesmo que este capricho seja enquadrado por uma política de conjunto) é pior do que estar submisso à lei mais rigorosa.

Perfis de prisioneiros

Quem, exatamente, é enviado aos campos? A resposta oficial a esta pergunta é simples: os inimigos. Estando determinado que os verdadeiros inimigos são condenados e aprisionados (ou fuzilados), embora não sejam muito numerosos, torna-se evidente que tal resposta pede que seja submetida à crítica. Se não mais interrogamos os documentos oficiais, mas os prisioneiros reais, descobrimos progressivamente seu sentido verdadeiro. O Estado totalitário precisa de inimigos,

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embora possa não os possuir (os indivíduos que ousam combatê-lo são raros); ele se dedicará então a apresentar como inimigos toda espécie de pessoas que não o são. Para ver isso de forma mais clara, poderemos reagrupá-los em algumas grandes categorias, que seriam: os adversários; os não-conformistas; os rivais.

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Os adversários são os indivíduos que exprimem opiniões políticas diferentes das que defende a linha oficial do Partido-Estado; são, na verdade, os verdadeiros "opositores". Nos países do Leste europeu, podemos distinguir três ondas de oposição. A primeira é aquela de todas as personalidades implicadas no "antigo regime", com freqüência comprometidas pela colaboração com os alemães: esta oposição será reduzida à miséria no dia seguinte ao fim da guerra. A segunda onda é a dos partidos antifascistas não-comunistas, que tiveram a ingenuidade de fazer um pacto com os comunistas em 1945 e serão eliminados antes de 1948. A terceira é a da oposição comunista, em 1949-1953, desde a ruptura com Tito até a morte de Stalin; a cisão mais freqüente produzia-se em torno do tema "defesa do interesse nacional ou então fidelidade à União Soviética".

Invariavelmente, as figuras principais são mortas; os membros de seu círculo de amigos, seus familiares, seus colaboradores são enviados para o campo. O traço comum relevante dos indivíduos desta categoria é terem efetivamente expressado discordância com relação à linha oficial, ainda que jamais houvessem se comportado como inimigos e não tivessem sido ameaçados pela força da existência do novo poder. É isso que, pelas necessidades de sua própria causa, transforma os adversários em inimigos. O Estado totalitário não admite nenhuma pluralidade de opiniões; qualquer desacordo era então passível de esmagamento.

A segunda categoria, infinitamente mais vasta, fornece o essencial da população dos campos e, sobretudo, não se cala

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jamais (já que não podemos mais falar, na Bulgária, por exemplo, de uma oposição depois de 1950). Seus membros não combatem a linha oficial de forma direta, mas não se submetem a ela com empenho suficiente e têm, em um domínio qualquer, certo grau de autonomia. Representam amplas camadas da população. Fazem parte dela, por exemplo, todos os camponeses que se recusam a unir-se com entusiasmo às novas cooperativas e a renunciar a seu único cavalo ou vaca. Ou todos aqueles que persistem em querer ganhar a vida sem trabalhar para o Estado revendendo velhos objetos ou trabalhando por conta própria: serão qualificados de vadios e de "traficantes do mercado negro". Ou os cristãos praticantes. Ou os homossexuais. Ou os jovens que amam muito as brigas (a categoria dos "malandros" é uma das mais extensas).

Algumas variantes deste "não-conformismo" merecem particular atenção. Uma é aquela a que o termo se aplica literalmente: são pessoas cujo comportamento se distancia da norma admitida, embora a relação desta norma com a política continue de todo misteriosa. Assim como o modo de vestir: os garotos que gostam de calças justas, as moças de minissaia encontram-se, depois de uma ou duas advertências, em um campo de concentração, do qual não têm certeza de sair vivos. Toda música que tenha a mínima relação com o jazz ou

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o rock é suspeita, porque o ocidental é inimigo; toda dança posterior ao tango também. Uma testemunha - diretor de cinema na época - recorda-se de ter sido preso e julgado, em 1964, por ter dançado twist; os argumentos da condenação (ele escapou do campo) precisam que "não somos contra a dança moderna, mas há duas maneiras de dançá-la, a ocidental ou capitalista, e a nossa, a socialista". Toda relação sexual extraconjugal pode levar à deportação (pela "dissipação da moral"); a informação concernente a ela é então sistematicamente utilizada como forma de chantagem. Outra grande justificativa da repressão encontra-se nos

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"contatos com o estrangeiro". Freqüentar os próprios estrangeiros, em missão no país ou como turistas, esportistas ou comerciantes, é sempre suspeito, porque implica o risco de favorecer a autonomia do sujeito: o poder produz então a acusação de espionagem. Admirar os objetos de origem ocidental ("entregar-se à apologia da tecnologia imperialista") é igualmente perigoso, assim como o é, e mais ainda talvez, estudar e praticar línguas como o francês, o inglês, o italiano (o espanhol deixou de ser suspeito depois da vitória do comunismo em Cuba): uma traição potencial não era menos vigiada do que uma traição real. Até mesmo ler preferencialmente autores "ocidentais" servia de prova.

Mesmo a menor forma de protesto verbal pode conduzir ao campo. Um sujeito encontrou-se ali porque, na interminável fila diante da padaria, permitiu-se resmungar: "O grão para Moscou, a palha para nós"; outro porque brincou: "Pão quente? E não estamos em véspera de eleição!" Numerosas pessoas foram deportadas ou internadas porque repetiram uma anedota sobre o chefe do Estado-Partido ou sobre o Grande Irmão. Assim como outra o seria porque mencionou diante do vizinho uma notícia ouvida na BBC (isso chamava-se "difundir rumores nocivos ao Estado"). Outros, enfim, foram perseguidas não por ter cometido uma infração, por mais ínfima que fosse, mas por falta de obsequiosidade, por não ter feito denúncias, não ter manifestado empenho suficiente durante um desfile ou em um dos períodos de trabalho manual obrigatórios (as "brigadas"). Lê-se, em uma delação que decidirá o destino de uma mulher: "Tem comportamento altivo, dá-se muita importância diante dos outros. Não escolhe seu meio em função da nova moral socialista."

A última categoria de prisioneiros (numericamente menos importante) é constituída de simples rivais de personagens mais bem situados que eles, personagens que encontraram um meio cômodo de desembaraçar-se dos outros: é a

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conseqüência da colocação da máquina repressiva à disposição de todos. Uma mulher divorciada ganha na loteria e compra um apartamento; o ex-marido, um policial, a envia a um

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campo de concentração e apossa-se do imóvel. Outra surpreende o marido com uma desconhecida e faz uma cena em público; o marido, um oficial, desembaraça-se da esposa intolerante deportando-a. Um homem quer proteger a honra da mulher contra a cobiça do responsável local de uma organização de massa: os dois são condenados a cinco anos no campo. O vizinho acha que sua casa faz-lhe sombra; como o irmão dele trabalha no Ministério do Interior, você tem de ir para o campo sem ao menos ter tempo de fazer as malas. Estes exemplos ilustram um traço fundamental da sociedade totalitária: a facilidade com que podemos transformar o rival - a pessoa que, por uma razão ou outra, nos incomoda em inimigo.

A seqüência é simples: se o futuro "inimigo" não começa, depois de uma advertência, a praticar com empenho a servidão e a delação, é preso, surrado se é homem, e enviado para um dos numerosos "centros de correção para o trabalho" (nome oficial dos campos na Bulgária).

Vida cotidiana

Como descrever a vida que se levará ali? Em março de 1962, um membro do Bureau Político, internado pelo próprio Bureau em um campo durante a guerra como resistente comunista, entra no campo de Lovetch à frente de uma comissão de pesquisa. De fato, depois de vários meses, o nível de vida melhorou sensivelmente e a maior parte dos prisioneiros foi libertada. Entretanto, sua impressão é tão forte que, trinta anos depois, ele ainda se recorda: `As condições de vida nos campos fascistas eram bem melhores. Eu fiquei perturbado..."

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Os campos são gerenciados por uma equipe de oficiais da polícia política. Estes têm geralmente o mesmo perfil social: originários de família camponesa pobre, engajaram-se muito jovens na resistência comunista. Depois da guerra, foram rapidamente promovidos, recebendo, em lugar de educação, treinamento nas escolas do Partido, às vezes na URSS; eles devem tudo ao Partido e lhe são devotados sem a menor crise de consciência. Não se preocupam com idéias, alguns clichês tomam-lhes o lugar do pensamento, e eles executam com zelo as ordens que lhes são transmitidas; nem mesmo a questão de sua juventude lhes atravessa o espírito. São seres relativamente frustrados, medianamente astuciosos, que não demonstram nenhuma imaginação ou compaixão. Não é surpreendente que revelem, na maioria (há exceções; alguns policiais quase se demitem), tendência ao sadismo: são colocados em uma situação de irresponsabilidade total, em que podem até receber promoção pelos maus-tratos aos prisioneiros; deixam-se levar pelo prazer de sentir que dispõem do destino dos outros, que podem infligir-lhes o sofrimento ou a morte. Não iriam comportar-se como

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sádicos em outras circunstâncias; são pessoas comuns que encontraram um meio fácil de experimentar o gozo do poder.

São assessorados em seu trabalho por policiais subalternos e, sobretudo, pelos "chefes de brigada", de direito comum ou "políticos" indulgentes, responsáveis pelo trabalho, o equivalente aos kapos nos campos nazistas, que se servem de um cassetete em lugar da palavra. São eles que, habitualmente, surram e matam.

Aqui estão alguns relatos, extraídos da vida dos prisioneiros no campo de Lovetch. Durante a chamada da manhã, o chefe da polícia (o responsável pela Segurança do Estado no campo) escolhe suas vítimas; ele tem o hábito de tirar do bolso um pequeno espelho e estendê-lo: "Tome, olhe-se pela última vez!" Os condenados recebem então um saco, que servirá

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para carregar seu cadáver ao campo à noite: eles mesmos devem levar o saco, como Cristo carregou a cruz subindo o Gólgota. Eles partem para o depósito, no caso uma pedreira. Ali serão surrados até a morte pelos brigadistas e colocados no saco, que são fechados com um pedaço de arame. À noite, seus companheiros os levarão de volta ao campo, num carrinho de mão, e os cadáveres serão estocados atrás dos banheiros - até que haja vinte, para que o caminhão não faça a viagem vazio. Os que não cumprirem a norma durante o dia serão destacados durante a chamada da noite: o responsável da polícia desenhará com a ponta do cassetete um círculo no chão; os que forem convidados a entrar serão massacrados pelos golpes.

Os elementos deste regime extremamente duro - regra de trabalho subumana, golpes constantes, condições de vida execráveis - só têm um único objetivo: esvaziar toda a resistência interior da parte dos prisioneiros. Aqueles que não se submetem, morrem; os outros serão reduzidos ao silêncio dócil. Os menores traços de autonomia serão eliminados, as últimas resistências da dignidade demolidas. Veja-se o dia do prisioneiro, descrito por um ex-interno dos campos: "Ao amanhecer, ainda escuro, ele é brutalmente arrancado do único repouso autorizado e durante todo o dia, das trevas às trevas, está de pé, sempre em movimento, sem possibilidade de sentar-se nem de deitar-se, sob tensão constante e ininterrupta, faminto e com freqüência sedento, abatido e fisicamente esgotado, enquanto, para que não procure distração e consolo no pensamento, em sua cabeça batem o chicote, as injúrias e as ordens grosseiras dos guardas ou lhe grita nos ouvidos uma música inoportuna" (Guéorgui Jetchev, Captifs au pays).

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O único meio de aliviar sua condição é colaborar com as autoridades. Aos velhos adversários pede-se que assinem uma declaração, por meio da qual renunciam solenemente à vida

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anterior. Todos podem também aspirar a tornar-se delatores ou a passar para o lado dos algozes. Poucos o fazem. Não por heroísmo nem por espírito de resistência, mas por uma espécie de resignação. Em contrapartida, todos interiorizam o medo e submetem-se sem protesto. Os prisioneiros se falam pouco entre si, não têm nem tempo nem força. "Aconteceume não trocar nenhuma palavra com ninguém durante um longo período. Lembro-me de um destes períodos, em que falei com uma parede para assegurar-me de que não havia perdido o hábito." Eles não se lamentam e não têm nenhum ódio a sua submissão total. Quem se curva não se quebra: não há um outro meio de sobreviver. "Eu me calava", disse um prisioneiro, "para sobreviver por causa de meu filho. Cedo ou tarde o escravo retorna, mas da tumba ninguém retornará."

Tal efeito de intimidação estende-se à família e aos amigos dos prisioneiros. Um dos responsáveis pelos campos, ingênuo ou pérfido, observou na época: `As pessoas próximas da vítima sempre foram informadas, mas não existe nenhum caso em que se lamentaram ou fizeram perguntas sobre as causas da morte", como se fosse uma prova de que todos achavam justo o que havia acontecido. Na realidade, a repressão é tão brutal que ninguém se arrisca a se queixar, com medo de tornar-se a próxima vítima. "Telefonaram-me para dizer que meu irmão havia falecido. Não fui ousada o suficiente para perguntar de quê. Para não ter de ocupar o seu lugar." Os lamentos eram orais, nunca escritos, lembra-se um magistrado. Trinta anos depois, os antigos prisioneiros sempre hesitam em falar do assunto. "Tenho filhos... Pergunte a outra pessoa."

A população das redondezas não simpatiza muito com os internos. Em primeiro lugar, é muito mais cômodo acreditar ingenuamente nos rótulos que lhes impingem as autoridades: assim, não terá nada que se censurar por não haver reagido à injustiça. Além do mais, é mais prudente não meter o 64 Tzvetan Todorov

nariz onde não se é chamado: se nos mantivermos longe dos pestilentos, arriscamo-nos menos a ser contaminados. Por que não aproveitar essa mão-de-obra gratuita, perguntam-se os responsáveis locais, já que se trata de reincidentes incorrigíveis? Um camponês, cuja casa ficava ao lado do campo, diz hoje: "Não vi, não ouvi, não posso dizer nada." É assim e será assim amanhã se a situação se repetir.

Essa intimidação do resto da população faz parte, claro, de um projeto de conjunto. Os campos são mantidos secretos e ninguém, afora os indivíduos diretamente envolvidos, sabe exatamente o que acontece ali; ao mesmo tempo, o rumor dos campos deve

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se espalhar e devemos tremer à simples menção de seus nomes, caso contrário não cumprirão sua função. Veríamos lá, em seu papel, não mais um instrumento, mas uma imagem concentrada do país inteiro: a idéia dos campos representa para o país o que o golpe de cassetete na testa representa para os prisioneiros, uma lembrança do principio do terror. Assim como ninguém pode fugir dos campos, o país inteiro está cercado de arame farpado. Tiro à queima-roupa em quem tentar passar por ele.

A propaganda comunista posterior à queda do Muro tentou às vezes apresentar as coisas de forma diferente e atrair a atenção para o fato de que tal campo havia sido fechado pela direção do Partido logo após uma investigação que ele havia promovido; esta seria a prova de que os campos eram uma perversão de sua política e não sua peça quintessencial. Observando-o mais de perto, percebe-se que tais supressões dos campos não foram nunca completas: fecha-se um aqui, abremse dois ali, libertam-se os prisioneiros em maio para voltarem a ser detidos em setembro (na Bulgária os campos ainda existiam nos anos oitenta, apesar das declarações contrárias; trancavam-se ali os membros da minoria turca). Em seguida, descobre-se que a supressão não implica um desmentido de grande importância: já que os crimes foram perpetrados nos

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campos, nenhum processo judiciário se dá e os antigos responsáveis, em vez de serem punidos, são promovidos e condecorados. Enfim - e isso é o mais importante -, medidas repressivas mais leves mas do mesmo tipo são praticadas contra o conjunto da população ao longo de toda a ditadura comunista.

Em particular, as inúmeras suspensões de privilégios e diminuições de direitos surpreendem cada pessoa suspeita: a impossibilidade de morar aqui, de trabalhar ali, de tratar-se em tal local, de estudar tal disciplina, de freqüentar tais pessoas. Assim como todas as outras formas de intimidação: ataques físicos por "traficantes" misteriosos, controle da correspondência, escutas telefônicas, insinuações, perseguições. E ainda a deportação, a intimação à residência em um canto longínquo do país. Trata-se ainda de medidas puramente administrativas, que atingem os inimigos potenciais (mais ou menos perigosos) e às vezes seus familiares. De um dia para o outro, encontram-se sem trabalho nem moradia, proibidos de passar temporadas em sua cidade, obrigados a se instalar em um vilarejo distante, onde poderão apenas trabalhar na terra e tremer sob as ordens de um pequeno chefe local, tendo de comparecer cotidianamente ao posto de polícia local para assinar sua presença.

Um campo de concentração das dimensões do país inteiro não pode praticar constantemente um regime severo; mas pode fazê-lo de forma que a população jamais esqueça que ele assim o é e que no interior existem alguns menores, dos quais se corre o risco de jamais voltar. Passaram-se anos, desde minha chegada à França, até que eu parasse de baixar a voz e olhar para trás toda vez que começava a falar da política na Bulgária: a lição fora aprendida.

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3 O fim do comunismo

A sociedade totalitária forma um conjunto coerente e, como foi comprovado, viável. Sua eficácia é incontestável: os seres humanos recuam diante do terror e curvam-se às pressões; em um país como a Bulgária, a repressão inicial fora de tal brutalidade que ali não houve, durante trinta anos, nenhuma "dissidência". Tal sociedade possui também, como já vimos, seduções mais secretas. No entanto, foram suficientes poucos anos, 1989-1991, para que os regimes comunistas desaparecessem do mapa da Europa. Como o milagre se produziu? Quais eram as falhas ocultas desta sociedade -- já que foi por razões internas que o império ruiu e não sob os golpes dos países exteriores ao campo comunista? (Estes golpes, raros, não a preocuparam muito, ainda que a ameaça de uma "guerra nas estrelas" tenha tido certo efeito.) O desmoronamento final revela que havia rachaduras no edifício, mas qual era exatamente sua natureza?

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Razões do desmoronamento

O regime totalitário é marcado por tensões de certa forma estruturais. já vimos o papel ambíguo que nele representa a ideologia, ao mesmo tempo indispensável e supérflua. Para ser eficaz, o terror deve ser absoluto, e apenas a ideologia lhe fornece a legitimização necessária. Quando o cinismo substitui a fé, é preciso ao menos manter as aparências da fé: tentamos então nos agarrar ao ritual. Contudo, a ideologia transformada em simples formalidade, puro cerimonial em que ninguém acredita - é ameaçada pela usura; dessa forma, ela não cumpre mais o seu papel, o terror relaxa e a dissidência instala-se. Contradição semelhante se dá no papel reservado ao desejo de poder. Esse desejo é ao mesmo tempo cultivado e banido, reina em domínio incontestável, e no entanto é preciso estar pronto para renunciar a ele a qualquer momento, ainda que estejamos no topo do poder. Descobre-se neste momento que é finalmente mais rentável jogar o jogo da legalidade, que implica uma renúncia parcial às ambições mas garante a tranqüilidade e dá a certeza de não se perder as vantagens adquiridas.

Podemos constatar também, de modo muito geral, que, se o totalitarismo está hoje morto na Europa, não é porque ele não fosse "bom" (uma sociedade injusta pode durar indefinidamente), mas porque não era "verdadeiro"; ou mais exatamente porque repousava em hipóteses envolvendo o homem e a sociedade que se revelaram falsas.

A hipótese na qual a estupidez apareceu mais rápido aos olhos de todos diz respeito à economia. Uma economia inteiramente centrada e planificada está condenada ao

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fracasso. Isso, porque os regimes comunistas se viam periodicamente pressionados a adotar políticas do estilo da NEP, que negam seus próprios princípios; eram obrigados, periodicamente, a reprimir o desejo de enriquecimento induzido por tais políticas,

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para impedir a aquisição de qualquer autonomia por parte dos agentes econômicos. Por esse ângulo, o nazismo, que teve a prudência de não se enredar num programa econômico ditado pela ideologia, mostrou-se nitidamente mais eficaz que o comunismo. O "comunismo de mercado" chinês poderá se manter por muito mais tempo que seu primo soviético.

As hipóteses de caráter antropológico ou psicológico, ainda que menos evidentes, provavelmente representaram papel ainda mais importante. Sem dúvida não é verdadeiro que os seres humanos aspiram "naturalmente" à liberdade; já vimos em que sentido podemos até sustentar a tese inversa. Ao contrário, é certo que os habitantes da Europa do século XX (diferentemente das sociedades tradicionais) aspiram ao exercício da autonomia, desejam se imaginar como sujeitos de suas ações e por esta razão a submissão exigida pelo Estado totalitário não poderia satisfazê-los por muito tempo. Podemos obrigar as plantas a crescer horizontalmente, observou Rousseau; a partir do momento em que cessamos de pressioná-las, elas se erguem e partem novamente em direção ao alto. Um indivíduo pode estar aterrorizado em relação à vida e jamais querer levantar a cabeça novamente, mas todo o trabalho de "educação" deverá recomeçar com seu filho ou mesmo seu vizinho.

Dá no mesmo mostrar-se um psicólogo medíocre e contentar-se com a vulgata hobbesiana e nietzscheana, segundo a qual a sociedade é "naturalmente" lugar de guerra de todos contra todos, onde cada um procura apenas ampliar seu poder em detrimento de todos os outros. Isso vem sustentar uma visão hiperindividualista do homem, na qual os "outros" são apenas obstáculos por eliminar ou rivais por subjugar, e o indivíduo é suficiente por si mesmo. Tal prazer solitário é uma ilusão; necessitamos dos outros para receber de seu olhar a própria confirmação de nossa existência e o reconhecimento de nosso valor. Em conseqüência, é preciso respeitar os

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outros, e o terror não é aqui de nenhuma ajuda. Queremos ser estimados e respeitados pelos desconhecidos, amados e queridos pelos próximos; não é suficiente para isso dispor de grande força.

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Também errônea se revelou a hipótese, que encontramos em Helvétius ou em Nietzsche, segundo a qual a moral é inteiramente "artificial", simples submissão às convenções da sociedade ou aparência enganadora na qual se disfarçam nossa avidez e nossa ambição. Não, o sentimento de justo e injusto nascido sem pressão no espírito de cada um pode estar adormecido durante anos, mas muito pouca coisa é suficiente para despertá-lo. Desta forma, já se explicou no passado o caráter "imperfeito", incompleto, do totalitarismo: em todo escalão do poder era possível (ainda que raro) encontrar um indivíduo honesto, com reações surpreendentes. A partir do momento em que os contatos com o estrangeiro se multiplicaram, isso permitiu o surgimento de dissidentes, esses opositores morais que contavam com sua notoriedade no Oeste para sobreviver no Leste.

O poder comunista não ruiu simplesmente porque os sujeitos submissos mas indispensáveis à sua sobrevivência deixaram de sustentá-lo: na maioria de nós o desejo de liberdade é menos forte do que o medo da morte. Em teoria, os milhões de submissos são mais fortes que o tirano solitário; na prática, os indivíduos encontram-se confrontados, um a um, com os aparelhos massacrantes da polícia, do exército, do Partido. O fim do regime foi decidido lá fora: na evolução natural dos espíritos. A distância crescente entre a realidade vivida e suas representações oficiais terminou por provocar uma mutação entre os opositores, nas massas e até na nomenklatura. O regime havia previsto tudo menos isso: que um dia seu chefe supremo desse mais ouvido à imposição política ditada por sua consciência do que à de seu interesse e que se recusasse a atirar contra os revoltosos. Foi

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nesse dia que o sino fúnebre do regime definitivamente soou e seu coveiro, talvez involuntário, se chamou Mikhaïl Gorbatchov.

O fato de o desmoronamento do totalitarismo comunista explicar-se por uma espécie de vitória da verdade sobre o erro poderia dar-nos algumas razões para não nos desesperarmos. Não que possamos nos declarar otimistas: esse regime manteve-se bem durante várias gerações, mas cada um de nós só tem uma vida para viver. Simplesmente o pior não é inevitável nem irreparável; alguma coisa entre o próprio ser do homem e de suas sociedades o impede de se instalar para sempre na autodestruição.

Melancolia pós-totalitária

Os acontecimentos políticos que se desenvolveram durante o ano de 1989 nos países do Leste europeu, da Polônia à Bulgária, podem apenas encher de alegria todos os que consideravam importante o destino destes países e, lá fora, todos os que se sentiam tocados

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pelos combates pela justiça. Quarenta e cinco anos de opressão comunista acabavam de chegar ao fim, uma página sombria da história da humanidade havia sido virada. Mesmo que a situação não estivesse igualmente clara em todos os lugares, era certo que todos esses países seguiam na mesma direção e que esse movimento era preferível ao que o precedeu. A alegria deveria ser então ainda maior, já que a mudança havia chegado de surpresa: esperava-se por ela havia tanto tempo que não se acreditava mais; o totalitarismo comunista parecia ter atingido a perfeição em seu gênero, o que deveria assegurar-lhe sobrevivência eterna.

Estávamos todos nos regozijando com o momento (eu soube da queda de Jivkov no mesmo dia do acontecimento,

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em Nova York, através de um telefonema vindo de Toronto: um amigo que estava lá, Mitko, havia sido informado por seus parentes na Bulgária e, por sua vez, telefonou para todos os conhecidos suscetíveis de apreciar a novidade). No entanto, ao fim de algumas semanas, percebi que aos sentimentos de alegria se misturava certa melancolia - que não tinha nada a ver com nenhuma nostalgia do totalitarismo. Esta melancolia situava-se em outro plano, diferente do projetado pelos comentários políticos ou pelas análises econômicas: o plano das experiências dos indivíduos, de um processo psicológico ao mesmo tempo privado e comum.

Uma experiência que tomou formas diferentes de acordo com nossa origem - o Leste ou o Oeste. No que diz respeito ao último, ela dirigia-se essencialmente, como mostrou Pascal Bruckner no livro La Mélancolie démocratique, ao desaparecimento do inimigo. O totalitarismo era um contraste ideal para a democracia: seu desmoronamento criou um sentimento de vazio. Se passamos a vida combatendo uma doutrina ou mesmo simplesmente nos referindo a ela como uma evidência, seu desaparecimento nos deixa um pouco desorientados; o próprio ideal democrático perdeu muito de sua combatividade. O imigrante dos países do Leste vive a mesma coisa de forma um pouco diferente. Ainda que, de minha parte, eu oscile constantemente entre as duas atitudes, é a variante "oriental" da experiência que quero descrever aqui.

Devo dizer de início que, para aqueles cuja reação tento ressaltar, a depressão pós-totalitária não se origina de uma indignação diante do interesse pelos bens materiais manifestado depois da abertura das fronteiras. Alguns intelectuais e políticos alemães tiveram palavras duras para com seus cidadãos, que se atiraram, assim que tiveram oportunidade, para as lojas da Alemanha Ocidental. Segundo eles, as virtudes cívicas haviam sido reduzidas a um voto em

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favor da banana (Otto Schily), o soerguimento moral fora afogado no chocolate e a aspiração à liberdade transformara as massas, antes oprimidas mas dignas, em "uma horda furiosa avançando em fileiras cerradas na direção do comércio de bibelôs reluzentes" das lojas de departamentos a oeste (Stephen Heym). Não podem falar desta forma os que esqueceram ou nunca conheceram a humilhação pessoal que constitui a falta permanente dos bens de consumo mais elementares, as filas silenciosas e hostis, os vendedores que parecem furiosos de vê-lo entrarem suas lojas, a que consiste em ter de comprar sempre o que encontrar, não o que é necessário. A penúria sistemática dos bens materiais causa danos à dignidade moral do indivíduo. Atirando-se para as lojas, os habitantes do Leste não pensam tanto em encher a barriga; gozam de uma liberdade que o consumidor ocidental já não experimenta, por estar habituado a ela.

A melancolia a que me refiro tem raízes no exterior: não em um ódio diante das reações presentes, mas na dificuldade de absorver o passado recente e na inquietude que suscita o futuro próximo.

Vesko, um amigo búlgaro, me diz que se sente hoje como o personagem de uma novela de Maupassant, As jóias. Uma jovem mulher de origem modesta pede emprestado a uma conhecida rica um colar de diamantes para usá-lo no baile; por infelicidade, o colar é roubado. A mulher toma como questão de honra devolver a jóia: pede emprestada uma soma enorme e compra um colar idêntico. O resto da vida transtornou-se: ela passa os anos seguintes a reembolsar a dívida contraída. Anos mais tarde, quando sua vida já está em declínio, ela reencontra a antiga benfeitora e lhe relata fielmente o incidente. "Minha pobre amiga", exclama a outra, "os diamantes eram falsos, o colar não valia nada."

No dia seguinte ao desmoronamento do totalitarismo é preciso

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acertar as próprias contas com o passado. Enquanto se pensava ter pela frente uma força incontornável, os sofrimentos tinham sentido. A partir do dia em que, segundo uma análise mais trágica do que parecia, se declara que o comunismo é uma via tortuosa conduzindo do capitalismo ao capitalismo, os habitantes dos países ex-totalitários não vêem mais o sentido desta vida. Imaginemos um instante, para marcar o contraste, um conflito do tipo clássico. Os marrons invadem o país dos vermelhos e os subjugam e fazem sofrer; os vermelhos reúnem suas forças, retomam a luta e terminam por se libertar, aniquilando por sua vez os marrons. Os vencidos morrem, os vencedores triunfam: tudo é simples e claro. Mas nada de semelhante pode-se produzir com o desmoronamento do comunismo. Mais do que uma vitória, trata-se do reconhecimento de um erro - que durou o tempo de uma vida humana, erro do qual quase toda a população se tornou cúmplice. Ela lutou contra os moinhos de vento (ou, mais

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freqüentemente, sofreu por causa deles), pagou um falso colar. Os vencedores merecem, no entanto, mais comiseração do que felicitação.

Na desordem, tateamos à procura de uma solução. Como superar a culpabilidade difusa da qual todos se ressentem, sem cair em uma confusão maior ainda, a do exílio voluntário? Alguns - com freqüência os menos comprometidos dirigem a si mesmos críticas cruéis. Alguns outros - em geral os que têm a consciência particularmente pesada fustigam as fraquezas passadas dos concidadãos e gritam por vingança. Muitos outros decidem que vão esquecer tudo, mesmo que nunca tenham sabido de nada, para poder continuar a viver sem se torturarem inutilmente. Porque quem não tem nada para censurar-se, ainda que sejam algumas pequenas covardias, algumas aquiescências a mais, algumas indiferenças culpáveis?

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Gerir o passado

Há muitos anos já não vivo na Bulgária. Não sei como teria reagido nas mesmas circunstâncias e vou me abster de dar conselhos aos que deveriam colocá-los em prática em sua vida todos os dias. Posso apenas formular minha reação de observador concernente, de próximo distanciado.

Três planos de experiência coletiva merecem ser claramente distinguidos: o da consciência histórica, que representa um papel na vida pública; o da legalidade e da justiça; o da prova física que se impõe a cada um.

Comecemos pelo primeiro. Toda sociedade tem um dever com relação a seu passado: ela deve impedir que ele seja irremediavelmente apagado. Não que seja preciso subjugar o presente ao passado, nem que todas as lições do passado sejam igualmente recomendáveis. A memória coletiva prefere habitualmente guardar, no passado da comunidade, dois tipos de situações: aquelas em que fomos ou heróis vitoriosos ou vítimas inocentes. As duas permitem legitimar nossas reivindicações presentes. Mas tais situações, que podem ter realmente existido, contribuem para nos cegar com relação ao presente mais do que para nos deixar lúcidos. As páginas menos gloriosas de nosso passado seriam as mais instrutivas, se nós aceitássemos lê-las inteiramente. O passado é benéfico não quando alimenta o ressentimento ou o triunfalismo, mas quando seu gosto amargo nos leva a transformar-nos a nós mesmos. Um povo deve recuperar seu passado não para repeti-lo nem para legitimar suas reivindicações presentes - conduzindo assim ao ciclo interminável de vinganças e represálias; as guerras balcânicas são um bom exemplo dos desastres provocados por uma memória estritamente literal -, mas para encontrar ali uma lição para o futuro; para

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tentar meditar as injustiças do passado, reanimar o próprio ideal da justiça. Não há dúvida de que se deve começar por conhecer o passado.

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Elevaram-se vozes nos antigos países comunistas que, em nome da paz civil, pregam a recusa a se ocupar do passado. Os que ainda falam visam apenas a seu próprio interesse a curto prazo e procuram simplesmente apagar os traços daquilo que agora lhes parece criminoso. Fazendo isso, atormentam-se a si mesmos: qualificando os pesquisadores de "carniceiros" ou de "necrófilos", confirmam a presença de cadáveres. Perpetuam a política do secreto e, mais freqüentemente, do controle centralizado da informação, característica dos regimes totalitários (os métodos de ação da polícia política eram considerados "segredo de Estado").

A repressão é tão perigosa para o grupo quanto para o indivíduo, porque é repleta de explosões futuras. Se se deseja superar o passado, é preciso de início que sua história esteja estabelecida; nenhum entrave deve impedir a busca da verdade. A grande difusão da informação sempre foi a arma principal contra os campos de concentração e, portanto, contra o totalitarismo; ela deve servir para eliminar as seqüelas. É imperativo que os arquivos (do Estado, do Partido e da polícia) sejam salvos da destruição e que os historiadores, de correntes ideológicas diversas, tenham livre acesso a eles, a fim de reconstituírem a imagem do passado em toda a sua complexidade.

Não há regra senão a transparência absoluta. Se prevemos um efeito benéfico para a sociedade inteira, é preciso que os cidadãos comuns possam também desfrutá-lo; a Alemanha pós-comunista mostrou o caminho, garantindo a livre consulta aos arquivos durante determinado tempo. Falando mais claramente, corremos o risco de descobrir os delatores entre os que julgávamos ser amigos; mas a pior revelação vale mais do que a suspeita e a incerteza.

A segunda questão diz respeito à atitude legal que deve adotar o novo Estado com relação aos indivíduos mais marcados pela experiência no antigo regime, os que estiveram

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num extremo ou no outro, entre os "inimigos" ou na nomenklatura. O caso das vítimas é talvez o mais simples. Os que foram mortos - executados sumariamente, ou sob os golpes nos campos de concentração, ou em conseqüência dos maus-tratos - devem ser honrados, como são as vítimas de uma guerra. Os que fugiram para o estrangeiro devem ser lavados de toda a

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humilhação, com seus direitos restabelecidos. Todos os deportados dos campos deveriam receber indenização material pelo prejuízo que lhes foi causado.

Tais gestos não apagarão os sofrimentos passados, mas lhes darão ao menos um sentido e permitirão atenuar um pouco o sentimento de ter sido vítima de uma injustiça absurda. Como ajudar aquele intelectual tcheco que assinou a Lei dos Dissidentes em 1977 e, em conseqüência, trabalhou os doze anos seguintes no canteiro de obras como operário? Ele está "reabilitado" hoje em dia, mas está próximo da aposentadoria; as possibilidades perdidas jamais serão recuperadas. O que dizer do que passou quinze (ou trinta, ou quarenta e cinco) anos a se adaptar, sempre tentando preservar o máximo de si mesmo? Como medir o dano sofrido? Para que servirão todas as artimanhas acumuladas? No plano da história, esses pequenos dramas são sem importância; em uma vida individual, pesam muito: quinze anos é um período longo, muito longo.

O destino dos carrascos levanta problemas mais difíceis, como mostrou a experiência de desnazificação. A primeira dificuldade provém da onipresença do crime. Como desnazif car um país onde todo o mundo, ou quase, concordou com o nazismo? Onde encontrar juízes, engenheiros, administradores, professores que não tenham participado, pouco ou muito, do antigo poder? A diferença no caso comunista vem da ausência dos aliados vitoriosos, o que implica que cada país deve acertar suas contas sozinho. A princípio, é preciso distinguir claramente entre a responsabilidade moral, que diz

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respeito à consciência coletiva ou individual, e a culpabilidade legal, que é relevante apenas aos tribunais. Distinção, é preciso admitir, mais fácil de expressar que de fazer.

Os testemunhos de diversos responsáveis pelo sistema dos campos de concentração na Bulgária ilustram essa dificuldade de forma quase caricatural. Ninguém se sente culpado: o trapo-atirador, porque tinha o sentimento de estar sendo privado de sua própria vontade, de ser um puro instrumento nas mãos dos superiores; os responsáveis pelo campo, porque aplicavam escrupulosamente o regulamento e as diretrizes; o vice-ministro do interior, chefe direto do conjunto dos campos, e o próprio ministro, porque obedeciam às instruções do Bureau Político e do Conselho de Ministros, ou às do chefe supremo, Jivkov. Conhecemos bem as explicações deste último: ele jamais desejou tais excessos, tais perversões, tais deformações da justiça comunista, que, no contexto histórico da época (luta de classes exacerbada, ameaças externas), parecia perfeitamente apropriada. Não apenas ele e seus colaboradores próximos jamais mataram ninguém; também ignoravam que os deportados haviam sido entregues a sádicos sanguinários, os únicos culpados destes excessos.

A responsabilidade sobe de grau em grau, como uma bomba que passamos adiante com medo de que vá explodir em nossas mãos; enquanto isso, aquele que está no alto da escada a lança à pessoa de baixo e o jogo recomeça. O culpado não sou eu, é o vizinho.

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O sistema de defesa não deve nada ao acaso; ele é o reflexo fiel da própria estrutura do que podemos chamar de crime totalitário. Diferente do que se produz no crime ordinário, seu agente jamais age sozinho. Mandantes e executores estão claramente separados; desse modo, os primeiros mantêm as mãos limpas e os outros, a consciência tranqüila. Quer dizer, cada uma de suas instâncias se subdivide em vários compartimentos, repartindo as parcelas de responsabilidade

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entre os agentes, extremamente numerosos. No alto: o ministro do Interior faz uma proposta de criar novos campos porque acredita que o primeiro-secretário estava esperando por isso; este, por sua vez, afirma o contrário - que se encontrou pressionado por esta proposta, ainda que tenha gostado dela. Embaixo: aquele que, de manhã, dá o primeiro golpe na cabeça do detento, não mata, contenta-se em surrar um pouco, já que é seu trabalho e seu dever; o outro, que à noite liquida o mesmo detento, age, ao que parece, por espirito de comiseração, livrando um moribundo de seus sofrimentos. Entre os dois: uma burocracia pletórica empenha-se em transformar os horrores concretos em dados estatísticos insípidos e em traduzir em termos de regime rotineiro as palavras de ordem abstratas provenientes do topo do poder.

A responsabilidade é repartida entre os numerosos agentes de cada ação, de forma que ninguém venha a pensá-la em conjunto, desde seu principio até suas conseqüências materiais; assim, ninguém se faz perguntas incômodas. O que ontem assegurava a eficácia do mecanismo garante hoje o sentimento de impunidade de seus agentes.

Ao lado desta fragmentação e diluição da responsabilidade ao longo de uma corrente de executores, outro obstáculo de porte torna difícil a perseguição legal aos antigos carrascos: o fato de que eles agiam dentro da lei. Postas à parte algumas ultrapassagens de competência, eles obedeciam não apenas a seus superiores mas também à mais estrita legalidade. Quanto aos excessos sádicos, são geralmente acobertados pela prescrição: as brutalidades tornaram-se mais raras com o passar dos anos.

É para contornar esta dupla dificuldade legal que se propôs instituir, nos antigos países comunistas, tribunais como o de Nuremberg (ou análogos ao que julgou Barbie e Touvier na França), que perseguiam os acusados por crimes contra a humanidade; nesses tribunais nem a submissão a uma lei

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em vigor nem a antiguidade dos fatos justificariam a suspensão do processo. Sem entrar aqui a fundo no debate sobre os crimes contra a humanidade, acredito que tal solução é, no caso,

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pouco desejável. Os campos de concentração e as formas de violência que eles autorizam, ou cultivam, não são uma perversão do sistema totalitário, são uma peça essencial dele, uma conseqüência lógica, uma expressão condensada. Os que dirigiram os campos de concentração não foram menos lógicos nem mais excessivos do que os que geraram a indústria ou as menores cooperativas do país. O acaso desejou que o Estado totalitário encarregasse alguns de seus agentes da repressão, outros da política de "quadros". Os primeiros não foram menos ignóbeis nem menos hostis do que os outros. Não se pode condenar uma peça do Estado totalitário e deixar em paz as outras, porque todas se sustentam. Por um lado, não podemos condenar todos os agentes de um Estado que se perpetuou durante quarenta e cinco anos. Multiplicando-se a este ponto, o crime escapa à punição.

O que fazer? Será preciso apressar-se a declarar uma anistia geral e conduzir-se como se durante a noite totalitária todos os comportamentos fossem válidos? Seria mentir e cometer uma injustiça gritante, não apenas com relação às vítimas sobreviventes mas ao próprio ideal de justiça, renunciar a julgar quando os atos foram de tamanha gravidade.

Para situação nova, remédios inéditos. Postos à parte alguns casos relativamente simples (crimes sádicos ou outros, não cobertos pela prescrição, podem ser julgados por leis sempre em vigor), os crimes totalitários nos países comunistas parecem-me pôr em questão não a justiça mas a consciência coletiva do país. Eu imaginaria de bom grado a constituição de um júri de honra, composto de personalidades respeitadas, conhecidas por sua conduta digna sob o regime comunista. Seus julgamentos atrairiam grande publicidade e eles teriam por competência estabelecer as responsabilidades políticas

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e pronunciar as sanções que tocam não à liberdade dos indivíduos (que são, de qualquer modo, na maioria idosos, e logo seria preciso libertá-los), mas à sua honra.

É inadmissível que os responsáveis pelos campos de concentração, essa chaga da humanidade, possam continuar a desfrutar em casa de suas condecorações, de seus privilégios simbólicos e materiais, talvez da totalidade de seus direitos cívicos. Os responsáveis: isso quer dizer, com certeza, não os atiradores e os carrascos, nem mesmo os oficiais da Segurança do Estado que serviram nos campos e jamais deixarão a memória de suas vítimas, mas os chefes políticos, dos quais se ignora o rosto e com freqüência até o nome: os membros do Bureau Político, os ministros do Interior, a direção central dos campos. O essencial não é punir este ou aquele, mas restabelecer o ideal de verdade e de justiça em um país onde foram ridicularizados durante quase meio século.

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Acredito, no entanto, que esta proposta, por mais modesta que seja, jamais será adotada: no momento em que escrevo, são os (ex-) comunistas que se encontram no poder na Bulgária e nos outros países do Leste europeu, e eles não têm nenhuma intenção de deixar maltratar seus pais, sogros ou tios.

Seqüelas do traumatismo

Coloquei-me até aqui no plano da legalidade e das medidas práticas por tomar para que se possa conviver hoje com o passado. No entanto, uma vez tomadas estas medidas, o problema continua de pé. A história de um povo substitui apenas brevemente a lei e continua a assombrar a consciência dos indivíduos que a compõem muito tempo depois de os julgamentos terminarem. A experiência totalitária - com seu

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paroxismo, os campos - é um traumatismo coletivo que não se cura da noite para o dia. David Rousset o disse bem diante do tribunal de Paris, em janeiro de 1951: "O mundo dos campos não é grave porque sofremos nele e porque nele morremos; o mundo dos campos é grave porque nele vivemos. Porque o homem se tornou a partir dele uma decadência completa a seus próprios olhos; mas também porque os guardas deste homem se tornaram uma decadência completa a seus próprios olhos; isso, porque um país onde existem campos de concentração é deteriorado até a medula. O mundo dos campos de concentração é um contágio inevitável, e é neste fato que reside o mal maior que se pode conhecer." O tumor hoje está extirpado, mas o corpo ainda carrega os estigmas de sua presença.

Não devemos lamentar mais os antigos carrascos do que as antigas vítimas; portanto, todos devem ser lamentados. Os participantes ativos do sistema de repressão têm a alma deformada para sempre: eles persistem em ser quase insensíveis a tudo o que possa perturbar sua tranqüilidade; hoje têm de se convencer, por si mesmos e por seus parentes, de que não houve nenhum mal no passado e eles não são culpados de nada. Os inúmeros delatores e bajuladores estão com freqüência presos entre a bigorna e o martelo: não pertenciam por nascença à casta dos privilegiados; pior, com freqüência possuíam algum vício secreto (mas bem conhecido dos serviços secretos) por perdoar.

As antigas vítimas também carregam as marcas de sua condição anterior, mesmo depois de terem reencontrado a integridade física. Às vezes experimentam a tentação de instalar-se eternamente no papel de vítimas. No tempo em que eram perseguidos, os antigos detentos eram considerados não como vítimas, mas como inimigos. Uma vez restaurada a justiça, o inimigo de antes torna-se "vítima". E a condição de vítima o leva a procurar tirar vantagem: algumas compensações

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materiais talvez, mas sobretudo um status simbólico invejável. Esta posição, no entanto, corrompe o interior dos que a assumem. O reinado da justiça é preferível ao da injustiça, mas nenhum reinado produz por si mesmo a virtude moral. Acontece que essa virtude não acompanha um ato se é seu sujeito quem se beneficia.

Alguns detentos dos campos tiveram a coragem e a sabedoria de não dividir com os filhos a totalidade de sua experiência. De outro modo, filhos teriam vivido não suas próprias vidas, mas a dos pais; estes julgaram preferível certa ignorância. No entanto, eles não esqueceram e, no momento correto, souberam falar; simplesmente não deixaram o passado confundir-se com o presente e determiná-lo. É assim que opera igualmente o luto na vida de uma pessoa: não nos esquecemos do morto, mas pouco a pouco o fazemos ascender a uma condição diferente e o amamos sem lamentar a todo instante a sua ausência.

Saberemos nos entregar a este trabalho de luto e de reinterpretação do passado? Os traumatismos são às vezes indeléveis, insuperáveis. Em um documento búlgaro consagrado aos campos, uma mulher conta:

"Depois da primeira prisão de meu pai, no dia seguinte, por volta do meio-dia, um policial chegou a nossa casa e entregou à minha mãe uma convocação intimando-a a apresentar-se às cinco horas da tarde no posto policial n° 10. Depois de vestir-se, - era uma mulher bonita, uma pessoa muito gentil -, ela levantou-se e partiu. Nós a esperamos, os três filhos, e esperamos. Ela voltou à uma e meia da manhã, branca como cera, machucada, esfarrapada. Assim que entrou, aproximou-se do fogareiro, retirou as tampas, começou a despir-se e queimou tudo. Em seguida tomou um banho, e só depois nos apertou em seus braços. Fomos dormir. No dia seguinte, deu-se sua primeira tentativa de suicídio; haveria outras três, e depois ela se envenenaria duas vezes. Ela vive

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ainda, eu cuido dela... é uma doente mental. O que fizeram com ela jamais pudemos descobrir."

Pouco importa quais foram as exatas agressões sofridas por esta mulher. Isto se passou no outono de 1944; ela ainda vive, mas para ela já não existe reparação possível. Como esta mãe alucinada, a população de metade de um continente sofre de perturbações físicas e mentais, que não se sabe se podem ser curadas; quem cuidará dela? A humanidade se recuperará deste desastre como se recuperou dos anteriores, esperando os do futuro. Os indivíduos levarão suas feridas para o túmulo.

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Apreensões quanto ao futuro

No dia seguinte ao fim da Segunda Guerra Mundial, os portões dos campos de concentração foram abertos para deixar sair uma pequena porcentagem dos que haviam sobrevivido a eles. De volta a casa, os sobreviventes poderiam abster-se de procurar uma espécie de compensação para seus sofrimentos desumanos. Para que esta experiência de dor não fosse completamente vã, esperavam, com freqüência sem saber, tornar-se objeto de amor e de admiração; esperavam encontrar um mundo mais justo e mais amável. Mas não havia nada. Suas próprias famílias haviam sido dispersadas ou aniquiladas ou haviam procurado esquecê-los; ninguém queria demorar-se junto a essas sinistras testemunhas da decadência humana. Quanto às paixões políticas, aos combates sociais, não atingiram na verdade o paroxismo fascista, mas já não eram regidos pelo amor e pela justiça; a guerra e a violência não haviam desaparecido da face da terra em recompensa ao sofrimento dos sobreviventes.

No dia seguinte ao desmoronamento do totalitarismo comunista, assim que se abriram as portas destas sociedades,

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campos de condições evidentemente mais suaves, mas de dimensões infinitamente superiores, os sobreviventes puderam constatar logo de início que se alegravam com sua libertação, seu mérito era reconhecido, se não por sua coragem, ao menos por seu sofrimento. Mas essa espera só poderia ser frustrada. Dentro de seu próprio país, todos estão mais ou menos habitando o mesmo pavilhão: colocados à parte os aproveitadores mais cínicos, que se tornaram miraculosamente, de um dia para o outro, invisíveis, todos têm motivo para se lamentar do passado e ninguém está lá para ouvir os lamentos. Fora do país, no "mundo livre" da Europa Ocidental, estão longe de ser recebidos de braços abertos; os europeus do Ocidente queriam fazer o elogio dos dissidentes ou exilados, cujo combate os confirmava dentro da correção de seu próprio caminho; mas a estes só restou fazer filas de pedido de emprego, indivíduos devedores prontos para vender tudo a qualquer preço. Seus irmãos e irmãs de Estado, que eram louváveis na escravidão, tornaram-se indesejáveis na liberdade. Em uma palavra, uma vez caído o Muro, ninguém estava lá para se regozijar e gratificar as antigas vítimas.

Após o desaparecimento do regime odioso, cada um teria desejado encontrar em volta de si um mundo justo e harmonioso: esperança insensata que ele, no entanto, não pode abster-se de nutrir. Mas o que descobre? A ideologia comunista tornara inconfessáveis todas as outras ideologias; seu afastamento deixou-as ressurgir, aureoladas de sua oposição ao comunismo. Assim o nacionalismo (que é suscetível de nutrir os conflitos nesta região do mundo durante os próximos dois mil anos, já que as populações são diversas e vivem umas no

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meio das outras) e sua conseqüência inevitável, a xenofobia; o racismo (massivamente presente junto aos trabalhadores imigrantes vietnamitas, assim como aos estudantes africanos): o fanatismo religioso (o papa não é um bom símbolo para a democracia).

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Um dos aspectos mais perversos do comunismo é a erosão que ele faz ocorrer até mesmo na categoria do social. A ideologia comunista valoriza o "nós" em relação ao "eu" e opera esta preferência enquadrando o indivíduo através de numerosas instituições e organizações. Como estas instâncias servem na realidade à vigilância e ao controle, elas rápido se tornam detestáveis; do golpe à queda do comunismo, todo o social, toda associação, toda coletividade aparecem como suspeitos. O resultado é dramático: é a selva, onde reina a lei domais forte, onde nada protege os direitos do indivíduo. A polícia era corrupta, parcial, odiosa; a ausência de qualquer polícia não tem, no entanto, nada de tranqüilizador. Como encontrar confiança nas instâncias sociais e legais, se durante quarenta e cinco anos aprendemos a desconfiar delas?

A atitude mais difundida, há que espantar-se, é a pressa em adaptar-se às novas condições. Em visita a Praga, foi em vão que esperei ver alguém sustentar o antigo sistema; ali encontram-se apenas ex-opositores (a Carta 77, movimento de dissidência, nunca ultrapassou as duas mil assinaturas; é verdade que um apelo à liberdade das práticas religiosas havia recolhido setecentas mil). Na Bulgária a mesma coisa já havia acontecido, em 1944, depois da queda do regime fascista: de um dia para o outro, encontravam-se só antifascistas. Quando pomos de lado os antigos dirigentes impostos pelo Partido e corrompidos, quem ocupa seus lugares? Os que são os mais ávidos de poder. Em contrapartida, os que antes eram mantidos à parte por força da repressão, ainda hoje permanecem - porque se recusam a lançar-se em uma competição duvidosa. É claro, as exceções existem; entretanto, em regra geral, os novos atores da cena política não suscitam uma admiração sem reservas.

A nova sociedade parecerá forte com relação à antiga, com uma simples inversão de signos? Ninguém ainda propôs a reabertura dos campos, destinados desta vez aos antigos

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guardiões e a seus senhores; mas liem um jornal búlgaro de linha anticomunista esta apreciação dos antigos responsáveis pelos campos: "Os princípios humanitários não foram

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feitos para pessoas que perderam a dignidade humana e contaminam nossa terra." Esta frase é puro produto do pensamento totalitário; por nosso lado, no entanto, não critiquemos tão rápido seu autor: onde e quando teria ele podido aprender a pensar de outro modo?

Os campos eram uma miniatura exacerbada da sociedade; não nos espantaremos se as mesmas dificuldades se encontrarem entre os milhares que permaneceram estranhos a eles. Na gestão da ciência, substituíamos os critérios científicos pela ideologia, a fidelidade ao Partido valia mais do que os resultados obtidos. A linha de menor resistência consiste de agora em diante em inverter o único conteúdo da ideologia, mantendo intacta a estrutura na qual ela opera: durante os anos em que os anticomunistas estavam no poder, ser comunista, ou ter sido, tornou-se desvantagem, e nos postos de comando se encontravam os mais violentos anticomunistas, que não eram necessariamente grandes sábios (como os antigos filhos dos proletários, eles possuíam uma desculpa: "O regime impede-me de fazer minhas provas!"). Uma vez mais, não saberemos nos indignar: em que escola terão eles aprendido maior virtude moral? Reconheçamos, porém, que ali estão as seqüelas da doença e não o sinal de uma saúde recuperada.

As inquietudes que emergiram também dizem respeito ao futuro lugar da moral. Compreendemos. É verdade, de início, que os regimes totalitários não são muito favoráveis a um florescimento geral das virtudes morais; é até mesmo um dos estragos mais graves de que podemos acusá-los, o que causaram à consciência individual. Todos tornaram-se hipócritas e cínicos, egoístas e materialistas: adaptar-se, tirar o corpo fora parece ser o único caminho deixado ao indivíduo.

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No entanto, em meio a esse deserto moral, um milagre produziu-se. Um, depois dois, a seguir cem indivíduos decidiram resistir; conscientes de que toda resistência política ou moral seria imediatamente esmagada, optaram pela resistência moral: estes são os dissidentes. Estão limitados a atos morais extremamente simples: ajudar os perseguidos. Dizer a verdade (a verdade por si mesma não é um valor moral, mas estar pronto para dizê-la em público, aconteça o que acontecer, o é, e dos mais altos). Mas "simples" não quer dizer "fácil": estes atos morais exigem grande força de vontade, porque devemos de início transformar em escolha o que parece perfeitamente natural; em seguida, enfrentar não apenas um adversário ideológico que aceita combater no mesmo terreno, mas burocratas indiferentes e policiais obtusos. Esses simples atos demonstram uma força insuspeita: o totalitarismo não capturara seus agentes, diferentemente dos velhos bolcheviques, vítimas dos processos em Moscou. Ninguém merece maior admiração, no interior do país, do que estes indivíduos: Soljenitsyn e Sakharov, Kuron e Michnik, Patocka e Havel. Indivíduos muito pouco numerosos, mas cujo exemplo foi decisivo, já que oferecem a cada um um ponto de referência, permitindo reconhecer o bem e o mal.

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Em uma situação totalitária, a atitude moral é a melhor ação política que existe. Ela vale ainda para a situação presente, pós-totalitária. Outros caminhos estão abertos à política atualmente: para apoderar-se do poder, é preciso ganhar as eleições, seduzir os eleitores e organizar-se em partido. A República Tcheca oferece aqui ainda um exemplo vivo: até a revolução de novembro de 1989, Havel recusava qualquer aspiração ao poder e queria manter-se no papel de intelectual crítico. Em seguida, a Carta 77 transformou-se em Fórum Cívico, e o fórum tornou-se um partido, que apresenta candidatos às eleições. Mas, para ganhar votos nas eleições, a retidão moral não é uma qualidade indispensável: a população

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anseia mais pela competência e eficácia, quer ser seduzida e tranqüilizada (o Fórum perdeu as eleições). No regime democrático, a moral não pode substituir a política; na melhor das hipóteses, ajuda a orientá-la ou a contê-la. O totalitarismo destrói diretamente as virtudes morais, mas a um tempo as faz reagir. A democracia não impede ninguém de tornar-se um ser moral, mas não obriga muito a isso. Resultado: a referência à moral desapareceu das sociedades pós-totalitárias. Eis algo inesperado: pensamos que, no totalitarismo, a vida moral teria atingido uma espécie de fundo, no entanto ela conseguiu descer ainda mais depois.

Como terminará este episódio da história? No caso do comunismo, parece-me que seria suficiente a queda deste regime policial, o fim da hipocrisia institucional, para tudo melhorar e a sociedade trilhar o caminho de uma maior prosperidade, ao mesmo tempo material e moral. Dou-me conta atualmente de que eu ainda era muito ingênuo e os malefícios do sistema comunista eram mais graves do que eu imaginava. Assim como com a natureza ao redor, à qual não prestávamos atenção particular, se revelou poluída e profundamente degradada, os desastres sofridos na vida social e psíquica de cada um não podem ser curados pelo simples desaparecimento do regime político ou de alguns indivíduos. Uma prova entre outras desta difícil cura é a rapidez com que os antigos comunistas, mal disfarçados, retomaram o poder - desta vez através de eleições realmente livres. Não é apenas a geração de meus pais e a minha que carregam os estigmas do passado; também os tem a que nasce hoje. Uma vida decente no seio de uma democracia eficaz ainda não está no horizonte da população desta parte do mundo.

Eu escapei deste destino quase por acaso, porque meus pais desejaram e puderam mandar-me, quando tinha vinte e quatro anos, para Paris. Se houvesse permanecido na Bulgária, teria sofrido as mesmas frustrações e as mesmas deformações

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que meus amigos de então. Não teria me tornado herói nem puro canalha; teria passado a vida a equilibrar-me entre estes dois pólos extremos. A Bulgária real afasta-se de mim cada vez mais - já não a conheço e não desejo verdadeiramente conhecê-la -, mas a Bulgária que desvia meu olhar permanece em mim e não me abandonará mais. Eu não posso, não quero hoje em dia esquecer este passado nem o que ele me ensinou. zzz SEGUNDA PARTE

Cidadão na França 4 Os processos Kravtchenko e Rousset

No tempo em que eu vivia na Bulgária, uma das perguntas que meus amigos e eu nos fazíamos com a maior insistência era: por que os grandes artistas e escritores do Ocidente não nos ajudam? Como era possível que tantos entre eles - os Sartres e os Montands, que não podíamos nos deixar de admirar por suas obras e seu charme - não exprimissem nenhuma compaixão por nossa lamentável condição ou, pior, apoiassem abertamente nossos detestáveis dirigentes, se nem ao menos eram membros do Partido? Não havia ninguém lá fora, em Paris, Londres ou Roma, para dizer o contrário? Quando cheguei à França, comecei a descobrir a resposta a estas perguntas. No entanto, foi só no momento do desmoronamento dos regimes totalitários que me interessei mais de perto por um episódio da história da França, o dos processos de 1949-1951, no curso dos quais alguns indivíduos tentaram denunciar esses regimes e sua instituição emblemática: os campos.

Recordarei os acontecimentos em linhas gerais. Um refugiado

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político soviético, Viktor Kravtchenko, publicou em 1946 Eu escolhi a liberdade, um relato de sua vida e um quadro geral da sociedade soviética; o livro fez muito sucesso e foi traduzido na França, apesar de algumas pressões, em 1947. A imprensa comunista se lança contra ele; Kravtchenko processa por difamação o Lettres françaises, na pessoa de seu diretor Claude Morgan e do jornalista André Wurmser. O processo começou no início de 1949. Em novembro desse mesmo ano e em parte sob o efeito do "caso Kravtchenko", David Rousset, militante trotskista antes da guerra, deportado em seguida para Buchenwald e para Neuengamme, autor de duas obras de repercussão sobre o universo dos campos de concentração, lança um apelo aos antigos deportados dos campos nazistas para que pesquisem o sistema dos campos na URSS. Ele também será atacado pela imprensa comunista e abrirá um processo por difamação contra o Lettres françaises, representado pelo mesmo Morgan e por Pierre Daix, redator-chefe e autor do artigo difamatório; o processo será aberto no fim de 1950.

A conclusão destas peripécias judiciais é ambígua: Lettres françaises será condenado nas duas ocasiões, mas a penas irrisórias, muito inferiores às pedidas pelos queixosos. De qualquer forma, o principal destinatário destes processos é, mais do que a

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justiça, a opinião pública francesa e internacional; mas esta permaneceu dividida. Kravtchenko não adquiriu a condição de herói; ele iria suicidar-se vinte anos depois em um quarto de hotel, em Nova York. O prestígio da União Soviética e do comunismo saiu no mínimo arranhado.

Estratégias de desculpa

Hoje já não lemos o relatório deste processo como deveríamos fazê-lo há quarenta e cinco anos. Todo o mundo sabe atualmente que o que afirmam Kravtchenko, Rousset e as

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inúmeras testemunhas que eles chamaram a depor é inteiramente verdadeiro. A pergunta tornou-se maior: o que aconteceu para que os relatos transtornados dos antigos detentos do Gulag e a leitura dos documentos soviéticos relativos aos expurgos e aos campos não tenham impressionado muito os juizes e o público? Em que consiste o sistema de defesa, aparentemente eficaz, dos acusados comunistas e de seus defensores (notadamente M. Nordmann, presente nos dois processos)? Porque, o confronto dos relatórios permite estabelecer, é de um sistema que se trata, fundamentado em duas afirmações incompatíveis entre si, mas ambas visando a inocentar os acusados e, por outro lado, a União Soviética: o que dizem nossos acusadores é falso, porque nada disso se passou; o que dizem é verdadeiro, mas não há motivo para comover-se.

Para provar que os campos não existem, começamos por desacreditar as testemunhas em questão. "Trata-se de início de desqualificar a testemunha, em seguida de esvaziá-la e por fim de preparar o espetáculo para a imprensa", recorda-se Pierre Daix, vinte e cinco anos depois. Todas estas testemunhas já têm de início grande desvantagem: não são francesas! Não iremos realmente, nós, os bons franceses, ouvir lições de um estrangeiro como Kravtchenko, exclama Morgan. No transcurso do processo Rousset, ele provoca um incidente com Alexander Weissberg, que deve testemunhar em alemão: é repugnante, escreve ele, ver os alemães julgarem a heróica União Soviética. Weissberg relembra-lhe polidamente que, em princípio, é pouco conveniente ao internacionalismo comunista recusar uma pessoa porque não pertence a determinada nação ou a determinada raça; ademais, ele não é alemão, mas judeu austríaco, e toda a sua família foi assassinada pelos nazistas. Para os que não podemos associar à Alemanha (os comunistas não fazem nenhuma diferença entre alemães e nazistas), temos um recurso, um pouco

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menos comprometedor na América: eles haviam sido pagos pelos americanos, são os servos do imperialismo.

Enfim, todos os deportados do Gulag tornaram-se suspeitos pelo próprio fato de serem capazes de testemunharem Paris: eles haviam deixado a União Soviética, sua antiga pátria (de nascença ou de adoção), e com freqüência também o Partido Comunista; são, por conseqüência, traidores. Mas quanto vale a palavra de um traidor? A este preço, é claro, nenhum testemunho jamais será possível e apenas os mortos teriam o direito de falar dos assassinatos.

Quando não jogam com o espirito patriótico e xenófobo, os acusados servem-se de outro sofisma, cuja falha resolveram ignorar: pressupõem que coexistência significa identidade. Qualquer associação de uma testemunha e de suas palavras com um personagem comprometedor é capaz de tornar seu testemunho suspeito. Que havia campos na Rússia é falso, porque Hitler também o disse; que os russos tenham fuzilado os oficiais poloneses em Katyn é falso, já que Goebbels igualmente o afirmou. Tal livro foi publicado por uma editora que publicou igualmente Maurras; tal autor escreveu em um jornal onde também podemos ler um autor anti-soviético: isso torna um depoimento inaceitável! Margareth Buber-Neumann, corajosa em sua experiência nos campos soviéticos e nos campos nazistas, vem testemunhar nos dois processos. Seu ex-marido era um traidor, grita a Sra. Nordmann, um renegado, um trotskista, um espião alemão! (Heinz Neumann, ex-dirigente comunista, que escapou das balas fascistas na Alemanha, foi fuzilado sem julgamento nas prisões da NKVD.) Por que ela, então, foi trancafiada em Ravensbrück? Sem dúvida porque ela o pediu. Seu testemunho é, portanto, sem valor. Rousset afirma a mesma coisa que outro autor, que pode ser suspeito de simpatia com os antigos nazistas, observa Wurmser: então, Rousset, salvo dos campos, é na verdade um nazista.

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E foram estes testemunhos duvidosos, dos comunistas acusados em oposição aos outros, que eles próprios fizeram vir. Estes são franceses, o que significa desde já imensa vantagem. Conhecem os acusados: bons franceses para começar, bravos resistentes, não podem fazer mal nem mentir (o tribunal os acompanhará neste ponto em sua sentença). Lettres françaises: um bom jornal que combateu o fascismo; ele não saberá ser falso. Algumas das testemunhas ou dos acusados estiveram na União Soviética por uma semana ou duas. É verdade que não falam russo, mas viram que todo o mundo ali estava feliz, as crianças cantavam, os operários estavam ricos, os kolkhozes opulentos: palavra de resistente!

Depois de tudo, por que se constranger com testemunhos? Os acusados sabem que não existem campos na URSS, porque é impossível que haja ali: ponto final. Eles resolveram, então, rir, enquanto escutavam a litania dos antigos deportados, que enumeram mortes, torturas, sofrimentos infinitos. "Esses fatos não me parecem sérios", julga seriamente

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Daix. "Que nos conte Cendrillon, isso terá a vantagem da verossimilhança!", jubila Morgan. É um romance, um conto de fadas, complementa Wurmser. É impossível, porque o Exército Vermelho venceu os nazistas. Porque, do contrário, Stalin não valeria mais do que Hitler. Ou simplesmente, segundo a réplica, que se tornou famosa, de Jean Laffite, outra testemunha comunista: "Se o senhor me perguntasse: `Se sua mãe fosse uma assassina, iria condená-la?', eu lhe responderia: `Senhor, minha mãe é minha mãe e não será uma assassina.`

Portanto, os acusados, ou seus aliados, afirmam também: sim, os campos e os pecados existiram; mas não é preciso fazer deles uma história. De início, porque tais medidas eram indispensáveis. Os pecados dos anos trinta? Diante da ameaça hitleriana, era preciso eliminar a quinta-coluna, conclui friamente joliot-Curie, prêmio Nobel de física. Os campos? É

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normal que os ladrões de maçãs sejam pressionados a ajudar na construção de estradas, declara sem rir o desenhista Jean Eiffel. Onde os senhores querem pôr os inimigos senão em um campo? (Ao que Buber-Neumann e Rousset replicaram que esta era exatamente a argumentação de Hitler: eliminar ou trancafiar os "inimigos" e os "reeducar" para o trabalho.) Enfim, não se fazem omeletes sem quebrar os ovos: a Inquisição não contribuiu em nada para o crescimento do cristianismo, dizia Malraux para justificar os processos de Moscou, na época em que era stalinista; o terror não diminui a Revolução Francesa e não se deve lamentá-lo, acrescentam hoje os historiadores comunistas; o mesmo vale para o terror stalinista.

Os campos existem, é claro, na URSS e nós podemos lamentá-los, declaram outros, ou os mesmos; mas a situação nos outros países não é nem um pouco melhor. Essa será a posição de Sartre, Merleau-Ponty, Claude Bourdet (os companheiros de viagem são mais perigosos do que os membros do Partido, porque merecem maior credibilidade junto ao público): o que se passa na União Soviética não é nada comparado aos sofrimentos nas colônias francesas ou nas prisões da Grécia e na Espanha; os republicanos espanhóis designados para a residência na Córsega compensam todos os mártires do Gulag! O imperialismo americano continua a ser o principal inimigo!

Os campos soviéticos existem talvez, mas não é o momento de falar deles: a verdade será hoje pouco útil, talvez nociva. Para que serviria tal revelação? Para separar por mais tempo os aliados, e aumentar os riscos de guerra. Para diminuir o prestígio da URSS, pátria do socialismo e da justiça. Para desencorajar os operários franceses em suas lutas justas. Não é bom que se diga a verdade, a não ser em certos momentos para certas pessoas, com certos objetivos: ela não deve ser preferida como tal.

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Ficamos consternados diante desses argumentos, que parecem sair do capítulo "Paralogismos" de um manual de lógica ou inspirar-se em um maquiavelismo de má qualidade. Por um lado, toda a questão da verdade histórica e jurídica se encontra escamoteada: discute-se - de maneira bem indulgente - a virtude e o vício dos acusadores e dos acusados; mas uma discussão como essa permite poucas conclusões sobre o verdadeiro e o falso. Por outro, é um bom negócio proferir a verdade como o objetivo do momento. Em suas memórias, escritas muito tempo depois dos processos, os protagonistas comunistas contam que eles tinham, na época, total boa fé e, além do mais, tinham a impressão de que marcavam pontos e atraíam a simpatia da opinião pública. Nem todos os admiravam, seguramente, mas de qualquer forma não os achavam ridículos ou odiosos. Que neguemos dessa forma a verdade ou a releguemos a um papel secundário não choca a opinião pública (convencer os ouvintes não tem muito a ver com a verdade dos fatos, já se lamentava Sócrates). A paixão pela verdade não figura entre as principais motivações da conduta humana; mesmo as motivações científicas, que a tornam regra de vida profissional, não pensam em estendê-la para o restante da existência.

Julgar o passado

Relendo essas velhas histórias de meio século atrás, sentimo-nos tomados de indignação: já que acreditamos saber hoje de que lado está a verdade, como não desprezar os seus inimigos? De súbito, sinto-me tentado a perguntarme se tal indignação não é muito fácil e se, fazendo isso, não pecamos por anacronismo. Não seria melhor abster-se de condenar os que se enganaram antes, já que todo o mundo pensava dessa forma na ocasião? Não exatamente. As 100

atas dos processos descrevem um quadro completamente diferente: naquela época, nós sabemos. É o fim da Segunda Guerra Mundial o fator decisivo (da mesma forma que o foi para os campos nazistas)- milhares de deportados poloneses que combateram no exército Anders encontram-se agora fora da União Soviética; milhares de deportados de origem soviética permanecem na Alemanha e refugiam-se no Ocidente. Os testemunhos se multiplicam e se confirmam; já nenhuma dúvida é possível para quem se dê ao trabalho de lê-los e decide julgá-los imparcialmente. A partir deste momento - digamos 1950 -,escolheu-se reconhecer a existência dos campos soviéticos e denunciá-los; ou então ignorá-los e escondê-los.

Essa escolha não é inocente: o melhor meio, se não o único, de combater os campos é revelar a existência deles, difundir as informações que lhes dizem respeito (sabemos até que ponto a administração nazista, como a do Gulag, se empenha em esconder tais informações). Em conseqüência, os que escolhem ignorar a verdade, como Daix e Morgan, ou a admitem mas julgam que é melhor calar-se, como Sartre e Merleau-Ponty, participam ativamente da manutenção dos campos e têm sua parcela de responsabilidade.

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O apelo de David Rousset marca, na França, o fim de um período em que a ignorância dos campos soviéticos era desculpável. É por isso que não hesitarei em dizer que uma Germaine Tillion, ex-deportada, agiu bem ao associar-se a este apelo; e uma Marguerite Duras, ex-resistente, agiu mal, condenando-o e preferindo a fidelidade ao PC. Esses julgamentos de valor nada têm de arbitrário.

Em seu apelo, Rousset foi bem-sucedido ao dizer o essencial e logo de início: os campos transcendem o relativismo ambiente; não são ruins de um ponto de vista e bons de outro, a coisa é suficientemente rara para que insistamos nela, um mal absoluto. "O mal dos campos de concentração não

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tem comparação com nenhum dos outros; é o maior mal que o homem pode conhecer." Ele compreende, além do mais, que um regime que organiza campos não pode ser julgado independentemente deste fato; longe de ser um acidente, os campos revelam a essência do totalitarismo, "já não se apresentam como um tumor patológico, mas como a expressão das razões normais, como o desenvolvimento natural de uma nova sociedade". O que implica que não há diferença radical entre os campos nazistas e os campos soviéticos, apesar das evidentes diferenças de organização: sem câmara de gás aqui, sem reeducação política lá etc. Os campos zombam das justificativas ideológicas que damos à sua existência; o sofrimento dos homens atingem ali tal grau que as diferenças filosóficas empalidecem e se afirma a comunhão da experiência, o que Rousset chama de "experiência decisiva".

No entanto, o apelo de Rousset divide os deportados e acarreta cisões no seio de suas federações (na maioria, entre comunistas e não-comunistas). E mesmo o ponto de partida do processo, já que o artigo do Lettres Françaises que o provoca se intitula "Pierre Daix, matrícula 59807 em Mauthausen, responde a David Rousset". "A experiência decisiva" não é suficiente, no entanto, para determinar a conduta dos homens. Mas, então, como compreendê-la?

O próprio Daix, que mudou muito, esforça-se para fazêlo em sua autobiografia, fai rree au matin. Nela lemos esta frase terrível: "Quando me perguntei como pude ser stalinista, pareceu-me que isso foi graças a Mauthausen." Será isso um delito no campo? Não tenho realmente esta impressão. Parece-me mais que a experiência do campo, aquela à qual Daix se refere no livro, não chegou a abalar as certezas que tinha, quando ali entrou. No

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entanto, não faltam ocasiões. Na verdade, ele encontra no campo detentos soviéticos que o admiram, mas, coisa estranha, dizem-lhe já terem sido deportados

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em seu próprio país. Ele reinterpreta: tornaram-se heróis graças à educação nos campos stalinistas! As informações que ele recebeu, em vez de esclarecê-lo, confirmam seus preconceitos; sua consciência adapta os seres que ele encontra aos seus princípios ideológicos. O mundo permanece para ele confortavelmente simples (no plano mental apenas, é verdade): `A guerra exige que seu lado seja branco. Os SS encarregam-se maravilhosamente do negro."

Ao ler sua autobiografia (co-assinada por E. Copfermann), não imagino David Rousset como uma pessoa intrinsecamente superior; como qualquer, ele engana-se. Não é santo nem super-herói. Ele descreve, no entanto, sua reação aos campos em termos diferentes. Antes de ter sido conduzido até eles, diz, vivia em um mundo livresco, populado de abstrações: a revolução, a humanidade, o socialismo. Uma vez na prisão, sofre cruelmente: é privado dos livros. Em seguida, encontra um remédio que começa pouco a pouco a acalentar em si mesmo: ele descobre os indivíduos. "Este foi o começo de uma experiência excepcional, de uma riqueza imensa para mim... O domínio da leitura estava fechado. Mas descobri os homens." Não: os seres mais do que os livros; fora do campo, Rousset volta a mergulhar na leitura e na escrita. Mais: os seres acima dos livros. Por esta razão, já no campo, como Daix, com seus preconceitos ("como um aliado", disse ele), ele pôde superar o hábito de viver com as abstrações, tão perigoso para os intelectuais e os militantes, e sentiu que, para ele, o sofrimento dos seres era doravante irredutível às categorias. É por essa razão que ele vê o universo dos campos de concentração como uma sociedade hierárquica e complexa, como um "emaranhado contínuo", mais do que como a alternância do negro e do branco.

Frívola história! Os que se enganam não são menos punidos. A trajetória política de um Claude Morgan, semelhante à de Claude Roy ou à de Maurice Blanchot, é emblemática:

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militante de extrema direita e partidário de Mussolini antes da guerra, entra na Resistência e converte-se ao stalinismo; esta brusca mudança, no entanto, não lhe ensina nenhuma humildade. Ele "desliga-se" do Partido depois dos acontecimentos da Hungria, em 1956, mas não perde a altivez: na autobiografia, Les Don Quichotte et Ies autres, descreve-se como da

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mesma espécie de Pasternak e Soljenitsyn, a dos idealistas insubmissos (veja que a vítima dos campos e seus defensores deveriam caminhar de mãos dadas!). Não mais do que os outros distribuidores profissionais de lições, ele jamais encontra palavras para falar de seus próprios erros. Os defensores dos campos, na França e na Rússia ou na Bulgária, não sofreram nenhuma sanção.

Os que roubam corretamente não são recompensados. Rousset, no que diz respeito aos campos comunistas, compreendeu tudo e disse tudo em 1950; resultado: será deixado no ostracismo durante décadas pela inteligência francesa bem-pensante, trancada em seu conformismo "antiimperialista" e pró-comunista. Ele consagrará uma dezena de anos de sua vida e imensa energia para combater essa instituição macabra, com a ajuda de uma organização criada por ele, uma espécie de Anistia Internacional antes da Carta; os resultados serão, no entanto, pequenos. Não apenas os campos se perpetuaram na União Soviética até o fim dos anos oitenta como florescem ainda hoje na China, mas boa parte da inteligência, destinatária imediata do apelo de Rousset, manteve intacta sua ligação com o ideal comunista durante duas décadas: o maoísmo Rive gauche é posterior ao apelo de Rousset. Por que este Eu acuso do século XX não pôde ser entendido como o outro, por que foram precisos vinte e cinco anos e Soljenitsyn para que se ousasse encarar a verdade de frente? Em cada momento da história, não ouvimos o que queremos ouvir.

O totalitarismo comunista está morto e o combate a ele já

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não é atual. Mas as lições do passado permanecem e são pouco divertidas: a história aparece como uma série de ocasiões perdidas. Tanto que somos tentados a perguntar: por que milagre às vezes escapamos do pior? zzz

5 O caso Touvier

O que na França mais se assemelha à experiência totalitária vivida pelas populações do Leste europeu são os anos de ocupação nazista. O nazismo deixou aqui marcas muito mais profundas e dolorosas do que o comunismo, e isso é compreensível: ainda que a responsabilidade de algumas figuras públicas na manutenção do Gulag seja incontestável, ela não pode ser comparada com o engajamento ativo de grande parte da população em favor do regime nazista na época da Segunda Guerra Mundial. A justiça é um desses locais onde se pode observar como um país administra a memória de seu passado. Eis por que, sem dúvida, me senti tão envolvido pelos processos por crimes contra a humanidade nos anos oitenta e noventa, os de Klaus Barbie e sobretudo o de Paul Touvier, até este dia o único francês a ter sido perseguido por tais crimes. As circunstâncias que cercaram sua fuga, sua captura, e em seguida o processo a seu respeito revelam a maneira como foi vivido um dos episódios mais dolorosos da história francesa recente. A França pode dar

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um exemplo aos antigos países totalitários pela maneira como administra seu passado?

Vejam-se os principais episódios do caso. Em 1943, Touvier engaja-se ativamente na milícia, em Lyon, e torna-se chefe do serviço local de informações. Com esta patente, participa da execução, tortura ou deportação de numerosos judeus resistentes ou simpatizantes da França livre. Ao dar-se a libertação, ele entra para a clandestinidade; é condenado à morte por recusar-se a comparecer ao tribunal; é preso, mas acaba fugindo. A partir deste momento, é beneficiado por uma extraordinária indulgência da parte de algumas autoridades da Igreja Católica, que lhe permitem viver em mosteiros; mais tarde, ele se casa e tem filhos. Em 1964, seus crimes são prescritos; em 1971, além do mais, é agraciado pelo presidente da República. No entanto, em 1973, uma nova queixa é registrada contra ele. Depois de longo atraso, que se tornou possível graças à cumplicidade da polícia, Touvier é preso em 1989 e incriminado. Novo rebuliço em abril de 1992: a Câmara de Acusação de Paris decide que já não há motivo para perseguilo e torna pública uma longa justificativa de sua prisão. Touvier, agora com 77 anos, é posto em liberdade. Este episódio merece, por si só, um comentário mais longo e pede um retorno.

Crimes contra a humanidade

O interesse do debate suscitado pelo desaforamento (que é uma espécie de absolvição sem processo: não há mais motivo para persegui-lo) vem dos argumentos utilizados pelos juízes para sustentar sua decisão. É verdade que o procedimento do "crime contra a humanidade" só havia sido usado muito excepcionalmente na França: uma só vez, em 1987, contra Klaus Barbie, chefe da Gestapo na

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mesma cidade, Lyon. A própria existência desta noção suscita, como sabemos, reticências, já que permite condenar qualquer pessoa que não tenha infringido a lei; mas, em um Estado de direito, deve reinar a lei e nada mais que a lei: a submissão à lei protege os cidadãos da arbitrariedade do poder.

Conhecemos bem a história desta singular categoria judiciária: evocada de maneira informal desde o genocidio dos armênios em 1915, torna-se realidade no dia seguinte ao término da Segunda Guerra Mundial, no processo de Nuremberg. O que a motiva é precisamente o fato de que o crime está com toda a evidência presente, sem que haja infração

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à lei, já que é o próprio Estado o autor das leis, ou uma de suas instituições, que é responsável pelo crime! Para reagir a esta situação inédita, especificamente moderna, apelamos a uma coisa que se assemelha muito ao antigo ideal de direito natural, logicamente anterior e superior ao direito positivo, encarnado pelas leis de cada país. Postula-se que a realização de certos atos transgride os principios não-ditos, subjacentes às leis particulares. Certos atos: mais precisamente os que consistem em excluir da humanidade uma parte de seus representantes e em considerar legítimas de seu ponto de vista medidas que permanecem ilegais em relação aos outros membros da humanidade ou da nação. É neste sentido que tais crimes são chamados, com justa razão, de "contra a humanidade": contra a idéia de uma humanidade única, em que cada ser humano é um representante do total.

Concretamente, o ato de acusação de Nuremberg contém duas variáveis: a natureza do crime e a identidade da vítima (o julgamento final refere-se a um terceiro parâmetro, as circunstâncias: não é crime contra a humanidade, a não ser em tempos de guerra, o que restringe sensivelmente a extensão da noção; podemos até mesmo sustentar que não há crime contra a humanidade com relação aos imigrantes

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de um país com que estamos em guerra). A natureza do crime e as formas que tomam a exclusão da humanidade: são os assassinatos em massa (o genocídio), a redução à escravidão e à tortura, enfim, a deportação (para um campo de concentração). A identidade da vítima: ela deve fazer parte da população civil e não da de combatentes; esses indivíduos, a população essencial, são escolhidos em razão do que eles são (suas características culturais, sociais e físicas) e não do que fazem.

O tribunal de Nuremberg não precisou (mas, sem dúvida, subentendeu) que os autores desses crimes não poderiam ser indivíduos isolados, mas apenas agentes dos Estados, dos governos ou de outras instâncias coletivas (um maníaco que tivesse decidido exterminar todos os japoneses não cometeria crime contra a humanidade, e as leis vigentes seriam amplamente suficientes para julgá-lo). Além do mais, nenhuma restrição se fundamentava em eventuais justificativas ideológicas de tais atos.

Essa definição de crime contra a humanidade talvez não seja a mais perfeita, mas permite ao menos, por sua virtude discriminatória, excluir certos atos do âmbito desse crime e incluir outros, em vez de se contentar com uma abordagem emotiva e modificável de acordo com as circunstâncias. Sabemos que, por razões que dizem respeito à política e à história mais do que à justiça, os únicos crimes contra a humanidade até o momento julgados foram os dos nazistas. Podemos, no entanto, testar a eficácia da noção aplicando-a a outras situações: sem ser o equivalente exato dos crimes nazistas, outros crimes contra a humanidade aconteceram e merecem ser punidos.

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Assim a deportação e o extermínio da burguesia "como classe" na URSS, nos anos trinta; no Camboja, nos anos setenta: os que foram alvo da repressão não tinham feito nada, seu único erro era serem malnascidos. Os nazistas comete-

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um crime contra a humanidade perseguindo e assassinando não apenas os judeus (identificados segundo critérios "raciais") mas também os comunistas ou os sociais-democratas, ainda que não tivessem nada por que condená-los senão suas opiniões. A mesma coisa para a deportação, as torturas e os assassinatos acontecidos na Bulgária, sob o reinado de jivkov, até os anos sessenta: as vítimas possuíam como característica comum apenas o fato de não serem servidores zelosos do regime comunista; não haviam infringido nenhuma lei.

Em contrapartida, dando ordens de atirar naqueles que tentavam atravessar o Muro de Berlim, Erich Honecker não cometeu crime contra a humanidade: as vítimas sofriam pelo que faziam e não pelo que eram, e seu ato transgredia uma lei vigente. O governo francês, ou alguns de seus serviços, provavelmente tornou-se culpado de crimes contra a humanidade perseguindo os membros da população argelina, já que a Argélia fazia parte da França. O governo sérvio fez a mesma coisa perseguindo, deportando e assassinando croatas, bósnios e albaneses, apenas por sua origem étnica ou religiosa.

Podemos objetar, para contestar a idéia de crime contra a humanidade, que o direito se tornou ali a máscara com que se disfarça a força, porque para,poder julgar qualquer pessoa é preciso vencê-la de início. E o que explica que os cúmplices de Hitler ou, mais recentemente, de jivkov tenham sido perseguidos, enquanto Stalin e Pol Pot, sem falar de outros, gozaram de impunidade. Esta constatação é irrefutável; não acredito que se argua para isso a questão da idéia de "crime contra a humanidade". Ir mais longe não é verdadeiramente desejável: qual será a instância internacional que intervirá em todos os países do mundo para neles restabelecer a justiça? Não há nada de covardia em contar com os defeitos, mas podemos constatar também, para nosso

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bem, que as ditaduras, mesmo as mais impiedosas, terminam por desmoronar (a derrota dos tiranos não é uma raridade). Além do mais, se o ditador sabe que em caso de mudança de regime, ou até de uma simples ida ao estrangeiro, corre o risco de ser julgado, pode hesitar antes de cometer o delito.

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O crime contra a humanidade, por definição, independe de sua localização no espaço: a mesma ação é crime em todas as latitudes, e mudando de país não escapa à justiça do mesmo. Ele escapar, por outro lado, ao domínio do tempo - ou seja, se for imprescritível - é, sem dúvida, mais problemático. Podemos sustentar que um indivíduo não permanece idêntico a si mesmo através do tempo e seria, então, injusto condenar um homem de setenta anos pelo que fez quando tinha vinte; podemos sobretudo constatar que a memória das testemunhas falha e se confunde, que é dihcil, se não impossível, esclarecer um caso cinqüenta anos depois dos fatos. (Essas dificuldades foram ilustradas, por exemplo, pelos contratempos do processo Demjanjuk em Israel. Podemos imaginar, para escapar a ele, que renunciemos, ao fim de certo tempo, a esclarecer os crimes; mas, então, que as condenações à revelia pronunciadas no momento dos atos do processo permaneçam imprescritíveis.)

Assim que teve de julgar seu primeiro crime contra a humanidade (o de Barbie), a justiça francesa teve de introduzir esta idéia em seu arsenal repressivo, o que fez em 1985, por uma suspensão de sua instância suprema, a Corte de Cassação. Mais do que retomar a definição estabelecida em Nuremberg, ela procurou, em razão da pressão de diversos grupos ou para prevenir algumas aplicações indesejáveis, adaptá-la a seu uso - prática perigosa para a lógica do direito. Ela por um lado alargou essa definição, incluindo entre as possíveis vítimas não apenas certas categorias da população civil mas também todos os adversários do regime incriminado

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(concretamente, os resistentes e não mais apenas os judeus), amenizando assim a diferença entre crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Por outro lado, para compensar tal alargamento, restringiu a categoria dos agentes do crime: podem ser perseguidos apenas os que agiram "em nome de um Estado praticante de uma política de hegemonia ideológica", quer dizer, um Estado totalitário (a França, durante a guerra da Argélia, evidentemente não corresponde a essa definição) .

O desaforamento

Os juízes do caso Touvier fundamentaram seu veredicto em dois tipos de argumentos, sem jamais contestar abertamente a idéia de crime contra a humanidade. Por um lado, das onze acusações levantadas contra Touvier, dez foram descartadas por causa da dificuldade que existia em estabelecer a verdade cinqüenta anos depois dos fatos, mas sem que esta objeção fosse jamais levantada teoricamente para contestar a imprescritibilidade

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desses crimes. Ora, parece, as testemunhas se contradiziam, ora seus propósitos eram muito vagos ou inverossímeis, ora o que afirmavam não era suficiente para incriminar Touvier.

Por outro lado, nos onze casos os fatos são admitidos; são, aliás, os únicos reconhecidos pelo próprio Touvier. É o caso dos reféns de Rillieux, fuzilados no dia seguinte a um atentado realizado pelos resistentes: Touvier toma a decisão da represália e manda matar sete reféns - sete judeus (voltarei a isso). Se nos ativermos à definição de Nuremberg, a execução de reféns escolhidos entre os resistentes presos não seria crime contra a humanidade, mas "apenas" crime de guerra (ao mesmo tempo, o bombardeio das populações civis não é também crime de guerra?); em contrapartida, a escolha

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exclusiva de reféns judeus é crime contra a humanidade. Esta acusação é, no entanto, descartada em nome de outra consideração: a França de Vichy não era verdadeiramente um Estado totalitário, mas um regime conservador e ditatorial, do qual apenas alguns elementos foram retirados do fascismo mais puro.

Apoiando-se, assim, na definição da Corte de Cassação, os juízes de Paris contribuíram para pôr em evidência sua estupidez, já que os mesmos fatos, a deportação e a execução dos judeus, foram crimes no caso de Barbie, mas deixaram de ser no de Touvier; eles atacaram, assim, a igualdade de todos perante a lei. Atendo-se a essa interpretação, com efeito, apenas um único alemão poderia cometer crime contra a humanidade; os franceses já estavam excluídos por antecipação, já que a França da época não era um Estado totalitário!

Vale a pena nos atermos um pouco ao fato de a forma lógica destes dois argumentos ter motivado o desaforamento. O primeiro consiste em fingir aceitar a lei como um todo para negar-lhe qualquer aplicação nesses casos particulares: admite-se o princípio da imprescritibilidade, mas considera-se que o tempo passado é muito longo para poder elucidar o fato. O segundo, em contrapartida, consiste em curvar-se à Constituição fingindo ignorar seu espírito (a Corte de Cassação não procurava tornar impossível a perseguição dos agentes de Vichy). Estes dois argumentos são, então, opostos: um privilegia a carta da lei, o outro uma interpretação que leva a dizer, afinal de contas, o contrário da Carta. Eles têm apenas uma coisa em comum: o fato de permitirem inocentar Touvier. Por essa própria convergência, os juízes assinam sua parcialidade e revelam que a intenção de chegar a um desaforamento, não a lógica da razão, prevaleceu em sua decisão.

Ninguém se enganou quanto a esses argumentos formais: para além das considerações jurídicas, para além mesmo

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do caso de Touvier, a Corte procurou absorver, talvez inocentar o regime de Vichy. E os juízes também aproveitaram a ocasião para entregar ao público uma longa análise da política francesa durante a guerra, diante da qual o leitor se pergunta perplexo se é a má fé que leva à ignorância ou o inverso. O que dizer das acrobacias para concluir que a milícia não era fascista, apesar de seu chefe, Darnand, fazer parte da SS? Ou, se ela o era, que prova havia de que o Estado em conjunto não o seria, já que ele precisara confiar uma missão particular àquela organização? Que Pétain jamais fora propagandista anti-semita (embora houvesse assinado as leis raciais, entre as mais duras de sua época)? O que é preciso reprovar aos juízes não é, no entanto, o escrever mal a história (além do mais, não era a profissão deles), e sim escrever a história em vez de se contentarem em aplicar a lei, igual e universalmente.

Qual poderia ser a razão dessa opção dos juízes? Seria uma preferência pelo "Estado francês" e seu ideal de "trabalho, família, pátria", contra a tradição republicana resultante da Revolução? Podemos ser tentados a crer nisso, ao ver a satisfação com que o julgamento foi recebido pela extrema direita e a reprovação quase unânime que suscitou junto aos outros partidos políticos. Outros fatos, recentes, confirmaram o ressurgimento de alguns valores do passado: as manifestações persistentes de admiradores de Pétain, o crescimento constante da extrema direita, a vulgarização do discurso xenófobo e racista - como se o desmoronamento da utopia comunista devesse ser necessariamente acompanhado de um crescimento da antiutopia conservadora. Tal não parece ser, no entanto, boa explicação: nada na carreira anterior desses juízes permite ver uma escolha tão simples. Podemos nos perguntar se, além das razões particulares que conduziram o julgamento, este não é revelador de um fenômeno de sociedade mais abrangente, de uma evolução histórica de maior

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amplitude, da qual participou não apenas o próprio julgamento mas também as reações a ele, talvez até outros acontecimentos, como a agitação provocada pelo cinqüentenário da batida do Vel d'Hiv.

Todos estes fatos parecem colocar em evidência a importância que tem para os franceses atualmente, e talvez para outros europeus, o restabelecimento de sua memória coletiva. O debate sobre a natureza do regime de Vichy, morto há cinqüenta anos, é um dos mais vivos que existem no cenário intelectual e político francês: não é surpreendente? Mas quem diz memória coletiva diz também identidade coletiva. Tudo se passa como se os franceses, sem admiti-lo abertamente, se sentissem ameaçados em sua identidade nacional e procurassem remediar este sentimento através de tentativas de reapropriação de sua memória. Uma interpretação superficial do princípio individualista que reina em nossa época nos fez crer durante muito tempo que os indivíduos aspiram apenas às alegrias pessoais. Tal explicação é insuficiente e nos faz esquecer que, em sua maioria, os indivíduos têm

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necessidade de reconhecimento de sua própria existência, o qual adquirem através do sentimento de pertencer a uma comunidade - nacional, religiosa, política ou racial (volto a isso). Touvier teria se beneficiado, segundo esta hipótese, do desejo experimentado pelas nações de se reapropriarem da totalidade de seu passado para consolidar sua identidade. A mensagem implícita do julgamento seria, então, qualquer coisa como o famoso "My country, right or wrong" (certo ou errado, é meu país).

O processo

Não se parou, entretanto, por aí. Alguns meses depois, a Corte de Cassação pronunciou-se por sua vez e rejeitou o julgamento da Corte de Paris, provocando um novo exame do caso, desta vez pela Corte de Versalhes. O julgamento finalmente aconteceu em março-abril de 1994, e Paul Touvier foi condenado à prisão perpétua.

Alguns aspectos do processo fazem apenas relembrar os ensinamentos que pudemos tirar de precedentes processos contra antigos nazistas ou ainda de livros de história dedicados a este período. O papel sinistro da milícia, a polícia política francesa criada em 1943 e rapidamente transformada no equivalente local da SS, foi confirmado e ilustrado. A atitude global do acusado assemelhava-se às estratégias empregadas por outros nas mesmas circunstâncias: ele não sabia (não ouvira falar do regulamento infame dos judeus, decretado pelo governo de Vichy), apenas cumpria ordens e ele próprio nunca havia matado ("Não fui eu quem decidiu e não executei"); seu arrependimento e sua piedade só consolavam a ele mesmo, não às suas vítimas. Outros aspectos do processo, no entanto, eram mais singulares.

Touvier era acusado de um único crime. No dia 28 de junho de 1944, Philippe Henriot, ministro da Informação de Vichy e miliciano ativo, foi assassinado pela resistência francesa. Rapidamente foram organizadas represálias; em Lyon, Touvier encarrega-se de encontrar reféns. No calabouço da milícia que está subordinada a ele, ele encontra os prisioneiros; escolhe dois, judeus, e manda prender outros judeus; acaba por apoderar-se de cinco pessoas a mais. Ao amanhecer do dia 29 de junho, os sete são fuzilados em Rillieux, perto de Lyon.

Touvier jamais negou sua participação no crime; foi ele mesmo quem a revelou em primeiro lugar, mas, ao longo dos anos anteriores à sua prisão, sempre negou sua responsabilidade: segundo suas declarações, ele não havia feito nada além de cumprir ordens do chefe local da Gestapo, que havia tomado

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a decisão da represália; ele não tivera escolha. Em seu espírito, tal apresentação dos fatos deveria inocentá-lo, ou ao menos valer-lhe circunstâncias atenuantes. No entanto, desde a

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redefinição do crime contra a humanidade pela Corte de Cassação, tal estratégia tornou-se catastrófica: Touvier admitiu ter obedecido aos alemães, o que era precisamente a condição requerida para a sua condenação. A acusação aproveitou esta brecha: já que toda a instrução do caso procurara provar que Touvier havia tomado a decisão completamente só, a acusação deu uma guinada completa, aproveitando as palavras de Touvier; censurou-se agora o que ele acreditava ser uma desculpa, a execução de uma ordem alemã. Se houvesse agido sozinho, Touvier não poderia ser acusado de crime contra a humanidade! Era muito tarde para recuar: Touvier não poderia negar o que ele havia sustentado com obstinação durante quarenta anos.

A defesa de Touvier retrucou, então, com um outro argumento. Segundo ela, o chefe da Gestapo havia pedido ao chefe da milícia de Lyon a execução de cem reféns; este, sim, teria conseguido que o número fosse diminuído e não havia exigido de Touvier "mais do que" trinta reféns. Este último, por sua vez, teria proposto fornecer "apenas", em um primeiro momento, sete reféns, mas ele jamais teve o segundo momento. Em vez de ser reprovado pela morte dos sete, Touvier deveria ser louvado por haver salvo da morte certa vinte e três judeus não-executados; mereceria uma medalha por este ato corajoso!

É fácil ver que tal argumento não apenas é privado de valor jurídico; também comporta algo de obsceno. Os vinte e três judeus em questão jamais haviam estado nas mãos de Touvier para que ele pudesse, em seguida, protegê-los e libertá-los. Os sete executados são pessoas bem reais e não vítimas virtuais. De outro modo, qualquer assassino poderia apresentar-se como benfeitor da humanidade: ele permitiu

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que milhares ou até milhões de pessoas escapassem da morte!

Se decidirmos aceitar, por um instante, o argumento de Touvier, perceberemos que, longe de justificar o miliciano, ele muito mais o inculpa. A defesa geral de Touvier, como a de numerosos criminosos nazistas, consiste em dizer que ele agiu sob pressão dos acontecimentos, que não tinha escolha. Geralmente ficamos desconfiados diante desse tipo de argumento, mas não dispomos necessariamente de provas de que a afirmação seja falsa. Mas aqui é o próprio Touvier quem as fornece: ainda que houvesse tais ordens provenientes da Gestapo, ele poderia, sem com isso sofrer o menor prejuízo, negociar; em algumas horas, o número de reféns passou, segundo ele, de cem para sete. Em um primeiro momento, é verdade; mas, segundo o testemunho de Touvier, "no dia seguinte não havia mais questão". A guerra fez estragos na França, naquele fim de junho de 1944 cada dia trazia seus acontecimentos; a morte de Henriot é impressionante hoje, relegada a segundo plano no dia seguinte. Seria então suficiente que Touvier negociasse um pouco mais habilmente, que retardasse a execução por quarenta e oito horas, para que os sete supliciados de Rillieux

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fossem mantidos com vida. Se o que diz Touvier é verdade, isso prova sua responsabilidade e, portanto, sua culpa.

Se o que diz Touvier é verdade... mas o será? A acusação, como vimos, tem interesse em acreditar nele, porque esta seria a única forma de o ato ser talvez qualificado de crime contra a humanidade. Porque tal construção é útil, tornou-se ela verdadeira? É nesse ponto que os advogados das partes civis se dividem. Por um lado, todos exceto um mantêm a cômoda tese da acusação. Por outro, um único afirma: Touvier mente. O único é Arrio Klarsfeld, o filho de Serge e Beate Klarsfeld. Esta declaração tem o efeito de uma

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bomba: se Arno Klarsfeld tem razão, se Touvier tomou poi si mesmo a decisão, o personagem é talvez mais odioso, mas não podemos condená-lo por crime contra a humanidade.

Os argumentos do jovem advogado são precisos. De início, o assassinato de Henriot atinge os milicianos infinitamente mais do que aos alemães, que, naquele momento, tinham outras preocupações e não a de vingar um miliciano francês, mesmo sendo ele um dos mais eminentes. Tal ação não é impossível dentro do princípio, em outras ocasiões a Gestapo interveio desta maneira; mas, no caso de Henriot, por todos os lugares na França, fora de Paris, são os próprios milicianos que se encarregam da represália. Além do mais, existe um relatório detalhado sobre as atividades do chefe da Gestapo em Lyon, de 28 de junho de 1944: não se encontra nele nenhuma ordem de fuzilar cem reféns. Enfim, no curso do processo em 1946, um comparsa de Touvier declarou, em resumo: Nós havíamos embargado os bens dos judeus, nós os executamos; ele não fez nenhuma menção de ordem vinda de fora.

Touvier é, portanto, inocente, mesmo diante da estranha legislação francesa? Não, sustenta o advogado, porque, se a própria milícia decidiu a represália (e Touvier estava entre os responsáveis pela milícia de Lyon), ela não estava a serviço da Gestapo, do Estado nazista. Se esquecermos a formulação da lei (mas Arno Klarsfeld não pode permitir-se isso diante do tribunal), poderíamos dizer que a milícia, embora francesa, na verdade era uma organização nazista responsável pela tortura, deportação e morte de grupos inteiros da população e, neste caso, culpada de crimes contra a humanidade. Ela não apenas servia aos nazistas (alemães); ela era nazista.

Outros elementos do processo, levados pelas testemunhas ou lembrados pela acusação, vieram reforçar a hipótese de

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Arno Klarsfeld. Um diz respeito a um episódio contemporâneo. Não longe de Lyon, em Mâcon, outro chefe miliciano, Clavier, decide vingar a morte de Henriot; na tarde do dia 28 de junho, prende sete pessoas suspeitas de ser simpatizantes da resistência e manda executá-las imediatamente. Este gesto provoca a indignação geral; o chefe de polícia informa a Laval, que se queixa a Darnand, o chefe nacional da milícia, que manda aprisionar Clavier - através de Touvier, em Lyon. Touvier sabe, então, que seus próprios superiores hierárquicos são contra represálias, mas também que um "colega" havia vingado Henriot matando sete pessoas; ele, porém, procurará se "proteger", fingirá que a ordem veio dos alemães, contra os quais ninguém pode fazer nada. A fábula da ordem alemã era destinada a protegê-lo de seus próprios superiores, além de servir também, muito tempo depois da guerra, para encontrar circunstâncias atenuantes a seu ato. Esforçando-se por repetir esta justificativa, Touvier provavelmente, como acontece com freqüência, acabou ele próprio por acreditar nela.

Outro indício indireto do que realmente aconteceu encontra-se em alguns atos de Touvier da mesma época. Já que a caça aos judeus destinados a ser mortos já havia começado, ele vai até a casa de um padre jesuíta para pedir-lhe um conselho. O padre recomenda-lhe que se una aos resistentes, o que parece irreal a Touvier. Se ele não tivesse tomado a decisão sozinho, se apenas executava uma ordem da Gestapo, teria vivido a situação como problemática, teria ido procurar conselho? Na madrugada do dia 29 de junho, com os sete reféns fuzilados havia pouco tempo, Touvier corre para Vichy, onde consegue libertar um jovem resistente aprisionado, de quem conhece a família; no dia seguinte, ele mesmo vai buscá-lo na prisão para o conduz ir de volta à casa dos pais. Este ato não parece confundir-se com uma tentativa de se redimir, que, mesmo na ocasião, não teria sentido se Touvier não se sentisse

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nem um pouco responsável pelo que acabara de acontecer em Rillieux?

Estas coincidências não são provas; mas tornam mais verossímil a hipótese segundo a qual o próprio Touvier era a origem da decisão. É preciso acrescentar um detalhe: se não poupou a vida de vinte e três judeus, como ele afirma, também livrou da morte uma pessoa, no momento da execução, mas este gesto, longe de desculpá-lo, transforma as represálias de um crime de guerra (hoje prescrito) em crime contra a humanidade (imprescritível): este homem não é judeu. Em um primeiro momento, na verdade, levam-lhe oito pessoas; Touvier encontra-as na escada e, reconhecendo um entre eles, um resistente ativo, pede que seja mantido na prisão. Apenas os judeus devem sofrer represálias. Fazendo isso, Touvier assina, paradoxo das circunstâncias, sua própria condenação.

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Lições

O processo de Touvier está terminado. Para que serve? Para que servem hoje os processos por crime contra a humanidade, como os de Touvier e Barbie?

Estas perguntas pedem de início uma resposta positiva. Os processos serviram para aplicar a lei, fazer justiça e punir os culpados. Barbie foi reconhecido culpado da deportação para Auschwitz de quarenta e quatro crianças judias que se esconderam em Izieux; Touvier, da execução de sete reféns judeus em Rillieux: atos criminosos que merecem escapar a qualquer prescrição. É justo que, mesmo cinqüenta anos depois, os autores desses crimes possam ser punidos. No entanto, a atenção pública de que estes processos estavam cercados indica que se esperava alguma coisa mais: não apenas a aplicação da lei mas também uma lição endereçada à opinião

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pública, um exemplo concernente ao próprio direito ou à moral, à memória ou à história. Mas, deste ponto de vista, os resultados são menos satisfatórios.

Podemos dizer que tais processos ilustraram e glorificaram o ideal do direito puro e imparcial? Dificilmente. De início ambos repousam na estranha definição do crime contra a humanidade, dada pela Corte de Cassação, segundo a

qual certos atos são crimes se cometidos pelos alemães (ou a serviço dos alemães) e deixam de ser se seus autores forem franceses. Não seria negar um dos princípios fundamentais de nosso direito, a igualdade de todos perante a lei? O advogado de Touvier não se privou de relembrar diante do tribunal: o massacre de quinze mil oficiais poloneses em Katyn era um crime contra a humanidade, já que acreditamos que a responsabilidade fora de Hitler; e deixou de sê-lo a partir do momento em que descobrimos que relevava a de Stalin. Tal transformação de julgamento volta-se contra o próprio direito e despreza-o. Por que, além do mais, deixar a lembrança deste princípio ao advogado de Touvier, que não é um ardente defensor do espírito republicano, já que a igualdade diante da lei pertence aos próprios fundamentos da República?

A guinada da acusação, em curso de instrução, dá igualmente a impressão de que os princípios do direito são uma coisa bem maleável. Toda a instrução do caso tende a provar que Touvier agiu como seu próprio chefe. De repente, percebemos (por causa do desaforamento entregue pela Corte de Paris) que tal formulação não permite a condenação;

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lançamo-nos, então, com a mesma convicção de antes, a afirmar o contrário: Touvier agiu pela vontade dos alemães,

em benefício da Alemanha. É inadmissível que uma noção como esta seja redefinida de maneira tão radical de um ano para o outro: o que era crime deixa de ser (as brutalidades da milícia em seu próprio nome), o que não o era torna-se

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crime (a perseguição dos resistentes pela Gestapo). Não estamos começando a adaptar a lei aos objetivos políticos do momento, em lugar de deixá-la julgar igualmente todos os casos particulares?

O livro de Eric Conan e Henry Rousso, Vichy, un passé qui ne passe pas, dedica ao processo Touvier um longo capítulo particularmente convincente. Do modo como figura no direito francês no momento do processo, afirmam eles, a definição de crime contra a humanidade não se aplica ao crime do miliciano. Seu ato não pode ser integrado na "solução final" posta em prática pelos nazistas alemães, como é o caso do crime de Barbie; a execução dos reféns, sendo eles, judeus, é um crime de guerra, "um crime francês, inscrito dentro do contexto da guerra franco-francesa". Os autores no capítulo, "Verdade jurídica, mentira histórica", concluem: "O veredicto de Versalhes condenou em definitivo um cúmplice dos nazistas, um colaborador, baseado numa interpretação falsa dos fatos e em bases jurídicas no mínimo frágeis... Donde duvidar da exemplaridade de tais processos."

Enfim, com freqüência ouvimos dizer no curso destes processos que eles não eram apenas contra Barbie ou Touvier, mas também contra a Gestapo e a milícia. Esperamos também que haja um processo contra a administração colaboracionista de Vichy, no caso do processo Papon, que é igualmente acusado de crimes contra a humanidade. É legítimo julgar e condenar alguém por exemplo, para que a organização criminal à qual ela pertence seja exposta à indignação? Será preciso responsabilizar Barbie pela existência de Auschwitz? O indivíduo deve ser julgado pelo que fez e não pelo que é ou representa: aí está outro princípio do direito ao qual não há razão para renunciar.

O julgamento moral não tem lugar nos tribunais de justiça. Ele poderia, no entanto, ser formulado por ocasião de

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tais processos, à margem dos debates; mas nada disso aconteceu durante o processo de Touvier. Teríamos podido levantar notadamente uma questão como esta: já que a resistência

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francesa e o governo de Londres conheciam bem a terrível prática de represálias adotada tanto pelos ocupantes alemães como pela milícia, já que, no dia 28 de junho de 1944, a batalha da França já estava decidida em favor dos aliados, a execução de Philippe Henriot era uma necessidade? Colocar-se esta pergunta não significa nem um pouco, como o pretendia Touvier, diminuir sua culpa; os dois atos (o atentado contra Henriot, a execução de Rillieux) são bem distintos, um não decorre automaticamente do outro. Não é proibido, portanto, cinqüenta anos depois dos fatos, interrogar-se também sobre sua significação moral.

Dissemos igualmente que tais processos serviriam à memória, que ensinariam às jovens gerações o que se passou e assim impediriam que a coisa se repetisse. A lição do processo Barbie não é, no entanto, convincente neste sentido: relembrando as torturas infligidas por este oficial da Gestapo aos resistentes, só se guarda apenas uma parte do processo, omitindo-se a outra, a saber, que os resistentes poderiam tratar da mesma maneira os nazistas ou colaboradores que caíssem em suas mãos. Contentando-se em perseguir um policial alemão, ou permitindo deixar na sombra as responsabilidades de diversos serviços franceses. Tal processo era, em resumo, bem cômodo: o acusado era inteiramente diferente de nós, encarnava a crueldade, a violência, o anti-semitismo. O inferno são os outros; nós estamos inteiramente do lado do bem. E se ser racista houvesse sido, em 1943, tão "natural" como ser anti-racista em 1987?

O processo Touvier não fornecia distinções à mesma confusão: Touvier era francês e acusado de um crime revoltante. O papel da milícia foi ali relembrado, mas sem ser feita nenhuma

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revelação (ao longo dos debates, permanecemos ao largo do que podemos aprender consultando as obras especializadas). Se a "memória" então não foi maltratada, também não foi particularmente bem servida. O processo também pôde, como escreveu Laurent Greilsamer no jornal Le Monde, em março de 1994, "satisfazer o novo culto da memória": não resgatar este ou aquele fragmento do passado esquecido, mas proclamar alto e forte que "a memória tem direitos imprescritíveis", que existe um "dever da memória", que devemos nos constituir em "militantes da memória". É, então, reconhecido e aceito por todos que a memória só pode ser uma coisa muito boa?

Sem entrar em detalhes desta vasta questão (consagrei a ela um pequeno livro, Les Abus de Ia mémoire), podemos lembrar que a memória não é jamais o resgate integral do passado, mas sempre e apenas uma escolha e uma construção; que estas últimas operações não são determinadas pela matéria que advém da memória, mas muito mais pelos sujeitos que se recordam, em vista deste ou daquele objetivo. Se o resgate do passado pela memória não tem nada de prejudicial, algumas utilizações desta são muito mais nobres que outras; a memória pode servir à repetição ou à transformação, pode ter uma função

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conservadora ou emancipadora, o que não conduz à mesma coisa. Qualquer pessoa tem o direito de se lembrar como bem entender, é verdade; mas a comunidade valoriza certas utilizações da memória e reprova outras, e não saberá praticar um culto à memória indiferenciado.

Os processos, portanto, não serviram realmente ao trabalho da memória, tanto quanto não honraram o direito. Não é aqui que poderemos encontrar exemplo para os hipotéticos processos nos países ex-comunistas, envolvendo os responsáveis por assassinatos, torturas e deportações para os campos de concentração. Resta esperar que tenham tido utilidade

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política, lembrando a todos o significado de certas opções ideológicas, como o ódio racial ou o desprezo aos direitos do indivíduo: o sofrimento e a morte dos inocentes são suas últimas conseqüências. zzz

6 Debates sobre o racismo

O governo francês havia decidido, em maio de 1987, abrir um processo, de todo público, contra o antigo nazista Klaus Barbie para lembrar às novas gerações os horrores do nazismo. No dia 13 de junho desse mesmo ano, quando o processo estava em curso, um operário tunisiano foi surrado até a morte nas ruas de Nice. Seus agressores, presos pouco tempo depois, haviam explicado aos policiais, sem manifestar remorsos: "Nós somos racistas, não gostamos dos árabes." O pai de um dos membros da gangue (reportou o jornal Le Monde de 1° de agosto de 1987) declarou aos policiais que ele "compreendia e aprovava os motivos do filho". Não é apenas a repetição de fatos como este que surpreende, mas também a possibilidade - pela primeira vez desde 1945 - de se dizer racista sem enrubescer. A caçada de europeus a norte-africanos, que às vezes termina em morte, a recusa a servir pessoas fisicamente diferentes ou a alugar-lhes um apartamento já são sem conta. Menos de um ano depois do processo de Barbie, cerca de 15% dos eleitores franceses, ou seja, mais de

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quatro milhões de pessoas, destinaram seu voto a um partido de extrema direita que defende valores próximos dos do nazismo. Estes resultados foram depois consolidados. A lição da memória, não aprendida.

É preciso inquietar-se? Se nos sentimos atingidos pelos prejuízos causados à igualdade e à universalidade, e também à justiça e à moral, seremos tocados pelas

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manifestações do racismo. Para o indivíduo desenraizado que sou, a urgência tem também outra origem. Mesmo que a xenofobia não se confunda com o racismo, os dois têm elementos comuns e partem da mesma rejeição ao que é diferente. Não esqueço as longas filas imóveis diante da chefatura de polícia onde negros, amarelos, morenos ou brancos como eu iam obter ou renovar um visto de permanência; apertávamo-nos uns aos outros para resistir ao frio e à hostilidade ambiente. Experimentei, então, a necessidade não de proclamar meus direitos e de exigir o que me é devido (para isso, o egoísmo próprio a cada um era suficiente), mas de procurar compreender as razões do racismo; de interrogar sobre minhas próprias reações naquilo que pudessem ter de similar às dos outros.

Alguns analistas têm a tendência de minimizar a importância do fenômeno e de ver nele manifestação um pouco perversa de um processo sempre idêntico, o da expansão inexorável do individualismo democrático, a vitória da "era hedonista-comunicacional". Segundo esta hipótese, em resumo otimista, desenvolvida, por exemplo, por Gilles Lipovetsky, o crescimento dos integrismos ou das paixões nacionalistas testemunham, ao contrário, que as dependências coletivas são submissas à autonomia do indivíduo e às suas escolhas. "Na sociedade de hiperescolha, por que não existiria a gama existencial da intransigência religiosa, a escotilha do tradicionalismo estrito?" O extremismo religioso ou racista não seria, então, mais do que um produto entre outros no "hipermercado dos estilos de vida"; podermos

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escolhê-lo provaria nossa maior liberdade, não nossa dependência. Uma visão como esta é mais asseguradora a longo prazo. Como, no entanto, o final feliz não pode jamais ser alcançado por aquisição (pessimismo balcânico?), eu gostaria de voltar-me para algumas outras intervenções neste debate para tentar orientar-me melhor dentro dele.

Os antianti-racistas

Entre os intelectuais não se protesta (ainda não?) contra o racismo. No entanto, surgiram duas formas de argumentação que permitem manter certas teses racistas. A primeira, bem analisada por Pierre-André Taguieff, consiste em adotar um discurso modificando a antiga doutrina em vários pontos essenciais, de forma que aqueles que a pratiquem possam declarar: "Eu não sou racista." O discurso do antigo racista insistia na diferença das características físicas dos seres; o que hoje o substitui reconhece abertamente apenas os traços culturais. "Eu não sou racista", anunciou Brigitte Bardot, partindo em uma cruzada contra o sacrifício do carneiro praticado por certos muçulmanos na França. "Não vejo a cor da pele, mas a alma das pessoas." O antigo racista afirmava a superioridade de certas raças sobre outras; em nossos dias, contentamo-nos em insistir na diferença intransponível que as separa. Enfim, outrora aspirávamos à submissão de outras raças (sua eliminação, no

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caso extremo de Hitler); desejamos agora o seu afastamento de nós, seu reenvio ao país de origem (se eles não querem ceder aos nossos costumes, continua Bardot, que partam).

A segunda forma de argumentação, à qual gostaria de aterme por tempo maior, diz respeito a abraçar uma nova doutrina, a do antianti-racismo (a dupla negação não acarreta necessariamente a afirmação). Em um primeiro momento,

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opomos racistas e anti-racistas como extremos igualmente indesejáveis, igualmente responsáveis pelo mal na sociedade contemporânea, "dois movimentos demagógicos de sentido contrário". O inimigo principal, no entanto, são os "companheiros", os "Harlem sem vontade", síntese de organizações como o SOS-Racismo, assim como alguns personagens "midiáticos de massa" que lhes servem de garantia. Não podemos ficar surpresos por encontrar, entre os adeptos desta nova doutrina, o deputado do Front Nacional que escreveu à Assembléia Nacional (em outubro de 1987): "Nós nos aborrecemos com a serpente do mar do racismo." É um pouco mais inquietante ver ali figurar Philippe Sollers, um escritor tão admirado pela mídia: no curso de um de seus debates, de que Paris tem o segredo (a flor da inteligência ali afrontava o ministro da Cultura), ele condenou "as formas coletivas enervantes que podem tomar a luta contra o racismo". Outro personagem da mídia, Jean-Edern Hallier, acrescentou: "Eu quero poder amar Joana D'Arc sem ser tratado de racista." Por que não, na verdade?

O título de uma obra recente, Racismes, antiracismes, já indica que aí está a questão de duas ameaças comparáveis. Esta coletânea contém estudos de orientação e qualidade diferentes, mas o tom é dado pelos dois organizadores, Julien Freund e André Béjin, cujos textos abrem e fecham o volume, como também pela contribuição de Alain Daniélou, que vem à frente. Os anti-racistas, segundo Freund, envenenam a atmosfera e "fazem um trabalho quase tão sujo quanto o dos racistas" (ele esquece que as vítimas do racismo se contam literalmente aos milhões, enquanto as do anti-racismo são no momento apenas metafóricas). Os anti-racistas privilegiam uma parte da população (os imigrantes) em detrimento da outra (os autóctones) e entravam "a liberdade espontânea dos seres", que tremem ao descobrir-se acusados de racismo. Eles relembram a este antigo prisioneiro de guerra que é

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Freund "os postos de guarda" de onde se espia durante todo o dia "todo movimento incerto"; eles têm por vocação "suspeitar da inocência e reprimir toda liberdade". Para Daniélou, os "anti-racistas são com freqüência os mais pérfidos inimigos dos grupos, das raças e das

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civilizações ameaçadas", porque o anti-racismo é, evidentemente, apenas uma máscara com a qual se ridiculariza o imperialismo europeu, já que todo o universalismo dissimula necessariamente um etnocentrismo; imperialismo se não militar, ao menos cultural, sendo o grande e talvez único sonho de todos os anti-racistas ver chineses e africanos usarem terno e gravata. As raças não apenas existem mas aquelas das espécies animais são separadas por barreiras intransponíveis: a diferença entre um banto e um chinês é, ao que parece, comparável à diferença entre a zebra e o asno. Para Béjin, que desafia as posições do Front Nacional, o anti-racismo é igualmente uma máscara, mas usada desta vez pelos imperialistas africanos, "que cobiçam nossas terras". Os africanos, sem dizê-lo, nos declararam guerra, considerando a Europa do Ocidental uma "colônia de povoamento" e suas bombas demográficas são mais perigosas do que a Bomba; os anti-racistas servemlhes de cavalo de Tróia. Eles são o veneno que ameaça a capacidade "quase imunológica" de um povo de rejeitar os outros.

Paul Yonnet é outro autor contemporâneo que ilustra a ideologia do antianti-racismo. Em suas obras, aos políticos do Front Nacional são creditadas as melhores intenções: "Le Pen defende-se de ser racista e devolve a agressão a seus adversários"; é tempo de organizar o cartaz "o trapo vermelho dos holocaustos". Para convencer-nos disso, Yonnet insiste no abismo intransponível que é considerado separar o racismo, mesmo quando pouco recomendável, e a xenofobia, onipresente e, por que não?, boa (é a "rejeição de um enxerto por um corpo": o que existe de mais natural?). O próprio anti-racismo

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está assimilado a uma tentativa para instaurar a "ordem moral".

Ao mesmo tempo, Yonnet adota alguns outros temas familiares. Por um lado, o desprezo pelas civilizações não-européias (pesadas ironias sobre a intenção do governo de "ensinar as belezas ocultas das culturas estrangeiras"); felizmente os "hexagonais não aceitarão de imediato que o Maghreb seja o futuro da França". Por outro, defesa e promoção da identidade nacional: o perigo projeta-se hoje de uma "deportação cultural da identidade francesa", em particular deste "pilar da identidade francesa" que é o vinho tinto, que precisou ser defendido contra o governo socialista (um deputado europeu de extrema direita, o ex-cineasta Claude Autant-Lara, já havia ficado famoso por seu ataque a esta bebida detestavelmente cosmopolita que é a Coca-Cola e pela promoção concomitante de nosso bom vinho nacional).

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Deste antianti-racismo ao racismo propriamente dito há apenas um pequeno passo, que Daniélou e Béjin não hesitam em dar. O primeiro agarra-se, por sua vez, à metáfora médica: "O instinto de rejeição e eliminação dos híbridos que chamamos de racismo é um fenômeno de defesa normal do corpo social análogo à rejeição dos órgãos enxertados por todo o corpo vivo", já o segundo defende os "racistas", que são simplesmente pessoas "orgulhosas da superioridade de suas comunidades étnicas", que são apenas etnocêntricos, pórtadores de um "etnocentrismo natural e até saudável". E o que justifica, para Béjin, "a preferência pela Europa": é a ideologia do nacionalismo estendida até Gibraltar - mas não além. "Nós `nos enriquecemos através de nossas diferenças?' Certamente. Mas só entre os europeus."

Há nesse antianti-racismo outra coisa que indique uma obsessão pessoal? Sou tentado a responder pela negativa quando observo que, de modo bem previsível, os temas xenófobos se misturam aos fantasmas sexuais. Daniélou acha que os

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direitos dos povos são ridicularizados por causa das "fantasias sexuais de alguns perversos eróticos", que experimentam um gosto anormal pelos pertencentes a outra raça; o próprio Béjin estigmatiza estes intelectuais anti-racistas "que se imaginam `criativos' para mascarar o fato de que se julgam procriadores"; ele quer combater a onda dos imigrantes para uma fecundidade boa de nossa casa. No entanto, não podemos explicar através de qualquer patologia uma opinião que suscita a aprovação de uma parte considerável da população, a saber, o eleitorado do Front Nacional.

Diante do crescimento do racismo

Uma atitude completamente diferente deixa-se observar entre os antigos militantes de esquerda: eles levam o crescimento da extrema direita e do racismo realmente a sério e decidem combatê-lo através da repressão ou, eventualmente, pela (contra) violência. A legislação anti-racista foi reforçada na França: foi votada uma nova lei que criminaliza a falsificação da história da Segunda Guerra Mundial (a negação das câmaras de gás); o Front Nacional tem às vezes dificuldade para encontrar salas ou terrenos onde fazer suas reuniões. Ninguém solicitou sua interdição pura e simples.

Podemos nos perguntar se tais reações não se arriscam a agravar o mal do qual querem nos curar. De início, os membros do Front Nacional não transgridem as regras do jogo democrático, não conclamam à luta armada nem prometem a instauração de uma ditadura; servem-se dos mesmos instrumentos políticos que os outros partidos: as urnas e a

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televisão. Em seguida, como se o fizéssemos notar no momento do voto das novas leis, para combater uma febre não é suficiente quebrar o termômetro: se um partido recebe 15% dos votos, não desaparecerá em seguida à sua interdição; na democracia

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não podemos proibir as pessoas de pensar de forma diferente da que desejamos. Criminalizar a interpretação tendenciosa da história é excessivo e corre o risco de produzir efeitos contrários aos que esperamos. A verdade não precisa de lei para ser protegida; legislar tão longe é agir como se duvidássemos de que seja verdade. Enfim, lutar contra o racismo através da repressão sem procurar analisar o que o provoca assemelha-se ao próprio exemplo desses políticos de visão estreita que a direita de outrora gostava de criticar entre seus adversários.

Seremos obrigados a escolher ou a complacência ou a rejeição sem a tentativa de compreender? Não necessariamente. O trabalho dos historiadores, dos demógrafos, dos sociólogos pode ser aqui de grande valia, e já o é. É neste mesmo tipo de trabalho de análise e de compreensão que desejam se inscrever as observações que se seguem.

O ser humano não se contenta em vir ao mundo físico como os animais; seu nascimento é necessariamente duplo: para a vida biológica e para a existência social. Ao mesmo tempo em que chega ao mundo, ele entra em uma sociedade da qual adquire as regras do jogo, o código de acesso, que chamamos de "cultura": as tradições, uma língua, as regras de conduta. A cultura tem dupla função: "cognitiva", por ela nos propor uma pré-organização do mundo à nossa volta, um meio de nos orientarmos dentro do caos de informações que recebemos a todo o instante e avançarmos à procura do verdadeiro (a cultura é como o mapa ou a maquete do país que vamos explorar); e "afetiva", por permitir percebermo-nos como membros de um grupo específico e retirarmos dele uma confirmação de nossa existência.

Minha existência a meus próprios olhos, quer dizer, a minha própria imagem em minha consciência, não é natural, na verdade, e só posso receber sua confirmação através do exterior, dos outros: sejam indivíduos (a criança descobre sua

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própria existência captando o olhar da mãe: eu sou aquilo que ela vê), sejam grupos (sou um aluno, um muçulmano, um francês: logo existo). A busca de reconhecimento e de confirmação de nossa existência não se limita à infância, e domina a continuação da vida social, infinitamente mais, já que não a compõe a busca de prazeres ou a continuação de alegrias pessoais; ela não possui nada de um atavismo de que poderemos nos libertar.

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A classificação sumária à qual submetemos o mundo que nos cerca graças ao fato de pertencermos a uma cultura aplica-se também aos grupos humanos. Sua categoria de base é a que opõe "nós" a "eles", os outros. É neste quadro que vem se inscrever a conduta que chamamos de "racismo". Quais são os seus ingredientes?

De início é preciso que eu possa identificar, no seio da sociedade em que vivo, um subgrupo cujas características sociais provoquem em mim medo, ódio ou desprezo. Até aí a atitude do racista é paralela à do xenófobo, que identifica um grupo humano distinto do seu e o rejeita. A xenofobia e seu parceiro obrigatório, o etnocentrismo (desvalorização dos outros, supervalorização dos meus), são fenômenos sociais propagados por toda a superfície do globo, mesmo que as diferentes sociedades não lhes reservem o mesmo tratamento: os estrangeiros podem também se beneficiar de uma hospitalidade particular ou desfrutar da atração exercida por tudo o que é exótico. O segundo passo separa, portanto, o racismo da xenofobia geral, ainda que não esteja no ponto de colocálos em posições opostas, como pretende Yonnet: é preciso agora que a extensão deste grupo rejeitado coincida com a de outro, que identifico através de suas características físicas visíveis (os negros, os morenos, os amarelos); é o que chamo de "raça", sem me preocupar com o fato de que os biólogos contestam a importância destes reagrupamentos: as raças existem porque as vejo. Enfim, desta coincidência concluo

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que a simples presença de características físicas é suficiente para garantir a presença das características sociais.

Vemos qual é o lugar, ao mesmo tempo marginal e revelador, que ocupa o anti-semitismo com relação ao racismo. Não constituindo os "semitas" uma raça visível, o antisemita se contenta em associar várias características sociais (como a religião ou a profissão, ou algumas maneiras de praticá-las); mas, durante os períodos de anti-semitismo virulento, ele procura fazê-los coincidir com as características físicas visíveis, como constatamos facilmente, por exemplo, na propaganda de Vichy por meio das imagens.

O contexto atual

O racismo não aparece mecanicamente nestas ou naquelas circunstâncias: está claro, portanto, que certas condições lhe são particularmente favoráveis. A primeira delas é a erosão da identidade cultural tradicional e, portanto, o desaparecimento do reconhecimento

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social que ela traz. É incontestável que a França atravessa hoje uma transformação como esta. As informações, como os produtos culturais, os bens de consumo, como os capitais, ignoram cada vez mais as fronteiras; mesmo que as pessoas ainda não circulem livremente por todos os lugares, elas o fazem mais do que nunca. Uma tendência multiforme à homogeneização das sociedades e à destruição de suas identidades tradicionais se deixa então observar cada vez mais claramente. Na Europa, o sino fúnebre dos Estados-nações parece ter soado: algumas funções do Estado serão transferidas para a Comunidade Européia, outras às regiões; o antigo Estado não será mais do que uma instância entre outras. Mas "a Europa" não pode provocar o mesmo tipo de identificação que "a França".

O mesmo acontece no interior do país, onde a capacidade

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de mudar de região, de profissão, de meio tornou-se uma condição para o sucesso social; ou a classe média absorve progressivamente as anteriores oposições das classes (sem por isso apagar a dos ricos e dos pobres), ou a mídia onipresente, especialmente a televisão, difunde por todo lado as imagens de um mesmo estilo de vida. As antigas relações de vizinhança, que asseguravam o reconhecimento tranqüilo (meio gratificante) de cada um, estão muito moderadas: quando moramos no subúrbio, a identidade individual dos vizinhos não representa o mesmo papel que a dos habitantes do centro da cidade; o acesso aos imóveis está interditado por um "código". A ameaça de desemprego torna a identificação com uma profissão bem frágil. Enfim, a evolução da vida política, com o desaparecimento progressivo dos grandes antagonismos Leste-Oeste, no exterior; esquerda-direita, no interior; todos são agora pela democracia e pelo mercado -, também não mais permite reconhecer-se dentro de uma família política

em oposição a outras. O enfraquecimento do domínio que possuíam estas "organizações de massa" que são a Igreja Católica e o Partido Comunista é outro sinal de que é cada vez mais difícil manter as identidades tradicionais.

Outra dimensão problemática da identidade cultural francesa é constituída em relação ao passado colonial. Há mais de duas décadas nos debruçamos na França com insistência sobre o episódio de Vichy, sobre o comprometimento com a política nazista. Mas o episódio colonial é muito mais longo (apenas a "aventura" argelina vai de 1830 a 1962); deixou marcas na consciência de várias gerações de franceses, e as relações entre colonizadores e colonizados não foram menos violentas, longe disso, que entre os franceses (não-judeus) e os alemães durante a última guerra. A colonização está hoje anulada, e são os imigrantes das antigas colônias que se encontram em grande número na metrópole. Esta questão, de que percebemos levemente toda a complexidade psicológica,

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está ausente do discurso público contemporâneo. O colonialismo, a descolonização e suas seqüelas são objeto de trabalho especializado, mas são afastados pela consciência coletiva. Este afastamento, por sua vez, prejudica o estabelecimento de uma nova identidade cultural.

A esta primeira condição - a obstrução dos canais tradicionais de reconhecimento - acrescenta-se uma segunda: a presença, no mesmo solo, de grupos fisicamente diferentes. E em parte, então, uma seqüela imprevista do colonialismo: os indivíduos africanos ou asiáticos "afrancesados" têm tendência a procurar refúgio na antiga metrópole. A grande razão do movimento das populações, que se acrescenta à evolução das mentalidades e à facilidade dos transportes, é, claro, a enorme diferença de nível de vida entre aqui e lá. Enquanto esta diferença se mantiver, a onda de migrações não terminará.

Enfim, terceira condição, no interior da França os membros destes grupos fisicamente identificáveis são com freqüência associados a comportamentos sociais específicos - e, em parte, ameaçadores. Na realidade, por razões sociais e não raciais, eles constituem grande parte da população nos subúrbios desfavorecidos. E esta população é a primeira a sofrer dificuldades econômicas.

Seus membros, desempregados, privados de recursos, são levados à dependência social, se não à criminalidade e à violência. Sentindo-se excluídos da sociedade, não se preocupam em proteger a propriedade pública ou privada: atacam tanto os ônibus que servem seus subúrbios quanto os carros particulares. (Satisfazem assim, paradoxalmente, a sua própria necessidade de reconhecimento, de "respeito".) Transformados em representantes das "raças", que podemos identificar fisicamente ao primeiro olhar porque são diferentes da maioria, estes indivíduos são considerados culpados da degradação da relação social, ainda que a responsabilidade caiba

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mais a uma "classe" do que a uma "raça" e encontremos entre os criadores de problema representantes de todos os grupos físicos. O resto da população rapidamente tirou a conclusão: moreno, então perigoso.

Ou, mais ainda, imigrantes clandestinos ou sem situação completamente regularizada diante da lei, encontrando um trabalho (ilegal), aceitam receber menos do que os outros, que os acusam de levá-los ao desemprego. Os grupos "visíveis" serão, mais uma vez, os primeiros visados. O que concluir? De início, acredito que o racismo tem razões estruturais e

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corre o risco de manter-se por longo tempo; ele não se explica através de uma perversão pessoal ou pela falta deplorável de boas intenções. Identificar um "nós" e um "eles" tendo por base características físicas, racionalizar esta separação associando a ela comportamentos sociais é o meio mais fácil de orientar-se dentro de uma sociedade onde as outras referências desapareceram. Isso não torna o racismo mais amável: se o medo dos vermelhos se encontra excluído pelo medo dos negros e dos morenos, nós não iremos ganhar com a troca.

Parece, em seguida, que as reações legais ou morais tocam apenas a superfície das coisas. É bom que haja leis perseguindo a discriminação e os crimes raciais, é bom que se eduquem as crianças no espírito da moral universalista e da tolerância mútua. No entanto, as sanções legais ou morais não agem sobre as razões do racismo, apenas sobre seus sintomas. O tratamento a fundo só pode ser social e deve buscar as condições que permitam o desaparecimento do racismo (é uma banalidade, mas não menos verdadeira). As migrações de populações não devem ser proibidas; mas podemos combater a constituição de guetos, a discriminação profissional, o enclausuramento das comunidades: é preciso evitar a coincidência entre grupo social e grupo "racial". Por outro lado, é preciso favorecer outras formas, não exclusivas, de reconhecimento

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social: o "nós" que me traz a confirmação de minha existência pode ser uma associação esportiva ou cultural, um bairro ou um local de trabalho (onde se misturam diferentes "raças"). É preciso para isso, claro, que haja trabalho, bairros habitáveis e escolas acolhedoras e...

É por isso que não me sinto tranqüilo.

Política dos intelectuais

O que é um intelectual? De minha parte, delimito o uso desta palavra da seguinte maneira: é um sábio ou um artista

(categoria que inclui os escritores) que não se contenta em fazer uma obra de ciência ou em criar obras de arte, em contribuir para o progresso do verdadeiro ou o florescimento do belo, mas que se sente mais preocupado com o bem público, com os valores da sociedade onde vive e participa dos debates que dizem respeito a estes valores. O intelectual desta forma compreendido situa-se a igual distância do artista ou do sábio que não se preocupam com as

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dimensões políticas e étnicas de sua obra e do pregador ou do político profissional que não criam uma obra.

Quando habitava um país comunista, acreditava que os únicos problemas dos intelectuais eram provenientes de sua falta de liberdade e das pressões a que eram submetidos por parte das autoridades. Se vivessem em uma democracia, dizia-me eu, nada poderia impedi-los de representar plenamente o seu papel. Mas, uma vez em Paris, percebi que os intelectuais

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ocidentais possuíam, por sua vez, uma relação problemática com a vida política de seus países. Não penso aqui em casos extremos, o do criador enclausurado em sua "torre de marfim" ou o do ex-criador que se tornou militante a serviço do poder (ou da Revolução que deve derrubá-lo), pouco diferente dos outros militantes. A grande maioria dos intelectuais não se encaixa nessas categorias bem delimitadas. É preciso aqui ir um pouco mais longe.

As três vozes

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O filósofo e sociólogo americano Christopher Lasch propôs uma tipologia dos intelectuais. Ele identifica três papéis que correspondem em muitos pontos a três períodos da história: o intelectual como voz da consciência, como voz da razão e como voz da imaginação. No primeiro caso, ele é moralista e apóia-se nas tradições e na religião; é o modelo mais antigo. O segundo opõe-se ao primeiro na época dos iluministas e a figura ideal torna-se aqui o sábio. O terceiro corresponde à revolta romântica contra os iluministas; é encarnado pelo marginal, pelo poeta maldito, pelo artista. Cada um se coloca então sob uma bandeira diferente: o bom, o verdadeiro, o belo. Lasch não esconde suas preferências pelo primeiro modelo, ao qual nos convida a voltar, depois dos hábitos nefastos dos iluministas e do romantismo; deseja "fazer reviver a tradição meio esquecida do discurso moral e público, na qual o intelectual dirige seu apelo à consciência mais do que à razão científica ou ao sonho romântico de libertação". Ele está pronto para assumir o "retorno à religião" que tal escolha implica em sua opinião.

O que me convence na argumentação de Lasch é sua recusa a sacrificar os valores éticos a qualquer outra categoria. O bem não se resume ao belo, o bem não se deduz do verdadeiro.

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O artista como tal, sabendo-o tal, não tem lições de moral a dar; não é mais sábio do que os cidadãos comuns. Ao mesmo tempo, dois pontos nesta tipologia parecem-me discutíveis. O primeiro diz respeito à identificação da moral com a religião (e mais geralmente com a tradição) - aquele ao qual Lasch se uniu, mas com segundas intenções opostas, tanto para os conservadores quanto para os libertários (a moral é a religião, então é boa; a moral é a religião, então é má). Mas podemos legitimar a moral por outra coisa que não a percepção de Deus; por exemplo, seguindo os ensinamentos de Rousseau e de Kant, pela percepção da humanidade universal e da irredutibilidade do indivíduo. É isso o que designa, entre outros, o velho termo "humanismo".

O segundo ponto que para mim é problemático é solidário ao primeiro, mas parece-me ainda mais importante: é ver se oporem consciência e razão, e postular que as leis da consciência são irracionais. Lasch detém-se aí reduzindo não apenas a moral à religião, mas também a razão à argumentação científica e finalmente às ciências positivas. Mas moral e ciência, que não se confundem, também não se excluem. É verdade que a ciência não pode nos fazer descobrir o bem e o mal e que a moral não deve ensinar o verdadeiro e o falso; os dois se unem, portanto, no apelo que fazem à humanidade universal. As argumentações da ciência não se impõem através da força das tradições ou das armas, mas porque todo ser humano pode alcançá-las através da força de seu próprio espírito. Os princípios da moral, por sua vez, como mostraram em nossa época um Habermas na Alemanha, um Marcel Conche na França, fundem-se com a possibilidade do diálogo humano, que implica, por seu turno, a idéia de universalidade.

Sinto-me, pois, um pouco mal ao dar-me conta das três vozes identificadas por Lasch, cujo ponto de partida pode ser a distinção de Max Weber entre três formas de legitimidade,

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a tradicional, a racional e a carismática (podemos voltar à frase de Pascal: "Há três meios de crer: a razão, o costume, a inspiração"). Clássico por clássico, prefiro outra distribuição, a de Montaigne, que distingue três atitudes com relação à verdade e aos valores: a dos niilistas (diríamos hoje), que renunciaram a procurá-los; a dos dogmáticos, que já os encontraram; e a dos exploradores inveterados, que perseguem sua busca, mesmo sabendo que ela poderá jamais terminar. A diferença entre estes últimos e os niilistas, particularmente numerosos em nossa época, é radical, já que diz respeito aos objetivos aos quais aspiramos. A diferença com relação aos dogmáticos é mais específica, porque caracteriza, antes de tudo, os meios empregados: os dogmáticos recebem seus valores da tradição (religiosa ou não) ou da

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inspiração do momento (as propostas de um chefe carismático ou a obra de um artista genial), e os que procuram a verdade e os valores os descobrem através da observação do mundo e do diálogo entre os homens.

O intelectual do terceiro tipo, nem dogmático nem niilista, tem relação ao mesmo tempo com a verdade e com os valores, como o deseja a definição de sua vocação; mais ainda, ele vive estas duas relações com harmonia, já que não crê nem nas verdades preestabelecidas nem nos valores que repousam num simples ato de fé. Este intelectual, ao contrário dos outros, não é um anacronismo.

A tentação da utopia

George Steiner relata em algum lugar a seguinte anedota. Decidindo dar-se conta (com um pouco de atraso) das revelações sobre o Gulag, Sartre teria dito: Suponhamos que tudo isso seja verdade. Apesar de tudo um ser humano normal pode ter duas reações. Uma é constatar: Eu bem que havia

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dito! Que bobagem haver esperado outra coisa! E a outra: Diabo! Aí está mais uma grande esperança da humanidade que se transformou em fumaça!

Estão aí, portanto, dois papéis opostos: o intelectual como mestre em lucidez e o intelectual como provedor de esperanças. A própria maneira como é formulado o contraste indica que as preferências de Sartre vão para a segunda posição. A atitude aqui defendida é a da utopia: a concepção de um estado ideal de humanidade e a tentativa de realizá-lo na terra (o comunismo é sua variante mais recente - mas não a única). As utopias, com certeza, sempre existiram; mas, de Platão a Rousseau, sua função era a de educar o espírito para permitir-lhe analisar o mundo, não fornecer planos aos tecnocratas de amanhã. A própria utopia é diferente, e o deslocamento parece operar-se no espaço de uma única geração entre Rousseau e Robespierre, assim que este último começa a aplicar aos fatos e aos indivíduos, em um primeiro momento vivos, o que não era, para ele, mais do que uma exploração da lógica do Estado (mas, obviamente, a utopia foi preparada há muito mais tempo, na tradição milenar cristã). A partir deste momento, os intelectuais julgaram-se obrigados a produzir sem cessar novas utopias, a abrir novas "janelas para a esperança", a descobrir os lugares "que fixam a imaginação".

É verdade, como queria Sartre, que o papel do intelectual é implantar a fé e inspirar o sacrifício por uma justa causa? A ambição inerente de toda utopia - instaurar o paraíso na terra-é, não digamos realizável, mas simplesmente desejável? Sem mesmo acreditar no pecado original inexpiável, não podemos dizer que alguma coisa na condição

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humana nos proíbe encontrar uma solução global para todos os nossos problemas, esperar melhoras além das parciais? Em todo o caso, deve-se condenar não apenas a implantação local do novo sonho, anteontem na Rússia, ontem na China, mas a própria forma da argumentação que nos leva em direção a estas esperanças

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- e que não nos propõe, de fato, nada além da escolha frustrante entre a renúncia ao longo do caminho e um resultado que tem por nome Terror.

A oposição, hoje banal na França, entre as figuras de Sartre e Raymond Aron volta aqui ao espírito. Temos muita tendência a assimilar a oposição entre política e ciência: de um lado o puro ideólogo, que decide finalmente tudo em função de suas escolhas afetivas, de outro o especialista, o sábio, que aprendeu a colocar-se na escuta dos fatos. No entanto, Aron é também um moralista. A moral dos dois, porém, não tem a mesma origem: Sartre tem, em última análise, a do crédulo que adere cegamente a um dogma; Aron professa uma moral racional, fundamentada sobre a imagem da universalidade humana e mantida pelo debate argumentado. É por essa razão que Sartre se preocupa pouco com os fatos, enquanto leválos em conta é o primeiro passo obrigatório na tentativa de Aron. No entanto, Aron não é um partidário da Realpolitik; o problema que ele procura constantemente resolver poderia até ser formulado da seguinte forma: como, depois de haver reconhecido que a política não é a moral, distinguir entre políticas aceitáveis e políticas inaceitáveis? O intelectual não tem de transformar-se em provedor de esperanças nem em defensor do bem soberano; mais ainda, em um mundo onde bem e mal absolutos são raros, ele ajuda a distinguir entre o melhor e o pior.

A insensatez dos intelectuais

Se nos debruçamos sobre a história de nosso século, é outra coisa, no entanto, o que observaremos. Nesses últimos anos, a atenção se virou para o caso Heidegger e vários de seus admiradores e discípulos que haviam aderido, antes ou durante a Segunda Guerra Mundial, aos ideais do nazismo.

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Eles não eram, evidentemente, os únicos; antes como depois da guerra, um número provavelmente superior de intelectuais devotou-se de corpo e alma a uma ou a outra variante do marxismo político: stalinismo, trotskismo, maoísmo, castrismo... Se acrescentamos a esta

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lista alguns casos isolados, como o apoio, ainda que efêmero, de Michel Foucault ao regime de Khomeiny, e somarmos a ela diferentes tendências, constatamos que, embora não sejam as únicas a ter existido, representam grande parte do conjunto dos intelectuais europeus.

Tal é o enigma: agora que depois de duzentos anos, os países ocidentais estão engajados no caminho da democracia, caminho escolhido majoritariamente pelo conjunto da população, os intelectuais, que são em princípio o segmento mais esclarecido da população, optaram na maioria pelos regimes violentos e tirânicos. Se o voto tivesse sido reservado nestes países apenas aos intelectuais, viveríamos atualmente em um regime totalitário - e não teríamos necessidade de votar! Essa escolha voluntária da servidão parece-me, no entanto, mais estranha, já que sei quanto a vida dos intelectuais neste regime pode ser dolorosa e frustrante. Como é possível, perguntei-me uma vez na França, que metade da população seja politicamente mais sábia que sua elite? Trata-se de desvario individual ou é preciso procurar nele uma explicação global para razões, por assim dizer, estruturais? Por que os intelectuais se tornam culpados de tamanha complacência diante dos regimes totalitários? Eles não podem sequer ser mais idiotas e problemáticos que o mais comum dos mortais!

Várias interpretações do enigma já foram propostas. George Orwell colocou-se a questão nos anos quarenta. Ele também opunha intelectuais e pessoas comuns, preferindo estas aos outros. Na Inglaterra, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, as pessoas simples tinham apreço à liberdade, acreditavam no bem e no mal e respeitavam a inteligência; os

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intelectuais rápido buscaram desmascarar essas "ficções metafísicas". O resultado é que estes últimos foram complacentes diante do fascismo e do stalinismo, enquanto as pessoas comuns sabiam que era preciso combater Hitler.

A causa deve ser procurada, sugere Orwell, no próprio fato de os intelectuais serem, no plano espiritual, mais dotados que a média. Eles tentam chegar ao poder unicamente pela simples força de suas capacidades intelectuais; mas a democracia é menos propícia a este fim do que a tirania, que oferece a possibilidade de o intelectual tornar-se conselheiro do mestre (a deplorável experiência de Platão junto ao tirano de Siracusa, como de outros filósofos que experimentaram este papel depois, não parece desencorajar ninguém). As simpatias espontâneas do intelectual vão para o regime aristocrático, não para a democracia. Além do mais, preocupados com as dificuldades inerentes a seu próprio trabalho, eles têm apenas vaga idéia sobre tudo o que lhe é exterior. Segundo Orwell, os únicos que podem cantar "as mortes necessárias" (como fez o poeta Auden nos anos trinta) são os que jamais viram um cadáver de perto. "Isso só pode ter sido escrito por um personagem para quem a morte é essencialmente uma palavra" (podemos contestar este último ponto). Se ele pensa o contrário, não é por ser um intelectual melhor, mas porque também foi policial, vagabundo ou soldado.

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Podemos evocar nesse contexto as reflexões sugestivas do filósofo alemão Karl Lõwith, formuladas no livro Minha vida na Alemanha antes e depois de 1933. O autor relata sua experiência de discípulo de Heidegger que enfrenta o fato de, além do mais, ser judeu. Como verdadeiro filósofo, Lõwith é particularmente atento às implicações políticas dos ideais filosóficos - mesmo os que lhe eram mais caros. Ele descobriu que o culto do "viver perigosamente" conduz "a numerosos desvios, e no entanto, diretamente, de Nietzsche às frases heróicas de Goebbels". Ele faz ver como os poetas e

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escritores como Spengler, Stefan George ou Gundolf prepararam o terreno para o triunfo do fascismo - ainda que, individualmente, estes mesmos autores tivessem repulsa à vulgaridade de Hitler e não aceitassem apoiá-lo. Lõwith recorda que o que os alemães perderam nesses anos sombrios foi, entre outras coisas, a tradição, que busca dissociar as idéias abstratas dos fatos particulares. Como dizem os sutis filósofos, as palavras podem remeter às coisas e não somente a outras palavras. Lõwith sujeitou-se à difícil humilhação que consiste em reconhecer que ele havia, em sua juventude filosófica, contribuído para a "desumanização do homem" contribuído para destruir aquilo a que ele iria procurar agarrar-se mais tarde com todas as forças. Uma segunda explicação, que não é incompatível com a primeira, trataria de um dos princípios fundamentais da sociedade democrática, a saber, a autonomia: o indivíduo como a coletividade têm direito de exigir que suas normas sejam assumidas por eles mais do que lhes serem impostas do exterior. Nesse contexto, a crítica às normas existentes é uma função essencial da sociedade; os intelectuais estão identificados com esta função. Da atitude crítica, conseqüência do próprio exercício da razão, eles fazem uma questão de princípio, qualquer que seja a ordem reinante; vivendo em democracia, estão prontos para abraçar o credo totalitário, já que lhes permite uma crítica radical do status quo. Deste ponto de vista, o heideggerianismo hoje vem simplesmente substituir um marxismo sufocado; é por esta razão que ele pode ser, de agora em diante, de esquerda.

Se seguirmos esta interpretação desenvolvida por Luc Ferry e Alain Renaut no livro Heidegger et les modernes, poderemos ver também de onde virá a solução do problema: os intelectuais não têm de renunciar à sua função crítica, mas podem exercê-la em nome da modernidade, em vez de se colocarem atrás dela e rejeitá-la em bloco. O projeto democrático

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não está plenamente realizado e está com freqüência muito comprometido com alianças duvidosas; podemos, então, criticar os países democráticos a partir de seus próprios ideais.

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Podemos acrescentar a estas duas interpretações uma terceira. Desde o desaparecimento das normas exteriores, o modelo de arte parece ter adquirido entre nós uma importância crucial, sendo a própria arte pensada em termos de autonomia (a obra é bela por si mesma, não porque ilustra uma verdade ou uma lição moral). Do mesmo modo, os intelectuais, os escritores, os artistas começaram a aplicar sistematicamente critérios estéticos ao domínio da ética e da política (é o reino da imaginação, segundo Lasch). O credo romântico, longamente analisado por Paul Bénichou, diz que a modernidade assiste à "sagração do escritor". Diremos então que os poetas serão os "legisladores do universo" (Shelley ou que "a beleza salvará o mundo" (Dostoiévski), ou que ` estética é a mãe da ética" (Joseph Brodsky). Já há muito tempo, não tomamos mais esta pretensão ao pé da letra; no entanto, seu espírito continua a agir sobre nós e em nós. Não raro, no século XX, que peçamos aos projetos políticos, com às obras de arte, que sejam perturbadores, radicalmente inovadores, assegurando a intensidade da experiência.

Que beleza, qual estética - já que existe mais de uma? Durante três mil anos os poetas, de Homero a Junger e mais além, cantaram a beleza da guerra: devo crer que isso é também um bem? Já há alguns séculos, a literatura ocidental se embriaga da beleza da violência: é preciso que eu a aceite porque ela conduz a versos ou a filmes magníficos? Mais perto de nós, escritores europeus dos anos vinte e trinta, justamente, clamaram com suas próprias vozes pelo fascismo e pela regeneração de uma cultura que eles julgavam decadente; os poetas russos do início do século XX glorificaram a violência revolucionária, cantaram a beleza e a destruição. A guerra é talvez mais turbilhão da revolução que a ???monotoniica, e muitos artistas sucumbiram a esta sedução; mesmo que eu aprecie também as belaca prefiro a paz - e não sou o único. " feia", Nietzsche, e, um

século depois, só pte aquiescer. Preferi mos, portanto, coarga verdade a nos deixar enganar pela bela mentudácia de um pensamento cortado de suas ligações com o mundo real não é forçosamente um trunfo neste domínio e não deve ser bom viver na República de Platão: na vida pública, apenas a moderação é virtude, nunca o extremismo.

A substituição da moral e da política pela estética é inadmissível. "Não temos nada mais a censurar aos campos da morte além de sua feiúra?", pergunta-se com justa razão André Comte-Sponville. A moral é legitimada pela universalidade, a política visa ao bem comum do grupo, não podemos substituir suas referências à beleza ou à paixão. Em lugar de defuntos, nobres verdades devem apresentar não a beleza, mas a moral universal, o consenso resultante do diálogo, o amor aos indivíduos.

Seduzidos pela beleza das idéias, os intelectuais decidem muito freqüentemente que as realidades correspondentes a estes ideais devem ser belas, elas também - até o dia em que se encontram frente a frente com o fascismo ou o comunismo, reais. Quanto de insensatez seria poupada (e quantas toneladas de papel!) se eles aceitassem

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seguir, por princípio, o caminho inverso e aderir a uma convicção apenas quando estivessem prontos para assumir suas conseqüências em suas próprias vidas! Alguns dias, todos os sonhos são permitidos.

8 Censura e liberdade de expressão

Saí muito decepcionado da exposição "Censuras", que se deu no Beaubourg há alguns anos. Isso me surpreendeu: acreditei que meu passado totalitário houvesse feito de mim um defensor incondicional da liberdade de expressão. Não pude, no entanto, impedir-me de achar que o amálgama havia presidido a organização desta exposição; que a auto-satisfação, e não a reflexão, havia sido o seu objetivo. Tudo se misturava ali: censura do imaginário e censura dos fatos, censura de textos e censura de imagens (os livros infantis de Agnès Rosenstiehl e Lei1a Sebbar estavam ao lado da New Look e da Penthouse em uma vitrine), proibições para as crianças e proibições para os adultos. Os opositores da censura adotaram, em suma, a mesma atitude de assimilação dos próprios censores: a denúncia das torturas na Argélia é tão nobre (ou ignóbil) quanto a pornografia. A conclusão que se impunha era que o passado era um oceano de obscurantismo e nós deveríamos nos felicitar por ter saído dele. Belas frases incitavam o espectador à exaltação. A liberdade

154 Tzvetan Todorov ??? não se sufoca jamais: Diderot. Apesar da Inquisição, a terra gira: Galileu. O catálogo da exposição anunciava o to através da voz de Robert Badinter, autor do prefácio: a censura é sempre e apenas "a expressão da intolerância e do medo

o combate do "amante da ordem e da uniformidade" ao "pensamento"; viva "a tolerância, que dá ao pensamento do outro plena liberdade".

A mesma orgia de bons sentimentos e de amálgamas duvidosas já havia acontecido alguns meses antes, por ocasião da "exposição Pasqua", consagrada pelo ministro do interior da época à violência e à pornografia. O jornal Liberation havia largamente desfrutado da ocasião para nos anunciar que liberdades essenciais do cidadão se encontravam ameaçada. Felizmente a censura condenou (em 1857) As flores do mal, isso prova a injustiça da censura que hoje surpreende L'Echo de savanas, sugeria Daniel Filipacchi, cuja sociedade public este jornal e outros do mesmo gênero (já que, na verdade não é o talento o que eles têm em comum com Baudelair mas apenas a misoginia).

O vice-presidente da mesma sociedade, Frank Ténot, iria mais longe: perseguir os autores pornográficos atualmente, disse ele, é como oprimir os judeus antigamente (Pasq) fazia

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pensarem Darquier de Pellepoix, o comissário dos assuntos judeus no regime de Pétain): tanto uns como outros são pobres vítimas sem defesa (não posso ver em que consistiria o equivalente entre os judeus e os benefícios suculentos que retiram os editores dessas revistas de grande tiragem) . Jack Lang, ministro socialista da Cultura na ocasião, evocou Rabelais, a catedral de Bourges e Picasso para justificar as práticas da imprensa Filipacchi (célebre por sua ação desinteressada em favor da arte pura e da estética de vanguarda), esquecendo que pode haver diferença entre arte e comércio: se a New Look passa atualmente para imagens mais soft, não é em nome das exigências da pesquisa artística,

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mas porque o estudo de mercado mostra que isso vende melhor.

Liberdade e poder

Uma imagem, no entanto, na exposição "Censuras" incitava a colocar-se ao menos uma pergunta. Ela mostrava jovens queimando jornais e cartazes da OEA, durante uma manifestação em Paris, em 1962. O estranho é que ela figurava (estranha mistura) numa série de imagens mostrando livros queimados, desde os suplícios do fogo da Inquisição até os incêndios públicos organizados pelos nazistas. No entanto, a significação desta imagem não poderia ser a mesma, já que queimar, aqui, era libertar-se, não oprimir. O catálogo da exposição apresentava, de resto, uma série de fotos semelhantes: de homens que, em Budapeste, em 1965, queimavam os livros de Lenin e os retratos de Stalin, em meio a algumas bandeiras soviéticas. De que lado, aqui, estará aquele que, para retomar a fórmula de Badinter, não dá ao pensamento do Outro sua plena liberdade? Stalin era um Outro para os trabalhadores húngaros?

"Qual é este suposto poder dos censores da escrita, campo do imaginário, sobre a passagem à realidade?", afirmava - mais do que interrogava - o texto sobre uma das vitrines da exposição. Mas os censores não são os únicos a supor este poder: todos os que escrevemos o fazemos, ao menos nos momentos de euforia, e muitos de nossos leitores também; mais ainda, são as múltiplas passagens entre imaginário e realidade. A palavra é ação e como tal pode servir ao melhor ou ao pior. Com o nome de propaganda (de Estado ou de partido), ela pode conduzir à violência e à escravidão; com o nome de entertainment (diversão) ou de publicidade, pode produzir o embrutecimento. Defender-se dessas ações

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é legítimo, mesmo que o fogo não seja o melhor meio: eis aí o que explica as fogueiras nas ruas de Budapeste e nas de Paris.

Como poderia ser de outra forma? Apenas um analfabeto político ou um demagogo pode pretender que a maior das liberdades seja princípio suficiente para reger a vida em sociedade. já que vivemos em comum, as ações, mesmo as solitárias, têm efeito sobre os outros; se nada vem regulamentar esta vida, apenas contará a força. Mas a liberdade do mais forte significa a ausência de liberdade para os mais fracos: é sempre a história da raposa livre no galinheiro. A liberdade para os violadores equivale à submissão dos violados. Ou, para voltar às diversas formas de expressão: se meu vizinho tem a liberdade irrepreensível de me caluniar, eu não tenho mais a de sair à rua sem enrubescer. Se os anunciantes das redes de prostituição por minitel' têm a liberdade de cobrir os muros de minha cidade com cartazes mostrando mulheres amarradas ou simplesmente reduzidas a objeto de consumo, eu não tenho mais a liberdade de sair para passear sem vê-las ou de impedir meus filhos de interiorizar estas imagens. A democracia implica a existência de uma vontade geral, que limita a liberdade de cada um fazer o que quiser desde que isso não diga respeito aos outros; é absurdo estabelecer este limite no princípio da ação exclusiva.

É fechar-se no mal-entendido afirmar: a reprovação de alguns textos ou imagens é, por si mesma, reacionária e de "direita". Uma jornalista de L'Evénement du jeudi imagina estas reações à "exposição Pasqua": "1) passar por mulher de esquerda, dizer que é escandaloso, chocante, e que irei neste momento assinar uma petição sanguinolenta pelos direitos do homem; 2) esforçar-me, aceitar a dose de direita que dorme em mim, admitir que o que vi é repugnante." Que estranho presente oferecido à "direita": a defesa exclusiva dos valores

'Pequeno terminal de consulta de bancos de dados em vídeo. (N. da T.)

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democráticos! Estar do lado do direito contra a força (no caso, a dos milhões do grupo Filipacchi) não é um valor digno de ser defendido? Quanto aos direitos do homem (e podemos supor, das mulheres): defendê-los protestando contra o ultraje a que estes últimos se submetem cotidianamente ou assinando petições para que os marchands possam ter "liberdade" de encher o bolso à custa deles?

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Um episódio imprevisto veio perturbar as belas certezas dos organizadores da exposição contra a censura: um grupo de negacionistas (aqueles que negam a existência das câmaras de gás e da "solução final" com relação aos judeus) veio colar seus cartazes e folhetos nas próprias paredes da exposição. Longe de divertir-se com esta irrupção da marginalidade, com esta manifestação espontânea do pensamento do Outro, o diretor da biblioteca, auxiliado por seu pessoal e por alguns visitantes que foram admirar a exposição, apressou-se em arrancar os cartazes; um tumulto se seguiu e foi aplacado em meio a murmúrios, não como havia sugerido Badinter, em nome da intolerância e do medo, mas por incitação ao ódio racial. Esta reação (que os organizadores da exposição não haviam previsto) parece-me, no entanto, muito natural: estes folhetos e cartazes constituem uma ação (assim como fazem outras inumeráveis palavras), e é normal que seja combatida. Não sou, porém, a favor de que se censurem estas publicações, porque acredito que já não produzem o "efeito Baudelaire" (proibido, então é bom); parece que a coisa já começou.

A liberdade dos artistas

Philip Roth observa, em uma auto-entrevista, que as pessoas no Ocidente invejam secretamente as perseguições sofridas pelos escritores no Leste europeu, "como se, na ausência de um contexto autoritário, as possibilidades da

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imaginação fossem diminuídas e a seriedade da literatura contestável". Ele acrescenta: "Uma ameaça plana sobre a América: é a banalização insidiosa de todas as coisas em uma sociedade onde não podemos verdadeiramente dizer que a liberdade de expressão esteja entravada." Por seu lado, Kasimierz Brandys, escritor polonês que mora em Paris, declara: "A opressão torna louco, mas a liberdade torna idiota." De que se trata? A liberdade de expressão teria outra deformidade secreta?

Mesmo deixando de lado o incitar - que toda proibição representa - a exprimir-se por metáforas e alegorias, por subentendidos e alusões (a perseguição afina a arte de escrever, dizia Leo Strauss), vemos de que ela se origina. Nas democracias ocidentais, os escritores são, certamente, livres para escrever o que quiserem - mas não é certo que este fato deva provocar alegria sem reservas: ele é a conseqüência de um desinteresse da sociedade pelo que eles escrevem. O indivíduo adquiriu autonomia; o inverso desta aquisição é que ele não conta mais para a sociedade e ela não o leva em consideração; ele pode dizer o que quiser, ninguém o escuta. Em um país totalitário, em contrapartida, a própria existência da censura era a prova de que o que diziam os escritores importava; de resto, eles gozavam de uma popularidade incomparável (comparação entre as tiragens de um livro de poesia aqui e lá haveria de tornar melancólico o poeta ocidental com a maior avidez de liberdade).

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Olhemos a situação um pouco mais de perto. Nos países do Leste, o escritor poderia escolher entre três papéis, com um bom número de posições intermediárias entre eles.

Havia, primeiramente, o pólo oficial. A relação entre o Estado e o escritor era muito forte, mas imposta pelo Estado. Este contribuía muito (os escritores eram privilegiados: seus honorários eram altos, desfrutavam dos benefícios de trabalhos fáceis e de casas de repouso particulares, seus chefes de

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Estado adoravam admiti-los em sua intimidade e suas palavras eram ouvidas), mas também pedia muito em contrapartida (a obrigação não apenas de não dizer o que não deveria, mas, pior, de dizer o que fosse preciso.)

O segundo pólo era o da dissidência; a relação com o mundo ao redor era ainda muito forte, mas ele já não se ligava ao Estado, e sim com a sociedade civil, invisível e, no entanto, real. Assim, nenhuma recompensa oficial, mas o sentimento muito reconfortante de ter se tornado a voz do povo.

Enfim, o terceiro papel, o do artista puro: não mais do que o dissidente, ele não glorificava o Estado; mas, como o escritor oficial, evitava denegri-lo: não era nestes termos que ele se definia. Escrevia por si mesmo, pela arte e pela eternidade; na prática, falava de preferência do passado e (ou) do mundo privado. Era, de fato, marginalizado, mas a longo prazo a honestidade reembolsa: ele gozava da admiração geral. De minha parte, eu era ainda muito jovem para representar qualquer papel que fosse, na época em que vivi na Bulgária; penso, entretanto, que o terceiro caminho, o do escritor retirado, seria o que mais teria me seduzido.

Diante desse "triângulo", a situação no Ocidente não se reduz da mesma forma a um único ponto, aquele do indivíduo isolado que escreve sem que ninguém se preocupe com isso. É verdade que, já que é apenas a economia de mercado que reina sobre a cultura, a sociedade exprime muito imperfeitamente suas exigências com relação aos artistas. Este não é, no entanto, o caso na França e, de resto, os países ocidentais não estão tão desagregados nem desprovidos de valores comuns, como gostam de dizer os niilistas modernos. Estes valores são, contudo, de uma espécie particular. Já que nas ideocracias (designamos por este termo ao mesmo tempo as antigas teocracias e os modernos Estados totalitários) reina a meritocracia: a aclamação é única, o erro múltiplo, dá-se o contrário nas democracias. Aqui, apenas o crime é objeto de

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consenso (é o que as leis reprovam); quanto ao bem, deixamos cada indivíduo livre procurá-lo sozinho: ele o encontra no álcool ou na heroína, que não produz outra medida. O que está codificado é, pois, a forma, não a substância: os limites do reino do privado. Na verdade, não proibimos nenhuma doutrina por causa de seu conteúdo, exceto as que tornaram impossível a livre circulação das doutrinas, as que substituíram o debate pela violência. Essas devem ser combatidas: se a República de Weimar tivesse feito isso, teria podido impedir a escalada do nazismo.

Nas democracias ocidentais, portanto, o escritor, não mais do que os outros membros da sociedade, não é um indivíduo completamente isolado e por isso irresponsável; vive na tensão entre estes dois pólos, a solidão (necessária à própria prática de sua profissão) e a solidariedade (dada sua necessidade de dirigir-se aos outros); esta linha de tensão é preferível ao "triângulo" do Leste (vale mais que o Estado seja uma emanação da sociedade do que estarem conflito permanente com ela). Algumas noites, diz meu amigo Adam Zagajewski, dá-se verdadeiro dilema: escutar a BBC ou Brahms? Ou, se pensamos na ação: participar de um projeto político ou escrever uma sinfonia?

É provavelmente a alternância dos dois, mais do que a exclusão de um ou outro, que é ainda mais satisfatória. Sentir-me membro de minha comunidade me libera de minhas ilusões egocêntricas; mergulhar em mim mesmo e em minha arte me permite desembaraçar-me de clichês que circulam em torno de mim. A alternância pode também ser ditada pelo ritmo da história. Dostoiévski imaginava que no dia seguinte ao tremor de terra em Lisboa, em meio aos escombros ainda esfumaçantes, um poeta escreveria um poema sem palavras senão as que reproduzissem gorjeios de rouxinol e murmúrios de riacho; e, mais ainda, sem utilizar um verbo. Ele previa para este poeta um destino pouco invejável: ser executado

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pelos habitantes da cidade em praça pública; não chegou a culpá-los por isso. Isso não impediu Dostoiévski de admirar o poema em questão: felizmente, a terra não treme todos os dias, mesmo em Lisboa.

Liberdade e responsabilidade

Uma liberdade maior ainda, uma liberdade total é desejável? Se os escritores pedissem para poder dizer tudo, em todas as circunstâncias, isso significaria reivindicar para suas palavras uma irresponsabilidade total, quer dizer, aceitariam que a sociedade não lhes dá nenhum valor. Mas, sabemos bem, na medida em que os escritores se tornam os

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"intelectuais", que se sentem preocupados com o futuro do bem público, aspiram a falar a seus concidadãos e não apenas a deixar-se admirar por eles. O que significa que o direito de liberdade deve ser equilibrado por um dever de responsabilidade. Nada deve entravar a busca da verdade, certamente, mas a palavra pública é ação e incitação à ação; como tal ela restabelece, assim como todas as outras ações, as leis da cidade.

Nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial e sobretudo durante a guerra, Simone Weil exprimiu-se em várias oportunidades sobre o sujeito, assumindo uma posição extrema, que tem o mérito, por esta razão precisamente, de ser particularmente claro. No início do pequeno volume intitulado EEnracinement, ela interroga-se para saber se a idéia de censura não contradiz muito abertamente o princípio de liberdade de expressão, ao qual aderem os sujeitos dos Estados modernos. Ela responde, em resumo: não podemos ter ao mesmo tempo a manteiga e o dinheiro da manteiga. É impossível para os escritores reivindicar o papel de senhores da consciência, preconizar a "sagração do escritor", e ao mesmo tempo se prevalecer da irresponsabilidade do escritor, que

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tem o direito de tudo dizer simplesmente porque faz viver

nosso imaginário. Na mesma época, Simone Weil envia uma carta ao Cahiers du Sud (publicada apenas após a guerra), na qual chama a atenção para a responsabilidade dos surrealistas, dadaístas e de outros escritores de antes da guerra no desmoronamento da França diante da ameaça hitleriana. Eis aqui um trecho significativo: "Eu creio na responsabilidade dos escritores da época que acabam de submergir ao mal de nosso tempo. O caráter essencial da primeira metade do século XX é o enfra quecimento e quase desaparecimento da noção de valor. O dadaísmo, o surrealismo exprimiram a embriaguez da per missão total, embriaguez onde mergulha o espírito quando, rejeitando toda consideração de valor, ele se entrega ao ime diato. Os escritores não têm de ser professores de moral, cer tamente, mas têm de exprimir a condição humana, mas nada é tão essencial à vida humana, para todos os homens e todas as mulheres e em todos os instantes, do que o bem e o mal. Quando a literatura se torna inflexivelmente indiferente à oposição do bem e do mal, trai sua função e não pode preten der a excelência."

Em EEnracinement, Simone Weil formula uma exigência comparável a respeito de Gide. "Sem nenhuma dúvida, por exemplo, Gide sempre soube que livros como Alimentos terrestres ou Os subterrâneos do Vaticano tiveram influência sobre a conduta prática da vida de centenas de jovens, e ele ficou orgulhoso disso. Não há desde então nenhum motivo para

colocar livros como estes atrás da barreira intocável da arte pela arte nem para prender um menino que atira alguém para fora de um trem em movimento." A sugestão de que deve se considerar um escritor responsável pelo ato de outro parece-me excessiva:

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Simone Weil raciocina como se o menino em questão, que cometeu um crime, houvesse sido inteiramente determinado por sua leitura

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de Gide, como se ele não dispusesse de nenhuma vontade própria nem de nenhuma liberdade. No plano legal, há ali uma solução de continuidade que deve se manter, parece-me, entre a expressão de uma fantasia e a realização de um crime. Isso não quer dizer que em outro plano, o do debate público e não dos tribunais de justiça, não devamos nos interrogar para saber se tal obra motivou tal ato criminoso (numerosos exemplos permitem estabelecer este tipo de ligação). Não é preciso censurar estas obras nem levar seus autores à justiça, mas não é ilegítimo exprimir publicamente desaprovação, em nome do bem comum da sociedade onde vivemos, e recusar-lhes, por exemplo, um financiamento do Estado. Isso não significa em nada ditar a um artista o conteúdo de suas obras nem transformar a arte em propaganda de Estado; significa apenas reconhecer que certos valores, mesmos veiculados pelas obras de arte, podem, em certas circunstâncias, servir para o mal. Uma vez mais o artista não saberá reivindicar ao mesmo tempo sua ???Ao ndência total e a solicitude benevolente da

m pe comunidade.

A responsabilidade - moral e não menos legal - dos escritores e dos artistas é a mesma de qualquer cidadão? Encontramos um julgamento decidido a esse respeito no ensaio que consagrou Hannah Arendt ao destino político de Bertolt Brecht. Ela refletiu sobre os deveres do escritor, no caso no seio de um regime comunista. Arendt começa por citar uma frase de Goethe que dá de certa forma aos artistas o direito de ir um pouco mais longe que o comum dos mortais: "Os poetas jamais pecam gravemente"; ela a retoma escrevendo: "Podemos conceder aos poetas certa liberdade, uma liberdade que não gostaríamos nem de longe de conceder-nos uns aos outros no curso normal dos acontecimentos, digamos, o direito de se enganar um pouco mais." Em um segundo momento, no entanto, voltando aos elementos da situação particular de Brecht, ela sugere que, dando mais liberdade aos escritores,

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deveremos exigir mais deles. E o faz para inverter um ditado latino: o que é permitido ao trabalhador não é a Júpiter. Brecht é mais culpado de complacência com relação ao poder do que qualquer cidadão comum da Alemanha do Leste. É precisamente na medida em que concedemos maior autoridade ao poeta que não podemos perdoá-lo como perdoaríamos ao comum dos mortais. Esta é a razão, parece-me, pela qual de Gaulle recusou o perdão a

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Brasillach, acusado de traição no dia seguinte ao da Libertação: "Pecado de intelectual", pecado particularmente grave.

É preciso acrescentar aqui (outra distinção ausente em Simone Weil) que não podemos julgar da mesma maneira os enunciados formulados em uma democracia e os formulados em um Estado totalitário. Os propósitos anti-semitas de Brasillach ou de seus companheiros de luta continuariam a ser uma opinião entre outras, no primeiro caso (teríamos podido, a rigor, fazer com que o condenassem por incitação ao ódio); eles se transformam, no segundo, em delação que possibilita a morte: a pena deve ser mais severa.

O caso Rushdie: os inimigos e os amigos

O homem desenraizado 165

As violentas reações provocadas por Os versos satânicos, de Salman Rushdie, estão situadas, em um primeiro momento, no quadro deste mesmo debate: a favor ou contra a liberdade de expressão. Lembremo-nos dos fatos: proibido na índia, no Paquistão e na Arábia Saudita pouco depois de sua publicação na Inglaterra (setembro de 1988), o romance de Rushdie atraiu a atenção mundial depois da condenação à morte do autor e de seu editor decretada pelo aiatolá Khomeiny, em fevereiro de 1989; condenação acompanhada, na grande tradição da caça aos fora-da-lei, de uma recompensa de três milhões de dólares. A proibição foi então estendida a outros países com grande população muçulmana (Quênia, Senegal etc.).

Na França a condenação recebeu o apoio de uma pequena parcela da população muçulmana e a "compreensão" de várias personalidades representativas, dentre as quais Jacques Chirac, na época prefeito de Paris; ele declarou não ter "nenhuma estima por Rushdie ou pelas pessoas que utilizam a blasfêmia para ganhar dinheiro". O cardeal Decourtray, então presidente da Confederação dos Bispos da França, deixou claro que reservava sua "solidariedade a todos os que vivem na dignidade e prece a esta ofensa" infligida por Rushdie, mais do que ao próprio escritor. Mohamed Arkoun, professor da Sorbonne, e ocasionalmente em Princeton, declarou-se escandalizado com as indignações suscitadas pela fatwa de Khomeiny, já que elas "repousam num postulado ideológico absolutamente inaceitável": defender atualmente os direitos do homem é "repetir o discurso colonial, que legitima a dominação sobre outros povos e culturas através da exportação da civilização elaborada na Europa".

O que dizer destas declarações? Chirac e Decourtray comportaram-se como políticos: eles não queriam se afastar da população muçulmana da França; preocuparam-se com o efeito de suas palavras, não com sua verdade. Aparentemente nunca abriram o livro de Rushdie; seus conselheiros também não, o que é mais grave (não exigimos dos políticos que

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saibam fazer crítica de romances, mas sim que saibam escolher os colaboradores). Que contradigam o que eles mesmos proclamam como convicção íntima, a defesa das liberdades individuais em um caso, a caridade cristã em outro, é também muito flagrante. O próprio Arkoun não procura desculpas políticas: sua posição é, disse ele na mesma entrevista, "científica" (o termo foi usado quatro vezes) e mais especificamente "semiológica" (seis vezes). Mas o que tem de científico

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o argumento segundo o qual uma doutrina não pode ser universal por ter nascido em determinado lugar, ou a afirma ção de que os direitos do homem devem ser pensados "no quadro mais amplo dos direitos de Deus"?

A pena de morte é uma barbárie. A condenação à morte de um cidadão estrangeiro é ilegal. O apelo à morte - porque é disso que se trata - é um crime. Khomeiny, que pretende purificar os costumes através do sangue, não é (não era) menos criminoso do que Stalin, que enviava seus assassinos aos quatro cantos do mundo para eliminar os inimigos ideo lógicos ou pessoais: a teocracia à antiga, quando era animada por um espirito conquistador, é comparável à ideologia mo derna ou ao totalitarismo. É verdade que o poder de destrui ção de que dispõem estes tiranos não é o mesmo (ainda que não se deva subestimar os aiatolás); mas, como observa Rusdie em seu romance, o fanatismo não depende da quantidade de poder de que dispomos.

Do lado dos amigos, só encontramos um único argumento: o direito à liberdade de expressão. O ataque a este direito representa "o mal absoluto" para François Mitterrand, então presidente da República; seu ministro da Cultura, Jack Lang, apressa-se a acrescentar: "É normal que todo livro tenha o direito de ser publicado e difundido." Os autores signatários de diversas petições em apoio a Rushdie defendem ainda a liberdade de opinião, o direito de expressão. O próprio Rushdie, na carta que endereçou a Rajiv Gandhi depois da proibição do livro na índia, exigiu o "direito à livre expres são".

No interior do livro, esta posição encontra-se igualmente representada; não é no entanto certo que ela seja ali considerada a voz da sabedoria. É o escritor Baal que a assume declarando: "Não reconheço nenhuma jurisdição além de minha musa"; o que não impede que os dirigentes de sua cidade cortem-lhe a cabeça... A medida é certamente excessiva; é

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verdade, no entanto, que os poetas - segundo o que diz Baal ou, sob outros céus, Baudelaire - não estão miraculosamente isentos da jurisdição comum. Nenhuma lei pode admitir o

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princípio da liberdade sem o da responsabilidade: eu tenho o direito de caluniar meu vizinho, mas ele tem o direito de pedir minha condenação por difamação (nós julgamos, por exemplo, que a fatwa de Khomeiny é ilegal, e temos razão de fazê-lo). Um episódio do caso veio ilustrar este estado de coisas,

um pouco como a intervenção dos negacionistas em Beaubourg: no Salão do Livro em Genebra, em abril de 1989,

o livro de Rushdie não foi retirado das prateleiras, apesar dos protestos dos iranianos; estes haviam decidido expor, por sua vez, os Protocolos dos sábios de Sião, o célebre falso anti-semita.

No entanto, a direção do Salão os pressionou a retirá-lo: os Protocolos estavam proibidos ali desde 1988! Não é pois verdadeiro que temos o direito de divulgar qualquer livro.

Na mesma carta a Gandhi, Rushdie insiste na diferença entre ficção e história: não devemos, então, ao menos dar toda a liberdade à imaginação? Sobre este ponto, ainda, o romance pressentia uma posição mais sutil. É Billy Battuta, o produtor pouco escrupuloso de um filme sobre a vida do Profeta, quem expressa esta proposição: "A ficção é a ficção; os fatos são os fatos." Certamente, trata-se de estabelecer a verdade histórica, ou a própria ficção está também engajada em uma pesquisa da verdade - apesar de ela ser de natureza diferente; Rushdie tem mais razão quando escreve: "Foi à literatura que recorri para explorar os pontos mais altos e mais baixos da sociedade humana e do espírito humano."

A literatura é, sim, uma exploração do mundo; é preciso ter má-fé para afirmar que não há nada em comum entre a religião apresentada em Os versos satânicos e o Islã histórico, ou entre o profeta Mahound e Maomé, ou entre os versos imaginários e os do Alcorão. De qualquer forma, a distinção

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ficção-história diz respeito à relação do texto com o mundo, já que é a ação do texto sobre seus leitores que está em jogo na blasfêmia ou na difamação: os Protocolos são, se desejarmos, ficção; se os proibimos, não é porque o que dizem é falso (este é o caso de toda ficção), mas porque fazem o mal.

Desde a publicação do livro de Rushdie, dezenas de pes soas morreram, na índia e no Paquistão, em manifestações dirigidas contra ele. Todos se unem para lamentar

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estes mortos. Teria sido preciso suspender a publicação para evitá-las? A liberdade de expressão vale, no caso, cinqüenta vidas? A posição de Naguib Mahfouz, o escritor egípcio prêmio Nobel de 1988, parece-me aqui digna de atenção. Ele comenta a fatwa nestes termos: "A instigação à morte é um crime e o imã Khomeiny deveria ser punido por incitar os muçulmanos a matar Rushdie"; mas em dezembro de 1988 ele interrompeu, por sua própria iniciativa, a publicação em crônicas de seu romance Os filhos da medina, no qual ele punha em cena Deus no meio de um bando de três profetas representados como chefes de gangue... Rushdie estaria em débito ao fazer o mes mo?

A questão merece ser colocada, se quisermos admitir que o escritor deve não apenas gozar de liberdade mas também assumir responsabilidades. A resposta de minha parte será negativa, pois que li o livro. O magnífico romance de Rushdie não é uma ofensa aos devotos nem uma incitação à violência. É - entre outras coisas - uma reinterpretação pessoal da história do Islã, rica em nuanças e ambigüidades, que só deveria conduzir à interrogação e à meditação. Se houve mortes em Islamabad ou em Bombaim, não é o livro de Rushdie que se deve culpar, mas o fanatismo e o ódio dos instigadores destas manifestações. Se eles tivessem lido o livro, não teriam promovido as manifestações; duvido que tenha sido este o caso. De um ponto de vista imparcial, Rushdie teve mil vezes razão de publicar o livro. Não tenho certeza, em compensação,

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de que as autoridades indianas e paquistanesas cometeram um erro ao proibir (provisoriamente) sua divulgação: elas provavelmente impediram, desta forma, outras mortes.

Os versos satânicos

os versos satânicos fizeram ganhar vida o confronto do um e do múltiplo, da comunidade, onde a verdade coletiva é obrigatória para o indivíduo, e da sociedade, onde cada um pode buscar a verdade à sua maneira, da religião monolitica e da literatura infinitamente variada, dos profetas e dos poetas, do Livro e dos livros, dos militantes armados e do homem desarmado. A certa altura Rushdie tomou a palavra - para nos dizer que se recusa a pronunciar-se abertamente sobre as razões de seu conflito. Esta não é, na verdade, uma obrigação do romancista, que representa em vez de afirmar. Seria ingênuo, no entanto, insistir nesta declaração de neutralidade. Pela sua própria existência, este romance milita em favor dos romances, da pluralidade, do direito do indivíduo de se questionar sobre suas tradições. Não é para espantar, desde então, que um aiatolá no Irã, um cardeal na França, um rabino em Israel tenham se pronunciado, com mais ou menos veemência, contra Rushdie. O profeta no

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livro já dizia ao personagem chamado Salman, que se permitiu modificar o texto sagrado: "Salman, não podemos perdoar a tua blasfêmia... Erguer tuas palavras contra as palavras de Deus!"

Os versos satânicos são também um livro sobre a natureza do bem e do mal. Estes se opõem como a ortodoxia e a heresia, mas também como os dois personagens principais, Gibreel e Saladin, já que a cabeça do primeiro é cercada de um halo semelhante à auréola dos santos, enquanto o segundo vê com preocupação pequenos chifres surgirem na testa e os pés transformarem-se em cascos de bode. No entanto, o fim do

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livro conta que Gibreel - a quem tomamos por arcanjo morre, enquanto Saladin, o pobre pecador tão humano, se salva e começa uma vida nova. Rushdie recusa-se a acreditar em uma visão maniqueísta do mundo, em que o mal seria uma substância inteiramente estranha à natureza humana (ou divina); o mundo é constitutivamente heterogêneo ou, como ele diz, incompatível: "Fantasmas, nazistas, santos vivem todos na mesma época."

Isso quer dizer que bem e mal se tornaram idênticos, indiscerníveis, que qualquer coisa é indiferentemente angélicodiabólica ou satânico-angélica? Rushdie parece às vezes sugerir isso; outras vezes se corrige: "Existem verdadeiros monstros para o mundo - os ditadores em grande escala, os violadores de crianças." Temos desejo de acrescentar: os aiatolás que condenam à morte os escritores que lhes desagradam. Não que sua monstruosidade seja desumana, longe disso; mas sua culpabilidade é muito mais claramente estabelecida que a, por exemplo, de Mrs. Thatcher, amavelmente chamada no livro de Mrs. Tortura, que velou pela sobrevivência de Rushdie depois de sua condenação.

Enfim, Os versos satânicos são - e o são antes de tudo um livro sobre a identidade e a mudança, a fidelidade e a traição, as culturas particulares e a miscigenação universal contemporânea. O pensamento de Rushdie, uma vez mais, não se apresenta como lição. Os dois protagonistas estão habituados à mudança, já que são dois atores, mas a praticam de formas opostas. Gibreel, especializado na encarnação de deuses indianos, já proteiformes, representa, no entanto, a continuidade, a fidelidade à Índia, o desprezo ao estrangeiro; enquanto Saladin, chamado Chamcha - descendente indireto de Samsa, herói de A metamorfose -, o homem de mil sotaques, que pode imitar qualquer voz, incluindo a de uma garrafa de ketchup em uma propaganda, decidiu renegar o passado, desprezar os costumes indianos, venerar os ingleses e a cultura cosmopolita. É preciso favorecer as metamorfoses, segundo Ovídio, nas quais as formas mudam mas as essências permanecem sempre as mesmas, ou aquelas segundo Lucrécio, onde a mudança leva à morte da antiga identidade? Saladin parece levar vantagem sobre Gibreel, Lucrécio sobre Ovídio, e tanto o início como o

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fim do livro proclamam: o antigo deve morrer para que o novo possa nascer. Todavia, depois da morte de Gibreel, Saladin decide instalar-se na Índia e reatar com o passado.

Rushdie deve permanecer na Inglaterra se quer sobreviver e, por uma razão ainda mais forte, escrever e publicar. O destino do livro invalida a história nele contada? A recepção de Os versos satânicos ilustra um lamentável mal-entendido: não apenas os aiatolás tomam Rushdie por blasfemador vendido ao imperialismo sionista, participante de um complô ocidental contra o Terceiro Mundo, como o próprio Rushdie, durante um momento, desejou "dar voz e cadeira literária à cultura imigrante", tornar-se porta-voz dos imigrantes do antigo Império Britânico hoje instalados na Inglaterra, já que tais imigrantes se sentem ofendidos por ele e queimam seu livro em público. Saladin teria sido mais "verdadeiro" permanecendo na Inglaterra?

A escolha talvez seja um pouco mais complexa do que parece, e eu, que sou camponês do Danúbio instalado nas margens do Sena, não me reconheço em nenhuma das duas figuras que se enfrentam. Rushdie parece opor a fidelidade a uma tradição (seria ela também variada como a da Índia) a onivoracidade de Londres, o ecletismo cosmopolita de hoje, esta espécie de zapping mental que aprendemos a praticar: no interior de cada um de nós, há "mais conexões de que um operador de cabograma ou de satélite jamais sonhou". O particular se opõe aqui não ao universal, mas à mistura de numerosos particulares, à aglutinação de fragmentos, ao patchwork multicolorido. Não somos obrigados, porém, a optar:

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ou a unicidade, ou o infinito; entre os dois se situa o caso, cada vez mais freqüente, da participação em duas, talvez três culturas. Por seu lado, o universal existe, ainda que não apareça diretamente no livro de Rushdie; é o horizonte comum de toda pesquisa da verdade e inclui a conduzida pelo romance. Não é um acaso serem as democracias, do tipo das ou que existem na Europa ocidental e na América do Norte, que garantem aos escritores o direito de praticar livremente o romance: política e literatura têm aqui a mesma concepção da Cultura e vida cotidiana. A verdade como horizonte do diálogo, mais do que como certeza dogmática.

Ao que seria preciso talvez acrescentar que não é um acaso os autores dos romances que nos atraem atualmente terem nascido em grande parte na Ásia ou na África, na América Latina ou no Leste europeu. Ser um romancista indiano vivendo em Londres é, então, uma situação quase ideal a A sociedade ocidental, a não ser que alguns milhões de muçulmanos desejem ardorosamente a sua morte. Não conseguirei jamais me satisfazer ???o suficiente, está livre das piores falhas que caracterizam o país totalitário onde cresci. Esta é talvez a razão pela qual experimento, ao menos no início, certa reticência diante das condenações inapeláveis das democracias liberais.

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Mas, na França, amamos os gritos de Cassandra. Quando alguém nos diz: "O mundo vai mal, a cultura agoniza, o pensamento e o espírito estão derrotados, os bárbaros estão chegando", estamos todos dispostos a concordar. Numerosos contemporâneos nossos decidem, então, estender-nos um espelho cruel, para que possamos contemplar nossa decadência. Nosso país não está começando a se transformar em um subúrbio generalizado, onde o espaço urbano é substituído pelos centros comerciais e pelas galerias de comércio? Saindo do trabalho, nossos contemporâneos têm escolha, se o podemos dizer, entre as visitas degradantes aos supermercados e a depressão diante do aparelho de televisão, fonte inesgotável de divertimento. As antigas tradições estão perdidas,

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a cultura jamais foi adquirida; é o crescimento do "quarto mundo analfabeto dos subúrbios operários", que fala pouco e, sobretudo, não lê. O ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon uniu-se, pouco antes de morrer, a este coro de vozes fúnebres: no discurso na Academia de Belas-Artes, ele lamentava-se de viver em uma "era de frivolidade e de vulgaridade", em "um momento em que a música de que todos gostamos em nossa juventude está prestes a se deixar engolir pelas ondas de barulhos bizarros que chamam de música".

Acreditando nas Cassandras, a causa da decadência é que já não sabemos distinguir entre o bem e o mal, o belo e o feio, a elevação e a degradação, o essencial e o insignificante; o erro está no relativismo dos valores, reinante atualmente, na renúncia a qualquer outro princípio condutor que não a tolerância ou a "exaltação da diferença".

A arte na vida

Certos dias tenho a impressão de que este quadro macabro é infelizmente realista. Em outros, no entanto, experimento um desacordo com os próprios termos do debate, como este em que começo a entrar. É possível que ouçamos atualmente mais música clássica do que jamais fizemos, ou mesmo que leiamos mais livros (cada um produz, em casos assim, sua própria estatística), mas isso não é, em minha opinião, o essencial. Para tentar deixá-lo um pouco mais claro, gostaria de partir de algumas obras cujo autor admiro e respeito, sem aceitar inteiramente suas teses: penso em particular em La Défaite de Ia pensée, de Alam Finkielkraut, e em Dom dos mortos, de Danielle Sallenave.

Estes dois livros contribuíram, entre muitos outros, para estabelecer o sombrio diagnóstico acima; sugerem também

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O homem desenraizado 175

um remédio, resposta lógica às causas da doença, que eles identificam. De início, deveríamos recolocar no lugar de honra a grande arte, o verdadeiro pensamento e seu conhecimento aprofundado. Sallenave escreve, por exemplo: "É dentro e através da literatura que a'vida comum' é redimida, desfigurada. Não é possível `estar no mundo' sem o apoio dos livros." O objetivo não é preferir a vida mais nobre à vida comum - os livros não são um luxo reservado a uma elite -,

mas oferecer um complemento indispensável a qualquer vida. Alguns lugares são aí descritos como melhores do que outros. "Para ser homem plenamente, é preciso nascer para a vida do espírito; e a vida do espírito só floresce plenamente nas cidades." Quanto aos livros, são necessários para uma dupla qualificação. De início, põem-nos em relação com o passado (é "o dom dos mortos"), transmitem-nos como herança toda a experiência da humanidade e ao mesmo tempo permitem inscrever nossa pequena vida na trama da história mundial. Por outro lado, longe de serem um escape, eles nos levam a apreender a ordem e o projeto da vida, e a descobrir-lhes um sentido. Os livros de ficção - romance e poesia - são, desse ponto de vista, mais eficientes do que os outros: para ser compreendido, o mundo vivido deve ser duplicado em um mundo imaginário.

Creio também que é preciso combater a ignorância e a incultura, que se deve procurar superar o relativismo cultural integral. No entanto, se alguém me intima a escolher entre Shakespeare e um par de botas (a fórmula, lembremos, vem dos Demônios, de Dostoiévski), entre a vida com o pensamento e "o hábito ancestral de mergulhar uma torrada gordurosamente amanteigada no café com leite de manhã" (Finkielkraut), digo a mim mesmo que tal maneira de colocar a questão simplifica muito o debate. Estou de acordo em distinguir e julgar: não estou certo, porém, de que seja preciso

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rejeitar com desprezo tudo o que é exterior à arte canônica e à filosofia profissional. Procedendo desta forma, não tiramos nenhum proveito da crítica relativista, a que foi praticada no passado e também não era de todo destituída de fundamento; voltamos simplesmente ao ponto de partida dogmático, que havia justamente provocado, por reação, o crescimento do relativismo.

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É preciso ir mais longe e interrogar as próprias categorias que sustentam tais afirmações. Desde a primeira frase do livro, Finkielkraut, citando Jean-Luc Godard, que cita Brice Param, opõe a vida cotidiana à vida com o pensamento; em seus escritos posteriores, ele põe em contraste, referindo-se desta vez a Heidegger, o pensamento calculado e o pensamento meditativo, ou ainda a inteligência técnica e a inteligência do ser. Mas me pergunto se esta oposição, na qual a estrela da arte é dos antípodas da monotonia cotidiana, onde o artista incompreendido se bate contra o "público burguês" e a metáfora poética se separa da linguagem cotidiana (da "reportagem universal", dizia Mallarmé), não é uma herança romântica, de utilidade duvidosa, recebida de Heidegger. Eu me pergunto se a verdadeira alternativa não seria entre uma concepção em que pensamento e vida cotidiana se opõem e se excluem e outra, em que eles podem impregnar-se e fecundar-se mutuamente.

A imagem ideal da primeira concepção, acredito tê-la encontrado na casa que Thomas Jefferson, o futuro presidente dos Estados Unidos, construiu para si em Monticello, Virgínia. Esta bela residência, concebida pelo próprio Jefferson, permite evitar qualquer contato entre matéria e espírito. Criados e cozinheiros, mulheres e crianças não se arriscavam jamais a encontrar os visitantes masculinos do proprietário, que poderia, desta forma, discutir à vontade com eles política, arte ou filosofia; mesmo os pratos eram servidos na mesa sem que os criados ficassem disponíveis aos olhos dos

O homem desenraizado

visitantes, graças a um engenhoso sistema de placas giratórias. A este ideal aristocrático de separação entre o alto e o baixo se opõe em mim, talvez por causa de minha educação inicial em um país desesperadamente plebeu, o ideal de uma continuidade harmoniosa entre material e espiritual, entre o êxtase e o cotidiano.

Na tradição romântica os poetas julgavam-se encarregados de elevada missão, cuja prática possuía a seus olhos virtudes excepcionais: viam na arte um conhecimento superior, já que ela renunciava aos caminhos comuns da razão e fornecia o caminho do êxtase, dando desta forma acesso a uma segunda realidade, proibida aos sentidos e ao intelecto isolados, mais essencial ou mais profunda do que a primeira. Postulavam, assim, a existência de duas realidades, uma sensível e ordinária (ou "alienada"), a outra invisível e ornada de todas as virtudes. Esta concepção enraíza-se na tradição européia secular do maniqueísmo, que condena o mundo aqui embaixo por glorificar o de lá de cima. A realidade segunda e autêntica sacraliza em conseqüência a arte, seu caminho principal. Chateaubriand, à beira do romantismo, percebera bem as conseqüências políticas desta hierarquização: "É certo que não podemos gozar de todas as faculdades do espírito a não ser que nos desembaracemos das preocupações materiais da vida; e não estamos completamente desembaraçados destas preocupações a não ser nos países onde as artes, as profissões e as ocupações domésticas são deixadas aos escravos."

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As conseqüências desta concepção romântica para nossa percepção da arte e do belo são igualmente pesadas. Fiel à sua inspiração maniqueísta, a teoria produz sempre uma hierarquia rígida, uma separação estanque entre o alto e o baixo; o resultado é uma restrição (e uma "purificação") progressiva do domínio estético. Os filósofos modernos, desde Nietzsche, deduzem a essência da arte de algumas obras apenas, relegando todas as outras à mediocridade. As artes são

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habitualmente reduzidas a uma única arte (a poesia ou a música, de acordo com o caso); o modelo ocidental serve para explicar as práticas artísticas do mundo inteiro; as artes ditas "canônicas" fazem esquecer as artes não-canônicas. Deste fato não se encontra mais nenhum lugar na teoria - porque eles a tornariam impossível - a arte da vestimenta ou a do paisagismo, a cerâmica ou a caligrafia, a fotografia e a arte de fazer embrulhos, a cerimônia do chá e o arranjo floral.

Mas o belo transborda as convenções: tal tradição romântica e maniqueísta, que nos pede que lisonjeemos a arte e desprezemos o cotidiano é mais pobre, deste ponto de vista, do que a cultura oriental, que deseja encontrar a beleza nos gestos mais simples, na embalagem de um pacote, na mobília de um aposento, no arranjo de um jardim ou em um buquê. Tanizaki dizia até que "é na construção dos banheiros que a arquitetura japonesa alcança o topo do refinamento" (Exaltação da sombra).

Além de diversas práticas, a experiência estética pode englobar aquilo que não foi criado com intenção artística: tanto os objetos utilitários como as práticas religiosas, tanto um gesto funcional como o belo natural. É fácil preferir uma obra de arte a uma torrada do café da manhã; é mais interessante transformar este café da manhã em uma obra de arte. Isso, porque, escreve jean-Marie Schaeffer no livro L'Art de I'âge moderne, é preciso ultrapassar esta concepção romântica e "reinserir a arte, no sentido mais exaltado do termo, no campo mais vasto do qual constitui a forma mais rica: a obra de arte é um produto da conduta criativa humana, mas não é o único nem está separado por uma divisória das demais obras humanas". Karen Blixen teve razão em fazer, em A festa de Babette, da preparação de uma refeição um símbolo de toda a criação artística. A "vida" não se opõe à arte e às obras, ela mesma é - na melhor das hipóteses - uma obra in statu nascendi.

A beleza não aparece unicamente, nem sempre, lá onde

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anunciamos que ela se encontrará. Os próprios artistas nem sempre experimentaram o mesmo desprezo que devotamos à arte popular; muito pelo contrário, procuraram assimila-la

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e utiliza-la para seus próprios fins. Os exemplos musicais seriam incontáveis, mas o mesmo acontece na literatura: Dostoiévski explora a técnica do romance folhetim de Eugène Sue e não é o primeiro nem o último a proceder desta forma. A arte popular merece consideração não apenas porque pode servir de ponto de partida, de matéria-prima à "grande" arte,

mas também porque ela própria atinge a beleza (como sabia Goethe, amante dos cantos sérvios). Eu teria de boa vontade trocado meu Mondrian por um belo tapete marroquino (que pena não possuir um Mondrian?)

Eu citaria vários outros livros. O elogio que faz Sallenave convence-me particularmente: fiz mal em conceber minha vida sem a leitura; pergunto-me, no entanto, se isso não é com freqüência fundamentado numa substituição da espécie no gênero. Explico-me: os livros são, é claro, um dos lugares privilegiados da memória; mas também existem outros. Não acredito que as tradições transmitidas diretamente de geração a geração, de professor a aluno, do mais experiente ao mais novo sejam neste ponto mais raras; incontáveis gestos,

hábitos, costumes, maneiras de organizar o tempo ou o espaço nos vêm, para falar como Barrès, dos "mortos". O mesmo vale para a estruturação do mundo e a de nossa experiência: é

da função do conjunto de sistemas simbólicos que nos servimos e não unicamente da literatura. "Como sair de si senão pela ficção, que nos coloca no lugar de outro e nos abre à comunhão de uma dor partilhada?", pergunta e responde Sallenave. É portanto a língua inteira que tem o papel de nos fazer sair de nós mesmos e nos colocar em relação com o próximo. A ficção, por sua vez, pode sair do livro e encarnar

em um filme. A literatura é pensamento, certamente, mas a filosofia e a ciência também o são; por sua vez, a história tem

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um poder de evocação do passado e do singular que pode rivalizar com o seu. Em resumo, os romances são uma maravilhosa ferramenta do espírito; mas não são a única.

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Obras e ações

Os livros nos tornam, certamente, mais sábios. Podemos afirmar que nos ajudam também a nos tornar mais inteligentes e, por outro lado, mais felizes; admitamos isso por um instante. Eles nos tornam melhores? Uma questão como esta nos envia, por sua vez, a um problema mais amplo e que alguns julgariam obsoleto: em que consiste a excelência humana? Argüir a equivalência entre "mais cultos" e "melhores" cria problemas: não encontramos em todos os lugares seres humanos que leram muitos livros, até muitos romances, e no entanto não suscitam nossa admiração? É verdade, como desejava Joseph Brodsky, que "se tornou mais difícil atirar no semelhante porque ele leu Dickens ou porque não o leu"?

Quando Sallenave escreve: "Aqueles a quem faltaram os livros faltará sempre o pensamento", ou "O livro é o outro nome do processo de humanização do homem", pode legitimamente valer-se dos iluministas; mas será preciso logo lembrar que eles encarnam duas tendências contraditórias e que Sallenave escolheu Voltaire em detrimento de Rousseau. Kant, que fez a escolha contrária, escreveu (em um fragmento póstumo citado por Goldschmidt): "Sinto sede de conhecer tudo inteiramente, o completo desejo de aumentar meu saber ou ainda a satisfação de todo o progresso adquirido. Houve um tempo em que acreditei que tudo isso poderia constituir a honra da humanidade e desprezava o povo, que tudo ignora. Foi Rousseau quem me fez pôr os pés no chão. Essa ilusão de superioridade desapareceu, aprendi a honrar os homens."

Sabemos que lugar reservava Rousseau às artes a às ciências na evolução da sociedade; Kant permaneceu-lhe fiel, declarando que "o último grau" que deve alcançar o gênero humano depois de "cultivado" e "civilizado", tanto quanto puder fazê-lo, é ser "moralizado".

Por que falar aqui de moral? Porque o ser humano é constitutivamente social e a própria humanidade do indivíduo provém da pluraridade dos homens. "O homem não se torna homem a não ser entre os homens", diz incisivamente Fichte, discípulo de Rousseau e Kant. O inter-humano fundamenta o humano, mas a moral (à qual, se aceitarmos deixar de lado por um instante nossos filósofos iluministas, é preciso acrescentar o amor, que é a ultrapassagem da moral) designa a excelência em matéria de relações humanas. É por esta razão que nem a cultura nem a leitura são suficientes para produzir um ser bom: não esqueçamos que Nero havia tido como preceptor Sêneca e que Mão conhecia bem seus clássicos.

As relações humanas não parecem encontrar lugar no mundo ideal descrito por Sallenave, povoado por uma multidão de solitários. Evocando a vida comum frustrante e sem posses de Olga, uma avó, Sallenave constata a ausência de obras e conclui: "De seu trabalho não resta nada." As crianças, por este ângulo, sublinham o "espetáculo animal" e suas vidas são uma simples alternância de gemidos e sono; os pais estão invariavelmente

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exasperados, mesmo que seja ali a única transcendência da qual eles dispõem. Mas, para falar como Hannah Arendt, cuja antropologia parece ter fornecido aqui as categorias do trabalho e da obra, acima de tudo, no topo da atividade humana, há a ação. Uma vida sem ações - e não uma vida sem obras - já não é uma vida humana, "porque não é vivida entre os homens". Os seres acima dos livros era também a lição de David Rousset. Os livros alinhados na estante de uma biblioteca não são os únicos traços imagináveis

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de uma existência humana. O trabalho de Olga era sua forma de preocupar-se com os outros e de amá-los; isso não é um nada. Minha mãe foi uma Olga: nenhuma obra, uma infinidade de amor; não acho que sua vida tenha sido em vão.

É preciso, claro, estender-se sobre o sentido da expressão. A "vida cotidiana" pode também ser deprimente ou até atroz: os campos totalitários têm a sua, e a miséria comum, ainda que não produza o mesmo grau de degradação, torna o cotidiano pouco desejável. O que teria de bom na repetição mecânica dos mesmos gestos, destinados a garantir nossa sobrevivência e a de nossos próximos? Não é nisso que penso ao exaltar o cotidiano, mas apenas na necessidade de aceitar a vida em toda a sua riqueza. Concretamente, o maniqueísmo privilegia o espiritual em detrimento do material e incita a valorizar o Homem em detrimento dos homens; ele ama mais as abstrações do que as relações particulares entre indivíduos. O exemplo pode ser talvez o mais expressivo destas alternativas maniqueístas, porque se trata na realidade de, mais que um exemplo, a recusa a criar as crianças ou a conceder a esta questão algum valor, Quem diz "criar as crianças" diz também, na verdade: jamais esquecer o material (a alimentação, a temperatura, a higiene) nem o indivíduo particular que temos diante de nós (inútil endereçar-lhe um discurso abstrato sobre a infância).

O contrário do maniqueísmo não consiste em exaltar o corpo em detrimento do espírito, ou a troca social concreta em detrimento da abstração, mas em recusar seu isolamento e a exclusão de um em nome do outro. Não os aristocratas (do espírito) de um lado, os escravos (da carne) do outro; mas para todos a possibilidade de uma vida de espírito alimentada pelo contato com a matéria e a interação com os outros. Hugo, apesar de romântico, dirigiu-se a Deus da seguinte forma:

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Eu iria amar melhor, longe de teu rosto, Seguir, feliz, um estreito caminho, E ser apenas um homem que passa Levando o filho pela mão.

j'eusse aimé mieux, Ioin de ta face, Suivre, heureux, un étroit chemin, Et n'être yu'un homme qui passe, Tenant son enfant par ta main.

Julien Brenda, que cita com freqüência Finlkelkraut (La Défait de Ia pensée é uma continuação de La Trahison des clercs), achava que os males de nossa cultura vêm do fato de que os filósofos "não vivem mais como Descartes e Spinoza, mas são casados, têm filhos, ocupam cargos, estão na vida". Tudo era realmente perfeito na filosofia do passado? Um melhor conhecimento da vida cotidiana, um pouco de vaivém entre as atividades materiais e o pensamento não teriam podido contribuir para melhorar a própria filosofia? Uma vida que não resulta na produção de um livro ou de uma obra de arte é, portanto, sem pensamento (ou dotada do único "pensamento calculado")? Não é fazer pouco caso de tudo o que é ação dirigida ao próximo?

A desumanização moderna

Experimento com freqüência, eu também, um sentimento de insatisfação diante da vida que me cerca e de que participo, não gosto dos monótonos subúrbios verticais e me compadeço dos que não conhecem a vida do espírito. Mesmo assim, formularei meu tormento de forma um pouco diferente.

A democracia é bela quando enfrenta os inimigos: a contra-revolução, os totalitarismos nazista e comunista, os

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integralismos religiosos. Deixada por sua própria conta, ela é invadida por suas próprias perversões, conseqüências infernais de suas melhores intenções - e, por esta mesma razão, mais difíceis de combater. O denominador comum destas perversões é, parece-me, nossa tendência comum de transformar os meios em fins.

Podemos dar desta tendência os mais diversos exemplos. O trabalho físico desgastante foi progressivamente substituído pela ação das máquinas. Liberado das pressões materiais humilhantes, cada um se sente particularmente seguro de sua dignidade de ser

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humano nacionalizado francês. No entanto, levada ao extremo, esta mesma lógica se autodestrói. Para partir de detalhes voluntariamente cômicos: graças à automatização, os estacionamentos das cidades já não têm guardadores; resultado, à meia-noite os consumidores sacodem desesperadamente as máquinas, que se recusam a devolver a moeda, e, por outro lado, os antigos guardadores aumentam as estatísticas do desemprego, perdendo desta forma não apenas boa parte de seus ganhos mas também, justamente, sua dignidade.

O direito ao repouso semanal e anual é uma notável conquista da democracia moderna. Se o lazer se tornou o objetivo da vida, no entanto, nada vale mais. Como é preciso preenchê-lo, produzem-se mais e mais espetáculos e divertimentos; para fazer isso, tratamos a realidade como se fosse a ficção, apagamos a fronteira entre real e virtual: isso é preciso se desejamos que esta realidade possa ser vendida e consumida. O sangue da vítima seca menos rápido do que a tinta no contrato de exclusividade que liga o morto a uma cadeia de televisão, a uma editora. Por outro lado, acreditando obedecer a um pretenso principio de prazer, consumimos uma após outra as delícias prescritas; mas a acumulação de divertimento não traz a satisfação prevista. Além do repouso, precisamos de que precisem de nós.

O homem desenraizado 185

O conforto e o repouso fazem parte destes bens cuja ausência nos faz falta, mas cuja presença não nos traz felicidade. Não é uma parte de todos os desejos humanos? Não. O objetivo do desejo, dizia Fairbairn criticando Freud, não é o prazer, mas a relação. A falha do hedonismo não é ser imoral, mas falso. Os tijolos com que é construída a existência humana são as relações com os outros homens. O amor, a afeição, a amizade, a estima obtidos e concedidos, uma vez presentes, não cessam de nos fazer felizes. Os objetos que nos cercam são os meios ou aparências, o objetivo está dentro dos sujeitos que estão ao nosso lado no curso de nossa existência e nas gratificações que eles nos concedem. Outra forma de supremacia injusta dos meios provém de um dos traços mais atraentes da democracia: sua fé nos iluministas. O sujeito humano pode tornar-se autônomo aprendendo e educando-se, o saber é libertador. Mas eis que surge uma caso de aspecto imprevisto: o excesso de informação. Se me inscrevo no correio eletrônico, centenas de páginas serão acrescentadas diariamente ao meu computador, à sua "memória" (a mal nomeada, porque ignora a seleção): quando poderei lê-las? Devo alegrar-me se o jornal passa de vinte para vinte e quatro páginas? Na era das "auto-estradas", o problema não é obter mais informações, mas retê-las

menos: escolher. Uma informação infinita iguala-se a uma informação nula.

A sensibilidade para os problemas do mundo inteiro, característica das pessoas que habitam as nações democráticas, e da qual podíamos nos orgulhar em um primeiro momento, não cria menos problemas. Graças à rapidez das comunicações, podemos ser colocados imediatamente a par de tudo; a televisão nos mostra imagens vindas de todos os

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países da terra. Tornamo-nos, então, cidadãos do mundo? Porque as verdadeiras novidades são as más notícias, ficamos a par cotidianamente dos massacres e das calamidades

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que acontecem nos quatro cantos do planeta. O telespectador é massacrado pela amplidão da tarefa e se fecha um pouco mais em si mesmo: mostrando-nos tudo, imunizamo-nos contra tudo.

Em uma palavra, a "miséria de viver" moderna me parece vir menos da ausência de livros do que da perda da própria sensação de vida, efeito da desumanização dos seres. O modelo instrumental invade as relações humanas, e a preocupação com a eficácia o leva à alegria experimentada diante de pessoas singulares. O conformismo social, a monotonia das imagens difundidas pela mídia nos privam de liberdade e, portanto, de nossa própria identidade. Alternamos os gestos funcionais e os momentos de evasão ou de lazer, mas o espanto diante do próximo e a alegria de existir estão também ausentes tanto aqui como lá. Seres sociais, vivemos mal a nossa sociabilidade: aí reside, para mim, a fonte do mal que nos invade. Desse ponto de vista, a comunidade tradicional garante a seus membros um sentimento mais forte de existir.

De quem é o erro? De cada um, é claro; é muito cômodo refugiar-se no papel da pura vítima. As responsabilidades aumentam à medida que participamos por mais tempo da autoridade pública e dispomos de mais poder: oportunidades e deveres cruzam-se em conjunto de comum acordo. A responsabilidade maior cabe às nossas elites, políticas e econômicas, mas também às intelectuais ou à mídia. Não é indiferente saber se a sociedade é pensada à maneira de um mecanismo destinado a assegurar a maior rentabilidade ou como uma rede de indivíduos que aspiram ao reconhecimento de sua existência, mais ainda do que ao aumento de seu poder de compra. Nem o operário, nem o funcionário, nem o comerciante se entregam ao trabalho unicamente para ter renda, mas também porque seu trabalho os confirma como seres sociais, logo humanos; ali adquirem o respeito dos outros

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e de si mesmos, sem o qual divertimento e lazer são de pouco valor. A eficácia econômica é meio, não objetivo; a comunicação entre os seres é um fim e não apenas um meio. É preciso, então, lutar contra as representações falaciosas do mundo social: elas são, indiretamente, responsáveis por tais impasses.

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E a cultura? Sabemos que a palavra tem, atualmente, duas acepções, a primeira antropológica e a segunda pedagógica, a cultura como tradição e a cultura como formação (Bildung). De certos pontos de vista, estes dois sentidos não apenas diferem mas se opõem: a formação é uma separação brutal com relação à tradição. De outro ponto de vista, no entanto, podemos relevar os pontos comuns que justificam o uso da mesma palavra nos dois casos. A cultura é então um meio de organizar o mundo, torná-lo inteligível, e nos permite entrar

em interação com ele e com os outros homens. Cultura popular e cultura erudita também contribuem para os dois; o ser humano não é nem uma cópia conveniente da tradição, como desejavam os conservadores, nem uma tabula rasa, uma folha em branco na qual podemos escrever qualquer fórmula, como desejavam alguns revolucionários ou vanguardistas. A própria educação escolar transcende o paradoxo entre os dois sentidos da cultura; ela nos familiariza com uma tradição e, ao mesmo tempo, nos dá os meios para, em caso extremo, nos libertarmos.

O problema, na verdade, é que uma margem importante de nossas sociedades opulentas permanece presa às duas formas de cultura: ela perdeu a tradição sem adquirir a formação. Volto ao meu ponto de partida: a desculturação é um verdadeiro perigo. Sem a ajuda da cultura, o mundo perde o sentido, talvez a existência. Não é preciso esquecer, no entanto, que este núcleo comum das duas "culturas" é o que Marcel Conche chama de "cultura essencial", uma "possessão e domínio da linguagem comum", que permite

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compreender o mundo e dirigir-se ao próximo, mais do que as culturas particulares", que podem ser enxertadas e se chamam literatura, arte ou filosofia.

As obras do espírito são apenas uma parte da cultura; são ao mesmo tempo outra coisa e mais do que ela. Encarnação da beleza, tornam o mundo melhor e, busca da verdade, permitem-nos conhecê-lo melhor; não podemos dizer isso, no entanto, de toda "prática cultural". Elas contribuem, então, para nos tornar melhores e nisso reside, podemos dizer, a função social do escritor; mas nem sempre dão esta contribuição, e outras ações humanas levam ao mesmo objetivo.

Podemos amar apaixonadamente a literatura, sem no entanto acreditar que fora dos livros não existe salvação.

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TERCEIRA PARTE

Visitante nos Estados Unidos

A crítica literária

Meu sotaque em inglês é um misto de sotaque búlgaro (ou "do Leste europeu") e de sotaque francês. Acho que o mesmo vale para a minha percepção dos Estados Unidos. O "desenraizamento" que experimento ali é mais o de um francês do que de um búlgaro: já havia vivido vários anos na França antes de ir pela primeira vez aos EUA. Minha formação profissional em estudos literários deve-se também muito ao contexto francês, mesmo que eu tenha terminado meus estudos superiores na Universidade de Sófia. Minha sensibilidade política e moral permanece, no entanto, marcada pela experiência búlgara. Estes ingredientes se misturam de maneira intrincada no exercício de minha profissão.

Quando um estrangeiro em visita à França vem me perguntar: "Em que se tornou atualmente a crítica literária francesa?", sinto-me um pouco estúpido e permaneço mudo, ou então mudo de assunto: eu me embaraço nas "tendências".

192 Tzvetan Todorov ??? conhecendo apenas os indivíduos que seguem caminhos sem relações evidentes uns com os outros. É tudo ao contrário nos Estados Unidos, para onde, no entanto, vou apenas algumas semanas por ano: tenho a impressão de observar ali um quadro coerente e não me sentiria mal em responder à mesma pergunta. O segredo desta diferença reside evidentemente em minha própria posição: não sendo participante, mas visitante, desfruto nos Estados Unidos do privilégio que Montesquieu atribuiu aos persas em Paris (privilégio que tem também, nós sabemos, seu reverso: a falta de conhecimentos mais profundos e sutis, de intuições infalíveis). O estado de espírito dos milhares de universitários americanos, como pude observar, é, porém, muito variável; ele já mudou radicalmente três ou quatro vezes desde a época em que entrei em contato com ele pela primeira vez, há cerca de trinta anos. Devo, então, datar minhas observações; minha primeira descrição corresponderá à metade dos anos oitenta.

Pós-estruturalismo

Para melhor formular minhas impressões, devo partir de uma imagem da crítica anterior. Até, digamos para simplificar, 1968, a maioria dos críticos americanos parecia

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preocupada com uma grande questão: "O que significa este texto?" Diante de uma obra que eles tinham de comentar, consideravam - e isso era seu traço comum - que a tarefa mais importante era descobrir, também o mais exatamente possível, o que o texto queria dizer. Os desacordos começavam, logo depois, já que era preciso escolher este ou aquele meio, este ou aquele caminho suscetível de nos conduzir em direção à resposta. Deveríamos privilegiar os acontecimentos

O homem desenraizado 193

históricos contemporâneos no livro ou as propriedades de seu estilo? As motivações de seu autor ou as regras de seu gênero? Apenas escapavam ao consenso inicial certos críticos que poderíamos chamar de moralistas (eles eram na verdade mais jornalistas do que universitários): estes autores perseguiam através de seus escritos um objetivo que lhes era conveniente e serviam-se de obras do passado sem se preocupar muito em saber se o que elas diziam era verdadeiro ou falso.

O "estruturalismo", último a chegar a esta cena, não havia modificado fundamentalmente os dados. Quer seja na forma praticada por Northrop Frye ou na que apareceu como herança dos formalistas russos, a análise estrutural desejava, como as abordagens que a haviam precedido, contribuir para responder à mesma questão; para fazer isso, ela atraía, por seu lado, a atenção em direção à construção interna das obras (o que resultava em deixar na sombra os outros aspectos - mas também nisso o estruturalismo não era muito original).

É com este pano de fundo que surgiu a nova tendência da crítica americana, que evoquei no início. Esta tendência é chamada de "pós-estruturalismo", nome que me parece mais infeliz: ele implica ao mesmo tempo uma continuidade (se não não quereria dizer nada) e uma coisa ultrapassada (como se aquilo que se seguia fosse sempre preferível ao que o havia precedido), enquanto, na realidade, a descontinuidade estava bem presente. Esta tendência crítica desenvolveu-se de duas formas principais (com considerável número de subvariantes e de formas de transição...) que tinham em comum voltar à questão anterior - "O que significa este texto?" -, totalmente desinteressante. Identificamos a primeira destas duas variantes, mais dogmática e mais elaborada, pelo nome de "desconstrução"; podemos dizer, simplificando, que ela torna

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vã a questão da significação, dando-lhe invariavelmente como resposta: "Nada". A segunda subespécie, mais jovial, mas também mais ingênua, às vezes chamada de "pragmatismo" por seus adeptos, esvazia a questão em todos os sentidos respondendo: "Não importa o quê." Em

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seguida a uma ou outra das respostas, renunciamos, evidentemente, a nos colocar a questão novamente; preferimos passar para outra coisa.

A desconstrução parece caracterizar-se por três teses correlatas: 1) Não podemos jamais ter acesso ao mundo, existe apenas o discurso, que não se refere senão a outros discursos. As declarações de princípio abundam aqui. "Não há mais ilustrações à parte", "Não acredito que algo como a percepção exista" (Derrida), o texto "nos liberta do objeto empírico" Gameson), o texto produz "uma estrutura de referências infinitas na qual há apenas traços" (Culler). A literatura aparece então como uma incessante nomeação e renomeação do vazio. 2) Não é preciso crer por isso que o discurso seja mais favorecido que o mundo: este está ausente, mas aquele é necessariamente incoerente. O comentário do desconstrucionista consiste sempre em mostrar que o texto estudado se contradiz internamente, que suas intenções não são sustentadas por sua realidade. Encontramos "um obstáculo insuperável no caminho de toda leitura, de toda compreensão" (de Man). 3) Nenhum discurso está livre de contradições, nenhuma razão nos obriga a preferi-lo em detrimento dos outros, nem a preferir um valor mais a outro. De fato, na perspectiva da desconstrução, todo comportamento orientado pelos valores (crítica, luta contra a injustiça, aspirações a um mundo melhor) torna-se insignificante.

Haveria muito a dizer sobre este programa teórico, e seus críticos atentos no próprio interior da universidade

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americana, como M. H. Abrams ou Edward Saïd ou John Searle, Eugene Goodheart ou Robert Scholes não se privam disso. A idéia da incoerência dos textos atinge de início por seu dogmatismo: ela concerne a todos igualmente, sem fazer a diferença entre literatura, discursos teóricos (filosofia, direito, moral, política) e discursos empíricos (as ciências); tudo torna-se aqui "literatura". Podemos também nos perguntar se esta idéia não peca por pretensão: contradizer-se é, certamente, humano, mas é plausível que estas contradições tenham escapado a pensadores do porte de Platão, Rousseau ou Kant, quando seriam imediatamente visíveis aos olhos do primeiro desconstrucionista que surgiu? Assim que um intérprete escrupuloso começou a "pensar com" Rousseau (como é o caso, na França, de Goldschmidt ou de Philonenko), as incoerências da superfície desapareceram e a parte do "impensado" dissipou-se a uma vista de olhos.

A tese do mundo inacessível é igualmente forçada. É um lugar-comum da epistemologia, desde Kant, reconhecer o caráter construído do conhecimento, não acreditar em uma percepção perfeitamente neutra e transparente dos objetos. Podemos, então, criticar os empiristas ou os positivistas. Daí

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a recusar todo o contido na percepção é um passo sobre o qual deveremos refletir antes de dá-lo. Como diz Scholes, é um pouco excessivo afirmar que "os sistemas de signos influenciam a percepção mas o mundo não o faz". O discurso do conhecimento fez bem ao mundo e não apenas a si mesmo. Scholes conclui justamente: "Do ponto de vista da desconstrução, não podemos fundamentar um argumento para a biologia evolucionista como oposta à criação bíblica, já que ambas são discursos, com suas cegueiras e seus caminhos precisos." A própria literatura não se refere diretamente aos objetos particulares, certamente, mas não é privada

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de toda dimensão de verdade: se continuamos a ler Shakespeare atualmente, é porque temos a impressão (mesmo que não saibamos justificá-la) de que ele nos permite compreender melhor a "condição humana", ou alguma coisa do gênero.

A renúncia ao julgamento e aos valores conduz também a obstáculos racionais aparentemente insuperáveis. Para facilitar a tarefa, os desconstrucionistas parecem ter assimilado todos os valores aos valores religiosos, recusando desta forma a distinção entre fé e razão, e tratam a razão como um avatar, nem mais nem menos, de Deus, apagando desta forma com um traço de caneta... vários séculos de combate. Ou confundem tudo sob outra palavra-chave, "poder", que não permite mais fazer diferença entre repressão policial e exercício da razão, entre violência e lei. Em seguida a isso, podemos nos refugiar, sem nenhuma má consciência, em uma aceitação tranqüila da ordem existente.

A desconstrução é um "ceticismo dogmático" (Goodheart), que reúne os inconvenientes dos dois excessos. É um ceticismo (no sentido comum e não filosófico do termo) na medida em que considera como impossível o conhecimento e o julgamento, a verdade e a justiça. Mas é também um dogmatismo, porque decide por antecipação o que diz cada texto: a saber, "nada". As exegeses desconstrutivas são extremamente monótonas, já que o resultado é conhecido "desde sempre" e apenas variam os meios colocados em prática para chegar ao resultado. A desconstrução, diz um de seus praticantes, mais lúcido ou mais ingênuo do que os outros, "é a demonstração daquilo que o próprio texto já fragmentou por si mesmo" e cada leitor "atinge, da maneira particular permitida pelo texto em questão, o momento da aporia" (Hillis Miller).

O homem desenraizado 197

Santo Agostinho, teórico de outro dogmatismo hermenêutico, dizia: pouco importa o caminho seguido pelo leitor, sua interpretação é boa, visto que alcança ao fim do percurso

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o reino da caridade, o dogma cristão. O objetivo aqui é diferente, mas a estratégia permanece a mesma: "Qualquer que seja o caminho seguido pelo leitor através do poema, ele chega a uma contradição flagrante" (Hillis Miller). É este aspecto dogmático que explica sem dúvida o extraordinário sucesso da desconstrução na instituição universitária: é suficiente aplicar a receita a uma matéria nova e obtém-se uma intepretação "original".

Pragmatismo

A outra variante do pós-estruturalismo, o pragmatismo

(cujo representante mais famoso é Stanley Fish), não sofre da mesma monotonia nos resultados. Sua principal tese seria a seguinte: um texto não quer dizer nada por si mesmo, é o leitor que lhe dá sentido. Duas proposições se combinam aqui.

A primeira, negativa (Fish: "Não existem significações determinadas e a estabilidade do texto é uma ilusão"), visível para os pragmatistas e para os desconstrucionistas, exceto pelo fato de que eles não utilizam os mesmos argumentos: os primeiros afirmam que os discursos são incoerentes, os outros que as palavras não têm sentido; os primeiros carregam suas "suspeitas" sobre as moléculas da linguagem, os outros sobre seus átomos. A segunda proposição é positiva: o leitor (e, portanto, o crítico) pode muito bem propor, talvez impor, um sentido determinado e estável. "Os intérpretes não decodificam os poemas, eles os fazem" (ibid.). O texto não é mais, então, do que um teste (à Rorschach), diante do qual os leitores têm o direito de escolher, tal como os personagens de

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Pirandello: a cada um o seu sentido. Bem entendido, neste contexto "a noção de erro, em todo o caso como algo a ser evitado, desaparece" (ibid.).

Quais são as conseqüências desta escolha para a própria obra crítica? "Isso me libera da obrigação de ter razão e não exige de mim nada além de ser interessante" (ibid.). Estamos longe aqui da monotonia desconstrutiva: o campo é grandemente aberto à imaginação criativa. Em um segundo momento, Fish parece ter temperado seu relativismo cognitivo com um historicismo, afirmando que não é o leitor individual quem decide o sentido do poema, mas o grupo ao qual ele pertence: "São as comunidades interpretativas - mais do que o texto ou o leitor - que produzem as significações."

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A parte negativa da tese inicial é ao mesmo tempo empiricamente falsa e logicamente contraditória. Ela é falsa porque ignora o caráter social da linguagem: nem os indivíduos nem os grupos de pressão estão em condições de mudar o sentido das palavras. Todo uso idiossincrático, a metáfora mais audaciosa, a alusão mais obscura pressupõem um estado de língua comum e é precisamente o que registram os dicionários (perguntamo-nos, senão, o que poderíamos encontrar ali). A tese é também internamente contraditória porque implica que nós a compreendamos, o que ela nega explicitamente. De início, sua parte positiva aparece como hipérbole: certamente, o leitor lê necessariamente de certa maneira, nenhuma leitura é transparente, mas isso não quer dizer que ele produza a totalidade do sentido (voltamos aqui ao problema da percepção).

A exigência de escrever de maneira mais interessante do que justa choca apenas - já que o faz - pela influência do campo em que se aplica. Ninguém, na verdade, se escandalizará se disser respeito à própria literatura, ainda que possamos

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considerar que uma concepção como esta, que elevará o romance policial ao topo de sua hierarquia, não lhe faça plenamente justiça. É a ambição empírica da crítica literária e de fato toda a história que se encontra por lá colocada em questão. Tratando-se de crítica, a fórmula passa facilmente. Poderíamos exigir do historiador que ele abandone toda a preocupação com a verdade e se preocupe apenas com o único interesse suscitado por seus escritos? Aceitaríamos que o interesse seja o único guia do discurso do juiz ou mesmo do político? Ninguém, no entanto, se perturba com uma opinião crítica se ela disser respeito unicamente à literatura, este parque de diversões.

A concepção inicial de Fish transforma toda leitura em uma espécie de piquenique, para retomar a imagem de Lichtenberg a propósito das obras de Jacob Boehme: o autor traz as palavras, e o leitor, o sentido. Sua concepção modificada nos faz passar mais para o lado de Humpty-Dumpty, personagem de Alice no pais das maravilhas: é o mestre quem escolhe o sentido das palavras. O mundo orwelliano de 1984 volta igualmente à memória: eis a" comunidade interpretativa" que é o Partido, que ali decide o sentido e a natureza dos acontecimentos passados, reescrevendo constantemente a história. O'Brien, o funcionário do Partido, tem palavras reveladoras: "Você acredita que a realidade é objetiva, exterior, que existe por si mesma... Mas eu lhe digo, Winston, que a realidade não é exterior. A realidade só existe no espírito humano, em nenhuma parte fora dele."

Essa oscilação da idéia de verdade parece a Orwell mais perigosa do que as outras atrocidades totalitárias. Mas ela é aliada às premissas pós -estruturalistas, que, por seu lado, reconhecem apenas verdades parciais - históricas e subjetivas -, ditadas pelo jogo dos interesses e dos poderes. Se afirmo que todos os testemunhos históricos são visivelmente

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oblíquos e que, por outro lado, a física moderna nos ensina a não desprezar o testemunho de nossos sentidos (apenas os imbecis acreditam na realidade do mundo!), nada mais pode me impedir de concluir que nenhuma diferença deste gênero separa as oscilações inevitáveis de toda percepção e as grandes mentiras políticas; que não tenho de me indignar particularmente com um Estado que erigiu sua ausência de verdade objetiva em princípio incontestável.

Dizer que não há nenhuma diferença entre fatos e interpretações (quer dizer, "tudo é interpretação") é na verdade ver na força ("a cenoura ou o bastão") o único meio de impor suas intenções. Já há muito tempo, Raymond Aron havia se protegido dessa confusão: "Sem dúvida nós podemos sustentar, com rigor filosófico, que não há fato histórico que não seja construído e não comporte, em conseqüência, seleção e interpretação. Na prática, as distinções [fatos versus interpretações] guardam suas distâncias. É verdadeiro ou é falso que Trotski absorveu uma parte considerável da organização do Exército Vermelho? É verdadeiro ou é falso que Zinoviev ou Bukharin tramaram o assassinato de Stalin? [...] Todo Estado totalitário leva ao absurdo a solidariedade entre o fato e a interpretação." Esta é sem dúvida também a razão pela qual me recuso a admiti-la, ainda que dentro da metodologia da crítica literária.

Teremos razão em reunir sob um vocábulo comum ("pósestruturalismo") estas duas tendências críticas, apesar de suas divergências teóricas e retóricas? Penso que sim. Seu fundamento comum é a filosofia nietzscheana. Elas têm os mesmos adversários: de um lado, os valores universais, a justiça, a ética; do outro, a verdade, o conhecimento, a ciência. Têm também as mesmas afinidades: testemunham o elogio mais ou menos assumido da força, ou a afirmação de que o conflito é a verdade da vida, afirmação que os aproxima de outros

O homem desenraizado

nietzscheanos militantes, como Harold Bloom; ou ainda a proximidade com o idealismo subjetivo (o mundo não existe por si mesmo, apenas em minha percepção).

Sobrevivências marxistas

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De que poderiam reclamar, em face desta escola crítica, os que continuam a crer que as obras têm uma relação com o mundo e que existem valores melhores do que outros, que mereceriam que lutássemos por eles? Curiosamente, o único movimento de idéias na crítica americana que assume esta outra posição parece ser o marxismo; de modo que a escolha se formulará nestes termos: se não se deseja ser pós-estruturalista, é preciso ser marxista. Algumas coincidências, no entanto, poderiam nos fazer duvidar do radicalismo desta oposição. Portanto, a idéia de uma "comunidade interpretativa" que controlará o sentido e sua interpretação não é estranha à doutrina marxista: esta, na verdade, não afirma que tudo depende da classe a que pertencemos?

A crítica marxista reconhece a pertinência de certos valores, mas não de qualquer um. Os que se apresentam como universais, interclasses, se assim podemos dizer, suscitam em particular sua animosidade. O procedimento retórico mais comumente utilizado para denegri-los consiste em praticar ao mesmo tempo uma abstração (a liberdade é o liberalismo; os direitos do indivíduo, o individualismo) e uma articulação tendenciosa (o liberalismo é o direito de dispensar os trabalhadores quando for conveniente; o individualismo, a possibilidade de enviar suas crianças para escolas chiques). É desta forma que "liberalismo", "individualismo" e "humanismo" podem tornar-se injúrias. Toda tentativa de

202 Tzvetan Todorov

erguer-se além da condição social particular é reconduzida a motivações triviais: o humanismo não é então mais do que uma "ideologia moral de suburbanos bem de vida" (Terry Eagleton: crítico literário inglês e não americano, é verdade, mas cujo discurso é muito representativo do que se escuta nos campus). O marxismo recusa-se a reconhecer a autonomia da moral com relação à política: para ele, a política é uma moral responsável, levada a sério. Fazendo isso, reduz à defesa dos interesses de um grupo toda a aspiração aos valores: decreta como bom aquilo que contribui para a "transformação socialista da sociedade" (ibid), quaisquer que sejam a este respeito as opiniões dos membros desta sociedade. Em lugar do direito e da justiça, celebra as forças da história.

As tendências universalistas da filosofia o marxismo opõe as determinações sociais e históricas; o lugar da ética comum é tomado pela política dos interesses particulares. A crítica marxista reconhece, então, a relação das obras com o mundo e com os valores, mas recusa a universalidade: quer que verdade e justiça sejam fundamentadas na história. Vemos assim por que a oposição marxista ao pós-estruturalismo não é tão radical quanto este; do outro lado de seus conflitos de detalhes, os dois combatem um inimigo comum cujo nome é humanismo, quer dizer, no caso, a tentativa de fundamentar o conhecimento e a ética na universalidade. Se as tentativas de hibridação entre estas duas tendências aparentemente inimigas abundam dentro dos departamentos de literatura, isso não se explica apenas pelo desejo superficial de estar na ponta da vanguarda, mas também por afinidades profundas. Façamos um teste: vocês sabem quem disse que "a própria idéia de justiça é uma idéia que foi

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inventada e posta em prática nas diferentes sociedades como instrumento de certo poder político e econômico, ou também como arma contra este poder"?

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Ah, não, não foi Terry Eagleton (marxista), foi Michel Foucault (nietzscheano).

Humanismo crítico

A crítica americana é, portanto, dominada por aquilo que é preciso chamar pelo nome: o anti-humanismo. A palavra pode ter ressonâncias desagradáveis e replicam-me que seus adeptos não se parecem, na maior parte do tempo, com ogros sanguinários. Concordo; de resto, mesmo os marxistas tomam sempre a precaução de se dissociar dos antigos países do "socialismo real" e dos campos de concentração stalinistas. Insisto em crer, no entanto, que não podemos, sem incoerência, defender os direitos do homem com uma mão e desconstruir a idéia do homem com a outra.

O "caso Paul de Man" veio lançar uma singular luz sobre a relação entre desconstrução e escolha política. Sabemos que esta crítica americana de origem belga se tornou, nos anos setenta, o carro-chefe da escola crítica em questão. Mas, depois de sua morte, em 1984, percebemos que em 1941-1942 o jovem de Man escreveu, na imprensa flandrense de seu país, artigos de tendência pró-nazista sobre a literatura. Esta descoberta foi diversamente interpretada. Quanto a mim, abster-me-ei de início de atacar o jovem homem de então: ele não foi o único, nesses anos, a aderir a esta ou aquela parte da doutrina fascista; haveria até mesmo alguma presunção de nossa parte atualmente em acusá-lo: é fácil ser herói mais tarde! Seria absurdo, por outro lado, insinuar que todo praticante atual da crítica desconstrutiva seja, por isso mesmo, um fascista em potencial e se lançar a uma nova caça às bruxas. É preciso, portanto, proibir que se investigue sobre a significação deste "caso" e sobre uma eventual continuidade,

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não diretamente política mas filosófica, entre estes dois momentos da carreira de de Man?

Nenhuma relação causal simples reúne convicções filosóficas de uma parte e escolhas políticas de outra parte. Deveria, portanto, ser possível escapar a estas duas simplificações extremas: considerar, como certos marxistas, que os comportamentos produzem idéias com a mesma monotonia com que a macieira dá maçãs (ou, inversão idealista

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do próprio determinismo, que as idéias engendram mecanicamente as ações), ou rejeitar toda relação entre as doutrinas e o curso do mundo. Entre estes extremos, podemos encontrar o lugar para uma relação mais sutil, consistente em compatibilidades e incompatibilidades, em condições favoráveis e desfavoráveis, em associações objetivas entre idéias e atos, Podemos imputar ao acaso o fato de que Heidegger e numerosos de seus discípulos (de Man é um deles) sejam encontrados, no período de 1933-1945, ao lado da extrema direita? As idéias promovidas por Heidegger e os que pensavam como ele puderam constituir, pelo menos, um terreno propício ao florescimento destas escolhas políticas. Sem procurar as intenções dos indivíduos, podemos, e até devemos, nos interrogar sobre as implicações políticas das doutrinas filosóficas.

O anti-semitismo e pró-hitlerismo de de Man não estão na verdade em ruptura com as escolhas filosóficas feitas por ele na época: contra o individualismo, ao qual prefere as soluções coletivas, até mesmo totalitárias (a palavra ainda não é pejorativa); contra o universalismo e pelas tradições nacionais (o universalismo dos franceses pode lhes ser permitido enquanto especificidade local!); contra o racionalismo, simples etapa da evolução do espírito, e por um renascimento do mito; contra a onipresença da técnica, resultado absurdo do projeto prometéico ocidental; contra toda confrontação da literatura

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com a verdade ou com os valores éticos. Vemos bem, por outro lado, em que consiste a continuidade filosófica entre a desconstrução de hoje e a inspiração antiuniversalista, anti-racionalista e relativista que possuía de Man na época da guerra. A democracia, por si mesma, não se define pela tolerância indiferente com relação a todas as idéias: estão em afinidade com ela o diálogo e não a violência, a argumentação racional e não a adoração de um Führer carismático, a ação voluntária e não a submissão fatalista às tradições, as idéias de universalidade e de igualdade e não o culto dos particularismos.

É revelador ver como um outro representante em evidência do método desconstrutivo nos Estados Unidos, o crítico Geoffrey Hartman, tentou interpretar e absolver os erros de de Man. Este último teria percebido que seu engajamento político havia sido um erro; teria deduzido que todos os engajamentos são por definição errôneos. A verdade e a justiça absolutas não existem, sugere Hartman, e nós estamos sempre e necessariamente envoltos pela ilusão da linguagem; as tentativas de sair dela e alcançar maior transparência só podem nos afundar ainda mais. Renunciemos a toda condenação do passado; de outro modo, perpetuaríamos a ilusão de que o futuro pode ser diferente. Todo projeto político, pelo próprio fato de que se propõe a melhorar nossas condições, é potencialmente totalitário.

Na noite da desconstrução, todos os gatos são pardos. Não joguemos com as palavras: a verdade absoluta talvez não exista - e no entanto o assassinato dos judeus é uma verdade, não uma interpretação; o bem puro seguramente não é deste mundo, mas não é

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realmente indiferente saber que de Man sugeriu uma "solução para o problema judeu" através da deportação e saudou a chegada de Hitler, como "a conduta perfeita de uma invasão altamente civilizada" (os soldados

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alemães na França). A atitude aparentemente humilde de Hartman e dos outros desconstrucionistas ("nada é seguro") parece-me, na realidade, esconder o desprezo por todos os que aspiram a um pouco mais de justiça e de verdade. Enquanto se trata de palavras, o anti-humanismo pode parecer sedutor; convertido em atos, é inadmissível.

Que caminho, então, permanece aberto à crítica literária? Aquele que defendem os adversários do pós-estruturalismo poderia ser chamado de "humanismo crítico"; o adjetivo deveria servir aqui de aviso contra as utilizações fraudulentas do mesmo programa. A precaução não é supérflua: sabemos que a camuflagem humanista do colonialismo europeu se esquivou de comprometer para sempre a causa humanista. É preciso reconhecer a relação das obras com o mundo: "Todo o sentido de minha demonstração", escreve, por exemplo, Scholes, "é que nós devemos abrir o caminho entre o texto literário ou verbal e o texto social no qual vivemos." E sua relação com os valores: "Devemos restabelecer a dimensão avaliadora da crítica, não no sentido banal de classificar os textos literários segundo sua excelência, mas no sentido muito sério de interrogar os valores produzidos pelos textos que estudamos."

Eu teria desejado (mas sem acreditá-lo verdadeiramente) o rápido esquecimento deste episódio lamentável da crítica americana, o que lhe teria permitido contestar - mas de outro modo - a crítica anterior. A pergunta "O que significa este texto?" é uma boa pergunta, e é preciso sempre tentar responder a ela, sem exercer o veto aos contextos, históricos ou estruturais ou outros, que poderiam nos ajudar nesta busca. Não é por isso que se deve parar ali: esta questão poderá ser prolongada através de outra dupla interrogação, endereçada à resposta da primeira: "Isso é verdadeiro? Isso é correto?" Teremos, desta forma, superado a oposição estéril

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dos críticos especialistas, que sabem mas não pensam, e dos críticos moralistas, que falam sem nada saber a respeito das obras. É desta forma que o crítico poderá enfim assumir plenamente o papel que é seu, o de participante de um duplo diálogo: como leitor, com seu autor; como autor, com seus próprios leitores - que, de súbito,

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As humanidades

A situação dos intelectuais é verdadeiramente melhor na França? Ou teria eu simplesmente perdido o distanciamento crítico, o privilégio do desenraizamento, que me teria permitido ver seus desvios? Nos Estados Unidos, a filosofia do pós-estruturalismo, como as novas versões do marxismo, é em grande parte um artigo de importação - da França, precisamente. Estas idéias estão, pois, presentes aqui também; no entanto, elas não representam ali o mesmo papel hegemônico; constituem mais uma voz entre outras no debate em curso - situação em conformidade com o espírito democrático, que não se propõe a banir nem os céticos nem os dogmáticos, nem os crentes nem os agnósticos, nem os conservadores nem os adeptos da mudança. Outra característica da situação francesa me atinge, no entanto, graças ao desenraizamento que me trazem as visitas aos Estados Unidos: porque aqui, muito mais do que lá, a vida intelectual está inserida na vida da cidade; o debate das idéias é, não constante mas periodicamente,

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confrontado com o mundo social e político onde se desenvolve, o que permite restabelecer certa relação entre as palavras e as coisas.

O lugar dos intelectuais

Uma parte da história é, contudo, comum: por razões de conjuntura econômica (extinção das linhagens reais, empobrecimento dos papas, falta de interesse do grande público...) a maior parte dos profissionais do espirito, seja na Europa ou na América do Norte, ganha a vida na universidade. Esta mistura de profissões e de vocações tem os seus inconvenientes, mas não é aí que se situam as diferenças. Nos Estados Unidos, diferentemente da Europa continental, a universidade é, com poucas exceções, exterior à cidade, ao mesmo tempo geográfica e ideologicamente. As universidades americanas florescem de preferência nas pequenas cidades prósperas ou em subúrbios abastados (podemos comparar Princeton à Sorbonne, ou Stanford à Freie University), quando não levantam barricadas intransponíveis entre si e os guetos que as cercam. Não diremos jamais que este isolamento, esta instituição dos campus, nossos monastérios laicos, tenham transtornado tanto a cidade, isolando-a de seu elemento pensante, quanto os intelectuais, privando-os da matéria-prima de sua reflexão.

Por esta razão - como, com certeza, por algumas outras -, os colegas que visito em um campus sabem bem tudo o que diz respeito a sua própria vida e a dos outros campus

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(essencialmente, quem teve ou não teve a concessão, quer dizer, a titularização - imagino o silêncio que se abateria sobre os lugares onde almoçam os professores se, por milagre, este tema se tornasse tabu), não o que está acontecendo na cidade mais próxima; nisso também eles devem ser como os monges da Idade Média, durante as disputas escolásticas ou pessoais dentro de outros mosteiros, mas esquecidos das preocupações da população no vilarejo ao lado.

Na vida profissional, toda a atenção se concentra nos "métodos" (em crítica literária, as mil e uma nuanças da desconstrução) e esquecemos os objetivos (por que comentar os textos? Para que serve a "cultura"? O que diz o autor é verdade? É correto?). É preciso, de resto, estar inteiramente isolado da vida pública e jamais sair de si para, como fazem os universitários, tomar ao pé da letra as teorias "francesas" e acreditar que não existe nenhuma diferença entre fatos e interpretações, razão e crença, justiça e interesses. Ou é preciso para isso, o que é mais verossímil, ter uma mão direita profissional que ignora tudo o que faz a mão esquerda, humana, demasiado humana.

Vários grupos constituem exceção a esta regra, mas seus membros não são muito numerosos. Se deixamos de lado alguns indivíduos notáveis (e irrepreensíveis), duas variantes opostas podem ser distinguidas. A primeira, mais difundida

nos Estados Unidos do que na França, consiste em se colocar a serviço do poder, ou melhor, do governo: cada novo presidente leva consigo sua trupe de especialistas. Sua inteligência e seus conhecimentos são postos a serviço do chefe, que escolhe os objetivos por atingir. Na outra variante, engajamo-nos

no serviço não mais do poder, mas da luta contra o poder; ou melhor, optamos por condenar sistematicamente o que faz e diz o governo.

Uma de minhas velhas vizinhas em Sófia pensava que tudo o que ouvia no rádio era mentira, já que era propaganda; de súbito, ela apanhava um guarda-chuva cada vez que se anunciava bom tempo. Inútil dizer que ela se enganava pelo menos com tanta freqüência quanto os meteorologistas oficiais (mas por outras razões). É nela que me fazem pensar

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esses homens de oposição: eles não dizem que Reagan

errou porque suas idéias são ruins, mas que as idéias são ruins porque provêm de Reagan. Eu lia um dia no Salmagundi, uma boa revista liberal, esta advertência de um universitário: "Insistir, nos Estados Unidos, nas limitações à liberdade de

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imprensa impostas pelos sandinistas na Nicarágua é de fato apoiar a política de Reagan na América Latina." No mesmo momento, na revista Commentary (conservadora), podíamos ler um ataque inverso, contra Jacobo Timmerman, o jornalista argentino que havia denunciado a tortura praticada pelo regime militar em seu país: esta denúncia podia, digamos, servir à causa anticomunista. Por pouco poderiamos acreditar que havíamos voltado à época do processo Rousset.

Mas, se o intelectual reage automaticamente (a favor ou contra "o poder"), se calcula seus propósitos em vista de objetivos imediatos, renuncia à própria identidade, que implica o recusar a submissão de seu pensamento a qualquer coisa que não seja a busca da justiça e da verdade. Em um país totalitário, o intelectual é com freqüência colocado diante de uma escolha brutal: servir ao poder ou entrar em guerra com ele. Na democracia, ele tem o privilégio da autonomia: pode agir em função de sua vontade e de suas decisões, mais do que ser movido pela força de suas vinculações ou de suas suposições sobre o futuro.

Um debate recente chamou a atenção sobre as relações dos intelectuais com a sociedade. A questão que foi levantada se formulava da seguinte forma: existe uma crise das humanidades" nas universidades americanas? As "humanidades" vão mal, proclamaram uns, elas nunca foram tão bem apoiadas, replicavam outros. Pode ser, claro, que o grito de angústia provenha de uma ilusão de óptica, como se dá constantemente: "nossa sociedade está em crise" (ou mais moderadamente, "em transição") é uma frase freqüente em todas as épocas,

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que revela apenas, na maior parte do tempo, o egocentrismo do observador. 'Antes, tudo era melhor" é outro refrão eterno, que se explica menos pela degradação permanente da sociedade humana do que por nossa preferência, mais do que compreensível, pelos anos em que éramos jovens. Por outro lado, certas épocas são realmente piores do que outras, e cometeríamos um erro se nos desinteressássemos por um debate em curso em nome dessas considerações gerais; podemos também aproveitar para refletir sobre o estado atual como sobre o estado desejável de um segmento importante de nossa cultura, o ensino das letras, da história, da filosofia, das ciências humanas.

A acusação e a defesa

A acusação não ganhou importância a não ser pelo fato de que foi amplificada por vozes externas à universidade. Que alguns professores deploram o estado de suas

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disciplinas não é novo; o que o é, e é bem mais significativo, é o sucesso popular dos livros onde são expressas tais criticas. São os grandes órgãos da imprensa americana, jornais diários e revistas, que se apoderam de assuntos reservados até então aos próprios membros da profissão e fizeram ouvir, em conjunto, uma voz crítica. Foi uma agência federal, a National Endowment for the Humanities, que produziu documentos sistematizando estas críticas; um deles, intitulado Humanities in América, é assinado por sua diretora na época, Lynne Cheney. Se admitimos que a universidade deve contribuir para o bem da comunidade onde se insere, não podemos nos permitir ignorar estas vozes incontestavelmente legítimas: as críticas são para ser levadas talvez não ao pé da letra, mas, em todo o caso, a sério. Resumamos de início a tese da acusação. Ela parte de uma

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constatação de declínio, que não tem nada de impressão subjetiva. Entre 1966 e 1986, o número de mestrados nas universidades americanas aumentou 88%; o número de mestrados atribuídos à área de humanas diminuiu 33%. Em 1966, um estudante em cada seis saía da universidade com um diploma em "humanidades"; em 1986, o número era de um para dezesseis. Cheney sugere várias explicações para este fenômeno, entre as quais duas parecem ter certo apoio ideológico, são o que poderemos chamar de especialização e particularização. A especialização é um movimento que afeta o conjunto das disciplinas universitárias e se deve ao mesmo tempo ao crescimento do saber que é necessário absorver e à inclinação natural de cada especialista, que o empurra a fechar-se naquilo que lhe é mais familiar; ela, no entanto, se revelou particularmente nefasta na área das "humanidades". Os especialistas de diversas disciplinas não se compreendem mais entre si e não são mais compreendidos pelo público profano, que os acusa de praticar o jargão.

Quanto à particularização, ela se manifesta ao mesmo tempo no ponto de vista (ou "método") adotado pelos pesquisadores e na escolha da matéria estudada. O ponto de vista é explicitamente antiuniversalista e se pretende a expressão da política de um grupo. A matéria estudada (especialmente nos cursos de "civilização ocidental", com freqüência obrigatórios nas faculdades americanas) já não cobre o que há pouco tempo era considerado um "cânon" indispensável, os mestres de obras da literatura e da filosofia ocidentais; em lugar deles encontramos listas estabelecidas de acordo com o gosto de cada professor, talvez de cada estudante; a dispersão substituiu a continuidade. A disputa esteve particularmente viva em Stanford, na Califórnia, onde, sob pressão de alguns grupos de alunos e professores, como também de uma demonstração conduzida no campus pelo reverendo Jesse Jackson ao grito

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de "Hey, hey, ho, ho, Western culture's got to go", o curso (obrigatório) de "Civilização Ocidental" foi substituído por um curso chamado, de forma mais neutra, "Culturas, idéias, valores"...

A defesa das "humanidades" é conduzida essencialmente pelos próprios interessados, professores de letras, história e filosofia (divisão um tanto lamentável). Tomarei aqui como exemplo uma brochura publicada pelo American Council of Learned Societies e intitulada Speaking for the Humanities - exemplo certamente representativo, já que assinada pelos diretores dos Centros de Ciências Humanas de cinco grandes universidades (Rutgers, Yale, Cornell, Harvard, Stony Brook) e endossada por vinte e um praticantes de prestígio das disciplinas humanitárias. A inclinação para a especialização é assumida pelos autores da brochura, que até afirmam orgulhosamente: "A especialização torna o pensamento possível." Esta é, evidentemente, uma pretensão extravagante, que implica entre outras coisas que fora das universidades as pessoas não pensam! Para justificar sua posição, os autores recorrem ao argumento familiar segundo o qual os escritos dos físicos também não são compreendidos pelo grande público.

Não haveria realmente nenhuma diferença entre história literária e física? A falsa analogia não seria justamente uma das causas da especialização excessiva? O conhecimento do objeto é um aspecto do trabalho científico, e deste ponto de vista nenhuma "especialização" (nenhuma competência) é demais. Diferentemente do físico ou do geólogo, no entanto, o historiador e o filósofo estudam um objeto que é da mesma natureza deles ou de seus semelhantes: o ser humano; esta diferença acarreta algumas conseqüências a seu trabalho. As práticas humanas se distinguem dos processos naturais pelo fato de representar a vontade de seus agentes; em conseqüência, o estudo das letras e das ciências

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humanas possui traços dos valores da comunidade humana em que vivemos, talvez da humanidade inteira: é impossível estudar o homem sem levar isso em conta. Não saberemos deduzir os valores dos resultados da ciência, certamente; não é por outra razão que as humanidades estão em relação mais direta do que as outras disciplinas com a vida da comunidade. Batemo-nos aqui contra outro sentido da palavra "especialização", que é a ausência de interesse geral do trabalho produtivo.

A oposição pertinente não é, então, entre o "especialista" e o "letrado", mas entre um especialista que não quer se afastar um passo de seu objeto e o outro especialista, que decide não perder de vista os interesses da humanidade ou da comunidade. Tal intenção não substitui o trabalho de conhecimento propriamente dito, se não o sábio seria eliminado em beneficio do moralista ou do militante político, e ela não tem por que se manifestar a cada passo da tentativa científica; no entanto, forma o horizonte, sempre presente, da pesquisa sob pena de vê-la transformar-se, deste modo, em pura escolástica.

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Passemos agora à segunda acusação, a de "particularização" excessiva, e aos argumentos levantados aqui pela defesa. De início, uma questão de princípio: é verdadeiro que o ponto de vista político particular deve substituir completamente o universalismo obsoleto? Uma vez mais, os autores da defesa assumem com rapidez a característica que lhes é atribuída. Não existe verdade nem objetividade, atacam eles, mas apenas pontos de vista e interesses particulares. Qualquer pretensão à universalidade só pode ser uma ilusão ingênua ou uma camuflagem pérfida. De acordo com este principio, o argumento da autoridade pesa cada vez mais (já que não há mais diferença entre o direito e a força, melhor estar do lado dos mais fortes): filósofos os mais "poderosos", os mais "distintos", os mais "dominantes"

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da modernidade, parece-me, recomendam-nos seguir este caminho.

A era totalitária, em que já não existe diferença entre verdadeiro e falso, apenas entre fortes e fracos, haveria chegado? Não acredito nisso. Speaking for the Humanities confunde, voluntariamente ou não, duas proposições, uma das quais é trivial e a outra, muito contestável. É verdade que todo pensamento nasce em dado momento, em uma situação particular, e que está ligado a certos interesses. No entanto, o que é verdade de origem não é forçosamente importante: não é preciso acreditar que todos os que aspiraram a uma verdade nãolocal são imbecis ou enganadores.

O ser humano não apenas tem interesses particulares como é capaz de superá-los; cada um de nós (exceto Calliclês, o antagonista de Sócrates em O górgias, de Platão) sabe a diferença entre o lucrativo e o bom. Não é porque a álgebra surgiu entre os árabes que não é verdadeira na China; não é porque os direitos do homem foram formulados na Europa que não devemos exigir respeito a eles na África do Sul. Enfim, a possibilidade de consenso e a aspiração universalista estão evidentemente muito mais próximas do ideal democrático do que os filósofos que apresentam o mundo como entregue à guerra irredutível das raças ou das nações, das classes ou dos sexos.

Existe um cânon?

Vejamos agora a questão do cânon. A dificuldade provém aqui do fato de várias questões, todas importantes, terem sido reduzidas a uma. Enumero as principais:

1. Todo ser humano nasce no interior de uma cultura particular. Felizmente para ele: não tem de renovar o conjunto de suas experiências, o que seria uma tarefa acima de

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suas forças; ele aprende a organização própria à sua cultura através da língua e das tradições de seu grupo. Sem este domínio de uma parte da memória coletiva, seria condenado à incomunicação, talvez até a loucura. A vida moderna, que destruiu muitos canais de transmissão da tradição, ameaça o indivíduo de uma enfermidade particular, a desculturação; é então desejável que ela compense os canais desaparecidos com outros: a educação escolar o faz em parte. É bom que no interior de uma cultura exista certo cânon, quer dizer, conhecimentos partilhados por todos: isso garante uma melhor participação na vida social. Se em contrapartida a matéria estudada é deixada à livre escolha do professor ou do aluno, o resultado corre o risco de se tornar decepcionante: ao mesmo tempo porque a comunicação no interior da sociedade se encontrará empobrecida e porque, incapaz de se situar com relação a um conjunto impessoal, o aluno toma como verdade os preconceitos de seu professor ou os de sua época.

2. A tradição ocidental, é ela "racista, sexista e imperialista", como foi dito em Stanford? Ou é universalista, tolerante e crítica? Tudo isso, é claro; se as questões formuladas, no seio da tradição, permanecem muito tempo as mesmas, as próprias respostas variam: existe, neste sentido, muito mais que uma "tradição ocidental". Racismo, sexismo e imperialismo haviam sido praticados por alguns, combatidos por outros: isso é a própria evidência. Tal acontece, de resto, em qualquer tradição suficientemente rica: encontramos nela sempre escolas de pensamento diferentes, até mesmo contraditórias.

3. O fato de que a maioria dos autores da tradição ocidental sejam homens brancos pertencentes à classe superior significa que o conteúdo de suas obras expressa uma defesa da elite branca masculina? Todos os brancos são racistas (antinegros), todos os homens sexistas etc.? Para

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acreditar nisso é preciso associar-se, da maneira mais estreita possível, ao adágio "o ser determina a consciência". Será preciso, além do mais, ser passavelmente racista (a cor da pele decide o conteúdo do pensamento, todos os negros pensam de maneira semelhante, todos os brancos também) e sexista. Asseguremo-nos: saber que um autor é branco e macho não nos acrescenta grande coisa sobre o conteúdo de seu pensamento. Não há nenhuma contradição entre o contexto necessariamente histórico no qual surgiu uma obra e sua importância mais ou menos universal.

4. Deve-se estar de acordo com os autores que ensinamos? Uma resposta positiva a esta pergunta correria o risco de empobrecer enormemente o ensino em questão e

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teria como conseqüência, ao mesmo tempo, falsificar a tradição (guardando apenas o que nos convém) e orientar o ensino em direção ao ensino do bem. Uma dupla observação impôe-se aqui. De início, a análise de autores com que o professor e/ou os alunos estão em desacordo pode ser mais útil que a dos textos que exprimem o senso comum atual: eu poderia procurar compreender em que Gargantua reproduz clichês sexistas ou em que Huck Finn expressa seus preconceitos raciais, em vez de afastar estas obras do programa. Em seguida, impõe-se distinguir entre a força de um pensamento e sua precisão (segundo os critérios em vigor atualmente); visando à educação do espírito, estimaremos mais a primeira do que a segunda: o antidemocratismo de Platão não torna a filosofia grega menos estimulante que um social-democrata contemporâneo.

5. O cânon não é nem imutável nem maleável à vontade. Não desagrada aos conservadores como aos revolucionários. Apenas nosso hábito de nos fechar em oposições rígidas torna difícil sua descrição. O cânon é marcado ao mesmo tempo pela continuidade e por uma transformação incessante; jamais

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foi diferente, muito menos na tradição européia. Ele não exige, além do mais, unanimidade; reflete, apenas, opiniões simplesmente majoritárias.

6. É preciso começar por dominar sua própria tradição: não existem caminhos que conduzam ao universal a não ser os que passam por um particular. O objetivo da educação humanista é, no entanto, mais ambicioso: formar espíritos abertos, tolerantes e críticos ao mesmo tempo. Para procedermos ao necessário desenraizamento ou renúncia às ilusões egocêntricas e etnocêntricas, devemos aprender a afastar-nos de nós mesmos, a distanciar-nos de nossos próprios hábitos, a vê-los como se estivéssemos de fora. A única maneira de chegar a esse ponto é confrontar nossas normas com as dos outros e descobrir a legitimidade destas últimas também (o que não quer dizer que renunciemos aos julgamentos transculturais: a tirania é nefasta em todos os climas).

É nisso que o estudo da história é precioso, assim como o de outras culturas. Não por contribuir com uma ilusória cultura universal, obtida pela adição de obras arrancadas de seu contexto ou para preencher nossas cabeças com um saber enciclopédico; mas para nos mostrar que existe mais de uma forma de ser humano. Isso quer dizer que nos interessamos pelos outros tempos, pelos outros lugares não para julgá-los com nossos critérios de hoje, mas, ao contrário, para esclarecer o presente através do passado, o aqui pelo lá. O estudo das culturas afastadas de nós e, por esta razão, mais difíceis de aceitar pode ser aqui particularmente útil.

Trata-se, dir-me-ão, de exigências irrealistas: as universidades já diminuem a parte do ensinamento humanitário, ora se estará sugerindo que é preciso manter o estudo da "civilização ocidental" e, além disso, acrescentar a ele tanto as "civilizações não-ocidentais" como as tradições marginais!

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Este é, contudo, o preço a pagar se queremos que essas instituições produzam não apenas bons especialistas mas também melhores cidadãos, seres humanos dignos de respeito. zzz 12 O declínio da autonomia

Vários anos se haviam passado desde minha última visita aos Estados Unidos. Também minha temporada durante o semestre de primavera de 1994 em uma universidade da Costa Leste me deu a impressão de me fazer descobrir algumas novas características da vida pública desse país. Esta impressão, uma vez mais, diz respeito apenas ao mundo dos valores: os limites no tempo e, mais ainda, no espaço social que freqüentei (uma rica universidade) não me permitiram ter uma imagem expressiva das realidades sociais ou econômicas.

Se eu tivesse de resumir minhas conclusões em uma fórmula, esta seria: o afastamento de certos valores democráticos e mais particularmente do valor cardinal da autonomia. O nascimento das democracias modernas é solidário com uma transformação na maneira como o indivíduo se representa a si mesmo. Nas sociedades anteriores, por exemplo, no que chamamos na França de o Ancien Régime, o indivíduo se submetia a uma regra que lhe vinha de fora e na qual ele não tinha nenhuma influência: a ordem natural ou o direito divino,

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que constituíam o poder real e as leis do Estado. Na democracia, o indivíduo reclama o direito de ser responsável por sua própria sorte; é dirigido por um governo que ele mesmo e seus semelhantes elegeram, por leis que seus próprios representantes formulam, e ele reserva-se, além do mais, um território privado, sobre o qual nenhum poder, mesmo aquele para cuja instauração ele contribuiu, tem nenhum direito. Nisso o cidadão de uma democracia distingue-se dos súditos do rei no Ancien Régime. A autonomia, essa exigência de só submeter-nos às nossas próprias leis, de sermos os senhores de nosso próprio destino, é política e não social: mesmo que eu deseje me sentir responsável pelos meus atos, continuo a viver em um espaço composto de outras presenças humanas; mais ainda: sou apenas um elemento das redes inter-humanas.

A aspiração à autonomia ainda é hoje um motor potente de transformação da sociedade, nos quatro cantos do mundo. Se os habitantes dos países do Leste rejeitaram com tal unanimidade os regimes comunistas, é, como recordei no início deste livro, em grande parte porque eles os privavam de sua autonomia e de sua dignidade. Esses habitantes não tinham definitivamente a impressão de participar da condução dos assuntos públicos (as

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eleições eram uma farsa) e, além do mais, o aparelho do Partido-Estado podia ter ingerência até em seus espaços privados, não lhes permitindo nenhuma liberdade pessoal. De forma semelhante, os negros da África do Sul viam no sufrágio universal, a que eles acabavam de ter acesso, não uma importação da Europa, mas a possibilidade de afirmar sua autonomia (decidir seu destino) e reencontrar sua dignidade. Mas as mudanças que creio observar nos valores públicos nos Estados Unidos vão em sentido inverso: consistem em exigir menos autonomia. É verdade que esta exigência não é formulada de forma direta, mas está subentendida em toda uma série de manifestações aparentemente independentes.

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otimização

A primeira forma de renúncia à autonomia diz respeito aos indivíduos isolados; ela consiste em se pensar sistematicamente como não-responsável por seu próprio destino, talvez como vítima. Todos os visitantes europeus são atingidos por esta característica da vida americana: aqui, podemos sempre procurar a responsabilidade dos outros por aquilo que não vai bem na vida. Se meu filho cai na rua, a culpa é da cidade, que não fez as calçadas planas o suficiente; se corto o dedo cortando a grama, a culpa é do fabricante de cortadores de grama. Nos processos criminais, a melhor defesa parece ser: eu sou uma antiga vítima, tenho sido maltratado durante anos por meus pais; então, tenho o direito de massacrá-los hoje (ou, uma variante, de levá-los à justiça por todo o mal que me fizeram); fui brutalizada por meu marido, e isso explica por que o castrei. Se não sou feliz hoje, a culpa é dos meus pais no passado, de minha sociedade no presente: eles não fizeram o necessário para meu desenvolvimento. A única hesitação que posso ter é saber se, para obter a reparação, me volto para um advogado ou para um psicoterapeuta; mas, nos dois casos, sou uma pura vítima e minha responsabilidade não é levada em conta.

Ninguém quer ser vítima, isso não tem nada de agradável; em contrapartida, todos querem ter sido; eles aspiram ao estatuto de vítima (já falei a respeito das seqüelas do totalitarismo). A vida privada conhece este cenário já há muito tempo: um membro da família se ocupa do papel de vítima porque, a partir deste fato, ele pode atribuir aos que o cercam um papel bem menos vantajoso, o de culpado. Ter sido vítima lhe dá o direito de se lamentar, de protestar e de reclamar o dia inteiro; se não romperem toda a ligação com a pessoa, os outros são obrigados a atender a seus pedidos. É mais vantajoso permanecer no papel de vítima do que receber uma reparação

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por ter sido submetido a uma ofensa (supondo-se que esta ofensa seja real): em lugar de uma satisfação regular de seus desejos, você guarda um privilégio permanente; a atenção e o reconhecimento dos outros lhe estão assegurados. O que há de novo em nossos dias é que o papel de vítima individual é reivindicado em praça pública.

A configuração vitimária envolve, é verdade, muita gente desempenhando vários papéis cômodos: o de ex-vítima de início, o de seu advogado em seguida. Políticos e estrelas do mundo do espetáculo, eles mesmos, compreenderam que não é suficiente aparecer como vencedores; é necessário estar associado à causa das vítimas. Reside certamente aí uma das mudanças mais fascinantes que se operaram nestes últimos anos na mentalidade americana: a substituição do ideal heróico pelo ideal vitimário. Antes, todo o mundo se vangloriava de ter sido o mais forte; agora, o mais oprimido. Antes, elogiava-se o self-made man; agora, o que apenas sofreu. Os heróis não foram numerosos em nenhuma época; mas o ideal heróico mantinha seu prestígio. Por que o perdeu, de onde vem esta nova "vontade de impotência"? A questão permanece aberta, mas uma das causas é sem dúvida o fato de que esta posição de ex-vítima é mais proveitosa do que a dos antigos heróis.

Todas as ofensas não são imaginárias, é verdade, e as verdadeiras vítimas merecem reparação; e isso não pode ser decidido a não ser caso a caso. O que me inquieta, no entanto, é o lugar proeminente que ocupa a aspiração ao estatuto de vítima no debate público atual. Mas nunca foi inteiramente determinado: nós todos agimos através das forças sobre as quais não temos poder, mas podemos também agir como sujeitos autônomos. Uma das lições morais dos campos de concentração totalitários é precisamente que, até o último momento, o ser humano dispõe de uma escolha: ele pode se deixar levar ou preservar uma parcela de sua dignidade,

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entregar-se ao egoísmo ou ter preocupação com o próximo. Em condições infinitamente menos penosas de nossa vida cotidiana, determinismo e liberdade se misturam em proporções bem mais equilibradas. Se quebro uma perna ao cair, a Providência e eu somos ambos responsáveis; fazer a cidade pagarme uma reparação quer dizer que meu "eu" renunciou a toda a sua autonomia, mas não à sua culpa. Ver-se como livre de toda a responsabilidade diante de seu próprio destino é considerar-se sempre uma criança, um brinquedo nas mãos de forças infinitamente superiores. Nas relações com nossos familiares, nenhum de nós é apenas vítima: a vida afetiva não é unidimensional; aceitamos ser vítimas aqui porque isso nos oferece compensações lá fora. Aquele que foi submetido a um preconceito tem o direito a compensações. No entanto, a compaixão se coloca clandestinamente no lugar da justiça, sugerindo, ao contrário, erroneamente que é suficiente ser fraco para ter razão. Em um segundo momento, o direito de vir a ser como todos transforma-se em reivindicação de privilégio, presume reequilibrar a ofensa imposta. Não é necessário que esta recompensa se traduza em termos legais ou tome a forma de uma indenização material: as vantagens simbólicas são as mais cobiçadas, porque são as mais poderosas. Enfim, o ex-perseguido, uma

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vez no poder, torna-se perseguidor; o desejo mimético, parafraseando Renê Girard, é tão mais inevitável que é ignorado por aquele que ele atinge.

Vinculação a um grupo

A segunda forma de renúncia à autonomia consiste em se pensar antes de tudo como membro de um grupo: se ajo da forma que faço, não é porque o desejo, mas porque pertenço a uma comunidade; minha vontade é alienada em benefício

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do grupo. Os grupos encontram-se, desta forma, valorizados em detrimento dos indivíduos. Nisso também o contraste é gritante entre os Estados Unidos e grande parte do mundo. Não é que os grupos, no interior dos outros Estados, não existam; mas julgamos habitualmente, e com justa razão ao que me parece, que esta existência é na vida pública fonte de conflitos e até de desastres; procuramos então neutralizar as diferenças mais do que acentuá-las.

O fracasso da neutralização explica ao menos em parte as matanças fratricidas entre tutsis e hutus em Ruanda, ortodoxos e muçulmanos na Bósnia, católicos e protestantes na Irlanda do Norte. Seu sucesso, ao contrário, consiste em fazer votar nas mesmas eleições, na África do Sul, brancos, negros e mestiços. É a segunda dimensão da noção de cidadão, indissociável da de democracia: não apenas os cidadãos decidem por si mesmos a condução dos assuntos do país mas, além disso, são todos tão cidadãos quanto os outros, têm os mesmos direitos na vida pública, quaisquer que sejam suas diferenças com relação ao ponto de vista. Esta igualdade de direitos não significa, na verdade, uma igualdade de fato: sempre haverá os mais fortes e os mais fracos, os mais ricos e os mais pobres, os mais belos e os mais feios; a igualdade política é a regra do jogo, não o seu resultado.

Estes grupos, que então existem em todos os lugares, mas se dedicam habitualmente a limitar o papel à esfera privada, encontram-se, ao contrário, confirmados e promovidos na vida pública nos Estados Unidos. Vejo um exemplo original na prática das cotas, mais ou menos oficial nas universidades e em diversas agências governamentais; a idéia de que as pessoas escolhidas, em vista de um emprego, por exemplo, devem ser representativas dos grupos dentro da sociedade dá um estatuto legal a estes grupos. "Em minha universidade", dizia-me uma estudante, "metade dos admitidos deve ser feminina; e desta, metade pode ser branca, e metade desta não

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deve ser americana: em vinte e quatro vagas teóricas, apenas três me são acessíveis."

Um segundo exemplo encontra-se nas tentativas de inclinar o sistema eleitoral de tal forma que ele assegure a representação das "minorias", quer dizer, dos grupos. Ao mesmo tempo que nos indignamos com as práticas de purificação étnica na Bósnia, dedicamo-nos a criar distritos eleitorais etnicamente puros (o famoso 12° distrito na Carolina do Norte, que se estende por 256 quilômetros ao longo de uma estrada); ao mesmo tempo que se felicita a aplicação do princípio

"um homem, um voto" na África do Sul, procura-se encontrar um meio para que os membros das minorias possam dispor de mais de um voto e se assegurar desta forma que tenham seus representantes. Subjacente a todas estas tentativas, está a idéia, primeiramente, de que todos os negros (ou membros de outra minoria) tenham os mesmos interesses e, em segundo lugar, de que um único negro possa defender "os" interesses dos negros, podendo um branco exprimir apenas o ponto de vista branco. Um terceiro exemplo impressionante da institucionalização dos grupos encontra-se em diversas manifestações do que chamamos de "mixofobia", o medo das misturas. Já há algumas décadas, os trabalhadores sociais negros opõemse à adoção de crianças negras por famílias brancas, evocando a ameaça de um "genocídio cultural" e a assustadora perspectiva de se "criarem crianças negras de alma branca". Atualmente, a coisa parece ter-se tornado costume e é com um tom cansado, o dos professores dirigindo-se a alunos particularmente obtusos, que um responsável pela adoção em Cambridge explica aos leitores do jornal: "As adoções transraciais não devem ser tentadas a não ser que todas as outras opções tenham fracassado"; o preferível são as "adoções pela comunidade de extensão (quer dizer, as pessoas da mesma raça, cultura, tribo, religião, etnia)".

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Será preciso que, em um futuro próximo, se dê preferência aos casamentos no interior na mesma raça? Aí, ao menos, estaremos certos de que os espíritos brancos permanecerão brancos e os negros negros? Nas universidades, as comunidades (quer dizer, as pessoas da mesma raça etc.) exigem, e obtêm, dormitórios separados, mesas ou refeitórios separados, centros culturais separados. Ainda não ouvi que tenham pedido ônibus separados para se deslocar ou ao menos uma barreira dividindo o espaço em vários compartimentos: os brancos na frente, os negros atrás, ou o contrário. O ideal de integração parece substituído pelo de segregação.

É interessante observar neste estágio que o ataque contra a vontade geral pode vir tanto da "esquerda" quanto da "direita"; os conservadores não são menos particularistas que os radicais (mas raramente percebemos esta coincidência; as diferenças retóricas encobrem a convergência de fundo). Uns atacam o governo federal em nome dos poderes locais; os outros combatem a "cultura hegemônica" em nome das identidades

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culturais particulares. Vemos facilmente em que consistem as vantagens do fechamento no interior de um mesmo grupo. Ao encontrar-se entre os seus, os que lhe são mais próximos, você adquire um sentido imediato de sua existência (eu não sou nada, eu sou negro/asiático/indígena/mulher/homossexual), uma desresponsabilização (não cabe a mim escolher, mas ao grupo), uma segurança (não vou ter de penar para ser aceito pelos estrangeiros).

Se tal reação não é muito surpreendente, também não é particularmente honorável: por que orgulhar-se do fato de que preferimos sempre permanecer entre aqueles "com que temos mais coisas em comum"? Por que ficar orgulhoso deste combate em favor do apartheid cultural? Percebemos também, passando em revista alguns exemplos, que os grupos em questão não são quaisquer grupos. Seus membros não os escolhem por si mesmos, mas de acordo com a sua vinculação

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de nascença, pela força da biologia ou da história. A raça, o sexo, a etnia - de preferência nos grupos onde a vontade teria representado apenas um papel modesto: uma classe, uma profissão, um partido. Um passo a mais foi dado no afastamento do ideal democrático de autonomia: não apenas o grupo decide pelo indivíduo; ainda por cima, trata-se de um grupo que lhe é imposto.

Identidade e diferença

Na vida pública, os inconvenientes desta política são bem maiores do que as vantagens. No Ancien Regime, as pessoas eram o que eram de uma vez por todas: eu nasci camponês, morro camponês, e este fato decide o meu lugar na hierarquia política do país. Os nazistas e os antigos senhores da Africa do Sul haviam transposto esta regra para as características físicas ou étnicas dos homens, as supostas "raças": os judeus são assassinados porque são judeus. Os países democráticos, ao contrário, sempre valorizaram o que fazemos em relação ao que somos: mesmo que nasçamos necessariamente homem ou mulher, nesta ou naquela cultura, mais ou menos moreno de pele, temos responsabilidade (e disto, podemos nos orgulhar) unicamente sobre o que fazemos; é mesmo um crime contra a humanidade infligir o mal a alguém apenas pelo que ele é. Insistir em sua vinculação de origem mais do que na realização pessoal, contribuir desta forma para o desenvolvimento do "orgulho étnico", como disse ingenuamente o reitor de uma universidade dos subúrbios de Boston, é ir de encontro aos valores democráticos fundamentais. A fórmula "o negro é belo" (Black is beautiful) é tolerável porque diz respeito apenas à estética; "o negro é o correto" seria puro e simples racismo. A política das cotas é, por um lado, absurda, e não pode

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manter aparência justificável a não ser que desprezemos a atividade à qual são destinadas: quem gostaria de ser operado por um cirurgião que tenha obtido o diploma através de um sistema de cotas? Quem gostaria de ouvir uma orquestra cujos membros houvessem sido escolhidos pelo fato de refletir bem a diversidade cultural do país (a Sinfônica de Boston está ameaçada)? A uma casa não pedimos que se desconstrua sozinha, a não ser que seus maçons tenham sido etnicamente representativos. Esta política é, por outro lado, perigosa, porque toda cota positiva ("ao menos 40% de...") esconde uma cota negativa ("não mais que 60% de..."); a caça aos judeus entre os profissionais liberais na Europa, antes da guerra, não começou de outro modo.

Isso não é tudo. Favorecer grupos significa correr o risco de obstruir qualquer política eficaz, já que a sociedade se torna terreno de confronto entre interesses particulares em vez de ser local de busca de um interesse geral. Mas de qualquer forma, por mais justa que seja para a comunidade como um todo, tal favorecimento lesa os interesses de um grupo particular: o dos homófilos prejudica os homófobos, o dos escritores que simpatizam com os animais (como Alice Walker) desagrada aos comedores de carne (aparentemente majoritários no Conselho de Educação da Califórnia, que condenou à exclusão alguns romances da escritora!). Reduzir os indivíduos a seu grupo biológico de origem os empobrece e rebaixa; em conseqüência, empobrece singularmente a herança comum da humanidade.

É desolador ver que, cem anos depois do caso Dreyfus, são de novo os antidreyfusistas que ganham: os que pensam que a identidade do indivíduo é inteiramente determinada pelo grupo étnico ou biológico ao qual pertence. "Parei de ler os autores masculinos durante dez anos", confessa orgulhosamente uma leitora do Times, "foi apaixonaste." Se isso é verdade, não será porque os livros escritos pelas mulheres revelam,

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como os escritos pelos homens, a experiência humana em toda a sua riqueza e não porque o sexo do autor é o mesmo do do leitor? O sexismo e o racismo permanecem condenáveis, mesmo quando são assumidos por suas antigas vítimas.

A identificação com o grupo leva à sua defesa incondicional ("My country, right or wrong", uma vez mais; mas eu me recordo que o sinistro comandante de Auschwitz, Rudolph Hoess, também havia feito seu este lema) e à depreciação simultânea de toda dissidência, de todo representante atípico ou marginal, suspeito de ser revisionista ou traidor, e ameaçado de ostracismo ("Ralph Ellison não é um escritor negro"). O encorajamento dos grupos constitui terreno fértil sobre o qual se desenvolve o nacionalismo mais intolerante:

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Shelby Steele tem razão ao observar que o sucesso de personagens como Louis Farrakhan, o dirigente anti-semita da nação do Islã, é conseqüência, distante e no entanto direta, dos "programas de diversidade", complacentemente aplicados por administradores que se julgam a si mesmos "liberais".

A diversidade não é boa e bela por si mesma, não é a virtude social suprema? A sociedade melhor não é a sociedade mais diversa? É preciso dizer de início que a resposta a esta pergunta não poderá ser um "sim" incondicional. Se uma sociedade é democrática de maneira homogênea, não virá ao espírito de ninguém reclamar a introdução de certa dose de fascismo - justamente para ter um pouco mais de diversidade! Não apreciamos a diversidade se ela nos parece nociva; quer dizer, o julgamento de valor do diferente e do idêntico está subordinado ao do bem e do mal.

É preciso acrescentar que, contrariamente ao que afirma com freqüência uma retórica desnorteaste, a defesa da diferença vem de um pensamento conservador. As diferenças são um dado, a unidade só pode ser resultado de um esforço; os

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regionalistas protetores de sua herança singular são conservadores, os jacobinos, que querem transformar o mundo à imagem de seu ideal, são revolucionários. É o chefe Buthelezi quem exclama, na véspera das eleições sul-africanas: 'A Aliança Nacional Conservadora quer destruir a cultura zulu!" Não desejo rejeitar o direito de cidadania aos conservadores nem à parte conservadora de cada um de nós, mas acontece que não faço dela meu ideal; prefiro colocar neste lugar o diálogo, que pressupõe uma diferença entre Mim e Você, e também um quadro comum, a vontade de compreender o outro e comunicar-se com ele.

É preciso dizer, sobretudo, que com muita freqüência a retórica da diferença, sob pretexto de fazer o elogio da pluralidade, é apenas uma camuflagem oportunista para uma aspiração à identidade. Conhecer melhor minha própria tradição, encontrar-me entre meus semelhantes e eles apenas, toda a auto-segregação nova que reina nos campus: isso não tem nada a ver com o elogio da diferença. Sob pretexto de uma luta pela diferença e pela pluralidade, aspiramos à constituição de grupos menores mas mais homogêneos: uma Québec onde encontremos apenas francófonos, um dormitório onde deparemos apenas com negros. Eis um dos resultados paradoxais - e no entanto previsíveis -- da política das cotas: introduzida para assegurar a diversidade no interior de cada profissão, ela propaga, ao contrário, a idéia de homogeneidade no seio de cada grupo étnico, racial ou sexual. A diferença não é um valor absoluto, mas aprender a viver com os outros é na verdade preferível ao isolamento covarde no interior da identidade. Ser obrigado a falar com seres diferentes leva cada um a não se tomar muito como o centro do universo, injeta certa dose de tolerância, enriquecendo seu espirito. A diferença é boa no sentido em que nos abre para a universalidade: é preciso observar as diferenças, dizia Rousseau, para descobrir as propriedades.

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A comunidade das vítimas

O primeiro afastamento dos valores democráticos consiste em renunciar à responsabilidade diante de sua própria vida e a se colocar no papel de vítima: papel vantajoso mas inteiramente passivo. O segundo afastamento equivale a desvalorizar sua identidade individual e ver-se apenas como membro de um grupo; coisa ainda mais grave, de um grupo ao qual não escolhemos pertencer: sexo, raça, etnia. Os dois afastamentos podem também se combinar e produzir então o que é provavelmente a figura mais característica do abandono atual da autonomia: o fato de apostar na vitimização coletiva, de se apresentar como membro dócil de um grupo que tem na sociedade estatuto de vítima. O mecanismo é semelhante ao que podemos observar no caso dos indivíduos, mas ainda mais rigoroso. Se estabelecemos de forma convincente que tal grupo havia sido vítima de injustiças no passado, isso lhe abre no presente uma linha de crédito inesgotável. Donde a competição para obter, não como entre países, a causa da nação mais favorecida, mas a do grupo mais desfavorecido. O que são seis milhões de judeus mortos, e ainda por cima fora da América? Exclama Farrakhan: "O holocausto do povo negro foi cem vezes pior do que o holocausto dos judeus." Vítima, vítima e meia.

A sociedade reconheceu que os grupos, e não apenas os indivíduos, possuíam direitos e queriam desfrutá-los; mas, quanto maior foi a ofensa no passado, maiores são os direitos no presente. Em vez de lutar mais para obter um privilégio, recebemo-lo de graça pelo simples fato de pertencermos ao grupo outrora desfavorecido.

Que a antiga vítima merece ser tratada não como todos os outros, mas melhor que os outros, está, no entanto, longe de ser evidente. A história nos ensinou mil vezes: o fato de ter sido vítima no passado não impede que nos tornemos carrascos

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no presente. Para justificar a agressividade do Estado alemão, Hitler estava constantemente falando da humilhação infligida aos alemães no fim da Primeira Guerra Mundial. Para fundamentar sua agressão presente na ex-lugoslávia, os sérvios cobram incansavelmente o estatuto de ex-vítimas: dos turcos, dos alemães, dos croatas etc. Cada um de nós poderia completar esta lista com outros exemplos da história recente. Por outro lado, a atribuição de um novo privilégio, desta vez à antiga vitima, não repara, evidentemente, a injustiça do passado: ela mantém a estrutura da ofensa, contentando-se em mudar os atores. Antes, entre os candidatos a um cargo, eram os homens e os brancos que eram privilegiados; agora são as mulheres e os negros, mas os privilégios sempre existem.

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É preciso entender: não há nenhuma medida comum entre as injustiças sofridas pelos negros por parte dos brancos (enormes) e as infligidas atualmente aos brancos (de certa forma suportáveis); os brancos não são linchados nas estradas, os maridos não são regularmente espancados pelas esposas embriagadas. A manutenção da antiga estrutura, no entanto, torna mais lenta a cura da ferida em vez de acelerála; no caso particular das "raças" e das etnias, alimenta o ressentimento e mantém o ciclo da violência e da contraviolência.

As leves mudanças recentes da política visando a combater o "assédio sexual" inscrevem-se igualmente neste contexto. Assim como é preciso continuar a combater as manifestações de discriminação racial, ainda mais freqüentes com relação aos negros, é preciso lutar para que desapareça o direito do "senhor de dormir com a escrava recém-casada antes do marido", do qual desfrutam alguns detentores do poder, chefes de empresas ou professores de universidade. A perspectiva dos direitos que derivam do estatuto de vítima, no entanto, transformou tudo isso. Podemos nos queixar

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agora de uma imagem, de um gesto, de um propósito concebido "em contexto desagradante, intimidante ou hostil" ou testemunhando, em todo o caso, uma "indiferença com relação à experiência das mulheres", que poderiam, em alguns casos, até "se sentir pouco à vontade", e obter reparações (ou, ao menos, a punição da pessoa incriminada; mas o sofrimento dos outros faz também a nossa felicidade, ensina-nos a sabedoria das nações).

Algumas conseqüências desta interpretação do sexual harassment podem fazer rir. Assim, o Fogg Art Museum, da Universidade de Harvard, inventou o equivalente moderno das folhas de parreira: em vez de esconder a nudez feminina, neutralizamo-la imprimindo na parede, ao lado do quadro, textos do tipo: "A sereia constitui um perigo fatal para o homem determinado comercialmente. A representação da sensualidade da sereia pelo artista/poeta e por seu modelo permite ao espectador masculino vitoriano estabelecer um sentimento de domínio e superar, por meio dele, o medo da impótência, ao mesmo tempo sexual e comercial."

É verdade que existe certo pudor no fato de exigir que cada ação cultural seja uma reparação de alguma injustiça passada: já não há nenhum espetáculo, nenhuma exposição, nenhum curso em universidade que não se apresente como uma boa ação, como uma contribuição à causa de algum grupo desfavorecido. Isso é, no entanto, um inconveniente menor. Outros são piores, na medida em que as vítimas desta febre virtuosa não são os palcos ou os espetáculos, mas sim seres humanos vivos, como o professor da Universidade de New Hampshire que é acusado não de ter abusado de suas alunas ou de ser mau professor, mas de ter, por observações de gosto duvidoso, criado uma atmosfera em que as mulheres se sentiam pouco à vontade. Qualquer que seja a decisão final acerca dele - licenciamento, obrigação de seguir um sensitivity training ou reintegração -, a vida deste homem está

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marcada para sempre por um episódio como este. Imaginamos facilmente que clima nocivo de caça às bruxas, de apelo às denúncias, de encorajamento dos fantasmas entre os "ofendidos" se encontra sustentado por tal situação.

Podem me refutar: e a vida destas jovens mulheres não corriam por sua vez o risco de ser marcadas pelas observações desagradáveis sobre as mulheres ou pelas imagens degradantes? Pode ser que seres de tal fragilidade existam, é verdade. No entanto, a reação - a busca de uma sanção administrativa - não me parece apropriada à ofensa. De início, porque ela consiste em confundir a sociedade civil com o Estado e suas administrações. Exigir que o Estado assegure nosso bem-estar interior, que ele persiga os "indícios de malestar", parece-me excessivo e até mesmo perigoso; o passo seguinte dentro da renúncia voluntária à sua autonomia seria fazer controlar a qualidade de todas as nossas relações através de agentes do Estado, pedir-lhes que sejam onipresentes. O Estado e suas administrações não têm de se imiscuir nisso.

A idéia que fazem os grupos uns dos outros na interior da sociedade marca, e deve marcar, a vida social, não a legislação ou a ação governamental. Diante da lei, os indivíduos pedem igualdade; na vida social, procuram uma coisa completamente diferente de uma igualdade incolor e inodora: seu reconhecimento através dos outros, uma confirmação de sua existência. Este reconhecimento é obtido através do domínio dos códigos culturais, diferentes de um país para o outro, de uma época para outra, e através de uma infinita negociação, que constitui a própria vida: exigimos e cedemos, damos e recebemos. As crianças confundem ingenuamente desejo e direito: "Tenho o direito de ganhar um bombom!"; os adultos acabam por aprender que satisfação e felicidade não se pedem, mas são negociadas e renegociadas ao longo de toda a existência.

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O futuro da democracia

A autonomia dos indivíduos, valor democrático fundamental, está atualmente em retração; é preciso certa dose de ingenuidade ou uma demagogia muito hábil para nos fazer tomar este ataque da democracia por sua defesa. Devemos, então, de início, ousar chamar as coisas por seus nomes. Como explicar este recuo? É porque, como dizem freqüentemente os inimigos da democracia, ela vai ao encontro da natureza humana, ou porque ela está condenada a produzir o contrário do que proclama? Não acredito. A aspiração à autonomia não é mais "natural", é verdade, do que a necessidade de segurança, apaziguada com freqüência por uma renúncia à autonomia. Já evoquei a tentação, particularmente visivel

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sob o totalitarismo, de "escapar à liberdade", assegurando-nos desta forma paz e conforto interiores; mas o contrário também existe. Olhemos à nossa volta: já que outros males próprios à sociedade industrial se encontram na Europa, o retrocesso da autonomia individual como ideal é um fenômeno especificamente americano. Em outro plano, a mesma oposição se repete no resto do mundo: quando cresce na África do Sul a autonomia, ela diminui na Argélia. Sem dúvida porque vivi sob um regime comunista que reprimia severamente qualquer simples desejo de autonomia individual, sinto-me pessoalmente atingido toda vez que eu constato este retrocesso, mesmo que nenhuma força exterior o imponha.

A causa desta diminuição nos Estados Unidos não deve ser procurada numa violência vinda de fora nem na própria lógica democrática, mas na história específica desse país. Sem querer substituir os americanistas, sugeriria que sua fonte é uma perversão, um desvio dos valores modernos, mais do que um desvio puro e simples dos valores tradicionais. A tentação de adquirir estatuto de ex-vitima não provém de tempos remotos; é conseqüência de uma das mais

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belas aquisições da democracia: o reino da justiça e da esperança de obter a reparação das ofensas. O desejo de se enclausurar na identidade coletiva, como se manifesta atualmente nos Estados Unidos, não equivale à vinculação e à submissão ao grupo na sociedade tradicional: estas são imprevistas, aquele é imaginado e reivindicado. Ele já não coincide com a rejeição totalitária da autonomia, tal já como pudemos observar. Na sociedade totalitária, o grupo dirigente (o Partido) exerce sua própria autonomia, mas aliena inteiramente a dos cidadãos comuns: o indivíduo vive na crença de uma punição proveniente do Estado onipotente. Nos Estados Unidos, são os próprios indivíduos, longe de qualquer ameaça da parte do Estado, que escolheram perceber-se como representantes de grupos ou como vítimas impotentes do destino. Falar aqui de "totalitarismo covarde", como se faz às vezes, parece-me excessivo.

Esta renúncia à autonomia seria então resultado paradoxal de seu exercício. Não podemos, no entanto, sentir-nos seguros pelo simples fato de que a origem destas perversões democráticas é perfeitamente legitima; sabemos atualmente que as melhores intenções podem produzir resultados particularmente catastróficos. Certo exercício ilimitado de autonomia pode esgotá-la: o resultado deste ato é grave, qualquer que seja a origem distante.

Creio que podemos e devemos resistir a esta desagregação dos valores democráticos. Mas como? Tenho pouca esperança de que o debate intelectual influencie as convicções e os comportamentos dos partidos que se interessam por uma oferta em dinheiro, dos que se beneficiam com a nova situação. Todos os argumentos que alinho, e outros ainda, já foram formulados aqui e ali, com freqüência com mais detalhes e nuanças. No entanto, pouco se trata aqui das práticas. É que nossas convicções provêm menos das argumentações lógicas e mais de nossas necessidades existenciais. A realidade

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é sempre suficientemente complexa para ilustrar qualquer teoria; a nacionalidade instrumental não é privilégio de ninguém.

Em contrapartida, os encarregados de defender o interesse geral, e não este ou aquele interesse particular, podem compreender que algumas políticas, propostas com boas intenções, perpetuam o mal mais do que o atenuam: é preciso, então, abandoná-las. Porque o ataque contemporâneo aos valores democráticos não nasceu espontaneamente, a partir da base; vem de mais alto, é efeito de uma política governamental. Os que instauraram esta política não são idênticos aos que vão desfrutá-la de imediato; é preciso não confundir as instâncias administrativas e governamentais com os membros de minorias há muito tempo desfavorecidas. Parece reinar nos espíritos uma confusão nefasta entre a esfera política e a esfera social: ao mesmo tempo que o egoísmo e a uniformidade se estendem dentro desta, renunciamos naquela (para remediá-la?) às idéias de autonomia e de cidadania. Tudo se passa como se quiséssemos compensar as carências da sociedade com medidas administrativas simples: os valores comunitários desaparecem, elegeremos deputados-representantes das comunidades; o indivíduo está perdido na sociedade de massa, legalizaremos então, para assegurá-lo, o estatuto de antiga vítima.

Uma confusão como esta é funesta; e é esta política voluntarista que pode ser mudada. Não se impedirá jamais o indivíduo de preferir encontrar-se entre pessoas semelhantes mais do que com estranhos; mas podemos exigir que esta preferência seja limitada à vida privada e não adquira jamais estatuto administrativo ou legal. As elites governamentais, desde o presidente de uma instituição para adoção até o presidente dos Estados Unidos, podem influenciar na evolução da vida pública; elas serão, então, consideradas responsáveis - pelo melhor e pelo pior.

Em Paris

Eu havia terminado meus estudos universitários na Bulgária quando um dia surgiu a possibilidade de ir passar algum tempo na "Europa". A Bulgária não se encontra, no entanto, na Ásia ou na África; mas Europa era o nome, pronunciado com cobiça, que dávamos a países como a Alemanha e a Itália, a França ou a Inglaterra. Não hesitei um instante: entre todos os lugares do mundo, era em Paris que desejava estar. Alguns meses depois, desembarquei na estação de Lyon.

Por que Paris e por que a França? Não era por uma questão de idioma. O francês era na época a língua "ocidental" mais ensinada (foi destronada pelo inglês), mas isso não havia contado no meu caso. Os intelectuais búlgaros são conscientes de que habitam um

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pequeno país cuja língua não é falada por ninguém senão eles mesmos; eles também aprendem de certo modo voluntariamente línguas estrangeiras. Eu havia começado, por acaso, pelo inglês; aprendi em seguida o russo, depois o alemão. Não havia realmente começado o francês até o momento em que a viagem a Paris surgiu no horizonte.

A Bulgária não teve, no passado, relações contínuas com a França. As ligações tradicionais eram com a Rússia, por um lado, e com a Alemanha, por outro: esta é mais próxima geograficamente da Bulgária e misturou-se mais de perto à

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sua história; nossos reis, até o final da Segunda Guerra Mundial, eram "Saxe-Coubourg-Gotha", palavra cuja pronúncia era um desafio para nossas bocas infantis. Era para a Áustria ou para a Alemanha que partiam, antes da guerra, os filhos (e mais raramente as filhas) de boa família, quando queriam estudar ou simplesmente ver "a Europa". Alguns artistas, alguns sábios também passaram pela França (por Nancy, creio), mas não eram forçosamente os mais estimados: a educação germânica tinha reputação de ser mais sólida.

Por que, então, escolhi Paris? Sem dúvida por causa de um amigo, de sobrenome Karata (ele encontrou a morte depois, em um acidente de avião). Era um advogado de província, dez anos mais velho que eu, que vinha com freqüência a Sófia, um ser cujos propósitos extraordinariamente brilhantes revelavam que não escondiam um pessimismo profundo. Ele dizia sorrindo: Estou tão desesperado que, a menos que esteja bêbado, estarei perdido! Ouvi-lo era como comparecer a um banquete em tempos de peste: ele observava com elegância e humor um mundo absurdo (metafisicamente falando). Eu estava completamente subjugado por ele. Mas, se Karata falava várias línguas, era para a França e Paris que iam todas as suas simpatias. Em seu escritório ele possuía, preso numa parede, um mapa de Paris (ele mesmo jamais havia deixado a Bulgária), do qual ele nunca precisaria, já que o conhecia de cor. Ele era capaz de falar durante horas sobre as características de cada bairro parisiense: quem o havia habitado, quem o freqüentava; citava até a publicidade vista nos túneis do metrô. Seu amor por Paris era como um pequeno jardim de felicidade no meio de um universo devastado; seu riso debochado cessava nas portas deste jardim, e falava dele com ternura, quase ingenuamente.

Creio que este amor por Paris se encontra em numerosos indivíduos, habitando os países mais diversos, indivíduos que

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jamais saíram deles. Não é fácil dizer de que eles se alimentam. De livros? De reproduções de quadros (impressionistas)? Dos relatos de viagens dos que tiveram a sorte de ir até lá? De tudo

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isso e de outras coisas que compõem, em uma mistura de que ignoro a receita, uma imagem de Paris e da França que suscita uma profunda nostalgia. O que significa. esta imagem? Karata não me disse na época e não está mais lá para que eu possa perguntar-lhe. Se fosse preciso designá-la por uma só palavra, eu escolheria "civilização", termo empregado então exclusivamente no singular e que deveria significar um justo equilíbrio entre a especulação abstrata e a fonte da vida material, a intensidade do pensamento e a beleza da forma. A França deveria nos aparecer como uma encarnação deste ideal de vida civilizada.

Encontrei eu realidade à altura de minhas esperanças? As decepções não faltaram, claro. Descobri entre meus colegas, sábios ou escritores, uma mistura de ignorância e de presunção que me surpreende. Um espirito bem provinciano é acompanhado com freqüência de um orgulho nacional que nada vem justificar. No entanto, pouco a pouco, eu mesmo me tornei francês. A França me é tão familiar atualmente que minha imagem dela empalideceu e não sei mais dizer como ela é. Ela não é certamente a encarnação do bem, mas não lhe peço tanto e, de resto, já que acredito nas encarnações (políticas) do mal, não penso que o bem possa verdadeiramente se instalar em alguma parte. A França é um país entre outros, livre do mal que conheci lá fora, mas não de diversas outras falhas, apesar de suas qualidades; mas é agora o meu país.

Eis que me encontro escrevendo mais em francês do que em alemão ou em inglês. Mais de trinta anos me separam da fria manhã de abril em que desembarquei na plataforma da estação de Lyon. É apenas na volta de viagens ao estrangeiro (há muito tempo a França não significa partir, para mim) que,

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nas estradas que me levam do aeroporto à cidade, eu sinto este aperto no coração familiar, que me deixou tão agitado na véspera da primeira partida: é Paris! Cheguei a Paris! E lamento por aqueles que não a conhecem.

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'Salvo indicação em contrário, o lugar de publicação é Paris. 250

Tzvetan Todorov

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