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SUA ALTEZA REAL
Thomas Mann
Sua Alteza Real
Tradução de
Lya Luft
EDiTORA
NOVA
FRONTEIRA
! Título Original: KNIGLICHE HOHEIT�
c' 1909, by S. Fischer Verlag Berlin�
Com a permissào de S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main
1�
Direitos de ediçào da obra em língua portuguesa no Brasil, adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP: 22.461 - Tel.: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR
io de Janeiro, RJ
,
,' emsào da tradução��
; L, ... CAR S ALBERTO MEDEIROS�
1
Itevisão tipográfica
UE TARNAPOLSK �
HEt`¢RIQ
GU/ REN TO ROSARlO CARVAL.HO��
ERTO FIGUEIREDO PIN'r0
CIP-Brasil. Catalogaçào-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Mann, Thomas, 1875-1955.
M246s Sua Alteza Real / Thomas Mann; tradução de Lya Luft. Rio de Ja-�
neiro: Nova Fronteira, 1985.
(Coleção Grandes romances)
Tradução de: Knigliche Hoheit�
1. Romance alemão I. Luft, Lya 11. Título lll. Série
CDD - 833
85-0270 CDv - $30-31
81ï3l.lOTü,.íS't.: . i;;.i i',":;'It�� ��� � �
SUMÁRIO
.
Pr<slogo, 7
A não mirrada, ll�
O país, 35
O apateiro Hinnerke, 47�
O doutor Überbein, 73
All.,recht II, 115
A nobre vocação, 151
Imma, 173
A realização, 271
A roseira, 329
PRÓLOGO
dia de semana, por volta do meio-dia, não importa a estação�
do ano - estamos na Albrechtsstrasse, aquela artéria da Re-
sidência que liga a Praça Albrecht e o Castelo Velho com a
caserna dos fuzileiros da Guarda. O tempo é razoavelmente
bom, indiferente. Não chove, mas o céu também não está limpo;
é de um branco acinzentado, todo igual, comum, vulgar, e a
rua jaz sob uma luz fosca e pobre, que exclui qualquer mistério
ou fantasia. O tráfego é regular, sem muito rumor ou aperto,
combinando com o caráter tranqüilo da cidade. Passam bondes
deslizando, alguns coches rodam, nas calçadas caminham mora-
dores, gente incolor: transeuntes, público, povo.
Dois oficiais, mãos nos bolsos dos paletós cínzentos, vão
um ao encontro do outro: um General e um Tenente. O General
vem do Castelo, o Tenente, dos lados da caserna. O Tenente
é muto jovem, imberbe, quase menino. Tem ombros estreitos,
cabelo escuro e zigomas salientes como muita gente naquela
terra, olhos azuis um pouco fatigados, rosto de rapazinho de
expressão amavelmente reservada. O General tem o cabelo todo
branco, é alto e forte, uma figura imperiosa. As sobrancelhas
parecem algodão branco, a barba e o bigode são hirsutos na
boca e no queixo. Anda devagar, espada tilintando sobre o as-
falto, a pluma do capacete ondulando ao vento, e a grande
gola vermelha de seu casaco balança lentamente a cada passo.
7
F
E assim vão ao encontro um do outro. Haverá complicações?
, Impossível. Qualquer observador verá logo que é um encontro
natural. Há a relação entre velho e moço, comando e obediên-
cia, méritos antigos e brando aprendizado, há entre eles uma
enorme distância hierárquica, há prescrições a cumprir. As coi-
sas vão tomar seu curso natural! Mas, em vez disso, que acon-
tece? Uma cena surpreendente, penosa, encantadora e inver-
í
tída: ao ver o jovem Tenente, o General modifica singularmente
sua postura. Controla-se, mas mesmo assím parece dímínuír de
tamanho. Imediatamente, reduz a magnificência de sua atitude,
sustém o ruído da espada e, enquanto o rosto assume uma
expressão séria e inibida, vê-se que não sabe para onde olhar,
e tenta disfarçar tanto que acaba olhando fixamente para o
chão, par debaixo das sobrancelhas alvas. Também o jovem
Tenente, se observarmos bem, reveIa certo constrangímento que,.
estranhamente, parece dominar, com graça e disciplina, melhor
que o grisalho comandante. A tensão de sua boca transforma-se
num sorriso a um tempo modesto e bondoso, os olhos passam
pelo General com uma calma controlada, aparentemente natu-
ral, e perdem-se na dístâncía. Agora, os doís estão a um passo
um do outro. Então, em vez de executar os prescritos sinais
de respeito, o Tenentezinho deita um pouco a cabeça para trás,
retira do bolso do casaco a mão direita - e só ela, o que
chama atenção - e, com essa mão, de luva branca, faz um
pequeno gesto, animador e amável, muito ligeiro, apenas vi-
i rando a palma para cima e abrindo os dedos; mas o General
,
que aguardara o sinal com braços caídos ao longo do corpo,
leva a mão ao elmo, afasta-se para o lado liberando a calçada,
com uma leve mesura, e saúda o Tenente de baixo para cima,
com rosto vermelho e expressão devota nos olhos aguadas. O
Tenente, mão no gorro, responde ao cumprímento de seu su-
perior, animando todo o rosto com uma amabilidade infantil. . .
e segue adiante.
Milagre! Cena fantástica! Ele segue adiante! As pessoas
o seguem com os olhos, mas ele não vê ninguém, olha direta-
8
mente em frente; de maneira vaga, com a expressão de uma
' mulher que se sabe observada. As pessoas o cumprimentam:
ele devolve a saudação, cordial mas distante. Parece não cami-
nhar com muita facilidade, como se não estivesse habituado
a usar as pernas, ou como se a atenção dos outros o inibisse;
tão irregular e hesitante é esse passo que por vezes ele parece
' mancar. Um guarda assume posição de sentido, uma senhora
elegante, saindo de uma loja, sorri dobrando o joelho numa
mesura. Todos o seguem com o olhar, fazem sinais com a
cabeça em sua direção, arqueiam as sobrancelhas, pronunciam
seu nome baixinho . . .
É Klaus Heinrich, o irmão mais moço de Albrecht II,
sucessor direto do trono. Lá vai ele, ainda o podem ver. Co-
nhecido de todos, mas mesmo assim .um estranho entre as
pessoas, ele anda na multidão, rodeado de um vazio. Caminha
solitário e carrega nos ombros estreitos o peso de sua nobreza.
9
A MÃO MIRRADA
Quando os vários meios de comunicação modernos trouxeram
à Residência a notícia de que, em Grimmburg, a Grã-Duquesa
Dorothea dera à luz, pela segunda vez, um Príncipe, foram
disparadas salvas de tiros. Setenta e dois tiros reboando sobre
; cidade e campo, disparados pelos militares da muralha da "ci-
dadela". Logo depois, também os bombeiros dispararam suas
armas, a fim de não ficarem para trás; mas entre suas deto-
nações havia demorados intervalos, o que muito divertiu a
população.
Do alto de uma colina arborizada, Grimmburg dominava
a pitoresca cidadezinha de igual nome, que refletia no braço
do rio seus telhados cinzentos e obliquos; da capital chegava-se
lá em meia hora com o trem local subvencionado. O Castelo
ficava no alto, edificação arrojada, construída em tempos re-
motos pelo Marquês Klaus Grimmbart, antepassado dos atuais
príncipes. Fora várias vezes reformado e modernizado desde
então, e sempre o mantinham habitável, respeitado especial-
mente como sede daquela estirpe de governantes e berço ds
dinastia. Pois a lei e a tradição da Casa dizíam que todos os
descendentes diretos de Grimmbart, todos os filhos do casal
governante, deviam nascer ali. A tradição não devia ser negli-
genciada. O país já tivera soberanos lúcidos e contestadores
que tinham zombado daquilo, mesmo assim submetendo-se
11
num dar de ombros. Agora seria tarde para se desviar da
tradição. Sensato e adequado aos tempos, ou não - por que _
romper desnecessariamente com um hábito respeitável que se
mantivera por tanto tempo? O povo o considerava importante.
Duas vezes, no curso de 15 gerações, filhos de governantes
tinham vindo à luz em outros castelos, por obra do acaso:
os dois tinham tido um fim pouco digno e violento. Mas de
Heinrich o Penitente a Johann, o Violento, além de suas ado-
,
ráveis e altivas irmãs, até Albrecht, pai do Grão-Duque, e ele
mesmo, Johann Albrecht, todos os soberanos do país e seus
irmãos e irmãs tinham vindo ao mundo ali; e há seis anos
Dorothea dera à luz, naquele lugar, seu primeiro filho, o Grão-
Duque herdeiro . . .
De resto, o Castelo era um refúgio tão digno quanto sos-
segado. Preferiam-no como residência de verão por causa do fres-
cor de seus aposentos e do sombreado encanto de suas redon-
dezas, até mesmo ao Hollerbrun de encanto tão rígido. Subir
da cidadezinha pela ruela de calçamento grosseiro entre casas
pobres e um muro rachado, passando por portais imensos até
a antiqüíssima estalagem e taverna na entrada do pátio do
Castelo, em cujo centro ficava a estátua de pedra de Klaus
Grimmbart, era pitoresco, embora não fosse confortável. Mas
um parque imenso cobria a encosta da colina do Castelo e,
por cômodos caminhos, passava por florestas e ondulações sua-
ves, com muitos lugares para passeios de carruagem ou tran-
qüilas caminhadas.
O interior do Castelo, ainda no início do reinado de
Johann Albrecht III, fora objeto de ampla remodelação e em-
belezamento, e os gastos tinham sido muito comentados. A
decoração das salas de estar fora completada e renovada em
estilo a um tempo nobre e aconchegante, as lajotas com o bra-
são da "Sala de Audiências" refeitas exatamente segundo O
padrão antigo. O dourado dos arcos cruzados das abóbadas
estava brilhante, todos os aposentos eram forrados com par-
quê, e o grande salão de banquetes, assim como o pequeno,
fora ornamentado com enormes pinturas murais pela mão de
artista do Professor von Lindemann, excelente pintor acadê=
mico, quadros representando a história daquela casa, executa-
dos em estilo simples e luminoso, sem nada das inquietações
das tcndências modernas. Nada faltava. Como as velhas larei-
ras e os fogões singularmente coloridos, que se erguiam em
terraços redondos até a altura do teto, não tivessem mais con-
dições de uso, haviam instalado até fogões a carvão, pensando
na possibilidade de alguma estada no inverno.
Mas no dia dos 72 tiros estava-se na melhor estação do
ano, fim da primavera, começo do verão, inícios de junho,
um dia depois de Pentecostes. Johann Albrecht, avisado por
telegrama, bem cedo, de que o parto começara ao amanhecer,
chegou às 8h, no trem local, à estação Grimmburg, foi rece-
bido com felicitações por três ou quatro personalidades oficiais
- o prefeito, o juiz, o pastor, o médico da cidadezinha -,
e se dirigiu imediatamente, de carro, ao Castelo. Acompanhan-
do o Grão-Duque, chegaram o Ministro de Estado Dr. von
Knobelsdorff e o General-de-lnfantaria Conde Schmettern.
Pouco depois reuniram-se ainda no Castelo dois ou três minis-
tros, o pregador da Corte e conselheiro da Igreja Dr. Wislizenus,
dois cavalheiros com cargos na Corte e um jovem ajudante, o
Capitão von Lichterloh. Embora o médico pessoal dos Grão-
Duques, o General-Médico Dr. Eschrisch, estivesse junto da par-
turiente, Johann Albrecht teve o capricho de chamar o jovem
médico do lugar, um certo Dr. Sammet, que ainda por cima
era de origem judaica, e pedir que o acompanhasse ao Castelo.
O médico, simples, trabalhador e sério, muito atarefado e jamais /
imaginando que lhe fariam tal honra, gaguejou várias vezes:
Com prazer. . . com prazer. . . - o que provocou al-
guns sorrisos.
Grâ-Duquesa dormia na "alcova nupeial", aposento de
cinco cantos, com pinturas bem coloridas, que ficava no pri-
meiro andar e, através da janela, oferecia uma visão luxuriante
de flvrestas, colinas, e sinuosidades do rio, emoldurada por
13zzz
um friso de retratos em forma de medalhão, pinturas de noí-
vas reais que tinham vívido ali nos dias dos antigos senhores.
Dorothea estava deitada naquele quarto; no pé da cama via-se
presa uma fita larga e forte, a qual ela segurava como uma
criança bríncando de dirigir um coche, e seu belo corpo opu-
lento fazia um trabalho muito duro. A Dra. Gnadebusch, a
parteira, mulher suave e sábia, com mãos pequenas e finas e
olhos castanhos aos quais os óculos redondos e grossos con-
feriam um brilho misterioso, apoiava a Princesa e dizia:
- Força, força, Alteza Real. . . vai ser rápido. . . vai ser
bem fácil. . . a segunda vez. . . não é nada. . . Descanse: afaste
os joelhos. . . e sempre o queixo sobre o peito. . .
Uma auxiliar, vestida, como ela, de linho branco, tam-
bém ajudava e, nos intervalos, andava por ali silenciosamente
com frascos e ataduras. O médico pessoal, homem sombrio de
barba grisalha, cuja pálpebra esquerda parecia paralisada, assistia
o parto. Usava um avental de cirurgia sobre o uníforme de
General-Médim. Por vezes, aparecia na alcova para verificar os
progressos do parto a governanta de confiança de Dorothea,
Baronesa de Schulenburg-Tressen, dama corpulenta e asmática
de aparência fortemente pequeno-burguesa, mas que nos bailes
da Corte costumava expor o enorme busto. Ela beijava a mão
de sua ama e voltava ao próprio quarto, onde duas damas da
Corte, muito magras, conversavam com o camareiro da Grã-
Duquesa, o Conde Windisch.
O Dr. Sammet, que vestira o avental de linho como uma
fantasia sobre o fraque, postava-se junto do lavatório numa
postura modesta e atenta.
Johann Albrecht ficou num aposento abobadado que con-
vidava ao trabalho e à reflexão, separado da "alcova nupeial"
apenas pelo toucador, a "sala de pentear" como era chamada,
e por um corredor. Esse aposento tinha o nome de "biblioteca"
por causa de vários in-fólios manuscritos, recostados obliqua-
mente sobre o grande armário que guardava a história do Cas-
#
telo. O aposento estava decorado como escrítórío. Globos de
14
,
luz enfeitavam as estantes da parede. Através da janela em arco
aberta, entrava o vento forte das montanhas. O Grão-Duque
mandara servir chá, o camareiro Prahl trouxera pessoalmente os
talheres; mas tudo ficara esquecido sobre a bandeja do secre-
tárío, e Johann Albrecht andava de um canto a outro num
estado desagradavelmente tenso. Seu andar era acompanhado
pelo ranger contínuo das botas de verniz. O ajudante von Lich-
terloh ouvia os rangidos, entediado, no corredor quase vazio.
Os ministros, o ajudante, o pregador e os funcionários
da Corte, nove ou 10 cavalheiros, esperavam nas salas do
andar térreo. Atravessavam o grande salão de banquetes, e o
pequeno, onde se viam, entre os quadros de Lindemann, ar-
ranjos de bandeiras e armas; recostavam-se nas colunas seme-
lhantes a fustes que se desdobravam em abóbadas coloridas
sobre suas cabeças; paravam diante das janelas estreitas, que
subiam até o teto, e olhavam pelas pequenas vidraças emol-
duradas em chumbo, vendo o rio e a cidadezinha; sentavam-se
nos bancos de pedra que corriam ao longo das paredes, ou
em poltronas diante de lareiras rujos telhados góticos eram
sustentados por grotescos homúnculos de pedra, ridiculamente
pequenos, agachados. O dia alegre, lá fora, fazia cintilar os
galóes dourados dos umformes, as medalhas sobre os peitos
convexos, as largas tiras douradas nas pernas das calças dos
dignitários. ,~.r.~ ~ - ---~
A conversa fluía mal. A toda hora, mãos enluvadas de
branco erguiam-se díante de bocas convulsivamente abertas.
Quase todos os cavalheiros tinham lágrimas nos olhos. Vários
tínham conseguido tempo para uma refeição leve. Alguns pro-
curavam distrair-se estudando respeitosamente os instrumentos
cirürgicos e o frasco redondo de clorofórmio, envolto em cou-
ro, que o General-Médico Eschrich deixara ali para alguma
eventualidade. Depois de contar várias histórias à sua maneira
tagarela e incongruente, o Marechal-da-Corte von Bühl zu Bühl,
homem forte, de movimentos buliçosos, topete castanho, óculos
dourados e longas unhas amarelas, recostou-se numa poltro-
15
à sua catalepsia. Examinada, aprovada e liberada pelo Dire-
-.. -~~~ ~a
Corte, Conde Trümmerhauff. .
,
luz .:a, estou dizendo,
enfeitavam as estantes
aberta, entrava o vento f da parede. Através da j~ ração da fortuna
mandara servir chá orte das mont h s. O ela em arco
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C~quenos, agachados. O dia ~'los de pe~.a, ridicul ram ade - pelo fideicomis-
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as largas tira as medalhas s mtdar os admissíveis. A adminis-
~ilOnltariOS. s douradas nas pernas ~re os ~ItOS ~remente as conjunturas
A conversa s c~ças dos Perdão, não é verdade!
branco er ~uía mal. A to ~''~'^ ~- .- ~..~ ... ..
t~óslam-se ~~te b áa hora, mãos e Pessoas que ligam tanto
uase os cava de s convul ~uvadas de não podem nem querem
rinham co guid ~eiros tinham ágr~ sivamente abertas.
curav nse o tempo para uma 1 as nos olhos. Vári wre iniciativa de homens
~ distrair-se refeição 1 os ios obrigados por ideais.
cirúrgicos e o fras estudando respeitosame eve. Alguns pro- ;se luxo negativo, aquele
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mandara servir chá, o camareiro Prahl trouxera pessoalmente os
j talheres; mas tudo ficara esquecido sobre a bandeja do secre-
tário, e Johann Albrecht andava de um canto a outro num
estado desagradavelmente tenso. Seu andar era acompanhado
pelo ranger contínuo das botas de verníz. O ajudante von Lich-
terloh ouvia os rangidos, entediado, no corredor quase vazio.
Os ministros, o ajudante, o pregador e os funcionários
da Corte, nove ou 10 cavalheiros, esperavam nas salas do
andar térreo. Atravessavam o grande salão de banquetes, e o
pequeno, onde se viam, entre os quadros de Lindemann, ar-
_ ranjos de bandeiras e armas; recostavam-se nas colunas seme-
lhantes a fustes que se desdobravam em abóbadas mloridas
sobre suas cabeças; paravam diante das janelas estreitas, que
subíam até o teto, e olhavam pelas pequenas vidraças emol-
duradas em chumbo, vendo o rio e a cidadezinha; sentavam-se
nos bancos de pedra que corriam ao longo das paredes, ou
Ï
em poltronas diante de lareiras cujos telhados góticos eram
;
, sustentados por grotescos homúnculos de pedra, ridiculamente
pequenos, agachados. O dia alegre, lá fora, fazia cintilar os
galões dourados dos umformes, as medalhas sobre os peitos
convexos, as largas tiras douradas nas pernas das calças dos
dignitários. ~.r-,~" ~... .~ ---
A conversa fluía mal. A toda hora, mãos enluvadas de
branco erguiam-se diante de bocas convulsivamente abertas.
Quase todos os cavalheiros tinham lágrímas nos olhos. Vários
tínham conseguido tempo para uma refeição leve. Alguns pro-
; curavam distrair-se estudando respeitosamente os ínstrumentos
círúrgicos e o frasco redondo de clorofórmio, envolto em cou-
#
ro, que o General-Médico Eschrich deixara ali para alguma
eventualidade. Depois de contar várias histórias à sua maneíra
tagarela e incongruente, o Marechal-da-Corte von Bühl zu Bühl,
homem forte, de movimentos buliçosos, topete castanho, óculos
,.
.
dou rados e longas unhas amarelas, recostou-se numa poltro-
15
na e usou seu talento de dormir de olhos abertos - com
olhar fixo e postura firme, perdia consciência de tempo e es-
paço, sem contudo ferir, por pouco que fosse, a dignidade do
lugar.
O Dr. von Schroder, Ministro das Finanças e da Agri-
cultura, teve naquele dia uma conversa com o Dr. Barão Kno-
belsdorff, Ministro do Interior, do Exterior e da Casa dos
Grão-Duques. Foi uma conversa variada, que começou com
considerações sobre a arte, passando a questões econômicas e
financeiras, referindo-se de maneira deveras difamante a certo
funcionário da Corte, e ocupando-se também de personalida-
des mais elevadas. Começou quando, mãos com chapéus às
costas, os cavalheiros paravam diante de uma das pinturas no
grande salão de banquetes, e os dois pensaram bem mais do
que disseram. O Ministro dás Finanças disse:
- E isso aí? O que está sendo rëpresentado? Vossa Ex-
celência é tão informado. . .
- Superficialmente. É a investidura de dois jovens Prín-
cipes da Casa por seu padrinho, o Imperador romano. Vossa
Excelência está vendo os dois jovens ajoelhados e prestando
com grande pompa seu juramento à espada do Imperador. . .
- Belo, de uma beleza singular! Que colorido! Ofus-
cante. Que encantadores cachos louros têm os Príncipes! E
o. Imperador. . . como nos livros! Sim, esse Lindermann merece
as distinções que lhe foram conferidas.
- Exatamente. As que recebeu foram merecidas.
O Dr. von Schroder, homem comprido de barba branca,
óculos com delicado aro de ouro sobre o nariz alvo, barrigui-
nha emergindo logo abaixo do estômago e nuca nédia trans-
bordando de~ colarinho duro e bordado do fraque, olhou com
um pouco de ceticismo, sem tirar os olhos do quadro, tocado
por uma suspeita que por vezes o dominava ao conversar com
o Barão. Esse Knobel~tiorff, esse favorito e alto funcionário,
era tão dúhio... Por vezes suas expressões, suas respostas,
eram marcadas por uma zombaria incompreensível. Era muito
16
usar da expressão de Vossa Excelência? E se tudo ficasse
apetlaS lIISSo! Mas temos os gastos regulares para manter uma
,
; Corte razoavelmente digna. Ha os casteIos e parques para sus-
tentar, Hollerbrunn, Montbrillant, o Castelo de Caça, não
é? . . . o Eremitage, o Castelo dos Delfins, o dos Faisões . . .
i
e os outros : . . Esqueci ainda o Segenhaus e a ruína de Hader-
stein. . . sem falar no Castelo Velho. . . Todos malconservados,
mas quantos gastos . . . E há o Teatro da Corte, a Galería, a
Biblíoteca a sustentar. Cem pensões a pagar, mesmo sem obri-
gação legal, apenas por lealdade e dignidade. E nas últimas
enchentes, que doações princípescas fez o Grão-Duque. . . Mas
estou fazendo um verdadeiro discurso!
.
- Um discurso com que Vossa Excelência pretendeu con-
tradizer-me - disse o Ministro das Finanças -, quando na
verdade me apóia. Caríssimo Barão - o Sr. von Schroder pôs
a mão no coração ao dizer isso -, asseguro-lhe que, na minha
opinião, minha opinião leal, não há qualquer diferença entre
o senhor e eiz. O Reí não pode errar. . . essa altíssima pessoa
está acima de qualquer censura. Mas a culpa. . . ah, que pa-
lavra ambígua!. . . a ulpa existe e eu a repasso sem hesitação
ao Conde Trümmerhauff. O fato de seus antecessores iludirem
os soberanos sobre a situação financeíra da Corte era coisa
dos tempos, e se podia perdoar. Mas a atitude do Conde
#
Trümmerhauff não é mais. Na sua quaIidade de Diretor Fínan-
ceíro da Corte, ele tinha obrigação de. . . desfazer essa des-
preocupação dos soberanos e ainda hoje deveria. . . instruir sem
piedade Sua Alteza Real. .
O Sr. von Knobelsdorff sorríu, arqueando as sobrancelhas.
- É mesmo? Então Vossa Excelência pensa que a no-
meação do Conde para esse cargo aconteceu por esse motívo?
Eu imagino o justificado espanto desse nobre da Corte quando
o senhor lhe expôs essa sua opinião. Ora, ora. . . Não se iluda,
Excelência, essa nomeação traduzia uma vontade de Sua Alteza
Real, que teria de ser a primeira coisa que o nomeado levasse
19
I I
em consideração. Ela não apenas significou um "não sei de
"
nada , mas também não quero saber de nada". É possível
~i
ser uma personalidade exclusivamente decorativa, e mesmo
assim perceber isso.. . De resto.. . sinceramente. . . todos o
percebemos. E para todos nós vale, afinal, apenas uma cir-
cunstância atenuante: não existe príncipe no mundo com quem
fosse mais fatal falar de suas dívidas do que com Sua Alteza
Real. Nosso senhor tem algo que faz assuntos tão mesquinhos
simplesmente morrerem em nossos lábios.
- E verdade, é verdade - disse o Sr. von Schroder.
Suspirou e acariciou, pensativo, as plumas de cisne de seu cha-
péu. Os dois cavalheiros estavam sentados num lugar elevado,
virados parcialmente um para o outro, junto de uma janela,
num amplo nicho. Do lado de fora, corria um estreito corredor
de pedra, uma espécie de galeria, através de cujas abóbadas
pontudas se via a cidadezinha. O Sr. von Schroder disse:
- Barão, o senhor me responde, parece objetar ao que
digo, e suas palavras são, no fundo, mais descrentes e amargas
do que as minhas.
O Sr. von Knobelsdorff calou-se com o gesto vago de
quem deixava isso a critério do outro.
1
e fez um
- Pode ser - disse o Ministro das Finanças,
;
melancólico sinal de cabeça para o seu chapéu. - Vossa Ex-
celência pode ter razão. Talvez todos sejamos culpados, nós
e nossos antecessores. Quanta coisa se deveria ter impedido!
Veja, Barão, certa vez, há 10 anos, houve oportunidade de
sanear as finanças da Corte, ou pelo menos de melhorá-las, se
quiser. Sedutor como é, o Grão-Duque bem podia ter levado
as finanças da Corte a um estado sólido, através de um bom
casamento. Mas, em vez disso. . . não falo aqui de meus sen-
timentos pessoais. . . jamais esquecerei o ar lastimável com que
se comentava por todo país o valor do dote. . .
- A Grã-Duquesa - disse o Sr. von Knobelsdorff, e
as ruguinhas nos cantos de seus olhos desapareceram quase
totalmente - é uma das mais belas mulheres que já vi.
20
- Resposta que combina com Vossa Excelência. Uma
r~sposta estética. Uma resposta que valeria mesmo que a es-
colha de Sua Alteza Real, como a de seu irmão Lambèrt, ti-
vesse recaído sobre uma integrante do balé da Corte. . .
- Ah, não havia perigo disso. O gosto do nosso senhor
é difícil de contentar, ele já mostrou isso. Suas exigências foram
0 oposto daquela falta de critério que o Príncipe Lambert sem-
pre revelou. Ele decidiu se casar tarde. Já se havia abandonado
a esperança dessa descendência. Estavam todos mais ou menos
conformados com o Príncipe Lambert, que. . . sobre cuja in-
disponibilidade de ser o herdeiro do trono havemos de con-
cordar. Então, poucas semanas depois de ele subir ao trono,
Johann Albrecht conhece a Princesa Dorothea, e exclama: "Ou
esta ou nenhuma!" E o Grão-Ducado tem uma soberana. Vossa
Excelência mencionou as caras de dúvida quando se conhéceu
o valor do dote. . . não comentou o júbilo que também reinava.
#
É verdade, uma princesa pobre. Mas a beleza, tal beleza, é ou
não uma felicidade? A chegada dela foi inesquecível! Foi ama-
da quando seu primeiro sorriso pairou sobre o povo que a
contemplava. Vossa Excelência tem de permitir que eu con-
fesse mais umá vez minha crença no idealismo do povo. O povo
quer ver representada a sua melhor parte, a mais nobre, seu
sonho, quer ver nos Príncipes algo parecido com a própria
alma. . . não a bolsa de dinheiro. Pois para esse tipo de repre-
sentação existem outras pessoas. . .
- Não existem. Não entre nós.
- Fato lamentável em si. O principal: Dorothea nos deu
~.~m herdeiro do trono. . .
- Ao qual espero que os céus concedam talento para os
números!
Concordo. . .
Assim terminou o diálogo dos dois ministros. Interrom-
~~eu-se, foi interrompido, quando o Ajudante-de-Campo von
t~ichterloh anunciou que o parto terminara de maneira feliz.
Vo salão pequeno, começou um movimecito, todos os cava-
21
! lheiros se reuniram lá de repente. Uma das grandes portas
esculturadas fora aberta de súbito, e o Ajudante-de-Campo apa-
t recera na sala. Tinha a cara vermelha, olhos azuis de soldado,
bigode hirto e muito louro, e galões prateados no colarinho.
i Comovido e um pouco descontrolado como alguém que se li-
t
vrou de um tédio mortal e está eufórico por uma notícia ale-
gre, sentindo que aquele era um momento extraordínário, ele
infringiu brejeiramente as fórmulas e prescrições. Fez uma sau-
dação divertida, puxando o cabo da espada quase até o peito,
com os cotovelos afastados, e exclamando, entusiasmado:
- Peço permissão: um Príncipe!
- A la bonne heure - disse o General Conde Schmet-
tern.
- Boa notícia, boa, muito boa mesmo! - disse o Ma-
rechal-da-Corte von Bühl zu Bühl, à sua maneira tagarela; vol-
tara à consciência imediatamente.
O Presidente do Conselho da Igreja, Dr. Wislizenus, um
senhor dé rosto liso e belas feições, que, como filho de General
e graças à distinção pessoal chegara muito jovem àquele alto
cargo, trazendo uma condecoração na veste de seda negra, cru-
zou as mãos brancas no peito e disse com bela voz:
_ - Deus abençoe Sua Alteza!
- Capitão - disse o Sr. von Knobelsdorff, sorrindo -,
esquece-se de que, com sua constatação, interfere nos meus di-
reitos e deveres. Antes que eu examine detidamente a situação,
a questão de ser Príncipe ou Princesa não pode ser considerada
decidida. . .
Todos riram, e o Sr. von Lichterloh respondeu:
- As ordens, Excelência! Tenho a honra de o procurar
na mais alta missão. . .
Esse diálogo referia-se à qualidade do Ministro de Es-
tado, de funcionário do registro civil da família dos Grão-Du-
ques, e nessa qualidade ele devia constatar com os próprios
olhos o sexo do bebê real e registrar isso oficialmente. O Sr.
von Knobelsdorff executou essa formalidade na chamada "sala
22
de pentear", onde o recém-nascido fora banhado, mas ficou lá
mais tempo do que ele próprio esperara, perplexo com uma
observação penosa sobre a qual, no começo, não falou com
ninguém, exceto a parteira.
A Dra. Gnadebusch mostrou-lhe a criança, e seus olhos
de misterioso brilho por trás dos óculos grossos passaram do
Ministro de Estado à criaturinha cor de cobre, que agitava
uma - uma só - mãozinha cegamente como se quisesse per-
guntar: "Está certo assim?" Estava certo, o Sr. von Knobels-
d<,rff ficou satisfeito, e a sábia mulher cobriu novamente a
criança. Mas, mesmo então, continuou a olhar, ora para o Prín-
cipe, ora para o Barão, até conduzir o olhar deste para onde
q~.~eria. As ruguinhas sumiram dos cantos dos olhos dele, que
#
franziu as sobrancelhas, examinou, comparou, apalpou, exami-
n·~u o caso por dois, três minutos, e por fim indagou:
- O Grão-Duque já viu isto?
- Não, Excelência.
- Quando o Grão-Duque vir isto - disse o Sr. von
Knobelsdorff -, diga-lhe que a coisa cresce, com o tempo.
E anunciou aos cavalheiros no andar térreo:
- Um príncipe robusto!
Dez ou 15 minutos depois dele, porém, também o Grão-
Duque fez aquela secreta descoberta - era inevitável, e teve
como conseqüência uma cena breve mas muito penosa para
o General Eschrich; mas, para o Dr. Sammet, resultou numa
conversa com o Grão-Duque que o fez crescer muito no con-
ccito deste último, e mais tarde lhe foi útil na carreira. Em
resumo, foi o que segue.
Durante o pós-parto, Johann Albrecht voltara à biblioteca
c depois ficara algum tempo de mãos dadas com a esposa,
j unto da cama da parturiente. Depois disso, dirigiu-se à "sala
~le pentear", onde o bebê jazia na caminha alta, de delícados
enfeites dourados, semi-envolta na cortina de seda azul, e sen-
iou-se ao lado do filho numa poltrona que puxara rapidamente.
Mas, enquanto estava ali sentado, contemplando a criança ador-
23
mecida, percebeu o que ainda lhe ocultavam. Afastou mais as
cobertas, ficou sombrio, e então fez tudo o que antes dele já
fizera o Sr. von Knob,elsdorff: encarou uma após outra a Dra.
Gnadebush e a enfermeira, que emudeceram, lançou um olhar
para a porta da alcova e voltou para a biblioteca com passo
nervoso.
Lá, fez soar imedíatamente a sineta de prata, enfeitada
com uma águia que estava sobre a escrivaninha, e, lacônico
e frio, disse ao Sr. von Lichterloh, que entrou tilintando as
esporas:
- Mande vir o Sr. Eschrich.
euando o Grão-Duque ficava zangado com alguém do seu
meio, costumava despir de momento esse indivíduo de todas
as honras e títulos, deixando-lhe umcamente o nome.
O ajudante tilintou novamente as esporas e se afastou.
Johann Albrecht andou um pouco pelo aposento, com forte
ranger dos sapatos e, ao escutar que o Sr. von Lichterloh in-
troduzia na ante-sala aquele a quem mandara vir, tomou pos-
tura de quem dá audiência, junto da escrivaninha.
Parado ali, a cabeça imperiosamente posta de perfil, a
mão esquerda afastando o casaco aberto forrado de cetim e
revelando o colete branco, firmemente metida no quadril, pa-
recia-se exatamente com o retrato feito pela mão do Professor
von Lindemann, que, servindo de contraparte ao de Dorothea,
pendia sobre a lareira da "Sala dos 12 Meses" no Castelo da
Residência, ao lado do enorme espelho. Os dois retratos eram
amplamente divulgados ao público através de incontáveis re-
produções, fotos e cartões-postais. A diferença era apenas que
Johann Albrecht parecia uma figura heróica naquele retrato,
mas na verdade mal chegava à estatura média. Sua testa era
alta devido à calvície e, debaixo das sobrancelhas grisalhas,
os olhos azuis e baços, rodeados por olheiras, encaravam a
distância com uma altivez fatigada. Ele tinha os zigomas sa-
lientes que eram sinal de sua raça. As suíças e a barbicha sob
o lábio inferior eram grisalhas, o bigode torcido, quase branco.
24
Das asas infladas de seu nariz saliente, mas de curvatura no-
brc, corriam duas rugas singularmente fundas, descendo oblí-
quas até a barba. No decote de seu colete de piquê, luzia a
fita amarelo-limão da Ordem da Constância. O Grão-Duque
traria um raminho de cravos na lapela.
O General-Médico Eschrich entrara com uma longa me-
, sura. Tirara o avental cirúrgico. Sua pálpebra paralisada pen-
dia, mais pesada que habituaimente, por cima do olho. Dava
uma impressão sombria e funesta.
O Grão-Duque, mão esquerda no quadril, jogou a cabeça
para trás, estendeu a mão direita e moveu-a várias vezes no
#
ar, num gesto breve e impaciente, com a palma para cima.
- Espero uma explicação, uma justificativa, General-
Méclico - disse, com voz trêmula de raiva. - Tenha a bon-
dade de explicar: o que há com o braço da criança?
O médico ergueu os braços levemente - fraco gesto de
impotência e inocência - e disse:
- Permita Vossa Alteza Real. . . um infeliz acaso. Cir-
cunstâncias desfavoráveis durante a gravidez de Sua Alteza
Rea(. . .
- Frases! Frases! - O Grão-Duque estava tão nervoso
que nem desejava uma justificativa; na verdade a impedia. -
Acrcdite, meu senhor, estou fora de mim! Acaso infeliz! O
senl~or tinha o dever de evitar acasos infelizes. . .
O médico ficou ali parado, numa meia mesura, falando
cvli~ voz baixa e humilde, dirigindo-se ao assoalho.
- Peço obedientemente que me permita lembrar que não
sou o único responsável. O Conselheiro Grasanger examinou
Sua Alteza Real. . . uma autoridade em ginecologia. . . Mas nin-
guém pode ser responsabilizado por esse caso. . .
- Nïnguém. . . Ah! Eu me permito responsabilizar o se-
nh<,r... O senhor mesmo admite. . . acompanhou a gravidez,
dirigiu o parto. Apoiei-me nos conhecimentos que correspon-
den~ ao seu posto, General, confiei na sua experiência. Estou
25
i
profundamente decepeionado, profundamente. A conseqüência
da sua escrupulosidade é que. . . nasceu uma criança aleíjada. .
f
;i ! - Vossa Alteza Real poderia ponderar generosamente. . .
~I
- Eu ponderei! Pesei, e achei leve demais. Obrigado!
O General-Médíco Eschrich afastou-se, recuando em pos-
tura curvada. Na ante-sala, deu de ombros, o rosto bem ver-
melho. O Grão-Duque recomeçou a andar pela "biblioteca"
,
fervendo de sua ira real, injusto, inconsciente e insensato em
sua solidão. Mas, fosse por desejar ofender ainda mais o mé-
dico, ou por estar arrependído de ter se submetído àquela des-
coberta, 10 minutos depois aconteceu o inesperado: o Grão-
Duque mandou vir à sua presença na biblioteca, através do
Sr. von Lichterloh, o jovem Dr. Sammet.
O médiro recebendo a notícia, disse novamente:
- Com muito prazer. . . com muito prazer. . . - e até
corou um pouco, mas depois teve um comportamento excelente.
Não domínava inteiramente a etíqueta, e fez sua mesura
cedo demais, ainda na porta, de modo que o Ajudante não a
pôde fechar às suas costas, e teve de lhe pedir que se adian-
tasse mais; depois, porém, ficou parado ali, de maneíra agra-
dável e à vontade, respondendo satisfatoriamente, embora mos-
trasse o hábito de iniciar as frases de modo um pouco pesado,
hesitante, intercalando-as com "sins" freqüentes, como que
para reforçar o que dizia. Usava o cabelo louro-escuro cor-
tado á escovínha e o bígode pendia, desleíxado. Queixo e
faces estavam escanhoadas e a pele, um pouco irritada com
isso. Inclinava levemente a cabeça para um lado, e os olhos
cinzentos revelavam inteligência e brandura. O nariz, caindo
demaís sobre o bigode, indicava sua origem. Usava uma gra-
vata preta com o fraque, e as botas lustradas tínham feitio ms-
tico. Com a mão na corrente de prata do relógio, mantinha o
cotovelo junto do corpo. Sua postura expressava honestidade
e objetividade; despertava confiança.
26
O Grão-Duque falou-lhe com cordialidade invulgar, um
p"uco como um professor que ralhou com um mau aluno e
a~;ora se dirige a outro com inesperada brandura.
- Doutor, mandei chamá-lo. . . Desejo informação sua a
respeito desse problema no corpo do Príncipe recém-nascido. . .
I'resumo que tenha percebido... Estou diante de um enig-
ma. . . um enigma extremamente doloroso. . . Em uma palavra,
peço sua opinião. - E, mudando de posição, o Grão-Duque
#
o"ncluiu com um gesto de beleza perfeita, deixando a palavra
ao médico.
O Dr. Sammet encarou-o, tranqüilo e atento, esperando
que o Grão-Duque concluísse toda aquela sua atitude princi-
pesca; depois disse:
- Sim. Trata-se de um caso não muito freqüente, mas
yue nos é bem conhecido e familiar. Sim. No fundo, um caso
de atrofia. . .
- Por favor. . . atrofia. . .
- Perdão, Alteza Real. Quero dizer, raquitismo. . . sim.
- Muito bem. Raquitismo. Correto. A mão esquerda é
raquítica. Mas isso é inaudito! Não entendo! Nunca aconteceu
coisa parecida em minha família! Ultimamente, fala-se muito
em hereditariedade. . .
O médico voltou a contetnplar, tranqüilo e atento, aquele
l;overnante despreocupado e dominador, a quem acabavam de
i nformar que se andava falando em hereditariedade. . . E res-
l~ondeu com simplicidade:
- Perdão, Alteza Real, mas no presente caso não se
l~ode falar nisso.
- Ah! Não mesmo! - disse o Grão-Duque, um pouco
í rônico. - Interpreto isso como um desagravo de sua parte.
Mas pode me dizer, então, por favor, de que se trata nesse
caso?
- Com prazer, Alteza Real. A deformidade tem causa
puramente mecânica. Sim, foi provocada por uma inibição me-
27
glill,ln u.~ :'; ;'í':'.!,;~.' ~ I
cânica durante a evolução do feto. Chamamos essas deformi-
dades de formação inibida. É isso.
O Grão-Duque escutou com medo e repulsa; temia visi-
velmente o efeito daquela nova expressão na sua sensibilidade.
Í Estava de sobrancelhas umdas, boca aberta; as duas rugas que
entravam na barba pareciam mais fundas ainda. Ele disse:
- Formação inibida. . . Mas como foi possível. . . Não
duvido de que se tenha tido todo o cuidado com a Grã-Du-
quesa. .
- Formações inibidas - disse o Dr. Sammet - podem
acontecer de vários modos. Mas podemos ter bastante certeza
de que no nosso caso. . . neste caso, a culpa é do âmnio.
- Ora, por favor. . . âmnio?
- Uma das membranas do ovo, Alteza. Sim. Em certas
circunstâncias, essa membrana pode desgrudar-se tardiamente
üò embrião, e issc~ acontece de maneira tão lenta que fibras e
tendões se distendem entre os. . . fios amnióticos, como dize-
mos. Sim, esses fios podem tornar-se perigosos, pois envolvem
membros inteiros da criança, impedindo totalmente a evolução
da mão, até amputá-la. Sim.
- Meu Deus. . . amputar. Então, ainda devo ser grato
por não ter acontecido uma amputação?
- Poderia ter acontecido. Sim. Mas tudo se resumiu
num estrangulamento e, com isso, atrofia.
;
; - E não se podia notar isso, prever, impedir?
Ï - Não, Alteza Real. De modo algum. É absolutamente
! certo que não cabe culpa alguma a quem quer que seja. Essas
inibições agem às ocultas. Somos impotentes diante delas. Sim.
' - E essa deformidade é incurável? A mão vai ficar mir-
rada?
O Dr. Sammet hesitou e fitou o Grão-Duque com bon-
dade.
- Não haverá uma compensação total, isso não - disse
¡ cautelosamente. - Mas a mão deformada também vai se de-
senvolver relativamente, ah sim, isso sim. . .
28
- Ela poderá ser usada? Será capaz. . . por exemplo. . .
cle segurar uma rédea ou de gestos que se fazem. . .
- Útil. . . um pouco. . . talvez não muito. Mas temos
ainda a mão direita, que é totalmente sadia.
- Será uma coisa muito visível? - perguntou o Grão-
#
Duque, e examinou, preocupado, o rosto do Dr. Sammet. -
Algo que vai chamar muito a atenção? O senhor acha
que vai prejudicar muito a aparêncía geral?
- Muitas pessoas - respondeu o Dr. Sammet, esqui-
vando-se - vivem e trabalham com graves lesões. Sim.
O Grão-Duque virou-se e caminhou pelo aposento. O Dr.
Sammet recuou respeitosamente até a porta, dando-lhe espaço.
Por fim, o Grão-Duque postou-se novamente junto à escriva-
ninha e disse:
- Agora estou informado, doutor; agradeço suas expli-
, cações. Não há dúvida de que o senhor entende do ofício.
Por que vive aqui em Grimmburg? Por que não trabalha na
Residência?
- Eu aínda sou moço, Alteza Real, e antes de me dedicar
a alguma especialidade na cidade grande desejo ocupar-me em
vários setores da medicina durante alguns anos, e me exerci-
tar de todos os modos. Para isso, uma cidade do interior, como
Grimmburg, oferece as melhores oportunidades. Sim.
- Muito sério, muito respeitável. A que especialidade
pretende dedicar-se mais tarde?
- Doenças infantis, Alteza Real. Pretendo ser médico
de crianças. Sim.
- O senhor é judeu? - perguntou o Grão-Duque, jo-
gando a cabeça para trás e apertando os olhos. . .
- Sim, Alteza.
- Ah. . . pode responder mais uma pergunta. . . Jamais
considerou sua origem como obstáculo em seu caminho, uma
desvantagem na competição profissional? Pergunto como go-
vernante a quem interessa particularmente a igualdade de con-
dições, não apenas oficial, mas também incondicional e privada.
29
- Todo o mundo tem direito de trabalhar no Grão-Du-
cado - respondeu o Dr. Sammet.
Mas depois disse mais, iniciou com dificuldade, soltou al-
guns sons hesitantes, movendo, de modo desajeitado e apaixo-
nado, seu cotovelo, que parecia uma asinha curta, e acrescen-
tou, com voz abafada, mas interiormente zelosa e compungida:
- Nenhum princípio nivelador, se me posso permitir
esse comentário, jamais poderá impedir que se mantenham na
vida em comum exceções e formas singulares que se distínguem
da norma burguesa de uma forma nobre ou suspeita. O indi-
víduo não deverá indagar sobre a sua posição isòlada, mas ver
a essência dessa distinção e dela extrair um dever extraordiná-
rio. Não estamos em desvantagem em relação à maioria regu-
lar e, por isso mesmo, cômoda, mas temos vantagem sobre ela,
por termos, mais do que ela, motivo para atos extraordinários.
Sim. Sim - repetiu o Dr. Sammet. Era a resposta que ele
reforçava com aqueles dois "sins".
- Muito bem. . . nada mau, de qualquer modo é notável
- disse o Grão-Duque, ponderando. Pareceu ver nas palavras
do Dr. Sammet um tom familiar, mas também excessivo. Des-
pediu o rapaz com estas palavras: - Caro doutor, meu tempo
é curto. Agradeço por tudo. Esta conversa - deixando de
lado seu triste motivo - me satisfez muito. Terei o prazer
de lhe conceder a Cruz de Albrecht de Terceira Classe, com
a coroa. Vou me lembrar do senhor. Obrigado.
Foi esse o diálogo do médico de Grimmburg corn o Grão-
Duque. Pouco depois, Johann Albrecht deixou o castelo e vol-
tou à Residência num trem extra, principalmente para se mos-
trar à alegre população, e também para dar várias audiências
no castelo principal. Estava decidido que à noite ele voltaria
para o castelo de Grimmburg, e lá residiria nas semanas se-
guintes.
Todos os cavalheiros que tinham ido a Grimmburg para
o parto e não faziam parte do séquito da Grâ-Duquesa tam-
bém foram embarcados no trem subvencionado, num comboio
30
r
extra da linha local, e fizeram parte do trajeto na companhia
direta do monarca. Mas, no caminho do Castelo à estação, o
#
Grão-Duque foi sozinho com o Ministro de Estado von Kno-
belsdorff, num landau aberto, uma carruagem da Corte, pintada
de castanho com a pequena coroa dourada na porta. As plu-
mas alvas no chapéu do guarda pessoal, à frente, ondulavam
ao vento estival. Johann Albrecht estava sério e calado nessa
viagem, parecia deprimido e amargurado; e embora o Sr. von
Knobelsdorff soubesse que mesmo em contatos íntimos o Grão-
Duque não gostava de ser interpelado sem que antes tivesse
indagado ou convidado a isso, por fim decidiu romper o si-
lêncio.
- Alteza Real - disse, suplicante -, parece aborrecer-
se tanto com a pequena anomalia encontrada no corpo do Prín-
cipe... Mas devíamos pensar que neste dia os motivos de
alegria, orgulho e gratidão superam tanto. . .
- Ora, meu caro Knobelsdorff - respondeu Johann
Albrecht, irritado e quase chorando -, perdoe-me o meu des-
gosto, não vai querer que eu fique cantando. Não vejo motívo
para isso. A Grã-Duquesa está bem . . . muito bem. A criança
é um menino . . . muito bem. Mas nasceu com uma atrofia,
uma inibição no desenvolvimento, causada por fios amnióti-
cos. Ninguém tem culpa, é uma desgraça. Mas as desgraças
das quais ninguém tem culpa são as mais terríveis, e a apa-
rcncia de um Príncipe tem de despertar no povo outras emo-
ções que não a piedade. O Grão-Duque herdeiro é delicado,
receamos constantemente por sua saúde. Foi um milagre que
há dois anos ele superasse a pleurisia, e será um milagre se
chegar à idade adulta. Agora, o Céu me dá outro filho -
parece forte, mas nasce com uma só mão. A outra é aleijada,
inútil, uma deformidade, ele a terá de esconder. Que proble-
ma! Que obstáculo! Terá de enfrentar o mundo constantemen-
tc. As poucos teremos de divulgar isso, para que não choque
clemais as pessoas na primeira aparição pública. Não, não con-
sigo aceitar. Um Príncipe com uma só mão. . .
31
- Uma só mão. . . - disse o Sr. von Knobelsdorff .
- Vossa Alteza Real repete essa expressão intencionalmente?
- Intencionalmente?
- Como não? .-. . O Príncipe tem duas mãos, só que
uma delas é deformada, portanto, querendo-se, pode-se dizer
que é um Príncipe com uma só mão.
- E daí?
- Quase se desejaria que não fosse o vosso segundo
filho a ter esse pequeno defeito, e sim o que nasceu sob a
coroa.
- O que está dizendo?
- Vossa Alteza Real vai rir de mim, mas estou pensando
na cigana.
- Cigana? Estou sendo paciente, caro Barão!
- Cigana . . . perdoe! . . . que há 100 anos previu, se-
gundo conta a tradição, um Príncipe "com uma só mão", e
que ligou o nascimento desse Príncipe a determinada e sin-
gular maldição.
O Grão-Duque virou-se no assento e, mudo, fitou os olhos
do Sr. von Knobelsdorff, em cujos cantos externos se moviam
aquelas ruguinhas em forma de raios.
- Muito agradável esta conversa! - disse, e endireitou-
se outra vez.
- Profecias - continuou o Sr. von Knobelsdorff - cos-
tumam cumprir-se porque surgem circunstâncias que, com algu-
ma boa vontade, se podem interpretar com relação a elas. E
exatamente pela grande abrangência de qualquer profecia, isso
fica muito facilitado. "Com uma só mão" é bem no bom estilo
dos oráculos. A realidade nos traz um caso moderado de atro-
fia. Mas, fazendo isso, faz muito, pois quem me impede, quem
impedirá o povo de tomar isso como sinal e considerar cum-
prida a parte mais explícita da profecia? O povo fará isso, no
máximo quando se cumprir de alguma forma o resto, a verda-
deira maldição. Então, haverão de ligar as coisas e tirar suas
conclusões, como sempre fazem, apenas para ver cumprido O
32
#
que está escrito. Não vejo com clareza - o Príncipe é o se-
gun~io filho, não vai governar, as intençôes do destino são obs-
cur;n;. Mas o Príncipe maneta existe agora - que nos dê o
que puder dar.
O Grão-Duque ficou calado, intimamente entregue a deva-
nei"; sobre sua dinastia.
- Bem, Knobelsdorff, não ficarei zangado com você. Pre-
ten~lc me consolar e não está se saindo mal. Mas estão nos
espr:~ando.
No ar reboava uma distante gritaria de muitas vozes. O
pov~ ~ de Grimmburg acotovelava-se na estação, atrás do cor-
dão de isolamento. Pessoas graduadas aguardavam diante da
mul ~ idão. Notava-se o Prefeito, erguendo a cartola, limpando
a te~ta com um lenço colorido, e levando aos olhos um bilhete
cujo conteúdo decorava. Johann Albrecht assumiu a expressão
com que receberia e responderia, laconicamente, o discurso sim-
ples: "Meu caro Sr. Prefeito. . ." A cidadezinha estava emban-
deirada; os sinos tocavam.
Soavam todos os sinos da capital. E à noite tudo ficou
festivamente iluminado, sem que o magistrado o pedisse; es-
pontaneamente, havia uma grande iluminação em todos os bair-
ros da cidade.
33
O PAfS
O país media 8 mil quilômetros quadrados e tinha 1 milhão
de habitantes.
Um país bonito, calmo e sossegado. As copas de suas flo-
rcstas farfalhavam, sonhadoras; os campos cultivados se es-
pr:aavam, bem-cuidados; sua indústria era mínima.
Havia olarias, alguma mineração de sal e prata . . . quase
só isso. Ainda se podia falar de uma indústria hoteleira, mas
scria demais dizer que era muito ativa. As fontes curativas alca-
linus que brotavam do solo pertinho da capital, formando O
ccntro de alegres balneários, transformavam a Residência numa
estação de águas. Mas os banhos, visitados por pessoas vindas
clc longe durante o fim da Idade Média, mais tarde perderam
a f ama, superados por outros lugares, e acabaram esquecidos.
A mais substancial de suas fontes, chamada Fonte Ditlinde, es-
pe~~ialmente rica em sais de lítio, só fora aberta recentemente,
sol~ o reinado de Johann Albrecht III. E como não houvesse
nrna exploração séria, contínua e chamativa, ainda não se con-
-! sc:=uira fazer com que essas águas fossem respeitadas no mundo.
F?nviavam-se 100 mil frascos por ano, talvez menos que isso.
N;io eram muitos os estrangeiros que vinham bebê-la no pró-
prio local..
Anualmente, falava-se na Assembléia dos resultados fi-
.
n.mceiramente "pouco favoráveis" das vias de transporte, ex-
35
pressão que ocultava resultados absolutamente negativos, cons-
tatando-se que os bondes não davam lucro e os trens não ren-
diam coisa alguma - fatos entristecedores, mas inevitáveis e já
consolidados, que o Ministro dos Transportes procurava expli-
car com exposições lúcidas mas repetitivas sobre as condíções
comerciais e industriaís do país, muito estagnadas, e a insufi-
ciência das minas de carvão. Críticos habituais acrescentavam
a ísso a precária administração dos meios de transporte esta-
tais. Mas não se notava forte rejeição nem oposição na Assem-
bléia. Uma lealdade cordial, e meio pasmada, preponderáva
entre os representantes do povo.
Portanto, o lucro da ferrovia não estava em primeíro lugar
na lista de ganhos estatais de natureza privada do país; em
primeiro lugar ficava o arrendamento das florestas e campos
lavrados. Por que essa renda também tinha caído assustado-
ramente, era algo difícil de justificar, mas havia muitas razões.
O povo amava sua floresta. Era uma raça loura e robus-
ta, de olhos azuis pensativos e zigomas salientes, um pouco
alta demais, uma gente meditativa e pacífica, saudável e atra-
sada. Toda a força de sua alma se ligava à floresta, a floresta
vivia em seu corpo, era origem e pátria dos artístas, que não
#
Ihe deviam apenas dons espirituais e intelectuais. Os pobres
colhiam na floresta, de graça, a lenha que os aquecía. Anda-
vam curvados, colhendo toda sorte de cogumelos e frtxtos entre
os troncos, para ganharem algum dinheiro. Não era tudo. O
povo reconhecia que sua floresta era o melhor fator possível
de saúde e bom clíma no país. Sabia muito bem que, sem a
magnífíca floresta ao redor da Residência, o Jardim das Fontes
jamais se teria enchido de estrangeiros pagantes. Em suma,
aquele povo não muito índustrioso nem progressista tínha tido
a necessidade de entender que a floresta era a mais importante
vantagem, e em todos os sentidos a mais rendosa propriedade
do pais.
Mesmo assím, vinham pecando contra a floresta, há anos,
há gerações. A administração florestal do Grão-Ducado me-
36
recia as piores censuras. Essa repartição falhava no reconhe-
cimento político de que a floresta tinha de ser mantida e
cuidada como bem comum inalienável, pois não devia servir
apenas para a geração presente, mas também às gerações fu-
turas, e que haveria de se vingar se, esquecendo o futuro, a
explorassem agora de maneira desmedída e imprevidente.
Isso acontecera e ainda acontecia. Primeiro, tinham es-
gotado grandes parcelas clo solo da floresta roubando-lhe, de
maneira exagerada e não-planejada, o seu adubo. Haviam che-
gado ao ponto de não apenas colherem ali a camada de
agulhas e folhagens recém-caídas, mas a maior parte do resíduo
de muitos anos, um pouco para usar como forragem, um pouco
como humo, empregando tudo na agricultura. Havia muitas
matas totalmente privadas dos frutos da terra; algumas esta-
vam mutiladas pelos ancinhos; via-se isso nas zonas de flores-
ra particulares e públicas.
Embora se tivessem executado esses trabalhos para auxi-
liar uma agricultura momentaneamente precária, não havia bem
como os justificar e desculpar. Mas; embora houvesse vozes
declarando que uma agricultura fundada na exploração de flo-
restas era desaconselhável, até perigosa, comercializava-se a
forragem retirada da floresta também sem motivo especial, por
puras razões fiscais, como diziam; portanto, motivos que, en-
rarados objetivamente, eram um scí: dinheíro. Pois era dinhei-
ro o que faltava. Para ganhar algum, porém, reduzia-se cons-
cantemente o capital, até chegar o d~a em que se reconheceu,
com susto, que esse capital sofrera uma desvalorização nunca
~onhada.
Eram um povo de camponeses e, num zelo errado, arti-
f icial e desmedido, imaginavam ter de ser modernos e mani-
iestar um espírito comercial insensato. Notável era o comér-
~io leiteiro... é preciso falar um pouco a respeito. As pes-
~oas queixavam-se, nos relatórios médicos oficiais, produzidos
.mualmente, de que o estado nutricional era dos piores, e se
~bservava também uma redução no desenvolvimento da popu-
37
lação rural. Que acontecera? Os proprietários de gado estavam
decidídos a usar todo o leite disponível para ganhar dinheiro. A
aplicação comercial do leite, a modernização e lucratívidade da
ordenha, levava-os a reduzir as necessidades domésticas do pro-
duto. O substancioso alimento que era o leite tornava-se raro no
campo. Em seu lugar, aumentava o consumo de leite magro
e pobre, ou de substitutos menos valiosos, gorduras vegetais e,
infelizmente, também bebidas alcoólicas. Os críticos mais fe-
rozes falavam de subalimentação, sim, até de enfraquecimento
físico e moral da população; trouxeram os fatos diante da
Câmara, e o Governo prometeu dedicar toda a atenção ao
caso.
Mas era evidente que o Governo, no fundo, estava
animado do mesmo espírito dos iludidos pecuaristas. Na flo-
resta do Estado, continuavam as devastações, as árvores cor-
tadas não podiam ser substituídas, e tudo representava uma
; progressiva redução da propriedade pública. Talvez eventual-
mente os cortes fossem necessários, quando havia parasitas na
floresta, mas muitas vezes eram causados apenas pelos já
#
mencionados motivos fiscais. Em vez de usar o dinheiro
para comprar mais terras com florestas; em vez de reflo-
, restar o mais depressa possível os terrenos desmatados; em
;' vez de, numa palavra, recompensar os prejuízos do valor de
capital da floresta, usara-se o dinheiro sonante para cobrir os
gastos constantes e saldar dívidas já vencidas. Parecia correto
que se desejasse reduzir as dívidas públicas; mas os críticos
diziam que os tempos não eram para isso, e que não se deviam
usar ganhos extraordinários para saldar dívidas.
Quem não tivesse interesse em embelezar a coisa, tinha
de admitir a bancarrota das finanças do Estado. O país tinha 600
mílhões em dívidas - carregava. esse ônus com paciência
e espírito de sacrifício, mas intimamente suspirava. Pois a car-
ga, em si já pesada demais, era multiplicada pelo aumento dos
juros, e as condições de pagamento de dívidas que se prescre-
vem para um país com o crédito abalado, cujas obrigações estão
38
muito, muito mal valorizadas, e que no mundo dos financia-
:lores quase se arrola entre os países "interessantes".
A seqüência de maus períodos nas fínanças era impre-
visível. A era dos déficits parecia não ter começo nem fim.
t~ uma má administração, que em nada melhorava pela cons-
rante troca de pessoal, via nos empréstimos a única cura para
u insidioso mal. O Ministro das Finanças von Schroder, cujo
caráter reto e nobres intenções eram indubitáveis, recebeu do
Grão-Duque o título de nobreza por ter sabido conseguir um
novo empréstimo, com altos juros, num momento muito grave.
Ele pretendia honestamente uma elevação do crédito estatal;
mas, como não soubesse o que fazer além de novas dívidas
para saldar as velhas, sua postura acabava sendo uma farsa,
bem-intencionada, mas muito cara. Pois com a simultânea com-
pra e venda de promissórias pagava-se preço mais alto do que
se recebia, e assim se perdiam milhões.
Era como se aquele povo não fosse capaz de produzir,
em seu meio, um financísta mais bem-dotado. Práticas escan-
dalosas e precárias tentativas de disfarce estavam sendo exe-
cutadas de momento. Na organização do orçamento, já não se
distinguiam as necessidades comuns do Estado das necessida-
des extraordinárias. Dotavam-se verbas extraordinárias além
das ordinárias, e assim todos se enganavam, a si próprios e ao
mundo, quanto ao verdadeiro estado de coisas, usando em-
préstimos aparentemente obtidos para fins extraordinários na
cobertura de um déficit habitual. . . Por algum tempo, na ver-
dade, o cargo de Ministro foi ocupado por um ex-Marechal-
da-Corte.
O Dr. Krippenreuther assumíu as rédeas no final do Go-
verno de Johann Albrecht III. O Ministro, que, como o Sr.
von Schroder, estava convencido da necessidade de se paga-
rem as dívidas rapidamente, impôs ao Parlamento uma última
e extrema pressão fiscal. Mas o país, por natureza mau con-
tribuinte, estava nos limites de sua capacidade, e Krippenreu-
ther era cada vez mais odiado. O que ele fazia não era senão
39
transferir os bens de uma mão para outra, ainda por cima com
prejuízo; pois, com a elevação dos impostos, onerava-se a eco-
nomia do país com uma carga excessiva, e mais direta do que
aquela do pagamento das dívidas . . .
Onde, então, encontrar ajuda e remédio? Parecia neces-
sário um milagre e, até ele acontecer, a mais amarga poupan-
ça. O povo era devoto, leal, e amava seus príncipes como a
si mesmo; estava imbuído da idéia da monarquia, via nela um
desígnio de Deus. Mas a opressão econômica era dura demais,
era demasiado óbvia. Mesmo os mais ignorantes viam a dolo-
rosa linguagem falada pelo estado das florestas, mutiladas e
desmatadas. E por isso a Assembléia era forçada a insistir, re-
petidamente, na necessidade de reduzir as contribuições da
população para a Coroa, e dos apanágios desta.
A contribuição civil dava meio milhão, as rendas do que
restava das propriedades reais davam 750 mil marcos. Era só.
A Corte estava endividada - talvez o Conde Trümmerhauff
#
soubesse quanto. O administrador financeiro do Grão-Ducado
era homem aristocrático, mas não tinha qualquer talento para
a economia. Johann Albrecht não sabia disso, ou parecia não
saber, exatamente como seus antecessores, que raramente con-
cediam às suas dívidas mais que uma breve atenção superficial.
A postura respeitosa do povo era correspondida, do lado
da Corte, por um extraordínário senso de nobreza de seus
Príncipes, que assumia às vezes formas românticas, até exage-
radas, manifestadas concretamente em todos os tempos numa
tendência despropositada à pompa e ao luxo que evidencíavam
sobremaneira essa nobreza. Urrc grimmburguense até recebera
o' apelido de "Opulento" - mas quase todos o teriam mere-
cido. Assim, o endividamento da Casa era um endividamento
histórico e tradicional, que remontava aos tempos em que todos
os empréstimos eram umcamente dos cuidados dos soberanos,
e Johann, o Violento, para receber seus empréstimos, hipote-
cara a liberdade de súditos respeitáveis.
40
Isso, porém, acabara; e Johann Albrecht III, com os ím-
pe~os de um legítimo grimmburguense, não estava mais em situa-
çá" de dar livre vazão a esses instintos. Seus antecessores ti-
nham sacrificado a fortuna da família, ela estava a zero ou
qr~ase isso. Fora-se na construção de castelos de diversão com
n<nnes franceses e colunas de mármore, parques com chafarizes,
' uma Õpera pomposa, e toda sorte de ostentação. Era preciso
calcular, e, contrariando fortemente a tendência do Grão-Du-
q~.m, até sem sua ajuda, aos poucos a postura da Corte se fora
tornando mais humilde.
Na Residência, falava-se em tom comovido sobre a vida
da Princesa Katharina, irmã do Grão-Duque. Fora casada com
um parente, regente de país vizinho, enviuvara, voltara à capi-
tal do país do irmão e morava com seus filhos ruivos no antigo
palacio dos Grão-Duques, na Albrechtsstrasse, diante de cujo
portal havia diariamente um gigantesco guarda com bastão e
couraça, numa postura arrogante. Mas no interior do palácio a
vida transcorria com muito comedimento...
O Príncipe Lambert, irmão do Grão-Duque, tinha um
; papel de pouca relevância. Estava brigado com os irmãos, que
não lhe perdoavam o mau casamento, e quase não aparecia na
Corte. Com sua esposa, que ~outrora dançara no palco do Tea-
tro da Corte e, segundo o nome de uma propriedade do Prín-
cipe, recebera o título de Baronesa von Rohrdorf, ele morava
em sua villa no Parque Municipal. O magro desportista e fre-
qücntador de teatros assumia suas dívidas. Renunciara à apa-
rência de realeza, aparecia umcamente como indivíduo e,
qi.i.mdo se dizia que sua família vivia precariamente, isso não
ca~.~sava espécie.
Mas no Castelo Velho tinham ocorrido modificações, li-
mitações, que se comentavam na cidade e no campo, em tom
dolc.~rido e comovido, pois no fundo o povo queria ver-se re-
presentado de maneira altiva e magnificente. Por causa da eco-
nomia, tinham-se reduzido vários cargos da Corte a um só, e
há muitos anos o Sr. von Bühl zu Bühl era Marechal-da-Corte,
41
Mestre-de-Cerímônias e Marechal-da-Casa. Muitas pessoas ha-
viam sido demitidas do serviço da Corte, entre furriéis, cara-
coineiros, cavalariços, cozinheiros e mestres-confeiteiros, lacaios
aa Câmara Real e lacaios da Corte. Os efetivos das cavalari-
ças tinham-se reduzido ao essencial. Que representava isso?
I
O desprezo do Grão-Duque pelo dinheiro manifestava-se em
bruscas explosões, diante dessa pressão. E enquanto o serviço
, das cerimónias palacianas chegava aos limites máximos da sim-
plicidade permitida, enquanto no fim dos concertos das quin-
A
tas-feíras no Salão de Mármore se servia no jantar apenas ros-
1
bife com molho remolado e sorvete, em toalhas de veludo ver-
melho sobre mesinhas douradas, enquanto na mesa particular
i. do Grão-Duque, com seus opulentos castiçais, se comia diaria-
#
mente como numa famílía de classe média, ele punha fora,
desafiadoramente, a renda de um ano para a remodelação de
i' Grimmburg.
E enquanto isso seus demais castelos se transformavam
em ruínas. O Sr. von Bühl simplesmente não dispunha dos
meios necessários para evitar que se deteríorassem. Mas era
I uma pena, para muitos daqueles castelos. Os que ficavam mais
distantes da Resídência, e lá fora, no campo, refúgios delicados
e luxuosos, embutidos na belíssima natureza, cujos nomes co-
quetes indicavam sossego, solidão, prazer, diversão e despreo-
c,apação, ou designavam uma flor ou jóia, eram locais de ex-
cursão para os moradares da Residência e os estranhos, e o
preço do ingresso fornecia alguma reserva que - nem sempre
- era empregada na sua conservação. Mas com os que fica-
vam perto da capital não acontecia isso. Havia o castelinho
~,i em estilo império chamado Eremitage, tão silencioso e severo,
na parte norte da cidade, há muito desabitado e negligenciado
no meio de seu parque selvagem que se fundia com o Parque
Municipal e contemplava seu pequeno lago hirto de lama. Ha-
via o Castelo dos Delfins, que, a apenas 15 mínutos dali,
na parte norte do Parque Munícipal, que outrora perten-
cera totalmente à Coroa, espelhava seu desmazelo num gigan-
42
tc.~~ co chafariz quadrado: os dois castelos estavam em estade>
lamentável. Todos os apreciadores da bela arquitetura lamen-
cavam que logo os Delfins, essa construção nobre, em estilo
barroco, com as aristocráticas colunas do portal, as altas jane-
las divididas em pequenas vidraças de caixilhos brancos, os
caramanchões de ferro batido, os bustos romanos em nichos,
a csplêndida escadaria, toda a sua pompa, estivesse, ao que pa-
rccia para sempre, entregue à ruína. E quando um dia, por
circunst"ancias imprevistas e até aventurescas, voltou à juventude
e as honrarias, causou alegria geral naqueles meios . . . Do Cas-
telo dos Delfins chegava-se em 15 ou 20 minutos ao Jardim
das Fontes, que ficava um pouco a nordeste da cidade e se
lig:.ma ao centro desta por uma linha direta de bondes.
Apenas o Castelo Hollerbrunn, residência de verão, um
hloco de edifícios brancos com telhados chineses, além das co-
linas que rodeavam a cidade, era usado pela família ducal;
ficava em local fresco e agradável, junto do rio, famoso pelos
arhustos de lilases do seu parque; havia também o Castelo de
Caça, totalmente envolto em hera, no meio das florestas do
lacl" oeste; e por fím o próprio castc·lo da cidade, chamado
"C:astelo Velho", embora não houvesse: um novo.
Chamava-se assim sem comparaçao com qualquer outro,
apenas por sua velhice, e os críticos achavam que sua renova-
çãc, seria mais necessária que a de Grimmburg. Até dentro dos
aposentos tudo estava desbotado e puído, mesmo os cômodos
que serviam para recepções e para moradia da família, sem falar
nos muitos aposentos desabitados e sem uso que ficavam nas
partes mais antigas dessa múltipla construção, nos quais nada
havia senão sombras e sujeira de moscas. Há algum tempo se
prc~ibira a entrada do público - medida que obviamente se
devia ao estado lamentável do castelo. Mas as pessoas que
nele entravam, fornecedores e criados, contavam que havia mus-
go am mais de um daqueles móveis hirtos e altivos.
Junto com a igreja da Corte, o castelo formava um com-
ple·<o cinzento, irregular e confuso; com torres, galerias e por-
43
tais, meio fortaleza, meio castelo de luxo. Diversas gerações
tinham trabalhado na sua construção, e grandes partes estavam
arruinadas, deterioradas, estragadas, começando a desmoronar.
O Castelo caía abruptamente sobre a parte oeste, mais baixa, da
cidade, e de lá era atingido por degraus precários, sustentados
por ferro enferrujado. Mas o portal principal, enorme e vigiado
por leões agachados, voltava-se para a Praça Albrecht, e nas
cabeças dos animais se lia, esculpido mas quase ilegível agora,
o lema devoto e desafiador: "Turris fortissima nomen Domi-
ni. " - Ali havia a sentinela e a guarita, a troca de guarda, o
rufar de tambores, o desfile, e meninos de rua correndo para
#
olhar . . .
O Castelo Velho tinha três pátios, em cujos cantos se
erguiam belas torres com escadarias, e entre cujas lajes de
basalto, em geral, brotava inço demais. Mas no meio de um
pátio ficava a roseira - estava ali desde sempre, num cantei-
ro, embora não houvesse jardim no lugar. Era uma roseira como
outras, um dos porteiros cuidava dela, que dormia na neve,
recebia chuva e sol, e, chegando a época, dava rosas. Eram rosas
extraordinariamente lindas, de forma aristoc~ática, com pétalas
vermelho-escuras e aveludadas, que davam prazer a quem olha-
va, verdadeiras obras de arte da natureza. Mas as rosas tinham
uma qualidade estranha e sinistra: não eram perfumadas. Ou
melhor, tinham aroma, sim, mas, por motivos desconhecidos,
não era aroma de rosas, mas cheiro de mofo - um leve mas
nítido cheiro de mofo. Todos sabiam disso, estava no guia de
viágens, os estranhos vinham ao pátio do Castelo para se con-
vencerem disso com o próprio nariz. Havia um boato popular
de que em algum lugar estava escrito que um dia, um dia de
alegria e felicidade geral, as flores da roseira começariam a ter
perfume natural e doce.
Mas era compreensível, e inevitável, que a imaginação
do povo fosse instigada por aquela roseira singular. Como O
*
~~r:: pela "Sala das Corujas", no Castelo Velho, que diziam ser
c:~o.~ara de torturas. Ficava em local totalmente inofensivo, perto
~la:, "Belas Salas" e da "Sala dos Cavaleíros", onde os senho-
r~~ da Corte costumavam reunir-se para grandes debates -
}~`,vtanto, numa parte relativamente nova da construção. Mas
cli: iam que ali dentro havia coisa, poís por vezes se ouviam
r~:=nores e movimentos que não se escutavam lá fora, de origem
~l;~;conhecida. Juravam que era coisa de fantasmas, e muítos
:~; i:~mavam que isso acontecia principalmente em ocasiões im-
~r~,;-tantes e decisivas para a família ducal - boato não-com-
E~r. wado, que naturalmente não se devía levar mais a sério do
.p ~ a tantas outras criações populares de tendências histórica
u `.linástica, como por exemplo certa profecia obscura, de mais
~ic 100 anos, que se pode mencíonar neste contexto. Vinha de
~ m ~a velha cigana, e dizia que o país teria grande felicidade
;n ~ avés de um príncipe "com uma só mão". A mulher desgre-
nhada dissera:
- Ele vai dar mais ao país com uma só mão do que outros
c":ri duas.
Assim dizia a lenda, e eventualmente falavam nela. Mas ao
rraor do Castelo Velho ficava a Residência, constando de Ci-
~iade Velha e Cidade Nova, com seus edifícios públicos, monu-
nmtos, fontes e dependências, ruas e praças com nomes de
príncipes, artistas e homens públícos de mérito ou cidadãos des-
ta~ados, dividida em duas metades muito desiguais pelo rio
~lu várias pontes, que rodeava num grande laço a extremidade
sul do Parque Municipal, perdendo-se entre as colinas ao re-
cl"r . . . Era uma cidade umversitária, tinha uma escola supe-
rior, não muito freqüentada, na qual havia uma vida intelec-
t ~ ~ al modesta e um pouco antiquada. Apenas o professor de
`'~1 atemática, Conselheiro Klinghammer, gozava de grande fama
~r~ mundo das ciências. . . O Teatro da Corte, embora com pou-
~~ ~ ussimas doações, apresentava espetáçulos decentes . . . Havia
u m pouco de vida musical, literária e artística . . . Alguns es-
c ranhos chegavam, desejosos de participar daquela vida tão co-
45
medida e das dádívas intelectuais da Resídência, entre eles en-
fermos abastados que moravam o tempo todo nas mansões ao
redor do Jardim das Fontes, honrados pela comunidade e pelo
Estado comõ bons pagadores de impostos . . .
Essa era a cidade; esse era o país. Essa era a situação.
46
O SAPATEIRO HINNERKE
( ) segundo filho do Grão-Duque apareceu em público pela
primeira vez ao ser batizado. A festa despertou no país todo
~u,uele interesse que se costumava ter pelos acontecimentos da
m>bre família. Aconteceu depois de se ter comentado e lido
#
scmanas a fio sobre sua organização, foi celebrada na igreja da
(~orte pelo Presidente do Conselho da Igreja, D. Wislizenus,
c"m toda cerimônia, e foi pública, na medida em que o Mare- ,
cl-~al-da-Corte enviou convites a todas as classes da sociedade,
~,or ordem superior.
O Sr. von Bühl zu Bühl, ritualista da Corte, de grande
zulo e prudência, vigiava toda a complicada cerimônia, vestindo
~.miforme de gala e ajudado por dois mestres-de-cerimônias: a
r~~união dos convidados reais nas "Belas Salas", a procissão
solene na qual, levados por pajens e camareiros, eles entraram
na igreja, atravessando a Escada de Heinrich, o Opulento, e uma
~~assagem coberta, a chegada do público até perto dessas altas
~~ersonalidades, a distribuição dos lugares, o respeito a todos
"s costumes durante o ritual religioso, a seqüência e hierarquia
clas congratulações que aconteceriam logo após o fim do culto
r~ligioso . . . Ele respirava aos arrancos, caminhava buliçoso,
crguia o bastão, sorria apaixonadamente e fazia mesuras dando
E~assos para trás.
47
A igreia da Corie estava ~leeorada com folhagens e panos.
Além de representantes da nobreza da Corte e do país, e de
funcionários mais ou menos graduados, os bancos estavam re-
pletos de comerciantes, camponeses e simples artesãos como-
vidos. Diante do altar, porém, sentavam-se em semicírculo
sobre poltronas de veludo rubro os parentes do batizando, com
altezas estrangeiras como padrinhos, e representantes dos que
não tinham podido ir pessoalmente. Há seis anos, no batizado
do Grão-Duque herdeiro, o grupo não'~dra menos brilhante
do que esse. Pois com a fragilidade de Albrecht, a idade avan-
çada do Grão-Duque e a falta de parentes consangüíneos de
Grimmburg, a pessoa do segundo prí~~,'~,pe era importante para
a manutenção da dinastia no futuro... O pequeno Albrecht
não participava da solenidade; estava acamado com algum mal-
estar que, segundo o General-Médico Eschrich, era de fundo
nervoso.
D. Wislizenus fez o sermão sobre um texto indicado pelo
próprio Grão-Duque. O Mensageiro,.jornal citadino sensaciona-
lista, contara exatamente como certo dia o Grão-Duque" étn
pessoa tirara da sala de livros, raramente freqüentada, a ~enár-
.
me Bíblia da família, com enfeites de metal, trancando-sevçpm
ela num escritório, onde procurara durante uma hora, e por
fim marcara com lápis numa folha de papel a passage ~ '`' e-
,
jada, assinando "Johann Albrecht" e enviando t '
gador da Corte. D. Wislizenus tratou o tema de m~ ' `a ~ ' o-
cionada e quase musical. Fez muitos rodeíos, aprés~ntou o as-
sunto sob vários ângulos, esgotou-o em suas analog~ias; pronun-
,
ciou o sermão com toda a força do seu peito, a voz víbrante
e se no começo de sua obra de arte o tema, pronunciado em
voz baixa e pensativa, parecera fraco, quase incorpóreo, no
fim, quando foi apresentado pela última vez à multidão, com
rica orquestração, pareceu cheio de significado e profundidade.
Depois, o pregador passou ao ato do batizado em si, acentuando
cada detalhe.
48
Nesse dia, pois, o Príncipe foi apresentado oficialmente
pela primeira vez, e sua importância nesse ato se manifestou
já na fato de chegar ao palco em ultimo lugar, distanciado de
todos os demais. Foi chegando lentamente, precedido pelo Sr.
von Bühl, nos braços da dama da Corte, Baronesa de Schulen-
bur~;-Tressen, e todos os olhos se dirigiram para ele. O menino
dormia entre rendas, laços e seda branca. Uma de suas mãozi-
nhas estava casualmente tapada. Todos se alegraram, se como-
veram e gostaram imensamente dele. Centro de todas as aten-
ções, ele se portou com calma e indiferença, e, como era natu-
ral, ,ainda com toda a paciência. Seu mérito era não perturbar,
não interferir, não resistir, mas, provavelmente por tendência
inata, entregar-se tranqüilamente às formalidades que se reali-
#
zavam ao seu redor, que o carregavam e, naquele dia, ainda o
elevavam sem qualquer esforço pessoal: . .
Em determinados momentos da cerimônia, mudava mui-
tas vezes de posição nos braços que o levavam. A Baronesa
von Schulenburg passou-o com uma mesura à sua tia Katha-
rina, de expressão severa, vestido de seda lilás reformado e
jóias reais no cabelo. Ao chegar o momento, ela o depositou
solenemente nos braços da mãe, Dorothea, que, alta e bela,
con, um sorriso de sua boca altiva e adorável, o ofereceu por
certo tempo às bênçãos e depois o passou adiante. Por alguns
mirn~tos, uma prima o segurou, uma menina de 11 ou 12 anos,
de cachos dourados e perninhas finas, bracinhos nus arrepia-
dos de frio e larga faixa de seda vermelha na cintura, formando
atrás um imenso laço que se destacava do vestidinho branco.
Seu rostinho pontudo voltava-se, assustado, para o mestre-de-
cerirnônias . . .
O Príncipe acordou por algum tempo; mas as chamas
bruauleantes das velas do altar e uma coluna colorida de poei-
ra varada de sol o ofuscaram tanto que ele cerrou novamente
os ~lhos. E como não houvesse pensamentos em sua cabeça,
apenas doces sonhos informes, e como de momento não sen-
tisse dor alguma, voltou a dormir imediatamente.
49
Recebeu uma porção de nomes enquanto dormia; mas os
principais eram Klaus Heinrich.
E dormia ainda em sua caminha de grades de ouro e cor-
tina de seda azul enquanto, em sua honra, a família comia na
Sala de Mármore, e os outros convidados, na Sala dos Cava-
leiros.
Os jomais comentaram seu primeíro aparecimento; descre-
veram-lhe a aparência e a roupa, constataram que se portara
de maneira realmente principesca, e vestiram sua comovente
e nobre aparição de palavras por ela provocadas. Depois disso,
a opinião pública pouco soube dele, e ele nada soube dela.
Ele ainda não sabia nada, não entendia nada, nada adi-
vinhava da dificuldade, do perigo e da severidade da vida que
lhe fora destinada; suas manifestações vitais não deixavam
transparecer que se sentisse de qualquer maneira diferente da
multidáo comum. Sua pequena existência era um sonho des-
preocupado, cuidadosamente dirigido de fora, desenrolando-se
num palco difícil de divisar claramente; e esse cenário era po-
voado de fenômenos coloridos e abundantes, de constatações e
ações, momentâneos ou permanentes.
Entre os permanentes estavam os pais, distantes e não
muito nítidos. Eram os pais dele, isso era certo, e eram nobres
e amáveis. Quando se aproximavam, havia a impressão de que
todo o resto recuava para os dois lados, abrindo uma passa-
gem respeitosa pela qual vinham ao encontro dele para, por
um momento, lhe manifestarem sua ternura . . . Mais próximas
e nítidas eram duas mulheres de toucados e aventais brancos,
duas criaturas aparentemente perfeitas, boas, limpas e afetuosas,
que cuidavam de todos os modos do seu pequeno corpo e o
acalmavam quando chorava . . . Albrecht, seu irmão, também
participava da sua vida; mas era sério, reservado e muito ma-
duro.
Quando Klaus Heinrich fez dois anos, houve outro nasci-
mento em CTrimmburg, e foi o de uma Princesa. Recebeu a
distinção de 36 tiros porque era do sexo feminino, e no bati-
50
12
l.
não chorava nunca. Empurrava um pouco para fora o lábio
inEerior, curto e redondo, sugando de Ieve no superior - nada
1
n,ais. Era muíto aristocrâtico. A madame da Suíça sempre o
aoresentava como modelo de etiqueta. Ele jamais se tería me-
tido em conversas com aqueles homens do Castelo, tão linda-
mente vestidos, que não eram homens, nem pessoas, mas ape-
nas lacaios, como Klaus Heinrich algumas vezes fazia quando
não o vigiavam. Pois Albrecht não era curioso. Seus olhos eram
solitáríos e não tínha desejos de contato com o mundo. Klaus
I leinrich, ao contrário, tagarelava com os lacaios por causa desse
desejo e de um anseio urgente, embora talvez perigoso e ina-
tequado, de deixar seu coração ser tocado por aquílo que fi-�
c-dva além das fronteiras. Mas os lacaios, moços e jovens, nas
aortas, corredores e salas de passagem, com suas polainas cor�
ie areia e fraques marrons, nos quaís, em listras douradas, se�
repetia muitas vezes a pequena coroa da porta da carruagem
- esses firmavam os joelhos quando Klaus Heinrich lhes diri-
r;ia a palavra, punham as mãos nas costuras de suas grossas
calças de veludo, inclinavam-se um pouco para ele, fazendo
oambolear os galardões de seus ombros, dando respostas vazias
e adequadas, nas qu,aís o tratamento "Alteza Ducal" era a coisa
mais ímportante, e sorriam ao pronunciá-lo, com uma caute-
losa expressão de compaixão, como se quisessem dizer: "Meni-
no puro, meníno líndo!". .. Por vezes, quando era possível
,
Klaus Heinrich fazia incursões a regiões desabitadas do Caste-
lo, com Ditlinde, sua irmã, quando esta ficou suficientemente
crescida.
Naquele tempo, ele tinha aulas com o Professor Droge,
Reitor das Escolas públicas, recomendado como seu primeiro
mestre. O Professor Droge era por natureza um homem obje-
tivo. Seu indicador, enrugado devido à pele seca e ornamentado
com um anel de sinete de ouro, sem pedra, seguia as letras
impressas quando Klaus Heinrich lia, e não se afastava da
palavra enquanto esta não fosse lida. Chegava de casaco e co-
lete branco, na lapela a fita de uma condecoração inferior, e
53
botas grandes, lustrosas, com canos em cor natural. Tinha bar-
ba grisalha e cônica, e pêlos grisalhos e hirsutos brotavam de
suas orelhas grandes e chatas. Seu cabelo castanho era escovado
em pontas para cima nas têmporas, com a divisão feita escru-
pulosamente, de modo que se via bem o couro cabeludo ama-
relo e seco, poroso como aniagem. Mas atrás e dos lados, por
baixo do cabelo castanho e forte, aparecia outro, grisalho e fi-
ninho. Ele inclinava um pouco a cabeça em direção ao lacaios�
que lhe abriam a porta da grande sala de aula com lambris,
onde Klaus Heinrich o esperava. Mas diante de Klaus Heinrich
o Professor fazia uma mesura, não ao entrar, nem de leve, mas
abertamente e com ponderação, posiando-se diante dele e es-
perando que o nobre aluno lhe estendesse a mão. Klaus Hein-
rich fazia isso, e o fato de fazê-lo, no encontro e na despedi-
da, de maneira bela, encantadora e suave, como vira seu pai
estender a mão a cavalheiros que esperavam por isso, lhe pare-
cia muito mais importante e essencial do que toda a aula que
se desenrolava entre essas duas ocasiões.
Quando já o Professor Droge viera e se fora incontáveis ve-
zes, Klaus Heínrich aprendera uma porção de coisas úteis. Con-
tra sua própria expectativa e desejo, familiarizou-se com ler,
escrever e calcular, e conseguia citar quase com perfeição as
regiões do Grão-Ducado. Mas, como mencionado, não era ísso
que lhe parecia importante e necessário. Por vezes, 4uando não
prestava atenção nas aulas, o Professor o censurava lembrando-
lhe sua nobre vocação. "Vossa nobre vocação vos obriga . . . ",
dizia ele ou: "Deveis isso à vossa nobre vocação . . . ". Que era
essa vocação e por que seria tão nobre? Por que os lacaios sor-
riam - "menino lindo, menino puro" - e por que a madame
ficava tão horrorizada quando ele se portava um pouquinho
mal ao falar e agir? Ele olhava em torno, e por vezes, quando
#
fitava firme e demoradamente os rostos a seu redor, e seu
olhar penetrava no interior das aparências, tinha um pressen-
timento da "coisa em si", que era importante para ele.
54
Estava postado numa das "Belas Salas", a Sala de Prata,
omle, como sabia, seu pai, o Grão-Duque, dava recepções so-
lens. Por casualidade, estava sozinho na sala vazia e contem-�
plcu-a detidamente.�
Era inverno e fazia frio, seus sapatinhos refletiam-se no
assoalho claro e vítreo, dividido em grandes quadrados pelas
incrustações amarelas, que se estendia diante dele como uma
sryerfície gelada. O teto, coberto de arabescos prateados, era�
tãc alto que era preciso uma vara de metal compridíssima para�
qu: o lustre prateado de muitos braços, coberto de altas velas�
br.mcas, pendesse no meio daquela amplidão. No teto, esten-
di,rm-se superfícies emolduradas em prata, com pálidas pintu-
ra. As paredes, ornadas de sarrafinhos de prata, eram forradas
de seda branca, aqui e ali manchada de amarelo e puída. Uma
esEúcie de baldaquim monumental, pousado sobre duas fortes
coi mas prateadas e enfeitado na frente com uma guirlanda de
pr.ta duas vezes pregueada, de cujas alturas o retrato de uma�
an i cpassada morta, empoada, baixava o olhar no meio de pre-
ga; de arminho, separava a lareira do restante. Amplas poltro-�
na. prateadas, cobertas de seda branca e desbotada, rodeavam,�
l:í atrás, a lareira fria. Nas paredes laterais, frente a frente,
cr,uiam-se imensos espelhos com molduras de prata, cujo vidro�
mc,strava manchas foscas, e sobre cujos amplos consolos de
mármore alvo pousavam candelabros, dois à direita, dois à es-
ciu:rda, os mais baixos diante dos mais altos, com longas velas�
alv;rs, como os candelabros de parede ao redor, como os quatro
candelabros de hastes nos cantos. Das altas janelas à direita,
cim davam para a Praça Albrecht, e em cujos parapeitos exter-�
n<, jaziam almofadas de neve, caíam cortinas de seda branca,�
com manchas amarelas, presas por fios de prata, enfeitadas de
rendas, descendo, pesadas e abundantes, até o assoalho. No
n,io da sala, debaixo do lustre, havia uma mesa de tamanho��
re:.,ular, cujo pé parecia um tronco de árvore prateado e nodoso,�
, com tampa octogonal de madrepérola leitosa - estava ali, inú-
til e sem cadeiras, quando muito destinada a servir de apoio
55
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e amparo no momento em que os lacaios abriam a porta dupla,
deixando entrar aqueles que, vestidos de gala,, se postavam à
frente das pessoas durante um momento solene e formal. . .
Klaus Heinrich olhou a sala e viu nitidamente que nada ali
falava daquele pragmatismo que, apesar de suas mesuras, o
Professor Droge lhe impunha. Ali era domingo, com ar de fes-
tiva gravidade, como na igreja, onde também , não funcionariam r
as exigências do Professor. Ali reinava uma pornpa severa e
vazia, um equilíbrio de estruturas despido de funcionalidade ou
#
comodidade, expondo-se, pleno de autocomplacência . . . um am-
biente nobre, tenso, sem dúvidaï nada leve, nada aconchegan-
te, que obrigava a gente a manter postura e disciplina, e uma
controlada renúncia, mas cujo objeto em si não tinha nome. E
era frio, na prateada sala dos candelabros, como na sala da
Rainha da Neve, onde os corações das crianças viram gelo.
Klaus Heinrich caminhou na superfície espelhada e se pos-
tou junto à mesa de centro. Apoiou levemente a mão direita na
támpa de madrepérola e meteu a esquerda no quadril, bem
atrás, quase nas costas, para que não a visse de frente; pois não
era bonita: era morena e engelhada, e não se desenvolvera como
a direita. Descansou o corpo numa perna, avançou um pouco
a outra e olhou os ornamentos prateados da porta. Aquele não
era um lugar da~ú devaneios, nem sua postura servia para isso;
mas P' áevaneava.�
Viu o pai e o contemplou, como à sala, para compreendê-
lo. Viu a fatigada altivez de seus olhos azuis, as rugas orgu-
lhosas e amarguradas correndo das narinas à boca, por vezes
mais fundas e longas, devido a um aborrecimento ou ao tédio.
Ninguém lhe podia falar espontaneamente, sem ser convida-
do . . . nem mesmo as crianças. Era proibido, era perigoso. Ele
responderia, sim, mas estranho e frio, no rosto uma perplexi-
dade, uma breve perturbação, que Klaus Heinrich entendia
muito bem.
Papai falava com a gente e despachava a gente outra vez;
estava acostumado a isso. Falava com as pessoas no começo do
56
baile da Corte e no fim do jantar, no inícío do inverno. Anda=�
va com mamãe pelos quartos e salas em que se reuniam as
hierarquias da Corte, atravessava o Salão de Mármore e` as�
"Belas Salas", e a galeria de quadros, e o salão de baile. Não
andava só em certa direção, mas seguindo um roteiro que o
zeloso Sr. von Bühl mantinha desimpedido, e dirigia a palavra
, a senhores e damas. A pessoa a quem se dirigia fazia uma me-
sura, abria um espaço de assoalho entre ela e papai, e respon-�
dia, grave e feliz. Depois, papai cumprimentava àquela distân-
cia, na segurança de prescrições cuidadosas que limitavam os
movimentos dos outros e favorecíam sua posição, cumprimen-
tava sorrindo de leve, e seguia adiante. Leve e sorridente . . .
Certo, certo, Klaus Heinrich entendia bem essa perplexidade que
por um momento perturbava as feições de papai quando al-
guém era impetuoso o bastante para lhe dirigir a palavra dire-
r tamente - entendia e partilhava dela, amedrontado! Algúma
coisa delicada era ameaçada, ficava ferida, algo tão íntimo em
nós, que ficávamos desamparados quando alguém irrompia ali
grosseiramente. Mas era essa mesma coisa que deixava nossos
olhos fatigados e cavava tão fundas rugas de tédio . . .
Klaus Heinrich estava ali parado, e via - via a mãe e
sua beleza, famosa e elogiada em toda parte. Via-se ereta na
robe de cérémonie, diante do grande espelho iluminado por
velas; depois, por vezes, nas festividades, ele podía ver quando
o cabeleireiro da Corte e as camareiras davam os últimos reto-
ques na toalete. Também o Sr. von Knobelsdorff estava pre-
sente quando mamãe era enfeitada com jóias do tesouro da
Coroa, vigiando e anotando as pedras que lhe eram aplicadas.
As ruguinhas de seus olhos se moviam, ele fazia mamãe ri`r
com piadas engraçadas, formando lindas covinhas em suas faces
macns. Mas era um riso cheio de arte e graça - ela olhava
no espelho como se treinasse.
Em suas veias, dizia-se, corria algum sangue eslavo, por
isso seus olhos, de um azul profundo, tinham aquele brilho tão
doce, como a noite tão negra de seu cabelo perfumado. Klaus
57
Heinrich era parecido com ela, ouvira dizerem isso, pois tinha
olhos azul-aço e cabelo escuro, enquanto Albrecht e Ditlinde
eram louros como papai fora antes de ficar grisalho. Mas es-
tava longe de ser bonito, com seus zigomas largos, e especial-
mente por causa da mão esquerda, que mamãe lhe ensinava
a esconder habilmente no bolso lateral do casaco, nas costas
ou na frente, no peito - e lhe pedia ísso exatamente quando,
#
cheio de ternura, ele a queria envolver com os doís braços.
O olhar dela era frio quando o prevenia para prestar atenção
à mão.
Ele a via como no retrato do Salão de Mármore: num
traje de seda brilhante, com rendas e luvas compridas, que dei-
xavam ver sob a manga bufante apenas uma faixa do braço de
marfim, um diadema na noite dos cabelos, o magnífico corpo
bem ereto, um sorriso de fria perfeição nos lábíos maravilho-
sos e ásperos, e atrás dela um pavão de pescoço azul-metálico
abrindo seu leque real. O rosto dela era muito suave, mas a
beleza o tornava severo, e dava para ver que também seu cora-
ção era severo, cuidando umcamente da beleza. Ela dormia mui-
to de dia, quando havía baile ou reunião à noite, e comia ape
nas gema de ovo para não ficar pesada. Depoís, à noite, bri-
lhava no braço de papai naquele trajeto prescrito através dos
salões - dignitários grisalhos coravam quando mereciam que
ela os interpelasse, e no Mensaeiro saía que Sua Alteza Real�
não fora a rainha da festa umcamente devido à sua posição.
Sim, ela causava felicidade exibindo-se na Corte, e fora dela,
nas ruas ou, à tarde, no parque, a cavalo ou de carruagem -
ea, as faces das pessoas coravam ainda mais. Flores e vívas e
corações voavam em sua direção, e os que davam vivas pen-
savam em si mesmos, via-se isso claramente, e exclamavam
assim, alegres, que eles próprios viviam bem e acreditavam em
coisas boas naquele momento. Mas Klaus Heinrich sabia muito
bem que mamãe trabalhara longas horas, cuidadosamente, na
sua beleza, que seu sorriso e suas saudações nasciam da inten-
5R
ção e do exercício, e que seu coração não pulsava junto, por
, nada e por ninguém.
Por acaso ela amaria alguém - por exemplo, a ele, Klaus
Heinrich, tão parecido com ela? Ah, sim, certamente fazia isso
quando tínha tempo, e mesmo quando, com palavras frias,
o Icmbrava daquela mão. Mas parecia que poupava a expressão
r e os sinais de sua ternura para aquelas horas em que havia
espectadores que poderiam ficar honrados com isso. Klaus Hein-
rich e Ditlinde não encontravam a mãe muitas vezes, pois não
particípavam da mesa paterna como Albrecht, o herdeiro, fazia I
há algum tempo; mas comiam à parte, com a madame da Suí-
I
ça; e quando eram chamados aos aposentos de mamãe para
i
uma visita, o que acontecia uma vez por semana, o encontro
I
transcorria sem ímpetos emocionais, com perguntas indiferen-
tes e respostas bem-comportadas; na verdade, o que ínteressava
'' era como se ficava sentado num divã com uma taça de leite
Í
nas mãos. Mas nos concertos que aconteciam no Salão de Már-
more: a cada duas quintas-feiras, sob o nome "Quintas-Feiras
da Çïrã-Duquesa", quando a sociedade da Corte ficava sentada
juntcs de mesinhas de pernas douradas e toalhas de veludo ver-
I
melho, enquanto o cantor de câmara Schratnm, do Teatro da
Corte, cantava tão alto, acompanhado de música, que as veias
saltavam em sua testa calva - nesses concertos, Klaus Heinricb
e Ditlinde por vezes podiam ficar na sala durante um número
e um intervalo, com roupas festivas, e então mamãe mostrava
que c>s amava, mostrava isso a eles e aos outros com tanta ter-
nura, de modo tão expressivo que não podia haver qualquer
dúvida. Levava-os consigo para a mesa e pedia, com um sor-
riso iondoso, que se postassem dos lados dela, encostava as�
faces deles em seu peito e ombros, fitava-os nos olhos com ?
expressão doce e feliz, e beijava-os na testa e na boca. Mas i
as damas inclinavam a cabeça e espiavam depressa, o rosto '
transfigurado, e os cavalheiros balançavam-na devagar, morden-
do os bigodes para dominarem virilmente sua emoção. . . Sim,
era bonito, e as crianças se sentiam participantes desse efeito,
59
que superava tudo o que conseguira o cantor Schramm com
#
seus mais belos tons; e encostavam-se em maxnãe, orgulhosos.
Pois ao menos Klaus Heinrich reconhecia que não bastava, s-�
gundo a ordem das coisas, simplesmente sentir-se e ser feliz,
mas era preciso expor a ternura nos salões, e expô-la para
inflamar os corações dos convidados.
Por vezes, também as pessoas na cidade e no parque
podiam ver que mamãe nos amava. Pois enquanto Albrecht
saía de carruagem ou a cavalo de manhã cedo com o Grão-
Duque - embora montasse tã: mal -, Klaus Heínrích e Dit-�
linde acompanhavam mamãe em seus passeios, alternadamen-
te, de tempos em tempos. Esses passeios aconteciam na prima-
vera e no outono, à tarde, na hora em que se costumava pas-
sear na cídade. A Baronesa von Schulenburg-Tressen sempre
estava presente. Klaus Ieinrich ficava excitado e um pouco�
febril antes desses passeios, que não significavam muita ale-
gria, mas, ao contrário, esforço e tensão. Pois assim que a
carruagem aberta deixava o Portal dos Leões, entre os grana-
deiros apresentando armas na Praça Albrecht, havia muito povo
ali reunido, aguardando a partida, homens, mulheres e crian-
ças, que gritavam e os contemplavam com olhos ávidos. E era
preciso controlar-se e ficar ereto e gracioso, sorrindo, escon-
der a mão esquerda e levantar o chapéu em saudação para
al.egrar o povo. Isso continuava durante todo o passeio, tanto
na cidade como no campo. As outras carruagens tinham de
abrir caminho diante da nossa, os policiais cuidavam disso. Mas
os que estavam a pé fícavam parados à beira do caminho, as
senhoras dobravam um joelho, cumprimentando, os homens se-
guravam o chapéu junto da coxa e olhavam de baixo para
cima, cheios de veneração e curiosidade intensa - era isso
que Klaus Heinrich reconhecia: que todos estavam ali sim-
plesmente para estar, e olhar, enquanto ele estava ali para
mostrar-se e ser olhado. E era isso o mais dífícil. Ele segurava
a mão esquerda no bolso do paletó e sorria como mamãe dese-
java, sentindo as faces em fogo. Mas no Mensageiro saiu que
60
as faces do nosso pequeno Duque pareciam rosas, de tanta
saúde.
t
Klaus Heinrich. tinha 13 anos quando se postou junto da
selitária mesa de madrepérola, no centro da fria Sala Prateada,
tentando entender "aquilo" que realmente lhe interessava. E
quando estudou intensamente todas as aparências - a vazia
e desbotada altivez dos aposentos, que ficava muito acima de
cualquer utilidade e conforto, a simetria das velas brancas que�
pareciam expressar um ofício nobre e tenso, uma controlada
renúncia, a breve perturbação no rosto de seu pai quando O
interpelavam espontaneamente, a beleza fria e sempre tão cui-
dada de sua mãe, que se expunha sorridente ao entusiasmo
alheio, os olhares cheios de veneração e intensamente curiosos
clas pessoas lá fora -, então Klaus Heinrich teve um pressen-
t.imento, uma compreensão informe e vaga daquilo que real-
mente interessava em sua vida. Mas ao mesmo tempo sentiu
terror, um calafrio, diante desse tipo de predestinaçáo. Medo
da sua "nobre missão", tão forte que seu corpo se retorceu
e ele pôs as duas mãos diante dos olhos, também a esquerda,
pequena e engelhada, e se debruçou sobre a mesa solitária e
chorou, chorou de pena de si mesmo e de seu coração, até que
por fim apareceu alguém e ergueu os olhos para o teto e
j.intou as mãos e o interrogou e o levou dali. . . Ele admitiu�
cue sentira medo, e era verdade.�
Ele nada tinha sabido, éntendido, adivinhado, da difi-
culdade e severidade da vida que lhe fora destinada; fora urr �
meníno alegre, deixara-se levar, despreocupado, dando muitos
motivos para que a madame se horrorizasse. Mas cedo se mul-
tiplicaram as impressões que já não tornavam possível ignorar
c> verdadeiro estado de coisas. No subúrbio do norte, perto do
J ardim das Fontes, surgira uma nova rua; revelaram-lhe que
;or decisão dos magistrados ela se chamava Rua Klaus Heinrich.�
Durante um passeio, sua mãe o levou à loja de objetos de arte,
para uma compra. O lacaio aguardava junto da porta, o pú-
#
blico se aglomerava, o mnrchand se empenhava, contente -
61
nada de novo. Mas Klaus Heinrich notou pela primeira vez
seu próprio retrato na vitrina, ao lado do de artistas e homens
importantes, homens de testas altas, olhos singularmente soli- '
tários.
De modo geral, estavam satisfeitos com ele. Melhorava
de postura, emanava uma controlada dignidade sob o peso de
seu destino. Mas o estranho era que, ao mesmo tempo, cres-
cia seu anseio: aquele desejo ávido de saber, que o Professor
Drge não conseguiria satisfazer, e que levara Klaus Heinrich�
a conversar com os lacaios. Já não o fazia agora; não levava
a nada. Eles sorriam, "menino lindo, menino puro" e com
esses sorrisos lhe reforçavam o obscuro pressentimento de que
seu mundo de velas simétricas formava, inconscientemente,
uma contrapartida do mundo lá fora; mas não ajudavam em
nada. Ele olhava em torno, naqueles passeios, nas caminhadas
que, seguido de um lacaio, fazia com Ditlinde e a madame da
Suíça no parque da cidade. Sentia: se todos estavam umdos
contra ele, para contemplá-lo, e ele estava isolado, e destacado,
para ser contemplado, issfl signifícava que ele não participava
em nada da vida e da exístência deles. Ele compreendia; intui-
tivamente, que aquelas pessoas não eram sempre assim como
as via, paradas, saudando com aqueles olhares devotos; e qu �
deviam ser sua pureza e seu refinamento que tornavam tão
devotos aqueles olhares; e que eles se sentiam como crianças
escutando lendas sobre príncipes experimentando um embele-
zamento interior, uma superação do seu cotidiano. Mas ele nem
sabia como era feio e vulgar o cotidiano deles - sua "nobre
missão" o impedia. Portanto, era um desejo inaudito, e peri-
goso, querer que seu coração fosse tocado por coisas que sua
nobreza lhe proibia. Mesmo assim, ele as desejava, com uma
inveja e uma curiosidade ansíosa que por vezes o impeliam a
investigar locais desabitados do Castelo Velho, com Ditlinde,
sua irmã, sempre que possível.
Chamavam isso de "Earejar", e tinha um encanto enorme.
Pois era difícil familiarizar-se com a planta e a estrutura do
62
T
Castelo, e sempre que se afastavam dos lugares habituais en-
contravam salas e quartinhos, locais vazios e solitários onde
jamais haviam entrado, ou caminhos desconhecidos que davam
em salas familiares. Mas uma vez, numa dessas incursões, tive-
ram um encontro, uma aventura que, embora inofensiva, co- ;
moven e esclareceu intensamente a alma de Klaus Heinrich.
I
IIm dia, tiveram uma oportunidade de passear. Madame
da Suíça saíra para o culto da tarde, eles tinham tomado leite
em taças de chá junto da Grã-Duquesa, em companhia de suas
damas de honra, depois foram despachados com pedidos de
que voltassem de mãos dadas para o quarto das crianças, ali
perto. Não era preciso acompanhá-los: Klaus Heinrich era bas-
tante grande para levar sua irmã Ditlinde. Era mesmo; no
correclor, ele disse:
-- Bem, Ditlinde, vamos voltar ao quarto das crianças,
mas, sabe, a gente não precisa voltar pelo caminho mais curto,
tão scm graça. Vamos primeiro farejar um pouco. Se a gente
sobe um lance de escada e vai pelo corredor até os arcos, lá
atrás cxiste uma sala com colunas. E depois dela se sobe uma
escada em caracol atrás de uma porta, e se chega a um quarto
com teto de madeira, com uma porção de coisas estranhas.
Mas ainda não sei o que há depois desse quarto, vamos desco-
brir hoje. Vamos.
- Vamos, sim - disse Ditlinde -, mas não longe
demai.c, Klaus Heinrich, nem aonde houver poeira demais, por-
que depois vão notar tudo no meu vestido.
I,la usava um vestidinho de veludo vermelho-escuro com�
enfeites de cetim da mesma cor. Naquele tempo, Ditlinde ti-
nha covinhas nos cotovelos, e cabelo dourado e lustroso emol- ;
duranc(o as orelhas em cachos como chifres de carneirinho.
#
Mais tarde ficaria magra, de um louro acinzentado. Também
tinha os zigomas largos e altos de seu pai e de seu povo, mas
eram clelicados, de modo que não feriam a finura de seu ros-
tinho em forma de coração. Em Klaus Heinrich, porém, eles
eram íortes e nítidos, estreitando um pouco os olhos azuis
63
cor de aço, parecendo alongá-los ainda mais. O cabelo escuro
do menino era repartido do lado, cortado com muita exatidão
,
formando um ângulo nas têmporas, e escovado obliquamente
para trás. Usava um casaco aberto com colete fechado e cola-
rinho branco. Na mão direita, segurava a mãozinha de Ditlinde,
mas o braço esquerdo pendia, fino e curto demais, com a mão
I' morena, engelhada e mirrada. Estava contente por poder deixá-�
;
' la pendendo despreocupadamente, sem ter de ocultá-la com
habilidade; pois não havia ninguém ali querendo olhar e sen-
tir-se mais belo e mais nobre, e ele próprio podia olhar e pro-
curar, atendendo ao próprio coração.
Então, andaram farejando segundo seu desejo. Havia cal-
ma nos corredores, e mal e mal viam algum lacaio de longe.
Subiram um lance de escadas e foram pelo corredor até co-
meçarem os arcos; portanto, chegaram à parte do Castelo que
vinha dos tempos de Johann, o Violento, e Heinrich, o Peni-
tente. Klaus Heinrich, que sabia disso, explicou. Chegaram à
sala das colunas, e lá Klaus Heinrich assobiou em vários tons,
bem depressa, pois, quando veio o último, os primeiros ainda
permaneciam no ar, e assim um claro acorde repassou por baixo
dos arcos. Os dois subiram, apalpando e às vezes de quatro,
por uma escada de pedra em caracol, e chegaram ao quarto
com teto de madeira, onde havia vários objetos esquisitos. Ha-
via algumas espingardas grandes e desajeitadas, com fechos co-
bertos de grossa ferrugem, que deviam estar estragadas demais
para ficarem no museu, e um inútil trono de veludo vermelho
rasgado, pernas curtas e arqueadas de leão e, por cima do en-
costo, criancinhas esvoaçantes segurando uma coroa. Mas havia
também uma coisa assustadora, muito recurvada e empoeirada,
parecendo uma gaiola, com que se ocuparam por muito tempo.�
Se não se enganavam, era uma ratoeira, pois viam a ponta de
ferro onde se devia prender o toucinho, e era horrível imagi-
nar a portà do alçapão fechando-se atrás do animal enorme,
repulsivo e enfurecido. . . Sim, aquilo exigiu tempo, e quando�
se levantaram de novo seus rostos estavam acalorados, os tra-
64
jes duros de ferrugem e poeira. Klaus Heinrich bateu-os com
as mãos, mas não adiantou muito, pois as mãos também esta-
vam sujas. Então, de repente, viram que havia escureçido mui-
to. Precisavam voltar. depressa, Ditlinde insistiu nisso, assus-
tada;: era tarde demais para irem em frente.
- Mas que pena, que pena - disse Klaus Heinrich. -
Sabe lá o que mais teríamos encontrado, e quando vamos ter
outra dportunidade de procurar, Ditlínde? - Mas foi atrás
da irmã, e trataram de descer rapidamente a escada em caracol
,
atravessaram a sala das colunas e saíram para o corredor dos
arcos, voltando para casa apressados, de mãos dadas.
aminharam assim por algum tempo, mas Klaus Heinrich�
sacudiu a cabeça, pois lhe parecia que não era aquele o cami-
nho por onde tinham vindo. Seguiram adiante, mas vários si-
hais provavam que era o caminho errado. Aquele banco de pe-
dra com cabeças esculpidas nos braços não estava ali antes.
Aquela janela pontuda dava para a parte baixa da cidade, . do
lado oeste, em vez de abrir-se para o pátio da roseira. Estavam
prdidos, não adiantava negar; talvez tivessem saído por uma�
saída errada da sala das colunas; de qualquer modo, estavam
perclidos.
Voltatam um trecho, mas estavam inquietos demais para
irem longe, por isso voltaram mais uma vez, preferindo con-
tinuar direto pelo caminho anterior. Andavam numa atmosfera
abafada, sufocante, grandes teias de aranha sossegadamente te-
#
cidas estendiam-se nos cantos; estavam preocupados, e Dítlinde
mostrava-se arrependida, quase chorando. Iam notar sua au-
sência, lançar-lhes aqueles "olhares tristes", talvez até contar
ao Grão-Duque; nunca mais encontrariam o caminho certo, se-
riam esquecidos e morreriam de fome. E onde há ratoeira,
Klaus Heinrich, tambérn há ratos. . . Klaus Heinrich a 'conso-
lava. Bastava encontrar o lugar com as armaduras e bandeiras
cruz;adas na parede; a partir dali, ele sabia o caminho. De re-
pente - acabavam de dobrar uma volta do corredor -, de
repente aconteceu uma coisa. Estremecerarn.
65
O que ouviam agora era mais que o eco dos próprios pas-
sos: eram outros passos, estranhos, mais pesados que os deles,
víndo a seu encontro, ora rápídos, ora hesítantes, acompanha-
dos de rosnados e fungadelas que lhes gelavam o sangue. Dit-
linde fez cara de quem vai sair correndo de susto; mas Klaus
Heinrich não lhe soltou a mão, e ficaram parados ali, os olhos
bem abertos, esperando o que estava por vir.
Era um homem que emergia da penumbra e, olhando-se
com calma, sua aparência não era de assustar. Era atarracado
e vestia-se como um veterano num desfile festivo. Usava casaco
de corte francês antigo, cachecol de lã no pescoço e uma me-
dalha no peíto. Trazia uma cartola numa das mãos e, outra,
como muleta, o guarda-chuva enrolado, com que batia regular-
mente nas pedras ao caminhar. Seu ralo cabelo grisalho subia
de uma orelha até o crânio, em mechas grudentas. Tinha so-
brancelhas arqueadas e pretas, e barba amarelada, do farmato
da do Grão-Duque, pálpebras pesadas e olhos azuís aguados,
por sobre sacos de pele murcha; tinha os habituais zigomas
salientes daquele povo, e as rugas de seu rosto vermelho pa-
reciam fendas. Aproximando-se bastante, ele pareceu reconhe-
cer os irmãos, pois se postou junto da parede do corredor,
colocou-se em posíção e começou a fazer uma séríe de mesuras,
deixando o corpo tombar para a frente várias vezes, de ma-
neira brusca e breve; a boca assumia uma expressão sincera.
Klaus Heinrich pensou em passar por ele, cumprimentando-o
com um inclinar de cabeça, mas parou, chocado, pois o vete-
rano começou a falar.
- Perdão! - disse ele de repente, num ímpeto, mas
prosseguiu mais controlado: - Peço expressamente perdão aos
meus jovens amos! Mas levariam a mal se eu lhes pedisse
por favor que me mostrassem a saída mais próxima? Não pre-
cisa ser logo o Portão Albrecht, . , não precisa ser. Mas qual-
quer saída do Castelo, se posso tomar a liberdade de me diriyi r
aos jovens arnos. . .
GG
Klaus Heinrich metera a mão esquerda no quadril, bem
atr.,s, quase nas costas, e olhava para o chão. Tinham-no in-
1
' ter¡,elado, interrogando-o diretamente de maneira desajeitada;
. ele pensou em seu pai, juntou as sobrancelhas. Pensava rapi-
damente em como se portar nessa circunstância toda errada e
inccmum. Albrecht teria torcido a boca, sugado um pouco O�
lábo inferior e seguido caminho, calado - era certo. Mas�
por que farejar se, na primeira aventura de verdade, já iam
seur adiante, ofendidos e cheios de formalidades? Ó homem�
era honrado e não pretendia fazer mal, Klaus Heinrich viu
issc quando se obrigou a erguer os olhos. E disse com sim-�
plicidade:
- Venha conosco, é melhor. Vou lhe mostrar onde tem
de dobrar para chegar a uma saída. - E foram andando.
- Obrigado! - disse o homem. - Agradeço sincera-
mente a gentileza! Nunca imagineí que um dia iria passear
com os jovens amos pelo Castelo Velho. Mas assim são as
coisas, e depois de todo o meu desgosto. . . pois eu tive des-
gosos, enormes, é verdade. . . depois de todo o meu desgosto�
ainla tenho esta honra e este prazer.�
Klaus Heinrich teve muita vontade de perguntar qual o
morivo de tanto desgosto; mas o veterano já prosseguia (ba-
tenio regularmente nas lajes com o guarda-chuva):�
#
- E logo reconheci os jovens amos, apesar de ser meio
escüro às vezes nestes corredores, pois tantas vezes vi os dois
na caleça e sempre me alegrei com isso, porque eu também
tenno uns bichinhos assim em casa, quero dizer, os meus são
bicninhos, os meus... e o meu menino também se chama
Kl:us Heinrich.�
r - Como eu? - disse Klaus Heinrich, divertido. . . -
Mas que coincidência!
- Acaso? Ele se chama assím exatamente por vossa cau-
sa, é alguns meses mais moço do que vós e há muitos meni-
nos na cidade e no campo com esse nome, todos por vossa
causa. Ora, não se pode dizer que seja coincidência. .
67
Klaus Heinrich escondeu a mão e ficou quieto.
- Sim, eu logo vos reconheci - disse o homem. - L
pensei: Santo Deus, é o que chamo de felicidade na desgraça,
esses aí vão ajudá-lo a sair desta armadilha onde você entrou,
seu velho idiota. E alegre-se porque aqui já entrou muita gente
a quem os sacanas passaram a perna e que não teve tanta
sorte. . .
"Sacanas?", pensou Klaus Heinrich. . . "Passaram a per-
na?" Olhou diretamente em frente, não se atreve,z a indagar.�
Sentiu medo, esperança. . . e disse baixinho:
- E no senhor. . . passaram a perna?
- Me fizerarn de besta! - disse o veterano. - Me fi-
zeram de besta, os cachorros, e com perfeição! Mas, posso di-
zer isso aos jovens amos, por maís moços que sejam, vai ser
bom saberem que as pessoas aqui estão muito corrompidas.
A gente vem e entrega seu trabalho com todo o respeito. . .
Sim, que Deus me livre! -- exclamou ele de repente, batendo
com o chapéu na testa. - Eu nem me apresentei aos meus
amos? Hinnerke! - disse ele. - Sapateiro, fornecedor da
Corte, honrado e condecorado. - Apontou com o indícador
de sua grande mão, rude e manchada de amarelo, para um:z
medalha no peito. - O caso é que Sua Alteza Real, o vosso
papai, me deu a honra de encomendar umas botas, botas de
cano alto, botas de montaria com esporas e couro de primeira.
Eu fiz as botas, fiz sozinho com todo o capricho, e hoje estão
prontas, e lustrosas. Vá você mesmo, pensei. . . eu tenho um
menino que faz as entregas, mas pensei: "Vá você mesmo, sãc �
para o Grão-Duque." E aí eu me vesti e peg,zei as botas i
vim ao Castelo. "Lindas! ", disseram os lacaios lá embaixo e
quiseram pegar as botas. "Não! ", eu disse, não tinha confian-
ça neles. Recebo encomendas e tenho até um título da Corte
por minha fama, quero dizer isso aos amos, não por subornar
lacaios. Mas os rapazes estão acostumados com gorjetas dos
fornecedores e queriam que eu lhes desse alguma coisa. Eu
disse "não" porque sou contra suborno e falsidade. "Quero
68
en regar as botas pessoalmente e, se não as posso dar eu mes-�
mm ao Grão-Duque, vou entregá-las ao camareiro Prahl." Eles
ficaram zangados, mas disseram: "Então, tem de subir por ali!"
E eu subi. Lá em cima, havia outros lacaios que disseram:
"São lindas! ", e quiseram entregar as botas, mas perguntei
pe io Prahl e não cedi. Eles disseram: "Está tomando café"
,
m:s fiquei firme e disse que ia esperar que ele terminasse. .�
E enquanto eu dizia isso, quem vai passando com seus sapatos
de fivela? O camareiro Prahl. E me viu e eu lhe dei as botas
com algumas palavras adequadas, e ele disse: "Muito bem! ",
e lisse ainda: "São lindas! ", e me cumprimentou e foi embora�
com as botas. Aí eu fiquei descansado, pois no Prahl se pode
confiar, e tratei de ir embora. "Ei! ", chamou alguém, "Hin-
n rke! Está indo pelo caminho errado! " "Que diabo! ", eu�
dise, e voltei e fui pelo outro lado. Mas foi a maior bobagem�
qae já fiz, pois eles me enganaram, e acabei indo aonde não
pretendia ir. Caminhei um pedaço e encontrei outro cara da-
qaeles e perguntei pelo Portão Albrecht. Ele logo notou o
qne tinha acontecido e disse: "Então, suba a escada e vá sem-
pre pela esquerda e depois desça de novo e assim vai abreviar
#
muito o camínho!" E confiei na gentileza dele, e fiz o que ele
disse e fiquei cada vez mais confuso e perdido. Aí notei que
a;io era minha a culpa, mas daqueles ladrões, e me lembrei
;iu ter ouvido dizer que muitas vezes fazem isso com os for-
ncedores que não lhes dão gorjetas, e os deixam perdidos por��
aí. E fiquei cego e burro de tanta raiva, e cheguei a lugares
oode minha alma nem podia maís respirar, não sei mais onde
c tou, e fiquei muito apavorado. E por fim encontrei os jovens�
amos. Sim, foi isso que me aconteceu, com mínhas botas! -
arocluiu o sapateiro Hinnerke, e limpou a testa com as costas
da mão.
Klaus Heinrich apertou a mão de Ditlinde. Seu coração
h.ltia tão forte que ele esqueceu inteiramente de ocultar a es-
c!uerda. Era isso. Era parte de tudo, um pouquinho, uma pista!
(',laro, eram essas as coisas que sua "nobre missão" lhe ocul-
69
tava, a vida das pessoas, como eram feias no seu cotídiano!
Os lacaies. . . Calou-se; não sabia o que dizer.
- Estão calados, os jovens amos! - disse o sapateiro.
E sua voz amiga estava cheia de emoção. - Eu nem devia
ter lhes contado isso, pois não devem saber dessas maldades.
Mas, par outro lado - disse ele, inclinando a cabeça para o
lado e estalando os dedos no ar -, acho que não faz mal,
não faz mal algum, para o futuro, mais tarde. . .
- Os lacaios - disse Klaus Heinrich, e tomou impul-
so . . . - São tão maus assim? Posso imaginar a cena . . .
- Maus? - disse o sapateiro - Eles não valem nada.
É assim que eles são. Sabe de que são capazes? Quando não
ganham uma boa gorjeta, eles retêm as mercadorias, e quando
o fornecedor as envia pontualmente, eles as entregam com gran-
de atraso, para que o fornecedor leve a culpa e pareça irres-
ponsável aos olhos dos senhores, e depois não receba mais
encomendas. E fazem isso sem escrúpulo algum, é coisa muito
conhecida na cidade. . .
- Sim,..isso é muito mau! - disse Klaus Heinrich. Es-
cutava, escutava. Nem podia mais avaliar o quanto estava aba-
lado. - E fazem mais coisas? - perguntou. - Tenho certeza
de que fazem outras coisas desse tipo.
- Se fazem! - disse o homem, e deu uma risada. -
Vou dizer uma coisa, meus jovens amos, eles fazem muitas
coisas! Por exemplo, aquela brincadeira de abrir as portas. . .
É assim. Alguém é admitido numa audiência com o vosso papai,
nosso digníssimo Grão-Duque, e os lacaios acham que é úm
novato, nunca esteve na Corte. O cara chega de fraque, com
frio e calor, pois naturalmente não é pouca coisa ficar pela
primeira vez diante de Sua Alteza Real. E os lacaios riem dele,
pois aqui se sentem em casa, e o levam para a ante-sala, e ele
nem sabe o que vai lhe acontecer, e se esquece realmente de
dar gorjeta aos lacaios. Mas então chega a sua hora, e o ajudan-
te diz o nome dele, e os lacaios abrem a porta dupla e o dei-
xam entrar na sala onde o Grão-Duque está esperando. Lá
70
escá o novato e faz a mesura e dá suas respostas, e na sua
bendade o Grão-Duque lhe estende a mão e ele logo é despe-�
di,lo e recua, e pensa que a porta vai se abrir atrás dele, como
lh prometeram com toda a certeza. Mas ela não se abre,�
acreditem, pois os lacaios são maus e não receberam gorjeta,
e não movem um dedo do lado de fora. Mas o cara não pode
. sc virar de modo algum, pois não pode virar as costas ao
( rão-Duque, seria um grande erro e uma ofensa grave. Então,�
el procura com a mão atrás de si, procura a maçaneta e não a��
encontra, e fíca nervoso e saltitando na frente da porta, e por
fim, por misericórdia divina, encontra a maçaneta, é uma des-
sa antiquadas que ele não entende, e remexe e desloca o braço�
e se esfalfa, e enquanto isso fica fazendo mesuras desespera-
d.s até que o bondoso Grão-Duque, por fím, tem de lhe abrir�
a porta com a própria mão. Sim, isso quanto às portas! Mas
is>o não é nada, vou contar. . .
Falando e escutando, mal tinham prestado atenção ao ca-
m.:nho. Haviam passado pelas escadas e estavam no térreo,
#
p rto do Portão Albrecht. Wiermann, um lacaio da Grâ-Du-�
quesa, vinha a seu encontro. Usava fraque roxo e suíças. Fora
' envíado para procurar as Altezas Reais. De longe, já vinha ba-
lmçando a cabeça, penalizado, e fazendo bico. Mas vendo O
sanateiro Hinnerke ao lado das crianças, batendo o guarda-
chuva à frente, os músculos de seu rosto se afrouxaram e sua
extressão tornoi.i-se mole e abobalhada.�
Mal houve tempo de agradecer e despedir-se, pois Wíer-
m.mn separou rapidamente o mestre-sapateiro das crianças e o
af.istou mais depressa ainda. E, anunciando desgraças, levou
Su.as Altezas Reais ao seus . aposentos, onde aguardava a ma-
dame da Suíça.
Ela ergueu os olhos para o céu, juntou as mãos por causa
d ausência deles e do estado de suas roupas. Aconteceu o�
pi.,r: lançou-lhes aduele "olhar triste". Mas Klaus Heinrich scí
sc confrangeu um pouquinho. Pensava nos lacaios . . . "Meninc
be nito, menino puro. . . ", dizia o sorriso deles; depois, ti-
71
ravam dinheiro e deixavam os fornecedores perdidos nos cor-
redores se não lhes davam suborno, e não abriam a porta, de
modo que o pobre coitado que obtivera a audiência tinha de
ficar esperneando diante dela. Isso no Castelv; como seria lá
fora? Lá fora, entre as pessoas que olhavam para ele, tão de-
votas e estranhas quando ele passava de carruagem, saudan-
do?. . . E como é que aquele homem se atrevera a lhe contar
tudo? Não o chamara nem uma vez de "Alteza Real", vio-
lentara-o, ferira grosseiramente sua pureza e refinamento. E
por que, ao mesmo tempo, fora tão doce ouvir contar aquelas
coisas dos lacaios? Por que seu coração batia com aquela ale-
gria horrorizada, tocado por coisas loucas e insolentes das quais
sua nobreza jamais partilhava?
72
O DOUTOR ÜBERBEIN
Klaus Heinrich passou três anos da meninice com camaraáas
da mesma idade, da nobreza da Corte e do interior, num in-
ternato, uma espécie de pensionato aristocrático, fundado pelo
Ministro da Casa von Knobelsdorff por causa dele, no palácio
de caça chamado Castelo dos Faisões.
Propriedade da Coroa há 100 anos, o Castelo dos Faisões
emprestava o nome à primeira parada de uma linha ferroviária
que levava da Residência para o Noroeste do país, e que por
sua vez recebera esse nome de uma criação de faisões "mansos"
,
que fícava entre arbustos e prados perto dali, capricho de um
dos :mtigos governantes. O Castelo, de um só andar, parecende
um caixote, uma casa de campo com telhado de ripas encimado
por iára-raios, com seus estábulos e cocheira, ficava bem junto�
da funbria da floresta de pinheiros. Tendo à frente uma fileira
de vclhas tílias, dava para um prado amplo; ao longe, numa
curv:tura azulada, era rodeado pela mata e atravessado por�
verec:as. Campos de jogos e barreiras para a prática de equita-
ção c spalhavam-se por ali. Do outro lado do Castelo, em dia-
gonal, fícava uma estalagem, a um tempo cervejaria e confei-
taria, com altas árvores, arrendada por um homem circunspecto
chamado Stavenüter. Nos domingos de verão, o local ficava
replero de excursionistas, especialmente de bicicleta, vindos da
73
capital. Os alunos do Castelo dos Faisões só podiam visítar a
estalagem vigiados por um professor.
Havia cinco alunos ali, além de Klaus Heinrich: um
Trümmerhauff, um Gumplach, um Platow, um Prenzlau e um
Wehrzahn. Eram conhecidos como "Os Faísões" naquela re-
gião. Um landau muito velho, pertencente à Corte, uma giga,
um trenó e alguns cavalos de montaria estavam à disposíção
deles, e quando, no inverno, parte dos prados estava ínun-
dada e congelada, podiam andar de esqui. Havia um cozinheiro,
duas camareiras: um cocheiro e dois lacaios no Castelo dos
Faisões, e, para alguma emergência, um deles também sabia
dirigir carruagens.
O professor do liceu, chamado Kürtchen, solteirão bai-
#
xinho, desconfiado e irritadiço, de aparência cômíca e cavalhei-
rismo antiquado, dirigia o pensionato. Usava bigode grisalho
':Í e aparado, óculos de ouro diante de inquietos olhos castanhos
e, ao ar livre, apenas uma cartola empurrada sobre a nuca.
I
;
Andava com o ventre esticado para. a frente, segurando os dois
pequenos punhos dos lados como um corredor. Tratava Klaus
! Heinrich com condescendência, mas os demais alunos com
grande suspeita devido à sua arrogância aristocrática, e ficava
enfurecido quando farejava algum desdém por sua condição
burguesa. Em passeios, quando havia gente por perto, gostava
de parar, reunir os alunos ao seu redor, num grupinho, e ea-
plicar alguma coisa, apontando com a bengala. A Sra. Amelun,�
r
viúva de um capítão, cheirando fortemente a gotas de Hoff-
mann, que tinha as chaves da casa, era chamada de "cara
senhora", e saboreava essa demonstração de refinamento.
Um professor assistente ainda jovem, com título de dou-
tor, ajudava o Professor Kürtchen - era um homem berr-
humorado, animado e fanfarrão, mas romântico, que ínfluer-�
ciava, talvez maís do que fosse aconselhável, o pensamento �
a sensibilidade de Klaus Heinrich. Havia ainda um professo,
de ginástica chamado Zotte. Aliás o professor assistente cham"-
,
74
va-s Überbein, Raoul Überbein. � Os demaís professores vinha �
diari.mente de trem da capital.�
Klaus Heinrich notou, com agrado, .lue em assuntos :, ..
jetiv>s as exigências que lhe eram feítas se abrandavam rapída-�
mente. O indicador enrugado do Professor Dróge já não se
prem(ia às palavras escritas - ele já cumprira sua missão; e
durmate as horas de aula, e na correção dos trabalhos escritos,
o Pr>fessor Kürtchen aproveitava ao máximo as oportunidades�
de dmonstrar seu tato. Logo após a abertura do pensionato,�
certo dia ele pedíu - depois do almoço, na sala de refeições
de janelas altas, no térreo - que Klaus Heinrich subisse ao
seu ouarto de estudos e disse textualmente:
- É contra o interesse geral que Vossa Alteza Real seja
chamada a responder perguntas durante nossos exercícios em
comum, se no momento não as quiser responder, De outro
lado, é desejável que Vossa Alteza sempre se ofereça para res-
poncir, levantando a mão. Por isso peço a Vossa Alteza, para�
mính: orientação, que diante de perguntas que não lhe agrada-�
rem stenda o braço ao máximo, mas naquelas que queíra res-��
ponclár o estenda só um pouco, em ângulo reto.
O Dr. Überbein enchia a sala de aula com sua loquací-
dade retumbante, uma jovialidade que não abordava assuntos
concrtos, mas não os esquecia. Não fizera qualquer combi-�
naç:ic com Klaus Heinrich, mas interrogava-o quando tinha von-
tade, com uma cordialidade espontânea, sem provocar cons-
tran.mento algum. E as respostas pouco pertinentes de Klaus�
Hein; ich pareciam encantar o Dr. Überbein, despertando nele
nm aivertido entusiasmo.
- Hahahá! ! ! - exclarnava, deitando a cabeça para trás,
num. risada. - Ah, Klaus Heinrich! Ah, meu Príncipe! Ah,�
inocência! A rude problemática da vida vos encontra despre-
paracio! Pois a mim, homem experiente, cabe esclarecê-la!
. ele próprio dava a resposta; não chamava mais nin-
guém quando Klaus Heinrich respondia mal.
7 �
O ensino dos outros professores tinha caráter de confe-
rência, pouco exigente. E o professor de ginástica, Zotte, rece-
bera dos superiores a indicação de orientar os exercícios fí-
sicos com muito cuidado para com a mão esquerda de Klaus
Heinrich - de modo que nem a atenção do Príncipe nem a
dos outros rapazes fossem dirigidas desnecessariamente para a
pequena deformidade. Os exercícíos corporais limitavam-se, por-
tanto, a corridas e, na hora da equitação, também orientada
pelo Sr. Zotte, se excluía qualquer temeridade.
#
A relação de Klaus Heinrich com os cinco camaradas não
se podia chamar de íntima, não havia como avançar na fami-
liaridade. Ele estava isolado, nunca era um deles, simplesmente
não contava no seu grupo. Eram cinco, ele era um; o Príncipe,
os cinco alunos e os professores formavam a instituição. Várias
coisas se opunham a uma amizade desinibida. Os cinco esta-
vam ali por causa de Klaus Heinrich, haviam ordenado a eles
que fossem seus camaradas, não lhes faziam perguntas nas
aulas depois que ele dava uma resposta errada e, na equitação
ou nos jogos, tinham de se adaptar à sua capacidade física. De-
pendiam dele até a náusea em todas as coisas da vida em co-
mum. Alguns deles, os jovens von Gumplach; von Platow e
von Wehrzahn, rapazes do interior, de menor fortuna, ficaram
impressionados com a felicidade e o orgulho revelados por seus
pais quando chegara o convite do Ministério da Casa, e as
congratulações que haviam chovido de todos os lados. De outro
lado, o Conde Prenzlau, o gordo, ruivo, sardento, de fala ofe-
gante chamado Bogumil, era filho da mais rica e nobre família
de latifundiários do país, mimado e orgulhoso. Sabia muito
bem que seus pais não tinham podido recusar o convite do
Barão von Knobelsdorff, mas que não o consideravam uma
graça dos céus, e que ele, Conde Bogumil, teria podido viver
muito melhor e de acordo com suas posses em casa, nas pro-
priedades dos pais, do que no Castelo dos Faisões. Achava
os cavalos de montaria ruins, o landau velho, a giga antiquada;
secretamente, reclamava da comida. Dagobert, Conde Trüm-
76
merhauff, rapazinho refinado, com jeito de galgo, que falava
aos sussurros, concordava inteiramente com ele.
Tinham uma expressão em comum, que, manifestando ple-
namente sua natureza aristocrática e crítica, usavam muitas ve-
zes com voz cortante e gutural: "Porcaría." Era uma porcaria
abotoar colarinhos soltos na camisa. Era porcaria jogar tênis
em trajes vulgares. Mas Klaus Heinrich não se sentia à vontade
usando essa palavra. Alíás, até ali nem soubera que havia ca-
misas com colarínhos costurados e que alguém pudesse ter
tantas roupas quanto Bogumil Prenzlau. Teria gostado de di-
zer "porcaría", mas lhe ocorria que estava usando meías cer-
zidas. Achava-se deselegante ao lado de Prenzlau e desajeitado
diante de Trümmerhauff. Este era nobre como um animal. Ti-
nh:z um Iongo nariz pontudo de dorso afilado e narinas amplas,
vibrantes, finas, veias azuladas nas delicadas têmporas e nas
orelhas minúsculas, sem lóbulo. De seus largos punhos colori-
dos, com abotoaduras de ouro, apareciam nobres mãos femi-
ninas com unhas onvexas, e o punho era adornado com um�
bracelete de ouro. Ele sussurrava, de olhos semicerrados...
Estava claro que Klaus Heinrích não podia competir com Trüm-
merhau£f em nobreza. Sua mão direita era um tanto larga, seus
zigomas eram como os do povo, e diante de Dagobert sentia-se
atarracado. Era possível que Albrecht tivesse conseguido dizer
"porcaria" juntamente com os Faisões. Mas ele, Klaus Hein-
rich, não era um aristocrata, fatos evidentes diziam isso. E seu
nome? Klaus Heinrich, nome dos filhos de sapateiros no cam-
po. e dos filhos do Sr. Stavenüter da estalagem, que usavam
os dedos para se assoar - chamavam-se como ele, seus pais,
seu irmão. Mas os aristocratas chamavam-se Bogumil e Dago-
bert.. . Klaus Heinrích sentia-se isolado e solitário entre os
cinco.
Mesmo assim, fez amizade no Castelo dos Faisões com
o Dr. Überbei.n, o professor assistente. Raoul Überbein não
era um homem bonito. T inha barba vermelha e rosto branco
esuerdeado, com olhos azuis aguados, cabelo ruivo e ralo, ore-
77
lhas muíto teias, pontudas e sal.ientes. Mas suas máos eram
pequenas e delicadas. Só usava gravatas brancas, o yue con-
feria à sua figura algo de solene, embora seu guarda-roupa tosse
precário. Ao ar livre, usava um manto de tecido rústico e
,
ao andar a cavalo - pois o Dr. Überbein montava, e muito
bem até -, vestia um casaco puído, com abas presas por alfi-
#
netes de segurana, calças justas e abotoadas, e chapéu alto.�
Em que consistia o encanto que ele exercia sobre Klaus
Heinrich? Em vários fatores. Ainda não viviam juntos há muito
tempo quando surgiu entre os Faisões o boato de que o pro-
fessor assistente um dia retirara, com grande risco, uma crian-
ça de um charco ou pântano,·..recebendo por isso a Medalha de
Salvamento. Impressionante. Mais tarde souberam outras coisas
da vída dele; também Klaus Heinrich as soube. Dizia-se que era
de origem obscura, de pai ignorado. A mãe fora atriz e o entre-
gara a pessoas pobres, em troca de dinheiro, para que cuidassem
dele. O menino passara fome, daí sua cor esverdeada. Eram coi-
sas difíceis de entender, até de imaginar, coisas loucas e estra-
nhas, às quais por vezes o próprio Dr. Überbein aludia - por
exemplo, quando os rapazes nobres, sabendo de sua origem obs-
cura, se portavam com certa ínsolência e falta de educação:
- Menininhos! fílhinhos da mamãe! - dizia ele então,
zangado. - Tenho bastante experiência para poder exigir mo-
déstia. dos senhores!
Também essa larga experiêncía do Dr. Crberbein impres-
sionava Klaus Heinrich. Mas o verdadeiro encanto do doutor
era a sua maneira direta de se portar com Klaus Heinrich, o
tom com que, desde o primeiro dia, lidara com ele e que o dis-
,
tinguia de todas as outras pessoas. Ele nada tinha da reserva
hirta dos lacaios, do pálido horror da madame, das mesuras
formalizadas do Professor Dróge nem da autocornplacente con-
sideração do Professor Kürtchen. ilada sabia da maneira estra-�
nha, devota e ainda assim insistente com que as pessoas lá fora
contemplavam Klaus Heinrich. Durante os primeiros dias de
vida em comum no pensionato, eie fora calado, limitando-se a
78
observar. Mas depois se aproximara do Príncipe com uma fran-
queza sorridente e natural, uma camaradagem espontánea e pa-
ternal, que Klaus Heinrich desconhecia. No começo, ela o per-
turbava; ele olhava assustado o rosto esverdeado do professor.
Mas essa perturbação não amedrontara o outro, não o intimi-
dara; ao contrário, fortalecera-lhe a desinibição jactanciosa, e
logo Klaus Heinrich fora conquístado. Pois na maneira de ser
do I.)r. Überbein nada havia de humilhante ou vulgar, nem mes-
mo mtencional ou pedagógico. Fazia parte da superioridade de
um homem de muita experiência e ao mesmo tempo revelava
uma condescendência delicada e espontânea para com a natureza
díferente de Klaus Heinrich. Nela havia amor e respeito, além
da ¡roposta alegre de uma aliança entre suas duas personalida-�
des. Chamava-o algumas vezes de "Alteza", depois simplesmente
"Príncipe" e depois, mais simplesmente ainda, de "Klaus
Heinrich", e assim ficaram as coisas.
Quando os Faisões saíam a cavalo, ficavam à frente, o dou-
tor em seu grande malhado, à esquerda de Klaus Heinrich em
seu bem-treinado alazão - trotavam na neve ou nas folhas caí-
das, na lama da primavera ou no calor do verão, ao longo da
floresta, pelo campo, pelas aldeias, e o Dr. Überbein falava de
sua vida. Raoul Überbein, como soa bem, não? Realmente, nada
refinado! Sim, "Überbein" era nome de seus pais adotivos, gen-
te E,obre e idosa, da esfera inferior dos empregados de banco,
e ele o usava legalmente. Mas chamar-se Raoul fora determina-
ção de sua mãe quando entregara sua pessoazinha junto com a
quantia combinada àquela gente simples - determinação emo-
tiv;, é verdade, fruto do sentimentalísmo. Era bem possível�
qu. seu verdadeiro pai se tivesse chamado Raoul, e se espe-�
rava que seu sobrenome combinasse com ele. Aliás, fora uma
ati;ude bem irresponsável de seus pais adotivos aceitarem a
crimça, pois "um certo" Schmalhans fora mestre-cuca dos
Überbein, e provavelmente só por premência financeira é que
elea haviam pegado a quantia combinada. O menino recebera
apunas 'a instrução essencia,l, mas resolvera mostrar quem era,
e se destacara um pouco. E, como queria ser professor,- ofere-
ceram-lhe dinheiro público para se formar no semínário. Lá, ele
se diplomara, aliás com distinção, pois se interessava por isso,
depois fora empregado numa escola pública, com excelente salá-
#
rio, com o qual eventualmente ajudara seus pais adotivos, até os
dois morrerem ao mesmo tempo. Lá estava ele então, sozinho
no mundo, de origem desgraçada e pobre como um rato de
igreja, contemplado por Deus com uma carantonha esverdeada e
orelhas de macaco, e com isso tinha de agradar. Circunstâncías
bem favoráveis, não? Mas, sendo as únicas condições que tinha,
seriam boas, e estava acabado. Juventude infeliz, solidão e ex-
clusão das coisas boas da vida, preocupação, exclusivamente de-
pendendo da própria capacidade, com isso não conseguia engor-
dar, era magro também por dentro, e resistente, não conhecia
qualquer conforto e tinha de superar muitas coisas. Como se
favorecem as capacidades quando se depende umcamente delas!
Que vantagem diante dos que "não precisavam" disso! Diante
das pessoas que de manhã acendiam um charuto. . . Naquela
hora, junto da cama de doente de um de seus pequenos alunos
malcheirosos, num quartinho que não tinha exatamente o per-
fume de flores de primavera, Raoul Überbein conhecera um
rapaz - alguns anos mais velho que ele, mas em situação pare-
cida, também malnascido, pois era judeu. Klaus Heinrich o co-
nhecia - sim, podia-se dizer que o conhecera em ircunstância�
bem íntima -, o nome era Sammet, médico. Por acaso estivera
em Grimmburg quando Klaus Heinrich nascera, e alguns anos
depois se estabelecera como pediatra na capital. Pois era amigo
de Überbein, ainda hoje, e naquele tempo tinham conversado
muito sobre destino e tenacidade. Diabos, os dois tinham muita
experiência. Überbein pensava com sóbría alegria no tempo em
que fora mestre-esrnla. Sua atividade não se limitara apenas à sa-
la de aula, ele gostava de se interessar também pessoalmente
por seus pequenos vagabundos, visitava-os em suas casas, conhe-
cia suas vidas familiares, nem sempre românticas, e assim ficava
sabendo de muita coisa. Na verdade, se antes disso ainda não
!:
ï
,.
80
conhecera a face mais séria da vida, naquela ocasião tivera a
oportunidade de vê-la de frente. De resto, não parara de traba-
lhar para si próprio, dera aulas particulares a gordos filhos de
bu rgueses e apertara o cinto para poder comprar lívros - usara
as longas, silenciosas noites livres para estudar. E um día fizera
com extraordinários resultados os exames estatais, fora promo-
viclo e passara à escola de Latim. Na verdade, lamentara deixar
seus pequenos vagabundos; mas era seu caminho. Depois o ti-
nham convidado para ser professor assistente ali, no Castelo dos
Faisões; embora fosse um malnascido. . .
O Dr. Überbein contava essas coisas e Klaus Heinrich fi-
cava inundado de afeto ao escutar. Partilhava o desdém do outro
pelos que "não precisavam" e de manhã acendiam seu charuto;
medo e alegria comoviam-no com aquilo que Überbein falava
na sua maneira divertida e fanfarrona sobre a "experiência", a
"compreensão" e a severa face da vida, e seguia, com simpatia
pssoal, sua vida infeliz e corajosa, desde o dinheiro pago para��
ciue ficassem com ele até seu emprego de professor de liceu.
Era como se fosse, de modo geral, capaz de particípar de uma
c"nversa sobre o destino e a tenacidade. Sentia-se comovido, as
vivências de seus próprios 15 anos emergiam, uma necessidade
de participar e doar o dominava, e tentou falar de si mesmo. Mas
o estranho era que o Dr. Überbein se recusou, resistiu decidi-
damente a essas tentativas.
- Não, não, Klaus Heinrich - disse -, pare com isso.
Peço que não faça confidências! Não que eu não saiba que
tcria muita coisa a me contar . . . Eu sabia de tudo quando
mal o tinha observado durante metade de um dia. Mas está me
compreendendo mal se pensa que pretendo fazê-lo chorar no
meu ombro. Primeiro, cedo ou tarde se arrependeria disso. Se-
gundo, não lhe cabem as alegrias de uma confidência íntima . .
Veja, eu posso tagarelar. Que sou eu? Um professor assistente.
Talvez não um dos piores, mas nada além disso. Um indivíduo
muito comum. Mas e você? O que é você? Isso é mais difícil. . .
I)igamos: um conceito, uma espécíe de ideal. Um receptáculo.
#
t31
Uma existência simbólica, Klaus Heinrich, e por isso uma exis-
tência f ormal. Mas a formalidade e a intimidade - ainda não
sabe que se excluem mutuamente? Excluem-se, sim. Você não
tem direito à intimidade franca, e se tentasse saberia por si
mesmo que ela não lhe serve, consideraria tudo isso ínadequado
e de mau gosto. Preciso lembrá-lo de sua compostura, Klaus
Heinrich . . .
Este fez uma continência com o chicote, sorrindo. E sor-
rindo seguiram adiante.
Outra vez o Dr. Überbein disse como por acaso:
- A popularidade é uma forma muito profunda, grandio-
sa e abrangente de intimidade. - E não falou mais nisso. .
Por vezes, no verão, nos grandes intervalos entre as aulas
da manhã, sentavam-se juntos no jardim deserto da estalagem
- passeavam, falando sobre qualquer assunto, pelos prados onde
os Faisões jogavam e improvisavam um descanso com limonada
na presença do Sr. Stavenüter. Este limpava a mesa vermelha.
satisfeito, e trazía a límonada pessoalmente. A rolha de vidro
uma bolinha, tinha de ser empurrada no gargalo.
- Coisa puríssima! - dizia o Sr. Stavenüter. - O mais
saudável de tudo. Não é droga, não, Alteza Real. e doutor, mas
suco natural com açúcar, e posso recomendá-lo com a consciên-
cia tranqüila!
Depois mandava seus filhos cantarem em honra da visita.
Eram três, duas meninas' e um menino, e cantavam a três vozes.
Paravam a certa distância, debaixo do teto verde das folbas do
castanheiro, e cantavam canções populares, assoando-se com os
dedos. Uma vez cantaram algo que começava com "Somos todos
humanos" e o Dr. Überbein demonstrou, em seus comentários,
que aquele número de programa o desagradava.
- Canção podre - disse ele, inclinando-se de lado para
Klaus Heinrich. - Canão vulgar. Cançãozinha leviana, Klaus�
Heinrich, e isso não lhe deve agradar.
Maís tarde, quando as crianças não estavam mais cantan-
do, voltou a falar sobre a canção e designou-a diretamente cle
82
"porca". "Somos todos humanos" - repetíu. - Deus tenha
piedade, sim, sem dúvida, mas talvez se possa lembrar que os
mais notáveis entre nós ainda são aqueles que têm ocasião de
sublinhar essa verdade . . . Veja - disse, recostando-se para trás,
cruzando as pernas e acariciando de baixo para cima a barba ver-
melh. -, veja, Klaus Heinrich, um homem de alguma ambição�
espiritual não poderá deixar de procurar o extraordinário neste
,
mundo vulgar, e ama-lo onde e como llZe aparecer, e tem de
ficar indignado com uma canção tão porca, essa negação pas-
mada de qualquer coisa especial, das coisas nobres e sublimes,
e das que são iguais a isso . . . Estarei falando por experiência
própria? Bobagem! Sou apenas um professor assistente. Mas
sabe Deus o que está perturbando meu sangue . . . não me con-.
tento com dizer que no fundo somos todos meros professores
assistentes. Eu amo o que é singular, em qualquer forma e sen-
tido, amo os que carregam a dignidade de serem exceção, os
marc,dos, os que são visivelmente estrangeiros, todos aqueles�
diantc dos quais o povo faz cara tola. Desejo que amem seu
destino, e não desejo que se contentem com a verdade morna
e relaxada que acabamos de ouvir há pouco, a três vozes . . .
Por yue me tornei seü professor, Klaus Heinrich? Eu sou um
ciganu, talvez esforçado, sim, mas nasci cigano. Minha desti-
nação de servo de Príncipe não é muito evídente. Por que segui
o chamado com sincera alegria, quando ele chegou em atenção
ao meu esforço, embora eu seja um malnascido? Porque na
sua ferma de vida, Klaus Heinrich, vejo a mais visível, manifesta�
e preservada forma de extraordinário na terra. Tornei-me seu
professor porque desejo manter vivo dentro de você o seu des-
tino. Isolamento, etiqueta, dever, tenacidade, postura, forma-
, lidade - quem vive nisso não teria direito a ser superior?
Deveria, acaso, medir-se segundo coisas humanas e cômodas?
Não! Venha, vamos andar, Klaus Heinrich, se lhe agrada. Esses
#
pequenos Stavenüter são uns moleques grosseiros.
Klaus Heinrich riu; deu aos meninos um pouco do seu de
dinheiro, e foram embora.
83
à
- Sim, sim - disse o Dr. Überbein a Klaus Heinrich
num passeio e:n grupo pela floresta. Havia certa distância entre
éles 'e os Faisões. - Hoje em dia, a necessídade que o espírito
tem de venerar alguma coísa precisa reduzir-se. Onde ainda
existe grandeza? Sim, saúde! Mas, excetuando toda a verda-
deira grandeza e destinação, ainda existe aquilo que chamo de
nobreza, formas de vida escolhidas, melancolicamente isoladas,
da's quais nos devemos aproximar com a maís terna das simpa-
tias. De resto, a grandeza é forte, usa botas de cano alto, não
precísa dos refinamentos do espírito. Mas a nobreza é como-
vente. . . que o Diabo me leve, é a coisa mais comovente da
terra.
Algumas vezes por ano, os Faisões iam à Residência para
assistirem a óperas e dramas clássicos no Teatro da Corte; espe-
cialmente o aniversário de Klaus Heínrich era comemorado com
essa ida ao teatro. Ele sentava-se cal.mamente em sua poltrona
arqueada, junto da balaustrada de veludo, num camarote for-
rado de vermelho, no proscênio, cujo teto repousava sobre as
cabeças de duas esculturas femininas com mãos cruzadas e rostos
severos e vazios, via seus colegas príncipes, cujos destinos se
desenrolavam no palco, enquanto ele próprio suportava os binó-
culos de ópera que de tempos em tempos, mesmo durante a
apresentação, o público lhe dirigia. O Professor Kürtchen sen-
tava-se à sua esquerda e o Dr. Überbein, com os Faisões, num
camarote lateral. Uma vez assistiram a A f lauta mágica, e na
volta dos Faisões para a estação, no vagão de primeira classe,
o Dr. Überbein fez todo o pensionato dar risada imitando a
maneíra de falar dos cantores quando seu papel os obriga a pas-
sarem ao diálogo em prosa.
- Ele é um Príncipe! - disse em tom melífluo, e res-
pondeu a si mesmo no tom cantante e arrastado de um pastor:
- Ele é mais que isso; é um ser humano!
Até o Professor Kürtchen se divertiu, dando risadas agi.-�
das. Mas no dia seguinte, durante uma aula particular na sala
84
de estüdos de Klaus Heinrich, com a mesa de mogno redonda,
o Dr. Überbein repetiú sua paródia e disse:
- Santo Deus, naquele tempo isso era novo, uma men-
sagem, uma verdade espantosa! . . . Há paradoxos que estive-
ram tanto tempo de pernas para o ar que é preciso colocá-los
de cabeça para cima a fim de torná-los novamente paradoxais . '. .
"Ele é mn ser humano . . . ele é mais do que isso" . . . é ousado
é mais belo, e até mais verdadeiro . . . O contrário é mera hu-
manidade; mas não gosto muito da humanidade, gosto de falar
nela com desprezo. É pt'eciso pertencer àqueles dos quais o povo
diz: "Af inal, eles também são humanos . . . ", ou a gente acaba
sem graça, como professor assistente. Não posso desejar since-
ramente o nivelamento geral. e confortável entre conflitos e dis-
tâncias, yue Deus me ajude, sou assim mesmo, e para mim a
imagem do principe uomo é um horror. Não espero que ela lhe
agrade especialmente, Klaus Heinrich... Veja, sempre houve
príncipes e pessoas extraordinárias que levaram levianamente sua
existência de exceção, inconscientes da sua dignidade, ou rege-
nerando-a grosseiramente, capazes de jogar bolão em mangas de
camisa com os burgueses sem sentirem um doloroso dilacera-
mento interior. Mas são coisas sem importância, como aliás
é desimpòrtante tudo que tem pouco espírito. Pois o espírito,
Klaus Heinrich, o espírito é o preceptor que insiste implacavel-
mente na dignidade; sim, a dignidade é criada por ele, ele é o
inimigo mortal e nobre adversário de todo o conformismo hu-
mano. "Mais que isso?" Não! Kepresentar, estar em lugar de
muitos na medida em que nos expomos, ser a expressão eno-
brecida e disciplinada da multidão - naturalmente, representar
é mais sublime do que simplesmente ser, Klaus Heinrich . . . por
isso o chamam de Alteza . . .
#
Assim explicava o Dr. Überbeín, em voz alta, em tom sín-
cero e linguagem ágil, e o que ele dizia influenciava o pensa-
mento e a consciência de Klaus Heinrich, talvez mais do que
seria conveniente. Naquele tempo, o Príncipe tinha 15, 16 anos;
portanto, era bem capacitado para - se não realmente enten-
85
der, ao menos assímilar essas palavras em sua essência. O decí-
sívo foi que os ensinamentos e desabafos do Dr. Überbein eram
incrivelmente corroborados por sua personalidade. Quando O
Professor Droge, que Eazia mesuras para os lacaios, lembrara
Klaus Heinrich de sua "nobre missão", fora apenas uma forma
tradicional de falar, para sublinhar suas exigências conretas e,�
no fundo, sem maior sentido. Mas quando o Dr. Überbein, um
malnascido, como dizia, com seu rosto esverdeado porque pas-
sara fome, quando esse homem, que retirara uma criança de um
pântano ou charco, que vira coisas e tivera experiêncías, que
não apenas nunca fazia mesuras para lacaios, mas, eventual-
mente, até gritava com eles, e que, no terceiro dia, sem pedir
licença, símplesmente chamara Klaus Heinrich pelo nome -
quando ele explicava com sorriso paternal que Klaus Heinrich
"andava nos píncaros da humanidade" (gostava de usar essa
imagem), isso era algo espontâneo, novo, experimentado, por
assim dizer, ecoando nas profundezas. Quando Klaus Heinrich
escutava os relatos alegres e ruidosos do doutor sobre sua vida.
sobre "a face severa da vida", sentia-se como naquela vez em
que explorara o Castelo com sua irmã Ditlínde. E o fato de
aquele homem, que falava assim de sí mesmo, aquele "homem
experimentado". como dízía, não se portar em relação a Klaus
Heinrich com estranheza e devoção, como os demais, porém,
sem prejuízo de um respeíto livre e alegre, tratá-lo como cama-
rada de destino e de tenacidade, isso aquecia o coração do rapaz
com uma indizível gratidão e formava o encantamento que o
ligou para sempre ao professor . . .
Pouco depois do seu 16." aniversário (Albrecht, o Prínci-
pe herdeiro, já naquele tempo estava no Sul, por causa da saú-
de), o Príncípe, juntamente com os cinco Faisões, fora conrir-
mado na ígreja da Corte - e o Mensageíro dera a noticia sem
fazer sensacionalismo. O presidente do Conselho da Igreja, D.
Wislizenus, fez contraponto sobre um motivo da Bíblia, que
mais uma vez o Grão-Duque escolhera, e nessa ocasião Klaus
Heinrich foi nomeado Tenente, embora não entendesse coisa al-
86
guma de assuntos militares . . . Cada vez mais, toda a objetivi-
dade se evadia de sua vida. E assim também a cerimônia da
confirmação não teve maior significação, e o Príncipe voltou logo ,
depois, calmamente, ao Castelo dos Faisões, para prosseguir sua
vida no círculo dos professores e colegas, sem alteração.
Scí um ano depois é que deixou seu quarto antiquado e
simples de estudante, com o torso sobre a lareira de azule-
jos - o pensionato se desfazia e, enquanto os cinco camaradas
nobres passavam para o corpo de cadetes, Klaus Heinrich vol-
tou a residir no Castelo Velho, para, segundo uma combinação
do Sr. von Knobelsdor:f com o Grão-Duque, freqüentar por
um ano o liceu da Residência, na última série. Era uma medida
popular e bem-pensada, mas, do ponto de vista objetivo, não
mudava muita coisa. O Professor Kürtchen voltou ao seu posto
na escola pública, continuou dando aulas de várias matérias a
Klaus Heinrich e, na escola, tratava de manífestar seu tato
com mais zelo que no internato. Além disso, ficou provado que
transmitira aos outros professores a combinação quanto às duas
maneiras de o Príncipe reagir diante de uma pergunta. O Dr.
L7berbein, que também voltara ao Liceu, ainda não avançara o
suficiente em sua síngular carreira para lecionar na última série.
Mas, por um pedido ínsistente de Klaus Heinrich, que o trans-
mitiu ao Grão-Duque indiretamente - por assim dizer, pela
passagem de serviço, através do benevolente Sr. von Knobels-
dorff , o professor assistente fora nomeado professor repe-
tidor e orientador dos estudos em asa; vinha diariamente ao�
C;astelo, gritava com os lacaios, e agora também tinha ocasião
de influenciar o Príncipe com suas falas atrevídas e românticas.
#
Talvez se atribuísse a essa influência permanente o fato de
as relações de Klaus Heinrich com os jovens com quem divi-
dia o banco escolar todo riscado serem ainda mais frouxas e
distantes do que aquelas que mantínha com os cinco rapazes no
Castelo dos Faisões, e de o c'jetivo popular desse ano ter fa-�
lhado. Os intervalos, que nos períodos de inverno e verão todos
os alunos passavam no pátio amplo e ladrilhado, ofereciam opor- i
87
tunidade para camaradagem. Mas esses intervalos, destinados ao
descanso, significavam para Klaus Heinrich o verdadeiro esfor-
ço, peculiar à sua vida. Naturalmente, ao menos na primeira
quarta parte do ano, ele era objeto de curiosidade geral no pátio
da escola: o que não lhe era fácil, pois ali o ambiente não lhe
concedia qualquer distinção e amparo exterior, e ele tinha de
caminhar no mesmo chão em que caminhavam aqueles que se
uniam contra ele para o contemplarem. Os pequenos, cheios de
infantil irresponsabilidade, paravam bem perto, inconscientes, e
olhavam boquiabertos, enquanto os maiores o rodeavam, dis-
farçando, de olhos arregalados, ou o espiavam de lado, ou de
baixo para cima . . . Isso, com o tempo, diminuiu um pouco,
mas ainda assim - fosse de quem fosse a culpa, de Klaus Hein-
rich ou da multidão -, mesmo mais tarde, a camaradagem com
os outros não progredia direito. Via-se o Príncipe, à direita do
Diretor ou do Professor vigilante, seguido e rodeado de curio-
sos, andando de um lado para outro no pátio. Viam-no também
no pátio da sua classe, conversando com colegas. Uma bela visão!
Ele se recostava, meio sentado, no parapeito oblíquo do muro
de tijolos vitrificados, pés cruzados, mão esquerda bem atrás no
quadril, os 15 alunos da última série à sua frente em frouxo
semicírculo. Eram só 15 naquele ano, pois as últimas transferên-
cias tinham sido feitas tendo em vista que não avançassem para
essa classe elementos que, pela origem ou qualidades pessoais,
fossem inadequados para conviver nessa familiaridade com Klaus
Heinrich durante um ano inteiro, tratando-o por você. Pois esse
era o tratamento prescríto. Klaus Heinrich falava com um deles,
que se destacara um pouco do semicírculo, aproximando-se mais
dele, e que lhe respondia a cada vez com pequenas mesuras.
Os dois sorriam. As pessoas sempre sorriam ao falarem com
Klaus Heinrich. Ele perguntava, por exemplo:
- Você já fez a redação em alemão para a terça-feira?
- Não, Príncipe Klaus Heinrich, não terminei, ainda não
fiz a conclusão.
- Tema difícil. Ainda nem sei o que vou escrever.
88
- Oh, o senhor . . . você vai conseguir!
- Não, é difícil. Você tirou 10 em matemática?
- Sim, Príncipe Klaus Heinrich, tive sorte.
- Não, foi merecido. Eu nunca vou entender nada disso!
O semicírculo aplaude, divertido. Klaus Heinrich dirige-se
a outro colega, e o primeiro recua depressa. Todos sentiam que,
na verdade, não se tratava de redação, nem de matemática, mas
da conversa como processo e ação em si. O que importava era
a postura e o tom, avançar e recuar, o curso harmonioso de uma
ocasião delicada, fria, superior às coisas comuns. Talvez dessa
noção viesse o sorríso dos rostos.
Por vezes, quando tinha aquele grupo diante de si, Klaus
Heinrich dizia algo como:
- O Professor Nicolovius parece uma coruja.
Os colegas exultavam. Relaxavam a esse sinal dado, exce-
diam-se, faziam "ho-ho-ho! " em coro, com suas vozes que aca-
bavam de adquirir virilidade, e numa dessas ocasiões um deles
disse que Klaus Heinrich era "um cara e tanto". Mas este não
dizia esse tipo de coisa freqüentemente, só quando via os sor-
risos nos rostos ficarem hirtos é vazios, via o tédio, sim, a impa-
ciência dominando as fisionomias; dizia isso para que se disten-
dessem, e observava, meio curioso, meio assustado, o breve
movimento de animação que desencadeara.
Não fora Anselm Schickedanz que o chamara de "um cara
e tanto", mas fora exatamente por causa dele que Klaus Hein-
rich fizera aquela comparação do Professor Nicolovius com uma
#
coruja. Anselm também rira da piada insolente, mas não em
tom de aprovação, e sim como quem diz: "Ah, meu Deus!"
Era rapaz moreno, de quadris estreitos, e tinha na escola toda
a fama de ser um sujeito danado. Naquele ano, o comportamento
da última série era excelente. Todos os jovens tinham consciên-
cia do compromisso que era participar das aulas com Klaus Hein-
rich, e isso lhes fora demonstrado de todos os lados. E não seria
Klaus Heinrich quem os faria ignorar esse compromisso. Mas
ouvira dizer várias vezes que Anselm Schickedanz era um sujeito
89
danado e, quando olhava para ele, Klaus Heinrich estava dis-
posto, com certa alegria, a acreditar no que se dízia, embora lhe
fosse obscuro e enigmático entender como ele conseguira essa
fama. Secretamente, informara-se várias vezes, mencionara o as-
sunto como que por acaso e procurara saber com um e outro
alguma coisa sobre essa danação do Schickedanz. Não soube de
nada ao certo. Mas as respostas, cheias de ódio ou elogiosas, de-
ram-lhe idéia de um incrível encanto, uma humanídade ilícita-
mente bela, que existia para todos verem menos ele - e essa
sensação era dolorosa. Alguém disse sobre Anselm Schickedanz.
usando o tratamento proibido: .
- Sim, Alteza, devíeis vê-lo quando não estais presente!
Klaus Heinrich jamais o veria quando não estivesse presen-
te, jamais se aproximaria dele, jamaís o conheceria. Contempla-
va-o disfarçadamente, quando ele estava à sua frente no sem-�
círculo com os outros, sorridente e controlado como todos. T-�
dos se controlavam na presença de Klaus Heinrich, sua pró-
pria maneira de ser era culpada disso, ele bem o sabia, e jamais
veria como era Schickedanz, como se portava quando ficava G
i vontade. Era como um ciúme, como uma leve e calcinante
pena..
Nesse período, aconteceu um fato penoso, sim, escandalo-
so, do qual o casal de Grão-Duques nada soube porque o Dr.
Überbein nada comentou, e sobre o qual praticamente nada
' transpirou na Residência, pois todos os que tiveram participa-
ção e culpa silenciaram depois, por uma espécie de pudor. Tra-
ta-se das impertinências que aconteceram na presença do Prín-
cipe Klaus Heinrich no Baile Municipal daquele ano, e das quais
i participou principalmente uma certa Srta. Ursul Unschlítt, filh:�
de um rico fabricante de sabão.
O Baile Municipal era acontecimento permanente na vida
social da capital, uma festa oficial mas descontraída, que, ofere-
cida pela cidade, acontecia todo inverno na estalagem Zum Bür-
gergarten, grande estabelecimento, ainda recentemente ampliado
e renovado, no bairro sul, e que oferecia aos meios burgueses
90
oportunidade de confraternizar com a Corte. Sabia-se que Johann
Albrecht III jamais apreciara essa ocasião civil pouco tormali-
zada, à qual comparecia de casaca preta para abrir a polonaise
com a senhora do Prefeito, e da qual costumava retirar-se o
mais cedo possível. Tanto mais agradou a todos que seu segundo
filho, embora ainda não obrigado a isso, aparecesse no baile
daquele ano; e, como se soube, a seu próprio e insistente pe-
dido. Ouvira-se dizer que o Príncípe pedira qóe Sua Excelên-
cia von Knobelsdorff transmitisse seu ardente desejo à Grâ-
Duquesa, e esta por sua vez conseguira a permissão com o ma-
rido . . .
Externamente, a festa transcorreu como sempre. As mais
altas personalidades, a Princesa Katharina com vestido de seda
tíngida e chapeuzinho, acompanhada dos filhos ruívos, o Prínci-
pe Lambert com sua bela esposa; por fim, .Johann Albrecht, com
Dorothea e o Príncipe Klaus Heinrich, apareceu de carruagem
diante do Bürgergarten, saudado no vestíbulo pelas autoridades
municipais, em cujos fraques se viam rosetas de longas fitas.
Vários ministros, ajudantes em trajes civis, inúmeros cavalhei-
ros e damas da Corte. os maíorais da sociedade, além de pro-
prietários de terras da região, estavam presentes. No grande
salão principal, o salão branco, o casal de Grão-Duques passou
por uma série de apresentações; depois, ao som da música da
orquestra colocada sobre o estrado, ahriram o baile, Johann Al-
#
brecht com a mulher do Prefeito, Dorothea com o proprio. De-
pois, enquanto a polonaise se desfazia e todos passavam a dan-
çar normalmente, e a alegria aumentava, as faces ficavam aca-
loradas, e brotavam relacionamentos doces, lânguidos. dolori-
dos, por toda parte, nos calidos vapores humanos da festa, os
senhores mais nobres ficaram como nobres senhores costumam
ficar nessas ocasiões: excluídos, sorrmdo tolerantemente na ex-
tremidade do salão, junto ao estrado. De tempos em tempos,
Johann Albrecht falava com algum senhor respeitado, e Doro-
thea, com alguma dama. Os interpelados aproximavam-se e re-
cuavam depressa, muito atentos, mantinham dístância numa vaga
9i
mesura, com cabeças tortas, faziam que sim, faziam que não,
riam nessa postura diante das perguntas e comentários que se
lhes faziam, respondiam com muito zelo, entregues ao momento,
passando bruscamente da hilaridade à seriedade profunda, com
uma paixão que sem dúvida não existia no seu dia-a-dia, obvia-
mente em estado de excitação. Curiosos, ainda ofegantes da
dança, paravam em semicírculo, assistindo a esses diálogos in-
substanciais, com expressáo singularmente tensa, evidenciada
pelo sorriso de sobrancelhas arqueadas.
Muita atenção se concentrava em Klaus Heinrich. Ele se
postava com dois primos de cabelo vermelho que já estavam
no Exército, mas no momento usavam trajes civis, um pouco
atrás dos pais, descansando sobre uma perna, a mão esquerda
apoiada bem atrás no quadril, virando para o público o perfil
direito. Um repórter do Mensageiro, enviado para cobrir a festa,
tomava notas sobre ele, num canto. Viram o Príncipe cumpri-
mentar, com a direita enluvada de branco, seu mestre, o Dr.
Überbein, que vinha ao longo da fileira de assistentes, com seu
rosto esverdeado e a barba vermelha, e viram o Príncipe até
caminhar um trecho em sua direção na salz. O doutor, grandes
botões esmaltados no peito da camisa, fez uma mesura quando
Klaus Heinrich lhe estendeu a mão, mas depois começou ime-
diatamente a falar com ele naquela sua maneira espontânea e
paternal. O Príncipe parecia recusar, com um sorriso inquieto.
Mas depois uma porção de gente ouviu o Dr. Überbein excla-
mar:
- Nada disso, Klaus Heinrich, que bobagem . . . para que,
afinal, aprendeu tudo aquilo? Para que foi que a madame da
Suíça lhe ensinou tudo ainda menino? Não entendo por que
vem a um baile se não quer dançar! Um, dois, três, e ainda por
cima se conhece gente nova!
E, entre constantes piadas, apresentou ao Príncipe quatro,
cinco mocinhas, que simplesmente ia pegando pela mão e levan-
do consigo. Elas mergulhavam e emergiam, uma após a outra,
nas ondas de suas mesuras, mordiam o lábio inferior e se esfor-
92
çavam. Klaus Heinrich ficou parado, de calcanhares umdos di-
zendo:
- Prazer . . . Prazer . . .
A uma delas, até disse:
- Baile divertido, não é, senhorita?
- ,Sim, Alteza, estamos nos divertindo muito - respon-
deu ela com voz aguda de passarinho. Era uma mocinha bur-
guesa alta, embora meio ossuda, vestindo tule branco, cabelo
louro ondulado, repartido, afofado por cima do belo rosto, cor-
dão de ouro no pescoço nu com clavículas salientes e grandes
mãos brancas em meias-luvas. E acrescentou:
- Agora é a vez da quadrilha. Sua Alteza quer dançar
conosco?
- Não sei . . . - disse ele. - Realmente, não sei . . .
Ele olhou em torno. Com efeito, o movimento do salão
alinhava-se em ordem geométrica. Organizavam-se filas, pessoas
chamavam umas às outras. A música continuava muda.
Klaus Heinrich indagou aos primos. Sim, iam participar,
já estavam com suas felizes parceiras pela mão.
Viram Klaus Heinrich aproximar-se por trás da poltrona
de damasco vermelho de sua mãe, dirigindo-lhe palavras ani-
madas em tom abafado - viram-na transmitir a pergunta ao
#
marido, com um lindo movimento de cabeça, e viram o Grão-
Duque concordar, baixando a cabeça em sinal afirmativo. E sor-
riram um pouco vendo a precipitação jut,enil com que o Prín-
cipe saiu dali para não perder o começo da dança.
O enviado do rllensageiro, caderninho de notas numa das�
mãos e lápis na outra, espiava de seu canto, inclinando-se para
diante, a fim de ver quem o Príncipe convidaria. Era a loura
alta de clavículas salientes e grandes mãos alvas, a Srta. Un-
schlitt, filha do fabricante de sabão. Ela ainda estava .onde Klaus
Heinrich a deixara.
- Ainda está aí? - disse ele, ofegante. - Quer dançar
comigo? . . . Venha!
93
-s fileiras estavam completas. Andaram um pouco por�
ali e não encontraram lugar. iJm senhor com roseta e fíta veio
tiepressa, pegou um casal de jovens pelos ombros e fez com que
cedessem o lugar debaixo do lustre, para que Sua Alteza pudesse
postar-se ali com a Srta. Unschlitt. A música hesitara, agora ata-
cava firme, começaram os passos e saudações, e Klaus Heinrich
girou com os demais.
as portas das salas laterais estavam abertas. Numa delas,
via-se o bufê com vasos de flores, terrinas de ponche, traves-
sas com pãezinhos coloridos. A dança ia até lá; dois grupos
faziam evoluções no salão do bufê. Nos outros salões, havia
mesas com toalhas alvas, ainda vazias.
Klaus Heinrich andava em frente e para trás, sorria para
aqueles rostos, estendia sua mão, pegava mãos, a toda hora a
granae mão branca de sua parceira, passava o braço direito pela
macia cintura cïe tule áa moça e girava com ela no lugar, com
a mão esquerda, também vestida de uma pequena luva branca,
no quaáril. Todos falavam e riam enquanto giravam e andavam.
Ele cometia erros, não se iembrava direito, atrapalhava as evo-
luções, e ficou parado sem saber seu Iugar.
- Você tem de me avisar quando eu errar! - disse na
confusão. - Estou perturbando tudo! Pode me dar umas
cotoveladas! - E aos poucos encorajaram-se e o foram preve-
nindo, comandando-o entre sorrísos, até o tocarem com a mão
e o empurrarem um pouquinho, quando preciso. Era principal-
mente a bela moça das clavículas que o empurrava.
A cada volta, a animação crescia. Os movimentos ticaram
mais livres, os chamados, mais atrevidos. Começaram a bater os
pés no chão, balançando o corpo ao avançar e recuar, seguran-
do-se as mãos, os braços como balanços. 'Também Klaus Hein-
rich batia os pés no chão, primeiro de leve, depois mais rirme.
A bela moça cuidou de que seus braços balançassem quando
avançavam uns para os outros. E a cada vez que dançava ao
encontro dele, fazia, à sua frente, uma exagerada mesura, o que
aumentava ainda mais a alegria geral.
94
No salão do bufê ouviram-se rísadínhas, e todos olharam
; para lá, com inveja. Alguém saíra da fileira em meio à dança,
roubara um canapé do bufê, num salto, e voltara a dançar, mas-
tigando, enquanto os outros riam.
- Mas que atrevídos! - dísse a bela moça. - Esses aí
estão se divertindo! - E não teve mais sossego. Logo saiu
correndo, leve e ágil entre as fileiras, pegou um canapé e vol-
tou .
Klaus Heínrích aplaudiu, maís entusíasmado que todos. Não
;.ra muito fácil com sua mão esquerda, de modo que ele batia a
direita na coxa e se curvava de tanto rir. Depois, ficou mais
quieto, um tanto pálido. Lutava consigo mesmo. .. a quadri-
lha aproximava-se do fim. Tinha de fazer rapidamente o que
queria fazer. Chegara a hora das cadeias inglesas, e quando era
quase tarde demais ele fez aquilo por que lutara. Saiu corren-
do depressa entre os dançarinos, pedindo desculpas a meia voz,
quando empurrava alguém, chegou ao bufê, pegou um canapé,
correu de volta, entrou na sua fileira . . . Mas não foi tudo.
Levou o canapé, de ovo e sardinha, aos lábios de sua parceira,
a menina das grandes mãos brancas - eIa ínclínou-se um pou-
co para diante, mordeu.; mordeu sem usar as mãos, mordeu
#
metade do sanduíche... e, atírando a cabeça para trás, ele
meteu o resto na própria boca!
A anímação do grupo passou para a grande cadeia que co-
meçava. Ao redor da sala, agora, todos se cruzavam e entrela-
çavam, davam-se as máos, andavam em curvas, volteios. Depois
pararam, mudaram de direão, mais uma vez voltaram, rindo e�
conversando, enganando-se, confundíndo-se, tumultos rapida-
mente resolvídvs.
Klaus Heinrich apertava as mãos que recebía, sem saber
de quem eram. Sorria, ofegava. Seu cabelo líso e repartido e-�
tava solto, parte caía sobre a testa; o peitilho saía um pouco
do colete e, em seu rosto, os olhos acalorados, aparecia o entu-
siasmo comovido e doce que por vezes expressa felicidade. En-
` quanto andava e dava as mãos, ele disse várias vezes �
95
- Como estamos nos divertindo! Como estamos nos di-
vertindo! - e encontrou seus primos e também lhes disse: -
Como estamos nos divertindo. . . lá do outro lado!
Depois, palmas e reencontros: estavam chegando ao fim.
Klaus Heinrich estava uma vez mais frente à bela moça das
clavículas; e, mudando o ritmo, colocou mais uma vez o braço
na cintura macía dela, e dançaram na confusão.
Klaus Heinrich não a conduzia bem, e seguidamente batia
nos outros casais, pois mantinha a mão esquerda no quadril;
mas de al.guma forma levou sua dama à entrada do bufê, onde
pararam e tomaram ponche de ananás servido por dois garçons.
Sentaram-se logo na entrada, sobre dois tamboretes de veludo,
beberam e falaram da quadrilha, do baile, de outras reuniões
sociais de que a bela moça já participara naquele inverno . . .
Nesse momento, um cavalheiro do séquito, o Major von
Platow, Ajudante do Grão-Duque, postou-se diante de Klaus
Heinrich, curvou-se e pediu permissão para avisar que Suas
Altezas estavam indo embora. E haviam-no encarregado de . . .
Mas Klaus manifestou de modo tão vívo o desejo de poder ficar
que o Ajudante não conseguiu cumprir ua missão. O Príncipe�
soltou exclamações quase indignadas, obvíamente a idéía de ír
para casa agora lhe era muito dolorosa.
- Mas estamos nos divertindo tanto! - disse ele, er-
guendo-se e até pegando de leve o braço do Major. - Caro
Sr. von Platow, por favor, intervenha em meu favor! - Fale
com o Sr. von Knobelsdorff, faça o que quiser, mas ir embora
agora que estamos nos dívertindo tanto . . . Estou certo de que
meus primos também vão ficar . . .
O Major encarou a bela moça de grandes mãos brancas,
que lhe sorriu; também ele sorriu e prometeu fazer o possível.
A pequena cena desenrolou-se enquanto, na entrada do Bürger-
garten, o Grão-Duque e a Grâ-Duquesa já se despediam das
autoridades. Logo depois, a dança recomeçou no primeiro andar.
A festa estava no auge. Todas as atitudes oficiais tinham
sido dispensadas, e agora as pessoas se punham à vontade. As
96
mesas brancas das salas laterais estavam ocupadas por famílias
bebendo ponche e ceando. A juventude corria de um lado para
outro, sentava-se inquieta e acalorada na beira das cadeiras para
beber um cálice e precipitar-se de novo na dança. No andar tér-
reo, havia uma cervejaria em estilo alemão antigo, cheia de se-
nhores corpulentos. O grande salão de baile e a sala do bufê
estavam agora inteiramente ocupados pela juventude, louca por
dançar. O bufê estava lotado com 15 ou 18 jovens, filhas e fi-
lhos da cidade, entre eles Klaus Heinrich. Lá se desenrolava uma
espécie de baile particular. Dançavam ao som da música do
salão principal.
O Dr. 'Überbein, professor do Príncipe, apareceu breve-
mente, e teve um rápido diálogo com seu aluno. Ouviram-no,
relógio de bolso na mão, mencionar o Sr. von Knobelsdorff,
dizendo que este se achava na cervejaria, lá embaixo, e que
voltaria para apanhar o Príncipe. Depoís, saiu. Eram 10h30min.
Enquanto ele estava sentado lá embaixo com um caneco
de cerveja, conversando com conhecidos, apenas mais uma hora
ou hora e meia, não mais que isso, aconteciam no bufê os fatos
#
escandalosos, aqueles excessos que, infelizmente tarde demais,
o Dr. Überbein acabou encerrando.
O ponche que estava bebendo era leve, tinha mais água
mineral do que champanha. E se os jovens haviam perdido O
equilíbrio interior era antes devido à vertigem da dança do que
ao vinho. Mas, com o caráter do Príncipe e a boa origem bur-
guesa dos demais, isso não bastava para explicar o que acon-
teceu. Uma embriaguez diferente, singular, agia ali, dos dois
lados . . . O estranho era que Klaus Heinrich notava exatamente
as diversas fases dessa embriaguez, mas mesmo assim foi inca-
paz; ou sem força, para se livrar dela.
Estava feliz. Sentia nas faces o mesmo calor que via arder
nos rostos dos outros, e seu olhar, obscurecido por leve pertur-
bação, girava, abrangia encantado um vulto após outro, e dizia:
Nós! Também sua boca o dizia, pronunciava, com uma feliz
97
voz interior, frases contendo "nós". Nós vamos nos sentar, nós
vamos beber, vamos dançar de novo, vamos. Especialmente à
moça das clavículas, Klaus Heinrich falava usando o "nós". Es-
quecera totalmente a mão esquerda, que pendia solta, sua ale-
gria não era inibida por ela, nem pensava em escondê-la. Muitos
só agora reparavam o que realmente havia com essa mão, e
olhavam, curiosos ou com uma aareta inconsciente, o braço fino
e curto na manga do fraque, a luva pequena de glacê branco.
já um pouco suja, que revestia aquela mão. Mas, coma Klaus
Heinrich não estivesse nem um pouco preocupado com ela, ani-
maram-se também quanto a isso, e alguém acabou pegando,
despreocupado, na dança em ciranda ou em fileiras, aquela mão
mirrada . . .
Ele não a retirou. Sentia-se impelido, mais ainda, arreba-
tado pela felicidade, um bem-estar intenso e desenfreado, que
crescia, que se incendiava em si mesmo, dominando-o mais for-
temente, sufocante, levando-o nos ombros em triunfo. Que es-
tava acontecendo? Era difícil dizer, entender. Havia palavras
no ar, chamados fragmentados, coisas não-pronunciadas, mas ex-
pressas nos rostos, na postura, no que se dizia e se fazia:
- Ele que . . . !
- Puxem-no, puxem-no . . . !
- Peguem nela, peguem de novo . . . !
Uma mocinha de nariz arrebitado que o convidou para o
galope na dança das damas disse claramente, sem que houvesse
motivo óbvio:
- Que nada! - quando chegou a hora de sair disparan-
do com ele.
Klaus Heinrich via cintil.ar um desejo em todos os olhos.
e viu que todos tinham vontade de puxá-lo para baixo, para s:.
para que ficasse entre eles, lá embaixo, no seu nível. . . Na suri
felícidade, no seu sonho de estar com eles, entre 'eles, de ser
um deles, feria-o de tempos em tempos a constatação gelada.
dolorida, de que estava enganado, de que aquele deliciaso e ca-
lido "nós" o iludía, que mesmo assim não se diluía neles, can-
98
tinuando apenas centro e objeto, mais diferente que de costu-
me, e pior. Eram, de certa forma, inimigos, percebia isso na-
' quele desejo de destruição em seus olhos. Ouvia como de longe
com um susto singularmente quente, a hela moça de grandes
mãos brancas chamá-lo simplesmente pelo nome - e sentíu
muito bem que não era como o Dr. Überbein o fazia. Ela tinha
direito e permissão de fazer isso, de certa forma, mas quem ali
protegeria a sua dignidade, se ele próprio não o fizesse? Sentia
como se puxassem suas roupas, e por vezes havia explosões
loucas e irônicas naquele entusiasmo. Um rapaz alto e louro, de
monóculo, em quem ele esbarrara ao dançar, falou alto, para
todos ouvírem:
- lVão pode ter um pouco mais de cuidado?
E havia maldade no modo como a bela moça, braço enfia-
do no dele, girava longamente, expondo os dentes, até a verti-
gem máxima. Enquanto giravam, ele fitava com olhos enevoa-
dos aquelas clavículas que se desenhavam no pescoço dela, re-
cobertas de uma pele branca, um pouco dura . . .
#
Os dois caíram. Tinham girado demais, e caíram quando
tentaram fazer parar a ciranda; e sobre eles tropeçou outro
casal, aliás, não por si, mas empurrado pelo rapaz alto de
monóculo. Houve uma confusão no assoalho, e Klaus Heinrich
escutou, sobre sua cabeça, na sala, o coro que conhecia do páttio
da escola, quando tentava uma piada mais livre para que os
outros relaxassem, um "Ho, ho, ho! ", aqui, porém, maligno
e desenfreado . . .
Quando, logo após a meia-noite, infelizment;, ç: algum� �
atraso, o Dr. Überbein apareceu na soleira do bufê, viu o se-
guinte espetáculo: seu jovem aluno sentado sozinh no sofá de�
veludo verde na parede esquerda, com o fra.ue desalinhado,� �
enfeitado de todo jeito. Muitas flores, antes em dois vãsos chi-
neses no bufê, estavam enfíadas no decote do seu colete, entre
os botões do peito da camisa, até o colarinho du~o; ao redor de
1
' seu pescoço estava a corrente de ouro da mocinha das clavículas;
99
e sobre sua cabeça balançava, como chapéu, a tampa chata, de
metal, de uma terrina de ponche. Ele murmurava:
- Que é que vocês estão fazendo . . . que é que estão
fazendo . . . - enquanto os bailarinos, dando-se as mãos em
semicírculo, dançavam diante dele para um lado e para o outro,
com exclamações de júbilo, risadinhas, e "ho, ho, ho" mal-aba-
fados.
No rosto verde do Dr. lJberbein, por baixo dos olhos, apa-
receu um vermelhão estranho e incongruente.
- Acabou! Acabou! ! - gritou ele com sua voz forte, e
no súbito silêncio, consternação, lucidez, foi até o Príncipe,
com passos largos, tirou as fl.ores com dois, três gestos, jogou
de lado a corrente e a tampa, fez uma mesura e disse com
rosto grave:
- Posso pedir agora que Vossa Alteza. . .
E lá fora repetia:
- Fuí um burro, um burro!
Klaus Heinrich saiu em sua companhia do Baile Municipal.
Foi esse o penoso acontecimento do ano escolar de Klaus
Heinrich. Como se disse, nenhum dos partícipantes comentou
nada - e o Dr. Überbein nada falou com o Príncipe durante
anos. E, como ninguém falasse no assunto, ele não teve subs-
tância, diluiu-se de imediato no esquecimento, ao menos apa-
rentemente.
O Baile Municipal fora em janeiro. A terça-feira de Car-
naval, com o Baile da Corte, e a grande noitada na Corte no
Castelo Velho, com que se fechava a temporada social do ano
- festas regulares, das quais Klaus Heinrich ainda estava excluí-
do -, já haviam passado. Depois veio a Páscoa, e com ela o
fim do ano do liceu; o exame de maturidade de Klaus Heinrich,
aquela bela formalidade na qual ocorreu tão freqüentemente a
pergunta dos professores: "Não é verdade, Alteza?", e na qual
o Príncipe desempenhou com elegância seu destacado papel.
Não foi um corte profundo: Klaus Heinrich contínuou na Re-
sidência. Mas, depois de Pentecostes, aproximou-se seu 18." ani-
100
de versário, e ao mesmo tempo uma série de atos festivos, com
os quais começaria uma séria mudança em sua vida, e que o
oneraram dias a fio com encargos importantes e cansativos.
tão�
em Ele chegou à maioridade, foi declarado independente. Pela
tro, primeira vez depois do batizado, voltou a ser o centro de toda
lba- as atenções, com o papel principal numa grande cerimônia; mas
, se naquela vez ele se entregara às formalidades calado, despreo-
cupado e passivo, agora, entre as severas prescrições e linhas
pré-traçadas, enrolado nas pregas de tantos costumes cheios de
simbolismo, para alegria e edificação dos presentes, ele conse-
ë, e
guiu manter bela postura e disciplina. com aparente facilidade.
p,
De resto, não se fala em pregas só metaforicamente, pois
o Príncipe usava um manto de púrpura, traje de grande efeito,
#
já desbotado, que servira ao pai e ao avô quando atingiram a
maioridade, e que, apesar de ter sido arejado dias a fio, ainda
; retinha cheiro de cânfora. O manto de púrpura outrora fizera
parte do traje dos Cavaleiros da Ord.em de Grimmburg, mas
ipal.. agora só era usado como traje cerímonial de príncipes que che-
gavam à maioridade. Albrecht, o Grão-Duque herdeiro, jamais
laus
1tOtl vestira o exemplar da família. Como seu aniversário caía no
inverno, ele sempre o passava no Sul, num lugar de ar quente
ante
ubs- e seco, aoride também pensava voltar naquele outono. E como
na época de seus 18 anos a saúde não lhe tivesse permitido
apa-
voltar para casa, tinham decidido, em sua ausência, emancipá-
lo ofícialmente, desistindo do ato festivo na Corte. . .
Car-
Quanto a Klaus Heinrich, todos, especialmente os repre-
° no
ano sentantes da opinião pública, concordavam em que o manto O
:cluí- vestia magnificamente, e para ele próprio, apesar da limitação de
la o seus movimentos com aquela veste, era um benefício por lhe es-�
rich, ! conder a mão esquerda. Entre a cama de dossel e os armários
ite a barrigudos do seu quarto de dormir, que ficava no segundo
qual andar, dando para o pátio da roseira, ele se preparava para a
apel, representação, com minúcia e exatidão, ajudado pelo camareiro
i Re- Neumann, homem quieto e cuidadoso, que recentemente lhe fora
! destinado como roupeiro e criado pessoal. Neumann saíra da
101
profissão de cabeleíreiro e possuía, especialmente nas coisas rela-
cionadas com sua antiga profissão, aquela atenção apaíxonada,
aquela eterna insatisfação com seu ideal, das quais nasce uma
capacidade extrema. Ele não barbeava como qualquer pessoa,
não se contentava em remover todos os pêlos; barbeava de modo
a apagar qualquer sombra de barba, qualquer lembrança dela e,
sem ferir a pele, recuperava sua absoluta lisura e maciez. Cor-
tou o cabelo de Klaus Heinrich num ângulo exato sobre as ore-
lhas e o ajeitou com toda a aplicação que, segundo ele, era exi-
gida nesses preparativos de aparição cerimonial. Sabia fazer a
repartição do cabelo de modo a começar sobre o olho esquerdo,
atravessando obliquamente a cabeça através do redemoinho, de
modo que lá em cima não se levantasse um só fio; sabia esco-
var o cabelo do lado direito num monte firme, liberando a testa,
de modo que nem chapéu nem elmo o poderiam despentear.
Depois, com sua ajuda, Klaus Heinrich meteu-se cuídadosamente
no umforme de tenente dos granadeiros, cujo colarinho alto,
cheio de galões, favorecia uma postura disciplinada, colocou a
fita de seda amarelo-limão, a corrente dourada da condecoração
de sua dinastia, e desceu à galeria dos quadros, onde membros
mais íntimos da familia e parentes afastados do casal de Grão-
Duques já o esperavam. Os cortesãos aguardavam na Sala dos
Cavaleiros, ao lado, e foi lá que Johann Albrecht vestiu o filho
com o manto vermelho.
O Sr. von Bühl zu Bühl organízara uma procissão cerimo-
nial, na qual se dirigiram da Sala dos Cavaleiros à Sala do Trono
- e tudo lhe causara muita dor de cabeça. A organização da
Corte dificultava uma dísposição mais ímpressionante, e o Sr.
von Bühl queixava-se da falta de cargos superiores na Corte,
coisa que, nessas ocasiões, transparecia de maneira muito cons-
trangedora. Recentemente, o Sr. von Bühl também supervisio-
nava as cavalariças reaís, e sentia-se à altura de todos os seus
cargos. Mas perguntava a todo o mundo de onde poderia con-
seguir um cortejo dígno, poís todos os cargos superiores eram
ocupados única e exclusivamente pelo Monteiro-Mor von Stie-
102
glitz e pelo intendente do teatro ducal, um general que sofria
. dos pés.
Enquanto, na qualidade de Marechal-da-Corte, Mestre-de-
Cerimônias e Marechal-da-Casa, em sua roupa bordada e topete
castanho, coberto de condecorações como um rei, óculos doura-
dos no nariz, num caminhar buliçoso, segurando à frente seu
#
' bastão comprido, ele ia caminhando atrás dos cadetes que, tra-
jados de pajens, risca de cabelo sobre o olho esquerdo, abriam
a procissão, pensava preocupado no que vinha atrás. Camarei-
ros - não muitos, pois também eram necessários no fim do
cortejo -, chapéu de plumas debaixo do braço, chaves nas
costuras de trás da cintura, seguiam-no de perto, em meias de
seda. O Sr. von Stieglitz e o manco Intendente do teatro vi-
nham depois, diante do Príncipe Klaus Heinrich, que, vestindo
seu manto, entre o nobre casal de pais, seguido de seus irmãos
Albrecht e Ditlinde, formava o centro dessa procissão. Nas cos-
tas dos nobres duques vinha primeiro, ruguinhas dos olhos mo-
vendo-se o tempo todo, o Ministro da Casa e Presidente do
Conselho von Knobelsdorff. Um pequeno grupo de ajudantes
e damas da Corte vinha depois: o General Conde Schmetter e
o Major von Platow, um Conde Trümmerhauff, primo do di-
retor de finanças da Corte, como acompanhante militar do Grão-
Duque herdeiro, e as damas da Grã-Duquesa, dirigidas pela ofe-
gante Baronesa von Schulenburg-Tressen. Depois, dirigidos e se-
guidos por ajudantes, camareiros e damas da Corte, vinham a
Princesa Katharina com sua descendência ruiva, o Príncipe Lam-
bert com sua delicada esposa e os parentes estrangeiros ou seus
representantes. Pajens fechavam o cortejo.
Assim se;uiram a passo medido da Sala dos Cavaleiros,�
através das Belas Salas, a Sala dos 12 Meses e a Sala de Már-
more, entrando no Salão do Trono. Lacaios, com cordões dou-
rados sobre os fraques de gala castanhos, postavam-se aos pares,
; teatralmente, nas portas abertas. Pelas janelas amplas, entrava
por toda parte, alegre e impudico, o sol de uma manhã de junhe.
103
Klaus Heinrich olhou em volta nesse trajeto de honra entre
, seus pais por aquele ermo tão decorado, a desgastada pompa
das salas de representação, às quaís faltava a transfiguração da
IJZ dl'fIIC'ld dÏI CJICO !%uminu3, alegre e lúcro. s.a de<<,-� � � � � � �
dëncía. C7s grandes lustres com suas varas envoItas em tecido,
descobertos especialmente para aquele día, revelavam densas flo-
restas de velas hirtas e apagadas; mas por toda parte faltavam
prismas, e as guirlandas de cristal estavam rasgadas, de modo
que davam impressão de coisa corroída e esburacada. O forro de
seda e damasco dos móveis enfileirados nas paredes, rígidos,
largos e em arranjo monótono, estava desbotado, o dourado de
suas estruturas descascara; grandes manchas cegas interrompíam
os campos luminosos de altos espelhos ladeados de candelabros,
e a cascata de pregas das cortinas, em parte desbotadas e amare-
ladas nos locais onde eram arrepanhadas, deíxava entrar, aquí e
ali, através de buracos de traças, o dia que brilhava lá fora. Os
sarrafos dourados e prateados do papel de parede estavam sol-
tos em vários lugares e faziam pontas; sim, na sala prateada das
Belas Salas, onde o Grão-Duque costumava fazer reuníões fes-
tivas e em cujo centro havia uma mesínha de madrepérola com
suporte semelhante a um tronco de árvore, caíra um pedaço do
estuque prateado do teto, e via-se lá em cima um grande buraco
de gesso branco . . .
Mas por que, apesar de tudo isso, era como se aqueles
aposentos ainda suportassem a impiedosa e risonha luz do dia,
expondo-se a ela, altivos e distantes? Klaus Heínrich contem-
plou seu pai, de soslaio . . . O estado daquelas salas parecia
não o incomodar. O Grão-Duque, que sempre tivera estatura
média, com os anos se tornara quase pequeno. Mas andava de
cabeça imperiosamente erguida, a fita de condecoração amarelo-
limão sobre o umforme de General, que hoje vestira, apesar de
não ter inclinações militares; debaíxo da testa alta e calva, e
das sobrancelhas grisalhas, seus olhos, azuis e com sombras de
fadiga, olhavam a distância com uma altivez cansada, e do bigo-
dinho branco e torcido saíam as duas fundas rugas cavadas na
104
pele envelhecida e amarelada, descendo até a barba com uma
expressão desdenhosa . . . Não, o día claro não conseguia pre-
judicar'aqueles aposentos; a deteríoração não apenas não desfa-
zi.a sua dinnidade, até a elevava, de certa forma. Com sua ex-
trema falta de comodidade e sua simetria, a atmosfera estranha-
#
mente abafada de igreja ou palco, lá estavam, estranhos e com
fria renúncia diante daquele mundo arejado e quente de sol -
severos locais de um culto cênico, que Klaus Heinrich celebrava
pela primeira vez solenemente . . .
O cortejo passou entre os lacaios que apertavam os lábios
com expressão implacável, olhos cerrados; entrou no espaço
branco e dourado do Salão do Trono. Movimentos devotos,
mesuras, ondulações, arrastar de pés, curvas e continências es-
tenderam-se pela sala, à medida que passavam díante dos con-
vidados. Eram diplomatas com suas damas, a nobreza da Corte
e do campo, o corpo de oficiais da Residência, os ministros,
entre os quais se vía o rosto forçadamente otimista do novo
Minístro das Finanças, Dr. Krippenreuther, os Cavaleíros da
Grande Ordem de Grimmburg, os presidentes da Assembléia,
toda sorte de dignitários. Mas, bem em cima, no pequeno ca-
marote na entrada, sobre o espelho grande, viam-se os repre-
sentantes da imprensa, que olhavam uns sobre os ombros dos
outros, rabiscando aplicadamente . . . Diante do baldaquím do
trono, um arranjo de veludo simetricamente arrepanhado, co-
roado por plumas de avestruz e bordado com debruns de ouro
que precisavam ser substituí.dos, o cortejo dividiu-se como numa
polonaise, executando evoluções prescritas minucíosamente. Os
fidalgos, os camareiros, giravam para a direita e para a esquerda,
o Sr. von Bühl recuou com o rosto virado para o trono, o bas-
tão erguido, e parou no meio da sala. O casal de Grão-Duques
e seus filhos subiram os degraus arredondados, forrados de ver-
melho, até as grandes poltronas douradas lá em címa. Os outros
membros da família colocaram-se, com as altezas estrangeiras, dos
dois lados do trono; atrás deles, o séquito, as damas de honra,
os cavalheiros de serviço e os pajens ocupavam os degraus. A
105
I Ï
II
um gesto de Johann Albrecht, o Sr. Knobelsdorff, que assu-
mira seu posto diante do outro trono, chegou correndo, olhos
sorrídentes, fazendo uma curva determmada em direção à me-
sinha coberta de veludo ao lado dos degraus, e começou com as
formalídades ofícíais, guíando-se por vários documentos.
Klaus Heinrich foi declarado maior de idade, capaz e com
í
direito, em caso de necessidade, de usar a coroa. Todos os olhos
í dirigiram-se para eIe nesse momento - e para Albrecht, seu
irmão mais velho, Sua Alteza Real, parado ao lado dele. O
Grão-Duque herdeiro usava o uníforme de capitão da cavalaria
do Regimento de Hussardos, ao qual pertencia de nome. De
seu colarinho com galões de prata, emergia, Iargo e pouco mili-
tar, o colarinho civil, e sobre ele sua cabeça fina, inteligente e
enfermíça, com o crânío alongado e as témporas estreitas, o
bigode louro e ainda ralo no lábio superior, e os solitários olhos
i' azuis, que tinham contemplado a morte.. . Não era a cabeça
de um cavaleiro, mas tão esguia e aristocrática que a de Klaus
Heinrich, com seus zigomas camponeses, parecia quase grossei-
ra. O Grão-Duque herdeiro fez um biquinho enquanto todos
olhavam para ele, avançou um pouco o lábio inferior redondo,
sugando o superior.
O Príncipe, agora na maioridade, recebeu todas as conde-
corações do reino, também a Cruz Albrecht e a condecoração
Í
da Ordem de Grírnmburg, sem falar na condecoração da Cons-
tância, cujas insígnias já possuía desde os 10 anos. Depois, de-
senrolou-se o grande ato de congratulação, na forma de um des-
file díMgido pelo saltitante Sr. von Bühl - logo depoi5, o almo-
ço de gala no Salão de Mármore e na Sala dos 12 Meses . .
Nos dias subseqüentes, organizaram-se festas para entre-
ter as altezas estrangeíras. Em Hollerbrunn, aconteceu uma Testa
ao ar livre, com ïogos áe artifício e baile para a juventude áa
Corte, no parque. Passeíos festivos com pajens peÍa paísagem
estival até Monbrillant, ao Casteio de Caça, à ruína de Haáe~-
steín, E o povo, essa raça atarracada com olhos pensativos e
zigomas demasiado salientes, congratulava-os, parando na beira
#
106
do caminho, dando vivas a si mesmo e a seus representanter
Na Residência, pendurara-se a foto de Klaus Heinrich nas ; .
trinas das lojas de arte, e o Mensageiro até publicou seu retra-
to, um desenho popular e singularmente idealizado, mostrando O
Príncipe em manto de púrpura. Mas depois, novamente, :zm
grande dia: o ingresso formal de Klaus Heinrich no Exército.
no Regimento dos Granadeíros.
Foi assim: o Regimento que receberia a honra de ter Klaus
Heinrich entre seus oficiais apresentou-se na Praça Albrecht,
num quadrado aberto de um lado. Muitos penachos de plumas
ondulando no centro; os príncipes da casa, os generais, esta-
vam presentes. O público, escuro contra o tablado colorido,
acotovelava-se atrás dos cordões de isolamento. Em vários lu-
gares, havia máquinas fotográficas dirigidas para o local da
ação. A Grã-Duquesa contemplava o espetáculo das janelas o�
Castelo Velho, com as princesas e damas.
Vestido de tenente, Klaus Heinrich apresentou-se em pri-
meiro lugar ao Grão-Duque, no Castelo, com todas as forma-
lídades. Sem pensar em sorrir, postou-se diante do pai para
anunciar, de calcanhares unídos, que estava às ordens. O Grão-
Duque agradeceu brevemente, também sem sorrir. Depois, se-
guido de seus ajudantes, trajando umforme de gala c plumas�
ondulantes, desceu para a praça. Klaus Heinrich parou diante
da bandeira arriada, um pano d seda bordado, amarelado e�
meio carcomido, e prestou juramento. O Grão-Duque, com tra-
ses abruptas e forte voz de comando, que só usava para esse�
fim, fez um discurso em que chamava o filho de "Alteza' , e
apertou-lhe a mão em público. O coronel dos Granadeiros, com
o rosto vermelho, deu um viva ao Grão-Duque, e os convidados,
o Regimento e o publico ecoaram. Logo a seguir, teve lugar um
desfile, e tudo acabou com um almoço militar no Castelo.
Esse belo ato na Praça Albrecht não tinha significado nrá-
tico, seu valor residia nele mesmo. Klaus Heinrich não assumira
o serviço ativo, mas no mesmo dia, com pais e irmãos, foi oara
Hollerbrunn, e lá, nos frescos aposentos antigos, ;unto ao :-i,�
107
entre as sebes vivas do parque, passou o verão. Depois, no �
outono, entraria na Universidade. Pois era isso que dizia o plano
pré-traçado de sua vida: no outono, ele foí passar um ano na
segunda Universidade do país, que ficava fora da Resídência,
acompanhado do Dr. Überbein, seu professor.
A nomeação desse jovem intelectual como seu mentor fora
novamente devida a um desejo especial do Príncipe, e à per-
sonalidade do líder e camarada mais velho que Klaus Hein-
rich deveria ver a seu lado naqueles anos de liberdade como
universitário. Os responsáveis acharam que deviam atender a
seu pedido expresso. Ao mesmo tempo, havia quem falasse con-
tra essa escolha; era impopular e, pelo menos em círculos maio-
res, a censuravam, em voz alta ou em segredo.
Raoul Überbein não era querido na Residência. Apesar de
sua medalha de salvamento e toda a sua assustadora tenacida-
de, esse homem não era um concidadão agradável, um colega
amável, um funcionário incontestável. Os mais benevolentes o
encaravam como um tipo original, de temperamento irritadiço
e sinistramente inquieto, que não conhecia domingo, feriado,
distração, e não sabia, depois do dever cumprido, ser apenas
um ser humano entre seres humanos. Esse filho natural de uma
aventureira subira com muito trabalho, víera da mais baixa
classe, de uma juventude obscura e desesperançada, à posição
de mestre-escola e depois docente de liceu, portador de honras
acadêmicas, e fizera isso com incrível força de vontade. Con-
seguira "chegar lá", como dizem muitos: no pensionato dos
Faisões, fora nomeado professor do Grão-Duque; e mesmo assim
não tinha paz, nada o satisfazia, nunca saboreava comodamente
a vida . . . Mas a vida, notava qualquer pessoa mais ou menos
esperta em relação ao Dr. Überbein, a vida não se resume a
profissão e realizaçôes, ela tem prazeres e deveres puramente
humanos, e é pecado ignorá-los como se fossem leviandade. Só
quem se dedicar tanto à profissão e à humanidade como à vida
#
e à realização pessoal pode ser considerado uma personalidade
harmoniosa. A ausência de coleguismo em Überbein testemu-
l0á
nhava contra ele. Evitava toda a vida social com os colegas, e
sua relação de amizade limitava-se a um cavalheiro de outro
campo das ciências, um médico pediatra com o nome pouco
simpático de Sammet. Aliás, esse tinha grande clientela, e talvez
alguns traços de sua personalidade combinassem com Überbein.
Mas muito raramente - e só por condescendência - este pas-
, sava pela mesa de bar em torno da qual confraternizavam os
' professores do Liceu depois dos labores do dia, para um copo
de cerveja, um joguinho de cartas, uma conversa descontraída
sobre política e pessoas. Sabiam que passava as tardes e grande
parte da noite em sua sala de estudos, trabalhando - o rosto
cada vez mais verde, a tensão visível em seus olhos. Pouco
depois de voltar do Castelo dos Faisões, o Município se vira
obrigado a nomeá-lo professor efetivo do Liceu. Que mais dese-
jaria agora? Ser diretor? Professor umversitário? Ministro da
Educação? Era certo que, naquele seu esforço desmedido e sem
tréguas, se ocultavam a falta de modéstia e o sentimento de
superioridade, ou talvez nem se ocultassem. Sua postura, sua
voz alta e fanfarrona, aborrecia, irritava, exasperava os demais.
Ele não usava o tom adequado ao falar com colegas mais velhos
ou superiores a ele na hierarquia. Era paternal com todos, do
diretor ao mais insignificante professor auxiliar, e sua maneira
de falar de si mesmo como "experiente", gabando-se de seu
"destino e tenacidade", manifestava um benevolente desdém
pelos que "não tiveram necessidade" e "acendiam um charuto
de manhã"; era sem dúvida petulante. Os alunos o adoravam,
ele conseguia realizar coisas excelentes com eles, era verdade.
Mas, no resto, o doutor tinha muitos inimigos na cidade, mais
do que sonhava; e até parte da imprensa manifestava o receio
de que sua influência sobre o Príncipe não fosse muito dese-
jável. .
De qualquer modo, Überbein recebeu licença da escola
de Latim e visitou, primeiro sozinho, à procura de alojamentos,
a famosa cidadezinha umversitá.ria dentro de cujos muros Klaus
Heinrich deveria passar um ano de sua existência como membro
109
,.
de uma líga estudantíl. No retorno, foí recebído em audíência
pelo Ministro da Casa Grão-Ducal, o Sr. von Knobelsdorff,
para receber as instruções dé costume. Elas dizíam que o resul-
tado mais importante daquele ano era que, no solo comum da
liberdade acadêmica, surgisse entre o filho dos Príncipes e a ju-
ventude umversitária uma tradição de camaradagem, por um
interesse geral da dinastia - tudo isso dito em um estilo posi-
tivo, que o Sr. von Knobelsdorff pronunciou com muita supe-
ríorídade, e que o Dr. Überbeín escutou com uma mesura, sem
nada dizer, torcendo um pouco para o lado a boca e a barba
vermelha. Depois, Klaus Heinrich viajou para a Universidade,
com seu mentor, numa carruagem leve, de duas rodas, acom-
panhado de alguns críados.
Um belo ano, emoldurado pelo encanto de poética liber-
dade aos olhos do público, espelhado nos relatos que se faziam.
Mas sem qualquer importância objetíva. Desfízeram-se os re-
ceios de que o Dr. Überbein poderia importunar o Príncipe com
exigências excessivas em assuntos científicos. Ao contrário, fi-
cou claro que o doutor sabia distinguir muito bem entre a seve-
ridade de sua própria vida e a nobre existência de seu aluno.
De outro lado (não importa se por culpa do mentor ou do pró-
prio Príncipe), também no terreno da instrução, da liberdade
e da camaradagem espontânea, tudo se limitou a uma alusão
comedida e puramente simbólica, de modo que o essencial e o
importante daquele ano não foram nem uma coisa nem outra,
nem a ciência nem a liberação. Ao contrário, essencial e im-
portante parecia ser o ano em si, como hábito e ritual a que
Klaus Heinrich se submetia, comedidamente, como se subme-
tera aos cerimoniais de seu último aniversário. Só que agora
não era com manto de púrpura, mas por vezes com um daque-
#
les gorros coloridos, típicos das ligas de umversitáríos, enfeite
com que o Mensageiro o apresentou a seus leitores.
Quanto aos estudos, a matrícula se efetuou sem solenidade
especial, mas se comentou a honra concedida à Universídade
ao receber Klaus Heinrich. As aulas a que assistia começavam
110
com uma invocação: "Alteza Ducal!" Seguido de um criado;
notado e saudado pelo povo das ruas, ele se dirigia em sua car-
ruagem, vindo da bela mansão rodeada de verde que o Mare-
chal-da-Corte de seu pai alugara num bairro distinto, mas não
caro demais, para assistir às aulas, e lá ficava sentado, conscien-
te de que na verdade tudo aquilo não era necessário, nem
: essencial à sua nobre vocação, mas educadamente atento para
com todos. Corriam anedotas bondosas, que aqueciam os cora-
ções, sobre como o Príncipe mostrava ser parte de tudo ali. No
fim de uma aula de Ciências Naturais (a que Klaus Heinrich
assistia pela "cultura geral"), o professor, ilustrando o que dis-
sera, enchera uma esfera de metal com água. Anunciara que,
congelando a água, faria rachar a cápsula devido à dilatação;
na aula seguinte, mostraria a esfera partida. Mas, provavel-
mente por esquecimento, o professor não cumprira a palavra
- não mostrara a esfera rachada na aula seguinte. Klaus Hein-
rich, porém, informara-se do resultado da experiência. Mistura-
ra-se aos estudantes, como qualquer outro, no fim da aula, e
dissera com toda a simplicidade:
- Afinal, a bomba explodiu? - E o professor, primeiro
incapaz de responder, mas depois alegremente surpreso, mani-
festara emoção, até gratidão pela bondade e interesse. . .
Klaus Heinrich era convidado de uma das ligas estudantis
- só convidado, pois não podia duelar. Com o gorro na ca-
beça, freqüentava, vez por outra, as reuniões de bebedeira. Mas,
como aqueles que o vigiavam soubessem que o relaxamento e
a imbecilidade que resultam do álcool não combinavam com
sua nobre vocação, ele não podia beber de verdade, e mesmo
nisso tinham de ter consideração para com Sua Alteza. Os há-
bitos rudes ficavam limitados, o tom das conversas era exce-
lente, como outrora no fim do liceu, soavam velhas canções
de alegre poesia, e no fim os encontros eram sessões de gala
e exibição, reproduções idealizadas das verdadeiras reuniões.
O tratamento de "você" era combinado entre Klaus Heinrich
e os irmãos da liga, como expressão e fundamento d uma�
111
fraternidade espontânea. Mas, na verdade, soava falso e forçado, �
por mais que tentassem, e a todo momento, sem querer, aca-
bavam no tratamento de Alteza. Isso era resultado da perso-
nalidade dele, aquela postura amável e severamente controlada,
jamais perturbada por qualquer acontecimento concreto, ó que,
aliás, provocava reações muito bizarras nos que conviviam com
ele. Certa noite, por exemplo, numa reunião organizada por um
dos professores, o Prfncipe interpelou um cavalheiro, homem
corpulento e já idoso, um Conselheiro que, sem prejuízo de
seu conceito social, passava por velho boêmio e pecador. Corno
não os interrompessem a conversa, cujo conteúdo não inte-
ressava e não se poderia conferir, estendeu-se bastante. De re-
pente, no meio do diálogo com o Príncipe, o Conselheiro da
Justiça assobiou: flauteou com seus lábios grossos uma melo-
diazinha daquelas inconseqüentes que a gente canta quando, em
situação constrangedora, pretende fingir despreocupação. De-
pois, pigarreando e tossindo, ele tentou consertar a ridícula
gafe . . . Klaus Heinrich estava habituado a essas coisas, e apren-
dera a ignorá-las com delicada tolerância. Por vezes, entrava
numa loja para comprar alguma coisa pessoalmente, e sua en-
trada causava uma espécíe de pequeno pânico. Ele fazia seu
pedido, queria um botão dé que precisava, mas a balconista
não o entendia, parecia perturbada, seu espírito dificilmente se
concentrava no botão, estava visivelmente dominada por algo
diferente, muito acima das coisas comuns, deixava cair uma
porção de coisas, derrubava a caixa, perplexa, e Klaus Heinrich
tinha dificuldade em acalmá-la amavelmente.
Esse era, como se disse, o efeito da sua natureza, e na
#
cidade tudo isso, muitas vezes, era considerado altivez e des-
dém. Outros, porém, negavam que assim fosse, e o Dr. Überbein,
com que se discutíu sobre isso em algum encontro social, lan-
çou a pergunta: "Admitindo-se que haja algum motivo para des-
denhar a humanidade" - por am distanciamento da realidade
humana, como ocorre nesse caso, seria realmente possível falar
em desdém? Sim, enquanto ainda refletiam nisso, ele afirmou,
112
I .�
na sua maneira fanfarrona e irrefutável, que o Príncipe não ape-
nas não desprezava as pessoas, mas respeitava a todas, mesmo
as mais inferiores, levando-as a sério, julgando-as bem. E as po-
bres pessoas comuns, tão supervalorizadas e desafiadas come-
çaram a suar . .
A sociedade umversitária não teve tempo de tomar posi-
ção sobre o assunto. O ano letivo se passou antes de resol-
verem isso, e Klaus Heinrich partiu. Seguindo o programa de
sua vida, voltou à Residência paterna para, apesar do braço
esquerdo, prestar mais um ano de severo serviço militar. Ficou.
seis meses com os Dragões da Guarda e comandou os soldados
na formação de oito passos de distância para exercícios de
lança, bem como na organização de formações em quadrado,
como se isso fosse de seu interesse. Depois, trocou de armas e,
para ter uma visão do serviço de Infantaria, passou para os
Granadeiros. Até participou da guarda do Castelo e comandou
a troca de guarda, acontecimento sempre presenciado por gran-
de público. Estrela no peíto, ele saiu do quartinho da guarda
a passo rápido e colocou-se, espada em punho, à testa da com-
panhia. Seus comandos não eram muito corretos, mas isso não
fazia mal, pois os bravos soldados já conheciam tudo e, mesmo
assim, executaram os movimentos adequados. Também se sen-
tou no cassino, ao lado do coronel, no banquete dos oficiais, e
sua presença impediu os cavalheiros de abrirem os colarinhos
dos umformes e fazerem um joguínho depois da refeição. Mas,
depois disso, com apenas 20 anos, ele realizou uma "viagem
cultural" - já não em companhia do Dr. Überbein, mas com
um acompanhante militar, o Capitão da Guarda von Braunbart-
Schellendorf, cavalheiro louro destinado a ser ajudante de Klaus
Heinrich, e que, nessa viagem, tinha oportunidade de ganhar
influência e intimidade junto ao Príncipe.
Klaus Heinrich não viu muita coisa nessa viagem cultu-
ral, que o levou bem longe e foi zelosamente seguida pelo
Mensageiro. Visitou as Cortes, apresentou-se aos soberanos, fre-
qüentou jantares de gala com o Sr. von Braunbart, e na par-
113
tida recebeu uma alta condecoração de cada país vísitado. Via
as coísas importantes de se ver, que o Sr. von Braunbart (que
também recebeu várias condecorações) escolhia para ele, e o
Mensageiro, de tempos em tempos, dizia que o Príncípe ex-
pressara grande admiração por um quadro, um museu, uma
construção, ao falar com o diretor ou mantenedor responsável.
Ele víajou isolado, protegido e carregado pela solícítude cava-
lheiresca do Sr. von Braunbart, que cuidava do dinheiro, e cujo
zelo evitou que, no fim da viagem, Klaus Heínrích sequer de-�
pachasse alguma bagagem.
Duas palavras, não mais, podem ser dedicadas a um inci-
dentc u acormccet. ,cm. -,pír..,t d.. gr-,zo f,u l y"- ¡ü� � � � � � � � � � �� � � � �
ajeitado cuidadosamente pelo Sr. von Braunbart. Este tfnha um
camarada nessa cidade, um nobre, Capitão de Cavalaria, e so1-
teirão, ligado a uma jovem do mundo artístico, personalidade
amável e de confíança. Depoís de, segundo correspondência
pfévia entre o Sr. von Braunbart e seu camarada, terem arran-
jado um encontro de Klaus Heínrích com a senhoríta, na casa
dela, preparada para a ocasião, e de terem permitido que essa
amizade se aprofundasse deixando-os a sós, atingiram um obje-
tivo expresso dessa viagem de formação. Mas, para Klaus Hein-
rich, tudo não passou de um aprendizado necessârio para a sua
aprovação. A meritória moça recebeu um presente como lem-
brança, e maís tarde o amigo do Sr. von Braunbart ganharia
uma condecoração. Nada mais a dizer sobre isso.
#
Klaus Heinrich também viajou pelos belos países do Sul,
incógnito, com um pseudônimo romântico e nobre. Ficava sen-
tado, sozinho, talvez por 15 minutos, vestindo roupa civil dis-
creta e fina, entre estranbos, no terraço branco de algum res-
taurante sobre um mar azul-escuro, e era possível que alguém
de outra mesa o observasse e tentasse estabelecer contato social
com ele. Quem seria aquele jovem calado e discreto? As pe>-
soas repassavam os círculos burgueses, tentavam co)ocá-lo na
posição de comercíante, mílitar, umversitárío, mas ele não cabia
em lugar algum. Sentiam sua nobreza, mas não a adivinbavam.
114
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ex-
ma�
vel.
ma-
i
ujo
ALBRECHT II
O Grão-Duque Johann Albrecht morreu de morte terrível, que
tinha algo de nu e abstrato - na verdade, não podia ser desig-
nada por outro nome senão morte. Era como se, certa do seu
direito de posse, nesse caso a morte desprezasse qualquer más-
cara e aparência, e aparecesse diretamente como ela mesma, co-
mo solução em si. Tratava-se, objetivamente, de uma destruição
do sangue causada por infecções internas, e uma operação pro-
funda, realizada pelo Diretor da Clínica Universitária, famoso
. cirurgião, não conseguiu nem ao menos atrasar o processo de-
vorador. Tudo terminou depressa, tanto mais porque Johann
Albrecht não opunha qualcuer resístência à morte. Dava sinais
de estar infinitamente entediado, e dizía a seus familiares, até
aos médicos que o tratavam, que estava mortalmente cansado
"de tudo" - portanto, de sua existência principesca, de sua
vida aristocrática, sempre exposta para ser admirada. Seus tra-
ços fisionômicos, aquelas duas rugas de altivez e tédio, naque-
les últimos dias, vincaram se de maneira exagerada, grotesca, de
careta, para, na morte, se abrandarem novamente um pouco
mais . . .
A última enfermidade do Grão-Duque ocorreu no inverno.
O herdeiro Albrecht, chamado do local quente e seco onde esta-
va, entrou num clima de neve e umidade, que lhe ameaçou gra-
vemente a saúde. ,Seu irmão Klaus Heinrich interrompeu a via-
115
gem cultural, que se aproximava do fim, e voltou, em longò �
dias de viagem, com o Sr. von Braunbart-Schellendorf, dos belos
países do Sul para a Residência. Além dos filhos, lá estavam
a Grã-Duquesa Dorothea, as Princesas Katharina e Ditlinde, o
Príncípe Lambert - sem a delicada esposa -, os médicos e
o Camareíro Prahl, todos junto do leito de morte, enquanto,
na sala ao lado, os nobres da Corte e os ministros se reuniarn
oficialmente. A se dar crédíto ao que diziam os criados, os
rumores espectrais da Sala das Corujas haviam-se intensificado
grandemente nessas semanas e dias. Rumores de coisas remexi-
das e derrubadas, voltando periodicamente, mas que não se
escutavam fora do aposento.
A última atitude aristocrática de Johann Albrecht fora no-
mear Conselheiro, pessoalmente, o professor que realizara com
mestria aquela operação inútil. Estava terrivelmente esgotado,
"tudo aquilo" o cansara, e por vezes sua consciência já não se
mostrava bem clara; mas executou o ato com todo o cuidado,
e o transformou em verdadeira cerimônia. Pediu que o er-
guessem um pouco sobre almofadas, corrigiu, com uma mão
de cera protegendo os olhos da claridade, a posição dos pre-
sentes, ali distribuídos ao acaso, mandou os dois filhos se pros-
tarem dos dois lados da cama de dossel - e enquanto seu
espírito já vagava por caminhos desconhecidos, com artc
mecánica arrumou o rosto num sorriso de condescendência,
#
a fim de entregar o diploma ao professor, que retornava ao
aposento após alguma ausência . . .
Bem no fim, quando a destruição já lhe atingira o cére-
bro, o Grão-Duque manifestou um desejo que, mal entendido,
logo foi realizado, embora não melhorasse nada mais. Nos mur-
múrios do enfermo apareciam certas palavras, aparentementc
desconexas, que voltavam reularmente. Ele falava de vários teci-�
dos, cetim e brocado, mencionava o Príncipe Klaus Heinrich,
usava uma expressão técnica de medicina, e manífestava alges
sobre uma condecoração, a Cruz de Albrecht de terceira classe.
Em meio a tudo isso, ouviam-se expressões gerais que prova-
116
velmente se ligavam à vocação principesca do moribuxxdo, e
pareciam "dever extraordinário" e "maioria cômoda". Depois
,
novamente referências a tecidos, às quais, por fim, se juntou,
com voz mais forte, a expressão "Sammet"°. Então, entenderam�
que o Grão-Duque desejava chamar para seu tratamento o Dr.
Sammet, o médico que há 20 anos, por acaso, estivera em Grimm-
burg, e há muito clinicava na capital. O médico era pediatra,
mas mesmo assim o convocaram, e ele veio: bastante encanecido
nas têmporas, bigode pendendo descuidado, nariz demasiada-
mente arqueado, rosto escanhoado e faces um pouco írrítadas
pelo barbear. A cabeça inclinada para um lado, uma das mãos
na corrente do relógio e o cotovelo bem junto do corpo, ele
examinou a situação e começou imediatamente a cuidar do nobre
enfermo, com sua maneira zelosa e branda, e o doente mostrou
nitidamente sua satisfação. Assim, o Dr. Sammet , aplicou as
últimas injeções no Grão-Duque e aliviou sua árdua passagem,
segurando-o com as próprias mãos, ajudando-o a morrer, junto
com os demais médicos. Uma distinção que certamente irritou
um pouco, em segredo, esses senhores, mas, de outro lado, fez
com que, pouco depois, vagando o importante cargo, o doutor
fosse nomeado Diretor e Médico-Chefe do Hospítal Infantil
Dorothea, e nessa qualidade, mais tarde, participasse, de certa
forma, de alguns acontecimentos.
Assím morreu Johann Albrecht III, dando o último sus-
piro numa noite de inverno. O Castelo Velho foi festivamente
iluminado enquanto ele partia. As severas rugas de tédio alisa-
ram-se em seu rosto e, pairando acima de todas as tensões, ele
pôde entregar-se às formalidades que se desenrolavam a seu
redor pela última vez, e que o carregavam, fazendo daquele
seu casulo de cera, uma vez mais, objeto e centro dos rituais . . .
O Sr. von Bühl zu Bühl dírigia com todo vigor os funerais,
realizados na presença de muitos convidados nobres. As som-
brias cerimônias, as diversas exposições e desfiles do cadáver,
° Em alemão, "veludo". (N. da T.)�
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bênçãos e comemorações junto ao catafalco, duraram dias, e
por oito horas o corpo de Johann Albrecht permaneceu expos-
to à visitação pública, rodeado de arra guarda de honra formada�
por dois coronéis, dois tenen'es-coronéis, dois sargentos, dois
primeíros-sargentos, dois subefïc,ais e dois camareiros. Depois,�
finalmente, chegou o momentr em que o caixão de zinco deixou�
o nicho do altar da igreja da nc rte, pnde estivera exposto entre�
candelabros tarjados de luto ,° círios da altura de um homem,
foi levado ao vestíbulo por oiro lacaios e colocado, por oito
granadeiros da Guarda, dem.ro do caixão de mogno; oito grana-
deiros o carregaram até a arruagem fúnebre, puxada por seis�
cavalos e com decoração triste, que se encaminhou em direão�
ao mausoléu debaixo de tiros de canhão e toques de sïnos. As
bandeiras pendiam, pesadas de umidade, a meio pau. Embora
fosse logo no começo da tarde, os lampiões a gás já estavam
acesos nas ruas por onde passaria a procissão fúnebre. Entre de-
corações tristes, expunha-se nas vitrinas o busto de Johann
Albrecht, e os cartões-postais com o retrato do falecido gover-
nante. oferecidos por toda parte a preço vil, eram disputadís-
simos. Atrás das tropas enfileiradas, das ligas de veteranos cie
guerra e dos clubes desportivos, que mantinham livre o tra-
jete de honra, postava-se o povo, nas pontas dos pés, na mis-
#
tura de neve e lama, contemplando, de cabeça descoberta. o
caixão que passava lentamente, precedido dos lacaios carrega-
dos de coroas, dos funcionários da Corte, dos portadores de
insígnias e do pregador da Corte, D. Wisli.zenus. O pano bor-
dado de prata que recobria o caixão era seguro, nas bordas,
pelo Marechal-da-Corte von Bühl, pelo Monteiro-Mor von tie-� �
litz, pelo General-Ajudante Conde Schmetter e pelo Ministro
da Casa von Knobelsdorff. Mas, ao lado de seu irmão Klaus
Heinrich, logo atrás do cavalo de montaria que era conduzido
depois do carro fúnebre, à frente dos demais enlutados, cami-
nhava o Grão-Duque Albrecht II. Seu traje - o verticai pena-
cho de plumas na frente de gorro de pele, as botas de verniz
por baixo do casaco de hussardo claro e pregueado com tarja cle
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luto -, tudo aquilo o vestia mal. Ele andava inibido sob os
olhares da multidão, e suas omoplatas, por natureza um pouco
tortas, entortavam-se ainda mais num gesto nervoso. A relu-
tância ante a obrigação de aparecer como primeira figura na-
quela exibição funérea transparecia em seu rosto pálido. Ele
não erguia os olhos ao andar, e seu lábio inferior, curto e re-
dondo, sugava o de cima . . .
E manteve essa expressão durante os atos oficiais da suóida
ao trono, que, aliás, foram efetuados com muita consideração.
O Grão-Duque assínou, na Sala de Prata das Belas Salas, diante
dos ministros reunidos, o seu juramento, e na Sala do Trono,
parado diante do trono de forlnas ousadas sob o baldaquim, leu
o discurso que o Sr. von Knobelsdorff escrevera. Mencionou, de
modo grave mas delicado, a situação econômica do país, e lon-
vou a bela harmonia que reinava entre os príncipes e o povo,
apesar de todas as dificuldades. Nesse ponto, um alto funcioná-
rio, que provavelmente não estava satisfeito com sua promo-
ção, teria sussurrado ao seu vizinho que a harmonia consistia
apenas no fato de o Príncipe estar tão endividado quanto seu
país - frase dura, que foi divulgada e chegou à imprensa de
oposição . . . Por fim, o Presidente da Assembléia deu um viva
ao Grão-Duque, realizou-se missa na igreja da Corte, e tudo
terminou. Albrecht assinou ainda a ordem de que se perdoas-
sem penas de dinheiro e prisão por infrações menores, espe-
cialmente contra as florestas. O solene cortejo pela cidade e os
cumprimentos na Câmara Municipal não se realizaram porque
o Grão-Duque estava cansado demais. Capitão de Cavalaria, por
sua patente militar, foi imediatamente elevado a chefe supremo
de seu Regimento de Hussardos, mas quase nunca vestia o
uniforme, e manteve-se o mais distante possível do meio militar.
Talvez por respeito à memoria do pai, não trocou de pessoal
nem entre os cargos da Corte nem entre os ministros.
O público raramente o via. Sua recusa altiva e tímida em
se exibir ou se deixar cumprimentar apareceu desde o primeiro
dia, com tal intensidade que entristeceu a opinião pública. Ele
119
jamais aparecia no grande camarote do Teatro da Corte. Jamais
participava dos passeios no parque da cidade. Quando residia no
Castelo Velho, fazia-se levar em carruagem fechada para locais
distantes e despovoados dos parques, onde descia para caminhar
um pouco. No verão, em Hollerbrunn, só por exceção saía do
járdim de sebes do parque.
Quando o povo o avistava, talvez no Portão Albrecht, quan-
do, envolto nas pesadas vestimentas que seu pai já usara, com a
delicada cabeça pousada nas grossas peles da gola, subia no seu
cupê, lançava-lhe olhares tímidos, os vivas eram inibidos, sem a
confiança que deveriam ter. Pois as pessoas simples sentiam
muito bem que não podiam dar vivas àquele príncipe pensando
em si mesmas. Olhavam para ele e nele não se reconheciam,
aquele rapaz cuja nobreza tão pura não trazia sequer um
sinal de seu povo. Estavam habituados a coisa diferente. Por
acaso não havia, ainda hoje, na Praça Albrecht, um guarda que,
com seus zigomas demasiado salientes e suas suíças grisalhas, de
maneira mais rude e inferior, se parecia exatamente com o fale-
cido Grão-Duque? E por acas não se repetiam, no povo sim-�
ples, da mesma maneira, os traços do Príncipe Klaus Heinrich?
#
Mas com seu irmão não era assim. O povo não percebia nele seu
ideal, à cuja vista poderi.a viver e alegrar-se. Sua Alteza -
aquela alteza tão indubitável! - era de uma nobreza umver-
sal, acima da noção de pátria, e sem a marca fidedígna da
legitimidade. Também ele sabia disso; e a conscíência de sua
nobreza, juntamente com a consciência da falta de legitimidade
popular, talvez fosse a causa de tanta timidez e altivez. Já
naquele tempo, ele começou a transferir, sempre que possí-
vel, as funções representativas ao Príncipe Klaus Heinrich. Man-
dava-o para a inauguração da fonte de Immenstadt e para a
festa histórica anual de Butterburg. Sim, seu desprezo por qual-
quer exibição da sua pessoa real chegou a tal ponto que só com
dificuldade o Sr. von Knobelsdorff o conseguiu convencer a
receber pessoalmente, de maneira solene, na Sala do Trono, o
120
Presidente das duas Câmaras, e não transferir para seu irmão,
"por motivos de saúde", como pretendia, aquele ato público.
Albrecht II vivia muito só no Castelo Velho; o curso na-
tural das coisas provocava isso. Primeiro porque, desde a morte
de Johann Albrecht, o Príncipe Klaus Heinrich morava sozi-
nho na Corte. Era exigência da etiqueta, por isso lhe haviam
destinado como residência o Castelo Eremitage, o castelinho em
estilo império, no suburbio norte, sossegado e de graciosa se-
veridade, há longo tempo desabitado e esquecido em meio ao
parque selvagem que se ligava ao Parque Municipal, e ali ficava
contemplando um pequeno lago, hirto de lama. Quando Al-
brecht atingira a maioridade, tinham-lhe destinado o Eremitage
como moradia, fazendo nele as reformas mais essenciais. Mas
como, depois de suas estadas em lugares secos, no verão, Al-
brecht sempre voltasse diretamente para Hollerbrunn, nunca
usara aduela residência . . .
Klaus Heinrich morava ali, sem grande pompa, com um
Administrador da Corte que governava a parte doméstica, um
Barão von Schulenburg-Tressen, sobrinho da Primeira Dama da
Corte. Além do Camareiro Neumann, ele tinha ainda à dispo-
sição dois lacaios para atendê-lo diariamente; o Caçador-Mon-
teiro-Mor de quem precisava para as saídas mais cerimoníosas
lhe era emprestado pela Corte do Grão-Duque. Um cocheiro e
dois criados de colete vermelho cuidavam da carruagem e do
estábulo, onde ficava uma aranha, um cupê, uma sege, dois ca-
valos de montaria e dois de tração. Um jardineiro cuidava do
parque e do jardim, com dois ajudantes; uma cozinheira, uma
ajudante de cozinha e duas criadas de quarto eram o pessoal
feminino do Eremitage. O Marechal-da-Corte von Schulenburg-
Tressen tratava de administrar a casa com o apanágio que, nu-
ma sessão espinhosa, a Assembléia concedera ao irmão do Grão-
Duque depois que este subira ao trono. A soma de 80 mil,
que fora pedida, nunca teria passado na Assembléia, de modo
que, em nome de Klaus Heinrich, fizera-se uma renúncia ge-
nerosa, e sábia, que causara no país a melhor das impressões.
121
A cada inverno, o Sr. von Schulenburg-Tressen mandava
remover o gelo do laguinho. Duas vezes, a cada verão, orde-
nava que ceifassem o capim dos prados do parque, e o ven-
dessem como pastagem. Depois de ceifados, os campos quase
pareciam relvados ingleses.
Além disso, Dorothea, a Grâ-Duquesa-Mâe, não residia
mais no Castelo Velho, e seu afastamento se ligava a alguma
coisa triste e sinistra. Também dessa Princesa, que o viajado e
experiente Sr. von Knobelsdorff dizia ser uma das mais belas
mulheres que já vira, também dela, cuja visão festiva desper-
tava felicidade, elevava corações e provocava vivas sempre qu �
se expunha aos nostálgicos oihares dos oprimidos homens co-
,
muns, também dela o tempo exigira seu tributo, famosa e exa- � �
tada, murchara tão rápida e constantemente nos últimos ano �
que a mulher áentro dela não conseguira acompanhar essa tran;-
formação. Nada, nem arte nem remédios, nem mesmo os mais
incômodos e repulsivos com que combatia sua própria det-�
rioração, tinham podido impedir que o doce brilho de seus
#
olhos de um azul profundo se apagasse, q,e ao redor deles se�
formassem olheiras de pele amareïa e balofa, que as maravi-
lhosas covinhas de suas faces se transformassem em rugas, que
sua boca altiva e áspera parecesse agora tão magra e estreita.
Mas, como seu coração fora severo como sua beleza, e só pen-
sara nela, poís a beleza fora sua alma, e ela jamaís desejara nem
amara mais nada senão o sublime efeito dessa beleza, enquanto
seu próprio coração não pulsava por nada nem ninguém, agora
se encontrava perplexa e muito empobrecida. Não conseguia
transpor interiormente a passagem para aquele novo estado, e
ficou profundamente abalada. O General-Médico Eschrich ain-
da falou em abalo espiritual devido àquele processo de dege-
neração singularmente rápido, e sem dúvida tinha razão. im
qualquer modo, a triste realidade era que, já nos últímos ano �
de vida do marido, Dorothea mostrava sinais de profunda pe-�
turbação mental. Tinha medo da luz, mandou que, nos con-
certos das quintas-feiras no Salão de Mármore, se envolvessem
122
todos os lustres com tecído vermelho, e tinha crises ao notar
que não conseguia impor essa regra a todas as outras festas, o
Baile da Corte, o Baile Íntimo, o íantar, o Grande Desfile. pois
tal atmosfera de crepúsculo no Salão de Mármore já dera mo-
tivo a muita zombaria. Ela passava dias inteiros diante dos
espelhos, e notava-se que os acaríciava com as mãos auando,
por algum motivo, refletiam sua imagem a uma luz mais favo-
rável. Depois, mandava retirar todos os espelhos de seus apo-
sentos - sim, até fazia recobrir os que estavam embutidos nas
páredes, deitava-se na cama e clamava pela morte. Um dia, a
Baronesa von Schulenburg a encontrou totalmente perturba-
da, o rosto inflamado de tanto chorar, na Sala dos 12 Meses,
diante do grande retrato que a mostrava no auge de sua bele-
za . . . Ao mesmo tempo, começava a ser dominada por um
mórbido horror às pessoas, e para a t;orte e o povo era àoloroso
perceber que a postura dessa antiga deusa perdia a segurança,
sua aparição se tornava estranhamente desajeítada e seu olhar
expressava miséria. Por fim, ela se scondeu inteiramente, e�
no último Baile da Corte a que assistira, Johann Albrecht levara
consigo, não a esposa "adoentada", mas sua irmã Katharma.
A morte dele, aliás, fora um aüvio para Dorothea, pois a li-
vrara de qualquer ato de representação. Como moradia de viú-
va, ela escolhera o Castelo Segennaus, um velho castelo de caça
com ar de mosteiro, que, a uma nora f: meia de viagem da
Residência, ficava no centro de um parque sério, enfeitado por
um nobre caçador com emblemas religiosos e venatórios em
estranha confusão. Lá ela vivia, sombria e singular, e pessoas
que vinham em excursões eventualmente a bservavam de lon-�
ge, passeando ao lado da Baronesa von Schulenburg-Tressen
pelo parue, saudando, com uma inclinação de cabeça, as ár-�
vores dos dois lados da alameda . . .
Mas, quanto à Princesa Ditlinde, esta se casara aos 20
anos, um ano após a morte do pai. Deu a mão a um nobre de
üma casa aparentada, o Príncipe Philipp zu Ried-Hohenried.
cavalheir baixinho, não muito iovem. mas bem cnservado.� �
123
apreciador das artes, de visão bastante moderna, que por muito
tempo a cortejára com polidez; . fizera tudo pessoalmente e,
numa festa beneficente, pedira à Princesa sua mão e seu cora-
ção, de maneíra bem burguesa. Não se pode dizer que essa li-
gação tivesse provocado júbílo tempestuoso no povo. F'oi acei-
ta com indiferença; certamente, frustrou esperanças mais eleva-
das que, em segredo, se cultivaram em relação à filha de Johann
Albrecht; e os críticos acharam que tudo o que se podia dizer
em favor desse casamento era não ser desigual. Na verdade,
sem duvida, dando a mão ao Príncipe, sem qualquer influên-
cia exterior, apenas por vontade própria, ela descia da sua
esfera de Alteza para uma vida mais livre e civil. Aquele nobre
não era apenas amante e colecionador de quadros, mas tam-
bém homem de negócios e grande industrial. Há 100 anos sua
dinastia fora despida da soberania, mas Philipp era o primeiro
a saber aproveitar financeiramente seu estado civil. Depois de
#
passar a juventude em viagens, procurara uma atividade que
lhe desse contentamento interior, mas especialmente (o que era
necessário) aumentasse sua rendá. Assim, tornara-se empresá-
rio, instalara fazendas, cervejarias, uma fábrica de açúcar, várias
serrarias em suas propriedades, e começava a explorar planeja-
damente os vastos depósitos de turfa que alí havia. Como
presidisse a todas essas indústrias com conhecimento e caute-
loso espírito comercial, em breve tudo começou a progredir,
rendendo quantias que, se não tinham origem muito principes-
ca, pelo menos lhe permitiam uma vida de príncipe. De outro
lado, seria preciso indagar aos críticos que partido poderiam ter,
objetivamente, pretendido para a Princesa. Ditlinde, que quase
nada trouxe ao marido, exceto um inesgotável tesouro em
roupas, entre elas várias dúzias de peças totalmente antiqua-
das e inúteis, como xales e toucas de dormir, mas que, segundo
uma venerável tradição, faziam parte do enxoval de uma noi-
va, com o casamento passou a ter uma vida rica e alegre, à
qual não estava habituada em casa. E ainda nem mencionamos
os sentimentos de seu coração. Também ela passou, com evi-
124
It0 dente alegria e determinação, a uma vida privada, e nas apa-
e, rências conservou, de sua nobreza, umcamente o título. Conti-�
ra- ' nuou a manter uma relação amável com suas damas, mas tirou�
li- dessa relação todo o caráter servil. Evitava emprestar à sua
ei- casa o ambiente da Corte. Isso era de admirar numa mulher�
va- dos Grimmburg, ainda mais Ditlinde, mas correspondia, sem
nn 1 dúvida, a seus desejos mais íntimos. O casal passava o verão�
zer nas propriedades de campo, o inverno no belo Palácio de Al-
de, brechtsstrasse, que fora comprado por Philipp zu Ried. E foi�
iên- ali, e não no Castelo Velho, que os irmãos Klaus Heinrich e
sua Ditlinde se reuniram para conversas íntimas.
bre�
Aconteceu que um dia, no começo do outono, nem bem
am- dois anos após a morte de Johann Albrecht, o Mensageiro,
sua
sempre bem informado, deu, ainda na edição vespertina, a no-
°iro tícia de que naquela tarde Sua Alteza Real, o Grão-Duque, e
de r, Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Heinrich, tinham tomado
que chá com Sua Alteza, a Princesa zu Ried-Hohenried. Só essa
era
nota. Mas naquela tarde os irmãos comentaram várias coisas
esá-�
importantes com relação ao futuro.
írias
leja- Klaus Heinrich deixou o Eremitage lá pelas 5h. Como
estivesse quente, encomendara a carruagem aberta, pintada de
omo
mte- marrom, lavada e lustrosa, embora não fosse nova nem mo-
dir derna. Ela veio a trote do estábulo com pátio calçado que fica-�
,
va na ala direita do edifício da adminístração, pelo largo ca-
ipes-
utro minho de cascalhos em direção ao castelinho. Os edifícios da
administração, térreos, cor de ocre, antiquados, formavam, com
ter,
a casa senhorial branca e simples (embora um pouco afastada),
uase
em um conjunto bem longo, cuja fachada, a intervalos regulares
ua- enfeitada com loureiros, voltava-se para o lago lamacento e a
q
.ndo parte pública do parque. A parte dianteira da propriedade, que�
noi- se ligava ao Parque Municipal, estava aberta a pedestres e car-
re, à ruagens leves, isolada apenas por um jardim florido, um pouco
amos ascendente, em cima do qual ficava o Castelo, assim como O
evi- parque dos fundos, bastante descuidado, separado por sebes e
125
cercas dos prados desolados e cobertos de líxo dos campos que '
beiravam a cidade.
A carruagem seguiu, poís, entre lago e administração, pas-
sou pelos portais do jardim, altos e ornados com dois lampiões
#
outrora dourados, venceu a rampa e esperou diante do terraço
hirto, ladeado por loureiros, que conduzia ao jardim de inver-
no. Klaus Heinrich saiu poucos minutos depois das 5h. Usava
,
como de costume, o umforme rígido de Primeiro-Tenente dos
Granadeiros, e pendurara a espada no braçt. Neumann, com�
fraque roxo de mangas demasiado curtas, crreu à frente dele,�
degraus abaixo, e com as mãos vermelhas de barbeíro arrumou
na carruagem o manto cinzento e dobrado de seu senhor. De-
pois, enquanto o cocheiro, mão no chapéu de roseta, se incli-
nava um pouco de lado na boléia, o Camareiro arrumou o leve
cobertor nos joelhos de Klaus Heinrich e recuou com uma me-
sura, sem dizer nada. Os cavalos deram partida.
Lá fora, diante dos portões, postavam-se algumas pessoas.
Saudaram, baixando os chapéus, com um sorriso, e Klaus Hein-
rich agradeceu colocando no boné a mão direita enluvada de
branco, e inclinando várias vezes, vívamente, a cabeça- Pas-
saram ao longo de uma alameda de bétulas, à beira de terras
não-cultivadas. As folhas já estavam amarelecendo. Depois,
atravessaram o subúrbio, entre moradias pobres e ruas sem
calçamento, onde crianças do povo esqueceram por um mo-
mento seus piões e aros de tonel, seguindo a carruagem com
olhos pensatívos. Algumas gritaram "viva" e correram um pou-
co ao lado das rodas, erguendo o rosto para Klaus Heinrich.
carruagem podia ter seguido o cami.nho pelo Jardim das Fon-��
tes; mas passar pelo subúrbío era mais rápido, e o tempo urgia.
Ditlinde era muito sensível a questões de ordem, e se irritava
facilmente quando lhe perturbavam a vida doméstica com a
;mpontualidade.
Lá ficava o Hospital Infantil Dorothea, dirigido pelo ami-
go de Überbein, o Dr. Sammet; Klaus Heínrich passou pela
frente. Depois; seu veículo deixou aquela zona popular e che-
126
ue gou à Gartenstrasse, avenida grande e arborizada onde ficavam�
as casas e mansões dos cidadãos ricos, cuja linha ae bondes
as- ligava o Jardim das Fontes ao centro da cidade. Ali reinava um�
ões tráfego muito intenso, e Klaus Heinrich teve trabalno em re-
tribuir os cumprimentos que lhe eram dirigidos. Civis tiravacn
aço
uer- os chapéus e olhavam para cima, oficiais a cavaio e a pé fa-
va, , ziam continência, policiais tomavam posição de sentido, e Klaus� �
dos Heinrich, no canto da carruagem, levava a mão ao boné e agra-
om decia para os dois lados, com aquele gesto e aquele sorriso trei-�
lele, nados desde a juventude, destinados a fortalecer a simpatia das
nou pessoas por sua personalidade festiva . . . Tinha um modo bem
De- singular de sentar-se na carruagem - não deitado preguiço-
ncli- sa e comodamente nas almofadas, mas atento, quase como ao ca-
ieve valgar, as mãos cruzadas no punho da espada, um pé um pouco
me- para diante "com ensando" as irregularidades do chão, adaptan-
p
do-se aos movimentos da carruagem, cujo molejo era deficien-
te...
A sege passou pela Praça Albrecht, deixou à direíta o Cas-
telo Velho, com sua guarda dupla, seguiu pela Albrechtsstrasse
em direção à caserna dos Granadeiros, e foi para a esquerda,
entrando no pátio do palácio. Era uma construção íntima, em
estilo rococó, com um torreão sinuoso sobre o portal principal,
"olhos-de-boi" emoldurados por complicadas guirlandas no an-
dar do meio, altas janelas de sacada no primeiro andar e um
delicado cour d'honneur formado por duas alas laterais tér-
reas. Era separado da rua por uma grade arqueada, sobre
cujas colunas brincavam anjinhos de pedra. Mas a decoração
interna do castelo, ao contrário do estilo externo, era de um
gosto moderno e confortavelmente burgu.ês.
Ditlinde recebeu o irmão no salão grande do primeirc
andar, com vários grupas de poltronas em seda verde-pálido,
cuja parte traseira, separada da parte principal por esguias co-
lunas, estava repleta de palmeiras, flores em potes de metal,
e mesinhas cobertas de flores coloridas e opulentas.
127
#
- Bom dia, Klaus Heinrich - disse a Princesa.
Era delicada e esbelta, só o cabelo louro acinzentado era
opulento, esse que antigamente se enroscava sobre suas orelhas
em cachinhos dourados, agora arranjado em grossas tranças so-
bre o rosto em forma de coração, com os zigomas dos Grimm-
burg. Usava um vestido caseiro de tecido leve, cinza-azulado, com
decote de rendas em ponta, parecendo um peitilho, preso à cíntu-
' ra com um antiquado broche oval. A. pele fina do seu rosto mos-
trava, aqui e ali, nas têmporas, na testa, nos cantos dos olhos
azuis de expressão fria e branda, pequenas veias e sombras azu-
ladas. Começava a tornar-se visível que ela estava grávida.
- Bom dia, Ditlínde, com suas flores! - respondeu Klaus
ï
Heinrich, curvando-se sobre a pequena mão da irmã, alva e
i
um pouco larga, e juntando os calcanhares. - Que cheiro bom
por aqui! E vejo que está tudo cheio lá dentro.
- Sim - respondeu ela -, gosto de flores. Sempre tive
vontade de poder viver entre muitas flores, vivas, perfumadas,
que eu pudesse cuidar . . . era uma espécie de desejo secreto,
Klaus Heínrich, e eu poderia dizer que me casei para isso, por-
que, como sabe, não havia flores no Castelo Velho . . . O Cas-
telo Velho e as flores! Acho que poderíamos ter farejado mui-
to . . . Ratoeiras e coisas desse tipo. Sim, pensando bem, tudo
quilo, como aquela ratoeira velha, era tão poeirento e horrí-�
vel . . . é verdade . . .
- Mas, Ditlinde, havia a roseíra.
- Sim, santo Deus . . . uma roseira. E essa está no gu ia
turístico porque suas rosas cheiram a mofo! E dizem que um
dia vão ter perfume natural, e bom, como as outras rosas. Mas
nem posso imagínar isso!
- Em breve, você terá de cuidar de coisa melhor do que
flores, minha pequena Ditlinde - disse ele, e olhou-a, sor-
rindo.
- Sim - disse ela, corando depressa, levemente. -
Sim, Klaus Heinrich, isso, na verdade, também não consigo
128
imaginar ainda. Mas, se Deus quiser vai acontecer, sim. Entre.
Vamos nos sentar juntos. . .
O quarto ern cuja soleira tinham conversado era pequeno
em relação à sua altura, com tapete cinza-azulado e decorado
com móveis graciosos, laqueados de cinza-prateado, os assen-
tos de seda pálida. Um lustre de porcelana leitosa pendia do
centro do teto, ornado com alvos arabescos, e as paredes esta-
vam cobertas de quadros a ôleo de vãrios tamanhos, compra-
dos pelo Príncipe Philipp, estudos luminosos segundo o gosto
moderno, cabras brancas ao sol, aves domésticas ao sol, prados
ensolarados, e camponeses com olhos ofuscados pelo sol, ros-
tos sardentos por causa do sol. A escrivaninha feminina, de per-
nas muito finas, junto à janela de cortinas brancas, estava co-
berta de 100 pequenos objetos minuciosamente arranjados, bi-
belôs, objetos para escrever e vârios caderninhos delicados . . .
pois a Princesa estava habituada a anotar todos os seus deve-
res e intenções. Diante do tinteiro, via-se aberto um caderno
de contabilídade, em que Dítlínde parecía ter estado trabalhan-
do há pouco. Ao lado da escrivaninha, junto da parede, um
pequeno calendário enfeitado com fitas de seda, debaixo de
cuja data se lia, escrito a lápis: "5h: meus irmãos." Diante
da porta branca que dava para a sala de recepção, entre o
sofâ e um semicïrculo de cadeiras, fícava a mesa oval, coberta
de delicado damasco, e um trílho de seda azul. A louça florida
- uma travessa com doces, travessas alongadas com biscoitos e
minúsculos canapés - estava distribuída sobre a mesa numa or-
dem regular, e ao lad, sobre uma mesinha de vidro, o bule�
de chá de prata soltava seu vapor em cima de uma espiriteira.
Mas, por toda parte, nos vasos sobre a escrivaninha, a mesa
de chá, a mesa do espelho, a cristaleira cheia de figuras de por-
celana, a mesinha ao lado do divã branco, havia flores, e uma
mesa de flores cheia de potes também se postava diante da
janela.
#
Esse quarto, afastado, em ângulo com as salas de recep-
ção, era o gabinete de Ditlinde, seu boudoir, a sala em que rece-
129
bia seu círculo muito íntimo, de tarde, e costumava preparar
pessoalmente o chá. Klaus Heinrich a contemplou enxaguando
o bule com água quente e nele despejando chá com uma colhe-
rinha de prata.
- E Albrecht. . . ele vem? - perguntou, com voz invo-
luntariamente abafada.
- Espero -- disse ela, curvando-se cuidadosamente so-
bre o pote de cristal com chá, para não derramar nada fora.
(e ele evitou olhar para lá). - Naturalmente, Klaus Hein-
rich, eu o convidei, mas você sabe que ele não pode assumír
compromissos. Depende de como se sente . . . Vou fazer nosso
chá agora, poís Albrecht vai tomar seu leite . . . E pode ser
que a Jettinha apareça. Você vai gostar de vê-la. Tão animada,
sempre tem tanto para contar . . .
A "Jettínha" era uma certa Srta. von Isenschnibbe, ami-
ga de confiança da Princesa. Eram íntimas desde a infância.
- Sempre preparado? Sempre de umforme, Klaus Hein-
rich? - perguntou Ditlinde, colocando o bule de chá sobre
o suporte e olhando o irmão.
Ele estava parado, calcanhares umdos, esfregando a mão
esquerda, que sempre sentia frio, com a direita, à altura do
peito.
- Sim, Dítlinde, prefiro assim. Sabe, o umforme fica tão
firme, e veste bem. Além disso, é mais barato, pois um guarda-
roupa civil parece custar caríssimo, e Schulenburg já se queixa
o tempo todo de que tudo está ficando tão caro . . . Assim, eu
me ajeito com dois, três casacos, e até posso me apresentar bem
diante de meus parentes ricos . . .
- Parentes ricos! - riu Ditlinde. - Isso ainda vai de-
morar um bocado, Klaus Heinrich!
Sentaram-se à mesa de chá, Ditlinde no sofá, Klaus Hein-
rich numa cadeira diante da janela.
- Parentes ricos! - repetiu ela, e via-se que isso lhe agra-
dava. - Não, longe disso, como ficaríamos ricos quando o di-
nheiro sonante é pouco, e tudo está metido em empresas, Klaus
130
Heinrich? E as empresas são novas, todas ainda crescendo, como
,, diz meu bom Philipp, e só deverão dar frutos aos nossos des-
.
cendentes. Mas tudo está progredindo, isso é verdade, e eu cuido
muito da administração . . .
- Sim, é verdade, Ditlinde, você organiza tudo!
- . . . cuido bem de tudo e anoto tudo, e cuido das pes-
soas, e apesar de toda a boa aparência que se tem de mostrar
ao mundo, cada ano conseguimos guardar alguma coisa, pensan-
do nos filhos. E meu bom Philipp . . . ele lhe manda saudações,
Klaus Heinrich, esqueci disso, lamenta muito não poder estar
presente hoje . . . Mal voltamos de Hohenried, e ele já está via-
jando a negócios, nas propriedades . . . embora seja de natureza
pequeno e delicado, quando se trata da sua turfa e das serra-
rias, fica com as bochechas vermelhas, e diz mesmo que ficou
muito mais saudável desde que começou a ter tanto trabalho . . .
5 - Diz isso? - perguntou Klaus Heinrich, e uma sombra
apareceu em seus olhos, enquanto ele olhava diretamente em
frente, pela janela iluminada, sobre a mesa das flores. . . - Sim,
posso imaginar isso, deve ser estimulante ter o que fazer. No meu
parque, os campos foram segados pela segunda vez neste ano,
y e gosto de ver o capim juntado em montes regulares, com uma
vara no meio, de modo que parece um pequeno acampamento
de índios, ou coisa assim; depois, Schulenburg vende tudo. Mas;
naturalmente, não há comparação . . .
. - Você! - disse Ditlinde, apertando o queixo contra o
peito. - Com você é diferente, Klaus Heinrich. O segundo no
trono! Você tem outra vocação, acho eu. Devia se alegrar por-
,
que o povo gosta tanto de você . .
E calou-se por um momento.
#
- E você, Ditlinde - disse ele então -, nãa é verdade,
você hoje vive melhor que antigamente, ou estou enganado?
Não digo que tenha bochechas vermelhas como Philipp com sua
turfa. Você sempre foi meio palidazinha, e continua. Mas tem
; um ar contente, não é? Nunca perguntei desde que você se ca-
sou, mas acho que não é preciso me preocupar com você.
131
Ela estava sentada numa postura tranqüila, braços cruzados
de leve sob o busto.
- Sim - disse ela -, estou bem, Klaus Heinrich, vocé
viu certo, seria íngratídão se eu não admítisse minha felicidade.
Sabe, e sei muito bem que algumas pessoas no país ficaram de-
cepeionadas com meu casamento, e dizem que eu me desperdicei
e descí de nível, e não sei o que mais. E essas pessoas não estão
muito distantes de mim, pois nosso irmão Albrecht, você sabe
disso tão bem quanto eu, no fundo despreza meu bom Philipp
e a mim, não o suporta e o chama de negociante e burguês. Mas
ísso não me atinge, poís eu quís assím e aceíteí a mão de Philipp
- na verdade, eu até díría que a agarreí, se isso não soasse meio
doido. Aceitei porque era quente e boa, e se oferecia para me
tirar do Castelo Velho. Pois quando penso no Castelo e na
vida que se levava lá dentro, que eu teria continuado a levar
sempre não fosse o bom Philipp, sinto calafrios, Klaus Heinrich,
e sinto que não teria suportado isso, tería ficado confusa e es-
quisita, como nossa pobre mâe. Sou um pouco delicada por na-
tureza, você sabe, simplesmente teria sucumbido em..,anta tris-�
teza e solidão. E, quando chegou o bom Phillip, pensei: é a
salvação. E quando as pessoas dizem que sou má princesa por-
que, de cèrta forma, abdiquei e me refugieí aqui, onde é um
pouco mais quente, e mais alegre, e quando dizem que não tenho
senso de dignidade nem consciência da minha nobreza, ou como
quer que chamem isso, é porque são tolas, ignorantes, Klaus
Heinrich. Pois tenho muita consciência de minha nobreza, ao
contrário, tenho até demais, ou o Castelo Velho não me teria
assustado. E eu queria que Albrecht entendesse isso, poís tam-
bém ele, à sua maneira, tem essa consciêncía. . . Nós, os grimm-
burguenses todos a temos, em demasia, por isso às vezes parece
que a temos de menos. Às vezes, quando Phillip viaja, como ago-
ra, e fico aqui sentada com mínhas flores e os quadros de Phi-
lipp com todo esse sol que há neles - é bom que seja um sol
pintado, pois, sinceramente, do contrário eu teria de me cuí-
dar -, tudo tão ordenado e boníto, e fíco pensando nessa coisa,
132
a melhor de todas, como você diz, da qual poderei tomar conta
em breve . . . e me sinto como uma ninfa do mar daqueles con-
s
tos de fadas que a madame da Suíça lia para nós, não sei se você
lembra . . : que se casou com um homem e em vez de cauda de
peixe recebeu pernas . . . Não sei se me entende . .
- Sim, entendo muito bem. E fico feliz por tudo ter dado
tão certo para você. Pois é perigoso, acredite, tenho experiência
disso, é perigoso para nós sermos felizes como as pessoas co-
muns. Logo nos perdemos, somos mal-interpretados, ninguém
protege nossa dígnidade se não o fazemos. E logo tudo acaba em
vergonha e insultos . . . Mas qual é o caminho certo? Você en-
controu o seu. Outro dia, disseram que eu estava noivo de nossa
prima Griselde. Estavam atirando verde, como se diz, decerto
pensam que está na hóra de eu me casar. Mas Griselde é boba,
vive morrendo de anemia e, até onde sei, nunca diz outra coisa
senão "É mesmo . . . ". Nem penso nela. Graças a Deus, Knobels-
.
dorff também não pensa. Logo desmentiram a notícia . . . AI-
brecht chegou! - disse ele, levantando-se.
Alguém pigarreara lá fora. Um criado de libré verde-oliva
abriu com os dois braços, num gesto silencioso, rápido e firme,
os dois batentes da porta, e anunciou com voz contida:
,
- Sua Alteza Real, o Grão-Duque.
E, com uma mesura, postou-se de lado. Albrecht atraves-
sou o salão.
#
Cumprira em carruagem fechada os 100 passos do Castelo
Velho até ali, o monteiro na boléia. Estava em roupa civil, como
quase sempre, usava um casaco fechado, com pequena gola de
cetim, e botas de verníz nos pés estreitos. Desde que subira ao
trono, deixara crescer uma barbicha. Seu cabelo louro, curto,
· deixava livres as finas têmporas côncavas. O andar era desajei-
tado, mas mesmo assim de indescritível nobreza, com as omopla-
tas torcidas de inibição. A cabeça deitada para trás, o curto lábio
inferior, arredondado, avançando e sugando de leve o superior.
A Princesa foi a seu encontro até a soleira. Como não gos-
tasse do beija-mão, ele simplesmente lhe estendeu a mão e a
133
cumprimentou em voz baixa, quase um sussurro. Sua mão magra
e fria, de aparência singularmente sensível, que estendia perto
do peito, sem desprender o braço do corpo. Depois, saudou da
mesma forma seu irmão Klaus Heinrich, que o aguardara de
calcanhares umdos diante de sua cadeira - e não disse mais
nada.
Ditlinde dizia:
- Mas que bom você ter vindo, Albrecht. Então, está se
sentindo bem? Parece ótimo. Philipp manda dizer que lamenta
muito não poder estar presente hoje. Por favor, sente-se onde
lhe agradar mais - por exemplo, aqui, na minha frente. A
cadeira é bem cômoda, da última vez você também se sentou
aí. Já preparei nosso chá. Seu leite vem logo. . .
- Obrigado - disse ele, baixinho. - Devo pedir des-
culpas. . . eu me atrasei. Sabe, quando moramos muito perto. . .
E precisò me deitar à tarde. . . Vamos ficar só entre nós?
- Inteiramente, Albrecht. Talvez, quando muito, a Jetti-
nha Isenschnibbe apareça um pouco se você não achar desagra-
dável. . .
- Ah?
- Mas também posso mandar dizer que não vou estar
em casa.
- Ora, por favor. . .
Serviram leite quente. Albrecht agarrou com as duas mãos
o copo alto, grosso e convexo.
- Ah, está quente - disse ele. - Como já faz frio nesta
terra. E passei frio o verão todo em Hollerbrunn. Ainda não
está usando aquecimento? Eu já estou. De outro lado, sofro
com o cheiro dos fogões. Todos cheiram mal. Todo outono,
von Bühl me promete aquecimento central para o Castelo Velho.
Mas parece impraticável.
- Pobre Albrecht - disse Ditlinde. - Nesta época do
ano, você sempre estava no Sul enquanto papai vivia. Deve ter
saudades.
134
- Minha boa Ditlinde, sua compaíxão é admirável - res-
pondeu ele, sempre muito baixinho, ceceando um pouco. - Mas
devemos reconhecer que não sou livre para viajar. Preciso go-
vernar o país, para isso estou aqui. Hoje, tomei a generosa de-
cisão de admitir que algum cidadão - lamento ter esquecido O
nome dele - aceite e use uma condecoração estrangeira. Além
,. disso, mandei passar um telegrama para o Congresso Anual de
Horticultura, aceitando a presidência de honra dessa sociedade
e prometendo estimular de todas as maneiras os seus esforços. . .
sem saber, na verdade, o que poderia fazer além de passar um
telegrama, pois esses senhores tratam muito bem de seus assun-
tos sem mim. Além disso, concedi em confirmar a eleição de
um certo bom homem como prefeito de minha boa cidade de
Siebenberge, mas é de se perguntar se esse súdito será melhor
prefeito com minha permissão do que sem ela. .
- Bem, Albrecht, são ninharias! - disse Ditlinde. -
Estou convencida de que você teve assuntos mais importantes. . .
- Ah, claro. Recebi meus Ministros das Finanças e da
Agricultura. Estava na hora. O Dr. Krippenreuther teria ficado
muito aborrecido se eu não o tivesse chamado. Ele é lacônico,
' e fez uma exposição sobre vários assuntos ligados entre si -
a colheita, os novos métodos para elevar o orçamento, a refor-
ma dos impostos com que ele está se ocupando. A colheita foi
#
ruim. Os camponeses foram atingidos pelo mau tempo e pelos
parasitas, por isso não só eles vão mal, mas também Krippen-
rcuther, pois diz que o pagamento de impostos no país vai cair
de novo. Além disso, infelizmente, houve catástrofes numa ou
' noutra das minas de prata. Krippenreuther diz que elas não estão
dando lucro, e sua recomposição custará grandes quantias. Ouvi
tudo isso cm expressão adequada e fiz o que podia fazer, ex-�
pressando minha dor por tanta desgraça. Depois, ouvi pergun-
tarem se os custos das novas construções necessárias para os
almoxarifados e para a administração das florestas, da aduana
e dos impostos devem ser retirados da verba ordinária ou extra-
ordinária, escutei muita coisa sobre escala progressiva, imposto
I35
sobre renda de capital e imposto de artesanato ambulante, alí-
vio da sofrida agricultura e ônus das cídades, e de modo geral
tivé a impressão de que Krippenreuther entende do seu ofício.
Eu próprio, naturalmente, não entendo coisa alguma, o que Krip-
penreuther sabe, e prefere assim. Por isso, eu disse "Sim, sim"
e "Claro, claro", e "Obrigado", e deixei tudo seguir seu ca-
minho.
- Albrecht, você parece tão amargurado.
- Não, quero lhe dizer uma coisa que me ocorreu hoje,
durante essa exposíção de Krippenreuther. Aqui na cidade vive
um homem, um pequeno aposentado com verrugas no nariz.
Todas as crianças o conhecem, e gritam "iuhu" quando o vêem.
Ele se chama Fimmelgottlieb, pois não regula muito bem e
há muito tempo não tem sobrenome. Está em toda parte onde
acontece alguma coisa, embora sua idiotia o exclua de qualquer
relação séria. Tem uma rosa na gola do casaco e carrega o cha-
péu na ponta da bengala. Algumas vezes ao dia, na hora em
que um trem parte, ele vai à estação, bate nas rodas, inspe-
ciona a bagagem e dá-se ares de ïmportante. Quando o homem
do boné vermelho dá o sínal, Fímmelgottlíeb acena para o ma-
quinista e o trem parte. Mas Fimmelgottlíeb imagina que o
trem parte ao seu sinal. Eu sou ele. Dou o sinal, o trem parte.
Mas também partiria sen mim, e meu aceno é apenas uma�
farsa. Estou farto. . .
Os irmãos ficaram calados. Dïtlinde olhava o próprio re-
gaço, triste, e Klaus Heinrich, puxando no seu bigodínho curvo,
olhava a janela clara, entre Ditlinde e o Grão-Duque.
- Posso entender ísso muito bem, Albrecht - disse ele,
após algum tempo -, embora seja duro de sua parte compa-
rar-se, e a nós, com Fimmelgottlieb. Está vendo, eu nada en-
tendo de escala progressiva e nem de impostos para ambulan-
tes ou exploração de turfa, e há muita coisa de que absoluta-
mente não entendo. Tudo que se imagina ao falar na miséria
do mundo, na fome, na pobreza, não é? E a luta pela sobre-
vivência, como se diz, e a guerra, e o hospital, e tudo isso.
136
Nunca vi nem senti nada disso, exceto à própria morte, quando
papai faleceu e não foi uma morte tão ruim, pois foi até edifi-
cante, e todo o Castelo ficou iluminado. E por vezes me enver-
gonho por nunca ter tido experiências. Mas, por outro lado, pen-
so que não tenho uma vida tão boa assim, nem um pouco, em-
bora esteja nas alturas, acima das pessoas, como elas dizem;
ou exatamente por is.so. E, à minha maneira, talvez conheça
a dureza da vida, sua face severa, se me permite a expressão,
melhor do que muitos que entendem de escalas progressívas e
qualquer especialidade dessas. É isso, Albrecht, que faz com
ue não tenhamos vida mansa, tudo depende disso, e isso jus-
q "
tifica nossa existêncía. E como as pessoas gritam viva quan-
do me vêem, devem saber por que fazem isso, e minha vida
deve ter algum sentido, embora eu esteja excluído de todas
as relações sérias, como diz tão bem. E a sua muito mais. Você,
" é verdade, só acena para o que acontece, mas as pessoas que-
reJn que acene, e embora você não governe realmente a von-
tade delas, ao menos a exprime, a apresenta, a concretiza, e
isso não é tão pouco assim. . .
Albrecht estava sentado à mesa sem se recostar. Segurava
#
° as mãos magras, de aparência singularmente sensível, cruzadas
sobre a beira da mesa diante do copo de leite meio vazío, as
pálpebras baixadas, sugando o lábío superíor com o inferior.
E respondeu baixinho:
- Não me admira que um príncipe tão amado como você
se conforme com seu destino. Eu, de minha parte, me recuso
a exprimir outras pessoas e a representar quem quer que seja,
senão a mim mesmo - estou dizendo que recuso isso, e você
pode pensar que as uvas estão verdes. A verdade é que os
"vivas" das pessoas me interessam tão pouco quanto uma alma
pode ligar para qualquer coisa. Não falo do meu corpo. Sou
fraco; alguma coisa em mim se distende quando aplaudem e
se retorce quando silencíam friamente. Mas meu juízo está acima
de todo amor e desamor. Sei o que seria a popularidade, se
a
viesse. Um engano a respeito de minha pessoa. Então, a gente
137
dá de ombros, pensando nas palmas dos estranhos. Para outra
pessoa - você - sentir o apoio do povo pode provocar um
sentimento de superíoridade. Perdoe-me, talvez eu seja apenas
sensato demais para emoções tão misteriosas. E talvez também
goste demais da higiene, se me perdoa a expressão. Acho que
esse tipo de felícidade cheira mal. De qualquer modo, o povo
me é estranho. Não lhe dou nada. . . como ele poderia me dar
alguma coisa? Com você. . . ah, é diferente. Centenas de milha-
res de pessoas parecidas com você lhe agradecem porque se
reconhecem na sua pessoa. Você poderia rir, se quisesse. Quan-
do muito, haveria perigo de mergulhar fundo demais na sua
popularidade e por fim acabar se acomodando, embora de mo-
mento recuse isso. . .
- Não, Albrecht, não creío estar correndo esse perigo.
- Pois tanto melhor nos entenderemos. Não gosto geral-
mente de expressões fortes. Mas popularidade é uma porcaria.
- Estranho, Albrecht, estranho você usar essa palavra.
Os Faisões, meus colegas, sempre a usavam, sabe, aqueles jo-
vens nobres do Castelo dos Faisões. Sei o que você é: você
é um aristocrata, esse é o problema.
- Acha? Pois está enganado. Não sou aristocrata, sou o
contrário disso, por gosto e por sensatez. Você terá de admitir
que não desprezo o aplauso da multidão por capricho, mas por
humanitarismo e bondade. A nobreza humana é uma desgraça,
e as pessoas deviam reconhecer isso, e tratar-se umas às outras
com humanitarismo e bondade, e não se humilhar e rebaixar.
É preciso ser resistente para deixar que joguem com a gente
ese jogo da nobreza. Tenho natureza delicada, não suporto u�
ridículo da minha posição. Qúalquer lacaio que se planta junto
da porta esperando que eu passe por ele sem lhe dar maior
atenção do que daria à porta me deixa constrangido. É minha
maneira de amar o povo. . .
- Sim, Albrecht, é verdade. Às vezes, não é fácil passar
por um sujeito desses de boa cara. Lacaios! Como se não sou-
béssemos que são uns trapaceiros. As coisas que falam deles. . .
138
- Que coisas?
.tra�
- Ah, a gente fica sabendo. . .
um
- Parem com isso! - disse Ditlinde. - Não vamos falar
nas
nesse tipo de assunto. Vocês ficam falando em assuntos gerais,
ém�
e achei que esta tarde podíamos comentar uns assuntos que
ue�
VO anotei. . . Klaus Heinrich, pode me passar aquele bloco de couro�
azul? Obrigada. Anoto aqui tudo o que pteciso lembrar, a
dar
lha- contabilidade doméstica e outras coisas. Tão bom poder ver tudo
aqui, preto no branco. Minha cabeça é fraca, não guarda nada,
: se
zan- e se eu não fosse ordeira e não anotasse tudo, ficaria desespe-
#
sua rada. Primeiro: Albrecht, antes que me esqueça, quero lembrar
mo- que, na primeira sessão da Corte, em novembro, você terá de
levar tia Katharina. Não pode deixar de fazer ísso. Eu lhe devo
meu lngar, estive com você no último baile da Corte, e tia
Katharina ficaria terrivelmente magoada.. . Concorda? Bem,
°ral- p g
então osso riscar esse item. . . Se undo: Klaus Heinrich, que-
aria.
ria pedir que na festa beneficente para os órfãos, na Prefeitura,
mra.
no dia 15, você aparecesse um pouquinho. Sou a patronesse,
jo-�
você sabe, e levo isso a sério. Não precisa comprar nada. . . tal-
você
vez um pente. . . Só rapidamente, basta que se mostre por uns
10 minutos. É para os órfãos. . . Você vem? Está vendo, posso
u o riscar mais uma coisa. Terceiro. . .�
nitir
Mas a Princesa foi interrompida. A Srta. von Isenschnibbe,
por
dama da Corte, fez-se anunciar, e entrou no mesmo instante,
raça,
vinda do grande salão, com passinhos miúdos, o boá de plumas
atras
ondulando no ar, à beira do enorme chapéu de plumas balan-
ixar.
=ente çando para cima e para baixo. De suas roupas vinha um aroma
' de ar fresco lá de fora. Era pequena, loura, nariz pontudo, e
to O�
tão míope que não conseguia ver as estrelas. Em noites claras,
unto
' ficava no terraço vendo as estrelas com seu binóculo de ópera
naior
para poder sonhar. Usava dois pares de óculos, um por cima
unha
do outro, e esticou o pescoço para diante, espiando, ao fazer
sua mesura.
assar�
- Meu Deus, Alteza - disse ela -, eu não sabia que
sou- estava incomodando, fui logo entrando, peço que me perdoem!�
139
! Os irmãos se haviam levantado, a moça prostrou-se diante
deles, envergonhada. Como Albrecht estendesse sua mão perto
do peito, sem afastar o cotovelo do corpo, o braço dela se es-
tendeu quase verticalmente quando a mesura que fazia diante
dele chegou ao máxímo.
- Minha boa Jetti.nha - disse Ditlinde -, mas que jeito
de falar! Você era esperada, e é bem-vinda! Meus irmãos sa-
bem que nos tratamos por você. Portanto, não me fale de
i'v Alteza. Não estamos no Castelo Velho. Sente-se e fique à von-
tade. Quer chá? Ainda está quente. Aqui temos frutas cris-
talizadas. Sei que gosta delas.
- Sim, muito obrigada, Ditlinde, adoro frutas cristaliza-
das! - A Srta. von Isenschnibbe sentou-se de costas para a
janela, na cabeceira da mesa, diante de Klaus Heinrich, tirou
uma luva e omeçou a colocar doces em seu prato com o pega-�
dor de prata, ínclinando-se para a frente a fim de enxergar.
Seu pequeno peito respirava depressa, arrebatado de excitação
e alegria.
- Eu sei de novidades - disse ela, incapaz de se conter.
- Novidades. . . mais do que cabem na minha bolsinha! Quer
dizer . . . no fundo é só uma, só uma, mas é fantástica, e é abso-
lutamente certa, eu a consegui da melhor fonte, e você sabe,
Dïtlinde, que pode confiar em mim. Ainda esta noite vai estar
no Mensageiro e amanhã a cidade toda vai falar no assunto.
- Sim, Jettinha - disse a Princesa -, é verdade que
você nunca vem de mãos vazias. Estamos curiosos, qual a sua
novidade?
- Pois muito bem. Primeiro, deixe-me respirar. Sabe;
Ditlinde, sabe Alteza, sabe Alteza Real, quem está por vir,
#
quem vai ao Jardim das Fontes, quem vai morar no Quellenhof
por seis ou oito semanas para beber a água?
- Não - disse Ditlinde. - E você sabe, Jettinha?
- Spoelmann - disse a Srta. von Isenschnibbe. -
Spoelmann - repetiu, recostando-se para trás e fazendo gesto
140
cie quem vai bater na beira da mesa, mas sua mão parou pouco
acima do trilho de' seda azul.
Os irmãos entreolharam-se, duvidando.
- Spoelmann? - perguntou Ditlinde. - Pense bem, Jet-
r.ínha: o verdedeiro Spoelmann?�
- O verdadeiro! - a voz da moça falhou de júbilo con-
cido. - O verdadeíro, Ditlínde. Poís só exíste um, ou só resta
um que conhecemos, e é esse que esperam no Quellenhof. . . o
grande Spoelmann, o gigante, o incrível Sarnuel N. Spoelmann,
dos Estados Unidos!
- Mas, filha, como ê que ele viria parar aqui?
- Ditlinde, desculpe minha resposta, mas você perguntou.
Naturalmente, ele vem pelo oceano, no seu iate ou num gran-
de navio, não sei ainda. . . como mais lhe agradar. Vai tirar
férias, uma viagem pela Europa, com o objetivo expresso de
beber água no Jardim das Fontes.
- Mas está doente?
- Claro, Dítlínde. Toda aquela gente é doente, ísso faz
parte.
- Mas que estranho - disse Klaus Heinrich.
- Sim, Alteza, é muito estranho. Deve ser o modo de
vida dele. Pois é certamente uma vida dura, nada cômoda, e
deve desgastar o_ -corpo mais depressa do que a vida de uma
pessoa comum. A maioria tem problemas de estômago. Mas
dizem que Spoelmann tem cálculos.
- Então, cálculos. . .
- Sim, Ditlinde, você naturalmente já ouvíu falar nísso
e esqueceu. Ele tem pedras nos rins, se me permitem essa ex-
pressão tão feia. Uma dor terrível, torturante, e infelizmente
nem consegue aproveitar sua fortuna fabulosa. . .
- Mas como foi pensar logo nas nossas águas?
- Bem simples, Ditlinde. A água é boa, é excelente, es-
pecialmente a Fonte Ditlinde, com seu lítio ou seja qual for o
nome, é excelente para gota e pedras, e só falta que seja devi-
damente valorizada no mundo. Mas um homem como Spoel-
141
mann, claro, um homem desses está acima de nomes e propa-
gandas, e segue suas próprias idéias. E assim descobriu nossas
águas. . . ou seu médico pessoal as recomendou, e lhe fizeram
bem, e agora ele deve pensar que, bebidas no local de origem,
devem fazer mais bem ainda.
Todos ficaram calados.
- Santo Deus, Albrecht - disse Ditlinde afinal -, não
importa o que se pense de Spoelmann e de gente como ele. . .
e penso nele com reservas, pode ter certeza. . . mas não acha
que a visita desse homem ao Jardim das Fontes pode ser de
grande ajuda?
O Grão-Duque virou a cabeça com aquele sorriso fino e
rígido.
- Pergunte à Srta. von Isenschnibbe - respondeu. -
Sem dúvida, ela também já avaliou esse lado da coisa.
- Já que Vossa Alteza Real o ordena. . . Vai ajudar imen-
samente! Imensamente, imensuravelmente. . . isso é certo! A
direção está felicíssima, é capaz até de colocar guirlandas no
reservatório e iluminar o Jardim das Fontes! Que recomenda-
ção para a casa! Que atação para os estranhos! Vossa Alteza�
Real imagine . . . esse homem é uma coísa notável! Há pouco
Vossa Alteza falava de "seus iguais". . . mas ele não tem iguais,
quando muito, um ou dois. 1~; um Leviatã, é o Pássaro Roca!
As pessoas virão de longe para ver uma criatura dessas, que
dispõe de meio milhão diariamente!
- Deus nos livre! - disse Ditlinde, abalada. - E o
meu bom Philipp, que se mata com sua turfa. . .
- Tudo começou porque há dois dias dois americanos
#
apareceram na \Xandelhalle. Quem são eles? Descobriram que ,�
se trata de jornalistas, enviados por dois grandes jomais de Nova '
Iorque. VieraYn à frente do Leviatã e, por enquanto, telegra-
fam a seus jomais mandando descrições do local. Quando ele
chegar, vão telegrafar todos os seus passos. . . exatamente como
o Mensageiro e o Diário O f icial noticiam sobre Vossas
Altezas . . .
142
pa- Albrecht inclinou-se, agradecendo de olhos baixos, avan-�
sas ando o lábio inferior.� � �
vam r - Ele requisitou os aposentos dos Príncipes no Quellen-
°m, hof como moradia provisória - disse Jettinha.
- Só para ele? - perguntou Ditlinde.
- Ah, não, Ditlinde, pode imaginar que não virá sozi-
não ' nho. Não sei muita coisa sobre sua gente e seus criados, por�
enquanto, mas é certo que vem com uma filha e seu médico
cha pessoal. '�
de - Você sempre diz "médico pessoal", Jettinha, isso me
aborrece. E os jornalistas. E ainda por cima, quartos dos prín-
o e cipes. Ele não é rei!�
- Até onde sei, um rei das ferrovias - comentou Al-
-' brecht baixinho, sem levantar os olhos.
- Não só rei das ferrovias, Alteza Real, e, segundo ouvi
nen- '% dizer, isso nem é o principal. Nos Estados Unidos, há essas
! A randes associações comerciais chamadas trustes, como Vossa�
b
, no ! Alteza sabe; por exemplo, o truste do aço, o truste do açúcar,
nda- o truste do petróleo, e ainda os trustes do carvão e da carne�
teza , e do tabaco e sei mais do quê. E em quase todos eles Samuel� � �
uco N. Spoelmann tem participação, e é grande acionísta e contro-� �
uais, lador principal. . . é assim que chamam, eu li. . . e portanto seu
oca! negócio deve ser o que aqui chamamos de comércío diversifi-
que - cado.
- Belos negócios! - disse Ditlinde. - Belos negócios
E o devem ser os dele! Pois você não vai querer me convencer
de que com trabalho honesto alguém se torna um Leviatã ou
anos Pássaro Roca, Jettinha. Estou certa de que o sangue de viúvas�
que y e órfãos está grudado na sua fortuna. Que pensa você disso,
Iova ' Albrecht?�
egra- - Espero que sim, Ditlinde, para consolo seu e do seu
ele marido.�
omo - Se assim for - disse a moça -, Spoelmann, o nosso�
ossas , Samuel Spoelmann, não há de ter muita responsabilidade no
, caso, pois na verdade não é senão um herdeiro. Dizem até que
143
nunca teve grande vontade de fazer negócios. Na verdade, quem
fez tudo foi o pai. . . li tudo, e posso dizer que sei das coísas.
O pai dele era alemão. . . não era ninguém, aventureiro que
cruzou o oceano e se tornou minerador. E teve sorte, encontrou
ouro, e fez uma pequena fortuna. . . ou era bastante grande. . .
e começou a especular com petróleo, ferrovias e aço; depois,
em tudo que era possível, e fícou cada vez maís e mais rico.
E quando morreu, afinal, tudo já estava em pleno andamento,
e seu fílho Samuel, que herdou a firma do Pássaro Roca, não
precisou fazer praticamente nada, senão enfíar no bolso os enor-
mes dividendos e ficar mais e mais rico ainda, até quase nem
se poder dizer quanto. E as coisas aconteceram por si.
- E ele tem uma filha, Jettinha? Que criatura é essa?
- Sim, Ditlinde, a mulher dele motteu, mas ele tem uma
filha, a Srta. Spoelmann, e vai trazê-la consigo. Segundo o que li,
uma moça bem estranha. Ele próprio é um sujet mixte, porque
seu paí pegou uma mulher do sul. . . sangue crioulo, pessoa
com pai alernão e mãe nativa. Depois, Samuel casou-se com
uma germano-amerícana, com meío sangue ínglês, e a filha deles
é essa Srta. Spoelmann.
- Deus me livre, Jettinha, que criatura exótica!
- Pode-se dízer que sím, Ditlínde. E é instruída, ouvi
dizer que estuda como um hornem, álgebra e coisas inteligen-
tes...
- Bem, isso não me faz gostar mais dela.
#
- Mas agora vem o mais forte, Ditlinde, pois a Srta. Spo-
elmann tem uma dama de companhia, e essa dama de companhia
é uma condessa, uma condessa de verdade lhe serve de dama
de companhia.
- Deus me livre! - disse Ditlinde. - E ela não tem
vergonha disso? Jettinha, tomeí mínha decísão. Não vou me
ínteressar por Spoelmann. Vou deixar que beba tranqüilamente
na sua fonte, e que parta de novo com sua condessa e sua fílha
algebrizada, sem me importar com ele. E não me impressiona
nada essa sua fortuna pecaminosa. Que acha, Klaus Heinrich?
144
Este olhou por cima da cabeça da moça, em direção à janela
clara.
- Impressionar? - disse ele. - Não, a fortuna não me
impressiona, acho eu. . . quer dizer, o que se chama de fortuna.
Mas acho que depende. . . acho que depende do critérío. Tam-
bém temos algumas p'essoas ricas na cidade. . . por exemplo,
dizem que o fabricante de sabão Unschlitt tem 1 milhão. . . às
vees o vejo na sua carruagem. . . É bem gordo e vulgar. Mas�
se for doente e solitário devido à fortuna. . . Não sei. . .
- De qualquer modo, um homem sinistro - disse
Ditlinde.
E aos poucos foram deixando de falar em Spoelmann. Fa-
laram em assuntos familiares, na propriedade de Hohenried, na
prcíxima temporada. Lá pelas 7h, o Grão-Duque pediu sua car-
ruagem. Ergueram-se, despediram-se, pois também o Príncipe
Klaus Heinrich estava de partida. Mas no vestíbulo, enquanto
os irmãos deixavam que lhes vestissem os casacos, Albrecht
disse:
- Klaus Heinrich, eu ficaria grato se você mandasse seu
cocheiro para casa e me desse o prazer de sua presença por
mais uns 15 minutos. Tenho um assunto de certa importân-
ci:; a falar com você. . . Posso acompanhá-lo ao Eremitage, mas
o .ir da noite me faz mal. . .
Klaus Heinrich respondeu, calcanhares umdos:
- Nada disso, Albrecht, nem pense nisso! Se quiser, vou
com você ao Castelo. Naturalmente, estou à sua disposição.
Foi a introdução de uma conversa singular entre os jovens
príncipes, cujo resultado seria publicado poucos dias depois no
Drário O f icial e recebido com aplausos gerais.
O Príncipe acompanhou o Grão-Duque ao palácio pelo
Pertão Albrecht, por escadarias de pedra de corrimão largo,
corredores onde ardiam chamas de gás e vestíbulos silenciosos,
p;issando por lacaios, até o "gahinete" de Albrecht, onde o
vclho Prahl acendera os dois lampiões de bronze sobre a la-
reira. Albrecht assumira o quarto de trabalho do pai - sem-
145
pre fora a sala de trabalho do governante, e ficava no primeiro
andar, entre a sala do ajudante e a sala de refeições usada dia-
riamente, dando para a Praça Albrecht, que os príncipes sempre
tinham diante da vista, sentados na escrivaninha. Era um apo-
sento extraordinariamente pouco aconchegante e paradoxal, uma
saleta com pinturas rachadas no teto, paredes forradas de seda
vermelha com sarrafos dourados, e três janelas até o chão, pelas
quais entrava um vento encanado, e diante das quais agora se
fechavam cortinas cor de vinho com franjas. Havia uma lareira
falsa, estilo império francês, diante dela um semícírculo de pe-
quenas poltronas de veludo, modernas, sem braços, e um fogão
de azulejos brancos com enfeites incrivelmente feios, muite
aquecido. Dois grandes sofás ficavam nas paredes laterais, um
diante do outro, e na frente de um deles se colocara uma mesa
quadrada, com toalha de veludo vermelho. Entre as janelas,
erguiam-se dois espelhos até o teto, estreitos, emoldurados em
ouro, com consolos de mármore branco. Num deles havia um
grupo em mármore, muito sensual; no esquerdo, uma jarra com
água e frascos de remédios. A escrivaninha, peça antiga de pa-
lissandra com tampa de correr e enfeites de latão, estava soli-
tária sobre o tapete vermelho. De um canto, numa mesinha de
colunas, uma estátua antiga olhava a sala com seus olhos mortos.
- O que tenho a lhe sugerir - disse Albrecht, parado
#
junto à escrivaninha, remexendo inconscíentemente nas mãos
um abridor de cartas, objeto tolo, com formato de espada de
cavaleiro - relaciona-se, de certa forma, com nossa cónvers. �
desta tarde. . . Quero lhe adiantar que já comentei o assunto
com o Sr. Knobelsdorff, neste verão, em Hollerbrunn, Ele está
de acordo e, se você também estiver, coisa de que não duvido,
poderei realízar logo minha intenção.
- Por favor, Albrecht, fale - disse Klaus Heinrich, pa-
rado junto à mesa do sofá, em postura atenta e militar.
- Meu estado está piorando cada vez mais -- prosse-
guiu o Grão-Duque.
146
- Sinto muito, Albrecht! Então, você não melhorou em
Hollerbrunn?
- Obrigado. Não. Não vou bem, e minha saúde se mos-
tra cada vez menos à altura das exigências que me são feitas.
Quando digo "exigências", falo em primeiro lugar dos deveres
de natureza solene e representativa ligados à minha posição -
e esse é o aspecto central que se liga à conversa que tivemos
há pouco na casa de Ditlinde. O cumprimento desses deveres
pode alegrar quando existe um contato com o povo, um paren-
tesco, uma sintonia de corações. Para mim, é um tormento,
e a falsidade do meu papel me cansa de tal modo que preciso
pensar em tomar medidas contra isso. Nisso concordo, na ques-
tão física, com meus médicos, que apóiam totalmente minha
intenção. . . Então, escute. Não sou casado, e posso lhe asse-
gurar que não pretendo casar-me jamais, não terei filhos. Você
é o herdeiro do trono por direito de nascença, e é ainda mais
na consciência do povo, que o ama. . .
- Albrecht, você sempre fala nisso, que o povo gosta
de mim. . . Não acredito. Talvez de longe. . . Assim é conosco,
sempre somos amados apenas de longe.
- Você é modesto demais. Escute. Até aqui, já teve
algumas vezes a bondade de me aliviar de alguns deveres de
representação. Queria que os assumisse a todos, inteiramente,
e para sempre.
- Albrecht, está pensando em abdicar? .- perguntou
Klaus Heinrich, assustado. . .
- Não devo pensar nisso. Acredite que o faria com pra-
zer. Mas eles o negariam. Não penso nem mesmo num regente,
apenas num representante. . . talvez você se recorde dessa di-
ferença, das aulas de Direito Público. Uma representação dura-
doura e oficial em todas as funções representativas, fundamen-
tada na necessidade de se poupar minha saúde. Que é que
você acha?
- Estou às suas ordens, Albrecht. Mas ainda não en-
tendi direito. Até que ponto iria essa representação?
147
- O mais longe possível. Eu queria que ela se esten-
desse a todas as ocasiões em que me exigirem uma aparição
pública. Knobelsdorff pede que a abertura e o encerramento
da Assembléia só lhe sejam transferidos se eu estiver de cama.
Mas, de resto, eu lhe passaria a tarefa de me representar em
todas as ocasiões festivas, viagens, visitas a cidades, inaugura-
ções de solenidades ou festividades públicas, abertura do Baile
Municipal . . .
- Isso também?
- Por que não? Temos, além disso, as audiências pú-
blicas semanais. . . costume sensato, sem dúvida, mas que está
me matando. Você daria as audiências em meu lugar. Não vou
citar mais nada. Aceita minha proposta?
- Estou às suas ordens.
- Então, escute até o fim. Em todos os casos em que
estiver me representando, eu lhe concederei meus ajudantes.
Também, certamente, será preciso que se apresse sua promo-
ção militar. Você é Primeiro-Tenente? Será promovido a Capi-
tão . . . ou logo a Major, à disposição de seu Regimento . . . Tra-
tarei disso. Mas em terceiro lugar, desejo dar ao nosso acordo
o destaque necessário, marcar convenientemente sua posição ao
meu lado, concedendo-lhe o título de "Alteza Real". Havia
#
formalidades a cumprir para isso. . . Knobelsdorff já as execu-
tou. Apresentarei minhas decisões na forma de doís textos,
um para você, outro para meus ministros de Estado. Knobels-
dorff, aliás, já os escreveu. . . Você aceita?
- Albrecht, que posso dizer? Você é o filho mais velho
de papai, e sempre o respeitei por saber que era o mais nobre
e superíor, eu sou apenas um plebeu comparado com você. Mas
se me julga digno de estar a seu lado, usar seu título e repre-
sentá-lo diante do povo, embora eu nem me julgue müito apre-
sentável e tenha, ainda por cirna, esse problema com a mão�
esquerda, que preciso esconder o tempo todo, agradeço e fico
à sua disposição.
148
en-
ção
nto
na .
em
zra-
aile
- Então, por favor, agora me deixe sozinho. Preciso des-
cansar.
Andaram um em direção ao outro, um vindo da escriva-
ninha, o outro, da mesa dos livros, caminhando sobre o tapete,
até o centro da sala. O Grão-Duque deu a mão ao irmão, aquela
mão magra e fria que estendia junto do peito, sem desprender
o cotovelo do corpo. Klaus Heinrich juntou os saltos das bo-
tinas e se curvou ao pegar a mão; Albrecht inclinou, em des-
pedida, a cabeça estreita com a barbicha loura, sugando de
leve o lábio superior com o de baixo. Klaus Heinrich voltou
para o Castelo Eremitage.
Tanto o Diário O f icial como o Mensageiro publicaram,
alguns dias depois, os dois manuscritos em que estavam con-
tidas as nobres decisões: o que tinha o tratamento "Meu caro
Ministro de Estado Barão von Knobelsdorff!" e outro com
"Nobre Príncipe, meu caríssimo irmão! ", concluindo com "O
afetuoso irmão de Vossa Alteza Real, Albrecht".
149
A NOBRE VOCAÇÃO
Aqui descrevemos a vida e a vocação de Klaus Heinrich em
suas singularidades.
Ele desceu da carruagem e, manto jogado nos ombros,
seguiu por uma ruela curta, numa calçada coberta por um
trilho vermelho, entre o povo que o aclamava. Passou por
uma porta ladeada de loureiros, sobre a qual se armara um
baldaquim, subíu uma escada ocupada por criados aos pares,
sustentando lampiões... Ia a um jantar festivo, coberto de
condecorações até os quadris, as ombreiras franjadas de major
nos ombros estreitos, seguido por seu séquito, no corredor
gótico de uma Câmara Municipal. Dois criados que corriam à
sua frente abriram, apressados, uma vidraça antiga, já precária
nos caixilhos de chumbo. Pois lá embaixo, na pequena ,praça,
comprimia-se o povo, à luz fumegante das tochas. Chamavam
e cantavam, e ele parou na janela aberta, curvando-se, expondo-
se por um momento ao entusiasmo deles, e agradeceu, sau-
dando. . .
Sua vida era despida de cotidiano e de veracidade; com-
punha-se de vários momentos tensos. Aonde quer que che-
gasse, era sempre dia de festa e de comemoração, o povo glo-
rificava-se a si mesmo nessa festa, a vida cinzenta se ilumi-
nava, revestindo-se de poesia. O faminto tornava-se um homem
normal, a espelunca, uma choupana pacífica, imundas crianças
151
de rua eram educados menininhos e menininhas em roupa dé
domingo, cabelo alisado com água, um poema nos lábios; e o
cidadão embotado, com casaco e cartola, tomava consciência
de si mesmo, comovido. Mas não só ele, Klaus Heinrich, via
o mundo a essa luz: ele próprio, o mundo, se via assim, en-
quanto Klaus Heinrich estivesse presente. Uma síngular falsi-
dade e ilusão reinava nos locais onde ele exercia sua vocação,
#
uma decoração simétrica e sem substância, um disfarce falso e
eufórico da realidade, com papelão e madeira dourada, guirlan-
das, lampiões, drapeados e bandeiras, surgia magicamente para
uma bela hora. Ele próprio era o centro dessa exposição, sobre
um tapete que cobria a terra nua, entre dois mastros pintados
com duas cores, ao redor dos quais se enroscavam guirlandas.
Parava ali de calcanhares umdos, com o aroma de tinta e agu-
lhas de pinheiro, e, sorrindo, metia a mão esquerda no quadril.
Deitava a pedra angular de uma nova Câmara Municipal.
Os cidadãos tinham conseguido, por manobra financeira, o di-
nheiro necessário, e um arquiteto formado na capital recebera
a incumbência de planejar a construção. Mas Klaus Heinrich
colocava a pedra fundamental. Sob o júbilo da população, sua
carruagem parou diante da pomposa barraca erguida no local
da construção, ele desceu, com movimentos leves e controla-
dos, até o chão coberto de fina areia amarela, e caminhou so-
zinho até as autoridades de fraque e faixa branca que o aguar-
davam na entrada. Foi-lhe apresentado o arquiteto e, durante
cinco minutos, diante do público, sob os sorrisos hirtos dos
presentes teve um diálogo altamente generalizado sobre as ex-
celências dos vários estilos de construção, depois do que exe-
cutou um pequeno giro, planejado durante a conversa, e foi
levado sobre trilhos e degraus de madeira até sua poltrona,
na beira da tribuna central. Lá ficou sentado, enfeitado de cor-
rente e estrela, um pé para a frente, as mãos enluvadas de
branco cruzadas no punho da espada, capacete no chão a seu
lado, visivel de todos os ângulos àqueles que assistiam à sole-
nidade, e, numa postura digna, escutou o discurso do Prefeito.
152
d Depois, como lhe pedissem, ergueu-se, desceu sem visível cau-�
. o . tela, sem olhar os pés, os degraus até a cavidade onde ficava
cia a pedra angular e, com um martelinho, deu três lentas batidas
via sobre o bloco de arenito, proferindo, com sua voz um tanto pe-
en- netrante, um pequeno discurso que o Sr. von Knobelsdorff es-
lsi- crevera. Colegiais cantaram um coro agudo. E Klaus Heinrich
ão, partiu.�
Na festa do Dia do Soldado, ele inspecionou o desfile dos
an- veteranos. Um ancião gritou com voz que parecia rouca pela
ara fumaça da pólvora: "Sentido! Descobrir! Olhar à direita!" E
bre postatam-se, medalhas e cruzes nos casacos, cartolas puídas jun-
jos to às coxas, olhando com seus olhos injetados de sabujo para
las. aquele que passava examinando-os amavelmente, fazendo a este
gu- ou àquele uma pergunta, onde servira, onde estivera sob fogo
ril. inimigo. . . Participou também de festas esportivas, concedeu
al. ' sua presença ao torneio das ligas distritais e pediu que lhe apre-�
sentassem os vencedores para "conversar com eles". Os rapa-
di-
era zes corajosos e de corpos bem-feitos paravam di.ante dele inibi-
uch dos, embora tivessem executado incríveis façanhas, e Klaus Hein-
sua rich disse rapidamente algumas expressões técnicas que recor-
cal , dava dos tempos do Sr. Zotte, pronunciando-as com grande�
naturalidade enquanto ocultava a mão esquerda.
.Foi à Festa dos Pescadores, assistiu à corrida de cavalos
de sua tribuna de honra forrada de vermelho, em Grimmburg,
e participou da distribuição dos prêmíos. Também dirigia a
Comissão de Hon.ra da Festa da Liga dos Atiradores; visitou
a competição de tiro ao alvo patrocinada pelo Grão-Duque e,
como saiu no Mensageiro, "galhardamente bebeu à saúde", se-
' gurando a taça de prata nos lábios e depois erguendo-a, calca-
' nhares umdos, para os atiradores. Disparou váríos tíros no alvo
de honra, embora as notícias não dissessem quantos acertara,
e mais tarde manteve com três homens diferentes o mesmo
diálogo sóbre as excelências do tiro ao alvo, que o Mensageirn
noticiou como, "pequena conversa informal". Por fim, despe-
' diu-se com um cordial "Boa sorte!" falado em dialeto, o que
153
despertou indescritível júbilo. O General-Ajudante von Hühne-
mann, depois de se informar, lhe sussurrara aquela saudação
dos atiradores no último momento; pois teria sido perturba-
dor, prejudicando a bela ilusão dos desportistas, se Klaus Hein-
#
rich trocasse a saudação dos atiradores pela dos alpinistas.
Allás, para exercer sua vocação ele precisava de certos
conhecimentos objetivos, que conseguia em cada caso, para
aplicá-los no momento certo e da forma adequada. Ligavam-se
principalmente a expressôes usadas nos diversos campos da ati-
vidade humana, bem como datas históricas, e, antes de uma
viagem de representação, Klaus Heinrich fazía os estudos ne-
cessários em casa, no Castelo Eremitage, com a ajuda de textos e
explicações orais. Quando, em nome do Grão-Duque, "meu ca-
ríssimo irmão", ele inaugurou a estátua de Johann Albrecht
em Knüppelsdorf, na própria praça, logo após a apresentação
do coral Geradsinnliederkranz, proferiu um discurso em que se
incluía tudo o que anotara sobre Knüppelsdorf, o qual causou
a todos bela impressão, como se ele se tivesse dedicado a vida
toda ao estudo da história local. Primeiro, Knüppelsdorf era
uma cidade, e Klaus Heinrich mencionou isso três vezes, para
orgulho dos nativos. Também disse que a cidade de Knüp-
pelsdorf, como testemunhava seu passado histórico, há muitos
séculos era fielmente ligada à casa de Grimmburg. Pois era sa-
bido, disse ele, que já no século XIV o Landgrave Heinrich
XV, de Rütenstein, aparecera especialmente como benfeitor de
Knüppelsdorf. O Rütenstein residira no castelo construído sobre
a pedra de mesmo nome, e as "desafiadoras torres do castelo
e seus sólidos muros que protegiam Knüppelsdorf olhavam a
paisagem ao longe". Depois, ele recordou como, por herança
e casamento, Knüppelsdorf por fim chegara ao ramo da famí-
lia ao qual ele próprio e seu irmão pertencíam. Duras tempe-�
tades tinham varrido Knüppelsdorf no correr dos tempos, ano �
de guerra, incêndios e pestilências, mas ela sempre se reerguera
e, em todas as situações, fora fiel aos príncipes. Essa mesma
inclinação mostrava a Knüppelsdorf atual, erigindo um monu-
154
riento à memória do pai dele, Klaus Heinrich, e com muita
:legria ele contaria ao senhor seu irmão sobre a recepção bri-�
'.iante e cordial que ali tivera como representante oficial...�
( ;aiu o pano que envolvia a estátua, o coral Geradsinnlieder-
.. ranz brilhou mais uma vez, e Klaus Heinrich, ali parado, sor-�
:dente, com sensação de esvaziamento, debaixo da sua tenda�
z eatral sentía-se contente por estar na segurança de ninguém
r licença de lhe fazer perguntas. Pois não teria sabido dizer��
-;iais uma. só palavrinha sobre Knüppelsdorff.�
Como era cansativa sua vida, como era difícil! Por vezes,
I arecia-lhe que constantemente, e com grande dispêndio de for-
ï a, precisava manter ereto algo que na verdade não ficara de
;é, ou só sob condições muito favoráveis. Por vezes, sua vo-�
ação lhe parecia triste e pobre, embora a amasse e fizesse
t om prazer todas essas visitas de representação.
Ele viajou pelo campo, para uma exposição agrícola, e
oi com sua sege de molejo deficiente do Castelo Eremitage à
astação, onde estavam, para as despedidas, o Presidente da
,,ssembléia, o delegado de Polícia e o díretor da ferrovia, junto
, lo carro-salão. Ele víajou uma hora e meía, mantendo, não
· em esforço, uma conversação com o Ajudante do Grão-Duque
, iue lhe fora destinado e com o Conselheiro Mínisterial Heckep-
ang, homem severo, muito respeitoso, que também o acom-
panhava. Depois, entrou na estação da cidadezinha que rea-
izava uma festa agrícola. O Prefeito, corrente sobre o fraque,
sperava por ele à frente de seis ou sete outras autoridades.�
estação estava enfeitada com muitos pinheirinhos e guirlandas�
le folhagens. Atrás, estavam os bustos em gesso de Albrecht
: Klaus Heinrich. O público atrás do cordão de isolamento
.
Tritou três vezes "viva". Os sinos tocaram.
O Prefeito deu boas-vindas a Klaus Heinrich, com um
iscurso. Disse que agradecia, e brandia a cartola com a mão�
,ue a segurava; era a gratidão da cidade por tudo que o irmão�
,je Klaus Heinrich e ele próprio lhe tinham feito de bom. Apre-
,entou os sinceros votos de um governo abençoado. E também
155
repetiu o pedido de que o Príncipe coroasse a obra que se
#
desenvolvera tão bem sob seu patrocínio, inaugurando a expo-
sição agrícola.
Esse préfeito tinha título de Conselheiro em Economia, o
que tinham informado a Klaus Heinrich. Por isso, em sua res-
posta, Klaus Heinrich lhe deu esse título por três vezes. Disse
alegrar-se por ouvir que a obra da exposição agrícola se desen-
volvera tão bem sob seu patrocínio. (Na verdade, esquecera-se
de que era patrocinador dessa exposição.) Viera hoje para fazer
mais uma coisa por essa grande obra, inaugurando a exposi-
ção. Depois, perguntou sobre quatro coisas: a situação fínan-
ceira da cidade, o crescimento da população nos últimos anos,
o mercado de trabalho (embora não soubesse bem o que era
isso) e o preço dos víveres. Se ouvísse dizer que os víveres
estavam caros, levaria "a sério" essa informação, e naturalmente
seria tudo. Ninguém esperava mais dele e, de modo geral, era
consolador que tivesse levado tão a sérío o anúncío de que os
preços estavam muito altos.
Depois, o Prefeito lhe apresentou as autoridades da cí-
dade: o juiz, um nobre latifundiário das redondezas, o pastor,
os dois médicos, um despachante, e a cada um Klaus Heinrich
dirigiu uma pergunta; enquanto lhe respondiam refletia sobre
o que indagaria ao seguinte. Além disso, estavam presentes o
veterinário e o inspetor de anímais. Por fim, entraram nas car-
ruagens e, entre vivas dos moradores, passaram pela ala de
escolares, bombeíros e lígas esportívas, e atravessaram a cidade
enfeitada até o prado, onde se realizava a festa. Antes, porém,
foram interrompidos por duas virgens vestidas de branco, com
coroas na cabeça. Uma delas, filha do Prefeito, entregou ao
Príncipe um ramo de flores brancas e, para eterna lembrança
daquele momento, recebeu pessoalmente uma daquelas precio-
sas lembranças que Klaus Heinrich sempre levava em suas
viagens, um broche que, nem ela sabía por quê, estava exposto
sobre veludo, e o Mensageiro o descreveu como jóia de ouro
com pedras preciosas.
156
Tendas, pavilhões e barracas estavam armados na campina.
En longas filas de varas, umdas entre si por guirlandas, ondu-�
lav.rm bandeirolas coloridas. Sobre uma tribuna de madeira en-
fei r ada com panos, entre drapeados, festões e mastros de duas
cor es, Klaus Heinrich leu a breve saudação inaugural. E co-
meçou a visitação.
. Em toros baíxos, estava preso o gado de chífres, raça
pma, exemplares magníficos com corpos lisos, redondos, ma-�
lhados, cartazes com números nas testas largas. Os cavalos pa-
te.mam e bufavam, pesados cavalos de arado com focinhos cur-
vo; e pêlos acíma dos cascos, bem como refinados e inquietos
anmais de montaria. Havia suínos pelados de perninhas curtas,�
tanto porcos rústicos como porcos de raças nobres em grande�
gr:antidade. Ventres pendentes, fuçavam, grunhindo, com os
fo:vinhos rosados no chão, enquanto o balido das ovelhas la-
. m das enchia o ar com um coro confuso de vozes de baixo�
ou infantís. Havía uma ruídosa exposição de aves, toda sorte
de galinhas, da grande Bramaputra à galinha-anã Goldlack, com
pn tos e toda espécie de pombos, ração, ovos frescos e conser-
vados artificialmente. Havia a exposição de produtos do cam-
, p., cereais, raízes e trevos, batatas, ervilhas e linho. Havia�
vurduras frescas e em conserva, frutas cruas e em conserva,
framboesas, geléías, sucos. Mas, por fím, chegava a exposição
d máquinas e ferramentas agrícolas, apresentadas por várias��
fi vmas técnicas, com tudo que existia para cultivar o campo,
d.sde arados manuais até grandes motores pretos com cha-�
' Il' inés, parecendo um estábulo de elefantes. Havia desde os
n-ais símples objetos até os que constavam de uma confusão�
d.: rodas, correntes, êmbolos, cilindros, braços e dentes -
. u m mundo cheio de utilidade, que chegava a envergonhar.
Klaus Heinrich olhava tudo; andou pela fileira de ani-�
maís, gaiolas, sacos, frascos, vidros e utensílios, com o punho
cva espada sobre o braço. O cavalheiro à sua direita apontava
cada coisa cqm sua mão numa luva de glacê branco, permi-
' r indo-se uma ou outra explicação, e Klaus Heinrich agia segundo
#
157
sua vocação. Expressava grande admiração por tudo que via,
parava de tempos em tempos, ínterpelando os expositores dos
animais, informando-se de maneira afável sobre suas condi-
ções, e fazia perguntas que os camponeses respondiam coçando
atrás da orelha. E, enquanto andava, ele agradecia para os doís
lados as homenagens do povo, que ainda ocupava seu caminho.
Na saída do local da festa, lá onde os carros esperavam,
o povo se reunira para olhar sua partida. Deixaram caminho
aberto, uma ruela reta até a porta de seu landau, e ele camí-
nhou em passo vivo, mão no capacete, cumprimentando contí-
nuamente, só e formalmente apartado de todas aquelas pes-
soas que saudavam com júbílo sua imagem arquetípica, sua
raça legítima, festejando a ele, enquanto ele representava fes-
tivamente a vida, o trabalho e a aplicação deles, sem partici-
par de coisa alguma.
Com passo leve e lívre, subiu na carruagem, sentou-se ha-
bilmente de modo a assumír imediatamente uma postura ele-
gante e impecável, e foi sempre saudando, até a Sede da So-
ciedade, onde fizeram um lanche. Depois da segunda rodada, o
chefe do distrito conseguiu fazer um brinde ao Grão-Duque e
ao Príncipe, e Klaus Heinrich ergueu-se para beber à saúde do
distrito e da cidade. Depois da refeição, contudo, recolheu-se
aos aposentos que o Prefeito lhe arranjara em sua morada ofi-
cial, e deitou-se na cama por uma hora; pois o exercício da sua
vocação o esgotava estranhamente, e à tarde ele não precisaria
visitar apenas a igreja da cidade, a escola, várías indústrias, es-
pecíalmente a queijaria dos Irmãos Behnke, falando sobre tudo
isso com muita satisfação, mas ainda prolongar um pouco a
viagem e visitar um local devastado, uma aldeia incendiada,
para manifestar às autorídades a compaixão de seu irmão e a
sua própria, e aliviar os sofredores com sua nobre presença. . .
Mas, voltando para casa no Castelo Eremítage, em seus
aposentos sobriamente mobiliados no estilo império, ele lia as
notícias de jornal sobre suas viagens. Então aparecia o Conse-
lheiro Schu~~ann, da Secretaria de Imprensa, submetida ao���
158
M(inistério do Interior, trazendo recortes dos jomais , capricho-
s L s.imente colados em folhas brancas datadas e com o nome do
jornal. E Klaus Heinrich lia sobre os efeitos de sua aparição
° pessoal, sobre a graça e nobreza de sua pessoa, e via que cum-
írira bem sua tarefa, conquistando corações de jovens e�
aelhos . . . que erguera a alma do povo acima do cotidiano, arre-
latando-a para zonas de alegria e amor.�
° Depois dava audiências públicas no Castelo Velho, como
1- f ora combinado.
O costume das audiências públicas fora criado por um an-
rpassado bem-intencionado de Albrecht II, e era firmemente�
umprido. Uma vez por semana, Albrecht, e agora Klaus Hein-�
rích em seu lugar, atendía a qualquer pessoa. Se o pedínte fosse
aobre ou não, se seu problema fosse transcendente ou constasse
rpenas de uma preocupação ou queixa pessoal bastava anunciar
:
:o Sr. von Bühl ou ao Ajudante em serviço, e o homem tinha
portunídade de apresentar seu problema à instância superior!� �
3ela instituição humanitária! Pois assim o pedinte não precisava
wmprir o caminho dos pedidos escritos, com a triste perspec-
iva de ver seu papel sumir para sempre nas chancelarias, mas
ínha a certeza felíz de que sua solicitação chegaria díretamente
1 última instância. Era preciso admitir que essa instância supre-
na - de momento, Klaus Heinrich - naturalmente não estava
m condições de analisar o problema com seriedade e decidir�
obre ele, mas o passaría adíante, às chancelarias, onde ele�
acabaria "sumindo". Mas, mesmo assim, adiantava muito, em-
bora não no sentido de uma utilidade grosseira. O cidadão, o
pedinte, chegava ao Sr. von Bühl com sua solicitação de audíên-
cía, e determínavam-lhe um día, uma hora. Ele vía o momento
aproximar-se, dominado de alegria e angústia, em espírito já
trabalhava nas frases em que apresentaria seu problema, man-
dava passar o casaco de sair e o chapéu de seda, arrumava uma
#
boa camísa e preparava-se de todas as maneíras. Mas já esses
preparativos solenes desviavam os pensamentos do homem da-
' quele assunto desejado, tão objetivo, tornando a audiência em
I59
si o fato principal, o objeto daquela nervosa expectativa. Che-
gada a hora, o cidadão tomava uma carruagem, coisa que nunca
fazia, para não sujar as botinas lustradas. Passava pelos leões
do Portão Albrecht e a guarda, bem como o grande porteiro,
lhe dava passagem. Desembarcava no pátio do Castelo, na en-
trada de colunas diante do portal corroído, e um lacaio de fra-
que castanho e polainas cor de areia o conduzia imediatamente
para a esquerda, até uma ante-sala no térreo. No canto desse
aposento, uma série de outros suplicantes, mal sussurrando, em
estado devoto e tenso, aguardavam ser recebidos. O Ajudante,
com a lista dos anunciados na mão, aparecia de vez em quando
e levava de lado o primeiro da fila, falando com ele, em voz
abafada, sobre as regras de comportamento. Mas na sala ao
lado, chamada Sala das Audiências, estava Klaus Heinrich,
em traje militar de colarinho prateado e várias estrelas, junto
a uma mesinha redonda com três pernas douradas, recebendo
as pessoas. O Major von Platow informava-o superficialmente
sobre cada pedinte, mandava que um homem entrasse e regres-
sava, nos intervalos, a fim de preparar rapidamente o Príncipe
para o seguinte. E o cidadãò entrava; postava-se diante de Klaus
Heinrich, o sangue' subindo à cabeça, transpirando um poucu.
Tinham-no prevenido com firmeza de que não se aproximasse
demais de Sua Alteza, mas parasse a alguma distância, e não
falasse antes de ser interpelado, e mesmo então não fosse logo
despejando tudo, mas respondesse laconicamente, para deixar
ao Príncipe assunto de novas perguntas; e que finalmente de-
veria afastar-se recuando, sem virar o perfil para o Príncipe. E
toda a atenção do cidadão concentrava-se nisso, em não in-
fringir essas regras, rpas cólaborar para que o diálogo transcor-
resse belo, liso e harmonioso. Klaus Heinrich o interrogava,
como estava habituado a interrogar veteranos, atiradores, gi-
nastas, camponeses, vítimas de incêndios; sorrindo, a mão es-
querda apoiada no quadril um pouco atrás; e involuntariamen-
te também o cidadão sorria. . . e de alguma forma sentia que,
com esse sorriso, se elevava acima de tudo o que habitualmente
160
he- o atrapalhava. Esse homem comum, cujos sentidos normalmen-
aca t se prendiam ao solo, que fora das coisas concretas e úteis� �
3es ;mais pensava em nada, nem mesmo na cortesia diária, e fora� �
ro, a,é ali por uma causa - este sentia na sua alma que havia�
en- c..usas mais altas do que seu problema e, assim elevado, limpo,
vra- cam olhar cego e ainda aquele sorriso no rosto vermelho, saía.
nte I
Assim Klaus Heinrich dava audiências públicas e assim
sse
c rercitava sua nobre vocação. Vivia no Eremitage, em seu pe-
em ueno trato de aposentos modelo império, mobiliados de modo� �
tte
' u.ïo severo e precário, com fria renúncia a todo conforto e acon-
tdo ; c ego. Uma seda desbotada cobria a parte superior das paredes�
JOZ l- rancas, dos tetos sem enfeites pendiam coroas de cristal, sofás�
ao
retos, em geral sem mesa, e étagères de pernas finas, com reló-
ch, ios de colunas; junto das paredes, pares de cadeiras brancas,�
nto com encostos ovais e fino estofamento de seda, ladeavam as�
tdo g,ortas duplas laqueadas de branco, e nos cantos havia guéridons
nte t;tmbém laqueados de branco com candelabros que pareciam va-
es- sos. Assim era tudo na moradia de Klaus Heinrich, e ele con-�
ipe cordava com esse ambiente.
Vivia sossegado, sem entusiasmo nem fervor quanto a
clisputas públicas. Como representante do irmão, abria a As-
sembléia, mas não participava dos acontecimentos que al.i se
lesenrolavam, e evitava qualquer pronunciamento sobre a divi-�
>.ão dos partidos - indeciso e sem convicção, como alguém
t ujo interesse é mais alto do que todos os partidos. Todos
econheciam que sua posição lhe exigia reserva, mas muitos sen-
#
, iam que a faIta de participação marcava a personalidade dele,
ornando-a alheia e hirta. Muitos dos que entravam em con-
ato com ele também então o consideravam "frio"; e, embora�
` Dr. Überbein negasse veementemente essa frieza, imaginava-
e se aquele homem parcial e pouco simpático eria capaz de�
azer algum julgamento nesse caso. Naturalmente, acontecia que�
` olhar de Klaus Heinrich cruzasse com olhares que não o re-�
v onheciam, insolentes, zombeteiros, olhares espantados e cheios
`(e rancor, qu.e desprezavam toda a sua realização e todos os
161
seus esforços, e não os entendiam. Mas, mesmo com pessoaas de
boa vontade e devotas, que estavam dispostas a respeitar e hon-
rar a vida dele, Klaus Heinrich percebia por vezes, depois de
pouco tempo, certo cansaço, sim, uma irritabilidade, como se
perto dele não consTrissem respirar por muito tempo; c isso�� �
o entristecia sem que o conseguisse superar.�
Ele nada tinba a fazer na vida diária; conse;uir dar uma�
saudação, uma boa palavra, um esto sedutor mas digno, er,r�
importante, decisivo. Uma vez, regressava de um passeio
cavalo, com gorro e manto, cavalgando lentamente em seu
Florian castanho pela alameda de bétulas que levava ao parque
e ao Castelo Eremitage, à beira de campos não-arados, e diante
dele andava um rapaz de roupas puídas e gorro, com uma
trança ridícula na nuca, mangas e calças curtas, pés extraor-
dinariamente grandes e virados para dentro. Podia ser um aluno
da escola pública, pois debaixo do braço trazia a lousa, na qual
prendera um desenho grande, uma confusão de traços verme-
lhos e pretos, um projeto ou oisa assim. Klaus Heinrich man-�
teve por longo tempo seu cavalo bem atrás desse rapazote e
contemplou o desenho branco, vermelho e preto sobre a lousa.
Por vezes, pensava em como seria bom ter um sobrenome
comum, chamar-se Dr. Fischer ou ter uma profissão séria.
El fazia representação nas festividades da Corte, o Baile�
C;rande e o Iaile Pequeno, jantar, concertos, o Crande Desfile.� �
No outono, ia com os primos ruivos e os cavalheiros do séquitc
às caçadas da Corte, por ser costume, embora o braço esquerdo
lhe dificultasse atirar. Muitas vezes o viam à noite, no teatro
,
da C;orte, em seu camarote de frente, forrado de vermelho, entre
duas esculturas femininas de mãos cruzadas e severos rosros
vazios. Pois o teatro o distraía, e ele gostava de ver o atores,�
observar seu comportamento, o modo como entravam e saíarn
do palco desempenhando scus papéis. Em ;eral, julava-os ruins,� �
com grosseiros recursos para agradar, maltreinados para fin-
girem com refinamento que tudo aquilo era natural. Mas pre-
feria os espetáculos inferiores e populares aos nobres e solenes.
162
No Síngspieltheater da Residência, trabalhava uma cantora,
de '
I Mitzi Meyer, que os jomais e o público chamavam de "nossa
lorl- l1
Meyer", por ser tão querida por grandes e pequenos. Não era
de
bonita, mal se diria que fosse bonitinha, cantava com voz esga-
se�
niçada e, para um juízo mais severo, não tínha talento. Mas
15S0
bastava que entrasse no palco para desencadear tempestades de
aplausos e entusiasmo. Pois essa criatura loura e atarracada,
'm` y' de olhos azuis, zigomas largos e altos demais, uma natureza�
er`l saudável, divertida e às vezes sentimentalona, era a carne da
O a carne daquele povo, e sangue do seu sangue. Enfeitada, pintada
seu e iluminada por todos os lados, ela se plantava nas tábuas do
palco diante da multidão, e na verdade era uma transfiguração
ante do povo - sim, nela o povo aplaudia a si mesmo, e nisso
uma residia o poder de Mitzi Meyer sobre aqueles corações. Klaus
aor- Heinrich gostava de visitar o Singspieltheater com o Sr. von�
Braunbart-Schellendorf quando Mitzi cantava, e participava ani-
qual madamente dos aplausos.�
Certo dia, teve um encontro que lhe deu o que pensar,
#
embora, de outro lado, o decepeionasse. Foi o encontro com o
Sr. Martini, Axel Martini, o mesmo que publicara dois livros de
poesia muito elogiados por conhecedores: Evoé! e Da vida
santa. O encontro aconteceu da seguinte maneira:
Na Residência, vivia um senhor idoso e rico, Conselheiro
do Governo, que, desde que deixara o serviço público, se
recolhera à sua aposentadoria, dedicando sua vida ao fomento
das belas-artes, especialmente da poesia. Era o fundador da
instituição conhecida como Torneio de Maio, concurso de poe-
sias que se repetia anualmente na primavera, e para o qual o
Conselheiro convidava poetas e poetisas do país inteiro, através
de circulares e anúncios. Concediam-se prêmios à mais delicada
canção de amor, à mais devota poesia religiosa, ao mais fogoso
cântico patriótico, às mais exatas realízações literárias em lou-
vor da música, da floresta, da primavera, da alegria de viver
- os prêmios eram, além de dinheiro, lembranças valiosas e
significativas, como plumas ou broches de ouro, em forma de
163
flor ou lira, e coisas assim. Também a Prefeitura da Residência
concedia um brinde, e o Grão-Duque dava um cálice de prata
como prêmio ao melhor de todos os poemas enviados. O pró-
prio criador do Torneio de Maio, que dava a primeira olhada
na volumosa matéria, assumia o papel de júri, juntamente com
dois professores umversitários e os redatores literários do
Mensageiro e do Jornal do Povo. Os textos premiados e os que
recebiam menções honrosas eram anualmente publicados como
livro do ano, à custa do Conselheiro.
Naquele ano, Axel Martini participara do Torneio de Maio
e se saíra vencedor. O poema que apresentara, um entusiástico
louvor da alegria de viver, ou melhor, uma manifestação tem-
pestuosa dessa alegria, um hino arrebatador à beleza e ao medo
de viver, tinha o estilo de seus dois livros, e causara dissensão
entre os juízes. O próprio Conselheiro e o Professor de Filolo-
gia tinham desejado livrar-se dele apenas com menção honrosa;
pois acharam-no desmedido na expressão, de uma paixão crua,
e em algumas passagens diretamente escandaloso. Mas o Pro-
fessor de História da Literatura, junto com os redatores, haviam-
nos derrotado, não apenas porque a colaboração de Martini
era o melhor poema sobre a alegria de viver, mas porque era
a melhor de todas, e por fim os dois adversários não puderam
mais furtar-se à impressão daquela espumante e atordoante ca-
choeira de palavras.
Portanto, Axel Martini ganhara 300 marcos, um broche
de ouro em forma de lira e, ainda por cima, o cálice de prata
do Grão-Duque, e seu poema apareceu em primeiro lugar no
Livro do Ano, emoldurado pela mão de artista do Professor
von I,indemann. Mas aconteceu ainda que, segundo o costume,
o vencedor (ou vencedora) no Torneio de Maio era recebido
em audiência pelo Grão-Duque; e, como Albrecht estivesse ado-
entado, foi seu irmão quem recebeu Martini.
Klaus Heinrich tinha algum medo dele.
164
- Meu Deus, Dr. Überbein = disse num breve encon-
tro com seu professor -, que vou fazer com ele? É com cer-
tc za um homem meio doido e despudorado.
Mas o Dr. Überbein respondeu:
- Nada disso, Klaus Heinrich, não se preocupe! É um
h menzinho bem-comportado. Eu o conheço, freqüento um pou-� �
c os círculos dele. Vai se dar muito bem com ele.� �
Assim, Klaus Heinrich recebeu o poeta da alegria de viver
rn Eremitage, para dar ao fato um caráter bastante privado.�
- Na Sala Amarela, caro Braunbart - disse ele. - É a
mais apresentável em casos como este.
Havia nesse aposento três belas cadeiras que eram a única
mobília valiosa do pequeno castelo, pesadas poltronas império,
m n mogno, com braços em forma de caracol e forro amarelo
cwm bozdado de litas vetde-azuladas. Klaus Heinrich não ape-
n.ts se preparou para essa audiência, mas esperou um pouco
izquieto na sala ao lado, até Axel Martini ter esperado uns�
sis, oito minutos na Sala Amarela. Então, entrou vivamente,��
#
cuase apressado, e caminhou até o poeta, que se curvou pro-�
f undamente.
- Tenho grande prazer em conhecê-lo - disse Klaus
1 einrich - caro. . . senhor doutqr, não?�
- Não, Alteza Real - respondeu Axel Martini com voz
le asmático -, não sou doutor, não tenho títulos.�
- Ah, perdão. . . achei que. . . Vamos nos sentar, caro
`sr. Martini. Como já disse, é um prazer poder congratulá-lo por
eu grande sucesso. .�
Os cantos da boca do Sr. Martini repuxaram-se para baixo.
entou-se na beira de uma das poltronas de mogno diante da�
nesa despida, ao redor de cuja tampa corria uma listinha de
>uro, e cruzou os pés metidos em botinas de verniz rachado.�
'stava de fraque e usava luvas de glacê amareladas. O colari-�
nho estava puído nas pontas. Tinha olhos um tanto pasmados,
aces magras e bigode louro-escuro, aparado como uma sebe.
eu cabelo era grisalho nas têmporas, embora, segundo o Livro�
16�
do Ano do Torneio de Maio, não tivesse mais de 30 anos, e
por baixo dos olhos ardia um rubor que não indicava boa
saúde. Ele respondeu às felicitações de Klaus Heinrich:
- Vossa Alteza Real é muito bondoso. Não foi uma vi-
tória difícil. Talvez nem tivesse sido muito delicado, de minha
parte, participar desse concurso.
Klaus Heinrich não compreendeu, mas disse:
- Li seu poema várias vezes com prazer. Parece-me ex-
celente, tanto na métrica quanto na rima. E expressa perfeita-
mente o prazer de viver.
O Sr. Martini fez uma mesura, mesmo sentado.
- Sua habilidade - prosseguiu Klaus Heinrich - deve
dar-lhe muito prazer . . . um belo passatempo . . . Qual a sua pro-
fissão, Sr. Martini?
O Sr. Martini deu demonstrações de não entender, seu
corpo formou um ponto de interrogação.
- Quero dizer, sua profissão. É funcionário público?
- Não, Alteza Real. Não tenho profissão. Ocupo-me só
de poesia. . .
- Nenhuma. . . ah, entendo. Um talento tão excepeional
merece que lhe dedique todas as forças.
- Não, sei, Alteza Real. Se vale a pena, não sei. Devo
confessar que não tive escolha. Sempre me senti totalmente
incapaz para qualquer outra atividade humana. Parece-me que
essa indubitável e total incapacidade para todo o resto é a única
prova e comprovante da vocação para a poesia, sim, que na
poesia, em verdade, não se deve ver uma vocação, apenas a
expressão e o refúgio dessa incapacidade.
O Sr. Martini tinha uma singularidade: ao falar, vinham-
lhe lágrimas aos olhos, como uma pessoa que sai do frio e
entra numa sala quente, e então se deixa inundar de calor.
- Concepção singular - disse Klaus Heinrich.
- Não, Alteza Real. Peço que m perdoe. Não, não é�
singular. É bem aceita. Não digo nenhuma novidade.
166
s, e�
- E desde quando vive só da poesia, Sr. Martini? Es-
boa
tudou, antes disso?
a vi- - Não regularmente, Alteza Real. Não, a incapacidade que
inha mencionei começou a se mostrar muito cedo em mim. Não
concluí a escola. Deixei-a, sem fazer os exames finais. Fui à
Universidade sob a promessa de fazer esses exames depois, mas
não consegui. E como meu primeiro livro de poesias fosse muito
° ex- comentado, por fim também não fazia mais sentido, se me per-
veita- mite falar assim. . .
- Não, não. . . Mas seus pais concordaram com sua vida?
- Não, Alteza Real. Posso assegurar, para a honra de
deve meus pais, que não concordaram em absoluto. Sou de boa fa-
pro- mília. Meu pai era Procurador do Estado. Morreu, mas era
Procurador. Naturalmente, aprovava tão pouco minha vida que
seu até morrer me negou qualquer ajuda. Vivi de relações cortadas
#
com ele, embora respeitasse muito seus severos pontos de vista.
- Ah, então o senhor passou dificuldades, Sr. Martini,
ie só teve de lutar pela vida. 1'osso imaginar que tenha tido muitas
experiências!
ional , - Não, Alteza, não foi assim, teria sido muíto grave, não
o teria suportado. Minha saúde é delicada. . . não devo dizer
Devo "infelizmente" porque estou convencido de que meu talento se
nente liga inseparavelmente à minha fraqueza física. Fome e vida dura
v que são coisas que meu corpo e meu talento não teriam agüentado,
única e não tiveram de agüentar. Minha mãe, por fraqueza, me aju-
ie na dava sem que meu pai soubesse, e me deu meios de viver,
nas a modestos, mas suficientes. A ela devo o fato de meu talento
ter podido desenvolver-se em condições bastante brandas.
iham- - Caro Sr. Martini, seu sucesso demonstra que foram as
rio e condições certas. Embora seja difícil dizer o que são boas con-
calor. dições. Vamos presumir que a senhora sua mãe tivesse sido
tão severa quanta seu pai, e o senhor ficasse só no mundo, de-
ão é pendendo inteiramente de si e de sua capacidade. . . Não acha�
que isso teria ajudado um pouco? Que teria tido experiências
que lhe foram negadas?
167
- Ah, Alteza, pessoas como eu têm experiências suficien-
tes mesmo sem terem de passar fome. Hoje em dia, aceita-se
o conceito de que não é da fome de verdade que o talento
precisa, mas da fome da verdade . . . eh, eh, eh.
O Sr. Martini riu um pouco com seu próprio jogo de pa-
lavras. Pôs depressa a mão enluvada diante da boca com aquele
bigode de sebe, e corrigiu o riso, passando a um pigarro. Klaus
Heinrich o encarava em amável expectativa.
- Se Vossa Alteza permite. . . é um conceito bem-divul-
gado o de que a renúncia à realidade é o solo nutritivó de todo
talento em gente da minha espécie, a fonte de todo fervor. Na
·verdade, é o que estimula nosso gênio. O prazer da vida nos�
é estritamente vedado, não nos iludimos quanto a isso. . . nosso
prazer da vida não é apenas a felicidade, mas a preocupação,
a paixão. Em suma, toda ligação mais séria com a vida. Repre-
sentar a vida exige todas as nossas forças, especialmente quando
não são muito abundantes . . . - O Sr. Martini tossiu, e seus
ombros foram várias vezes repuxados para diante. - A renún-
cia - acrescentou - é nosso pacto com a Musa, nela repousa
nossa força, nossa dignidade, e a vida é nosso jardim proibido,
nossa grande tentação, à qual sucumbimos, por vezes, mas ja-
mais para o nosso bem.
Mais uma vez, os olhos do Sr. Martini se haviam inun-
dado de lágrimas durante aquela fala tão fluente. Procurou
espantá-las, piscando.
- Cada um de nós - disse ainda - conhece esses
erros e descaminhos, essas incursões ansiosas pelos salões de
festas da vida. Mas voltamos para nosso isolamento, humildes
e de coração nauseado.
O Sr. Martini calou-se. Seu olhar, debaixo das sobrance-
lhas umdas, ficou momentaneamente hirto, por um instante per-
dido no vazio, a boca assumiu uma expressão azeda, e as faces,
com aquele rubor doentio, pareceram ainda mais magras. Foi
só por um segundo; depois, ele mudou de postura, e seus olhos
voltaram à realidade.
168
ien- - Mas seu poema - disse Klaus Heinrich com certa
a-se insistência. - Seu louvor ao prazer de viver, Sr. Martini! . . .
·nto Fico realmente agradecido por suas explicações. Mas poderia
me dizer. . . seu poema, eu o li com atenção. Trata, de um
pa- lado, da miséria e dos horrores, da crueldade e da maldade da
uele vida, se me lembro bem, e de outro lado dos prazeres do vinho
laus ` ?
e das belas mulheres, não é
O Sr. Martini sorriu; depois, esfregou os cantos da boca
vul- com o dedo médio e o polegar para remover o sorriso.
odo
- Tudo isso - disse Klaus Heinrich - escrito na pri-
Na
#
meira pessoa, não é? E mesmo assim não se baseia em experiên-
nos cias pessoais? Realmente não viveu nada daquilo?
osso
- Muito pouco, Alteza Real. Na verdade, mínimas alu-
ição,
sões de tudo aquilo. Não, a coisa é inversa, se eu fosse homem
:pre-
de viver tudo aquilo, não só não teria escrito aqueles poemas
ndo�
como desprezaria minha vida atual. Tenho um amigo chamado
seus
Weber. Homem moço e rico, que vive e aproveita a vida. Sua
nún-
ousa diversão predileta é disparar pelo interior a toda velocidade com
odo seu automóvel, escolhendo camponesas dos campos e das es-
,
' tradas, e com elas . . . mas não devo dizer isso aqui. Em suma,
s ja-
esse rapaz ri quando me vê de longe, tão engraçado me acha,
a mim è à minha atividade. Quanto a mim, entendo perfeita-
nun-
mente sua hilaridade e tenho invejá dele. Posso dizer que tam-
urou
bém o desprezo um pouco, mas não tão sinceramente quanto
o admiro, e invejo. . .
esses
- O senhor o admira?
a de
uldes - Sim, Alteza. Não o posso evitar. Ele gasta, desperdiça,
larga-se constantemente de maneira despreocupada e alegre. . .
ance- enquanto eu tenho de poupar, controlar-me, medroso e avarento,
per- por motivos higiênicos. Pois é de higiene que gente como eu�
=aces, precisa em primeiro lugar . . . ela é a nossa moral. Mas nada é
. Foi mais anti-higiênico do que a vida. . .
olhos - Então nunca vai esvaziar o cálice do Grão-Duque,
,
Sr. Martini?
169
- Tomar vinho nele? IJão, Alteza. Embora fosse um�
elo gesto. Mas não bebo vinho. Vou para a cama às 10h e vivo�
com muíto cuidado em tudo. Ou jamais tería ganho esse cálice.
- Deve ser isso, Sr. Martini. Decerto, quem vê de longe
imagina mal a vida de um poeta.
- É compreensível, Alteza. Mas não é, de modo geral,
uma vída muíto admirável, asseguro, especialmente porque não
somos poetas a qualquer hora. Para que, de tempos ern tempos,
se faça um poema. . . ninguém acredita quanta indolência, tédío
e ôcio arnargurado são necessários para isso. Um cartãa-postal
ao fornecedor de charutos é, às vezes, a única realização de um
dia. A gente dorme muito, fica vadiando por aí com a cabeça
pesada. Sim, muitas vezes é uma vida de cão. . .
Alguém bateu de leve na porta branca, do lado de fora.
Era sinal de Neumann de ser mais do que hora de Klaus Hein-
rlch mudar de roupa e repousar. Pois naquela noite havia con-
certo no Castelo Velho.
Klaus Heínrich levantou-se.
- Falei demais - disse ele; pois era a fôrmula que
usava nesses momehtos.
Depoís, despediu-se do Sr. Martini, desejou-lhe sucesso
em sua carreira de poeta e acompanhou o recuo respeitoso do
artista com um sorriso e aquele gesto um pouco teatral, de
magnânima saudação, de cima para baixo, que nem sempre
saía igualmente belo, mas que agora fora perfeito.
Foí essa a conversa do Príncipe com Axel Martíní, autor
de Evoé! e A vida sata. Ela lhe deu o que pensar, não parou�
de se ocupar dela na despedida. Ainda enquanto Neumann lhe
renovava o penteado e lhe vestia o faiscante casacv de gala,
com estrelas, ainda enquanto assistia ao concerto na Corte,
sim, vários días depois aínda pensava nela e procurava ligar
as palavras do poeta com as outras experiências que a vida
#
Ihe negara.
Esse Sr. Martini, que, enquanto aquele rubor doentio co-
bria suas faces encovadas, exclamava constantemente: "Como é
170
be a e forte a vida! ", mas que ia cuidadosamente para a cama
11 ás lUh, e, pOr mOtIVOS hlgl2nICOS, COmO dlZld, Se eXCIuÍa Qíl
'° vi a e evítava qualquer ligação séría com ela, esse poeta de�
cu rinho puído, olhos lacrimejantes e inveja do jovem Weber�
y:: disparava pelo campo com jovens camponesas: ele desper-
ta, a sensações contraditórias, era difícil ter uma opinião firme
l, a eu respeito. Klaus Heinrich expressou isso dizendo, ao con-�
ta ï sobre o encontro para a írmã:
s,�
- Ele não tern vida cômoda e fácil, a gente o nota, e
io
isa depõe em favor dele. Mas não sei se me devo alegrar por��
a
tc io conhecido, pois ele tem algo de desalentador, Ditlinde;
m
síi n, apesar de tudo isso, é realmente um pouco repulsivo.
171
IMMA
\ Srta. von Isenschnibbe estava bem-informada. Ainda na noite�
'o dia em que trouxera a grande novidade á Príncesa von Ried,�
" Mensageiro publicou a notícia da iminente chegada de Sa-
nuel Spoelmann, o famoso Spoelmann, e uma semana e meia�
,
lepois, no começo de outubro (foi outubro do ano em que o�
Grão-Duque fez 32 anos e o Príncípe Klaus Heínrich, 26) -
portanto, a curiosidade pública mal tivera tempo de chegar ao
auge - aconteceu essa chegada. Foi um acontecimento bem
simples, num dia de semana encoberto, outonal, inaparente, que
no futuro seria, porém, uma data extraordínariamente notável.
Os Spoelmann chegaram num trem extra - de momento,
a magnificência de sua aparição limitou-se a isso; pois todo O
mundo sabia que os "aposentos dos príncipes" no hotel Quellen-
hof não eram pomposos. Um público ocioso, vigiado por al-
guns policiais, postava-se atrás da barreira, na plataforma; havia
representantes da imprensa. Mas quem esperara algo de inco-
mum decepeionou-se. Spoelmann quase não foi reconhecido, tão
comum parecia. Por muito tempo pensaram que ele fosse seu
médico, o Dr. Watercloose - diziam que se chamava assim -,
um americano comprido, que, chapéu na nuca, ria sem parar,
brandamente, entre as suíças brancas e aparadas, fechando os
olhos. Só no último momento viram que o baixinho, barbeado,
com paletó de cores feias, que, ao contrário, tinha o chapéu
173
enterrado na testa, é que era o verdadeiro Spoelmann. E os
espectadores concordaram em que não era nada notável. Dele
se diziam coisas fantásticas. Algum brincalhão divulgara o boato,
que fora mais ou menos aceito como verdade, de que Spoelmann
tinha todos os dentes da frente de ouro, e no meio de cada
um deles um brilhante incrustado. No entanto, embora não se
pudesse provar logo a veracídade ou inverdade dessas afirma-
ções, pois Spoelmann não mostrou os dentes, não ria, parecendo
aborrecido e irritado com a enfermidade -, vendo-o ninguém
mais acreditava naquilo. Quanto a Miss Spoelmann, filha dele,
tínha levantado bem a gola de seu casaco de peles, as mãos
enfiadas nos bolsos, de modo que quase nada se via dela, além
de um par de olhos castanhos, quase pretos, incrivelmente gran-
des, que olhavam aquela multidão numa linguagem séria, fluen-
te, mas que poucos entenderam. Ao seu lado estava a persona-
lidade que se reconheceu como sua dama de companhia, a
Condessa Lõwenjoul, mulher de 35 anos, vestida com simpli-
cidade, a cabeça mais alta do que os dois Spoelmann. De ca-
belos ralos e lisos, bem repartidos, sua cabeça ficava um pouco
torta e seu olhar era fixo, com uma suavidade hirta. Sem dü-
vida, foi o cão pastor escocês o que mais atraiu as atenções,
levado pela correia por um criado com cara inexpressiva de
escravo - um anímal extraordinaríamente bonito, mas também
#
extraordinaríamente ínquieto, que encheu a gare com seus la-
tidos, tremendo e saltítando.
Dizia-se que alguns dos criados de Spoelmann, homens e
mulheres, haviam chegado algumas horas antes ao Quellenhof.
Mas o criado do cachorro teve de cuidar das bagagens sozinho;
e, enquanto tratava disso, seus amos seguiram em duas carrua-
gens simples - o Sr. Spoelmann com o Dr. Watercloosé, e
Miss Spoelmann com sua Condessa - para o Jardim das Fontes.
Lá desembarcaram e, por um mês e meio, levaram uma vída
que se podería custear com bem menos dinheíro do que eles
tinham.
174
Ti,eram sorte com o tempo, os dias foram bons, um outo-� �
no azul , uma longa série de dias ensolarados de outubro a no-
vembr<. e Miss Spoelmann cavalgava diariamente - único luxo�
a que e dava -, com sua dama de companhia, em cavalos�
que haviam alugado por semana no Tattersall. O Sr. Spoelmann
não an,ava a cavalo, embora o Mensageiro houvesse divulgado,��
com d i reta alusão a ele, a notícia de que andar a cavalo era
muito I,om contra os cálculos, pois os abalos estimulavam a
ejeção ias pedras. Mas a criadagem do hotel contou que o�
famosc, homem executava diariamente uma cavalgada artificial
com a ..ijuda de um aparelho, uma bicicleta fixa, cujo selím se
movia :igorosamente manejada por pedais.�
El bebia com avidez a água curativa da Fonte Ditlinde,�
que parecia valorizar enormemente. Aparecia na fonte todos os
días, hm cedo, ao lado da filha, que era muito saudável e só��
bebia E,ara acompanhá-lo, depois andava pelos jardins dos ba-
nhos, chapéu na testa, bebendo aquela água por um canudínho
de vidro, num copo de vidro azulado. De longe, observavam-no
os doi correspondentes de jomais americanos, que precisavam�
mandar diaríamente para casa, por telegrama, mil palavras sobre
as férias de Spoelmann - portanto, precisavam conseguir as-
sunto.
1) resto, via-se muíto pouco dele. Sua doença, cólicas�
renais, como diziam, com acessos muito dolorosos, parecia pren-
dê-lo eguidamente ao quarto, se não à cama, e enquanto Miss�
Spoelmann apareceu duas ou três vezes com a Condessa no Tea-
tro da Corte (usando vestido de veludo preto e, em torno dos
ombrcs infanti.s, um pano de seda indiano de um maravilhoso�
. amarclo-ouro, muito fascinante também por causa do rostinho
pálide e dos grandes olhos negros, tão eloqüentes), seu pai nunca�
surgiu com ela no camarote. Fez alguns passeios pela Residên-
cia para realizar pequenas compras, dar uma olhada na cidade
e visiar alguns lugares interessantes. Também passeou com ela�
pelo parque da cidade, e lá visitou duas vezes o Castelo dos
,
! Delfins. Da segunda vez, foi sozinho, e seu interesse foi ao
175
ponto de medír as paredes com um simples metro amarelo que
tirou do bolso do paletó. . . Mas nenhuma vez o víram na sala
de refeíções do Quellenhof, pois, ou porque se limitava a re-
feições leves, sem carne, ou por outros motívos, comía sozinho
nos aposentos, e a curiosidade pública não teve lá muito es-
tímulo.
Aconteceu, assim, que a chegada de Spoelmann ao Jardim
das Fontes não ajudou tanto quanto a Srta. von Isenschnibbe
e muítas outras pessoas havíam esperado. Notava-se que a en-
comenda de garrafas da água crescera; cresceu muíto dpressa,�
quase metade da quantidade anterior, e permaneceu nesse nível.
Mas a visita de estrangeiros não aumentou muíto; os hóspedes
que chegavam para se alimentar com a visão daquela tremenda
existência em breve víajavam de novo, satisfeítos ou decep-
cíonados, e nem ao menos eram sempre os melhores elementos
que sua presença atraía. Apareciam nas ruas pessoas muito
estranhas, gente desgrenhada e de olhos inquíetos, inventores,
sonhadores, vendedores de felicidade, que rentavam atrair
Spoelmann para suas idéias fixas. Mas o bilíonárío não queria
saber dessa gente; sím, um deles que o quís abordar no parque
foi interpelado aos gritos. Spoelmann, a cara rubra de raiva,
#
gritou tanto que o insensato saiu depressa. Várias vezes se
afirmou que a torrente de cartas de pedintes que diariamente
chegava até ele - cartas muitas vezes corn selos que os fun-
cionários da agência de correios da Corte nem conheciam -
ia diretamente para um ímenso cesto de papéís.
Spoelmann parecia negar-se qualquer envolvimento em ne-
gócios, parecia decidido a saborear a fundo suas férias e, du-
rante essa víagem pela Europa, viver umcamente para sua saúde
- ou doença. O Mensageiro, cujos informantes se haviam apres-
sado a travar amizade com os colegas amerícanos, contava que
um homem de confiança, um chie f manager, como diziam, re-
presentava o Sr. Spoelmann além-mar. Contava também que
o iate, um navio magníficamente decorado, esperava pelo po-
deroso homem em Veneza, e que depoís de terminada a cura
176
de águas ele pretendia ir, com sua gente, para o Sul. Contou
também - e com isso veio ao encontro de uma urgente ne-
cessidade pública - das aventuras do nascimento, da fortuna
de Spoelmann, do começo na terra de Vitória, onde seu pai
saíra de algum escritório alemão, jovem, pobre e munido ape-
nas de uma picareta, uma pá e um prato de estanho. Já come-
çara como ajudante de mineração, trabalhando por dia, com o
suor de seu rosto. Depois viera a sorte. Um homem, um pe-
; queno propríetário de mina, ia tão mal de negócios que nem
podia comprar tomates e pão seco para o almoço, e por essa
grande necessidade tivera de vender a mina. Spoelmann pai
a comprara, apostara tudo o que tinha, e por toda a sua eco-
nomia, que constava de cinco libras esterlinas, adquirira aquele
pedacinho de terra de aluvião chamada "Campo Paraíso", não
maior que 12 metros quadrados. E dias depois encontrara, um
palmo e meio abaixo da superfície, uma pepita de ouro puro,
a 10.a maior do mundo, chamada "Paradise Nugget", com peso
de 980 onças e valor de 5 mil libras. . . O Mensageiro narrava
que esse fora o começo. Com o resultado de seu ouro, Spoel-
mann pai mudara-se para a América do Sul, para a Bolívia, e
continuara como lavrador de ouro, dono de um moinho de
amálgama e empresário de minas, arrancando diretamente dos
rios e do seio das pedras o metal amarelo. Naquele tempo, e
naquele lugar, Spoelmann pai se casara, e o Mensageiro deixou
escapar o comentário de que o velho o fizera desafiadoramente,
sem ligar para os preconceitos do país. Mas assim duplicara
seu capital, e soubera multiplicar de maneira inaudita a sua
fortuna. Mudara-se para o Norte, para Filadélfia, na Pensilvà-
nia. Fora nos anos 50, época de máíor crescimento das ferro-
vías, e Spoelmann começara seus negócios comprando ações da
linha Baltimore-Ohio. Também administrara, no Oeste do
Estado, uma mina de carvão muito lucrativa. Mas depois fizera
parte daquele grupo de jovens abençoados por Deus que com-
praram, por alguns milhares de libras, a famosa Blockhead-
Farm, aquela propriedadezinha que, com sua fonte de petróleo,
177
em breve valia centenas e centenas de vezes seu valor de com-
pra. . . Essa empresa enriquecera Spoelmann pai, mas nem assim
ele sossegara. Continuara exercitando sem parar a arte de pro-
duzir dinheiro com dinheiro, atingindo uma soma incrivelmente
grande. Criara indústrias de aço, formara sociedades que trans-
formavam, em grande escala, ferro em aço, construíra pontes
para ferrovías. Tinha a maioria das ações de quatro ou cinco
grandes ferrovias e, já idoso, tornara-se presidente, vice-presi-
dente, procurador ou diretor dessas empresas. Na fundação do
truste do aço, contava o Mensageiro, ele ingressara com uma
quantidade de ações que lhe garantia um lucro anual de 12
milhões de dólares. Mas era também principal acionista e con-
selheiro da União do Petróleo e, devido à sua participação como
acionista, dirigira mais três ou quatro sociedades. Ao morrer,
sua fortuna pessoal, em moeda daquele país, constava de 1
bilhão.
Samuel, seu único filho, concebido naquele casamento que
se desfízera tão cedo, de certa forma rejeitado pelos preconcei-
tos, fora seu herdeiro universal. Com muito tato, o Mensageiro
comentou que era doloroso alguém encontrar-se nessa situação
sem ter para isso colaborado, sem ter culpa. Samuel herdara
o palácio da Qui.nta Avenida, em Nova Iorque, os castelos.no
campo e todas as ações e lucros do pai, herdando também a
existência singular e aventurosa que vem da fama e do ódio
que os menos ricos devotam ao poder do dinheiro. Todo esse
ódio que ele tentava anualmente aplacar, doando imensas somas
para colégios, conservatórios, bibliotecas, instituições beneficen-
tes, e para a universidade que seu pai fundara e que levava
seu nome.
Samuel Spoelmann sofria sem culpa o ódio dos menos fa-
vorecidos, assegurava o Mensageiro. Fora introduzido cedo nos
negócios pelo pai; já nos últimos anos de vida deste, adminis-
trara sozinho as propriedades da família, que deixariam qual-
quer um desnorteado. Mas todos sabíam que seu coração nunca
estivera nessas ativídades. Sua verdadeira inclinação, estranha-
178
mente, era a música de órgão: e essa notícia do Mensageiro
pôde ser comprovada, pois Mr. Spoelmann tinha também no
Quellenhof um orgãozinho cujo fole era manejado a seu mando,
por um criado do hotel, e todo dia se podia ouvir, do parque
da estação de águas, Mr. Spoelmann tocando.
Por amor, e sem qualquer intenção comercial, disse o
Mensageiro, ele se casara com uma moça bonita e pobre, meio
alemã, meio anglo-saxônica. Ela morrera, mas lhe deixara uma
filha, essa singular mistura que tínhamos como hóspede entre
nossos muros, e que nessa época estava com 19 anos. Chamava-
se Imma - nome bem alemão, como acrescentou o Mensageiro,
apenas uma forma antiga de "Emma". Era fácil notar que em-
bora aparecessem palavras inglesas, a língua cotídiana na casa
dos Spoelmann era o alemão. Aliás, como paí e filha pareciam
se amar! Cada manhã, quem chegasse a tempo no Jardim das
Fontes podia ver a Srta. Spoelmann, que lá costumava chegar
pouco mais tarde que o pai, pegar a cabeça dele entre as mãos
e, enquanto elelhe batia ternamente nas costas, ela o beijava
na boca e nas faces. Depois, iam pela galeria passeando de
braço dado, sugando seus canudinhos. . .
Assim tagarelava o bem-informado jornal, alimentando a
curiosidade pública. Também relatava minuciosamente as visi-
tas que Miss Imma fazia amavelmente, com sua dama de com-
panhia, a várias instituições de caridade. Ontem, ela visitara
por longo tempo a escola pública. Hoje, dera um giro atento
pelo hospital de velhos Espírito Santo. Além disso, assistira
duas vezes às aulas do Conselheiro Klinghammer na Universi-
dade sobre teoria estatística - sentara-se no banco de madeira,
uma estudante entre estudantes, e anotara tudo zelosamente com
a caneta-tinteiro, pois era sabidamente uma mocinha culta, que
estudara álgebra. Sim, era uma coisa interessante de se ler, e
deu assunto para muita conversa. Mas quem se fazia comen-
tar sem ajuda do Mensageiro era o cão, aquele nobre collie
preto e branco, que os Spoelmann tinham trazido; e depois, de
outro modo, a dama de companhia, Condessa Lõwenjoul.
179
Quanto ao cachorro, chamado Percival (pronúncia inglesa),
em geral chamado Percy, era um animal de excitabilidade e
paixão indescritíveis. Dentro do hotel, não dava motivv de
queixa, mas ficava deitado em pose aristocrática sobre um
tapetinho diante dos aposentos dos Spoelmann. A cada passeio,
porém, tinha acessos de loucura que causavam confusão e es-
tranheza, mais de uma vez causando verdadeiros problemas de
trânsito. Seguido de longe por um bando de câes do lugar,
vira-latas comuns que, nervosos com seu comportamento, cor-
ríam atrás dele soltando latídos furíosos, com os quaís náo se
ímportava em absoluto, Percy, naríz respíngado de espuma, com
latidos loucos e lamentosos, disparava pelas ruas, dançava deli-
rantemente díante do bonde, fazía caír cavalos que puxavam
carruagens, e duas vezes derrubou a estante de bolos da viúva
Klaasen, na Prefeitura, com tal víolêncía que os bolos rolaram
por metade da praça. Mas como, nesses acidentes, o Sr. Spoel-
mann ou sua fílha ínterviesse ímediatamente com muíto mais
do que valeria a indenização pelo prejuízo, e como se vísse que
no fundo Percival não era perigoso, não mordia nem era bri-
guento, apenas um tanto malcomportado e amalucado, em breve
o povo começou a gostar dele; sobretudo para as crianças, os
passeios do cão eram motivo de alegria.
A Condessa LOwenjoul, de sua parte, provocava mexericos
de maneíra maís sossegada, mas não menos singular. No começo,
quando sua pessoa e posíção eram desconhecídas na cidade, eIa
provocara troça entre os menínos de rua porque, andando so �
zinha, falava consigo mesma, com ar doce e pensativo, acom-
panhando esses rnonólogos com gestos vívos, gracíosos e ele,
gantes. Mas as crianças que haviam troçado às suas costas,
gritado frases zombeteiras, puxando-lhe a saia, foram tratadas
com tanta bondade e brandura, ouviram-na falar de modo tão
doce e digno, que acabaram por deixá-la em paz, envergonha-
das e confusas; e mais tarde, quando já a conheciam, o respeite
por sua relação com os famosos hóspedes impediu que a inco-
modassem. Mas, às ocultas, corriam muitas anedotas incompre-
180
ensíveis a respeito dela. Um homem disse que a Condessa lhe
dera uma moeda de ouro, pedindo-lhe que esbofeteasse uma
velha que lhe fízera convites indecentes. O homem embolsara
a moeda de ouro, sem cumprir a tarefa. Além disso, contava-se
como sendo verdade que a Lwenjoul interpelara o guarda�
diante da caserna dos fuzileiros e lhe dissera que precisava
prender a esposa do sargento desta e daquela companhia por
crimes contra a moral. Também escrevera ao comandante desse
regimento dizendo que dentro da caserna acontecia toda sorte
de misteriosos e indescritíveis horrores. Deus sabia o que havia
de verdade nisso. Muítos deduziam diretamente que a Condes-
sa não regulava muito bem. De qualquer modo, não tiveram
tempo para analisar o caso a fundo, pois, sem que notassem,
passaram-se seis semanas e o bilionário Samuel N. Spoelmann
viajou.
. Viajou depois de se deixar pintar pelo Professor von Lin-
demann, mas doara o valioso quadro ao dono do hotel Quellen-
hof, partindo com sua filha, a Lewenjoul e o Dr. Watercloose,
com Percival, a bicicleta de quarto e sua criadagem; viajou em
trem especial, rumo ao Sul, para passar o inverno na Riviera,
onde já estavam os dois jornalistas, adiantando-se a ele. Depois,
voltaria para casa, cruzando Ooceano. Tudo estava acabado.
O Mensageiro desejou boa viagem ao Sr. Spoelmann e expres-
sou o desejo de que o tratamento lhe tivesse feito bem. Depois,
o singular incidente pareceu terminado e resolvido. O cotidiano
reclamava seus díreitos, e começaram a esquecer o Sr. Spoel-
mann .
Passou-se o inverno. Foi naquele inverno em que a Prin-
cesa zu Ried-Hohenried, Alteza Grão-Ducal, teve uma meni-
ninha. A primavera também chegou, e Sua Alteza Real, o Grão-
Duque Albrecht, foi, como de hábito, para Hollerbrunn. Mas
nisso surgiu, no públíco e na imprensa, o boato que as pessoas
calmas, no começo, receberam com um dar de ombros, mas
que Eoi assumindo forma, ínstalou-se e se revestiu de detalhes
181
bem-determinados, passando finalmente a dominar as conversas
diárias como notícia real e substanciosa.
Que estava acontecendo? Iam vender um castelo dos Grão-
Duques. Loucura. Mas que castelo? O Castelo dos Delfins,
no parque norte da cidade. Conversa de malucos? Vender? Para
quem? Spoelmann. Kidículo. Que faria com um castelo? Res-
taurá-lo e morar nele. Muito simples, mas quem sabe nossa
Assembléia ainda tem alguma palavrinha a dar sobre isso? A
Assembléia não se interessa por ísso. Acaso o Estado tinha c �
dever de manter o Castelo dos Delfins? Se fosse assim. certa-
mente aquela bela construção estaria em meihores condições.
Portanto, a Assembléia aada tinha a dizer. As negociações iá� �
estavam muito adiantadas? Realmente. Depois, foram concluídas.
:h, então já se poderia até dizer o preço certo? Mais ou menos.�
O óreço de compra era de 2 milhões. Impossível! Isso é ama
Eortuna de reis! Fortunas trocam de dono. Tratava-se dos
tzrimmburg? Do Castelo Velho? Tratava-se de um castelinhe
para diversões, um castelinho nunca usado, irremediavelmente
deteriorado pela falta de dinheiro. Então, Spoelmann pretendia
voitar todos os anos e morar por algumas semanas nos Delfins?
Não. Muito antes, pretendia mudar-se para cá definitivamente.
Estava cansado dos Estados Unidos, queria voltar-lhes as costas.
e sua primeira estada aqui conosco foi apenas uma investigação.
Estava doente, quería afastar-se dos negócios. No coração, contí-
nuava sendo alemão. O pai emígrara e o filho queria voltar para
casa. Queira participar da vida comedida, da vida íntelectual de
nossa cidade, e passar o resto dos dias bem perto da Fonte
Ditlinde!
Espanto, confusão e discussões intermináveis. Mas, com
exceção de algumas vozes de uns poucos rabugentos, depois de
vacilar um pouco, a opinião pablica entusiasmou-se pelo plano
de venda, e certamente sem essa concordâncía geral o negócio
nem teria florescido. O Ministro von Knobelsdorff fora o pri-
meiro a dar à imprensa as primeiras notícias çautelosas sobre a
oferta de Spoelmann. Esperara, deixara que a vontade do povo
182
decidisse. Depois das primeiras confusões, tinham aparecido mui-
tos motivos fortes em favor do projeto. O mundo dos negócios
irrompeu em aplausos à idéia de ver aquele poderoso comprador
sempre alí presente. Os que eram dados às belas-artes estavam
encantados com a possibilidade de ver o Castelo dos Delfins
restaurado e conservado - aquela nobre construção voltando à
honra e à juventude de maneira tão imprevista e aventuresca.
Mas os que pensavam em termos financeiros apresentavam cifras
que, devido às condições do país, tinham de causar um grande
choque. Se Samuel N. Spoelmann viesse morar conosco, seria
contribuinte, estaria obrigado a pagar, aqui, impostos sobre seus
ganhos. Quem sabe achavam que valeria a pena o esforço de
pensar um pouco no que isso poderia significar? O Sr. Spoel-
mann fícaria encarregado de avaliar-se, mas, segundo tudo o que
se sabia - com bastante exatidão, até -, aquele morador seria
fonte fiscal de 2 milhões e meio anualmente. Sem calcular os
ímpostos estatais e os da comunidade. Isso era ou não impor-
tante para nós? E fizeram essa pergunta diretamente ao Minis-
tro das Finanças, Dr. Krippenreuther. Se esse funcionário não
fizesse tudo para obter a concordância dos governantes para esse
negócio, teria esquecido seu senso de dever. Pois era um man-
damento de patriotismo aceitar a oferta de Spoelmann, para que
ele pudesse instalar-se entre nós, e qualquer receio parecia insig-
nificanté diante dessa grave obrigação.
Assim, Sua Excelência von Knobelsdorff falara com o Grão-
Duque. Já informara seu senhor sobre a opinião do povo: acres-
centara que 2 milhões eram um preço muito acima do valor do
Castelo em seu estado atual; e acrescentara que essa receita seria
um verdadeiro alívio para as finanças da Corte; e por fim falara
alguma coisa sobre o aquecimento central para o Castelo Velho,
que não seria mais impossível depois dessa venda. Em suma, o
desenvolto cavalheiro empenhara toda a sua influência em favor
da transação, e aconselhara o Grão-Duque a apresentar o caso
numa reunião de família. Albrecht sugara de leve o lábio supe-
rior com o de baixo, e convocara a reunião. Esta acontecera na
183
Sala dos Cavalheiros, com chá e biscoitos. Só dois membros
femininos, as Princesas Katharina e Ditlinde, se haviam mani-
festado contra a venda, e por motivos de dignidade.
- Vão interpretá-lo mal, Albrecht! - dissera Ditlinde. -
Vão dizer que é falta de consciência de sua nobreza, e não é
verdade, ao contrário, você tem demais, é tão orgulhoso, Al-
brecht, que para você tanto faz. Mas eu digo não. Não quero que
um Pássaro Roca more em um de seus castelinhos, não é ade-
quado, já basta que ele tenha um médico pessoal e reserve para
si os aposentos dos príncipes do Quellenhof. O Mensageiro sem-
pre diz que ele ficará sujeito aos nossos impostos, mas para
mim ele é apenas um sujeito, nada mais. O que você acha,
Klaus Heinrich?
Mas Klaus Heinrich estava de acordo com a venda. Pri-
meiro, Albrecht teria seu aquecimento central, depois, Spoel-
mann não era qualquer um, não era o saboeiro Unschlitt, era
um caso especial, e não seria vergonha entregar-lhe o Castelo
dos Delfins. Por fim, Albrecht declarara, de olhos baixos, que
no fundo toda essa reunião de família era uma "farsa". O povo
há muito decidira, seus ministros insistiam na venda, e a ele
nada restava senão voltar à estação e acenar.
A reunião de família acontecera na primavera. A partir dali,
as negociações foram efetuadas por Spoelmann e o Marechal-
da-Corte von Bühl zu Bühl, progrediram rapidamente, e o verão
não estava muito avançado quando o Castelo dos Delfins tor-
nou-se legalmente propriedade do Sr. Spoelmann, juntamente
com o parque e as construções anexas.
Começaram então o tumulto e a atividade dentro e fora
do castelo, atraindo diariamente muita gente à parte norte do
Parque Munícipal. O Castelo dos Delfins estava sendo renovado,
parcialmente reformado por dentro, com o emprego de muita
mão-de-obra. Pois tinha de ir tudo depressa, depressa, era de-
sejo de Spoelmann, ele dera apenas cinco meses de prazo para
tudo estar pronto para a sua chegada. Assim, cresceu, com rol-
danas, um andaime de madeira com escadas e plataformas em
M ,.
184
torno daquela arruinada construção de luxo, trabalhadores es-
trangeiros povoaram tudo de cima a baixo, um arquiteto com ple-
nos poderes veio do outro lado do oceano para assumir a coor-
denação de tudo aquilo. Mas a maior parte da tzrefa recaía para
nossos trabalhadores - canteiros e telheiros, marceneiros, dou-
radores, estofadores, vidraceiros, parqueteiros da Residência, pai-
sagistas e operários da calefação e da iluminação tiveram traba-
lho duro mas rendoso naquele verão e outono. Quando Sua Al-
teza Real Klaus Heinrich abria as janelas no Eremitage, os ecos
do trabalho do outro lado entravam em seus aposentos império,
e várias vezes, respeitosamente saudado pelo público, ele se fez
levar em sua sege à frente dos Delfins para se certificar dos
progressos da restauração. A casinha do jardineiro foi renovada,
os estábulos e cocheiras que receberiam as carruagens e automó-
veis de Spoelmann, ampliados; e descarregaram-se quantidades
imensas de móveis e tapetes, caixas e caixotes com tecidos e
utensílios, di.ante do Castelo dos Delfins, em outubro; enquanto
isso, espalhava-se entre as pessoas que rodeavam o Castelo que
lá dentro havia peritos instalando um valioso órgão movido a
eletricidade que Spoelmann enviara de além-mar. Estavam curio-
sos para ver se o parque do Castelo, tão magnificamente limpo
e refeito, seria fechado com uma cerca ou muro do lado do
Parque Municipal. Mas nada disso aconteceu, a propriedade con-
tinuaria acessível, a liberdade de movimentos dos moradores da
capital naquela área verde não seria limitada. Spoelmann que- �
ria assim. Até perto do Castelo, até as bem-cortadas sebes que
emolduravam o grande tanque quadrado, os que davam seus
passeios domingueiros poderiam chegar, e isso causou a melhor
impressão no povo. Sim, o Mensageiro publicou um artigo espe-
cial a respeito, louvando o Sr. Spoel.mann por essa medida tão
liberal.
E quando as folhas das árvores tornaram a cair, exatamen-
te um ano após sua primeira vinda, Samuel Spoelmann chegou
pela segunda vez à nossa estação. Agora, o público era bem
maior que no ano passado, e garante-se que, quando o Sr. Spoel-
185
mann saiu de seu vagão-sala no conhecido paletó desbotado e
chapéu na testa, soaram animados vivas da multidão: manifesta-
ções que pareceram aborrecer o Sr. Spoelmann, e que o seu
Dr. Watercloose agradeceu, repuxando a boca para os lados num
sorriso brando, olhos fechados. Também quando Miss Spoel-
mann desembarcou, soou um "viva", alguns engraçadinhos até
gritaram "oba" quando Percy, o collie, apareceu na gare, tremen-
do e saltitando, totalmente fora de si. Além do médico e da Con-
dessa Lõwenjoul, havia mais duas pessoas, desconhecidas, acom-
panhando os senhores, dois homens escanhoados de ar decidido,
com paletós singularmente amplos. Eram os secretários de Spoel-
mann, Srs. Phlebs e Slíppers, conforme noticiou o Mensageiro.
Naquele tempo, o Castelo dos Delfins ainda estava longe cle
ficar pronto, e os Spoelmann foram morar no primeiro andar do
hotel da Residência, onde um homem grande, barrigudo e orgu-
lhoso, mordomo ou camareiro de Spoelmann, que chegara antes
deles, arranjara tudo e instalara pessoalmente a bicicleta fixa.
Diariamente, quando Miss Imma saía a cavalo com a Condessa e
Percy, óu visitava :nstituições de caridade, o Sr. Spoelmann fica-
va em sua casa para vigiar os trabalhos e dar ordens; e, quando
o ano chegava ao fim, logo depois de cair a primeira neve, tude
se tornou realidade, os Spoelmann finalmen.te se mudaram para
o Castelo dos Delfins. Dois automóveis (tinham chegado recente-
mente veículos magníficos, impelidos por forças gígantescas com
um leve ronco metálico) levaram as seis pessoas - pois no
segundo estavam os Srs. Phlebs e Slippers -, dirigidos por
motoristas vestidos de couro, ao lado dos quais se sentavam
criados, de braços cruzados, em mantos de pele brancos -
levavam poucos minutos do hotel da Residência ao Parque Mu-
nicipal e, quando os carros dispararam pela imponente alameda
de castanheiros que desembocava na rampa diante do Castelo,
os meninos do povo penduraram-se nos altos lampiões erguidos
nos quatro cantos do tanque, agitando os gorros e grítando. . .
Assim, Samuel Spoelmann e sua gente se estabeleceram
entre nós, e sua presença tornou-se um hábito simpático a todos.
186
Viam-se e se reconheciam na cidade seus criados vestidos de
branco e dourado, como se viam e conheciam os lacaios vesti-
dos de castanho e dourado do Grão-Duque; o negro vestido de
veludo bordô, postado como porteiro diante do portal dos Del-
fins. em breve se tornou figura popular e ouando se dassava�
pelo Castelo, a passeio, oiwindo som abafado do círgão do Sr.�
Spoelmann lá dentro, erguia-se üm dedo dizendo: "Ouça. está
tocando. Então. no momento. nã sente cólicas." niariamente.�
wia-se Miss Imma ao lado a C;ondessa Lowenjoul. seguida de��
seu cavalariço e rodeada por Percv, que iatia e saltava passean-
do a cavalo ou dirigindo pessoalmente uma magnífica carruagem
pelo parque, enquanto o críado, na traseíra do leve veículo. de
tempos em tempos se erguia, tirava do casaco de couro uma
trombeta de prata, e anunciava sonoramente a aproximação; e
quem se levantasse cedo podia ver, todas as manhãs, pai e filha
,
num cupê laqueado de vermelho-escuro, ou, em áias bonitos
a pé, dirigindo-se ao Jarãim das Fontes, para beber da água.
(?uanto a imma, como se isse, eia retomou suas visitas às ins-��
tituições beneficentes da cdade, mas não pareceu descuidar-se�
rlos estudos, pois desde o começo do ano letivo freqüentava
regularmente as conferências do Conse!heiro Klinghammer. na
Universidade . . sentava-se todos os dias, de vestido preto, gola
punhos brancos, entre os jovens no auditório, e com o indica-�
dor recurvado - era assim que fazia - dirigia a caneta-tintei-
ro sobre o caderno colegial. Os Spoelmann viviam retirados,
não freqüentavam ninguém na cidade, o que a enfermidade do
Sr. Spoelmann explicava, como explicava seu isolamento em
assuntos de negócios. A que grupo empresaral se teria ligado?�
Ninguém imaginava que tivesse intimidades com o saboeiro Un-
schlitt ou o diretor de banco Wolfsmilch. Aos poucos, as pes-
soas se aproximaram dele com pedidos endereçados à sua gene-
rosidade, e ninguém foi repelido. Pois, como se sabia, o Sr.
Spoelmann, antes de sair dos Estados Unidos, transferira às
autoridades responsáveis pelo ensino público daquele país gran-
de soma em dólares, e assegurara que sua doação anual à Uni-
187
versidade Spoelmann e aos demais institutos culturais não seria
esquecida. Pouco depois de vir para os Delfins, doou 10 mil
marcos ao Hospital Infantil Dorothea, para o qual estavam pe-
dindo doações - atitude que o Mensagei"o e o restante da im-�
prensa louvaram com fervor. Sim, embora os Spoelmann vives-
sem socialmente reclusos, sua vida, desde a primeira hora, teve
certo caráter público entre nós; pelo menos na parte local dos
diários, sua vida era seguida com tanta atenção quanto a dos
membros da casa dos Grão-Duques. O público foi informado
quando Miss Imma e os Srs. Phlebs e Slippers jogaram um par-
tida de tênis no parque dos Delfins, todos souberam quando ela
foi ao teatro, quando seu paí foi junto, para assistir a um ato
e meio de uma ópera. E se o Sr. Spoelmann fugia da curiosidade,
se durante os interval.os no teatro jamais deixava seu camarote,
e quase nunca andava a pé nas ruas, mesmo assim não igno-
rava totalmente que uma vida extraordinária implica certo dever
de expor-se, e fazia suas concessões ao desejo do público. O
parque dó Castelo dos Delfins sabidamente não fora separado
do Parque Municipal. Nenhum muro apartava o Castelo do mun-
do. Dos fundos, podia-se chegar pelos gramados até perto da
base do amplo terraço coberto que fora construído lá, e quem
fosse atrevido, podia olhar, pela grande porta de vidro, direta-
mente para o grande jardím de inverno, branco e dourado, onde
o Sr. Spoelmann e os seus tomavam o chá das 5h. Sim, quando
chegou a mais bela estação do ano, as horas de chá eram passa-
das lá fora, no terraço, e, como num palco, ficavam então o Sr.
e a Srta. Spoelmann, a Lõwenjoul e o Dr. Watercloose, em mo-
dernas cadeiras de vime, bebendo seu chá publicamente. Pois
aos domingos, pelo menos, jamais faltava o público, que saborea-
va o espetáculo a respeitosa distância. Apontavam uns para os
outros a grande chaleira de prata, que - coisa que nunca se
vira - era aquecida eletricamente; e as maravilhosas librés dos
dois criados que transportavam xícaras e doces; fraques bran-
cos, de colarinho alto, com galões de ouro que, na gola, nas
mangas e na bainha, eram ornados de plumas de cisne. Todos
188
escutavam a conversa em inglês, seguindo, boquiabertos, cada
movimento daquela singular família lá no alto. Depois, passa-
vam diante do portal principal para gritar algumas piadas em
dialeto para o mouro, com seu veludo bordô, que ele respondia
com sorrisos de dentes alvos . . .
Klaus Heinrich viu Imma Spoelmann pela primeira vez num
alegre dia de inverno, ao meio-dia em ponto. Não se diz com
isso que já não a tivesse avistado algumas vezes antes, no tea-
tro, na rua, no parque. Mas era coisa diferente. Naquele meio-
dia, ele a viu pela primeira vez, e em circunstâncias bem ani-
madas.
Dera audiência pública até as 11h30min no Castelo Velho.
e depois não voltara imediatamente ao Eremitage, mas man-
dara o cocheiro esperar num dos pátios, enquanto ele queria
fumar um cigarro com o oficial de serviço dos Granadeiros. Co-
mo usasse o uniforme desse Regimento, ao qual também perten-
cia seu ajudante pessoal, esforçava-se por dar certa aparência de
camaradagem com os oficiais, por vezes comia em seu cassino e,
de tempos em tempos, fazia-lhes companhia, embora suspeitas-
se obscuramente que incomodava um pouco, impedindo os ca-
valhéiros de jogarem cartas e contarem piadas indecentes. Por-
tanto, com a estrela de prata convexa da Grande Ordem de
Grimmburg no casaco do uniforme, a mão esquerda bem atrás
no quadril, estava parado junto do Sr. von Braunbart-Schellen-
dorf, que avisara em tempo daquela visita, na sala de guarda
dos oficiais, que ficava no térreo do Castelo, bem perto do Por-
tão Albrecht. E mantinha uma conversa inócua com dois ou três
cavalheiros no meio da sala, enquanto outro grupo de oficíais
conversava numa janela com nicho fundo. Como o sol estivesse
tão forte lá fora, tinham aberto a janela, e da caserna subia,
pela Albrechtsstrasse, a música e o ritmo da marcha dos solda-
dos que vinham para a troca de guarda. A igreja da Corte deu
12h. Ouviu-se lá fora o suboficial gritar, com voz rouca, o seu
"Chegaram!" na sala dos soldados; ouviram o tropel dos gra-
nadeiros que pegavam suas arïnas. O público juntava-se na pra-
189
ça. O tenente em comando afivelou a espada, juntou os calca-
nhares diante de Klaus Heinrich e saiu. De repente, o Tenente
von Sturmhahn, que olhara pela janela, chamara com aquela falsa
intimídade que reinava entre Klaus Heinrich e os oficiais:
- Que diabo, Vossa Alteza quer ver uma coisa bonita?
Aí vem a Spoelmann com seu livro de álgebra debaixo do
braço . . .
Klaus Heinrich aproximou-se da janela. Miss Imma vínha
a.pé, e sozinha, da direita, andando pela calçada. As duas mãos
no seu grande regalo que parecia umá bolsa, com a parte com-
prida coberta de rabinhos, trazia, debaixo de um braço, o cader-
no coiegial. Usava casaco comprido feito de lustrosa pele de rabo
de raposa, e gorro da mesma pele na estranha cabecinha escura.
Obviamente, vinha dos Delfins para a Universidade. Chegou
diante da guarda principal no momento em que os homens da
troca marchavam pela sarjeta diante dos guardas, que ocupa-
vam a calçada em dois grupos, com as armas empunhadas. Ela
teria de voltar, necessariamente, rodear a banda de música e a
multidão de espectadores, se quisesse evitar a praça com seu
bonde, e fazer um desvio bem grande sobre a calçada. Ou teria
de esperar que terminassem a manobra militar. Ela não pareceu
decidir-se por qualquer das duas coisas. Mas fez menção de
atravessar entre as filas de homens sobre a calçada, diante do
Castelo. O suboficial de voz rouca saltou:
- Não pode passar! - berrou, e segurou diante dela a
coronha da carabina. - Aqui. ninguém passa! Volte! Espere!
Mas a Srta. Spoelmann ficou zangada:
- Que é que está pensando? - exclamou. - Estou atra-
sada!
Essas palavras pouco disseram, comparadas com o tom de
sincera, apaixonada e irresistível ira com que foram pronun-
ciadas. Como era pequena e singular! Aqueles soldados louros
entre os quais se postava eram uma cabeça e meia mais altos.
O rostinho dela estava pálido como cera naquele momento, suas
sobrancelhas pretas formavam sobre o nariz uma funda e expres-
190
siva ruga de raiva, as narinas de seu pequeno narizinho estavam
bem abertas, e os olhos, muito grandes e negríssimos pela exci-
tação, falavam numa linguagem tão eloqüente e arrebatadora que
não parecia haver como objetar.
- Que é que está pensando? - gritou ela. - Eu tenho
pressa! - E com a esquerda empurrou de lado a carabina e o
militar, atônito, e passou entre as fileiras. Seguiu seu caminho,
diretamente em frente, dobrou à esquerda na rua da Universi-
dade e sumiu.
- Diabos! - gritou o Tenente von Sturmhahn. - Que
bela coisa!
Os oficiais na janela riam. Também os espectadores lá fora
se divertiam muito, e sua alegria parecia aprovar a atitude da
moça. Klaus Heinrich acompanhou a alegria geral. A troca efe-
tuou-se sob vozes de comando e sons de marcha. Klaus Hein-
rich voltou ao Eremitage.
F'ez sua refeição sozinho, à tarde deu um passeio a cavalo
no seu castanho Florian, e passou a noite, num grupo grande
na casa do Ministro das Finanças, Dr. Krippenreuther. Contou
a várias pessoas, com voz divertida, o acontecimento ocorrido
diante da guarda do Castelo, e elas ficaram encantadas pelo re-
lato, embora a história logo fosse dívulgada, caindo no conhe-
cimento geral. No dia seguinte, ele teve de viajar, pois seu irmãc
o encarregara de representá-lo na festa de inauguração da nova
Prefeitura na cidade vizinha. Por alguma razão, ele foi a contra-
gosto, e só com relutância saiu da Residência. Era como se dei-
xasse para trás algum assunto importante, feliz, embora inquie-
tante, que exigia urgentemente sua presença. Mas sua nobre
vocação era o mais importante. Contudo, enquanto ele se sen-
tava, firme e com roupagem brilhante na cadeira de honra na
tribuna, e o Prefeito fazia seu discurso, Klaus Heinrich não
prestava atenção apenas à impressão que o povo estava tendo
dele, mas se interessava interiormente por aquele assunto novo
e urgente..Pensou também, de passagem, numa pessoa que há
longos anos conhecera brevemente, uma certa Srta. Unschlitt,
191
filha do saboeiro . . . lembrança que de certa forma se ligava
àquele assunto premente.
Imma Spoelmann empurrara de Iado o suboficial rouco,
cheia de fúria, e, sozinha, sua álgebra debaixo do braço, passa-
ra pela alameda formada por granadeiros altos e louros. Como
estava pálido seu rostinho contra o cabelo negro debaixo do
gorro de pele, e como eram eloqüentes os seus olhos! Ninguém
se parecia com ela. Seu pai, podre de rico, comprara simples-
mente um castelo da Coroa. O que dissera o Mensageiro sobre sua
involuntária fama mundial e o "aventuresco isolamento de sua
vida"? Ele atraía o ódio da multidão menos favorecida . . . fora
mais ou menos isso. De resto, as narinas dela tinham ficado in-
fladas de indignação. Ninguém se parecia com ela, ninguém.
Era um caso especial. E se naquela vez tivesse estado no Baile
Municipal? Ele teria tido uma companheira, não se teria desen-
caminhado e a noite não teria acabado em insultos e vergonha.
"Pra baixo, pra baixo com ele!" Que nojo. Quero lembrar mais
uma vez a moça andando entre os soldados louros, tão pálida,
cabelo preto, estranha.
Esses foram os pensamentos que Klaus Heinrich alimen-
tou nos dias seguintes - só essas três, quatro fantasias. E na
verdade era de espantar como rendiam, sem que desejasse outra
coisa. Mas lhe parecia muito desejável voltar a ver logo aquele
rostinho branco.
A noite, ele foi ao teatro, onde apresentavam a ópera A
f lauta mágica. E qnando, de seu camarote, avistou a Srta. Spoel-
mann junto da C'ondessa Lüwenjoul, na primeira galeria, assus-
tou-se até o fundo do coração. Durante o espetáculo, pôde con-
templá-la na sombra, com seu binóculo, pois a luz do palco in-
cidia sobre ela. Imma apoiava a cabecinha na mão esguia, sem
jóias, o braço nu pousado à vontade na balaustrada de veludo,
e não mais parecia zangada. Usava um lustroso vestida de seda
verde-mar e um xale leve, com coloridos ramos de flores bor-
dados; no pescoço e no peito, uma longa corrente de diaman-
tes que faiscavam. Não era, afinal, tão pequena quanto pare-
192
cera, achou Klaus Heinrich quando ela se levantou, no final do
ato. Não, o feitio infantil de sua cabecinha e a estreiteza dos
ombros morenos é que a faziam parecer uma menina. Os bra-
ços eram bem-formados, e via-se que praticava esportes e mane-
java a rédea dos cavalos.
Quando chegou o diáloge "Ele é um Príncipe. É mais que
isso", Klaus Heinrich sentiu vontade de conversar com o Dr.
Überbein. Este apareceu por acaso no Eremitage no dia seguinte,
de casaco preto e gravata branca, como sempre que visitava
Klaus Heinrích. Este lhe perguntou se já oúvira a história da
guarda. Sim, respondeu Überbein, ouvira várias vezes. Mas se
Klaus Heinrich quisesse contar de novo . . .
- Não, se a conhece - disse este, decepeionado.
Então, o Dr. Überbein falou sobre um assunto totalmente
diferente: começou a falar de binóculos de ópera, e acentuou
que eram um invento excelente. Traziam para perto o que ficava
longe, não é? Armavam pontes em direção a objetivos bem
agradáveis. O que Klaus Heinrich achava disso? Este estava in-
clinado a concordar vagamente. Aliás, contava-se que ontem à
noite ele usara generosamente esse belo invento, disse o doutor.
Klaus Heinrich não compreendeu. O doutor disse:
- Olhe, Klaus Heinrich, escute, assim não dá. As pessoas
olham para você olham para a pequena Imma, e isso basta.
Mas se você também fica olhando para a pequena Imma, isso
é demais. Reconhece?
- Ah, Dr. Überbein, nem pensei nisso.
- Mas sempre costuma pensar nesse típo de coisa.
- Estou me sentindo tão esquisito nos últimos dias -
disse Klaus Heinrich.
O Dr. Überbein recostou-se na poltrona, pegou a barba
vermelha perto do gogó e balançou lentamente a cabeça e o
corpo.
- Ah, sim? Está mesmo? - perguntou. E continuou ba-
lançando a cabeça.
Klaus Heinrich disse:
193
- Nem imagina com que falta de gosto fui à inaugura-
ção daquela Prefeitura. E amanhã preciso assistir ao juramento
dos recrutas dos Granadeiros. E depois vem o capïtulo da Or-
dem. Não gosto nada disso. Não tenho vontade alguma de par-
ticipar. Não tenho mais vontade de representar, não tenho mais
prazer na minha chamada nobre vocação.
- Não gosto nada de ouvír isso! - dísse o Dr. Überbein
severo.
- Sím, ímagíneí que ficaría zangado, Dr. Überbeín. Cet-
tamente vaí chamar ísso de relaxamento. E falará de "destino
e tenacidade", pois eu o conheço. Mas ontem na Ópera pensei
no senhor num dado momento e me pergunteí se o senhor teria
tanta razão em alguns assuntos . . .
- Ouça, Klaus Heinrich, se não me engano, uma vez já
tive de trazer Vossa Alteza à razão, por assim dizer, puxando-o
pélas orelhas . .
- Mas aquilo foi diferente, Dr. Überbein! Ah, se o senhor
reconhecesse qüe foi bem diferente, totalmente diferente! Foi no
Jardim MunicipaI, mas isso está tão longe, tão longe, e não tenho
saudade. Pois ela é. . . Veja, o senhor um dia me explicou o que
entende por "nobreza", que ela era algo comovente e que a
gente precisa aproximar-se dela rom terna simpatia, foi o que
dísse. Não acha que aquela de quem estamos falando é como-
vente, e a gente tem de se aproximar dela?
- Talvez - disse o Dr. fJberbein. - Talvez.
- O senhor disse muitas vezes que não se deve fugir dos
casos especiais, que é relaxamento, acomodação. Não acha que
a pessoa de quem falamos também é um caso especial?
O Dr. Überbein ficou calado.
De repente, disse com voz retumbante:
- E agora ainda quer que eu ajude a tornar esses dois
casos especiaís um caso comum?
L foi embora. Disse que tinha de voltar ao seu trabalho,
e acentuou bem a palavra "trabalho", pedindo para se retirar.
I94
Despediu-se com um jeito estranhamente cerimonioso e pouco
paternal.
Klaus Heinrich não o viu por uns 10, 12 dias. Convidou-o
uma vez para o almoço, mas o Dr. Überbein pediu muitas des
culpas, seu trabalho de momento o envolvia demais. Afinal, veio
por si. Estava nervoso e mais verde que nunca. Ficou fanfarro
nando sobre isso e aquilo e depois falou nos Spoelmann, olhan-
do para o teto e pegando o gogó. Disse que estava tudo muito
bem, que havia muita simpatia por Spoelmann, a gente sentia
por toda a cidade o quanto ele era apreciado. Primeiro, claro,
por seu potencial como contribuinte, mas também era apreciado
em geral. Simplesmente gostavam dele, em todas as camadas,
seu órgão, seu paletó desbotado e suas cólicas renais. Qualduer
aprendiz de sapateiro tinha orgulho dele e, não fosse ele tão
esquisito e retraído, haveriam de lhe demonstrar tudo isso. A
doação de 10 mil marcos para o Hospital Dorothea natural-
:
' mente causara ótima impressão. Seu amigo Sammet lhe contara
que, com essa doação, haviam feito grandes melhorias no hospi-
tal. Aliás, estavalhe ocorrendo uma coisa! A pequena Imma
queria dar uma olhada nessas reformas amanhã de manhã,
Sammet lhe contara isso. Mandara um de seus criados debruados
i
de penas de cisne para perguntar se podia ir na manhã seguinte.
Na verdade, a miséria das crianças doentes pouco lhe interessava,
disse Überbein, mas quem sabe ela queria aprender um pou-
quinho? Amanhã de manhã, às llh, se não lhe falhasse a me-
mória. Depois falou de outras coisas. Ao sair, ainda disse:
- O Grão-Duque devia interessar-se um pouco pelo Hos-
pital Dorothea, Klaus Heinrich, estão esperando isso. Uma ins-
tituição muito abençoada. Em suma, alguém devia aparecer por
lá, mostrar o interesse do Grão-Duque. Sem querer interferir. . .
,
e então, até breve.
Mas voltou uma vez mais e, em seu rosto esverdeado, de-
baixo dos olhos, aparecera um rubor incongruente:
- Caso eu o encontrar de novo com uma tampa de ter-
rina de ponche na cabeça, Klaus Heinrich - disse em voz
195
alta -, desta vez vou deixar você sentado. - Depois apertou
os lábios e saiu depressa.
Na manhã seguinte, lá pelas l l h, Klaus Heinrich veio
do Castelo Eremitage com o Sr. von Braunbart-Schellendorf, seu
Ajudante, seguíu pela alameda das bétulas, coberta de neve, de-
pois por ruas irregulares de subúrbio, entre casinholas pobres,
e parou diante da sóbria construção branca sobre cuja entrada
estava escrito, em grande letras pretas: "Hospital Infantil Doro-
thea." Sua visita foi anunciada. O médico-chefe da instituição
de fraque e com a Cruz Albrecht de Terceira Classe, esperava-o,
com dois médicos mais jovens e o grupo de diaconísas, no ves-
tíbulo. O Príncipe e seu acompanhante usavam capacete e casa-
cão de peles. Klaus Heinrich disse:
- Estou retomando uma antiga relação, meu caro doutor.
O senhor esteve presente no meu nascimento. E também esteve
junto do leito de morte de meu pai. Além disso, é amigo da
meu professor, o Dr. Überbein. Muito prazer.
O Dr. Sammet, encanecido na sua atividade de brandura,
curvou-se, a cabeça inclinada para o lado, a mão na corrente do
relógio, o cotovelo° preso ao corpo. Apresentou ao Príncipe os
dois médicos mais jovens e a superiora, e cïisse:
- Devo participar a Vossa Alteza que sua visita coincide
com outra. Sím. Estamos aguardando a Srta. Spoelmann. Seu
pai fez uma doação muito generosa à nossa instituição . : . Não
poderíamos.. desmarcar uma visita já combinada. . . A superio-
ra vai conduzir a moça.
Klaus Heinrich escutou amavelmente a notícia desse en-
contro. Depois, fez um comentário sobre a veste das diaconisas,
que chamou "bonita", e declarou que estava ansioso por ver
toda aquela a.bençoada instituição. Começaram a ronda. A su-
periora ficou com duas irmãs no vestíbulo.
Todas as paredes da casa eram caiadas de branco, e lavá-
veis. As torneiras eram muito grandes; eram manejadas com os
cotovelos, devido à higiene. Havia aparelhos com duchas para
as garrafas de leite. Atravessaram a sala de recepção, vazia, ex-
196
ceto por algumas camas não usadas e as bicícletas dos mÁdicos.
Um consultório, ao lado, contínha, além da escrivanínha e do
cabide com os aventais brancos dos médicos, uma espécie de
cômoda para trocar fraldas, com travesseiros de oleado, mesa
de operações, armário com alimentos e uma balança de bebê em
forma de gamela. Klaus Heinrich parou diante dos alimentos e
pediu explicação sobre como eram preparados. O Dr. Sammet
pensou com seus botões que, se continuassem a visita com.
aquela minúcia toda, se perderia muito tempo.
De repente, rumores na rua. Um automóvel parou buzinan-
do diante da casa. Alguém gritou "viva", ouviu-se nitidamente
na sala de consultas, embora fossem apenas crianças gritando.
Klaus Heinrích não ligou muito para esses acontecirnentos. Con-
templava uma lata com leite em pó que nada, tinha de especial.
, - Parece que vem visita - disse. - Ah, é verdade, o
, senhor disse que viria gente. Pod°mos continuar?
Foram depois à cozinha, à sala de preparação do leite, apo-
sento grande, de azulejos, onde, além de prepará-lo, guardava-
sd o leite integral, a nata e o soro. As quantidades diárias esta-
vam em frasquinhos sobre mesas brancas e limpas. No ar, pai-
rava um cheiro azedo.
Klaus Heinrich dedicou também toda a sua atenção a essa
sala. Chegou ao ponto de provar o soro, achando-o eX elente. As
crianças deviam florescer com aquele alimento, comentou. Du-
rante esse exame, a porta se abriu e a Srta. Spoelmann entrou
com a madre e a Condessa Lõwenjoul, seguida de três diaco-
nisas.
Naquele dia, o casaco, o gorro e o regalo que ela vestia
.eram de uma belíssima zibelina, e o regalo estava preso a uma
corrente dourada, com coloridas pedras preciosas. O cabelo preto
da moça tendia a cair sobre a testa em mechas lisas. Ela avaliou
a sala toda com os olhos grandes - eram realmente muito
grandes, em comparação com seu rostinho; dominavam-lhe a
fisionomia, como nos gatinhos -, só que eram pretos como car-
vão, e tinham aquela linguagem fluente . . . A Condessa Lõwen-
197
joul, chapeuzinho de penas na cabeça pequena, vestida de modo
simples, modesto mas digno, como sempre, tinha um sorriso dis-
tante.
- A cozinha onde preparamos o leite para as crianças -
disse a superiora.
- Eu imaginava que fosse isso - respondeu a Srta. Spoel-
mann.
Disse isso depressa, de modo superficial, sem sotaque in-
glês, com lábios em bico e um pequeno meneio altivo da cabe-
cinha. Sua voz era dupla: constava de um tom alto e um baixo,
c no meio uma fissura.
A superiora estava consternada:
- Sim - disse -, a gente logo vê. - Em seu rosto,
notava-se uma leve expressão de sofrimento.
A situação não era simples. O Dr. Sammet perguntou o
que Klaus hleinrich desejava; mas este estava habituado a agir
sempre segundo fórmulas rígidas, não a ordenar situações novas
e confusas, de modo que todos ficaram perplexos por algum
tempo. O Sr. von Braunbart estava na iminência de agir, como
intermediador, e de outro lado a Srta. Spoelmann queria deixar
a sala de preparação do leíte, quando o Príncipe executou com
a mão direita um pequeno gesto de ligação entre ele e a moça.
Era o sinal para o Dr. Sammet dirigir-se a Imma Spoe(mann.
- Dr. Sammet. Sim. - Pediu a honra de poder apre-
sentar a ilustre jovem a Sua Alteza Real. . . - Srta. Spaelmann,
Alteza Real, filha de Mr. Spoelmann, a quem o hospital tanto
deve.
Klaus Heínrich, calcanhares unidos, estendeu-lhe a rnão com
a luva branca de militar e, ao colocar ali sua mãozinha estreita,
vestida de couro castanho de veado, ela fez um gesto, um aperto
de mãos inglês, enquanto, com a graça brusca de um pajem, fez
menção de executar uma mesura, sem afastar do rosto de Klaus
Heinrich seus olhos grandes como estrelas. Ele disse uma coisa
muito inteligente:
- Então, também está visitando o Hospital, senhoríta?
198
E, depressa como antes, com os lábios em bico e aquele
breve gesto altivo da cabecinha, ela respondeu:
- Não se pode negar que isso parece óbvio.
O Sr. von Braunbart ergueu involuntariamente a mão num
gesto de horror, o Dr. Sammet olhou o relógio em sua corrente,
houve comentários, e um dos jovens médicos bufou, um som
nada adequado. Viram então a breve expressão de dor no rosto
de Klaus Heinrich, que disse:
- Claro . . . uma vez que a senhorita está aqui . . . então,
podemos visitar juntos a casa . . . Capitão von Braunbart, meu
Ajudante - acrescentou depressa, pois achou que seu comen-
tário mereceria outra observação como a anterior. Ela disse:
- Condessa Lówenjoul.
Esta fez uma digna mesura - aliás, com um sorriso mis-
terioso, olhando de soslaio para um ponto ignorado, com ar es-
tranhamente sedutor. Mas quando se ergueu de novo, e seu sin-
gular olhar esquivo voltou para Klaus Héinrich, parado à sua
frente em postura militar, o sorriso sumiu do rosto dela, agora
dominado por uma expressão de amargura e lucidez. E seus
olhos cinzentos, um pouco inchados, pareceram brilhar com algo
semelhante ao ódio . . . mas foi tudo muito breve. Klaus Hein-
rich não teve tempo delhe dar atenção, logo esquecera tudo.
Os dois jovens médicos foram apresentados a Imma Spoelmann.
Depois, Klaus Heinrich concordou em recomeçarem a visitação.
Subiram a escada do primeiro andar: Klaus Heinrich e Im-
ma Spoelmann à frente, acompanhados pelo Dr. Sammet, de-
pois a Condessa Lówenjoul com o Sr. von Braunbart, e por
fim os médícos. Ali ficavam as crianças maiores. Até 14 anos.
Uma ante-sala com armários de roupas dívidia as salas dos
meninos e das meninas. Em caminhas brancas, de grades, na
cabeceira um cartaz com o nome, aos pés uma placa reversí-
vel com tabelas de peso e temperatura, vigiadas por uma en-
fermeira de toucado branco, rodeadas de ordem e limpeza,
jaziam as crianças enfermas. Na sala, ouvíam-se tosses inces-
199
santes, enquanto Klaus Heinrich e Imma Spoelmann andavam
entre as fileiras de camas.
Por cortesia, ele ficava do lado esquerdo e sorria como
fazia quando o conduziam em alguma exposição, ou inspecio-
nava fileiras de veteranos, ginastas ou companhias de honra.
Mas sempre que virava o rosto para a direita notava que
Imma Spoelmann o contemplava - seu olhar encontrava o
dela, grande e negro, dírigido para ele, avaliador, com uma
lustrosa e séria interrogação. Era muito estranho, Klaus Hein-
rich achava nunca ter experimentado algo tão estranho quanto
aquela maneira da moça o contemplar com seus grandes
olhos, tão desprovida de consideração em relação a ele e a todos,
um olhar direto e livre, despreocupado, sem ligar para a pos-
sibilidade de alguém estar notando. Quando o Dr. Sammet pa-
rava um pouco, junto a alguma caminha, para explicar o caso,
como o da menina cuja perna, quebrada e enrolada em ataduras
brancas, estava presa em posíção bem vertical, a Srta. Spoel-
mann escutava, atenta, via-se isso; mas enquanto escutava não
olhava para o interlocutor: seus olhos iam de Klaus Heinrich
para a criança, que, magra e silenciosa, mãos cruzadas sobre
o peito, deitada de costas, erguia os olhos para eles. Imma
olhava para o Príncipe e aquele pequeno caso médico que lhes
estava sendo explicado, e ia de um para outro como se qui-
sesse avaliar o quanto ele participava de tudo aquilo, ou pro-
curasse no rosto dele o efeito das palavras do Dr. Sammet.
Não se sabia bem. Sim, foi o mesmo com o menino que levara
um tiro no braço, e o outro, do qual se tinha de retirar água:
dois casos tristes, comentou o Dr. Sammet.
- Uma tesoura de ataduras, irmã - disse ele, e mos-
trou-lhes o ferimento duplo no braço do menino, a entrada e
a saída de uma bala de revólver. - O próprio pailhe causou
esse ferímento - disse o médico, em tom abafado, aos seus
visítantes, voltando as costas para a caminha. - Esse aí teve
sorte. O homem atirou na mulher, em três de seus filhos e em
si mesmo, com um revólver. Nesse menino, errou o tiro . . .
20'0
Klaus Heinrich olhou o ferimento duplo.
r
-- Mas por que o homem fez isso? - perguntou timí-
damente, e o Dr. Sammet respondeu:
- Desespero, Alteza. Foi levado a isso pela miséria e
pela vergonha. É. - E não disse mais nada, só esse comen-
tário bem geral, como ao falar do menino de quem tinham de
retirar água, um menino de 10 anos. - Está roncando -
disse o médico -, ainda tem água no pulmão. Foi retirado
do rio esta manhã . . . sim. É pouco provável que tenha caído
na água. Vários indícios contrariam isso. Ele fugiu de casa.
- Calou-se.
E Klaus Heinrich viu novamente que a Srta. Spoelmann
o fitava com olhos grandes, negros, lustrosos e graves - um
olhar que procurava o dele, parecendo convidá-lo a imagínaz
· com ela aqueles casos "tristes", a concretizar em espírito as
alusões que o Dr. Sammet estava fazendo, chegar às terríveis
verdades que aquelas duas cri.anças representavam . . . Uma me-
nininha chorou amargamente quando se colocou junto de sua
caminha o aparelho de inalação, que chiava e fumegava, junto
' com uma tampa de papelão cheia de desenhos coloridos. A
Srta. Spoelmann curvou-se para a criança:
- Não dói - disse, imitando a fala infantil. - Nem
um pouquinho. Não chore. - E, ao se levantar de novo,
acrescentou depressa, repuxando os lábios: - Acho que ela
não chora tanto por causa do aparelho, mas dos desenhos.
Todos riram. Um dos jovens assistentes levantou a tampa
de papelão e riu ainda mais ao contemplar as figuras. Passa-
ram para o laboratório. Klaus Heinrich pensava na singular zom-
baria da Srta. Spoelmann. "Eu imagínava que fosse isso" tinha
dito, e "não tanto por causa do aparelho . . . " Era como se
não se divertisse apenas com os desenhos, mas com as expres-
sões ásperas e escolhidas que usava com tanta habilídade e
rapidez. E essa era, provavelmente, a mais absoluta forma de
zombaria que se podia imaginar . . .
201
O laboratório era o maior aposento da casa. Vidros, retor-
tas, funis e produtos químicos repousavam sobre prateleiras,
e havia preparados em álcool, que o Dr. Sammet explicou
aos visitantes com palavras firmes e calmas. Uma criança mor-
rera sufocada de modo inexplicado: ali estava sua laringe, com
excrescências em forma de cogumelo em lugar das cordaa vocais.
Sim. Isso aqui no vidro foi um rim de criança que aumentou
morbidamente; e aquilo são ossos deformados. Klaus Heinrich
e a Srta. Spoelmann olharam tudo aquilo, olharam juntos os
vidros que o Dr. Sammet segurava diante da janela, e em seus
olhos havia uma expressão contemplativa, enquanto, em torno
de suas bocas, se mostrava o mesmo leve traço de repulsa.
Também olharam um após o outro no microscópío, contempla-
ram, com o olho baixado sobre a lente, uma secreção doenti.a,
uma matéria azulada passada numa plaquinha de vídro mos-
trando pontinhos mimísculos ao lado da mancha grande: eram
bacilos. Klaus Heinrich quis deíxar a Srta. Spoelmann aproxi-
mar-se prímeíro do microscópio, mas ela recusou, erguendv as
sobrancelhas e fazendo um bico como se quisesse dizer em tom
,
exagerado: "Ah, de jeito nenhum!" Enão ele se adiantou�
pois achou que real.mente não teria importância quem contem-
plasse primeiro uma coísa tão grave e terrível como bacilos.
lepois, foram conduzidos ao segundo andar, onde ficavam os�
bebês .
Os dois riram com o berreiro de muitas vozes que reboava
já na escada. Em seguída, andaram com seus acompanhantes
por entre as caminhas, curvaram-se ladv a lado sobre as calvas
criaturas que dormiam de punhos cerrados ou gritavam com
todas as forças, mostrando as bocas desdentadas - taparam os
ouvídos e riram de novo. Numa espécie de forno em que se
produzia um calor sempre igual, jazía um prematuro. O Dr.
Sammet mostrou aos n.obres visitantes uma criança pobre, ter-
rivelmente cadavérica, com mãos grandes e feias, sinal de um
parto pubre e difícil. . . Tirou da caminha a criança, que ber-
rava, e ela se calou imedíatamente. Apoiou habilmente em sua
202
mão aquela cabecinha frouxa e apresentou a criaturinha ver-
melha; pestanejante, que se torcia em movimentos crispados,
a Klaus Heinrich e Imma Spoelmann, que, parados lado a lado,
contemplavam o bebê. Calcanhares unidos, o Príncipe viu o
Dr. Sammet devolver o bebê ao berço; virando-se, deparou,
como esperara, com o olhar brilhante e perquiridor de Imma.
Por fim, chegaram perto de uma das três janelas da sala
e olharam para uma rua de bairro pobre, de subúrbio, onde,
rodeados de crianças, aguardavam a carruagem castanha da
Corte e o automóvel de Imma, um carro magnífico, verme-
Iho-escuro, estacionados um atrás do outro. O motorista dos
Spoelmann, em seu imenso casacão de peles, recostava-se bem
para trás, mão no volante, vendo seu camarada, o criado de
uniforme branco, conversar com o cocheiro de Klaus Hein-
rich, lá na frente, no cupê.
, - Os vizinhos daqui - disse o Dr. Sammet, que er-
gua a cortina de tule branco - são também pais de nossos
pacíentes. Nas noites de sábado, os pais embriagados passam
aqui na frente, cantando. É.
Ficaram parados, em silêncio, mas o Dr. Sammet não
falou mais sobre os pais. E então foram embora. Tinham visto
tudo.
O pequeno cortejo, Klaus Heinrich e Imma à frente, des-
ceu as escadas e, no vestíbulo, as irmãs estavam novamente
agrupadas. Todos se despediram, batendo calcanhares e fazendo
mesuras. Klaus Heinrich, em postura formal diante do Dr.
Sammet, que escutava inclinando a cabeça de lado e pondo a
mão na corrente do relógio, expressou-se em frases positivas
sobre o que vira ali, sentindo os grandes olhos de Imma
Spoelmann grudados nele. Junto com o Sr. von Braunbart,
ele acompanhou as damas até o carro, depois de terminadas as
despedidas dos médicos e irmãs. Enquanto passavam pela cal-
çada, entre crianças e mulheres com bebês nos braços, e tam-
bém junto do carro, Klaus Heinrich e a Srta. Spoelmann tive-
ram o seguinte diálogo:
203
- Foi uma grande alegria para mim encontrar a senho-
ra - disse ele.
Ela não respondeu, apenas avançou os lábios, movendo
um pouco a cabeça.
- Foi uma visita muito interessante - acrescentou ele.
- Tivemos uma série de informações.
Ela o encarou com olhos grandes e negros. Depois disse,
depressa, superficialmente, com sua voz rouca:
- Ah, sim, de certa forma . . .
Ele disse:
- Espero que a senhora goste do Castelo dos Delfins.
E ela respondeu com lábios em bico:
- Ora, por que não? Uma casa bem conveniente.
- Prefere o Castelo a Nova Iorque? - perguntou ele.
E ela retrucou:
- Da mesma forma. É bem parecido. mais ou menos�
a mesma coisa em toda parte.
Isso foi tudo. Klaus Heinrich e o Sr. von Braunbart, um
passo atrás dele, ficaram parados, mãos nos capacetes, quando
o motorista deu a partida e o carro foi em frente, estreme-
cendo.
Naturalmente, esse encontro não permaneceu por muito
tempo como assunto interno do Hospital Dorothea. Ao con-
trário, no mesmo dia estava em todas as bocas. O Mensageiro
publicou, sob título suavemente poético, uma descrição deta-
Ihada do encontro, que, sem corresponder exatamente à rea-
lidade nas minúcias, mesmo assim arrebatou os leitores; de
fato, causou tamanha avidez no público que o atento jornal
se viu levado a ficar de olho em outras aproximações entre
as famílias Grímmburg e Spoelmann. Não havia muito a con-
tar. O jornal comentou algumas vezes que Sua Alteza, o Prín-
cipe Klaus Heinrich, atravessando a primeira galeria após a
apresentação do Teatro da Corte, parara por um tnomento
diante do camarote dos Spoelmann, para cumprimentar as se-
nhoras. E no seu relato sobre o costumeiro bazar beneficente
204
que se realizava no salão da Prefeitura em m ados de janeiro� �
- acontecimento elegante, do qual Miss Spoel nann participou
como vendedora por insistente convite da cor ússão organiza-
dora -, houve razoável espaço dedicado à descrição desta cena:
o Príncipe Klaus Heinrich parara diante da tenca atene?icia pela�
Srta. Spoelmann, durante a visi.ta da Corte, comprara dela um
objeto de arte em vidro (pois a Srta. Spoelmann vendia por-
celanas e objetos de vidro) e ficara diante da tenda uns oito
ou 10 minutos. Mas nada se dizia do conteúdo das conversas.
Mesmo assim, o encontro tivera resultados.
A Corte (com exceção de Albrecht) aparecera no salão da
Prefeitura por volta do meio-día. Quando Klaus Heinrich vol-
tava para o Eremitage com seu objeto de vidro enrolado em
papel de seda sobre os joelhos, fizera-se anunciar no Castelo
dos Delfins, dizendo de sua intenção de ver o Castelo em seu
novo estado e, nessa oportunidade, apreciar a coleção de vi-
dros artísticos do Sr. Spoelmann. Pois entre as mercadorias
de Miss Spoelmann havia três ou quatro cálices antigos que seu
pai retirara pessoalmente da coleção, doando-os ao bazar, e
Klaus Heinrich comprara um deles.
Mas uma vez ele se reviu sozinho diante de Imma Spoel-
mann, no semicírculo das pessoas que os contemplavam, sepa-
rado dela pela mesinha da barraca, com seus cálices, frascos,
grupos de porcelana brancos e coloridos. Reviu-a em sua fan-
tasia vermelha, que feita de uma só peça envolvia sua figura
bem-feita, mas ainda assim infantil, deixando livres os ombros
morenos e os braços redondos e firmes, com pulsos de criança.
Ele revia c. ornamento dourado, meio coroa, meio diadema,�
no negror do seu cabelo solto, que tendia alhe cair sobre a
testa em mechas lisas, os olhos excessivamente grandes, pretos
e lustrosos, interrogativos, no rostinho pálido, a boca cheia
e macia que ao falar ela armava num biquinho desdenhoso de
pessoa mimada - e ao redor dela, na grande sala abobadada.
pairava um cheiro de pinheiros e havia uma zoeira confusa,
música, batidas de gongo, risos e pregões.
205
Admirara o vidro artístico que ela lhe oferecera para com-
prar,eum antigo cálice nobre com folhas de prata que, segundo
ela, vxnha da coleção do pai. Então, o pai dela possuía mais
desses belíssimos objetos? Sim. E provavelmente o pai não esco-
lhera as melhores peças para o bazar. Ela não duvidava de que
ele possuía vidros bem mais bonitos que aqueles. Klaus Hein-
rich desejava vê-los! Bem, isso não seria difícil de resolver, dis-
sera a Srta. Spoelmann com sua voz rouca, avançando os lábios
e movendo de leve a cabecinha. Dissera que o pai não se opo-
ria a mostrar a um visitante entendido os frutos de sua cole-
ção. Os Spoelmann estavam sempre em casa na hora do chá.
' ?' Ela fizera tudo muito educadamente, transformara a afir-
mação em convite, falando em tom bem casual. Por fim, quan-
do Klaus Heinrich perguntara em que dia isso poderia acon-
,
tecer, ela respondera:
- Quando quiser, Príncipe. Ficaremos indizivelmente fe-
lizes . . .
"Indizivelmente felizes" - ela dissera isso de modo tão
ferino e zombeteiro que quase lhe doera, e só com esforço
ele conseguira manter no rosto uma expressão simpátíca. E co-
mo ela deiaara confusa e chocada a pobre superiora, outro dia,
no hospital! Mas, mesmo assim, havía em sua maneira de falar
algo infantil, sim, certos sons brotavam como se pronunciados
por uma criança . . . não apenas naquela vez em que consolara
a menininha no vaporizador. E abrira de tal maneira os olhos
quando o médíco falara dos pais e daqueles casos tristes..
No dia seguinte, Klaus Heínrich tomou seu chá no Cas-
telo dos Delfins - dois dias depois, também. Imma Spoelmann
dissera que ele poderia voltar eventualmente. Dois dias depois,
porém, ele sentíra vontade e achara que, sendo seU assunto
i urgente, não o deveria adiar.�
Por volta das 5h - já estava escuro - seu cupê o
levou pelo chão macio e encharcado do Parque MunicipaI, des-
pido e vazio - onde ele passava agora, já era propriedade dos
Spoelmann -, com lampiões iluminando o parque. O grande
,. .
206
tanque d'água com a fonte rebrilhava foscamente entre as ár-
- vores, Por trás disso tudo, erguia-se o castelo esbranquiçado
com o portal de colunas, a ampla rampa dupla de acesso, que,
embutida nas duas alas do edifício, subia brandamente para o
andar térreo, as altas janelas divididas em pequenas vidraças,
os bustos romanos nos nichos - e quando Klaus Heinrich
' passou pela alameda de chegada, entre imensos castanheiros,
viu aos pés da rampa o mouro vestido de veludo bordô, fazen-
do guarda com seu bastão. . .
Klaus Heinrich entrou no vest'bulo de pedra, bem-ilu-
minado e levemente aquecido, com assoalho de mosaicos dou-
rados e brancas ímagens de deuses ao redor, andou em frente,
em direção à escada de mármore de balaustrada larga, atape-
tada de vermelho, da qual desceu, com ombros erguidos e bra-
ços caídos, barrigudo e altivo, enfeitado pela dupla papada
escanhoada, o mordomo de Spoelmann para receber o convida-
do. Levou-o para a ante-sala do andar de cima, revestída de
tapeçarias e enfeitada com uma lareira de mármore, onde dois
criados de roupas brancas e douradas com plumas de cisne
pegaram o gorro e o manto do Príncipe, enquanto o mordomo
ia pessoalmente avisar seus amos . . . Klaus Heínrich passou
pelos dois criados, que afastaram uma pesada cortína, e subiu
um ou dois degraus.
Foi rodeado por um aroma de plantas e ouviu o brando
rumor de água caindo. Mas, no momento em que a cortína foi
novamente baíxada atrás dele, irrompeu um latido tão súbito e
enlouquecido que, atordoado, Klaus Heinrich parou ao pé da
escada, Percival, o cachorro collie, jogara-se em címa dele, e
parecia possesso. Espumava, sofria, não sabía como se portar,
tão enlouquecído que estava, retorcía-se, batía com a cauda
nos flancos, enfiava as patas dianteiras no chão e, numa cega
paixão, girava sobre si mesmo, parecendo desmanchar-se todo
em latidos e agitação. Uma voz - não a voz de Imma -
chamou-o de volta e Klaus Heinrích se viu num jardim de in-
verno, uma abóbada de vidro apoiada em esguias colunas de
207
1
mármore, o chão de grandes lajes de mármore quadradas e es-
pelhantes. Palmeiras de toda sorte enchiam o aposento, com
os leques e fustes por vezes atíngíndo o teto de vídro. Incon-
táveís vasos de flores unidos entre sí como as pedras de um
mosaico formavam um falso jardim sob a intensa luz de luar
dos lampiões, enchiam o ar de perfumes. De um belo chafariz
lindamente esculturado, corriarn fontes prateadas que tomba-
vam num tanque de mármore, e patos de penugem singular-
mente bonita nadavam na superfície iluminada das águas. O
fundo da sala era ocupado por um passeio de pedra com colu-
nas e nichos.
Foí a Condessa Lõwenjoul que veio ao encontro dele, cur-
vando-se e sorrindo.
- Queira Vossa Alteza perdoar - disse ela. - Nosso
Percy é muito fogoso. E está muito pouco acostumado a vísí-
tas, agora. Mas não faz mal a ninguém. Posso pedir a Vossa
Alteza . . . a Srta. Spoelmann voltará logo. Há pouco ainda
estava aqui, mas o pai a chamou. Mr. Spoelmann vai ficar
muito contente . . .
E, dizendo isso, levou Klaus Heinrich a um grupo de ca-
deiras de vime forradas com almofadas de linho bordadas,
diante de um grupo de palmeiras. Ela falava com vivacidade
e íntensídade, a cabecínha com o ralo cabelo Iouro-cinza in-
clinada para o lado; sorríndo, mostrava os dentes aIvos. Sua
figura era decididamente distinta, com vestido marrom justo;
levou Klaus Heinrich até as cadeiras, esfregando as mãos
animadamente, com os movimentos elegantes e repousados de
uma mulher de oficial. Somente em seus olhos, cujas pálpe-
bras ela encolhia, pestanejando, havia algo parecido com falsi-
dade ou suspeita, algo incompreensível. Sentaram-se um diante
do outro à mesinha redonda de jardim, sobre a qual havia
alguns livros. Percival, exausto do acesso que sofrera, deitou-se
enrodílhado no estreíto tapete de cores pálídas, com um brilho
nacarado, sohre o qual estavam os móveis. Seu pêlo preto e
sedoso era branco nas patas, peito e focinho. Ele tinha pêlos
208
i
i
branws no pescoço, olhos dourados e uma repartição no pêlo�
ue Icscia da cabeça ao lombo. Klaus Heinrich começou a con-�
q
versar. apenas por conversar, um diálogo formal sobre exte-
riorilales, única conversa que sabia entabular.� �
- Condessa, eu gostaria de não importunar. Fico feliz
se pul" menos não me julgarem um intruso. Não sei se a Srta.
Spoe:mann lhe contou... Ela teve a bondade de me animar
( alhc. s Eazer uma visita. Trata-se dos belos vidros que o Sr.
Spoclmann teve a generosidade de doar para o bazar. A
Srta. poelmann achou que seu pai não se importaria de me mos-�
ill
trar <ua coleção. E por isso estou aqui . . .
Condessa não revelou se Imma lhe falara dessa com-
binac:io. Disse:
, Esta é a hora do chá na casa, Alteza Real. Como pode-
' Alte7a im ortunar Mesmo que o que espero não� �
rta asa . p . ,� �
acon .. . a, Mr. Spoelmann estivesse impedido de aparecer por� �
moti .a , de saúde . . .�
-- Ah, ele está doente? - Na verdade, Klaus Heinrich
dese;. a um pouquinho que o Sr. Spoelmann não pudesse apa-� �
recer. l'ensava nesse encontro com indefinida preocupação.
- Ele esteve adoentado hoje, Alteza. Infelizmente, teve
febru. calafrios e até um pequeno início de desmaio. De ma-
nhã, Dr. Watercloose esteve por longo tempo com ele. Deu-� �
lhe ; ma injeção de morfina. Não se sabe se não será preciso
operar mais uma vez.
-- Lamento muito - disse Klaus Heinrich, sincero. -
Oper;r. Terrível. - E a Condessa respondeu, desviando 0�
olhm:�
- Ah, sim. Mas há coisas mais terríveis na vida . . . mui-
tas "isas bem mais terríveis do que isso.�
- Sem dúvida - disse Klaus Heinrich. - Acredito. -
Ele sentia sua imaginação estímulada pela alusão da
Confssa.� �
l la o encarou inclinando a cabeça de lado, e em seu rosto�
surin uma expressão de menosprezo. Depois, seus olhos cin-�
209
zentos, um pouco inchados, esquivaram-se para um lado, não
se sabia para onde, com um sorriso enigmático que Klaus Hein-
rich já conhecia e que tinha algo de sedutor.
Ele teve necessidade de retomar o diálogo.
- Condessa, mora há muíto tempo na casa dos Spoel-
mann? - perguntou.
- Bastante tempo - respondeu ela, e via-se que tentava
calcular. - Bastante tempo. Passei por tanta coisa, tive tantas
experiências, que naturalmente não posso mais dizer a data.
Mas foi pouco depois do benefício . . . logo depois de me faze-
rem o benefício.
- Benefício? - perguntou Klaus Heinrich.
- Exatamente - respondeu ela com determinação, e até
um pouco irritada. - Pois o benefícío foi feito em meu favor,
quando as experíências se tornaram demasiadas e o arco estava
retesado a ponto de rebentar, se me permite a comparação. O
senhor é tão jovem - prosseguiu ela, esquecendo-se de usar
o título adequado -, tão ignorante da desgraça e pervc'rsidade
do mundo, que não pode iXnaginar o que sofri. Nos Estados
Unidos, sofri um processo ao qual precisaram comparecer mui-
tos generaís. Tornaram-se públicas coisas que eu não estava à
altura de suportar. Tive de limpar todas as casernas sem con-
seguir fazer sair todas aquelas mulheres repulsivas. Elas se es-
condiam nos armários, algumas debaíxo do assoalho, e assím
é que continuam a me martirizar à noite, insuportavelmente.
Eu preferiria me recolher, isolada, a meus castelos na Borgo-
nha, se não chovesse tanto. Os Spoelmann sabiam disso, por
isso foram tão generosos, aceitando-me em sua casa por en-
quanto, e minha única tarefa é prevenir Imma, tão absoluta-
mente inocente, das coisas do mundo. Naturalmente, minha
saúde sofre pois, à rioite, aquelas mulheres se sentam sobre
meu peito e me forçam a encarar suas caras indecentes. E por
isso eu peço que me chame simplesmente de Sra. Meier -
disse ela num sussurro, tocando o braço de Klaus Heinrich,
inclinada para a frente. - As paredes têm ouvidos, e é absolu-
210
tamc m necessário que eu mantenha a personalidade incógnita� �
que ;:snmi, para me proteger da perseguição das criaturas pe-�
camim ,as. Tudo é irreal, atenda ao meu pedido. Encare tudo
comv ;iada... uma brincadeira que não vai prejudicar nin-�
guém Por que não . . .
, :i, emudeceu.�
: ,; aus Heinrích mantinha-se ereto em sua cadeira de vime
diantu lela, sem qualquer sinal de estar relaxado, olhando para�
ela. tlmcs de sair dos seus aposentos retangulares, ele se vestíra
com v ulo o cuidado, com a ajuda do Camareiro Neumann,�
fazerni, a toalete que sua existência pública exigia. O repartido�
de se:: cabelo iniciava-se sobre o olho esquerdo e corria, oblí-
quo, iuÍa cabeça, atravessando exatamente o redemoinho, de�
mode yue, no alto, não apareciam mechas nem se erguíam�
cabeli,os, e à direita seu cabelo era firmemente escovado, ex-���
ponde a testa.�
,tn o casaco do uníforme, de colarinho alto e corte fír-�
me a ; avorecerem uma postura controlada, sentava-se Klaus
Heinr:o, nos ombros estreitos as ombreiras de prata entran-�
çadas , v Major, recostando-se muito de leve na cadeira, sem��
se pev,:;otir postura confortável, ordenado, concentrado, um pé
um i,:mo à frente do outro, cobrindo, com a direita, a mão�
esque .,i sobre o punho da espada. Seu rosto jovem estava um�
poaa: i atigado pela falta de objetividade, pela solídáo, seve-
ridad dificuldade de sua vída; com uma expressão amável,� ��
clara . iotalmente controlada, ele encarava a Condessa.
:a emudecera. Seus traços foram dominados pela lucidez e�
pela mn.rgura e, enquanto em seus olhos pareceu lampejar o�
ódio ,mr Klaus Heinrich, ela mudou de cor, de maneira estra-�
nha . v.ra, a metade do rosto ficou vermelha, a outra pálida.� �
E rca "ndeu de olhos baixos:�
Estou há três anos com a família Spoelmann, Alteza
Real.
i'crcival ergueu-se de um salto. Em seu trote ágil, dan-
çarinu ; elegante, foi ao encontro de sua ama - pois Imma�
211
'' ' Spoelmann entrara -, ergueu-se dignamente e colocou, ern sau-
dação, as patas dianteiras no peíto dela. A goela bem aberta,
a língua aparecendo, cor de sangue, entre os magníficos dentes
brancos, parecia um animal heráldico, postado ereto diante
li '..' dela.�
Ela usava um traje magnífico: um vestido de casa, de seda
crua cor de telha, mangas abertas caídas, o peito feito de um
bordado a ouro pesado. Do colar de pérolas pendia uma gran-
de pedra preciosa em formato oval sobre o pescoço nu, cor de
espuma do mar esfumaçada. Seu cabelo preto-azulado, repar-
tido do lado e preso num nó muíto simples, tendía a lhe cair
em mechas Iísas sobre têmporas e testa. Enquanto ela pegava
a cabeça de Percival com suas duas mãos de criança, bonitas,
estreítas e nuas, disse no focinho dele:
- Isso . . . isso : . . bom dia, amigo. Que encontro. Nós
dois morremos de saudade, sofremos todos os tormentos da se-
paração. Bom dia. Agora, pode voltar para sua cama. - E,
tirando as patas dele do bordado de ouro de seu peito, e des-
viando-se para um Iado, ela o fez parar sobre as quatro patas.
- Ah, senhor Príncipe - disse ela. - Bem-vindo aos Delfins.
Vejo que detesta quebrar a palavra dada. Vou me sentar com o
senhor. Vão nos avísar quando pudermos tomar chá . . . Sem
dúvida, é contra toda a etiqueta eu tê-lo feito esperar. Mas meu
pai me chamou . . . e além disso o senhor tinha com quem
falar . . . - Seus olhos lustrosos passaram algum tempo cheios
de dúvida entre Klaus Heinrich e a Condessa.
- Sim - disse e1e -, eu tinha.
Depois perguntou pelo estado de Mr. Spoelmann e obteve
resposta tranqüilizadora. Durante o chá, ele teria prazer em
conhecer Klaus Heínrích; até lá, pedia que o desculpasse . . .
Que belos cavalos estavam com o cupê de Klaus Heinrich . . .
Agora, falavam de seus cavalos, de Florian, o castanho bona-
chão de Klaus Heinrích, da criação de Hollerbrunn e da égua
tordilha de Miss Spoelmann, uma puro-sangue árabe chamada
Fátima, que o Sr. Spoelmann recebera de presente de um
212
príncipe oriental, e dos rápídos cavalos húngaros que puxavam
a carruagem dela. . .
- Conhece a região? - perguntou Klaus Heinrich. -
Estuve no Castelo de Caça, no jardim do Castelo dos Faisões?
Ha passeios muito lindos.
Não, a Srta. Spoelmann não tinha qualquer habilidade
em :3escobrir novos passeios, e a Condessa . . . bem, por natu-
reza, não gostava muito de aventuras. Por isso, cavalgavam sem-
pre pelos mesmos caminhos no Parque Municipal. Talvez fosse
teclioso, mas a Srta. Spoelmann não era muito amiga de aven-
tur.m e mudanças. Então, ele dísse que podiam cavalgar jun-
tos um dia, com bom tempo, para o Castelo de Caça ou o
des C'aisões, e ela respondeu, avançando os lábios, que se podía�
pensar nisso. Depois, apareceu o mordomo, anunciando grave-
men e que a mesa do chá estava preparada.�
Passaram pelo vestíbulo dos tapetes com lareira de már-
mor, dirigidos pelo mordomo de passo majestoso, acompanha-��
dos pelo inquieto Percy e seguidos da Condessa Lõwenjoul.
- A Condessa andou soltando a língua há pouco? - per-
gunu:u Imma, andando, sem cuidar especialmente de baixar a�
voz
Klaus Heinrich assustou-se e olhou para o chão.
- Ela pode nos ouvir! - dísse, em voz baíxa.
- Não, ela não nos oave - respondeu Imma. - Co-
nhe- a expressão dela. Quando anda assim de cabeça inclina-�� �
da, ;iscando os olhos, está ausente, mergulhada em seus pen-�
sam`ntos. Deve ter soltado a língua há pouco.�
- Um pouco - disse Klaus Heinrich. - Tive a impres-
sãc> ..le que, por uns momentos, a Condessa perdeu o con-
tml ��
- Ela passou por coisas terríveis. - Imma ergueu os
olh". para ele, olhos escuros e perquiridores como no hospi-
tal- -- Um dia lhe conto tudo- É uma história e tanto.
- Sim - disse ele. - Outro dia. Quem sabe a ca-
mir,ho?
213
- A caminho?
- Sim, do Castelo de Caça ou dos Faisões.
- Ah, Príncipe, esqueci como é meticuloso nos compro-
missos. Bem, então a caminho. Aqui, descemos.
Estavam nos fundos do Castelo. De uma galeria repleta de
grandes quadros, que atravessaram, havia degraus forrados de
tapetes que levavam ao salão branco e dourado, atrás de cuja
grande porta de vidro ficava o terraço. Tudo ali, o grande lus-
tre de cristal que pendia do meio do teto alto, branco e cheio
de arabescos; as poltronas bem-ordenadas com estruturas dou-
radas e estofo de gobelina; as pesadas cortínas de seda branca;
o relógio solene e os castiçais dourados sobre a lareira de már-
more branco diante do alto espelho de parede; os grandes can-
delabros de pés de leão, dourados, que se erguiam dos dois
lados dos degraus da entrada: tudo lembrava a Klaus Heinrich
o Castelo Velho, as salas de recepção, nas quaís estava acostu-
mado a representar desde criança - só que aqui as velas eram
de faz-de-conta, com lâmpadas de brílho dourado em Iugar do
pavio, e tudo era novo e brilhante no Castelo dos Delfíns dos
Spoelmann. Um criado de barra de pluma de císne termínava
de arranjar a mesa de chá num canto do aposento; Klaus Hein-
rich contemplou a chaleira eletricamente aquecida de que o
Mensageiro falara.
- Avisaram o Sr. Spoelmann? - perguntou a filha da
casa. . . O mordomo fez uma mesura. - Então, nada nos im-
pede - disse ela, em sua maneíra zombeteira e rápida - de
tomarmos nossos Iugares e começarmos sém ele. Venha, Con-
dessa! Príncipe, eu lhe recomendaria que se livrasse de suas
armas, caso não haja motivos que o impeçam . . .
- Obrigado - disse Klaus Heinrich. - Não, nada me
impede. - E doeu-lhe ser tão pouco treinado para encontrar
uma resposta hábil.
O criado pegou-lhe a espada e levou-a, saindo pela gale-
ria. Sentaram-se à mesa de chá, assistidos pelo mordomo, que
segurava os encostos das cadeiras e as empurrava para que se
214
sentassern. Depois, recolheu-se para o alto dos degraus, onde
ficou parado como um ornamento.
- Deve saber, senhor Príncipe - disse a Srta. Spoelmann,
despejando água -, que meu pai não toma chá que eu mesma
não tenha preparado. Ele desconfia de todo chá que é servido
nas xícaras. Nós reprovamos isso. Terá de se conformar.
-- Ora, assim é mais bonito - disse Klaus Heinrich -,
muito mais confortável e espontâneo numa mesa de família . . .
- Interrompeu-se e pensou no motivo por que, a essas pala-
vras, a (;ondessa Lówenjoul lhe lançara um olhar oblíquo cheio
de ódíc>. - E seu estudo, Srta. Spoelmann? - indagou ele. -
Posso wber? Matemática, pelo que sei. Não a cansa? Não é
terrivclnente difícil?�
- Nada - disse ela. - Não conheço coisa melhor. A
gente, nor assim dizer, brinca nos ares, ou já fora do ar, de
qualquer modo, numa região livre de qualquer poeira. Frio como
nos Aclirondacks...
-- Onde?
-- Os Adirondacks. Geografia, senhor Príncipe. Uma flo-
resta n,rs montanhas do meu país, com lindos lagos. Temos
uma casa de campo lá, para o mês de maio. Sempre passamos
o verão no mar.
-- De qualquer modo - disse ele -, sou testemunha
de seu elo nos estudos. A senhora não gosta que a impeçam�
de comparecer pontualmente às aulas. Nunca perguntei se, afi-
nal, chegou em tempo no outro dia.
--- Outro dia?
--- Sim, há algumas semanas. Depois daquele impedimen-
to na narda.�
--- Santo Deus, Príncipe, até o senhor fala nisso. Pare-
ce qi.rc :ssa história foi comentada tanto no palácio como nas
choupanas. Se eu tivesse sabido que fariam tanto alarde disso,
teria preferido rodear três vezes a praça do Castelo. Saiu até no
jornal, me disseram. E agora, naturalmente, toda a cidade me
consicic:ra um demônio de rebeldia e ira. Mas eu sou a criatura
215
i.r
mais pacífíca do mundo, só que não gosto que me dêem or-
i dens.. Serei um demônio, Condessa? Peço resposta sincera.
- Não, a senhora é boa - disse a C,ondessa Lówenjoul.
;,
- Bem, isso é demais, e eulhe devolvo duplamente o
I , �
elogio, Condessa . . .
- Não - dísse Klaus -, não é demaís. Acredíto fír-
memente na Condessa . .
.
i1 . - Muita honra. Como é que a notícia daquela aventura
chegou a ossa Alteza? Pelo jornal?�
- Fui testemunha ocular - disse Klaus Heinrich.
- Testemunha ocular?
- Sim, senhora. Por acaso, estava junto da janela da
sala de guarda dos ofícíais e ví tudo do começo ao fím.
A Srta. Spoelmann corou. Não havía dúvída, a pele pálida
do seu rostinho estrangeiro escurecera.
- Bem, Príncípe, suponho - disse ela - que no mo-
mento o senhor não tivesse nada melhor a fazer.
- Melhor? - exclamou ele. - Mas foi uma visáa muito
bonita! Dou minha palavra, senhora, que nunca na vida . . .
Percival, deitado ao lado a Srta. Spoelmann com as patas
dianteiras graciosamente cruzadas, ergueu a cabeça com expres-
são tensa e concentrada, e bateu no tapete com a cauda. No
mesmo rnomento, o mordomo se mexeu. Correu o mais de-
pressa que lhe permitia seu pesado corpo, descendo os degraus
para a alta porta lateral do outro lado da mesa de chá, e abríu
com veemência as cortinas de seda branca, erguendo com
grande dignidade seu queixo duplo. Entrou, então, Samuel
Spoelmann, o bilionário.
Tinha figura delicada e fisionomia singular. De seu rosto
escanhoado, com faces acaloradas, saía o nariz num estranho
ángulo reto, e por cima seus pequenos olhos redondos, muito
juntos, de um azul-negro metálico e indefinido, Como nas
crianças pequenas e nos bichos, com expressão distraída e abor-
recida. A parte de cima da cabeça era calva, mas atrás e nas
216
têmpora o Sr. Spoelmann tinha basto cabelo grisalho, pentea-�
do de maneira inusitada entre nós. Não era nem curto nem
comprido, mas basto, cheio, cortado só na nuca e raspado ao
redor das orelhas. A boca era pequena e de talhe delicado. Ele
se vestia com um casaco preto com colete de veludo e sobre
ele uma antiga, longa e fina corrente de relógio, e sapatos de
couro macio nos pezinhos curtos. Ele se aproximou rapidamente
da mesa de chá com ar ocupado e aborrecido; mas seu rosto
clareou, assumindo expressão terna e feliz, assim que viu a filha.
Imma fora a seu encontro.
- I3om dia, paizinho - disse ela, e seus braços more-
nos e infantis, expostos pelas mangas largas cor de telha, pas-
saram pelo pescoço dele, e ela o beijou na calva que ele lhe
oferecia, inclinando a cabeça.
- Você decerto sabe - prosseguiu ela - que o Prín-
cipe Klaus Heinrich vai tomar chá conosco.
- Não, mas me alegra, me alegra - disse o Sr. Spoel-
mann depressa, com voz roufenha. - Por favor, não se inco-
mode! - prosseguiu. E, trocando um aperto de mão com o
Príncipe, ue estava parado junto à mesa em posição de sen-��
tido (a mão do Sr. Spoelmann era magra e meio tapada por
punhos br,mcos não-engomados), balançou várias vezes a cabe-
ça para o lado. Era sua maneira de cumprimentar Klaus Hein-
rich. Era stranho, doente e singularmente rico. Estava des-�
culpado e desobrigado do resto. Klaus Heinrich reconheceu isso
e .se esfor-ou honestamente para superar sua perturbação ín-�
terior. - De certa forma, o senhor está em casa, aqui - disse
ainda o Sr. Spoelmann, engolindo o tratamento, e passageira-
mente apareceu uma expressão maligna ao redor de seus lábios
escanhoados.
Depois, com seu exemplo, levou os outros a se sentarem.
O mordomo lhe ajeitou a cadeira entre Imma e Klaus Hein-
rich, diante da Condessa e da janela da varanda.
Como o Sr. Spoelmann não fizesse menção de se descul-
par, Klaus Heinrich disse:
217
,.
- Lamento ter ouvido dizer que o senhor passou mal
hoje, Sr. Spoelmann. Espero que esteja melhor.
- Obrigado, melhor, mas não bom - respondeu o Sr.
Spoelmann com sua voz roufenha. - Quantas colheres você
pegou? - perguntou à filha, referindo-se à quantidade de chá
que ela colocara no bule.
Ela enchera a xícara dele e a alcançara.
- Quatro - dísse ela. - Uma para cada. Ninguém
poderá dizer que trato mal meu pobre e velho paizinho.
- Que nada - disse o Sr. Spoelmann. - Não sou
velho. Deviam cortar sua língua.
Ele tirou de um pote de prata uma espécie de torrada
que parecia estar ali só para ele, quebrou-a e mergulhou-a,
com ar incomodado, no chá castanho-dourado que, como a
filha, tomava sem creme e sem açúcar.
Klaus Heinrich recomeçou : '
- Estou muito curioso pela sua coleção, Sr. Spoelmann.
- Isso - disse o Sr. Spoelmann. - Quer ver os meus
vidros. É interessado, quem sabe também coleciona?
;
- Não - disse Klaus Heinrich -. apesar de gostar
tanto, ainda não estou colecionando.
- Não tem tempo? - perguntou o Sr. Spoelmann. -
O serviço de oficial é tão absorvente assim?
Klaus Heinrich respondeu:
- Não estou mais em serviço, Sr. Spoelmann. Estou às
ordens do meu Regimento. Uso uniforme, só isso.
- Ah, sím, é só aparência - disse o Sr. Spoelmann,
roufenho. E que faz então dia inteiro?��
Klaus Heinrich parara ãe ~,eber chá, afastara tudo de sua
frente nessa conversa que exigia toda a sua atenção. Sentava-
se muito ereto, e respondeu, sentindo que o olhar de Imma '
1
Spoelmann pousava sobre ele, grande, negro e inquiridor.
- Tenho deveres na. Corte, nas festas e cerimônias. Tam-
bém preciso representar no terreno militar, em juramentos de
recrutas e festas da bandeira. Depois, preciso representar meu
218
!�
irma, o Grão-Duque, nas recepções. E há pequenas viagens�
de scrviço, pelas cidades do país, para inaugurações e outras
` solenilades públicas.�
- Ah - disse o Sr. Spoelmann. - Cerimônias, soleni-
dades. Para os outros olharem. Bom, eu entendo disso. Vou
lhe clizer once for all que não ligo nada para sua profissão.
That's my standpoint, Sir.
- Entendo perfeitamente - disse Klaus Heinrich. Sor-
ria doloridamente, ereto em seu casaco de Major.
- Bem, parece que isso também se precisa treinar -
prossc.·uiu o Sr. Spoelmann, um pouco mais brando -, trei-
nar c .rprender. Eu jamais deixaria de me incomodar tendo de
apareccr como bicho raro. . .
-- Espero - disse Klaus Heinrich - que nosso povo
não lhe falte com o respeito. . .
-- Obrigado, a coisa vai indo - respondeu o Sr. Spoel-
,
mann. - As pessoas daqui ao menos são bondosas. Não me
olham como se quisessem me matar.
--- Aliás, Sr. Spoelmann, eu gostaria de saber que, apesar
das ccmdições inusitadas, o senhor se sente bem entre nós -
disse Klaus Heinrich, sentindo-se melhor porque agora dirigia
a conwrsa e fazia as perguntas.
--- Obrigado - disse o Sr. Spoelmann, estou at ease. E
a ágr.,r é a única coisa que me ajuda um pouco.�
-- Não achou difícil deixar os Estados Unidos?
.'m olhar rápido, desconfiado, até tímido, que Klaus Hein-�
rich nao soube interpretar, prendeu-se em seu rosto.
-- Não - disse o Sr. Spoelmann, voz roufenha e áspera.
Foi t.mlo o que respondeu àquela pergunta, como se a despe-
dida lns Estados Unidos nãolhe tivesse sido difícil.�
!'ausa. A Condessa Lowenjoul inclinou de lado sua cabe-
cinha ue cabelo liso, sorrindo ausente, ar de madona. A Srta.
Spoelmann contemplava Klaus Heinrich sem parar, com seus
olhos randes, pretos e lustrosos, como se analisasse o efeito�
que a estranha rudeza do pai causava no vísitante. Sim, Klaus
219
Heinrich teve a ímpressão de que ela esperava com calma e com-
preensão que ele se despedisse para sempre. Os olhos dele
encontraram os da moça, e ele ficou. O Sr. Spoelmann pegou
no bolso um estojo dourado e dele retirou um cigarro grosso
que, aceso, começou a espalhar um aroma delicioso.
- Deseja fumar? - perguntou depois. . . E, como Klaus
Heinrich achasse que agora não tinha mais importância, pegou
¡I
um cigarro depois do Sr. Spoelmann, no estojinho que lhe
estava sendo oferecido.
' Então, antes de olharem os vidros, falaram ainda de vá-
rios outros assuntos - principalmente Klaus Heinrich e a Srta.
Spoelmann, pois a Condessa estava perdida em seus pensa-
1 mentos e o Sr. Spoelmann só de vez em quando intervinha
i
com alguma palavra roufenha. Falaram do teatro local, do gran-
de navio no qual os Spoelmann tinham vindo para a Europa.
Não, não tinham usado seu iate. Este servia especialmente
para levar o Sr. Spoelmann para o mar à noite, quando Imma
' e a Condessa estavam em Newport e ele ficava preso à cidade
pelos negócios. Então, o Sr. Spoelmann passava a noite no
,
convés. Agora, o iate estava novamente em Veneza. Mas ti-
nham atravessado Ooceano num imenso vapor, um hotel flu-
tuante com salas de concerto e canchas de esporte. A Srta.
Spoelmann contou que tinha cinco andares.
- Contando de baixo? - perguntou Klaus Heinrich.
Ela respondeu imediatamente:
i - Isso mesmo. Contando de cima, tinha seís.
Ele ficou perturbado, não entendeu mais nada, e levou
tempo para perceber que estavam zombando dele. Depois, pro-
curou explicar-se, justificar sua pergunta simplória, fingir que
i tinha perguntado se ela calculava tudo junto, também os apo-
¡ sentos debaixo da linha-d'água, os porões - em suma, pro-
i var que não era desprovido de argúcia. E por fim participou
da hilaridade que resultou dessa tentativa. Quanto ao Teatro
da Corte, a Srta. Spoelmann, repuxando os lábios e movendo
a cabecinha, achou que se deveria recomendar vivamente à atriz
220
que fazia a ingênua uma cura em Marienbad, além de um curso
de dança c aulas de etiqueta, enquanto ao herói se devia su-
gerir qm uma voz como a dele, mesmo na vida privada, só�
deveria scr usada com extrema discrição . . . sem prejuízo do
estabelerimento artístico de que falava, e ao qual a Srta. Spoel-
mann clcwtava o maior respeito.�
. Kl.m Heinrich riu, e se espantou com tamanha agilidade,�
sentinde nma dorzinha no coração. Como ela falava bem, como�
usava a palavras de modo arguto e brilhante! Falaram tam-�
bém de Eeças, de óperas e espetáculos apresentados naquele�
inverncs, c Imma Spoelmann contradisse o julgamento de Klaus
Heinricl,, contradizia-o sempre, como se lhe parecesse insultuo-
so não ca fazer; deixou-o cansado com aquela divertida supe-
rioridacle da língua, e 'seus grandes olhos pretos no rostinho
pálido i,rilhavam de alegria por sua própria eloqüência, enquan-
to o Sr. Spoelmann, inclinado obliquamente para trás na ca-
deira, u igarro grosso entre os lábios escanhoados, pestane-�
jando n. tumaça, contemplava a filha com terna benevolência.�
Ml.i; de uma vez, Klaus Heinrich percebeu no próprio�
rosto a i.we expressão de dor que vira outro dia no rosto da�
madre uperiora, e mesmo assim acreditou reconhecer clara-�
mente ciue Imma não pretendia ferir, não julgava os outros
humilh;nios se não conseguiam retrucar sua linguagem no mes-
mo ton. que, ao contrário, aceitava as pobres respostas dele�
como ae achasse que ele não precisava defender-se claquelas
brincacici:as - só ela. Mas como e por quê? Muitas de suas
expresa:; ferinas faziam-no pensar em Überbein, no eloqüente� �
e fanfarrao Dr. Überbein, que era um malnascido e crescera
em corciiões que dizia serem boas. Juventude miserável, soli-� �
dão e ;lusão da felicidade, da vadiagem dos felizes - pes-� �
soas a.;;m não engordavam, não conheciam conforto, e depen-�
diam w:-itamente das próprias capacidades, o que era vanta-�
gem se,;;ra em relação àqueles "que não tinham necessidade".�
Mas Imrna Spoelmann sentava-se confortavelmente, em seu ves-
tido v.r,oelho e dourado, junto à mesa da sala, numa postura� �
221
negligente, com expressões mimadas e caprichosas; sentava-se
naquela segurança toda e sua fala era ferina como a daqueles
que precisavam, para sobreviver, de Iucidez, dureza e espírito
alerta. Por quê? Klaus Heinrich esforçava-se interiormente para
descobrir, enquanto se falava de navios e peças de teatro.
Sentava-se ereto, numa postura totalmente controlada, sem se
permitir maior conforto, escondendo a mão esquerda, e por
vezes era atingido por um olhar cheio de ódio da Condessa
Lõwenjoul.
Um criado apareceu e entregou ao Sr. Spoelmann um
telegrama numa bandeja de prata. O Sr. Spoelmann o abriu,
com ar aborrecido, leu-o piscando, com o resto do cigarro no
canto da boca, e jogou o telegrama de volta na bandeja com
uma ordem lacônica:
- Mr. Phlebs. - Depois, chateado, tornou a acender
um cigarro.
A Srta. Spoelmann disse:
- Apesar das ordens médicas, esse é o quinto cígarro
que você fuma esta tarde. Não escondo que a paixão desen-
freada com que você se entrega a esse vício não combína com
seus cabelos brancos.
Jia-se que o Sr. Spoelmann tentava rir, mas não conse-
guia; ele não tolerava o tom forte e áspero das palavras dela,
o sangue lhe subiu à cabeça.�
- Cale-se! - disse, zangado. - Você sempre acha que,
na brincadeira, pode dizer qualquer coisa. Mas não quero essas
malcriações, sua tagarela!
Klaus Heinrich, chocado, olhou para Imma, que encarava
com grandes olhos assustados o rosto irado do pai, e depois
baixou tristemente a cabecinha morena. Certamente, não tivera
qualquer intenção ruim, sentia prazer naquelas palavras som-
brias, grandes e estranhas, que manejava ironicamente, esperava
despertar hilaridade, e agora, por acaso, se dera muito mal.
- Paizinho, mas paizinho! - disse, suplicante, e foi até
ele, acariciar seu rosto vermelho.
222
- Ora bolas - resmungou ele -, você também não é
mamr ciue eu.�
'ias depois se deixou acariciar, ofereceu-lhe a calva para� �
um i"ijo e ficou satisfeito. Klaus Heinrich lembrou os vidros,�
dep>i, de restabelecida a paz, e deíxaram a mesa do chá, des-�
ceni; para a sala da coleção, anexa, com exceção da Condessa� �
Lo,wpoul, que se retirou com uma profunda mesura. O Sr.�
Spoulmann mandou acender as velas elétricas dos lustres na
sala .a lado.�
I rlos armários, conforme o estilo de todo o Castelo, bar-�
rigma:;, com portas de vidro, alternando-se com poltronas de
seda. u,deavam todo o aposento, e continham a coleção de ví-�
dros :rtísticos do Sr. Spoelmann. Sim, era provavelmente a�
mai .v.mpleta coleção dos dois mundos, e o vidro que Klaus� �
Heinri, h comprara era apenas um exemplozinho modesto. Co-
mcç:m,. num canto da sala, com os mais antigos produtos de
luxc, !.sse artesanato; no fundo, pinturas das civilizações pri-� �
miti ,. ; . , prosseguindo com objetos de arte do Oriente e do�
Ocic!.wue, de todas as épocas, constando de vasos e cálices
chei,. cle arabescos e guirlandas, em vários formatos, das vi-�
drarin. de Veneza, e peças preciosas de cabanas da Boêmia,
cane, a alemães, cálices com muitas figuras de corporações e��
prirr. i:ados, misturados com bizarras formas de animais e esta-�
tuet:m humorísticas, grandes cálices de cristal que lembravam
a fel i:. ;..lade de Edenhall, da canção, e em cujo polimento a luz
se n : ; .tava magnificamente, cálíces de rubi que ardiam como�
o S,.:, i s Graal, e por fim os mais nobres exemplares da arte� �
mod. rv.,,, flores de vidro extremamente delicadas sobre caules
inf in : . nente frágeis e bibelôs de vidro de acordo com o� � �
gost ooderno, recobertos, através do vapor de metais no-�
bres ,!.rretidos, de cores bril.hantes. Os três, seguidos de Per-
cival. :I;ie também olhava tudo, andaram lentamente sobre tape-
tes, ;u,, redor da sala, e o Sr, Spoelmann explicava, com voz rou-
fenh. , . origem de cada peça, sua mão magra semicoberta pelo�
223
I.;
punho não-engomado retirando todas, cuidadosamente, da esca-
ninho de veludo e segurando-as contra a luz.
Klaus Heinrich estava habituado a visitar, perguntar e
fazer 'comentários muito elogiosos, por isso conseguia ao mes-
mo tempo refletir sobre a linguagem de Imma Spoelrnann, sua
linguagem estranha, na qual pensava com algum sofrimentó.
As coisas que ela dízía avançando os lábíos! As palavras que
usava tão levianamente! "Vício": como chegara a essa palavra
,
usando-a tão atrevidamente? Acaso a Condessa Lówenjoul, que,
quando perturbada, também falava essas coisas, e obvíamente
tivera experiências terríveis, não dissera que Imma era total-
mente ígnorante? Sem dúvída ísso era correto, pois ela era um
caso ünico em matéria de nascimento, crescendo em pureza e
refinamento, excluída da existência das pessoas e sem partici-
par das coisas loucas que, na vida real, correspondiam a essas
palavras sombrías. Mas ela se apoderara das palavras e as usara
numa linguagem burílada, divertíndo-se com elas. Sim, era ísso:
aquela criatura rude e doce, em seu vestido vermelho e dourado,
gostava daquela Iínguagem, vívía daquela linguagem, e só co-
nhecia, da vida, aquelas palavras, brincava com as mais graves
e terríveis como com pedras coloridas, e não entendia quando
com elas causava aborrecimentos! O coração de Klaus Heín-
rich ficou cheio de compaixão pensando nisso.
Eram quase 7h quando ele pediu que mandassem vir sua
carruagem - um pouco inquieto com sua longa permanência,
par causa da Corte e do püblico. Sua partida provocou novo
acesso terrível em Percival, o collie. Cada modificação ou ínter-
rupção de uma sítuação parecía quase enlouquecer o nobre ani-
mal. Tremendo, com latidos furiosos e sem se deixar acalmar,
ele disparava pelos aposentos, vestíbulo e escada, para cima
e para baíxo, de modo que as palavras de despedída eram
sufocadas por esse rumor. O mordorno fez as honras da casa
ao Príncipe, acompanhando-o até o carredor com as estátuas
de deuses. O Sr. Spoelmann não o acompanhou. A Srta. Spoel-
mann conseguíu dízer:
224
- Tenho certeza de que sua estada no seio de nossa
fan,.lia o deíxou encantado, Príncipe - e não ficou claro se
a Ooaría dela se referia à expressão "no seio de nossa famí-��
lia" an à coisa em si. De qualquer modo, Klaus Heinrich quase�
nãc >ube como retrucar. Recostado num canto do seu cupê,� ��
um ",uco magoado e abatido, mas também repousado por aque-
le t nr;mento inusitado que lhe tinham proporcionado, voltou� �
parn . asa pelo escuro Parque Municipal, para o Eremitage, vol-
tou ms seus sombrios aposentos império, onde jantou com os
Srs. wn Schulenburg-Tressen e I3raunbart-Schellendorf. No dia�
segun,te, leu o comentárío do Mensageiro. Este dizia simples-
mer, c que ontem Sua Alteza Real, o Príne-ipe Klaus Heinrich,�
tom;ra chá no Castelo dos Delfins, e visitara a famosa coleção `�
de v iclros artísticos do Sr. Spoelmann.
Ü Klaus Heinrich continuou sua vida sem objetividade,
;
exen. itmdo sua nobre vocação. Dizia palavras benevolentes,
executava seus gestos, representava na Corte e no baile do Pre-
'. sideme do Conselho, concedia audiências pnblicas, almoçava no
cassino dos oficiais dos Granadeiros, mostrava-se no Teatro da
Cort e concedia a uma ou outra cidade do país sua solene��
presança. Sorrindo, de calcanhares unidos, mantinha as forma-
lida.cs e, com postura totalmente controlada, realizava suas��
difíc.is obrigações, embora nesse tempo tivesse muito sobre� �
o quc refletir: sobre o írritadiço Sr. Spoelmann, a perturbada�
Con?cssa Lõwenjoul, o doido cão Percy e também Imma, a�
filha da casa. Muitas perguntas que sua primeira visita aos
Delns nele despertara ainda não podiam ser respondidas. Só��
obte . c as respostas no curso de um maior relacionamento com
a fa o í 1 ia Spoelmann, que continuou a exercitar com participa-�
ção unsa e, por fim, febril da opinião pública. O passo seguin-�
te f"i o Príncipe, certa manhã, bem cedo, para espanto da
criaci.yem e dele próprio, de certa forma involuntariamente,
com. que regido r,:lo destino, aparecer sozinho, a cavalo, nos�
Del I n s a fim de convidar a moça para um passeio, ainda por�
cima interrompendo seus estudos de matemátíca.
225
I
i
O encantamento do inverno fora rompido muito cedo na-
uele ano singular. Depois que janeiro passara mansamente,
,i q
já em meados de fevereiro se iniciara, com cantos de pássaros,
ouro de sol e doces brisas, uma antecipada primavera. E quan-
do na manhã do primeiro desses dias esperançosos Klaus Hein-
rich acordou no Castelo Eremitage em sua velha e ampla cama
de mogno, uma das bolas que coroavam as colunas quebrada
e perdida, sentiu-se tocado por uma mão imperiosa que o con-
vidava irresistivelmente a novas ações.
Manejou o puxador da sineta, chamando Neumann (pois
em Eremitage só havia sinetas com puxadores), e ordenou que
dentro de uma hora selassem Florian. Queria um cavalo para
os lacaios? Não, não era preciso. Klaus Heinrich declarou que
desejava cavalgar a sós. Depois, entregou-se às zelosas mãos de
Neumann para a toalete matinal, fez a refeição no jardim de
inverno, impaciente, e ao pé do pequeno terraço montou em
seu cavalo. As botas de montaria, com esporas nos calcanhares,
na mão direita a luva marrom e as rédeas de couro amarelo,
e a esquerda enfiada no quadril, por baixo do manto aberto,
ele cavalgou a passo pela doce manhã, procurando nos galhos
ainda despidos os pássaros que gorjeavam. Passou pela parte
pública de seu parque, pelo Parque Municipal, e depois pelo
terreno dos Delfins. Às 9h30min, chegou. A surpresa foi grande.
No portal principal, entregou Florian a um cavalariço in-
glês. O mordomo, que atravessava o vestíbulo com o chão de
mosaico cuidando dos assuntos da casa, parou, quieto e espan-
tado, ao ver Klaus Heinrich. Quando, com voz clara e ao
mesmo tempo eufórica, o Príncipe perguntou pelas damas, ele
não respondeu, mas se virou perplexo para a escada de már-
more, e olhou para cima, sem falar, pois lá estava o Sr. Spoel-
mann.
Este parecia ter ncabado sua refeição, e estava bem-dis-
posto. Mãos nos bolsos da calça, afastando o casaco de casa
226
que asava sobre o colete de veludo, píscando por causa da
fum:.ua azulada do cigarro que tinha entre os lábios, ele disse:
- Então, jovem Príncipe? - olhando para baixo.
vlaus Heinrich subiu pelo tapete vermelho dos degraus,
farenaio continência. Sentía que só com pressa e, por assim
dize . intempestivamente, conseguiria dominar a situação.�
- Sr. Spoelman, deve estar espantado. . . - disse ele.
- .`nma hora destas. . . - Estava ofegante, e isso o deixou�
assm t:tdo, pois não estava habituado a sentir-se assim.
) Sr. Spoelmann respondeu, com expressão facíal e mo-�
vimmoo de ombros, que sabia dominar-se, mas estava curioso
pela .wplicação.�
- Trata-se de uma combinação. . . - disse Klaus Hein-
rich. l;stava dois degraus abaixo do bilionário, e erguia o rosto�
par, falar com ele. - Uma combinação de passear a cavalo�
com n Srta. Imma. Prometi mostrar às senhoras o Castelo dos
Fais s ou o Castelo de Caça. . . A Srta. Imma não conhece� ���
qua nada da região, conforme me disse. Tínhamos combi-���
nade, ,y.te no primeiro dia bonito. . . E hoje está tão bonito. . .
Natu..ralmente, precisareí da sua concordâncía. . .
) Sr. Spoelmann ergueu os ombros e torceu a boca como�
quen: cliz: concordância. . . como?
-- Minha-filha é adulta - disse ele. - Não costumo
inteurir em sua vida. Se ela quer cavalgar, vai cavalgar. Mas�
acho aue não tem tempo. Terá de perguntar o senhor mesmo.�
Ela ,. ·a sentada ali dentro. - E, dando um passo para o lado,
o Sr `poelmann apontou com o queíxo para a porta de corti-
nas .. i ravés da qual Klaus Heinrich já passara uma vez.
- Obrigado! - disse eçre. - Sím, então vou pessoal-
ment...�
i : subiu os últimos degraus da escada, abriu com gesto
,.. deci.i(o a cortina trabalhada e desceu os degraus que cond-� � �
ziam ao jardim de inverno, ensolarado e perfumado de flores.
:' )iante da gigantesca fonte e do chafariz com os patos de
pen.a, mloridas, Imma Spoelmann estava sentada, as costas quase
227
inteiramente viradas para a entrada, curvada sobre uxna me-
sinha. Seu cabelo estava solto. De um negro azulado, lustroso,
corría dos dois lados do repartido, cobría a parte superíor do
corpo e só deixava adivinhar uma sombra de seu perfil suave
e infantil, do rosto que parecia pálido como marfim contra o
.
negror dos cabelos. Assím envolta na cabeleíra, ela se dedicava
ao estudo, trabalhando num caderno ao lado, lábios sobre as
costas estreitas da mão esquerda, manejando a caneta com o
indicador bem curvado.
A Condessa estava presente, também escrevendo. Sentava-
se a alguma distância, debaíxo das palmeiras, onde Klaus Hein-
rich falara com ela da primeira vez, e escrevia, ereta, a cabeça
inclinada de lado, em papel de carta, tendo ao lado uma pe-
quena pilha toda rabiscada. O rumor das esporas de Klaus
Heinrich fê-la erguer os olhos. Ela o enarou por dois segundos,�
olhos apertados, longa pena em forma de fuso na mão. Depois,
ergueu-se para fazer a mesura e disse:
- Imma, Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Heinrich,
está aqui.
A Srta. Spoelmann virou-se depressa em sua poltrona de
vim, sacudiu o cabelo para trás e encarou o intruso com gran-�
des olhos assustados, sem falar, até que, com uma saudação
militar, Klaus Heinrich cumprimentasse as duas damas, dando-
Ihes bom-dia. Então ela dísse, com sua voz rouca:
- Bom dia para o senhor também, Príncipe. Mas chegou
tarde para o café da manhã, terminamos há horas.
Klaus Heinrich riu:
- Então, é bom que as duas partes tenham tomado café
- disse ele. - Assim, poderemos cavalgar em seguida.
- Cavalgar?
- Sim, conforme tínhamos combinado.
- Combinado?
- Não, não pode ter esquecído! - disse ele, suplicante.
- Não prometi mostrar-lhe a região? Não íamos cavalgar
juntos com bom tempo? O dia está lindo, olhe para fora. . .
228
-- O dia não está mau - disse ela -, mas estou achando
que meio intempestivo, Príncipe. Lembro que falamos vaga-��
men c em cavalgar. . . mas ' não de modo tão concreto! Que
tal av houvesse antes uma pequena notificação, uma pergunta
de s.m parte, se Vossa Alteza permite a palavra? Há de admi-
tir ;.m° não posso sair por aí a cavalo nestas condições.� �
1.: levantou-se para mostrar o robe, que era de seda lus-
trosn. com pregas amplas, e um casaquinho verde aberto.
- Não - disse ele -, infelizmente não pode. Mas eu
espeu aqui, enquanto as senhoras mudam de roupa. É cedo�
aind;:. . .
-- Muito cedo. Mas, em segundo lugar, eu estava mesmo
dedicada à minha inofensiva ocupação, como pôde ver. Tenho
aula s llh.�
- Não - exclamou ele -, hoje não deve estudar álge-
bra, Srta. Imma, nem brincar no vazio, como diz! Veja esse
sol! . . . Posso? . . . - e aproximou-se da mesa, pegando 0
caderno.
O que viu era perturbador. Numa letra floreada, infan-
tilmunte redonda, de traço grosso, que revelava a maneira de
segurar a caneta, as páginas estavam cobertas por fantásticos
sinais cabalísticos, um sabá de bruxas de runas entrecruzadas.
Letrns gregas acopladas com letras latinas e números, em diver-
sas ulturas, entremeados de cruzes e traços, alinhados fragmen-
tariamente, acima e abaixo de linhas verticais - recobertas,
à m.neira de tendas, por outras linhas -, igualados por traços�
dupl.s, reunidos por chaves redondas e agrupados em grandes� �
fórmulas por chaves angulares. Letras isoladas, avançadas como
guarlas, ficavam fora dos grupos reunídos por chaves, um pou-�
co aaima, à direita. Sinaís cabalísticos, totalmente incompreen-
sívei , ao leigo, rodeavam com seus braços letras e números,
com f rações numéricas à frente, e números e letras pairando
sobr suas cabeças ou a seus pés. Sílabas estranhas, abreviatu-��
ras Ic palavras misteriosas, espalhadas por toda parte, e entre�
as cc>lunas de necromancia havia frases escritas, e comentários
229
f
i
,; '
I;i.
I
k
em linguagem cotidiana, cujo sentido ficava, por outro lado,
tão acima de todas as coisas humanas que podiam ser lidos
sem que se entendesse mais do que se entende um murmúrío
de feitiçaria.
Klaus Heinrich ergueu os olhos para o pequeno vulto
parado a seu lado em roupas brilhantes, coberto pela cortina
negra dos cabelos, e em cuja cabecinha estrangeira tudo aquilo
tinha sentido e uma vida sublime e variada. Disse ele:
- E por causa dessas artes pagãs a senhora quer perder
esta bela manhã?
Ela o contemplou por um momento, com estranheza, gran-
des olhos eloqüentes. Depois respondeu, avanando os lábios:�
- Parece que Vossa Alteza quer se vingar da falta de
compreensao que outro dia se demonstrou aqui em relação à
sua própria vocação.
- Não - di.sse ele. - Não, não é ísso! Dou-lhe minha
palavra de que tenho o maior respeito por seu estudo. Admito
que me amedronta, nunca entendi nada disso. Também admi-
to que hoje me repugna um pouco porque nos vai impedir de
passearmos a cavalo . .
- Ah, não é só a mim que pretende tírar de sua ocupa-
ção, Príncipe. Há uma terceira pessoa, a Condessa. Ela estava
escrevendo. Está escrevendo suas memórias, e não escondo que
será uma obra na qual o senhor, como eu, Príncipe, poderá
aprender muita coísa.
- Tenho certeza disso. Mas tenho igual certeza de que
a Sra. Condessa não é capaz de recusar um pedido seu, Srta.
Imma.
- E meu pai? Há um quarto obstáculo. O senhor co-
nhece o temperamento de tigre do meu pai. Será que ele vai
permitir?
- Já permitiu. Se a senhora quer cavalgar, então vai
cavalgar. São palavras dele. . .
- Ah, já se asseguroi
Agora começo a admirar sua
previamente dessa permissão.
visão, Príncipe. O senhor agiu
230
como um comandante, embora nem seja soldado de verdade,
mas ;ynas na aparência, segundo nos contou outro dia. Mas� ��
há ain:.la um quinto obstáculo, e este é decisivo. Vai chover. . .
Não, não é correto. O céu está radiante. . .
Vai chover. O ar está macio demais. Constatei isso
quan i, ; estávamos no Jardim das Fontes, antes do café. Venha�
até o :,.rômetro, se não acredita em mim. Está no vestíbulo. . .�
.íram realmente para o vestíbulo dos tapetes, onde, ao� �
lado ln lareira de mármore, se via um barômetro bem grande.�
A Comlessa foi com eles. Klaus Heínrich disse:
Ele subiu.
Vossa Alteza gosta de enganar-se - respondeu a Srta.
Spoelmmn. - A paralaxe o iludiu.
- Não entendi.
- A paralaxe o iludiu.
- Não sei o que é isso, Srta. Imma. É como com os
Adir";dacks. Não aprendi muita coisa devído à minha forma�
de viu.r. Deve ter paciência.�
- Ah, peço mil desculpas. Devia ter me lembrado de
que, wm Vossa Alteza, é preciso falar de maneira popular.�
Estam"s parados obliquamente em relação ao ponteiro, por isso
parec, que ele subiu. Se pudesse postar-se exatamente diante
dele, v cria que o preto não subiu acima do dourado, ao con-
tráric , até recuou um pouquinho.
- Acho que é verdade, tem razão - disse Klaus Hein-
rich, t riste. - Então, a pressão do ar é maior do que eu
pens;:,. . !�
- Menor do que o senhor pensava.
- Mas quando o mercúrio baixou?
- O mercúrio baixa com pressão baixa e não com pres-
são Í; ; a, Alteza.
- Agora não entendo mais nada.
- Príncipe, acho que o senhor exagera comicamente sua
igno;:ncia para lhe diluir os limites. Mas, como a pressão está�
231
tão alta que o mercúrio caiu, o que realmente indica um grave
engano da natureza, vamos cavalgar. Condessa, que acha? Não
quero ter a responsabilidade de mandar o Príncípe para casa,
uma vez que ele está aqui. Ele poderá esperar um pouco até
nos aprontarmos. . .
Quando Imma Spoelmann e a Condessa voltaram ao jar-
dim de inverno, estavam vestidas para andar a cavalo, Imma
num vestido de lã preta, fechado, com bolsos no peito, e cha-
péu de três pontas de feltro preto, a Condessa com roupa de
tecido preto, um peitilho de camisa de homem engomado e
chapéu alto. Juntos desceram as escadas, atravessaram o ves-
tíbulo de mosaicos e foram para fora, onde, entre o portal
das colinas e o grande tanque, havia dois cavalariços esperando
com as montarias. Mas ainda nem haviam montado quando,
com um uivo agudo, expressão de paixão intensa, Percival, o
collie, saiu disparando do Castelo, espumando, rápido como um
pé-de-vento, e começou a dançar como louco ao redor dos ca-
valos, que agitavam as cabeças, inquietos.
- Pronto - disse Imma ante aquele ruído todo, e bateu
no pescoço da assustada Fatima. - Não conseguimos guardar
segredo dele. No último momento, descobriu tudo. Agora, ele
virá junto, e não sem escândalo. Podemos começar, Príncipe?
Embora Klaus Heinrich percebesse que seria o mesmo que
mandar à frente um criado com trombeta de prata anunciando
ao públíco essa cavalgada, ele disse, desafiador e contente, que
Percival podia ir junto; fazia parte do grupo e também pre-
cisava conhecer os arredores.
- Então, para onde vamos? - perguntou Imma guando
passavam pela larga alameda de castanheiros.
Cavalgava entre Klaus Heinrich e a Condessa. Percival
corria na frente, latindo. O cavalariço inglês, com chapéu de
roseta e botas amarelas, seguia a certa distância.
- O Castelo de Caça é muito bonito - disse Klaus Hein-
rich -, mas o Castelo dos Faisões fica um pouco mais longe,
e temos tempo até o almoço. Gostaria de mostrar o Castelo
232
às sen ï .uras. Passei três anos lá, quando menino. Era um pen-
sionai , sabe, com professores e colegas. Lá conheci meu amigo�
Überi in, o Dr. Überbein, meu professor predileto.�
O senhor tem um amigo? - perguntou a Srta. Spoel-
mann aom muito espanto; e olhou para ele. - Precisa me
falar l.le - acrescentou. - E foi criado no Castelo dos Fai-� �
sões r 1 :ntão, temos de vê-lo, pois o senhor obviamente tam-
bém ; unsa assim. Trote! - disse ela quando chegaram a um�
camir.,ic de terra. - Lá fica a sua ermida, senhor Príncipe. . .� � �
muita omida e patos sobre o laguinho. . . Acho que deíxare-�
mos ,lardim das Fontes, se for possível.��
ivlaus Heinrich ficou contente com isso; portanto, deixa-
ram a região do parque e trotaram pelos campos, para chega-
rem a estrada que levava para noroeste, na direção desejada.
No P..trque Municipal foram saudados por alguns transeuntes
a pasaio, que os olharam espantados, enquanto Klaus Heinrich�
agradecia com a mão no quepe e Imma com um movimento
sério um pouco inibido da cabecinha de rosto pálido e cabe-��
los m.gros sob o chapéu tricorne. Agora, estavam em campo
abert< c não precisavam mais controlar os movimentos. Pela�
estraçl,i, passava, vez por outra, uma carroça de camponeses,
ou un homem de bicicleta avançava, curvado sobre o volante.�
Mas Imrmaneciam à beira do caminho, no prado, onde se sen-
tiam mais livres para cavalgar. Percival dançava diante dos
cavalc,. numa inquietação permanente, numa expectativa febril,�
sempr,: girando, trotando, sacudindo a cauda - a respiração
ofegn te, a língua pendendo da goela aberta e espumante; por�
vezes ., insensato tormento de seus nervos se aliviava num grito
breve suspiroso. Depois ele correu para mais longe, seguindo,�
com : ,rclhas espetadas e saltos curtos e altos, algum bichinho
no cl,.o; correu feito doido atrás de uma lebre veloz, enquanto
seus l.nidos descontrolados reboavam sob o céu.
I ;laram de Fatima, que Klaus Heinrich via pela primeira�
vez ta de perto e que admirou sinceramente. Sobre seu pescoço�
longo musculoso, Fatima balançava elegantemente a cabeça�
233
V�
pequena, de olhos fogosos; tinha as pernas delicadas dos cavalos
árabes e uma ondulante cauda prateada. Era branca como 0
luar, com arreios e sela igualmente brancos. Florian, o casta-
nho meio sonolento, com lombo curto, crina aparada e ligas
amarelas, parecia. doméstico como um burro ao lado daquela
nobre égua estrangeira, embora fosse muito bem-cuidado. A
Condessa Lõwenjoul montava uma grande égua fulva chamada
Isabel. Montava muito bem, ajudada por sua figura alta e rí-
gida; mas sua cabeça pequena, com chapéu masculino, incli-
nava-se de lado, e suas pálpebras estavam apertadas. Klaus
Heinrich falou com ela, às costas da Srta. Spoelmann, virando-
se para trás na sela; mas ela não respondeu, continuou olhando
diretamente em frente, olhos semicerrados e expressão de ma-
dona, e Imma disse:
- Esqueça a Condessa, Príncipe. Está distraída.
- Imagino que a Condessa não tenha vindo com muita
vontade - disse ele. E ficou sinceramente consternado quando
Imma respondeu, indiferente:
- Para ser franca, pode ser.
- Por causa do que estava escrevendo? - perguntou
ele.
- Ah, as anotações. Não são tão urgentes, são mais um
passatempo. . . embora secretamente eu espere muita coisa ins-
trutiva delas. Mas não lhe esconderei, Príncipe, que a Con-
dessa não o aprecia especialmente. Já me falou nissa. Diz que
o senhor é duro e severo, e a deixou intimidada.
Klaus Heinrich ficou vermelho.
- Bem sei - disse baixinho, olhando as rédeas do seu
cavalo - que não sou muito símpático, Srta. Imma, au quando
muito, de longe. . . Isso também se deve ao meu tipo de vida,
como já disse. Mas não tenho lembrança de jamais ter sido
duro e severo com a Condessa.
- Provavelmente, não com palavras - respondeu a moça.
- Mas não lhe permitiu que se soltasse um pouca, não lhe
concedeu o benefício de deixá-la soltar um pouco a língua. . .
234
por is..,, ela está magoada. . . e eu seí bem como foi que fez
isso, c :uo lhe dificultou as coisas e a esfriou. . . muito bem -
repetiú la, e desviou o rosto.�
I·.:.ms Heinrich ficou quieto. A mão esquerda estava no
quadri: ú os olhos pareciam fatigados.
- A senhora sabe? - disse ele depois. - E também
não Il: ;ou simpático, Srta. Imma?�
- Previno-o - disse ela sem pensar, com sua voz rouca,
moven,':, a cabecinha para lá e para cá, fazendo bico - q;e� �
não su;rvalorize a impressão que me causa, Príncipe.���
1. íe repente fez Fatima galopar, voou tão depressa pelo�
campe> : m direçáo à massa escura dos pinheirais distantes que
nem a ,ndessa nem Klaus Heinrich conseguiram alcançá-la. Só�
na bei.. da floresta pela qual passava a estrada foi que ela parou�
e viro, ; seu animal para encarar, com ar zombeteiro, os que
vinharv v m seu encalço.��
.1 t.;ondessa Lowenjoul, na grande Isabel, foi a primeira
a che::; perto da fugitiva. Depois chegou Florian, bufando e��
perple .., com aquela exigência inusitada. Todos riam e respi-�
ravam ..icpressa, enquanto entravam na floresta cheia de ecos.
A Cor:.;ssa estava bem desperta agora, e falava animadamente,��
com n: ., imentos vivos e nobres, mostrando os dentes alvos.�
Iirinco om Percival, cuja alma estava novamente agitada pela�
correri.: que girava sobre si mesmo, furioso, entre as árvores,��
diante ::s cavalos.��
- ,lteza Real - disse ela -, devia vê-lo saltar. . . dar�
volteic . ele salta valas de seis metros de largura com uma
graça , leveza encantadoras. Mas, note bem, só quando
quer, ¡,:!s acredito que preferiria deixar-se matar a se submeter
a quai:..y.. r treinador e executar artes ensinadas. Eu diria que��
ele te! a treino e a disciplina em si mesmo, de nascença, e�
mesmc .yando se porta mal, jamais é rude. É um aristocrata�
bem-n; ·rido e de caráter firme. Ah, ele é altivo, parece louco,
mas sa' . controlar-se. Ninguém jamais o ouviu gritar de dor, ou� �� �
quand <e fere ou é castigado. Também só come quando tem�
235
fome, senão despreza os melhores pratos. De manhã, sua refei-
ção é nata. . . é preciso alimentá-lo bem. Ele se consome por
dentro, é magro debaixo desse pêlo sedoso, a gente pode sentir
as costelas, e infelizmente é preciso admitir que não vai enve-
lhecer, mas morrer cedo de tuberculose... O populacho 0
persegue, aproxima-se dele e o aborrece pelas ruas; mas ele
foge, sem ficar feroz nem grosseiro, e só quando lhe fazem
maldades é que morde para todos os lados com seus magníficos
dentes, mordidas que não se esquecem facilmente. É muito agra-
dável ver tanto cavalheirismo aliado a tanta pureza.
Imma concordou, com as palavras mais verdadeiras e sé-
rias que Klaus Heinrich já escutara de sua boca.
- Sim - disse ela -, Percy, você é meu bom amigo,
e eu estarei sempre ao seu lado. Alguém, um entendido, disse
que ele era demente, que isso não era raro em cães de raça,
e nos aconselhou a mandar matá-lo porque ele era incorrigível
e um dia nos levaria ao desespero. Mas eu não permito que
me tirem meu Percy. Ele é incorrigível, sim, e muitas vezes
difícil de suportar, mas mesmo assim é comovente e bom, e
gosto dele.
Depois, a Condessa fez mais alguns comentários sobre a
natureza do collie, mas logo suas palavras se tornaram confusas
e estranhas, transformando-se num monólogo acompanhado de
gestos vivos e elegantes; e, após lançar a Klaus Heinrich um
olhar perfurante, mais uma vez se perdeu em uma daquelas
ausências.
Klaus Heinrich sentiu-se contente e consolado com a dura
cavalgada na qual, aliás, tivera de se controlar muito, pois,
embora montasse bem, devido à mão esquerda nunca fora um
cavaleiro seguro. . . ou era por algum outro motivo. Quando
saíram do pinheiral e cavalgavam pela estrada silenciosa, entre
prados e campos arados, de vez em quando por uma granja de
camponeses ou alguma estalagem, dirigindo-se a passo para a
floresta seguinte, ele perguntou em voz abafada:
236
- Não quer cumprír a promessa e me falar da Condessa
Srn. Imma? Como foi que ela se tvrnou sua acompanhante?�
- Ela é minha amiga - disse a moça. - E, de certa
fon m, minha preceptora, embora tenha vindo morar conosco
qa n,do eu já era crescida. Foi há três anos, em Nova Iorque,
e ( ;ondessa estava numa situação terrível. Estava morrendo�
de mme - disse Imma Spoelmann e, dizendo isso, voltou os
gr:n.,les olhos negros para Klaus Heinrich, com um olhar in-�
ter ";ativo e hvrrorízado.� �
- Morrendo de fome mesmo? - perguntou Ple, devol-
vco,lv-lhe o olhar. -- Por favor, continue.
- Sim, também pergunteí isso quando ela nos procurou,
e wbora visse que não estava em seu juízo perfeito, mesmo�
asaim me ímpressionou tanto que pedi a meu pai que a admi-
ti como minha dama de companhia.����
- Como é que ela foi parar nos Estados Unidos? É Con-
dea de nascimento? - perguntou Klaus Heinrich.��
- Não é Condessa, mas é nobre, e cresceu em boas con-
diy;es, protegida dos males da vida. Em criança, era delicada
e ! rígü, necessitada de muitos cuidados. Mas casou-se com um�
ccrtv Conde Lõwenjoul, Capitão da Cavalaria... um aristo-
cr" a estranho, segundo o que ela conta. . . não muito exemplar,�
p:ra usar um eufemismo.�
- Como teria sido ele. . . - perguntou Klaus Heinrích.
- Bem, Príncipe, exatamente eu não sei. Deve levar em
c"nta que a Condessa costuma contar tudo de maneira obscura,
n,:, segundo suas indiretas, deve ter sído uma pessoa selva-��
grm e despudorada, como dificilmente se pode imaginar, um
dsses perversos, sabe. . .��
- Sím, eu sei - disse Klaus Heinrich. - Um farrista,
h :-vida ou aventureiro. Esse tipo.� � �
- Bem, digamos aventureiro, mas do píor tipo, mais de-
g i.lado, pois, segundo as alusões da Condessa, esse tipo não�
t.nn limites. . .�
237
- Também acho - disse Klaus Heinrich. - Conheci
várias pessoas desse tipo. . . sujeitos condenados, como se diz.
Ouví dizer que um deles costumava ter casos de amor em seu
automóvel, e ainda por cima a toda velocidade.
- Foi seu amigo Überbein quem lhe contou isso?
-- Não, outra pessoa. Überbein não julgaria adequado per-
mitir que eu saiba dessas coisas.
- Então, seria um amigo inútil, Príncipe.
- Quando eu lhe falar mais sobre °le, Srta. Imma, vaí
apreciá-lo. Mas, por favor, prossiga!
- Bem, não sei se Lvwenjoul fazi.a o rnesmo que esse seu
aventureiro. Mas, mesmo assim, era terrível. . .
- Posso imaginar que ele bebia e jogava.
- Sim, é de se presumir. Além disso, também tinha ca-
sos de amor, como o senhor diz, traía a Condessa com mulheres
pecaminosas, dessas que há tantas, a princípio às escondidas, de-
pois diante dela, com toda a insolência, sem piedade por sua
dor.
- Mas diga-me: por que ela se casou com ele?
- Fez isso contrariando os pais, pois estava apaixonada
por ele, segundo me disse. Pois, em primeiro lugar, era um
bomem bonito quando ela o conheceu . . . mais tarde também
decaiu externamente. Em segundo lugar sua fama de aventu-
reiro deve ter exercido, segundo ela diz, uma atração irresistí-
vel sobre ela, pois, embora vivesse protegida, nada conseguiu
abalar sua decisão de dividir a vida com ele. Se a gente pensar
bem nisso, é possível entender.
- Sim - disse ele -, a gente pode entender. E la queria
procurar, conhecer tudo. E teve suas experiêncías.
- Acho que sim. Embora a expressão me pareça muito
leve para o que ela teve de suportar. O marido a maltratava.
- Quer dizer quelhe batia?
- Sim, maltratava-a fisicamente. Mas agora, Príncipe, uma
coisa de que o senhor também não deve ter ouvido falar: ela
me deu a entender que ele não só a maltratava com raiva, na
23&
hora a.s brigas, mas também tinha tendência a fazer isso para�
, seu E·r.zer, isto é, os maus-tratos eram na verdade carícias�
repul.i,.as.�
!;aus Heinrich calou-se. Os dois estavam muito sérios.�
'.,r fim, ele perguntou:� �
A Condessa teve filhos?
Sim, dois. Morreram bem cedo, os dois, com poucas
f
semao:a de vida, e isso deve ter sido a coisa mais dura de todas.
Seguml" ela deixa entender, essa morte prematura foi culpa
daqu..in, mulheres pecaminosas com que o marido a traía.� �
t )s dois calaram-se de novo, pensativos.
- Além disso - prosseguiu Imma Spoelmann -, ele es-
banj".: com mulheres e no jogo o dote da esposa, que foi gran-�
; de, .. clepois da morte dos pais dela, fez o mesmo com sua�
;
; heran. toda. Parentes dela o ajudaram mais uma vez, quando� �
ele c: ,ma prestes a ter de deixar o Exército por causa das dí-�
vida: . Mas depois veio um caso muito perverso e repulsivo, em
que i se envolveu, e que afinal o derrubou.��
- Que pode ter sido? - perguntou Klaus Heinrich.
Não posso dizer com certeza, Príncipe, mas pelo que a
Comiwsa me contou, foi um aborrecimento extremo, e já con-
,
corcl:m,os em que não há limites.
E então ele foi para os Estados Unidos?
; - Adivinhou, Príncipe. Não posso deixar de admirar sua
perc.yção.�
- Ora, Srta, Imma, continue. Nunca ouvi uma história
com. ussa da Condessa .�
- Nem eu tinha ouvido. Por isso, pode imaginar como
se i.s,ressionou quando nos veio procurar. O Conde Lówen-� �
joul . Polícia nos calcanhares por causa das dívidas, fugiu para�
os 1 ::.dos Unidos, e a Condessa foí com ele.�
- Foi com ele? Por quê?
- Porque, apesar de tudo, ainda gostava dele . . . e gos-
ta a :la hoje. . . e porque queria partilhar a vida com ele de�
qua'.,;er maneira. Mas ele a levou porque contava com o apoío�
239
da famílía dela enquanto a tiv;.sse a seu lado. Os parentes man-
daram-lhes mais uma vez dinheiro para o além-mar, mas, depois.
nunca mais. Negaram-lhes qualquer ajuda. E quando o Conde
Lwenjoul viu que a mulher não lhe adiantava mais em nada,�
deixou-a - deíxou-a sozínha, na maíor míséria e fugiu.
- Eu sabia - disse Klaus Heinrich. - Tinha imaginado.
É assim que acontece.
Mas Imma Spoelmann prosseguiu:
- Lá ficou ela, sem dinheiro nem ajuda, e, como não
tivesse aprendido a ganhar a vida, foi impiedosamente entregue
à miséria e à fome. Mas a vida lá é ainda bem mais dura e in-
digna do que aqui, e de outro lado deve-se pensar que ela sem-
pre foi delicada e frágil, e que durante muitos anos levara uma
vida ingrata. Em suma, ela não estava à altura das impressões
que a toda hora recebia da vida. E foi então que recebeu c
benefício.
- Sim! Que benefício? Ela também me talou nisso. Que
foi esse benefício, Srta. Imma?
-- O benefício foi eJa enlouquecer; na maior miséria,
algo dentro dela "explodiu" - ela mesma usou essa expres-
são - e ela entendeu que não precisava mais manter-se em seu
juízo perfeito e tentar enfrentar a vida, mas tinha, por assim
dizer, permissão para relaxar um pouco e soltar a língua. Em
suma, o benefício foi ela ficar esquisita.
- Eu tinha a impressão - disse Klaus Heinrich - que
a Condessa se largou quando tagarelava comigo.
- É isso mesmo, Príncipe. Ela sabe muito bem quando
fala assim, e de vez em quando sorri ou deixa entender que,
afinal, não está magoando ninguém com isso. A singularidade
é para eIa uma perturbação benfazeja, que ela domina, até certo
ponto, e que se permite. Se quiser, é uma falta de. . .
- Compostura - disse Klaus Heinrich, e baixou os olhos
sobre as rédeas.
- Certo, de compostura - repetiu a moça, encarando-o.
- Parece que não aprova essa falta, Príncipe.
240
an- - Acho que não é permitido soltar-se assim e ficar à von-
us, tade --- respondeu ele, baixinho -, mas que precisamos, em
ide qualper circunstância, manter nossa compostura.�
áa, - Vossa Alteza - retrucou ela - manifesta louvável
severi.lade de comportamento. - Depois, fez o bico, movendo�
io. a cal"cinha negra e pálida no chapéu tricorne, e acrescentou�
com wa voz rouca: - Agora vou dizer uma coisa a Vossa�
Altea , e peço que preste muita atenção. Se Vossa Alteza não�
se di,E,oe a exercitar um pouco sua compaixão, consideração e
bram 1 ra, terei de me privar definitivamente do prazer de sua� �
in- comE,; nhia.�
m- I:Ie baixou a cabeça e cavalgaram calados por algum
temEa,.
- Não quer continuar contando como a Condessa chegou
à su:, , asa? - perguntou ele, por fim.
- Não, não quero - disse ela, olhando em frente. Mas,
com °(e pedisse tanto, ela concluiu seu relato, dizendo: -� � �
Bem I u muito simples. A Condessa apresentou-se na Quinta
Ave;:.la porque ouvira dizer que estávamos procurando para��
mim ma dama de companhia alemã. E, embora se apresentas-� �
sem ,,tras 50, minha escolha - pois era eu quem tinha de��
escoli,r - recaiu sobre ela imediatamente, tanto me agradou��
depe, de nosso primeiro encontro. Logo vi que ela era esqui-� �
sita; n,as era por conhecer bem demais a miséria e a maldade;
era ue se lia em suas palavras, e, quanto a mim, sêmpre fui� ��
um },.,nco solitária e isolada, e totalmente ignorante, exceto pelos�
estu!" universitários. . .� �
- Não é verdade, a senhora sempre foi um pouco soli-
tária . isolada! - repetiu Klaus Heinrich com alegría na voz.
- Foi o que eu disse. Era uma vida relativamente monó-
tona .v simples, a que eu levava, e na verdade ainda levo, pois�
não ,mdou muita coisa, e em toda parte é tudo sernpre igual.
Havi: festas com artistas, e baíles, e às vezes disparávamos�
num wrro fechado até a Ópera, onde eu me sentava num�
peqmw<o camarote do primeiro andar para poder ser vista por
241
todos, for show, como se díz por lá. Mínha posição acarretava
iso.�
- For show?
- Sim, f or show. É o dever de se expor, de não interpor
muros entre a gente e as pessoas, mas mostrar-se nos jardins,
gramados e terraços onde a gente se senta para tomar chá. Meu
pai, Mr. Spoelmann, detestava isso, mas nossa posição o exigia.
- E no mais, como vivia, Srta. Imma?
- Bem, na prirnavera íamos ao Adirondacks, ao Castelo
dos Adirondacks, e no verão; ao Castelo de Newport, no mar.
Naturalmente, havia festas ao ar livre e desfiles de flores e
torneios de tênis, e a gente andava a cavalo e de carruagem ou
automóvel, e as pessoas paravam e ficavam olhando, boquia-
bertas, porque eu era a filha de Samuei Spoelmann. E muitos
diziam insultos às minhas costas.
- Insultos?
- Sim, deviam ter seus motivos. De qualquer modo, le-
vávamos uma vida muito exposta, e comentada.
- E, entrementes - disse ele -, a senhora pairava
no ar, não, ou já fora dele, em regiões püras . . .
- Sim. Vossa Alteza tem a cabeça muito aberta. Mas,
depois disso tudo, pode imaginar como gostei da Condessa
quando ela se apresentou na Quinta Avenida. Ela não falava
com muita clareza, mas antes de maneira misteriosa, e o li.mite
onde começava a "tagarelar" nem sempre era muito nítido. Mas
isso me parece correto e instrutivo, pois dá uma boa idéia de
como são ilimitadas a maldade e a míséria neste mundo. Não é
verdade que me inveja por minha Condessa?
- Bem, invejar. . . parece presumir, ,Srta. Imma, que
jamais tive qualquer experiência.
- E teve?
- Talvez, uma ou outra. Por exemplo, ouvi falar coisas
sobre nossos lacaios que a senhora díficilmente sonharia.
- Os lacaios são tão terríveis assim?
242
-- Terríveis? Não valem nada, essa é a palavra certa.
Pria.ciro, cultivam o suborno e a hipocrisia, e se fazem pagar�
pel : Iornecedores. .�
-- Bem, Príncipe, comparativamente, isso até que é ino-
fen vc,.�
- Sim, sim, não se pode comparar às experiências da
Con.!essa. . .
°assaram para um andar mais lento; junto ao marco, dei-
xara a estrada ondulante que haviam percorrido entre flo-��
rest a de pinheiros, e enveredaram pelo caminho arenoso, um�
pou;. , côncavo, emoldurado, nos barrancos, por arbustos de�
amc,r,rs silvestres, que desembocava nos prados do Castelo dos
Fsir.ys. Klaus Heinrich estava familiarizado com o terreno;�
estulia sobre ele o braço direito para mostrar tudo à sua acom-���
panwnte, embora não houvesse muita coisa para ver. Lá estava�
o ( astelo, severo e mudo, com seu telhado de ripas e pára-
raie;, à beira da floresta. Um pouco afastado fícava o cercado�
dos I aisões, que dera nome ao lugar, e ali a estalagem de Sta-
ven nrcr, onde ele comera algumas vezes com Raoul. . . Über-
bein... Por sobre os prados úmidos, o sol de primavera brilhava
docwente, envolvendo num nevoeiro delicado as florestas mais�
dist lntes.
I'araram lado a lado, sentados sobre os cavalos, diante da
est;l.yem, e Imma Spoelmann examinou a sóbria casa de cam-�
po ..I,rmada Castelo dos Faisões.�
- Parece - disse ela com lábios torcídos - que sua
jw~.wtude não foi propriamente rodeada de uma pompa arre-
bm n<.lora . . .
--- Não - disse ele, rindo -, não há nada para se ver
nes;u castelo. Por dentro é como por fora. Não se compara com
os .. )clfins, mesmo antes de vocês o tecem reconstruído . . .
- Bem, vamos parar. Não é verdade, Condessa? Num
p,aio, é sempre preciso fazer uma parada. Vamos desmontar,��
Prí,cipe! Tenho sede e quero ver o que o seu Stavenüter tem�
par: se beber.�
243
~
Lá estava o Sr. Stavenüter, de avental verde e calças en-
adas nas botas engraxadas, curvando-se e apertando ao peito,�
com as mãos, o gorrinho bordado, rindo de emoção, exibindo
as gengi.vas nuas.
- Alteza Real! - disse ele, a felicidade soando em sua
voz -, está me dando a honra novamente! E a senhorita! -
acrescentou com voz devota; pois conhecia muito bem a filha de
Samuel Spoelmann, e lera as notícias de jornal tão avidamente
como se fazia no Grão-Ducado, sempre com os nomes do Prín-
cipe Klaus Heinrich e de Imma. juntos.
Ajudou a Condessa a desmontar, pois Klaus Heinrich, ten-
do descido do cavalo, ajudava a moça; depois, chamou um crn-
do que cuidou dos cavalos, junto com o críado de Spoelmann,
vestido de libré. Mas, depois disso, Klaus Heinrich recebeu os
cumprimentos, como estava habituado. Em postura ereta, diri-
giu algumas peruntas formais ao Sr. Stavenüter, que o servia,�
informou-se de modo sedutor sobre sua saúde, seus negócios,
e ouviu as respostas balançando a cabeça, aparentemente inte-
ressado em tudo. Imma Spoelmann, recurvando a cbibata le�
montaria entre as duas mãos, observou com olhos sérios e
brilhantes essa atitude fria e artificial.
- Permito-me iembrar-lhe que estou com sede - disse
por fim, áspera e aborrecida, e assim sentaram-se no jardim e
fícaram algum tempo debatendo se deviam ou não entrar na
casa.
Estava úmido demais para ticarem sob as árvores, achou
Klaus Heinrich; mas Imma insistiu em ficar ao ar livre, e
escolheu pessoalmente uma das mesas compridas e estreitas,
com bancos dos dois lados, que o Sr. Stavenüter correu a co-
brir com uma toalha branca.
- Limonada! - disse ele. - É o melhor para a sede.
e é muito pura! Nada de porcarias, Alteza e senhoras, mas
suco natural com açúcar, é a coisa mais saudável!
Era preciso fazer passar a rolha, uma bolinha de vídro.
pelo gargalo, e enquanto os doís nobres hóspedes saboreavam
244
a behida, o Sr. Stavenüter ficou mais um pouco junto à mesa,
para listraí-los com sua conversa. Já era viúvo há muito tem-�
po, e seus três filhos, que outrora tinham cantado sob aquelas
árvorus a canção da humanidade, assoando-se com os dedos,
tamhem haviam saído de casa, o filho como soldado na cida-
de, uma das filhas casada com um agrônomo vizinho, a outra
emErgada como criada numa casa da cidade, pois fora atraí-� �
da para coisas mais nobres. O Sr. Stavenüter estava sozinho
naquele isolamento e sentia-se satisfeito com seu destino tri-
plo cie arrendador da estalagem do Castelo, castelão e guarda
dos iaisões. Em breve, quando o tempo permitisse, voltariam
os dias dos excursionistas a pé e de bicicleta, enchendo o jar-
dim ;IOs domingos. Então, os negócios floresceriam. Os nobres
senh,res não queriam dar uma olhada no Castelo dos Fai-�
sões �
)ueriam, sim, e mais tarde; portanto, de momento, o�
Sr. Stavenüter se afastou discretamente, depois de colocar ao
lado .la mesa uma tigela com leite para Percival.�
( ) colli entrara num charco do caminho e parecia um de-
môni.,. As pernas fininhas estavam molhadas - e as partes
bran.as de seu pêlo enovelado estavam sujas. A boca aberta�
e es;umante, com que revolvera a terra procurando ratos-do-�
camto., estava negra até a goela, e sua língua pendia para fora,�
negr: c vermelha, com ponta triangular. Bebeu o leite avida-
men;v e depois deixou-se cair no chão, ao lado da dona, os
flancv.,s ondulando, a cabeça atirada para trás com expressão
de E·:oFundo repouso.�
hlaus Heinrich achou uma irresponsabilidade expor Imma
ao tr,úçoeiro ar da primavera, sem abrigo, depois daquela ca-
valnda.�
- Pegue o meu manto! - dísse..- Não preciso dele.
Eston com calor, e o casaco é acolchoado no peito!
Ela não quis aceitar a sugestão; mas, como Klaus Hein-
rich ontinuasse pedindo insistentemente, ela concordou e dei-�
xou ,.ne ele colocasse em seus ombros o cinzento manto mili-�
25�
i.
I��
tar com ombreiras de major. Assim enrolada, ela apoiou na
mão a cabecinha triangular com cabelos negros e rosto pálido,
e o contemplou enquanto ele, estendendo o braço para o Cas-
telo, contava a vida que ali levara em outros tempos.
Lá, no térreo, onde se viam as janelas altas, fora o refei-
tório; lá, a sala de aula; lá em címa, o quarto de Klaus Hein-
rich, com o torso de gesso sobre o fogão de azulejos. E ele
contou sobre o Professor Kürtchen e seu habilidoso sistema de
perguntas e respostas. durante as aulas, sobre a capitã Amelung,
sobre os nobres Faisões, que achavam tudo uma `porcaria", e
sobre Raoul Überbein, seu amigo, assunto ao qual Imma Spoel-
mann o fez voltar várias vezes.
Ele falou da origem obscura do doutor, e do dínheiro do
tal acordo; da criança no charco ou pântano e da medalha de
salvamento; da vida corajosa e ambiciosa de Überbein vívida
sob duras condições, que ele costumava dizer serem boas de-
mais, estritamente dependente da própria capacidade, e de sua
ligação com o Dr. Sammet, a quem Imma conhecia. Descreveu
seu aspecto externo pouco agradável e, com palavras alegres,
fundamentou a inclinação que desde o início sentira por aquele
professor, descrevendo a postura deste para com seu aluno
Klaus Heinrich - aquela camaradagem paternal, cordial e fan-
farrona que tanto se diferenciara da atitude de todas as outras
pessoas -, e, da melhor maneira que pôde, mencionou isso
e aquilo da vida de Überbein; por fim, expressou sua tristeza
pelo fato de o doutor não ser muíto apreciado pelas pessoas.
- Acho que é verdade - disse Imma.
Ele ficou espantado e perguntou por que ela pensava
assim.
- Porque estou certa - respondeu ela, meneando a ra-
beciriha - de que esse Überbein, com suas conversas bem-hu-
moradas, é mesmo assim uma pessoa sinistra. Ele é um grande
fanfarrão, mas isso não tem fundamento, Príncipe, por isso vai
ter um mau fim.
246
li...,
Klaus Heinrich fícou perturbado e pensatívo com essas
paiavras. Depois, dirigíu-se à Condessa, que voltou sorrindo
de i.ma de suas ausências, elhe disse algo educado sobre como�
mmncava bem, ao que ela respondeu cortesmente. Ele disse que
se notava que ela aprendera a montar cedo, e ela confirmou
clm.v, na verdade, aulas de equitação tinham ocupado boa parte
da sua educação. Falava com clareza e animação; mas aos pou-
r<r , quase imperceptivelmente, afastou-se do caminho normal,
contou alguma coisa estranha sobre cavalgadas ousadas que
rr:lírara como Tenente na última campanha, e inesperadamente�
se 4os a descrever a mulher de um sargento dos granadeiros, in-
criv,rlmente repulsiva, que naquela noite estivera em seu quarto
arr;nhando-lhe impiedosamente o peito e dizendo coisas que�
ni., se podiam reproduzir. Klaus Heinrich perguntou baixinho�
se a porta e as janelas não tinham ficado trancadas.
- Sim, mas existe a vidraça! - respondeu ela, precipí-
ta, i,jmente.
E como, ao responder isso, fícasse com metade do rosto
p.ílida e a outra vermelha, ele concordou, balançando a cabeça
e lizendo palavras brandas. Sím, baixando os olhos ele até�
pr,pôs chamá-la de "Sra. Meier", sugestão que ela aceitou avi-�
dancnte, com um sorríso familiar - alíás, um olhar oblíquo�
env direção a algo índefinido, com expressão síngularmente se-
dntora. Então, foram visítar o Castelo dos Faisões, depoís que
Inma devolveu o manto a Klaus Heinrich; e quando saíam do�
ja -:lim ela dísse:
- Muíto bem, Príncípe, o senhor está progredindo.
O elogio o fez corar, causou-lhe muito maís alegría do
cíu a mais bela notícía de jornal sobre o efeito sublíme de�
sua solene pessoa, naqueles recortes que o Conselheíro Schus-
tu: man lhe apresentava.
O Sr. Stavenüter acompanhou os vísitantes até o cercado
d. paliçadas onde, na relva e nas macegas, viviam as seis ou
SI,CC famílias de faisões, muito bem-cuidadas, e eles observa-
r:m o comportaménto daquelas aves colorïdas, de olhos verme-�
247
lhos e caudas hirtas, visitaram a chocadeira e assistiratn à ali-
mentação que o Sr. Stavenüter distribuiu ao pé de um belo
pinheiro solitário, para divertir os três. Klaus Heinrich o elo-
giou muito pelo que vira. Imma Spoelmann o encarava com
seus grandes olhos escuros e perquiridores, enquanto eIe cum-
pria essas formalidades. Depois, montaram a cavalo diante da
estalagem, e voltaram para casa, com Percival saltando e uivan-
do diante dos cavalos.
Nesse retorno para casa, Klaus Heinrich teria, na conver-
sa, mais uma indicação importante sobre o caráter e a natureza
de Imma Spoelmann, uma revelação direta de certos aspectos
de sua personalidade que lhe deram matéria para muita re-
flexão.
Logo depois de terem deixado o caminho côncavo, ladea-
do de amoras silvestres, cavalgando uma vez mais pela estrada
docemente ondulada, Klaus Heinrich voltou a um aspecto que
£ora mencíonado com síngular brevidade em sua primeíra vísí-
ta ao Castelo dos Delfins, na conversa durante o chá, e que
nunca deixara de inquietá-lo de maneira indefinida.
- Permita que eu faça uma pergunta, Srta. Imma -
dísse ele. - Não precísa responder se não tiver vontade.
- Vamos ver - respondeu ela.
-- Há quatro semanas - começou ele -, quando tive
pela primeira vez o prazer de falar com seu pai, o Sr. Spoel-
mann, fiz-lhe uma pergunta que ele respondeu de maneira tão
breve e brusca que tive receio de ter dado um passo em
falso, ou cometido uma gafe.
~ Que foi que perguntou?
- Perguntei se lhe fora difícil deixar os Estados Unidos.
- Sim, Príncipe, veja, essa pergunta foi bem parecida
com o senhor, uma pergunta de príncipe. Se fosse um pouco
mais versado no terreno do raciocínio, ter-se-ia contentado si-
lenciosamente com a sensata dedução de que, se meu pai não
gostasse de deixar os Estados Unidos, não teria nem saído
de lá.
248
- Pode ser verdade, Srta. Imma, perdoe-me, não racio-
cino muito bem. Mas se, com essa pergunta, só me fíz cul-
pado cle um raciocínio falso, fico contente. Pode me tranqüi-
lizar?
- Pois bem, Príncipe, nem chegou a ser isso - disse ela,
encarando-o de repente com aqueles grandes olhos pretos e
· lustrosos.
- Está vendo? Está vendo? Mas qual é o problema,
Srta. Imma? Conte-me o que há para contar. Deve isso à
nossa amizade!
- Mas somos amigos?
- Eu pensei . . . - disse ele, mendicante.
-- Muito bem, tenha paciência. Eu não sabia. Fico con-
tente em saber. Mas, voltando ao meu pai, ele realmente se
. aborrcceu com a pergunta . . . incomoda-se com facilidade e
teve uportunidades de se exercitar incrivelmente nesse estado
de espírito. O problema é que, nos Estados Unidos, a opinião
pública não nos era muíto favorável. Lá a.contecem intrigas . .
quero avisar que não estou informada sobre detalhes, mas está
havenclo uma intensa atividade política para voltar o povo con-
tra ncs, sabe, as muitas pessoas que não foram atingidas, sabe,�
e assim surgiram inimizades jurídicas e adversidades constan-
tes, due tornaram a vida lá insuportável para meu pai. Prín-
cipe, o senhor sabe bem que não foi ele o responsável por
nossa fortuna, mas meu antipático avô, com seu "Paradise
Nugget" e sua fazenda Blockhead. Meu pai não tem culpa
alguma, ele herdou seu destino, e náolhe foi fácil tudo isso
Ele é tímido e delicado por natureza, e preferia ficar apenas
' tocando órgão e colecionando vídros. Sim, acho que o ódio
que nos envolvia devido a essas intrigas, fazendo o povo gritar
insultos quando eu passava de carro - esse ódío foi que lhe
causou as pedras nos rins, é bem provável.
- Eu tenho a maior simpatia por seu pai - disse Klaus
5
Heinrich com veemência.
24)
Í, .
- Espero que sim, Príncipe, se quisermos ser amigos.
Mas houve outra coísa aínda, que piorou tudo, e dificultou
nossa estada lá, e tinha a ver com nossa origem.
- Sua origem?
- Sirn, Príncipe, não somos "faisões" da nobreza. Infe-
lizmente, não descendemos nem de ZXlashington nem dos pri-
meiros ímigrantes . . .
- Não, os senhores são alemães.
- Sim, mas com isso nem tudo fíca arranjado. Tenha a
condescendência de me encarar direito. Acha honroso ter um
cabelo tão líso, preto-azulado, que sempre cai onde não deve?
- Deus sabe que seu cabelo é belíssimo, Srta. Imma -
disse Klaus Heinrich. - Sei muíto bem que a senhora tem.,
em parte, origem sulina, pois seu avô se casou na Bolívia
ou naquela região, segundo li.
- Isso mesmo. Mas aí está o problema, Príncipe. Eu
sou uma quinterone.
- O quê?
- Uma quinterone.
- É como os Adirondacks e a paralaxe, Srta. Imma.
Não seí o que sígnífíca. Já lhe dísse que não aprendí muita
coisa.
- Bem, foi assim. Meu avô, insensato como era em tüdo,
casou-se por lá com uma dama de sangue indio!
- Índio!
- Isso mesmo. A referida dama descendia, em terceira
geração, de índios, era filha de um branco e uma meia ïndia
- portanto, terzerone, como dizemos. Dizem que era espan-
tosamente bonita! E foi minha avó. Mas a neta é chamada de
quinterone devido à avó. É isso.
- Sim, é singular. Mas a senhora não disse que isso in-
fluenciou a atitude das pessoas em relação à sua pessoa?
- Prïncipe, o senhor não sabe de nada. Deve saber que,
Iá, sangue índio signifíca falha grave - tão grave que amízades
e amores se expõem a insulto e vergonha, caso uma das par-
250
tes revcle esse tipo de origem. Não é tão grave conosco, os
guartcrwnes; em nome de Deus, neste caso já não são tão gra-
ves a vrgonha e o preconceito; um grtinterone é quase ima-�
culado. Mas conosco, que estávamos tão expostos aos mexe-
ricos pí.ihlicos, naturalmente era diferente, e muitas vezes,
quando me insultavam, escutei dizerem que eu era "de cor".
Em suma, continuava sendo uma limitaão, um gravame, e�
nos isolava até mesmo dos poucos que estavam mais ou menos
na mcsma situação - sempre havia algo a esconder ou defender.
Meu avô se defendera disso, pois era homem para tal e sabia
o que cstava fazendo; também era de sangue puro, só sua lin-
da mulher tinha essa nódoa. Mas meu pai era filho dela e, irri-
tadiço como é, sensível, desde a juventude suportou tudo muito
mal, a um tempo odiado, desprezado e motivo de espanto dos
outros, parte maravilha, parte um ser desprezível, como cos-
tumava dizer. Estava saturado dos Estados Unidos. Essa é a
história, Príncipe - disse Imma Spoelmann. - E agora sabe
por que meu pai se aborreceu com sua pergunta tão perspicaz.
Klaus Heinrich agradeceu a explicação, antes do portal
do Castelo dos Delfins, quando - era hora do almoço -,
mão ncs quepe, se despediu das damas, repetiu o agradeci-
mento pelo que ela lhe dissera e partiu a passo, refletindo
sobre cs acontecimentos daquela manhã.�
In,ma Spoelmann, sentada com seu vestido vermelho e
douraclo à mesa da sala, postura neglígente, ar mimado, ins-
talada na segurança e no luxo, usando da linguagem ferina
de qem precisa estar alerta, lúcido e frio para sobreviver.��
Mas pe>r quê? Klaus Heinrich agora entendia, e cada vez mais
se ocyava em compreender isso melhor. Contemplada com�
espanto, ódio e desprezo, parte uma maravilha, parte uma in-
fâmia - fora assim que ela vivera, e isso entremeara aqueles
espinhos na sua linguagem, conferira-lhe aquela aspereza, aque-
la irônica lucidez que parecia agressão, mas era autodefesa, e
provorava uma expressão de dor nos rostos daqueles que não
precis.wam ser duros nem irônicos para se defenderem. Ela
21�
lhe pedira que fosse compassivo e brando com a pobre Con-
dessa quando esta se descontrolasse; mas era ela própria quem
precisava de brandura e compaixão, pois era solitária e tinha
a vida atribulada - como ele. Essas ponderações despertaram-
Ihe uma recordação antiga, dolorosa, do bufê do Parque Mu-
nicipal, terminando com uma tampa de terrina de ponche. "Ir-
mãzinha! ", pensou, afastando depressa aquela cena de sua me-
mória. "Irmâzinha! " E pensou, mais que em tudo, na possi-
bilidade de voltar a encontrar-se rapidamente rom Imma Spoel-
mann.
Isso aconteceu logo e repetidamente, ern várías círcuns-
tâncias. Fevereiro terminava, março chegou cheio de promes-
sas, abril, com suas mudanças de clima, e o doce mês de Lnaio.
Durante todo esse tempo, Klaus Heinrich visitava o Castelo
dos Delfins, uma vez por semana, de manhã ou à tarde, sem-
pre naquele estado de espírito irresponsável com que apare-
cera aos Spoelmann naquela manhã de fevereiro - por assim
dizer, sem vontade própria, levado pelo destino. A sítuação
de vizinhança dos dois castelos favorecia os encontros, o breve
trecho entre o parque do Eremitage e os Delfins cumpria-se a
cavalo ou de carruagem sem chamar a atenção; e quando, à
medida que o ano avançava, se tornou cada vez mais difícil
andarem a cavalo juntos sem chamarem a atenção do público,
pois agora havia muita gente no local, o Príncipe mostrou
total indiferença e cega desconsideração para com o mundo, a
Corte, a cidade, o país. Só mais tarde o povo começou a ter
um papel, importante e favorável, nos pensamentos dele.
Klaus Heinrich despedira-se das damas depois do primeiro
passeio pensando em outro, ao qual, meneando a cabecinha,
os Iábíos em bico, Imma não fez qualquer objeção. Assim, ele
voltou, e foram a cavalo até o Castelo de Caça, na extremidade
norte do Parque Municipal; mais tarde, fizeram um terceiro
passeio para um Iugar aonde se chegava sem que fosse preciso
atravessar a cidade. Mais tarde, quando a primavera atraía
para o campo os moradores da Residência, e os jardins das
252
estalagens ficavam repletos de gente, preferiram um trajeto
afastado, que nèm era caminho, mas uma represa à beira de
um prado com declive florido, que se estendia ao longo do
braço de um rio espumante, em direção ao norte. Chegava-se
aIi sem sr perturbado, cavalgando pelos fundos do parque do�
Eremitage e pelo prado na extremidade norte do Parque Mu-
nicipal, até a altura do Castelo de Caça, mas não junto da
represa, sobre a ponte de madeira, e sim ao lado dela, seguin-
do o curso d'água. A direita, deixavam para trás a granja da
administração do Castelo, e até onde fossem havia uma vege-
tação de altura média. A esquerda, estendiam-se os campos,
brancos e coloridos de cicuta e tasneirinha, dentes-de-leão e
campânulas, trevos, margaridas e miosótis. A torre de uma
igreja de aldeia erguia-se entre os campos cultivados, e ao longe
passava a estrada com seu tráfego, do qual estavam protegidos.
Mais adi,nte, havia pastagens e arbustos de aveleiras, também�
à esquerda, perto do declive, impedindo a visão; agora, caval-
gavam totalmente isolados e abrigados, em geral sô os dois,
seguidos da Condessa, que vinha mais atrás, pois o caminho
era estrcito. Conversavam ou se mantinham em silêncio, en-
quanto Icrcíval saltava sobre a água as patas dianteíras enco-�
lhidas, ou ia lá embaixo tomar um banho e saciar a sede, be-
bendo rapida e ruidosamente. Voltavam pelo mesmo caminho
por onclc tinham vindo.�
Ma, quando, devido à baixa pressão atmosférica, caía o
mercúrio do barômetro, e depois chovia, e mesmo assim ILlaus
Heinrici julgava necessário um reencontro com Imma Spoel-�
mann, apresentava-se em sua carruagem para a hora do chá no
Castelo dos Delfíns, e ficava por lá. Só duas ou três vezes o
Sr. Spoel.mann partilhou o chá. Sua indisposição aumentava
nesse tempo, e em muitos dias precisava ficar de cama com
compressas quentes. Quando vinha, dizia:
- Então, jovem Príncipe!
Mergulhava com a mão magra, semi-encoberta pelos pu-
nhos, uma torrada no chá, dizia aqui e ali uma palavra roufenha
253
e .por fim oferecía ao visitante a cigarreira dourada; depois,
saía novamente da sala com o Dr. Watercloose, que estívera
sentado à mesa, sorridente. Também podia acontecer que, mes-
mo em dias de sol, preferissem ficar no parque, jogando bola
no terreno aplanado e atravessado por uma rede. Sim, uma vez
até fizeram um veloz passeio de carro até bem depois do Cas-
telo dos Faisões, num dos automóveis de Spoelmann.
Um dia, Klaus Heinrich indagou:
- Srta. Imma, é verdade o que li, que seu pai recebe
diariamente muitas cartas e pedidos?
Então, ela lhe contou das coletas e listas de subscrições
que chegavam constantemente aos Delfins, as quais eram aten-
didas conforme as possibilidades, das pilhas de cartas pedindo
coisas, vindas da Europa e Estados Unidos, que sempre che-
gavam com o correio e eram examinadas pelos Srs. Phlebs e
Slippers, que apresentavam uma seleção ao Sr. Spoelmann. Por
vezes, disse ela, divertia-se dando uma olhada naquelas pilhas
de cartas e lendo os sobrescritos, não raro fantásticos. Os emis-
i sários, gente necessitada ou especuladores, superavam-se uns�
ii
aos outros até nos envelopes em matéria de servilismo e estilo,
e as cartas traziam toda sorte de formas de tratamento, as mais
bizarras misturas. Recentemente, um pedinte vencera o torneio
escrevendo: "Para Sua Alteza Real, Sr. Samuel Spvelmann",
mas não recebera mais que os outros. . .
Outra vez, ele falara em voz baixa sobre a Sala das Co-
rujas, no Castelo Velho, confiando a Imma que recentemente
se tinham ouvido rumores lá dentro, o que prenuncíava acon-
tecimentos importantes na família dele. Imma Spoelmann riu
e, meneando a cabecinha, lábios em bico, explicou tudo cíenti-
ficamente, como explicara a coisa do barômetro. Disse que era
tudo bobagem, talvez apenas a sala dos fantasmas tivesse forma
de elipse, e uma segunda superfície elipsoidal, de curvatura
semelhante, existisse Iá fora, como fonte dos ruídos, o que
fazia com que se escutassem na sala assombrada rumores não
ouvidos ali perto. Klaus Heinrich ficou abalado com essa expli-
254
e .por fim oferecía ao visitante a cigarreira dourada; depois,
saía novamente da sala com o Dr. WatercIoose, que estivera
sentado à mesa, sorridente. Também podia acontecer que, mes-
mo em dias de sol, preferissem ficar no parque, jogando bola
no terreno aplanado e atravessado por uma rede. Sim, uma vez
até fizeram um veloz passeio de carro até bem depois do Cas-
telo dos Faisões, num dos automóveis de Spoelmann.
Um dia, Klaus Heinrich indagou:
- Srta. Imma, é verdade o que li, que seu pai recebe
diariamente muitas cartas e pedidos?
Então, ela lhe contou das coletas e Iistas de subscrições
que chegavam constantemente aos Delfins, as quais eram aten-
didas conforme as possibilidades, das pilhas de cartas pedindo
coisas, vindas da Europa e Estados Unidos, que sempre che-
gavam com o correio e eram examinadas pelos Srs. Phlebs e
Slippers, que apresentavam uma seleção ao Sr. Spoelmann. Por
vezes, disse ela, divertia-se dando uma olhada naquelas pilhas
de cartas e lendo os sobrescritos, não raro fantásticos. Os emis-
sários, gente necessitada ou especuladores, superavam-se uns
aos outros até nos envelopes em matéria de servilismo e estilo,
e as cartas trazïam toda sorte de formas de tratamento, as mais
bizarras misturas. Recentemente, um pedinte vencera o torneio
escrevendo: "Para Sua Alteza Real, Sr. Samuel Spoelmann",
mas não recebera mais que os outros. . .
Outra vez, ele falara em voz baixa sobre a Salrt das Co-
rujas, na Castelo Velho, confiando a Imma que recentemente
se tinham ouvido rumores lá dentro, o que prenunciava acon-
tecimentos importantes na família dele. Imma Spoelmann riu
e, meneando a cabecinha, lábios em bico, explicou tudo cienti-
ficamente, como explicara a coisa do barômetro. Disse que era
tudo bobagem, talvez apenas a sala dos fantasmas tivesse forma
de elipse, e uma segunda superfície elipsoidal, de curvatura
semelhante, existisse lá fora, como fonte dos ruídos, o que
fazia com que se escutassem na sala assombrada rumores não
ouvidos ali perto. Klaus Heinrich ficou abalado com essa expli-
254
r--
cação, e só a custo desistiu da relação entre os ruídos e o des-
tino de sua família.
(;onversavam sobre tudo isso, e a Condessa participava,
ora lúcida, ora perturbada, pois Klaus Heínrich se esforçava para
não a inibir nem esfriar ainda mais com sua personalidade, mas
chamava-a de "Sra. Meier" quando percebia que ela preci-
sava disso para se assegurar contra a perseguição daquelas mu-
lheres pecaminosas. Ele falava às senhoras sobre sua vida inco-
mum, as belas reuniões da corporação, as refeições com os
militares, sua viagem cultural e seus parentes, sua mãe, outrora
tão bela, a qúem às vezes visitava no Castelo Segenhaus, onde
ela mantinha uma Corte deveras melancólica. Klaus Heinrich
também falava de seus irmãos Albrecht e Ditlinde. Imma Spoel-
mann respondia com alguns relatos de sua singular e magnífica
juventude, e por vezes a Condessa deixava ouvir alguma pala-
vra obscura sobre os horrores e segredos de sua vida, que os
doís escutavam com rosto sério, devoto mesmo.
lavia uma espécie de jogo que gostavam de fazer: adivi-�
nhar formas de vida, avaliar vagamente pessoas que viam nos
setores da vida comum, até onde sabiam delas ---- uma obser-
vaão estranha e ávida dos que passavarn, conrernplados de�
longe, de cima do cavalo, ou do terraçu dos Spoelmann. C2uern
seriarn aqueles jovens? Que fariam na vida? De mde seriam?�
Não eram aprendizes de comércio, mas talvez técnicos ou apren-
dizes de guardas-florestaís. segundo certos .indícios; ou eram
da escola de agronomia, rapazes um pouco rudes, mas atívos,
que haveríam de conseguír seu objetivo honesto. Mas aquela
pecuena desmazelada, que passava vagabundeando, devía ser�
oper.íria de fábrica ou costureirinha. Essas mocinhas costuma-
vam ter amantes do mesmo ambiente, que nos domíngos as le-
vavam a um café ao ar livre. E os dois partilhavam o que
sabiam das pessoas, falavam disso com agrado e sentíam-se
aquecidos por esse passatempo, mais que pela corrida ou jogo
de hola.
255
I .
¡!
Quanto ao veloz passeio de automóvel, Imma Spoelmann
explicou durante o percurso que só convidara Klaus Heinrich
para que visse o motorista dela, um jovem americano vestindo
couro marrom, de quem dísse ser parecido com o Príncipe.
Klaus Heinrich, rindo, respondeu que, vendo o motorista por
trás, não conseguia avaliar nada, e pediu que a Condessa desse
seu julgamento. Esta, depois de negar por algum tempo a se-
melhança, indignada, finalmente a confirmou, pressionada por
Imma, e com um olhar de soslaio para Klaus Heinrich. Então,
a Srta. Spoelmann contou que aquele rapaz sério, sóbrio, hábil
e bem-posto estivera primeiro a serviço pessoal do pai dela,
a quem diariamente levava da Quinta Avenida para a Broadway,
e por outros trajetos também. O Sr. Spoelmann, porém, exigira
do motorista uma velocidade fora do comum, quase a de um
trem expresso, e o motorista não suportara a terrível tensão
que se exigia deIe no trânsito de Nova Iorque. Jamais acon-
tecera um acidente; o rapaz agüentara e cumprira seu perigo-
síssimo' dever cem incr:vel atenção. Mas, por fim, ao cabo da
corrida, várias ezes i.veram de tirá-lo, desmaiado, de trás do� �
volante, e entãc entenderam o desmesurado esforço a que ele
se submetera áiariamente. Para não despedi-lo o Sr. Spoelmann
o norneara motorista pessoal da filha, serviço mais leve, que
ele continuara executando no outro país. A semelhança entre
Klaus Heinrich e ele fora constatada por Imma quando vira
o Príncipe pela primeira vez. Naturalmente, não era serne-
Ihança de traços, mas de expressão. A Condessa concordara...
Klaus Heinrich disse que não tinha nada contra a semelhança,
pois o heróico jovem gozava de toda a sua simpatia. Então,
falaram mais sobre a vida difícil e tensa de um motorista, sem
que a Condessa Lüwenjoul continuasse participando. Naquele
passeio, ela não soltou a língua, mas disse mais tarde, com
gestos repousados, algumas coisas claras e corretas.
Aliás, a ânsia de velocidade do Sr. Spoelmann parecia
ter-se transferido parcialmente para a filha, pois, a cada opor-
tunidade, ela repetia o galope exuberante da primeira vez; e
256
como. instigado pela zombaria da moça, Klaus Heinrich exigisse
o m.ísimo do perturbado e desprezado Florian, para não ficar
atras. oquelas cavalgadas violentas assumiam cada vez mais o
car,ítr competitivo de uma corrida, que Imma Spoelmann sem-�
prc provocava de maneira inesperada e caprichosa. Várias dessas
comEetições tiveram lugar naquele solitário prado em declive�
que lava para o rio, e uma, especialmente, foi longa e encar-�
niçaW. Aconteceu logo após um breve diálogo sobre a popula-
ridWe de Klaus Heinrich, que Imma iniciou e interrompeu do
mesn,o modo brusco. Ela perguntou de repente:
- Príncipe, ouvi. direito? Dizem que o senhor é incri-
velmente querido entre o povo. Que todos os corações batem
pelo senhor!
Ele respondeu:
- Dizem. O motivo deve ser alguma qualidade que não
é necessariamente boa. Não sei se devo acreditar nisso e me
alegrar. Duvido que depusesse em meu favor. Meu irmão, o
Grão-Duque, acha que popularidade é porcaria.
- Sim, o Grão-Duque deve ser um homem orgulhoso;
tenho muito respeito por ele. E o senhor está em segundo
plano, e todo o mundo o ama tanto . . . Go on! - exclamou
ela de repente; um duro golpe da chibata de couro branco
atin;iu Fatima, que estremeceu, e começou a perseguição.�
E durou muito. Nunca tinham ido tão longe, seguindo 0
curso do rio. A esquerda, há muito não se via mais paisagem.
Torrões de terra e feixes de capim voavam debaixo dos cascos.
A (.ondessa logo ficou para trás. Quando finalmente frea-�
ram os cavalos, Florian tremia, no auge de sua resistência, e
eles próprios estavam pálidos, ofegantes. O caminho de volta
foi Eercorrido em silêncio.�
Na tarde anterior ao seu aniversário, Klaus Heinrich rece-
beu Raoul Überbein no Eremitage. O doutor veio dar suas
con;ratulações, pois no dia seguinte o trabalho o impediria de�
vir. Foram passear no caminho de cascalho na parte de trás
do E,arque, o professor de casaco e gravata branca, Klaus Hein-
257
rich na sua litewkcr. O capim estava maduro para ser ceifado,�
sob o sol oblíquo da tarde, e as tílias se abriam em flor. Num
canto, perto da sebe que separava o terreno das feias campínas
do subúrbio, ficava um pequeno templo arruinado, feito de
cascas de árvore.
Klaus Heínrích falou de suas vísitas aos Delfms, pois era
o assunto que mais lhe interessava; fez seu relato em tom
vivo, sem dízer novidades ao doutor, pois este mostrou estar
informado de tudo. Como? Ah, de diversas fontes. Überbein
não sabia mais que os outros. Então, os moradores da Resi-
déncia se interessavam por essas coísas?
- Não, Klaus Heinrich, por Deus, ninguém pensa nisso.
Nem as cavaIgadas nem as visitas na hora do chá nem o passeio
de automóvel. Naturalmente, essas coisas não vão mover nenhu-
ma língua da cidade.
- Mas nós somos tão cautelosos!
- Nós está ótimo, Klaus Heinrich, e isso da cautela
também. Aliás, von Knobelsdorff tem pedido ínformações mi-
nucíosas sobre seus atos.
- Knobelsdorff?
- Knobelsdorff.
Klaus Heinrich ficou calado.
- E como é que o Barão Knobelsdorff reage às notícias?
- perguntou depoís.
Bem, o velho ainda não vira motivos para intervir no
curso das coisas.
Mas e a opinião pública? Os outros? Bom, os outros na-
turalmente estavam em grande expectativa.
- E você, e você, meu caro doutor?
- Eu estou esperando pela tampa do ponche - respon-
deu o doutor.
- Não! - exclamou Klaus Heinrich com voz aIegre. -
Não, não haverá tampa de ponche, Dr. Überbein, pois eu estou
` Espécie de casaco. fN. da T.)�
258
feliz, não importa o que vai acontecer... entende isso? O
senhor me ensinou a não me importar com felicidade e me
puxou pelas orelhas, trazendo-me de volta a mim mesmo, quan-
do tentei ser feliz, e fiquei imensamente grato por isso, pois
foi horrível, horrível, e eu não esqueço. Mas isto aqui não é
um passeio pelo salão de baile do Parque Municipal, de onde
volto humilhado e nauseado interíormente, não é engano nem
desvio nem rebaixamento. Não está vendo que esta de quem
falamos não pertence nem ao Parque Municipal nem aos Fai-
sões aristocráticos nem a ninguém mais, senão a mim. . . que
ela é uma princesa, Dr. Überbein, e minha igual, e que por-
tanto nem se pode falar em tampa de ponche? O senhor me
ensinou ue é desprezível afirmar que somos todos apenas��
humanos, e que não há esperança para mim em agir como se
isso fosse verdade, que essa é uma felicidade proibida, que
deve acabar em desgraça. Mas isto agora não é felicidade des-
prezível nem proibida. É, pela primeira vez, uma coisa per-
mitida e cheia de esperança, é a felicidade feliz, Dr. Überbein,
à qual me posso entregar contente, não ímporta o que venha
a acontecer. . .
- Ildeus, Príncipe - disse o Dr. Überbein sem se afas-
tar. Mas continuou, mãos nas costas e barba ruiva baixada
sobre o peito, a andar do lado esquerdo de Klaus Heinrich.
- Não - disse este. - Não, adeus não, Dr. Überbeín. . .
é isso! )uero contínuar seu amígo, o senhor que teve uma�
vída tão clifícil e tão orgulhosamente se mantém firme, acredi-
tando no destíno e na tenacidade, e me deixa orgulhoso por
me tratar como camarada. E agora que encontrei a felicidade,
não quero me acomodar, mas continuar fiel ao senhor e a mim,
e à minha vocação. . .
- Não vai ser possível - dísse o Dr. Überbein em
latim, e sacudíu a feia cabeça com as orelhas pontudas e sa-
lientes.
- im, Dr. Überbeín, estou bern certo de que pode ser,�
as duas coisas podem coexistir. E o senhor não devia andar
259
aí do meu lado, tão frio e reservado, pois estou feliz, e ainda
por cima é véspera do meu aniversário. Diga-me. . . teve tantas
experiências e viu tanta coisa. . . mas nunca teve experiências
nesse sentido. . . já sabe. . . alguma vez ficou arrebatado como
eu estou?
- Hum - fez o Dr. tlberbein, apertando os lábios,
fazendo erguer-se a barba ruiva e formando bolas de músculos
nas faces. - Podia ter acontecido, secretamente.
- Está vendo? Está vendo? Então me conte, Dr. Über-
bein! Hoje, tem de me contar!
E como fosse uma hora grave e docemente ensolarada,
dominada pelo aroma das flores de tília, Raoul Überbein rela-
tou um incidente em sua vida, jamais mencionado em relatos
anteriores, mas que talvez tivesse tido importância decisiva.
Transcorrera há muito tempo, quando Überbein dava aulas
aps pequenos moleques e, paralelamente, cuidava da própria
carreira, apertando o cinto e lecionando a gordos filhos de
burgueses para comprar livros. Sempre de mãos às costas, barba
no peito, o doutor falou em tom áspero e resumido, apertando
fortemente os ábios nos intervalos.�
O destino o ligara, naquela vez, com força indizível a uma
mulher, uma bela mulher pálida, esposa de um homem nobre
e respeitável, e mãe de três filhos. Ele fora à casa deles como
preceptor das crianças, porém mais tarde fora muitas vezes
convidado à mesa da família e se tornara amigo da casa, man-
tendo boas relações com o marido. O que existia entre o jovem
professor e a pálida dama permaneceu por longo tempo contido
e calado. Mas apenas se fortaleceu mais, naquele silêncio. Tor-
nou-se algo avassalador e, certa vez, num fim de tarde, quando
o marido se demorara mais no trabalho, uma hora doce, ardente
e perigosa, tudo explodira, em labaredas, deixando-os atordoa-
dos. Pusera-se a clamar neles o desejo de felicidade, a intensa
felicidade da união. Mas, comentou o Dr. Überbein, de vez
em quando ainda acontecem coisas decentes neste mundo. Os
dois tinham-se considerado bons demais para enveredarem pelo
260
caminho ridículo e vulgar da traição; também não era de seu
gosto exporem-se ao inocente marido, exigindo liberdade e
destruindo a vida dele. Em suma, pelas crianças, pelo marido
nobrc e bondoso, a quem muito apreciavam, haviam renuncia-
do um ao outro. Sim, esse tipo de coisa ainda acontecia, mas
naturalmente exigia que a gente se controlasse um bocado.
Übrbein ainda ia, às vezes, à casa da pálida dama. Jantava lá�
quando seu tempo o permitia, jogava cartas com o amigo, bei-
java a mão da dona da casa e dizia boa-noite! . . . Mas, depois
de contar isso, ele disse mais; falou em tom ainda mais lacô-
nico e áspero que antes, formando mais vezes aquelas bolas de
mtísculos nas faces. Naquele tempo, quando ele e a pálida dama
haviam renunciado, naquele tempo Überbein também renuncia-
ra para sempre ao "ócio da felicidade", como desde então dizia
,
e fora uma decisão definitiva. Como não pudesse, ou não qui-
sesse, conquistar a dama pálida, jurara a si mesmo honrá-la e
àquilo que o ligava a ela, tornando-se grande e progredindo no
campo profissional - pusera toda a sua vida nas realizações
profissionais, só nelas, e se tornara o que era. Era esse o se-
gredo, ao menos era uma ajuda no sentido de se resolver o
. enigma da severidade de Überbein para consigo mesmo, sua arro-
gância e seu zelo. Klaus Heinrich viu, receoso, que o rosto dele
estava extraordinariamente esverdeado quando se despediu com
uma funda mesura, dizendo:
- Klaus Heinrich, minhas recomendações à pequena
Imma!
Na manhã seguinte, o Príncipe recebeu na Sala Amarela as
felicitações da criadagem do Castelo, e ais. tarde dos Srs. von�
Braunbart-Schellendorf e von Schulenburg-Trèssen. No curso da '
manhã, os membros da família do Grão-Duque foram ao Eremi-
tage dar seus parabéns, e à lh Klaus Heinrich se dirigiu, em
sua sege, para o almoço em família com o Príncipe e a Princesa ;
zu Ried-Hohenríed, a caminho saudado com inusitados aplausos
do público. Os grimmburguenses estavam todos presentes no de-
licado palácio da Albrechtsstrasse. Também o Grão-Duque veio,
261
r � �
ji ;
i ' de casaco, saudou todos com a estreita cabeça, sugando de leve
o lábio superior com o inferior, e bebeu leite misturado com
água mineral na refeição. Quase imediatamente após concluído
o almoço, retírou-se. O Príncípe Lambert víera sem a esposa. O
velho amigo do balé estava descolorido, escaveirado, relaxado e
com voz sepulcral. De certa forma, os parentes o ignoraram.
Durante a refeição, a conversa girou algum tempo em torno
de assuntos da Corte, depois falaram sobre o desenvolvimento
da pequena Princesa Philippíne e, mais tarde, quase só dos ne-
gócios do Príncïpe Philipp. O delicado cavalheiro contou de suas
!; i
cervejarias, fábricas e moinhos, e de suas explorações de turfa,
descreveu melhorías nas fábrícas, falou em cífras sobre aplica-
ções e lucros, e suas faces coraram enquanto os parentes da mu-
lher escutavam com expressão de curiosidade, benevolência e
zombaría.
Quando tomaram o café na grande sala das flores, a Prin-
cesa aproximou-se do irmão com sua tacinha dourada e disse:
- Mas você tem se esquecido de nós ultimamente, Klaus
Heinrích,
O rosto de Ditlinde, em forma de coração, com os zigomas
dos grimmburguenses, não era mais tão transparente, tinha um
pouco maís de cor desde o nascímento da fílhínha, as tranças de
um louro cinzento pareciam pesar-lhe menos.
- Eu me esqueci de vocês? - disse ele. - Sim, Ditlinde,
perdoe, pode ser. Mas fuí tão exígido, e sabia que vocé tarobém
estava ocupada, pois agora não tem só as flores para cuidar.
- Sim, as flores não são maís as primeiras, não rne preo-
cupo muito com elas agora. Há uma ,,sria e um florescímento
mais bonítos, que me ocupam, e acho que hqui de faces coradas�
como meu bom Philipp com sua turfa (da qual falou o almoço
inteiro, o que não aprovo, mas é a sua paixão). E como eu tam-
bém andei tão ocupada, não fiquei zangada com você por não
ter aparecido e seguir seus próprios caminhos, embora tenham
sido um pouquinho estranhos . . .
- Mas você conhece meus caminhos, Ditlínde?
262
- Sim, mas, infelizmente, não através de você. Jettinha
' Isenschnibbe me manteve a par de tudo - sabe que ela está
sempre informada - e no começo fiquei muito assustada, não
nego. Mas, afinal, eles moram nos Delfins, ele tem um médíco
pessoal, e Philipp também acha que, à sua maneira, eles são
iguais a nós. Acho que, no passado, me expressei negativamente
sobre eles, Klaus Heinrich, falando de "Pássaro Roca", e fiz uma
piada sobre a expressão "sujeito a impostos". Mas, se você acha
que são dignos de sua amizade, eu estava enganada, e natural-
mente retiro essas palavras. Quero pensar de modo diferente
sobre eles, prometo . . . Você sempre gostou de "farejar" -
contínuou ela, depois que Klaus Heinrich lhe beijava a mão,
sorrindo - e eu tinha de ír junto, e meu vestido (você lem-
bra?, aquele de veludo vermelhoj pagava por tudo. Mas agora '
você tem de farejar sozinho, e Deus permita que não tenha uma
experiência ruim, Klaus Heinrich.
- Ditlinde, acho que tudo que se vive é bonito, seja bom
ou mau. Mas o que estou vivendo agora, é bom. . .
As 4h30min, o Príncipe deixou outra vez o Eremitage,
dirigindo ele mesmo sua carruagem, de costas para o lacaio. Es-
tava quente, e Klaus Heinrich usava calças brancas com casaco.
Cumprimentando para os dois lados, voltou à cidade, mais exa-
tamente ao Castelo Velho, mas ignorou o Portão Albrecht e
entrou por um portão lateral, passou por dois pátios e parou
no da roseira.
Tudo ali estava quieto, pétreo; as torres das escadarias, com
janelas oblíquas, balaustradas de ferro batido e belas esculturas,
erguiam-se nos cantos; em luz e sombra, jaziam as variadas cons-
truções ao redor, algumas cinzentas e arruinadas, outras renova-
das, com torrões e sacadas parecendo caixotes, balcões encober-
tos, dando visão, por largas janelas de arco, sobre vestíbulos
abobadados e corredores sinuosos, com colunas. Mas no meio do
pátio, em seu canteiro cercado, ficava a roseira, e florescía, pois
o clima era propício.
263
Klaus Heinrich entregou as rédeas ao criado e foi olhar as
rosas vermelho-escuras. Eram extraordinariamente belas -
cheias, aveludadas, de formato aristocrático, verdadeiras obras
de arte da Natureza. Várias já estavam bem abertas.
;', , - Por favor, chame Hesekiel - disse Klaus Heinrich a
um porteiro bigodudo que se aproximara, mão no tricorne.
i
Chegou Hesekiel, guarda da roseira. Era um ancião de
70 anos, com avental de jardineiro, olhos úmidos e costas
curvadas.
- Tem uma tesoura aí, Hesekiel? - perguntou Klaus
Heinrich em voz alta. - Eu queria uma rosa. - E Hesekiel
tirou a tesoura de jardinagem de um bolso em forma de sacola,
no avental. - Esta aqui - disse Klaus Heinrich. - a mais�
bonita. - E, com mãos trêmulas, o ancião cortou o caule
espinhento.
I - Vou respingá-la de água, Alteza Real - disse ele e,
com passo arrastado, foi até o canto do pátio onde ficava a
torneira. Quando voltou, nas pétalas da rosa prendiam-se gotas
cintilantes como sobre penas de aves aquáticas.
- Obrigado, Hesekiel - disse Klaus Heinrich, pegando
' a rosa. - Você continua forte? Tome! - E deu ao velho uma
moeda, depois subiu na carruagem, passou pelos pátios, com a
rosa ao lado no assento e, na opinião de todos os que o viam,
, voltou do Castelo Velho, onde provavelmente tivera um encon-
tro com o Grão-Duque, para o Eremitage.
Mas dali passou pelo Parque Municipal em direção aos
Lelfins. O céu escurecera, grandes gotas caíam sobre as folhas,
e trovejava ao longe.
As damas estavam sentadas para o chá quando, condazido
pelc mordomo barrígudo, Klaus Heínrich apareceu na galeria e�
desceu os degraus para o jardim de inverno. O Sr. Spoelmann
não estava presente, como tantas vezes nos últimos tempos. Es-
tava deitado, fazendo compressas. Percival, encaracolado junto
à cadeira de Imma, bateu a cauda no tapete várias vezes em sau-
264
ï,:.
dação. O dourado dos móveis estava fosco, pois atrás da porta
de vidro o parque jazia nas sombras da tempestade.
Klaus Heinrich trocou um aperto de mãos com a filha da
casa e beijou a mão da Condessa, levantando-a, ao mesmo tempo,
brandamente de sua mesura, na qual ela se abaixara, segundo
seü costume.
- Eis o verão - disse ele a Imma Spoelmann, e lhe ofe-
receu a rosa. Nunca lhe trouxera flores.
- Mas que cavalheiro! - disse ela. - Obrigada, Prín-
cipe! E é linda! - continuou, numa admiração sincera (quando
jamais elogiava nada), e rodeou a magnífica corola, cujas pétalas
orvalhadas se enrólavam deliciosamente nas beiras, com suas
mãos estreitas e nuas. - Há rosas tão lindas por aqui? De
onde a conseguiu? - E baixou, sedenta, sua cabecinha escura
e pálida sobre a flor. i�
Os olhos estavam cheios de susto quando os ergueu de
novo.
- Não tem perfume! - disse, e na sua boca apareceu
uma expressão de repulsa. - Espere . . . Sim, cheira a mofo! -
continuou. - Príncipe, o que está me trazendo? - E seus olhos
imensos e negros no rostinho pálido pareciam arder de horror
e indagação.
- Sim - disse ele. - Perdoe, é nossa espécie de rosas.
Vem da roseira que fica no canto do pátio do Castelo Velho.
Nunca ouviu falar? Há uma lenda a respeito. O povo diz que
um dia começarão a soltar um perfume maravilhoso.
Ela não parecia ouvir.
- É como se não tivesse alma - disse, contemplando a
rosa. - Mas é de uma beleza perfeita, realmente . . . Bem, ca-
pricho duvidoso da natureza, Príncipe. Mas, de qualquer modo,
agradeço sua atenção. E, se vem do castelo de seus antepassados,
é preciso reverenciá-la. Í
E colocou a rosa num copo com água, ao lado do seu prato.
Um criado com plumas de cisne trouxe pratos e xícara para o
Príncipe, e durante o chá conversaram sobre a roseira maldita
,
265
,
ÍI
i¡
jí �
depois sobre assuntos habituais, como teatro, cavalos, toda sorte
de questões insignificantes em que Imma Spoelmann o contra-
riava com suas citações eruditas, com que se divertia, deixando-
o abatido pela escolhída linguagem literária, borbulhando a voz
rouca, meneando a cabecinha caprichosamente. Mais tarde, trou-
xeram-lhe um pesado pacote de papel branco, envíado à Srta.
Spoelmann pelo encadernador, com uma sêrie de obras que eIa
mandara revestir de lindas roupagens duradouras. Ela abriu o
pacote e os três foram ver se o artesão fizera bom trabalho.
Eram quase todos livros eruditos, ou aqueles que por den-
tro eram tão fascinantes como o caderno de escola de Imma
Spoelmann, outros que tratavam de psicologia, análise perspicaz
dos acontecimentos íntímos das pessoas. Estavam revestídos de
encadernação preciosa, couro e letras douradas, papéis escalhidos
e fitas de seda. Imma Speelmann mostrou-se razoavelmente con-
tente com a entrega, mas Klaus Ieinrich, que nunca vira volu-�
mes tão ricos, era todo elogios.
- E agora serão colocados nas prateleiras? - perguntou.
- Como os outros lá em cima? Tem muitos livros, não é? To-
dos tão bonítos como estes? Deíxe-me ver como os coloca nas
prateleiras! Não posso ir agora, o tempo ainda está ruim, amea-
çando minhas calças brancas. Aliás, nem sei como é que moram
aqui nos Delfins, nunca estive no seu estüdio. Pode rne mostrar
seus livros ?
- Depende da Condessa - disse ela, ocupada em empi-
lhar os lívros novos. - Condessa, o Prïncipe deseja ver meus
livros. Posso pedir que se manifeste?
A Condessa Lowenjoul estava sentada, ausente. A pequena
cabeça incünada sobre o ombro, contemplava Klaus Heinrich
com um olhar penetrante de olhos estreitados, um olhar mal.ig-
no, e depoís seus olhos deslízaram para Imma, enquanto sua
expressão mudava, e um ar brando, compadecido e preocupado
a dominava. Sorrindo, voltou a si e tirou do vestido marrom
um pequeno relógiu.
26C7
- As 7h - disse ela, tranqüila - o Sr. Spoelmann espe-
ra que você leia para ele, Imma. Tem meia hora para atender a,o
desejo de Sua Alteza.
- Venha, então, Príncipe, ver meu estúdio! - disse
Imma. - Pode me ajudar a arrumar os livros, se sua nobreza u
permitir. Eu levo a metade. .
iVlas Klaus Heinrich levou os livros todos. Pegou-os com
dois braços, embora o esquerdo não fosse de grande valia, e
a pilha passou além de seu queixo. Curvado para trás, andando
cautelosamente para não derrubar nenhum, ele seguiu Imma para
a ala do Castelo além da rampa de chegada, em cujo lance prin-
cipal ficavam os aposentos da Srta. Spoelmann e da Condessa.
No aposento grande e confortável em que entraram, pas-
sando por uma porta pesada, ele largou sua carga numa mesa
hexagonal de ébano, diante de um pesado sofá cujo tecido era
entremeado com fios dourados. O estúdio de Imma Spoelmann
não seguia o mesmo estilo histórico do Castelo, mas era mobilia-
do com gosto mais moderno, sem demasiada delicadeza, antes
com um luxo generoso, prático, viril. Era forrado até o alto com
madeira nobre, ornado com antigas peças de argila que brilha-
vam sobre um parapeito que percorría toda a sala junto ao teto.
Havia por toda parte tapetes orientais, uma lareira de mármore
preto com belos vasos e um relógío dourado, largas poltronas
de veludo e cortinas do mesmo teci:o do sofá. A ampla escriva-�
ninha estava diante da janela em arco, com vísta para a grande
fonte à frente do Castelo. Uma parede era toda coberta de lívros,
mas a biblioteca principal era uma saleta anexa, menor e também
forrada de tapetes, que se divisava por uma porta de correr
aberta, e cujas paredes estavam forradas até o teto, em toda a
volta, com livros.
- Bem, Príncipe, é esta a minha ermida'` - disse Imma.
- Espero que lhe agrade.
° Jogo de palavras: "Eremitae", que também significa "ermida"�
(N. da T.)
267
1,,
- Sim, é magnífico - disse ele.
Aliás, nem olhava em torno, mas o tempo todo para ela,
recostada no encosto do sofá junto da mesa hexagonal. Usava
um de seus belos vestidos caseiros, hoje um vestído de verão
de tecido branco com flores, pregueado, mangas abertas e, no
peito, um bordado amarelo. A pele dos braços e do pescoço
¡�
brilhava morena como espuma do mar enfumaçada contra o
branco do vestido; seus olhos imensos, sérios e lustrosos no
estranho rosto infantil, falavam uma linguagem eloqüente e cons-
tante, e uma mecha de cabelo negro-azulado, lisa, caía de lado
sobre sua testa. Estava com a rosa de Klaus Heinrich na mão.
- Sim, é magnífica - disse ele, parado diante dela, sem
saber bem do que falava. Os olhos dele, azuis, com os zigomas
salientes, estavam obscurecidos, como se sofresse. - Tem tan-
tos livros - acrescentou. - Como minha irmã Ditlinde tem
Elores.
1 ?
- A Princesa tem tantas flores assim
- Sim, mas ultimamente lhe interessam menos.
I
- Agora, vamos arrumar - disse ela, pegando um livro.
- Não, espere - disse ele, o peito oprimido. - Tenho
tanta coisa a lhe dizer e nosso tempo é curto. Deve saber que
hoje é meu aniversário . . . por isso vim lhe trazer uma rosa.
- Ora disse ela -, que singular! Seu açiversário é�
hoje? Estou certa de que recebeu todas as felicita ões de sua
I própria gente. Receba também as minhas! Foi muito gentil em
'i I me trazer essa rosa hoje, embora ela seja duvidosa . . . - Tentou
mais uma vez aspirar o cheiro de mofo, com expressão de medo.
- Quantos anos está fazendo hoje, Príncipe?
- Vinte e sete - respondeu ele. - Nasci em Grimmbur
g
há 27 anos. E sempre tive uma vida dura e solitária.
Ela ficou calada. De repente, Klaus Heinrich viu seus olhos
se dirigirem para o lado, sobrancelhas um pouco franzidas -
embora, treinado, ele estivesse um pouco de lado em relação a
ela, voltando-lhe o ombro direito, não podia impedir que os
268
',. :.
!I
olhos dela procurassem seu braço esquerdo, grudando-se na mão
que ele pusera bem atrás, no quadril.
- Você nasceu assim? - perguntou ela, baixinho.
Ele empalideceu. Mas, com um rumor que parecia um ge-
mido de alívio, caiu diante dela, abraçando com os dois braços
sua singular figura. Lá estava ele, de joelhos, com as calças bran-
cas e o casaco vermelho e azul com as insígnias de Major nos
ombros estreitos.
- Irmãzinha. . . - disse ele. -- Irmãzinha. . .
Ela respondeu com lábios em bico:
- C;ontrole-se, Príncipe. Acho que não é permitido des-
controlar-se. Deve manter a compostura em qualquer situação. . .
Mas, entregue, erguendo os olhos cegos para ela, ele só
dizia:
-- I mma . . . minha pequena Imma . . .
Então, ela pegou sua mão, a esquerda, a mirrada, o aleijão,
que o prejudicava em sua nobre vocação, que desde a infância
precisava esconder com tanto artifício e constante cuidado. . .
pegou-a e a beijou.
269
I
, I�
I I
I, ,j .
I ,.' !.
Ir, ,
I �
I.
1
A REALIZAÇÃO
Corriam no país sérios boatos sobre a saúde do Ministro das
Finanças, Dr. Krippenreuther. Falava-se de abalo nervoso, de
um progressivo mal do estômago, manifestados no rosto amarelo
e flácido . . . O que é a grandeza! O operário, o vagabundo das
estradas, não invejam aquele torturado dígnitário por seu títu-
lo, suas condecorações, sua posição na Corte, seu cargo eminente,
ao qual ele chegara com tanto esforço, para se consumir nele.
Anunciara-se várias vezes sua renúncia iminente . . . e dizia-se
que só porque o Grão-Duque não queria novos rostos a seu re-
dor, e porque achava que uma troca de pessoal não melhoraria
nada naquele momento, ele ainda não renunciara de fato. O Dr.
Krippenreuther passara as férias de verão numa estação de águas
nas montanhas, mas, se I.á se recuperara um pouco, suas forças
foram rapidamente consumidas outra vez, poís logo no inícío do
ano parlamentar houve briga entre o Ministro e a comissão de
orçamento - graves desentendimentos que certamente não se
fundamentavam na falta de flexibilidade dele, mas na desoladora
situação financeira do paí,
Em meados de setembro, Albrecht II abriu os trabalhos da
(.;âmara no Castelo Velho, conforme a tradição. A cerimônia foi
rccedida de uma invocação a Deus pelo pregador da Corte, D.��
VCIislizenus, na igreja do Castelo. Depois, o Grão-Duque, acom-
panhado do Príncipe Klaus Heinrich, segu:u num cortejo solene
271
para a Sala do Trono, onde os membros das duas câmaras, mi-
nistros, funcionârios da Corte e outros cavalheiros em uniforme
e roupa civil, saudaram os irmãos reais com um triplo "viva",
incitados pelo Presidente da Primeira Câmara, o Conde Prenzlau.
Albrecht desejara ardentemente passar seu papel nesse ato
formal ao seu irmão, e só por insistência do Sr. von Knobelsdorff
é que caminhava na cortejo, atrás dos cadetes vestídos de pajens.
Envergonhava-se de seu casaco de hussardo com cordôes, das
calças bufantes e de todo aquele abracadabra. O aborrecimento
e o constrangímento transparecíam claramente em seu rosto. Suas
omoplatas estavam nervosamente retorcidas quando ele subiu os
degraus do trono. Depois, postou-se diante daquela poltrona sob
o baldaquím puído, e sugou o lábío superior. Sobre o colarínho
branco e duro, que saía da gola prateada de hussardo, pousava
sua estreita cabeça, tão pouco militar, com a barbicha em ponta,
os alhos azuis e solitários que não viam ninguém. O tilintar das
esporas do Ajudante que lhe passou o manuscrito do discurso do
trono ressoou pela sala, na qual se ínstalara o sílêncío. E, baixi-
nho, ceceando um pouco, várias vezes interrompido por súbita
rouquidão, o Grão-Duque leu o que haviam escrito para ele.
Era o texto mais inócuo jamais ouvido, e opunha a cada
fato concreto, devastador, de natureza externa, uma qualidade
moral ínerente ao povo. Começava elogiando a atívídade reínan-
te no país, admitia que não se observava em todos os campos da
vida econômica um verdadeiro impulso, de modo que as fontes
de renda não estavam sendo exatamente abundantes. Comentou
com satisfação que cada vez mais se espalhava entre a populaçãe
o senso de bem-estar comum e sacrífícío econômíco, e depois
explicou, sem tentar embelezar, que, "apesar de louvável aumen-
to das contribuições em impostos devido à chegada de grandes
contribuíntes estrangeiros" (refería-se ao Sr. Spuelmann), não se
poderia pensar em reduzir as exigências feítas ao espírito de sa-
crifício recém-mencionado. Sem isso, dizia-se ainda, não teriam
conseguido atingir todos os objetivos de política financeíra pro-
postos pelo orçamento do Estado, e embora aínda nãa se tivesse
272
conseguido pagar as dívidas na medida desejada, o Governo vía
na continuação de uma política moderada de empréstimos a me-
Ihor saída para os problemas financeiros. De qualquer modo,
apesar das condições desfavoráveis, o Governo sentia-se ampa-
rado pela confiança do povo, aquela fé no futuro que é uma
bela herança de nossa raça . . . E, assim que pôde, o discurso do
trono deixou o perigoso terreno das finanças para se ocupar de
assuntos menos delícados, como a Igreja, a escola e as leis. O
Ministro von Knobelsdorff, em nome do monarca, declarou aber-
tos os trabalhos da Câmara. Os "vivas" que acompanharam Al-
brecht ao deixar a sala tinham um tom de desespero e desafio.
C;omo ainda estivesse quente, ele voltou logo a Hollerbrunn,
de onde só viera premido pela necessidade. Cumprira sua parte,
o resto era problema de Krippenreuther e da Assembléía. E,
como já se disse, imedi.atamente se desencadearam brigas sobre
vários assuntos de uma vez: impostos sobre bens, impostos so-
bre carne e índice de salários do funcionalismo.
(omo não se conseguisse convencer os representantes do�
4 povo a permitirem novos impostos, o espírito alerta do Dr.
Krippenreuther pensou em transformar os habituais impostos so-
bre rendas em impostos sobre bens, o que, a juros de 13 por
cento, daria um aumento de 1 milhão. A absoluta necessidade,
premência mesmo, desse aumento de renda do Estado transpa-
recia no novo orçamento do Governo, que, ignorando novos
ôm.s sobre a caixa estatal, concluía com um déficit que faria�
tremer o coração de qualquer entendido em economia. Mas,
como fosse claro que praticamente só as cidades seriam oneradas
com o impvsto sobre bens, foi contra essa porcentagem de 13
por cento que se dirigiu toda a indignação dos representantes
que vinham das cidades, os quais exigiram, como recompensa,
ao menos a eliminação do imposto da carne, que chamaram de
i
impopular e antediluviano. Além do mais, a comissão insistia,
de modo intransigente, na melhoria, tão prometida e sempre
adiada, do pagamento dos funcionáríos - e não se podia negar
que, na verdade, os salários dos funcionários da admínistração,
273
sacerdotes e professores do Grão-Ducado cIamavam aos céus.
Mas o Dr. Kríppenreuther não podía fabrícar ouro - "não
aprendí a fabrícar ouro", dísse ele textualmente - e tampouco
estava em condições de renunciar aos impostos da carne, nem
sabía o que fazer diante da miséria dos funcionários públicos.
Nada lhe restava senão obstinar-se na taxa de 13 pot cento,
embora soubesse melhor que ninguém que consentir nela não
traria grande estímulo. Pois a situação era séria, e espíritos mais
pessimistas lhe davam designações sombrias.
A Revísta do Bureo.u Estatistico do Grão-Ducado fornecia
dados assustadores sobre as colheitas dos últimos anos. A agricul-
tura registrava uma série de anos negativos, anomalias climáticas,
granizo, estiagem e chuva excessiva tinham tingido os campo-�
neses; um inverno extraordinariamente frio e pobre em neve con-
gelara as searas; e os críticos pessimistas afirmavam, embora sem
muita comprovação, que a devastação das florestas já tinha pre-
judicado muito o clíma. De qualquer modo, segundo evidências
estatísticas, a colheita total de cereais diminuíra assustadora-
mente. A obtençáo de palha, que existia em quantidades insu-
ficientes, deixava a desejar, segundo afirmação oficial; as cifras
da colheita de batatas estavam muito atrâs da média de decênios
anteriores, sem falar que não menos de 10 por cento desses fru-
tos do campo estavam doentes; quanto às pastagens artificiais,
os dois iíltimos anos estavam entre os mais desfavoráveis de todo
o período levantado, tanto na quantidade como no lucro da co-
lheíta de trevo e alfafa; a colheita de colza de ínverno, feno e
feno serôdio não apresentava melhores condições. A queda da
agricultura expressava-se no aumento das vendas forçadas, cujos
números cresceram terrivelmente naquele ano. Mas essa anomalia
abria lacunas nos impostos, que, se em outro lugar seriam dolo-
rosas, entre nós eram realmente sínistras.
E as florestas? Nada produziam economicamente. Uma des-
graça juntava-se a outra; parasitas tinham invadido várias vezes
as matas, e nem é preciso lembrar que o valor em capital das
florestas fora abalado pelos desmatamentos.
274
As minas de prata? Há muito não davam lucro. Forças des-
trutivas da natureza haviam interrompido a produção e, como
sua recuperação significasse grandes gastos, e os resultados nun-
ca tivessem correspondido exatamente às aplicações, fora preciso
interromper essa produção por algum tempo, embora isso signi-
ficasse muíto desemprego e regiões inteiras fossem prejudicadas.
Basta! Já demonstramos a situação das finanças do Estado
nessa época de provação. A crise que se instalava, o déficit que
se arrastava de um ano a outro na economia, tornaram-se gri-
tantes pelo estado de calamídade, pela hostilidade dos elementos
c pela falta de redução dos impostos, e um olhar que procurasse
meios de resolver isso - na verdade, seriam meios de abrandar
a situação - veria, por mais tolo que fosse, toda a miséria de
nossa situação financeira. Não se podia nem pensar em novas ta-
xações. Por natureza mau pagador de impostos, o país, naquele
momento, estava esgotado, sua força de contribuíção, paralisada,
os críticos afirmavam que aumentava cada vez mais, no inte-�
rior, a presença de criaturas subnutridas, culpa, primeiro, dos
crescentes impostos sobre o consumo, depois, dos impostos em
eral, que forçavam os donos de animais a transformarem o leite�
integral em dinheiro. Quanto àqueles recursos menos éticos mas
sedutoramente cômodos contra a falta de dinheiro que a ciência
cconômica conhece, chegara a hora em que o mau uso, o uso le-
vamo de tais recursos, começava a vingar-se amargamente.
Depois de terem pago dívidas de maneíra inábil e prejudi-
cial, desistiram disso quase totalmente, sob Albrecht II, tapando
pr:cariamente os buracos com novos empréstimos ou letras do�
Tesouro. Assustado, o Governo se via diante de uma dívida ur-
ente e ameaçadora, cujo total ficava em relação escandalosa com��
o número de habitantes. O Dr. Krippenreuther não recuara dian-
!.e de todas as práticas que se abrem a Estados nessa situação.
Optara por altas obrigações de capital, apelara para uma conver-
são forçada e, com a redução da porcentagem dos juros, trans-
formara dívídas a curto prazo, diante do nariz dos credores, em
obrigações rentáveis eternas. Mas elas tinham de ser pagas, e
275
enquanto esses comprornissos todos oneravam insuportavelmente
nossa economia, o baixo valor da moeda fazia com que, a cada
emissão de obrigações, o capital em caixa baixasse ainda mais.
Pior: a crise financeira no Grão-Ducado fez com que os credores
externos procurassem cobrar seus empréstimos precipitadamente,
e mais uma vez caiu a moeda corrente, com mais emissão de di-
nheiro. As falências de bancos estavam na ordem do dia.
Em suma: nosso crédito estava abalado, nossos papéis, mui-
to abaixo do valor nominal, e embora a Assembléia preferisse
conceder novos empréstimos a aprovar novas taxas, as condições
impostas ao país eram tais que uma negociação ficava difícil, se
não impossível. Pois a toda essa desgraça acrescia que, naquele
tempo, havia problemas fínanceiros generalizados, o dinheiro en-
carecera, como todos ainda recordam.
Que fazer para tomar pé novamente? Aonde se dírígir a fim
de saciar a fome de dinheiro que nos devorava? Alienar as minas
de prata, naquele momento não-lucrativas, e empregar esse di-
nheiro no pagamento de dívidas a altos juros fora matéria pon-
derada. Mas essa venda, que no atual estado de coisas seria defi-
citária, não acabaria apenas com todo o capital já empregado nas
minas, mas também com futuros ganhos que um dia o Gover
no, a curto ou longo prazo, tal.vez conseguisse com elas - e
afinal não se encontrava um comprador de um dia para o outro.
Num momento - um rnomento de fraqueza espiritual -, pen-
sou-se até na venda das florestas estatais. Mas aínda havía sufi-
ciente bom senso no país para impedir que nossas florestaa fos-
sem entregues à indústria prívada.
Para não esconder nada: surgiram outros boatos de vendas,
boatos que faziam concluir que as pessoas não se constrangiam
diante de coisas que o povo, respeitoso, teria considerado mons-
truosidades. O Mensageiro, não habituado a sacrificar informa-
ções por delicadeza, foi o primeiro a noti.ciar que dois castelos
do Grão-Duque que ficavam no interior, o Passatempo e o Favo-
rita, estavam à venda. Ponderando que as duas propriedades não
mais serviam como moradia da nobre família e anualmente exi-
27G
nte giam mais dinheiro; a administração dos bens fideicomissos indi-
ada cou canais adequados para se conduzir a venda. Que significava
,
ais. isso? Obviamente, não era como na venda dos Delfins, resultado
res de oferta extraordinária e excelente, além de ser um ato de inte-�
zte, ligência do Governo. Pessoas muito calejadas para falar a verda-
di- de e dizer coisas diante das quais espíritos mais delicados recua-
riam afirmaram que a administração financeira da Corte estava
.,ui- r sendo pressionada por credores inquietos, e que, se recomendava
isse aquelas vendas, era porque estava sob pressão implacável.
;ões A que ponto tinham chegado? A que mãos passariam aque-
I
se les castelos? Exatamente os mais bem-intencionados, que faziam
,
ele ; essas indagações, inclinavam-se a considerar consoladora outra�
en- notícia, vinda dos mais bem-informados, e acreditavam nela: a�
' de que, mais uma vez, o comprador era Samuel Spoelmann -
fim ' notícía totalmente infundada, nascida do nada, mas que demons-
inas trava o papel que desempenhava na imaginação do povo aquele
di- homenzinho que se estabelecera tão principescamente entre eles.�
Lá morava ele com seu médico pessoal, o órgão eletrônico,
a coleção de vidros, por trás das colunas, janelas em arco e ba-
laustradas trabalhadas do castelinho que, com um gesto, salvara
das ruínas. Quase nunca viam Spoelmann, estava de cama com
seus emplastros. Mas viam sua filha, a estrangeira de ar mimado
vivendo vida de princesa, tendo por 'dama de companhia uma
condessa, dominando a álgebra e andando livre e furiosa entre os
guardas. Viam-na e, a seu lado, muitas vezes o Príncipe Klaus
Heinrich.
Raoul Überbein exagerara dizendo que o público "parava
de respirar" diante dessa visão, mas no fundo estava certo. Nun-
ca a população de nossa Residência, seja de que camada for,.
seguira com tamanho interesse um fato público ou social, dando-
lhe tanto mais importância do que ao resto, como agora obser-
vava as visitas de Klaus Heinrích aos Delfins. Até uma conversa
com o Minístro von Knobesldorff, o Príncipe agiu quase às cegas,
sem ligar para os outros, obedecendo a seus impulsos interíores.
Mas o Professor Überbein podia zombar dele, perguntando, no
277
seu jeito paternal, se achava que seus passos podiam permanecer
ocultos ao públíco. Poís, seja porque os críados das duas partes
falavam mais do que deviam, seja porque o próprio público
observava os acontecimentos diretamente, de qualquer modo,
sempre que Klaus Heinrich se encontrara com a Srta. Spoelmann.
desde aquela primeira vez no Hospital Dorothea, tudo fora visto
e comentado. Vísto? Não: espreítado; espíonado, avídamente
anotado! Comentado? Na verdade, despejado em cataratas de
palavras! Aquela amizade era objeto de conversas em toda a
Corte, nos salões, nas saletas, nos quartos de dorrnir, nas bar-
bearias, nas estalagens, nas oEicinas e nos quartinhos de criados.
por cocheiros nos pontos de parada, por criadas nos portões das
casas, e interessava tanto a homens quanto a mulheres, embora,
naturalmente, com as variações normais devidas à diferente vísão
dos dois sexos, mas a partícipação zelosa de todos equilibrava
isso, superando abismos sociais. E o condutor de bonde pergun-
tava a um passageiro bem-vestido. na plataforma, se já sabia que
ontem à tarde o Príncipe passara mais uma hora nos Delfins.
'.Vlas o que era em si notável e decisivo para o futuro de
tudo isso é que em momento algum se tinha impressão de con:
trariedade, e em todos os boatos não havia aquele prazer vulgar
de mexericar sobre acontecimentos das esferas mais altas -
desde o começo, antes que alguém tivesse tempo de alimertar�
uma segunda intenção, aquele comentário de mil vozes sempre
tívera um tom de aprovaão e concordância. O Príncipe. se ti-�
vesse _xensado antes na opinião pública, teria obtido imediata-�
rnente a certeza de que sua atitude era absolutamente popular.
Quando, diante de seu professor, ele chamara a Srta. Spoelmann
de "Princesa", falara como devia ser exatamente no espírito do
povo - aquele povo que por toda parte sabe ter uma visão
poética do que ê invulgar e românti.co. Sim, para o povo, aquela
criatura de cabelo preto e rosto pálido, preciosa e singularmente
bela, de bízarra mistura no sangue, que víera do outro lado do
rnundo para viver entre nós sua vida única e solitária - para
esse povo, ela era uma filha de reis ou de fadas, vinda de um
278
país de fábula, uma princesa no mais singular sentido da palavra.
Mas tudo, tanto a própria atitude dela como a atitude do mundo
para com ela, colaborava para fazê-la aparecer como Princesa
também no sentido habitual da palavra. Acaso ela não morava
com sua Condessa num castelo, como devia ser? Não andava em
seu magnífico automóvel ou em sua carruagem até as instituições
, beneficentes, os cegos, os órfãos; as diaconisas, a cozinha dos
pobres, o lactário, para ver tudo pessoalmente, para edificação
geral e informação pessoal, como fazia uma princesa? Acaso ela
não fizera doações em dínheiro "do seu cofre particular", como
dissera o Mensageiro, para os flagelados das enchentes e de um
incêndio, em quantias que se igualavam exatamente às do Grão-
1)uque (não as superavam, o que todos notaram com aprovação)?
C)s jomais não noticíavam praticamente todos os dias, logo abaixo
cias notícias da Corte, o variável estado de saúde do Sr. Spoel-
mann - se as cólicas o prendiam ao leito ou se ele retomara
suas visitas matinais à fonte? Os uniformes brancos de seus cria-
clos não faziam parte das ruas da cidade, como os uniformes cas-
tanhos dos lacaios do Grão-Duqüe? Os estrangeiros, com seus
;uias turístícos não se faziam levar ao Castelo dos Delfins para�
rmrgulharem na contemplação da residência de Spoelmann -
muitos até antes de visitarem o Castelo Velho? Os dois caste-
los, o Velho e o dos Delfins, não eram quase igualmente pontos
alus e centrais da cidade? A que sociedade pertencia aquela�
criança, isolada de qualquer comunidade e igualdade, que nascera
mmo filha de Samuel Spoelmann? Com quem deveria ligar-se,
rom quem poderia travar relações? Nada era menos estranho,
uada mais claro e natural, do que ver Klaus Heinrich ao lado
clcla. E mesmo os que realmente não tinham visto aquele quadro,
saboreavam-no em espírito e mergulhavam nele: a esguia, solene
c familiar figura do Príncipe, ao lado da filha e herdeira do inau-
dito estrangeiro, que carregava, doente e rabugento, uma fortuna
que era quase o dobro de todas as nossas dívidas estatais!
Então, uma lembrança, uma estranha figura dominou a
consciência pública . . . ninguém pode dizer quem comentou isso
279
primeiro, quem o indicou . . . não se sabe. Talvez fosse uma mu-
lher, uma criança com olhos crédulos, a quem se contou isso
uma vez, antes de dormir . . . Deus é quem sabe. Mas uma figu-
ra espectral entrou na imagi.nação do povo: a sombra da velha
cigana que, grisalha, desgrenhada e torta, olhos voltados para
dentro de si mesma, fizera um desenho com a bengala na areia,
e cujo murmúrio fora registrado e transmitido de geração ém
geração. . . "A maior felicidade?" Ela viria para o país através
de um Príncipe "com uma mão". Ele daria mais ao país com
uma mão do que todos os outros com duas . . . Com uma? Mas
nada faltava à esguia figura de Klaus Heínrich. Pensando bem,
havia uma falha, uma debilidade da qual estavam habituados a
desviar os olhos ao saudá-lo - em primeiro lugar, por timidez,
e depois porque, com gracioso artifício, ele levava as pessoas a
não olharem. Viam-no na carruagem tapando o braço esquerdo
com o direito no punho da espada. Debaixo do baldaquim, numa
tribuna enfeitada de bandeirolas, ficava um pouco virado para a
esquerda, apoiando a mão esquerda firmemente no quadril. Sa-
biam que o braço esquerdo era curto, a mão mirrada, conheciam
até as explicações do defeito, mas o respeíto P a decêncía nunca
deixavam ver isso claramente, nem sequer o admitir. Mas agora
viam. Ninguém sabe quem se lembrou primeíro desse fato e,
num sussurro, ligou-o à profecia. .. uma criança, uma criada,
um ancião na soleira da eternidade. Mas aconteceu, o povo trans-
mitiu certas idéias e esperanças - também com relação à Srta.
Spoelmann - aos postos decisivos, de baixo para címa, com
veemência, numa inspiração: a crença do povo, espontânea, des-
preconceituosa, deu alicerce firme a tudo que viria depois. "Com
uma mão?", indagavam, e "A felicidade maior?". E em espírito
viam Klaus Heinrich junto de Imma Spoelmann, mão esquerda
no quadril, e, ainda incapazes de concluir seus pensamentos, fre-
miam com aquilo que mal divisavam.
Tudo isso pairava no ar naqueles dias, ninguém concluía
esse pensamento - nem os mais chegados e participantes. Pois,
entre Klaus Heinrich e Imma Spoelmann, as coisas eram bem
280
estranhas; por enquanto, nem ela nem ele talvez tivessem um
objetivo firme. De fato, aquele lacônico íncidente entre eles na
tarde do aniversário do Príncipe (quando a Srta. Spoelmann ihe
mostrara os livros) pouco ou nada modificara o seu relaciona-
mento. E se Klaus Heinrich estava naquele estado de encanta-
mento febril que domina os jovens nessas ocasiões, ao voltar para
o Eremitage, certo de que algo decisivo acontecera, em breve
entenderia que a luta pelo que considerava sua felicidade apenas
começara. Mas essa luta ainda não podia obter um final concre-
to, uma promessa ou coisa assim - era impensável de momen-
to, e além disso os dois não tinham qualquer experiência da vida.
O que Klaus Heinrich, a partir de então, passou a pedir com
olhares e palavras, não era que a Srta. Spoelmann retribuísse
seus sentimentos - mas que, ao menos, se decidisse a acreditar
na veracidade e intensidade deles. Pois ela ainda não acreditava.
Ele deixou que se passassem duas semanas antes de voltar
aos Delfins, e durante esse tempo viveu interiormente do que ali
acontecera. Não tinha pressa de envelhecer aquele incidente com
algum outro, e várias representações o ocupavam, entre elas uma
competição de tiro ao alvo na Liga de Atiradores, da qual era
presidente de honra e patrono, e de cuja festa de aniversário par-
ticipava todo ano, vestido de verde como se vibrasse com o es-
porte. Os membros da Liga recebiam-no com entusiasmo; ele
parava nos postos de tiro e, sem qualquer apetite, fazia um pe-
queno lanche com os membros da diretoria, finalmente dispa-
rando, em postura graciosa, alguns tiros sobre vários alvos.
Quando, depois disso, em meados de junho, voltou ao Castelo
dos Spoelmann na hora do chá, Imma estava muito irônica, com
linguagem excepeionalmente formal e retórica. O Sr. Spoelmann
dessa vez estava presente e, embora sua presença adiasse o mo-
mento, tão esperado, em que Klaus Heinrich poderia ficar a sós
com a filha da casa, ajudou inesperadamente o Príncipe a supe-
rar a mágoa pela rudeza dela; pois Samuel Spoelmann foi bon-
', doso com ele, quase carinhoso.
281
Tomaram chá no terraço, em modernas poltronas de vimc:,
docemente embalados pelos perfumes do jardim florido. O don ��
do castelo estava deitado sob um cobertor de seda verde bordade,
com papagaios e forrado de peles, junto da mesa, sobre um diW;
com almofadas de seda. Tinha saído da cama para saboreaï
o ar brando, mas hoje suas faces não estavam acaloradas e sim
amarelas, e seus olhinhos, sombreados; o queixo estava pontude:.
o nariz reto parecia maior que habitualmente, e seu estado de
espírno não era a costumeira irritação, antes melancolia, o que
não devia ser bom sinal. O Dr. Watercloose sentava-se à sua c:�
beceira, comprido e com um sorriso mansc
- Então, jovem Príncipe . . . - disse Spoelmann, faty-�
do, e quando o Príncipe indagou de sua saúde, respondeu apena �
com um resmung.�
Imma, num cintilante vestido de casa com cíntura aua .
casaquinho de veludo verde, áespejou água da chaieira elétrica:
para o bule. Felicitou o Princtpe com lábios em bico peio sucessc.
pessoal como atirador. Disse, menenando a cabecinha, que '
imprensa do dïa me cieu mtormações para minha profunda ai;
gria' , e que tínha lido para a Conáessa a descríçáo dessa visio:.
A í,onctessa sentava-se ereta em seu justo vestido marrom, juncc, '.
da mesa, manejancio sua colnerinha com.gestos nobres, sem quai-
quer momemo áe distensão. Naqueie dia, era o Sr. Spoeimanc
quem faiava. Fazia isso, como se disse, de maneira doce, sin:.
tris°, resultado áe suas dorea�
Contou sobre um incidente de anos atras, com o quai; obwa
mente, amda não se contormara, e que em dtas de saúde rmm c
ocupava dolorosamente - contou duas vezes a 'tastona, curta �
simples, e na segunda ficou ainda mais amargurado que na pr-�
metra. IVaquele tempo, ele tmrla queriáo razer uma áe suas áoa-
ções, não de primeïra, mas mesmo assim voiumosa - informara
uma grande instituição benemerente dos Estados Unidos de que.
para estimular suas boas ações, pretendia doar-lhe 1 milhão em
ações da ferrovia, papéis seguros da Ferrovia do Pacífico Sul,
disse o Sr. Spoelmann, batendo na palma da mão para que visua-
282
lizassem os papéis. iIas que fizera a tal instituição benemerente?��
ne,
Recusara o presente, recusara-se a aceitá-lo - com a observa-�
ão expressa de que preferia renunciar a uma ajuda de origem�
de,�
duvidosa e violenta. Fizerarn isso, sim. Os lábios do Sr. Spoel-
Ivíi
ea. mann tremeram quando ele contou o fato, da primeira e da se-
sin gunda vez, e cheío de desejo de ser consolado, e cheio de desdém,�
ele olhou em torno da mesinha de chá com seus pequenos olhos
unidos e metálicos.
de
u - Nada humanitário vindo de uma instituição humanitária
- disse Klaus Heinrich. - Não, não foi. - E sacudiu a cabeça,
manifestando tão claramente seu desgosto e sua simpatia que o
Sr. Spoelmann se alegrou um pouco e declarou que hoje estava
,na bonito lá fora, e as flores lá embaixo tinham perfume muito�
bom.
Logo aproveitou a oportunidade para se mostrar reconheci-
. do ao jovem visitante e provar-lhe seu agrado de maneira bem
xpressiva. Klaus Heinrich estava gripado, apesar do calor que,�
°5SC':
nesse verão, se alternava com tempestades, granizo e frio, sentia
a arganta inchada e dores ao engolir. E como sua nobre missãe�
sim: e certa delicadeza nos cuidados para com sua pessoa, destinada
ant ,i ser sempre admirada, o tivessem necessariamente deixado um��
tanto melindroso, ele não conseguia deixar de falar nisso e quei-
iuai-
ann wr-se de dores na garganta.�
Sin. - Então, deve fazer compressas úmidas - disse o Sr.
5poelmann. - r'.'em papel guta-percha?
Klaus Heinrich não tinha. Então. o Sr. Spoelmann a'tastou
wta-
o cobertor de papagaios, levantou-se ntrou no Castelo. 'Ião� � �
rta respondeu a qualquer pergunta. não se deixou deter, foi. Pergun-�
taram uns aos outros, na si:ta ausència. o que ele podia estar
pri-
üoa querendo. e o Dr. Watercloose, ~eceando nue seu paciente tives-� �
se saído devido a um acesso de or, eguiu-o imediatamente.� �
rnara
ue. Mas, quando o Sr. Spoelmann voltou. tinha na mão um pedaço de
q
em papel guta-percha, que se lembrara existir em alguma gaveta, de�
Sul, outros tempos, um pedaço já bastante frágil, que entregou ao
isua- ' Príncipe, ensinando-lhe extensamente como devia usá-lo para ter
283
proveito. Klaus Heinrich agradeceu, alegre, e o Sr. Spoelmann,
contente, voltou a se estender no divã. Dessa vez ficou ali e,
quando tomaram o chá, até sugeriu um passeio em grupo pelo
parque, no qual caminhou entre Imma e Klaus Heinrich, em seus
sapatos macios, enquanto a Condessa Lõwenjoul seguia a certa
distância com o Dr. Watercloose. Quando o Príncipe se despediu,
Imma Spoelmann fez ainda uma observação contundente sobre
sua garganta e as compressas úmidas e, com disfarçada zombaria,
pediu que cuidasse bem de sua sagrada pessoa. Mas, embora
Klaus Heinrich não soubesse de nada adequado para responder
- o que ela, aliás, não esperava nem pedia -, mesmo assim
embarcou em sua carruagem muito satisfeito. Pois aquele peda-
cinho quebradiço de guta-percha no bolso de trás de seu casaco
lhe pareceu, sem clara justificativa, a garantia de um futuro feliz.
Fosse como fosse, sua luta apenas começava. Era a luta
pela crença de Imma Spoelmann, a luta por sua confíança
num grau que lhe permitisse a decisão de sair daquela esfera
pura e gélida em que estava habituada a jogar, o reino da álge-
bra e da linguagem zombeteira, descendo para aquela outra esfe-
ra, mais calma, nevoenta e fecunda, que ele lhe mostrava. Pois o
receio que Imma sentia de dar esse passo era imenso.
Da vez seguinte, ele ficou sozinho com ela, ou praticamen-
te sozinho, o que significa que formavam um trio com a Con-
dessa Lõwenjoul. Era uma manhã fresca, de céu encoberto, após
uma tempestade noturna. Cavalgavam ao longo do declive na
campina, Klaus Heínrich de botas altas, a alça da chibata de
montaria pendurada entre os botões do manto cinzento. A re-
presa junto à ponte de madeíra estavã fechada, o leito do braço
de rio jazia seco e pedregoso. Percival, acalmãdo seu primeiro
acesso, saltava por cima, agilmente, ou trotava à maneira oblíqua
dos cães diante dos cavalos. A Condessa, montada em Isabel,
inclinava a cabecinha de lado, sorrindo. Klaus Heinrich disse:
- Penso dia e noite numa coisa que deve ter sido sonho.
Fico deitado à noite, escutando Florian bufar no estábulo, tama-
nho é o siêncio. Então penso com certeza que não foi sonho.�
284
Mas, quando a vejo como hoje, e o outro dia no chá,- é ímpos-
sível pensar que seja verdadeiro.
Ela respondeu:
- Precisa me explicar isso, nobre Príncipe.
- Srta. Imma . . . mostrou-me seus livros há 19 dias. . .
ou não?
- Dezenove dias? Eu teria de calcular. Não, vamos ver,
foram 18 dias e meio, se não me engano . . .
- Então me mostrou seus livros?
- É absolutamente correto, Príncipe. E alegra-me a espe-
rança de que tenha gostado.
- Srta. Imma! Não fale assim, não agora, e não comigo!
Tenho um sentimento tão sério no coração, tanta coisa a lhe di-
zer, coisas que me levaram a procurá-la quando me mostrou seus
livros há 19 dias . . . seus muitos livros. Eu queria continuar ali,
onde paramos na ocasião, e esquecer o que houve nesse meio
tempo . . .
- Pelo amor de Deus, Príncipe, prefiro esquecer aquele
assunto! Por que falar nele? Que coisas está recordando e me faz
recordar também? Pensei que tinha motivos para se calar sobre
isso. Descontrolar-se a tal ponto! Perder a compostura!
- Srta. Imma, se soubesse como me fez bem perder a
compostura!
- Obrigada! Sabe que isso me ofende? Insisto em que
mantenha sua compostura também diante de mim, a mesma que
manifesta com todo o mundo. Não sou um intervalo de recreie
em sua existência de Príncipe.
- Mas que mal-entendido, Srta. Imma! Sei qüe está me
interpretando mal de propósito, e de brincadeira, e isso me mos-
tra que não acredita em mim, nem leva a sério o que eu digo. . .
- Não, Príncipe, isso seria pedir demais. O senhor não me
contou sobre sua vída? Foi para a escola apenas pelas aparências;
por aparência freqüentou a Universidade, serviu como soldado
só pela aparência, e ainda usa uniforme pelas aparêncías. Por
aparêncía dá audiências e banca o atírador, e sabe Deus o que
285
mais. O senhor nasceu pela aparência e agora quer que, de re-
pente, eu acredite que está levando uma coisa a sêrío?
Enquanto ela dízía isso, os oïhos dele encheram-se de lágri-
mas, tanto lhe doeram aquelas palavras. E respondeu baixinho:
- Srta. Imma, a senhora tem razão, minha vida tem mui-
to de irrealidade. Mas não a construí nem a escolhi, deve lem-
brar-se disso, apenas cumpri meu dever, assim como me foi pres-
críto, severo e exato, para edífícação do povo. E, não bastando t
isso, a vida, que foi difícil e cheia de proibições e renúncias, ain- '
da vaí se vingar em mim fazendo com que a senhora não acre-
díte no que dígo . . .
- O senhor tem orgulho de sua vocação e de sua vida,
Príncipe - disse ela -, eu sei disso, e não posso desejar yue
seja infiel a si mesmo.
- Ora - exclamou ele -, isso é problema meu, isso de
ser fiel a mim mesmo, não se preocupe com isso. Tenho expe-
riências, fui infiel a mim mesmo, tentei ignorar a proibição e
tudo acabou em vergonha. Mas, desde que a conheço, sei que,
pela primeira vez, posso ignorar sem arrependimento ou prejuízo
isso que chamam de minha nobre vocação, posc me largar como�
qualquer pessoa, embora o i7r. Überbein diga, até em iatim, que
não me será permitido . . .
- Lstá vendo o que disse seu amigo!
- 'Vlas você mesma não o chamou de homem smistro, não�
disse que teria um mau fim? Ele é um caráter nobre, que aprecio
mmto, e a quem agradeço muitas explicações sobre mim mesmo f
e sobre as coisas em gera. Mas uitimamente pensei nele muitas�
vezes, e quando vocè fez aqueie julgamento sobre ele, pensei '
nisso várias horas, e tíve de lhe dar razão. Poís quero (he dizer.
Srta. Imma, o que hâ com o r. fi,berbein: ele e a felicidade� �
são inimigos . . . é isso.
- Parece uma inimizade nem decente, essa - disse Imma !
Spoelmann.
- Oecente - disse ele - mas sinistra, como você mesma
disse, e ainda por cima pecamínosa . . . pois é pecado contra uma
zs6
re-
coisa mais bela do que essa severa decência, agora sei disso. Ele
também quis me educar nesse pecado, com todo o seu jeito pa-
ternal. Mas agora superei a educação dele, nesse ponto pelo me-
nos. Agora sou independente e aprendi coisa melhor do que isso.
E, embora e não tenha conseguido convencer Überbein . . . à
senhora eu vou convencer, Srta. Imma, hoje ou mais tarde . . .
- Sim, Príncipe, devo admitir que sabe convencer, seu
fervor acaba arrebatando a gente! O senhor disse 19 dias? Eu
contei 18 e meio, mas dá na mesma. Nesse tempo, só teve a ge-
nerosidade de aparecer uma vez nos Delfins . . . há quatro
dias . . .
Ele a fitou, assustado.
- Mas Srta. Imma, tem de ter paciência comigo, e um
pouco de tolerância . . . Pense, eu ainda sou tão desajeitado . .
esttou pisando em solo estranho! Não sei como foí . . . acho que
quis dar tempo para nós dois. E, depois, tive de atender a vá-
rios compromissos . . .
- Claro, teve de fazer tiro ao alvo pelas aparências, eu li.
Como sempre, teve enorme sucesso. Ficou ali, fantasiado, dei-
xando-se amar por toda aquela gente no prado . . .
- Pare, Srta. Imma, por favor, nada de galope! É impos-
sível conversar assim . . . Deixar-me amar, a senhora disse? Mas
que amor é esse? Amor público, um vago amor superficial, um
amor de longe, que nada signifíca . . . um amor em traje de ga
la, sem qualquer intimidade! Não, náo precisa se zangar porque
tolero esse amor, pois ele não me faz bem, apenas ao povo, que
se sente elevado por ele, e é isso que deseja. Mas também te-
nho o meu desejo, Srta. Imma, e é à senhora que o dirijo. . .
- Em que posso servi-lo, Príncipe?
- Ah, a senhora sabe muito bem! É confiança, Srta. Im-
ma . . . pode ter um pouco de confiança em mim?
Ela o encarou, e seus imensos olhos nunca tinham parecido
tão perquiridores e escuros. Mas, por mais que fosse premente
o mudo pedido dele, ela se afastou e disse com voz abafada:
- Não, Príncipe Klaus Heinrích, eu não posso.
287
Ele deu um gemido de mágoa e sua voz tremia quando
indagou:
- E por que não pode?
Ela respondeu:
- Porque o senhor me impede.
- Mas como a impeço? Me diga isso, por favor !
Com a expressão ainda fechada, olhos baixados sobre as
, rédeas brancas, embalando-se de leve ao passo do cavalo, ela
retrucou:
- Por tudo, sua atitude, sua maneira de ser, toda a sua
personalidade tão nobre. Ainda se lembra de como irnpediu a
pobre Condessa de se descontrolar, e a forçou a ser lúci.da e clara,
embora, devído às suas experíências intoleráveis, ela precíse do
benefícío da perturbação e da síngularídade. . . E eü lhe dísse
i
que saiba muíto bem como o senhor começara a torná-l.a lüci-
da? Sim, eu sei bem, pois a mim também o senhor impede de
me entregar, a mim também me deixa lúcida, constantemente,
através de tudo, suas palavras, seu olhar, sua maneira de se sen-
tar e parar, e é totalmente impossível ter confiança no senhor
Tive oportunidade de observá-lo diante de outras pessoas, o
Dr. Sammet no hospital, ou o Sr. Stavenüter no jardim dos
Faisôes, sempre a mesma coisa, e sempre senti medo, e frio.
O senhor está sempre tão empertigado, e faz perguntas, mas
não por interesse, não se imparta com o conteúdo das pergun-
tas, não, o senhor não se interessa por coisa alguma. Vi isso
muitas vezes . . . O senhor fala, expressa uma opiníãc, mas po-
deria muito bem expressar outra qualquer. Poís na verdade o
senhor não tem opímões nem crenças, nadalhe interessa, senao
j
sua. postura de príncípe. As vezes o senhor me díz que sua vo-
cação não é fácil, mas, já que me desafiou, quero observar
que lhe seria mais fácil, Príncipe, se tivesse uma opinião e uma
crença . . . essa é a minha crença, a mínha opinião. Como se po-
deria confiar no senhor? Não, não é confiança que o senhor
provaca nas pessoas, é frio e inibição, e mesmo que eu me esfor-
çasse por me aproximar mais, esse tipo de inibição e inabilidade
me impediria. . . Agora, já dei ao senhor mínha resposta!
288
ndo
Ele a escutara com dolorosa atenção, olhara várias vezes
para o rostinho pálido enquanto ela falava, e depois, novamente,
baixara os olhos sobre as rédeas, como ela fazia.
- Obrigado, Srta. Imma - disse ele então - por ter
falado tão a sério . . . pois sabe bem que nem sempre faz isso,
em geral zomba e, à sua maneira, leva as coísas tão a sério
quanto eu.
- Como posso falar com o senhor senão com zombaria,
Príncipe?
- E por vezes é até dura e cruel, como, por exemplo,
com a diaconisa do Hospital Dorothea, a quem deixou tão per-
turbada.
- Ah, sei que também tenho meus erros e precisaria de
alguém que me ajudasse a me livrar deles.
- Serei eu, Srta. Imma, vamos ajudar um ao outro. . .
- Não creio que possamos ajudar um ao outro, Príncipe.
- Sim, podemos. A senhora já não falou há pouco, séria
e sem qualquer ironia? Quanto a mim, não tem razão quando
diz que não me interesso por coisa alguma, que nada toca meu
coração, pois pela senhora eu me interesso, Srta. Imma, e a
senhora tocou meu coração. E porque tudo isso é tão indizivel-
mente sério para mim, não posso falhar nisso que me proponho:
conquistar, enfim, a sua confiança. Se soubesse como gostei de
ouvir o que disse, sobre esforçar-se e se aproximar! Sim, esfor-
ce-se um pouquinho, e nunca mais se deixe estorvar por essa
inibição, ou seja o que for, que sente na minha presença! Eu
bem sei que tive culpa! Mas ria de mim, e da senhora mesma,
quando eu lhe despertar este tipo de sentimento, e fique do
meu lado! Promete que vai se esforçar um pouquinho?
Mas Imma nada prometeu, e finalmente insistiu em galopar,
e muitos outros diálogos como esse ficaram sem resultado.
As vezes, quando Klaus Heinrich tomava chá nos Delfins,
iam passear no parque, o Príncipe, a Srta. Spoelmann, a Con-
dessa e Percival. O nobre collie andava ao lado de Imma com
ar pensativo, e a Condessa Lewenjoul, dois, três passos atrás.
Pois logo após iniciarem o passeio ela ficavZ parada para ajeitar
289
com dedos recurvos alguma folhagem e não conseguía maís re-
cuperar a distâncía. Assim, Klaus Heinrich e Imma iam à frente,
conversando. E, quando chegavam a certo ponto, voltavam, e
agora a Condessa estava à sua frente. Klaus Heinrích sublinhava
suas palavras pegando a mão estreita e nua de Imma Spoelmann
entre as suas, cautelosamente, sem olhar para ela; pegava-a tam-
bém com a esquerda, que já não o inibia quando aparecia em
público. E indagava com veemência se ela se esforçava para con-
fiar nele. E com tristeza ouvia-a dízer que estivera apenas estu-
dando, dedicando-se à álgebra, paírando naquelas gélídas regiões.
E eIe pedia que deíxasse os livros, que a dístraíam e afastavam
do assunto ao qual, agora, devia dedicar-se. E falava de si mesmo,
da reserva e inibição que sua pessoa transmitia, segundo ela
mesma dissera. Procurava explicar e atenuar isso. Falava da vída
fria, pobre e severa que levara até ali, descrevia como agiam
todos ao seu redor, interessados unícamente em ccntemplá-lo, e
como, por isso, sua nobre vocação constava unicarnente em se
expor e ser contemplado, o que era bem mais difícil. Esfalfava-
se por fazê-la entender que, para se curar dísso que impedira a
pobre Condessa de tagarelar e a própria Imma de entender sua
mâgoa - para se curar precisava unicamente dela, e só por sua
mão ficaria curado. Ela o encarava, olhos imensos cintilando,
perquíridores, e via-se que lutava. Mas depois meneava a cabeça
e terminava o diálogo falando com lábios em bico, usando expres-
sões com que se divertia, incapaz de dar aquele "sim" que ele
suplicava e de arrancar de sí mesma a vítóría que, do jeito que
as coisas estavam, ainda não a comprometería em coísa alguma.
Imma não o proibia de , vir duas vezes por semana, nem
de falar, de lhe fazer pedidos e protestos, e às vezes segurar-lhe
a mão. Mas apenas tolerava tudo, ficava imóvel. Seu medo, seu
receio tímido de abandonar aquele reino de frieza e ironia e
entregar-se a ele parecia insuperável, e às vezes, exausta e desa-
lentada, ela dizia:
- Ah, Príncipe, antes nunca nos tivéssemos conhecído. . .
teria sido rnelhor! O senhor continuaria com sua nobre vocação,
290
como antes, e eu teria sossego, e um nãu p5taua awrmentando
0 outro!
Era difícil fazer com que se desdissesse e admitisse não estar
arrependida por tê-lo conhecido. Assím passou o tempo. O verão
terminou, grandes geadas noturnas prematuras fizeram as folha �
cair, ainda verdes, dos ramos, os cascos de Fatima, Florian e
Isabel farfalharam na folhagem vermelha e dourada, e o outono
chegou, com seus nevoeiros e perfumes ásperos - ninguém teria
podido divisar um fim ou mudança decisiva naquele estado de
coisas tão vago.
O méríto de colocar as coisas no solo da realidade, de dar
aos acontecimentos um final feliz, terá de ser sempre atribuído
ao ilustre cavalheiro que até alí observara tudo com sábia discri-
ção, mas no momento certo interveio com mão firme. Era Sua
Excelência von Knobelsdorff, Ministro do Interior, do Exterior
e da Casa Ducal.
O Professor Dr. Überbein tivera razão ao afirmar que o
Presidente do Conselho se informara dos passos pessoaís e apai-
xonados de Klaus Heinrich. Mais ainda: o ancião, bem-servido
por funcionários inteligentes e hábeis, estava sempre informado
de tudo que se passava na opinião pública, do papel que Samuel
Spoelmann e sua filha desempenhavam na fantasia do povo, do
nível de realidade que assumiam na imaginação deste, da pode-
rosa e supersticiosa tensão com que a população seguia o rela-
cionamento entre os Castelos Eremitage e Delfins, da populai-�
dade desse relacionamento. Em uma palavra, estava a par do
modo como os dois apareciam para todos os que quisessem ver,
não só na Residência, mas em todo o país, em conversas e
boatos. Um incidente importante bastou para o Sr. von Knobels-
dorff assegurar-se do que pretendia.
No começo de outubro - a Assembléia iniciara seus tra-
balhos há duas semanas, e as desavenças na comissão de orça-
mento estavam em pleno curso - Imma Spoelmann adoeceu, e,
dizia-se de início, gravemente. Descobriram que a imprudente
senhorita - sabe Deus com que capricho ou estado de alma -
291
ï
fizera um galope de quase meia hora, numa cavalgada com sua
dama de companhia, montada na alva Fatima, contra o intenso
vento nordeste, e apanhara uma dilatação pulmonar que ameaça-
va sufocá-la. A notícia se espalhara em poucas horas. Dizia-se
que a moça corria perigo de vida, o que, como se verifícou, por
sorte, era exagero. Se um membro da Casa Grimmburg, o pró-
prio Grão-Duque, tivesse sofrido um acidente grave, a conster-
nação do povo não teria sido maior. Não se falava em outra
coisa. Nos maís ínfimos bairros da cidade - por exemplo, perto
do Hospital Dorothea -, as mulheres paravam diante de suas
casas ao entardecer, levavam as mãos ao peíto e ofegavatn para
mostrarem umas às outras como era estar sufocando. Os jomais
vespertinos davam notícias detalhadas e objetivas sobre o estado
da Srta. Spoelmann, as quais passavam de mão em mão, sendo
lidas à mesa da família e comentadas nos bondes. Vira-se o jor-
nalista do Mensageiro disparar de carruagem para o Castelo dos
Delfins, onde fora atendido pelo mordomo, no vestíbulo de mo-
saicos, falando inglês com ele, embora lhe fosse difícil. A impren-
sa podia ser censurada por ter aumentado o caso e causado preo-
cupações desnecessárias. Praticamente não se podia falar em pe-
rigo grave. Seis dias de repouso na cama, sob o cuidado do
médico pessoal dos Spoelmann, bastaram para curar a dílatação
dos vasos e recuperar plenamente a saúde da senhorita. Mas
esses seis dias também bastaram para destacar claramente a
importância que os Spoelmann, especialmente a Srta. Imma,
haviam assumido na vida pública. Todas as manhãs, enviados
dos jomais , emissários da curiosidade publica, reuniam-se no
vestíbulo dos Delfins para receber o lacônico relatório diário
do mordomo, que depois enviavam a seus jomais naqueles exten-
sos artigos que o público pedia. Todos liam sobre as perfumadas
saudações e votos de saúde que chegavam aos Delfins, enviadas
por várias instituições de caridade que Imma Spoelmann. visitara
e apoiara com ricas doações (os piadistas comentaram que, na
verdade, os encarregados dos impostos do Grão-Ducado podiam
ter aproveitado a oportunidade para fazer agradecimentos se-
292
melhantes). Também liam - e baixavam os jomais para tro-
car olhares - sobre uma "magnífica" oferta de flores que o
Príncipe Klaus Heinrich enviara, justamente com seu cartão (na
verdade, durante o tempo em que a Srta. Spoelmann esteve de
cama, o Príncipe mandou flores aos Delfins, não uma vez, mas
diariamente, coisa que os bem-informados silenciaram para evitar
mais agitação). Leu-se depois que a querida jovem paciente dei-
xara a cama pela primeira vez, e finalmente se anunciou que em
breve daria sua primeira saída. Esta, oito dias depois que a
moça adoecera, deu motivo para uma verdadeira explosão de sen-
tímentalismo do povo, considerada exagerada pelas pessoas mais
severas. Uma multidão se reunira em torno do automóvel dos
Spoelmann, pintado de verde-oliva, com o jovem motorista de
cara saxônica, pálido e concentrado, diante do portal dos Delfins.
Quando a Srta. Spoelmann apareceu, ladeada pela Condessa e
seguida de um lacaio que levava um cobertor, ouviram-se, com
efeito, "vivas", com gente brandindo gorros e lenços. As excla-
mações duraram até o automóvel abrir caminho buzinando na
multidão, deixando para trás os manifestantes numa nuvem de
vapor de gasolina. Admite-se que o grupo não era muito digno,
era desses que costumam aparecer nessas ocasiões: meninotes,
mulheres com cestos de mercado, crianças de colégio, curiosos,
pivetes e desocupados. Mas o que é o povo, e como se deve
constituir para ter importâncía? Al.ém disso, não se pode igno-
rar uma informação divulgada mais tarde com ares de ironia,
segundo a qual na multidão havia um agente da Polícia Secreta
pago pelo Sr. von Knobelsdorff para incitar e manter vivos os
aplausos. Podemos ignorar isso e deixar que se alegrem aqueles
que gostam de menosprezar fatos importantes. No mínimo, se
for correta a informação desses indivíduos, tratava-se de uma
manifestação mecânica de sentimentos, mas os sentimentos te-
riam de existir para se manifestarem assim. De qualquer modo,
aquele incidente, amplamente divulgado na imprensa, impressio-
nou todo o mundo, e pessoas perspicazes não duvidaram de que
outra notícia, que em breve ocupou a todos, devia estar intima-
mente ligada a todos aqueles fatos e indícios.
293
' notícia dizia que Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Hein-� �
rich, recebera Sua Excelência o Ministro von Knobelsdorff numa
audíência no Castelo Eremitage, das 3h da tarde às 7h da noite.
Quatro horas! De que teriam falado? Certamente, não do pró-
ximo baile da Corte! Bem, entre outras coisas, tinham falado
nisso também.
O Sr. Knobelsdorff pedira um ént¡ontro a sós com v Prín-
cipe durante a caçada da Corte, no dia 10 de outubro, no Cas-
telo de Caça, nas florestas do oeste. Klaus Heinrich participara
dela com seus primos ruivos, em botas, uniforme, chapeuzínho,
facão, cinturão de balas e bolsa de pistolas. O Sr. von Braunbart-
Schellendorf fora convocado para fins de aconselhamento, e a
data fora marcada para as 3h da tarde do dia 12 de outtubro.
Klaus Heinrich se havia oferecido para visitar o ancião em sua
moradia oficial, mas este preferira vir ao Eremitage, e chegou
pontualmente. Foi recebido com todo o calor e a amabilidade
que Klaus Heinrich julgava adequado demonstrar para com o
velho conselheiro de seu pai e de seu irmão. O diálogo desen-
rolou-se naquele salãozinho sombrio, com três belos sofás impé-
rio de mogno, com liras azuis bordadas sobre fundo amarelo.
Embora já beirando os 70, Sua Excelência era forte de cor-
po e mente. O casaco não ficava enrugado, como nos velhos,
mas envolvia, muito iusto e bem-recheado, o corpo atarracado e
fornido de um homem de boa índole. Seu cabelo ainda cheio,
liso e repartido ao meío; era de um branco puro, co;no o bigode
aparado, e seu queixo, dividido por uma fenda simpática, que
podia ser chamada de covinha. As ruguinhas em forma de leque
nos cantos externos dos olhos moviam-se como antigamente;
sim, com os anos tinham adquirido mais ramificações e linhas
secundárias, de modo que aquele conjunto animado e múltiplo
de rugas conferia a seus olhos azuis uma expressão constante
de astúcia.
Klaus Heinrich gostava do Sr. von Knobelsdorff, sem que
houvesse relação mais íntima entre os dois. O Ministro de Esta-
do vigiara a vida do Príncipe e a orientara, designara no começo
f
294
o Professor Droge como seu primeiro mestre, depois criara para
ele o pensionato dos Faisões, mais tarde o enviara com o Dr.
Überbein à Universidade, regulamentara seu aparente serviço
militar e até lhe destinara como moradia o Castelo Eremitage -
mas tudo indiretamente, com raros contatos pessoais. Sim, quan-
do o Sr. von Knobelsdorff se encontrava com Klaus Heinrich
naqueles anos de formação, sempre se informava muito respei-
tosamente das decisões e planos para o futuro do Príncipe, como
se nada soubesse a respeito deles. E talvez tenha sido exatamente
essa ficção, mantida com firmeza pelos dois lados, que fez com
que a relação permanecesse dentro do estritamente formal.
O Sr. von Knobelsdorff, que assumira a direção da conver-
sa, numa postura confortável mas respeitosa, enquanto Klaus
Heinrich tentava adivinhar a razão de sua visita, conversou pri-
meiro sobre a caçada de dois dias atrás, rememorou tranqüila-
mente os pormenores, e depois mencionou casualmente seu exce-
iente colega das Finanças, o Dr. Krippenreuther, que também
tomara parte na caçada e cuja má apresentação lamentou. O Sr.
Krippenreuther errara todos os tiros no Castelo de Caça.
- Sim, as preocupações fazem tremer a mão de uma pes-
soa - comentou o Sr. von Knobelsdorff, e assim pôs na boca
do Príncipe a deixa para que apresentasse, depressa, uma dessas
preocupações. Falou do déficit "não insignificante" do orçamen-
to, das desavenças entre o Ministro e a comissão encarregada, do
novo imposto sobre bens, da porcentagPm de 13 por cento, da
furiosa resístência dos representantes do povo, da antediluvíana
taxação da carne e do grito de fome dos funcionários públicos.
E Klaus Heinrich, a princípio estranhando tanta objetividade,
escutava, sério, sacudindo a cabeça com interesse.
Os dois homens, jovem e velho, sentavam-se lado a lado no
sofá delicado e desconfortável, coberto de tecido amarelo com
enfeites de latão em guirlanda, atrás da mesa redonda, diante da
estreita porta de vidro que dava para o terraço, revelando 0
parque semidesfolhado, com o lago dos patos diluído no nevoei-
ro. O fogão de azulejos, baixo e branco, no qual crepitava o
295
fogo, espalhava um brando calor no severo aposento precaria-
mente mobiliado. Klaus Heinrich, incapaz de seguír todas aque-
las perorações polítícas, mas feIíz e orgulhoso pelo fato de aquele
experiente dignitário falar assim com ele, sentia-se cada vez mais
envolvido em gratidão e confiança. O Sr. von Knobelsdorff falou
de maneira agradável sobre as coisas mais desagradáveis, sua voz
era benfazeja, sua conversa, ágil e adulatória - de repente, o
Príncipe percebeu que ele deixara o campo administrativo e pas-
sara das preocupações do Dr. Krippenreuther para a vida pessoal
de Klaus Heinrich. O Sr. von Knobelsdorff estaria iludido? Seus
olhos já o traíam algumas vezes, mas ele achava que a aparência
de Sua Alteza já fora melhor, mais saudável e alegre. Aparecia
uma dor, um cansaço. . . O Sr. von Knobelsdorf receava pare
cer íntrometído, mas esperava que esses sínaís não índícassem
qualquer problema sério do corpo ou da alma.
Klaus Heinrich olhava o nevoeiro lá fora. Sua expressão
i ainda era reservada, mas, embora estivesse sentado naquele sofá�
duro com a mesma postura controlada e atenta de sempre, pés
cruzados, mão direita sobre a esquerda, virando-se para o Sr.
"I
von Knobelsdorff, sua postura interior distendeu-se um pouco
e, abatido pelas lutas delicadas e inúteis, pouco faltava para que
seus olhos se enchessem de água. Era tão só e desamparado. O
1i Dr. Überbein andava afastado do Eremitage. . . Klaus Heínrich
aínda dísse:
- Ah, Excelênía, falar nísso nos Ievaria longe demais.�
Mas von Knobelsdorff respondeu.
- Longe demais? Não, Alteza, não receie ser demasíado
explícito. Admito que estou informado sobre as experiências de
Vossa Alteza, mais do que deixeí transparecer. Exceto em seus
aspectos mais sutis e detalhados, que não são comentados nos
boatos, Vossa Alteza dificilmente me dirá novidades. Mas sentir-
se-á bem abrindo o coração a um velho criado que o carregou nos
braços. . . talvez eu não seja inteiramente incapaz de ajudar com
conselhos ou ações.
Então, o peíto de Klaus Heinrich se abriu e despejou tudo,
de modo confessíonal. Ele contou tudo. ontou como se conta�
296
quando o coração está repleto e de repente tudo transborda de
nossa boca: sem muita ordem ou coerência, demorando-se de-
mais em coisas secundárias, mas com veemência, com aquela vi-
vacidade que fala de uma alma apaixonada. Ele começava no
meio, saltava para o começo, precipitava-se para o fim (inexis-
tente), tropeçava, e mais de uma vez empacou, desesperado. Co-
mo o Sr. von Knobelsdorff já soubesse de tudo, era mais fácil
entender, e ele era capaz de reanimar o barquinho com algumas
perguntas necessárias - e por fim o retrato das experiências de
Klaus Heinrich, com todas as pessoas e fatos, com as figuras de
,Samuel Spoelmann, da viúva Condessa Lõwenjoul, até do collie
Percival, sem falar de Imma Spoelmann, apareceu com toda a
sua complexidade, perfeito e completo, para ser analisado. Até
o pedacinho de guta-percha foi amplamente comentado, pois o
Sr. von Knobelsdorff parecia dar-lhe importância, e nada do que
aconteceu entre aquela impressionante aparição na troca da guar-
da do Castelo e as últimas discussões íntimas a cavalo e a pé
foi esquecido. Klaus Heinrich estava muito corado e seus olhos
de um azul-aço, apertados pelos zigomas de seu povo, mostravam-
se cheios de lágrimas. Ele deixara o sofá, obrigando o Sr. von
Knobelsdorff a se levantar também, e por causa do calor queria
abrir a porta de vidro da pequena varanda, o que o Sr. von Kno-
belsdorff impediu, mencionando o perigo de um resfriado. E
pediu muito humildemente ao Príncipe que se sentasse outra
vez, pois Sua Alteza Real precisava explicar com tranqüilidade
toda a situação. E os dois sentaram-se novamente sobre os duros
assentos.
O Sr. von Knobelsdorff refletiu um pouco, no rosto a mais
absoluta gravidade possível, apesar da covinha no queixo e das
rugas nos olhos. Quebrando o silêncio, agradeceu comovido ao
Príncipe a grande honra de merecer sua confiança. E logo depois,
acentuando bem cada palavra, explicou que, não importava que
atitude o Príncipe esperasse dele, não era von Knobelsdorff, o
homem, que haveria de contrariar-lhe as esperanças e desejos;
muito antes, desejaria aplanar o caminho para o desejado obje-
tivo, no que dependesse de suas forças.
297
Longo silêncio. Klaus Heinrich contemplou o Sr. von Kno-
belsdorff, encarando perplexo aqueles oIhos rodeados de rugui-
nhas. Então, ele tinha desejos e esperanças? Então, havia um
objetivo? Ele não entendia o que estava ouvindo, e disse:
- Vossa Excelência é tão amável. . .
E o Sr. von Knobelsdorff acrescentou à sua grande expli-
cação uma espécie de condição, dizendo que sob uma condição
j '; apenas ele, como mais alto funcionário do Estado, poderia fazer
' ' valer sua influência para ajudar Sua Alteza Real . . .
Uma condíção
- A condição de que Vossa Alteza Real não pense unica-
mente em sua felicidade pessoal, de maneira egoísta e pequena,
mas, como exige sua nobre vocação, contemple seu destino pes-
soal do ponto de vista do todo maior.
Klaus Heinrich calou-se, os olhos escuros de reflexão.
- Permita Vossa Alteza Real - continuou o Sr. von Kno-
belsdorf, após uma pausa - que deixemos de lado por algum
tempo esse assunto delicado e ainda imprevisível, e falemos de
assuntos gerais! Esta é uma hora de confiança e entendimento
mútuos . . . peço respeitosamente que me deixe aproveítá-la.
Vossa Alteza sempre foi isolado, por sua nobre vocação, dos
lados ásperos da realidade, apartado dela por belas precauções.
Não esquecerei que essa engrenagem wão é - ou só é indireta-
mente - problema seu. Mas parece-me ter chegado o momento,
Alteza, de pelo menos proporcionar-lhe uma visão de determi-
nado campo deste rude mundo. Peço antecipadamente que me
perdoe se mínhas ínformações ferírem Vossa Alteza interna-
mente . . .
- Por favor, Excelência, fale! - disse Klaus Heinrich,
atônito. Involuntariamente, endireitou o corpo como alguém se
'¡¡ endireita na cadeira do dentista, concentrando-se contra uma
intervenção dolorosa . . .
! - É preciso toda a atenção - disse o Sr. von Knobels-
dorff, quase severo. E agora, às desavenças da comissão do orça-
mento, seguiu-se uma exposição, uma aula clara, profunda e rea-
298
lista, enriquecida por cifras, explicações e expressões técnicas,
sobre a situação econômica do país, que mostrou ao Príncipe
tocio o nosso sofrimento, com impiedosa nítidez. Decerto, essas
rcsas nãolhe eram inteiramente estranhas nem novas. Muito�
antes, desde que representava seu irmão, elas lhe tinham servido
de motivo e assunto para aquelas perguntas formais que costu-
mava dirigir a prefeitos, camponeses, funcionários, escutando
ai.ias respostas, que eram dadas por si mesmas e não por amor à
verdade, acompanhadas do sorriso que ele conhecia desde crian-
ça e que significava: "oh, belo e puro! ". Mas nunca aquilo 0
atingira assim em massa, com uma objetivídade nua, exigindo
todo o seu raciocínio e a mais absoluta seriedade. O Sr. von
Knobelsdorf£ não se contentou com o habitual gesto de Klaus
lleinriçh de balançar interessadamente a cabeça; foi muito pre-
ciso, interrogou o rapaz, repetiu explicações inteiras, manteve-o
o tempo todo dentro dos fatos objetivos, e foi como um indica-
clor enrugado e de pele ressequida que parava em cada ponto,
sem deixar o Iugar enquanto nto se tivesse atingído a compreen-�
são total.
O Sr. von Knobelsdorff começou pelos tundamentos; falou
e1a terra e do país, com suas condições pouco desenvolvidas de
comércio e indústria, do povo, o povo de Klaus Heinrich, essa
aça fina e forte, saudável e resistente. Falou da falta de ganhos�
rstatais, das ferrovias poucu ïucrativas, das minas de carvão in-
uticientes. ralou da admínatração das florestas, da caça e das� �
pastagens, falou da floresta e do ciesmatamento, dos imposts�
cx,igerados, das reservas mirradas e cïa baixa renda das florestas.
iepois, falou mais detidamente de nossas finanças, comentou a�
naural deficiência do povo em matéria de pagamento de impos-�
ïos, mencionou períodos anteriores de péssima administração
i inanceira. E depois comentou a ; if ra das dívidas públicas, que
fez o Príncipe repetir várias vezes. Era de 600 milhões. A aula
abrangeu ainda as obrigações, as condições de juros e pagamento
da dívida, voltou às dificuldades amais do Dr. Krippenreuther e
dscreveu a grave situação do momento. Tendo na mão a Revista�
299
de Estatística, que de repente tirou do bolso, o Sr. von Knobels-
dorff demonstrou ao discïpulo os resultados da colheita dos últi-
mos anos, falou sobre as inclemências do tempo que tinham cau-
sado o problema, rnencionou as lacunas nos impostos, que tam-
bém tinham sido provocadas dessa maneira, e atê se referiu àque-
las figuras subnutridas do campo. Depois, passou para a situação
do mercado financeiro, estendeu-se falando sobre o encarecimen-
to do dinheiro e as perturbações econômicas gerais. E Klaus
Heinrich soube da baixa condição da moeda corrente, da inquie-
tação dos credores, do escoamento de divisas, das falências; viu
nosso crédito abalado, nossos papéis desvalorizados, e entendeu
perfei.tamente que era quase impossível obter novos empréstimos.
tomeçava a escurecer, eram bem mais de Sh quando o Sr.�
von Knobelsdorff concluiu sua conferência sobre economia. A
essa hora, Klaus Heinrich costumava tomar seu chá, mas só teve
para isso um pensamento muito breve, e de fora ninguém se
atrevia a interromper um encontro cuja importância se via pela
sua duração. Klaus Heinrich escutava e escutava. Já quase nem
sentia o quanto estava abalado. Mas por que, afinal, lhe diziam
tudo aquilo? Nem sequer uma vez fora tratado de "Alteza Real"
durante essas horas, de certa forma o tinham violentado, ferido
grosseiramente sua pureza e finura. Mas fora bom ouvir tudo
aquilo; aquecia-o interíormente poder aprofundar-se naquilo por
amor à coisa em si. Um interesse objetivo. . . Esqueceu-se de
mandar acender a luz. tão concentrado estava.
- Essas circunstâncías - concluiu o Sr. von Knobelsdorff
- foram as que lembrei ao convídar Vossa Alteza Real a ver
seus desejos e ações pessoais sempre à luz dos ínteresses gerais.
Vossa Alteza Real tirarâ proveito desta hora e do conteúdo que
lhe pude expor, não tenho dúvidas. E nessa confiança permíta
Vossa Alteza que eu retorne a seus assuntos maís particulares.
O Sr. von Knobelsdorf esperou até Klaus Heinrich fazer
um gesto de aquiescêncía, e eontínuou:
- Se quiser que esse assunto tenha futuro, é preciso que
se desenvolva em grau mais elevado. Está estagnado de momen-
lOO
bels- to desolado e informe como o nevoeiro lá fora. Isso não é sen-�
,
últi- sato. Precisamos dar-lhe forma, adensá-lo, para que também aos�
,
i cau- , olhos do mundo tenha contornos mais nítidos . . .
- Isso mesmo, isso mesmo! Dar contornos . . . adensar. . .
É isso! É absolutamente necessário! - afirmou Klaus Heinrich,
possesso, saindo do sofá mais uma vez e andando pela sala. -
Mas como? Pelo amor de Deus, Excelência, diga-me como!
- O primeiro passo - disse o Sr. Knobelsdorff, perma-
necendo sentado, tão estranha era aquela hora - é que os Spoel-
mann precisam ser vistos na Corte.
Klaus Heinrich parou:
- Nunca! - disse. - Se conheço o Sr. Spoelmann, ele
nunca se deixará convencer a ir à Corte!
- O que não impede - retrucou o Sr. von Knobelsdorff
- que sua filha nos dê esse prazer. Está perto o baile da Cor-
te . . . está em suas mãos, Alteza, convidar a Srta. Spoelmann.
A dama de companhia dela é uma Condessa . . . pessoa esquisita,
mas Condessa; e isso facilita tudo. E se estou assegurando a Vos-
sa Alteza que a Corte concordará com isso, é porque falo em
concordância com o Mestre-de-Cerimônias von Bühl zu Bühl. . .
Depois, a conversa girou mais 45 minutos em torno de pro-
blemas e condições sob as quais se daria aquela apresentação.
Era preciso deixar um cartão com a Mestra-de-Cerimônias da
Corte da Princesa Katharina, a viúva Condessa Trümmerhauff,
que presidia as festas no Castelo Velho diante do mundo femi-
nino. Mas, quanto ao ato de apresentação em si, o bondoso
Knobelsdorff soubera obter concessões de caráter expresso, até
mesmo desafiador. Não havia no local um encarregado de negó-
cios dos Estados Unidos . . . não havia motivo, esclareceu von
Knobelsdorff, para fazer as damas serem apresentadas por qual-
quer Camareiro; não, o próprio Mestre-de-Cerimônias pedia a
honra de apresentá-las ao Grão-Duque. Quando? Em que mo-
mento da seqüência prescrita? Bem, circunstâncias excepeionais
exigiam que se fizesse uma exceção. Então, em primeiro lugar,
antes de todos os novos convidados das mais diferentes hierar-
301
quias da Corte. Klaus Heinrich poderia assegurar à senhorita essa
medida extraordinária. Haveria falatórios, o fato causaria sensa-
ção na Corte e na cidade. Mas não ímportava, era até melhor.
Sensação não era uma coisa indesejada - era útil e necessária.
O Sr. von Knobelsdorff foi embora. Estava tão escuro
quando ele se despediu que quase não se viam mais. Klaus Hein-
rich, que só agora notava isso, desculpou-se, um pouco confuso,
mas o Sr. von Knobelsdorff dísse que não tinha importâncía al-
guma a luz na qual se desenrolara aquela conversa. Pegou a mão
que Klaus Heinrich lhe oferecia e a agarrou entre as suas.
- Nunca - disse ele, calidamente, e foram suas últimas
palavras antes de se retirar -, nunca a felicidade de um príncípe
esteve maís lígada à felicídade de seu país. Em tudo o que Vossa
Alteza pensa e faz, devo manter presente que sua felicidade foi�
ligada pelo destino ao bem-estar público, mas, de sua parte, Vos-
sa Alteza deve reconhecer no bem-estar do país a condição e
justificação de sua felicidade pessoal.
Fortemente comovído, e aínda incapaz de ordenar os pensa-
mentos que o assaltavam de mil maneiras, Klaus Heinrich per-
maneceu em seus sóbrios aposentos império.
Passou uma noite agitada e, na rnanhã seguinte, apesar do
tempo ruím e úmido, fez um grande passeío a cavala sozínho. O
Sr. von Knobelsdorff falara de modo claro e copioso, transmitira
e escutara dados. Mas, para configurar, entender e elaborar tudo
isso internamente, essa massa bruta e variada, ele fornecera ape-
nas indicações breves e lacônicas. Klaus Heinrich precisava ra-
ciocínar muito seríamente, acordado à noíte, e depoís cavalgan-
do Florian.
Voltando ao Eremitage, ele fez uma coisa estranha. Num
pedacinho de papel, escreveu um pedido, e com ele enviau o
lacaio Neumann à cidade, à Livraria Acadêmica da Rua da Uni-
versídade. Curvado ao peso que carregava, Neumann trouxe uma
pilha de livros, que Klaus Heinrich mandou colocar no gabinete
e se pôs a ler imediatamente. .
Eram obras de cara séria e didática, capas de papel lustrosó
e feías lombadas de couro, texto em papel áspero, conteúdo
302
escrupulosamente ordenado em capítulos, subeapítulos e pará-
grafos. Os títulos não eram nada divertidos. Eram ensaios e ma-
nuais de economia, esboços e resumos de Política e exposições
sistemáticas de Economia Política. O Príncipe trancou-se no ga-
binete com os textos, e deu ordens para não o perturbarem.
O outono estava chuvoso e Klaus Heinrich não tinha von-
tade de sair do Castelo. No sábado, foi ao Castelo Velho dar
audiência pública. De resto, foi dono do seu tempo a semana
toda, e soube usá-lo muito bem. Vestido na sua litewka, sentava-
se ao calor do fogão baixo, de azulejos, têmporas nas mãos, lendo
seus livros de economia. Leu sobre os gastos públicos e do què
constavam; leu sobre os lucros e de onde poderiam advir em boas
condições; passou por todo o tema dos impostos, em todos os
seus capítulos; mergulhou na doutrina do planejamento econômi-
co e do orçamento, balanço, superávit e déficit; leu por mais
tempo e mais detidamente sobre a dívida pública e suas classifica-
ções, empréstimos, juros, capital e pagamento de dívidas . . . por
vezes erguia a cabeça dos livros e, com um sorriso, sonhava com
o que lera, como se fosse a mais bela poesia.
De resto, não achava difícil compreender tudo aquilo, des-
de que houvesse interesse. Não, toda aquela grave realidade de
que agora participava, aquele encadeamento de interesses, aque-
la doutrina de necessidades e urgências bem coerentes, que incon-
táveis jovens de origem comum tinham metido em suas cabeças
para passarem nos exames - não era tão difícil de dominar
como ele julgara de suas.alturas. Achou que representar era mais
difícil. E muito, muito mais duros e complicados eram seus ter-
nos combates com Imma Spoelmann, a cavalo ou a pé. Mas
sentiu-se contente e aquecido com seu estudo, e percebeu que
tinha as faces rubras de interesse, como seu cunhado zu Ried-
Hohenried em relação à turfa.
Depois de ter estudado, dessa maneira, os fundamentos ge-
rais e acadêmicos dos assuntos que o Sr. von Knobelsdorfflhe
apresentara, e raciocinado bastante sobre outros assuntos interio-
res, analisando possibilidades, ele se apresentou novamente nos
303
Delfins na hora do chá. As lâmpadas do candelabro de pés de
leão e dos grandes lustres de cristal ardiam no salão de inverno.
As damas estavam sozinhas.
Depois das primeiras perguntas e respostas sobre a saúde
do Sr. Spoelmann e a passada enfermidade de Imma - Klaus
Heinrich censurou-a vivamente por sua impetuosidade, ao que
ela respondeu, com os lábios em bico, que era dona de si mesma
e fazia da sua saúde o que bem entendesse -, falaram do outo-
no, do tempo úmido que impedia as cavalgadas, do estágio avan-
çado do ano, do inverno iminente, e Klaus Heinrich mencionou
casualmente o baile da Corte, lembrando-se de indagar se as
damas - caso o Sr. Spoelmann fosse, infelizmente, impedido�
pela saúde - não teriam vontade de participar dessa vez. Mas
Imma respondeu que não, realmente não, não desejavá nem de
longe ofender, mas não tinha a mínima vontade; portanto, ele
não insistiu, mas, indiferente, deixou de lado a pergunta, de
momento.
Que estivera fazendo nos últimos dias? Ah, estivera ocupa-
do, podia dizer que tivera as mãos cheias de trabalho. Traba-
lho? Sem dúvida, falava na caçada no Castelo de Caça. Bem, a
caçada . . . Não, estivera estudando seriamente, e ainda não ter- j
minara; ainda estava mergulhado no assunto . . . E Klaus Hein- f
rich começou a falar de seus livros feios e de suas idéias sobre i
Ç'
finanças, e falou de economia com tanta alegria e respeito que i
Imma Spoelmann o contemplou, abrindo bem os olhos, Mas
quando - de maneira quase tímida - ela o interrogou sobre o
motivo e causa desse estudo, ele respondeu que eram questões
atuais, vivas e muito prementes que o tinham levado a isso:
circunstâncias que, infelizmente, eram incompatíveis com uma
conversa amena durante o chá. Essa resposta ofendeu Imma,
obviamente. Em que observações, perguntou ela asperamente,
meneando a cabecinha, se baseava sua convicção de que ela só
sabia participar de conversas amenas, ou que as preferia? E,
mais ordenando do que pedindo, exigiu que ele falasse sobre
aquelas questões tão prementes.
304
Então, Klaus Heinrich mostrou o que aprenderacom o Sr.� �
von Knobelsdorff, e falou do país e de sua situação. .Estava
informado de todos os assuntos sobre os quais pousara aquele
indicador enrugado; falou dos problemas da natureza, das dívi-
das, dos problemas gerais e mais estritos, dos adiados e dos que
se complicaván, acentuou as cifras das dívidas públicas e ,a .pres-�
são que faziam sobre nossa economia - eram 600 milhões -T-,
e não esqueceu nem mesmo as subnutridas criaturas dos campos.
Ele não falava de maneira muito coerente; Imma Spoelmann
o interrompia com perguntas, e com perguntas o ajudava a pro-
gredir, escutava tudo atentamente e pedia explicações sobre o
que não entendia de imediato. Em seu vestido de mangas aber-
tas, de seda crua cor de telha, com largos bordados no peiXo,
uma antiga corrente espanhola no pescoço infantil, ela estava sen-
tada, inclinada sobre a mesa de chá reluzente de cristais e pra-
tarias e valiosas porcelanas, um cotovelo apoiado na mesa, o
,queixo na mão nua e deliezda, eccatando com interesse, os olhos,�
imensos e de brilho escur, pesquisando o rosto dele. Mas en-�
uantp ele falava, e Imma o interrogava com olhos e lábios, e
q
Klaus se esforçava, entregando-se inteiramente a seu assunto, a
Condessa Lõwenjoul não se julgou mais. obrigada a ixianter a
lucidez - descontrolou-se e se permitiu o benefício da sua taga-
relice çiemente. Explicou, com gestos nobres e olhos estranha-
mente apertados, que em toda míséria, também em colheitas fra-
cassadas, dividas e encarecimento do dinheiro, a culpa era da-
quelas mulheres despudoradas que estavam por toda parte, como
na noite passada a mulher do sargento dos fuzileiros da caserna
arranhara seu peito e a martirizara com ações repulsivas. Depois
mencionou seus castelos na Iiorgonha, nos quais chovia do lado
,de dentro, e chegou a contar que, como tenente, participara de
nma campanha contra os turcos e fora a única a "não perder a
cabeça", Imma Spoelmann e Klaus Heinrich davam-1he aÁui e
ali uma palavra bondosa, prometiam chamá-la de "Sra. Meier"
e não deixaram que sua tagarelice os estorvasse.
Os dois tinham rostos acalorados quando Klaus Heinrieh
acabou de dizer .tudo que sabia - sim, até no de Imma Spoel-
305
mann, sempre coberto de uma .palidez de péxolas; via-se um so-�
pro de rubor. Tepois, calaram-se , e também a Condessa emu-��
deceu, inclinando., sqbre o ombro a cabeça pequena, fixando 0
vazio com olhas apertados. Klaus Heinrich brincava sobre a
alvíssima e engomada tòalha da mesa com o caule de uma orquí-
dea que estivera junto de seus talheres; mas, assim que ergueu
a cabeça, encontrou os olhos de Imma Spoelmann, imensos; ar-
dentes e fixòs, falando numa linguagem obscura e eloqüente
por sobre a' mesa.
- Foj agradável hoje'- disse e1a com sua voz rouca quan-�
do ele se despediu. E Klaus Heinrich sentiu a mão estreita de
ossos delicados agarrar a dele com pressão firme. - Se Vossa
Alteza honrar mais uma vez nossa indigria casa com sua presença,
poderia me trazer um ou outro desses bons livros que conse-
guíu? - Ela não conseguía deíxar de fazer zombaria, por menor
que fosse, mas pediu seus livros de economia, e ele os trouxe.
Trouxe dois deles,. que julgava os mais informativos e
abrangentes; trouxe-os alguns dias depois, atravessando em seu
cupê o encharcado Parque Municipal, e ela soube agradecer. As-
sim que tinham tomado chá, retiraram-se para um canto do salão,
onde, enquanto a Condessa ficava junto da mesa de chá, total-
mente ausente, sentaram-se em poltronas que parecíam tronos,
junto de uma mesinha dourada, inclinados sobre a prímeira pá-
gina de um livro de ensaios chamado Ciência econômica, e come-
çaram seu estudo juntos. Leram até o prefácio da primeira e da
sexta edição; liam cada frase alternadamente, em voz baixa; pois
Imma Spoelmann achava que era preciso trabalhar metodicamen-
te, começando do começo.
Klaus Heinrich, hem-preparado como estava, dirigia-a atra-
vés dos parágrafas, e ninguém o teria seguido com mais interes-
se e lúcidez do que Imma.
- É fácil! - disse ela, e ergueu os olhos, rindo. -
Admira-me que, no fundo, seja tão fácil. A álgebra é bem mais
difícil, Príncípe . . ,
306
Mas, como estudavam tão a fundo, não progrediram muito
naquela tarde, e marcaram na livro o lugar de onde prossegui-
riam da próxima vez.
Foi o que fizeram; e, a partir de então, as visitas do Prínci-
pe aos Delfins tinham um conteúdo objetivo. Sempre que o Sr.
Spoelmann não aparecia para o chá, ou quando acabava de mer-
gulhar no chá sua torrada de enfermo, retirando-se com o Dr.
Watercloose, Imma e Klaus Heinrich se ajeitavam com seus li-
vros na mesinha dourada e, cabeças unidas, mergulhavam na
doutrina econômica. Mas, ao progredir, comparavam os ensina-
mentos ali hauridos com a realidade, aplicavam o que liam às
condições do país, conforme Klaus Heinrich as apresentara, e
estudavam com proveito, embora freqüentemente suas pesquisas
fossem interrompidas por comentários pessoais.
- Então - dizia Imma --, a emissão pode acontecer de
maneira direta ou indireta. . . sim, isso faz sentido. O Estado
dirige-se diretamente aos capitalistas e abre a subscrição . . . Sua
mão tem duas vezes o tamanho da minha - disse ela. - Olhe,
Príncipe! - E os dois olhavam felizes, surpresos e sorridentes,
a visão simples de suas mãos, a direita dele e a esquerda dela,
lado a lado sobre a mesa dourada. - Ou - prosseguia Imma
- o empréstimo se fará por negociação, e um grande banco ou
consórcio assumirá as promissórias do governo . . .
- Espere! - dizia ele, baixinho. - Espere, Srta. Imma,
responda a uma pergunta minha! A senhora não está esquecen-
do o principal? Está se esforçando e progredindo? Como está
com a lucidez e a inibição, minha pequena Srta. Imma? A se-
nhora já confia um pouquinho em mim? Os lábios dele pronun-
ciavam a pergunta junto dos cabelos dela, que exalavam um
perfume delicioso, e ela ficava com a cabecinha, de cabelos ne-
gros e rosto pálido, imóvel, inclinada sobre o livro, embora não
respondesse à pergunta.
. - Mas teria de ser um banco ou consórcio? - refletia
ela. - Não dizem nada sobre isso aqui, mas como parece que,
em casos práticos, não será necessário . . .
307
Ela falava gravemente, sem citações, pois agora também
precísava fazer aqueles raciocíníos que Klaus Heínrich realízara
após o encontro com o Sr. von Knobelsdorff. E quando, algumas
semanas mais tarde, eIe voltou a índagar se ela não tínha von-
tade de comparecer ao baile da Corte, e lhe falou das condições
que lhe tínham sído concedídas para esse caso, no tocante à ceri-
mônia, eIa respondeu que sim, desejava ir, amanhâ visitaria a
viúva Condessa Trümmerhauff com a Condessa Lõwenjoul, para
levar os cartões de visita.
Naquele ano, o baile da Corte aconteceu mais cedo, já em
fíns de novembro - segundo se disse, por desejo expresso da
família do Grão-Duque. O Sr. von Bühl zu Bühl queixou-se
amargamente dessa precipítação, que o forçava, e a seus funcio-
nários, a apressar os preparativos da mais importante festividade
da Corte, isto é, as rnelhorías tão urgentes nas salas de festa do
Castelo Velho. Mas o desejo do membro em questão da Casa
Real fora apoiado pelo Sr. von Knobelsdorff, e o Marechal-da-
Corte teve de ceder. Assim, os ânimos mal tiveram tempo de se
preparar suficientemente para o que de fato aconteceria naquela
noíte, e que tornava sem ímportância a época inusitada em que
se daria a festa. Quando o Mensageiro anunciou a entrega de
cartões e o convíte, em letras garrafais, notícíando, em tipos
um pouco menores, à filha de Spoelmann o quanto era bem-
vinda à Corte, a importante noite estava às portas, e antes que
as línguas se pudessem desatrelar, livres, tudo era realidade.
Nunca as 500 pessoas agraciadas, cujos nomes esxavam na
Iista do baile da Corte, tinham sido mais invejadas, nunca os
cidadãos tinham engolido mais avidarnente pela manhã os relatos
do Mensageiro, aquelas cintilantes colunas escritas todos os anos
por um nobre degenerado pela bebida: eram tão abundantes que
quase se tinha uma vísão daquele reíno de fadas, embara a festa
no Castelo Velho transcorresse sem exageros, até com sobrieda-
de. Mas as notícias só chegavam atê a ceia, incluindo o cardápio
francês. Tudo o que veio mais tarde, todas as delicadezas e im-
ponderabilidades do grande acontecimento, restringiu-se unica-
mente ao que se podia dizer oralmente.
308
As damas tinham chegado com muita pontualidade ao Cas-
telo Velho, onde o grande automóvel verde-oliva freara diante
do Portão Albrecht, mas não tão pontualmente que o Sr. von
Bühl zu Bühl já não estivesse apavorado. A partir das 7hl5min,
em uniforme de gala, coberto de condecorações até o ventre,
com topete castanho lustroso e óculos dourados no nariz, ele
parava sobre um pé e outro, no meio da Sala dos Cavaleiros, com
armaduras ac. redor, onde a família do Grão-Duque e os minis-
tros se reuniam; e várias vezes enviara um camareiro ao salão
de baile para saber se a Srta. Spoelmann ainda não aparecera.
Avaliava as mais incríveis possibilidades. Se essa Rainha de Sabá
chegasse tarde - e o que se podia esperar de quem passara
daquele jeito pela Guarda? -, a entrada do cortejo dos Grão-
Duques se atrasaria, e a Corte teria de esperar por ela, pois era
absolutamente necessário que a moça fosse apresentada em pri-
meiro lugar, e era impossível entrar no salão de baile depois de
o Grão-Duque já ter entrado. . . Mas, graças a Deus! Um mero
minuto antes das 7h30min, ela chegou com sua Condessa
(grande agitação quando os camareiros recepeionistas a colocaram
entre os diplomatas - portanto, antes da nobreza, das damas do
palácio, dos ministros, dos generais, do Presidente da Câmara e
de todo o mundo!). O Ajudante von Platow foi buscar o Grão-
Duque em seus aposentos, e Albrecht, vestido de hussardo, sau-
dara os membros de sua família com olhos baixos, no Salão dos
Cavaleiros, oferecera o braço à tia Katharina e, depois de o Sr.
von Bühl bater três vezes seu bastão no assoalho junto da porta,
a Corte finalmente entrara no salão de baile.
Mais tarde, testemunhas oculares afirmaram que a pouca
atenção dedicada pelos presentes aos príncipes, por ocasião do
desfile no salão, atingia os limites do insulto. Aonde quer que
Albrecht chegasse com sua tia, em passo digno, todos se curva-
vam e se moviam rapidamente, sem a devida unção; mas, de
resto, todos os rostos se dirigiram para um ponto do salão, todos
os olhos grudados nele com ardente curiosidade . . . Aquela que
estava ali parada tinha inimigos na sala, pelo menos entre as
mulheres, as Trümmérhauff, as Prenzlau, as Wehrzahn e Platow,
309
que agitavam seus leques; olbares femininos penetrantes e gela-
dos examinavam-na sem parar. Mas agora a posição da jovem
já estava demasiado consolidada para que se ousasse criticar, ou
talvez sua personalidade tivesse vencido aquela secreta resistên-
cia - fora voz geral que Imma Spoelmann era bela como a
'' filha do Rei da Montanha. Na manhã seguinte, toda a Residên-
' cia sabia de cor como fora sua roupa, desde o escrivão do Mi-
nistério até a guarda da esquina. Fora um traje de crepe da
Chína verde-pálido, com bordados em prata, e peitilho de antiga
i renda de prata, de valor fabuloso. Um ornamento de diamantes
na cabeça, em forma de coroa, faíscara em muítas cores em seus
cabelos de um negro azulado, que tendiam a lhe caír sobre a
? testa em mechas lisas; uma longa corrente das mesmas pedras
I
; preciosas envolvía duas, trés vezes seu pescoço moreno. Pe-
¡ quena e infantil, mas de uma infanti.lidade singularmente grave
; e inteligente, com seu rostinho pálido e os olhos excessivamente
,
grandes, estranhamente eloqüentes, ela se postara em seu lugar
de honra, tendo ao lado a Condessa Lõwenjoul, vestida de mar-
j rom, como sempre, mas dessa vez em cetim. Com uma elegância
,
de pajern, um tanto inábil, Imma Spoelmann fizera a mesura da
Corte quando se aproximara o cortejo, mas rão a executara intei-�
ramente; quando o Príncipe Klaus Heinrich passara por ela, logo
atrás do Grão-Duque, com a fita amarelo-limão e a corrente da
Condecoração da Constância sobre o casaco do uniforme, a estre-
la de prata do Grifo dos Grimmburg sobre o peito e, pelo braço,
aquela prima anêmica que jamais conseguia dizer senão "sitr"�
,
Imma Spoelmann sorrira, lábios cerrados, e lhe fizera um sinal
com a cabeça, como a um camarada - um estremecimento per-
correra os presentes . . .
Então, após os cumprimentos dos diplomatas pelos Prín-
cípes, tínham começado as apresentações - íniciando-se com
Imma, embora entre as damas recém-convídadas houvesse duas
Condessas Hundskeel e uma Baronesa von Schulenburg-Tressen.
Sorríndo com seus dentes postíços e se agitando muito, o Sr.
von Bühl apresentara a seu amo a filha de Spoelmann. E,
enquanto sugava de leve o lábío superior com o redondo lábio
310
inferior, Albrecht baixara os olhos para a desajeitada mesura
de pajem da moça, que se erguera outra vez para contemplar,
com olhos eloqüentes e perquiridores, o enfermiço coronel dos
hussardos, tão reservado e altivo. O Grão-Duque lhe dirigira
várias perguntas, quando, sem exceção, costumava fazer uma
só. Perguntara pelo estado de saúde do pai dela, pelos efeitos
da Fonte Ditlinde, e se estava gostando de viver conosco; e ela,
lábios em bico, meneando a cabecinha, respondera a tudo com
sua voz rouca. Após uma pausa, que talvez fosse intervalo para
conflitos íntimos, Albrecht expressara seu prazer por vê-la na
Corte; e depois também a Condessa Lówenjoul pudera fazer
sua mesura, com um olhar esquivo e oblíquo.
Durante muito tempo, essa apresentação de Imma Spoel-
mann a Albrecht foi motivo predileto de todas as conversas e,
embora tivesse transcorrido sem nada de especial, não se deve
, diminuir seu encanto e significação. Ela não foi, contudo, o
ponto alto da noite. Aos olhos de muitos, o ponto alto foi a
Quadrilha de Honra, para outros, a ceia - na verdade, porém,
foi um diálogo secreto entre as duas personagens principais da
peça, um diálogo breve, que ninguém ouviu, cujo conteúdo e
i resultado prático o público só poderia adivinhar - fruto de
ternas batalhas a pé ou a cavalo . . .
Quanto à Quadrilha de Honra, no dia seguinte houve quem
afirmasse que a Srta. Spoelmann participara dela, ao lado do
Príncipe Klaus Heinrich. Só a primeira parte desse depoimento
era correta. A moça particípara da festiva ciranda, mas condu-
zida pelo encarregado de negócios da Inglaterra, na f rente do
Príncipe Klaus Heinrich. Mesmo assim, era estranho, e mais
estranho ainda que a maioria dos convidados da festa nem ao
menos julgasse o fato inaudito, vendo-o como quase natural.
Sim, a posição de Imma Spoelmann estava consolidada, a po-
pularidade de sua pessoa - o povo soube disso no dia seguinte
- mostrava-se óbvia no salão de baile, e de resto o Sr. von
Knobelsdorff tivera o cuidado de que isso se manifestasse com
toda a evidência que julgava conveniente. Não com reserva nem
311
com distínção: não, havíam tratado Imma Spoelmann cerimonio-
samente, com ênfase planejada e intencional. Os dois Mestres-
de-Cerímônia em serviço, Camareiros, tinham-lhe apresentado
pares escolhidos, e quando ela deixava seu lugar perto do pódíc
baixo, forrado de vermelho, onde a família dos Grãos-Duques
se sentava em poltronas de damasco, saíndo com um cavalheiro
para dançar, a díreção do baile, como acontecia quando dan-
çavam princesas, cuidava para que ela obtivesse um lugax de-
baixo do lustre central, protegendo-a de encontrões com outros
- o que aliás era fácil, pois, de qualquer modo, quando ela
dançava, fechava-se ao seu redor o círculo protetor dos curíosos.
Contava-se que, quando o Príncípe Klaus Heínrích convi-
dara a Srta. Spoelmann para dançar pela prímeíra vez, ouvira-
se na sala um suspíro íntenso, um verdadeíro "sibílar", e os
baílarínos que conduzíarn a festa tínham tído dífículdade em
manter o baile em andamento e ímpedír que todos parassem,
ávidos, para contemplar o par. As damas, especialmente, tinham
acompanhado com exaltação e delícia o solitário par, um encan-
tamento que, se Imma Spoelmann tivesse posição um pouco
mais débil, sem dúvida teria assumido formas de raiva e male-
volência. Mas cada um dos 500 convidados sentira demasiada-
mente a pressão e influência da opinião pública, aquela forte
pressão'de baixo para cima, e só podia contemplar o espetáculo
com os olhos do povo. O Príncipe não parecia ter sido acon-
selhado a se controlar. Seu nome, simplesmente com as iníciais
K. H., estivera duas vezes, para duas danças inteiras, no cartão
da Srta. Spoelmann; além disso, ele a convidara mais vezes,
espontaneamente. E tinham dançado, Klaus Heinrich e a filha
de Spoelmann. O braço moreno da moça pousara sobre a fíta
de seda amarelo-límão que atravessava o ombro dele, e o braço
direito dele envolvera sua fígura leve e síngularmente infantil,
enquanto o esquerdo, como de hábito, se mantinha com a mão
no quadril, e ele conduzia sua dama com uma sô mão. Uma
só mão . . .
312
Assim chegara a hora da ceia, e outro artigo das ondições�
cerimoniais que o Sr. von Knobelsdorff conseguira para a visita
de Imma Spoelmann ao baile foi cumprido. Ligava-se à orde-
nação dos lugares à mesa. Enquanto a grande multidão de
convidados comia na galeria dos quadros e na Sala dos 12
Meses, em longas mesas, para a família ducal, os diplomatas e
os ocupantes de cargos mais elevados na Corte havia uma mesa
na Sala de Prata. Num cortejo solene como na entrada no salão
de baile, Albrecht e os seus se dirigiram para lá, às llh em
,
ponto. Passando pelos lacaios que ocupavam as portas, impe-
dindo a entrada de indesejados, Imma Spoelmann entrara na
Sala de Prata, pelo braço do encarregado de negócios inglês
,
para participar da mesa dos Grão-Duques.
' Fora inaudito - e ao mesmo tempo, depois de tudo, tão i
lógico, que não se podia sentir espanto ou fazer objeção. Na-
quele dia, era preciso estar à altura de grandes acontecimen- `
tos . . . Mas depois da mesa, quando o Grão-Duque se recolhera�
e a Princesa Griseldi abrira o cotillon com o Camareiro, a ex-
pectativa tornara-se febril, pois todos tinham indagado se o
Príncipe teria permissão de levar um raminho de flores à Spoel-
mann. Obviamente, ele receb.·ra instrução de não levar logo
o primeiro raminho a ela. Primeiro, entregara um à sua tia
I
Katharina e outro a uma prima ruiva. Mas depois se postara
diante de Zmma Spoelrnann com um ramo de lilases dos jardins
da Corte. Ao levar o belo ramo ao narizinho, ela hesitara, com !
ar assustado, por motivos desconhecidos, e só depois que ele
a animou com um sorriso é que se decidiu a saborear o perfume.
Depois, conversando tranqüilamente, os dois tinham dançado
juntos por longo Xempo.
Mas durante essa dança acontecera aquele diálogo não- _
ouvido por outros, aquela conversa de conteúdo burguês e
resultado objetivo... . e foi o seguinte:
- Desta vez, está contente com 'as flores quelhe trouxe,
Imma?
313
- Sim, Príncipe, seus lilases são lindos e perfumados.
Gostei muito.
- Verdade, Imma? Mas renho pena daquela pobre roseira
do pátio porque suas rosas, com ar cheirando a mofo,lhe
desagradam.
- Não diria que me desagradam, Príncipe.
- Mas a deixam iníbida e fria?
- Sím, talvez.
- Mas eu lhe contei sobre a crença popular que um dia
a roseira será salva, um dia de felicidade geral no qual ela
produzirá rosas que, além de grande beleza, também terão um
doce perfume natural.
- Sim, Príncipe, teremos de esperar.
- Não, Imma, teremós de agir e ajudar! Temos de nos
lecidir e renunciar a todas as dúvidas, pequena Imma! Diga-�
me . . . diga-me hoje: agora confía em mim?
- Sim, Príncipe, ultimamente tenho confiança no senhor.
- Está vendo! Graças a Deus! . . . Eu não disse que final-
mente iria consegúir? Então acredita agora que penso com muita
seriedade e profundidade em você, em nós?
- Sim, Príncipe, agora acho que posso acreditar.
- Por fim, por fim, minha pequena indecisa. Ah, eu lhe
agradeço de todo o coração! Mas, então, sente coragem de
anunciar a todo o mundo que me pertence?
- Anuncie o senhor, Alteza, se quíser.
- Sim, Imma, vou fazer isso, alto e firme. Mas sob uma
condíção: a de não pensarmos apenas na nossa felicidade, de
maneira egoísta e mesquinha, mas de encararmos tudo do ponto
de vista geral, e mais elèvado. O bem-estar püblico e nossa
felicidade pessoal condicionam-se mutuamente.
- Belas palavras, Príncipe. Pois, sem nossos estudos a
respeito do bem-estar público, eu dificilmente teria me resolvido
a confiar no senhor.
- E sem vocé, Imma, que aqueceu meu coração dessa
maneira, eu dificilmente faria verdadeiros estudos.
314
- Então, vamos ver como anunciar isso, Príncipe, cada
um de seu lado, o senhor com sua família e eu . . . com meu pai.
- Minha irmãzinha - disse ele então, com expressão
serena, apertando-a um pouco mais ao dançar. - Minha noi-
vinha . . .
Fora uma promessa de noivado bem singular.
Mas não estava tudo resolvido. Na verdade, dentro do
quadro geral, pouca coisa acontecera, apenas um fator fora
superado, e tudo ainda corria perigo de dar em nada. O cronista
sente a tentação de exclamar: que felicidade estar à frente das
negociações um homem que encarava seu tempo com destemor,
até com certa ironia, e não achava uma coisa impossível apenas
por ser a primeira vez em que ocorria!
Aquela explanação que, mais ou menos oito dias antes do
notável baile, Sua Excelêricia von Knobelsdorff realizou diante
de seu senhor, o Grão-Duque Albrecht II, no Castelo Velho,
faz parte da história. Dias antes, o Presidente do Conselho esti-
vera à festa de uma sessão do Ministério, sobre.a qual o Men-
sageiro comentara muita coisa, dizendo que se tinham tratado
de questões financeiras e assuntos internos da família dos Grão-
Duques, demonstrando-se também - o que o jornal acrescen-
tava em tipos grandes - total harmonia de pensamentos entre
os Ministros. Assim, o Sr. von .Knobelsdorff estava em posição
bastante firme diante de seu jovem monarca, na audiência; pois
tinha a seu lado não apenas a massa do povo, mas a vontade
unânime do Governo.
A conversa, no ventoso aposento de Albrecht, exigiu quase
tanto tempo quanto aquela que tivera lugar no pequeno salão
amarelo do Eremitage. Foi preciso até fazer um intervalo no
qual serviram limonada ao Grão-Duque e, ao Sr. von Knobels-
dorff, um cálice de vinho do Porto e biscoitos. Mas a longa
duração da entrevista se deveu à grandiosidade do assunto co-
mentado, e não a alguma resistência do monarca; pois Albrecht
não fez objeção. Em seu casaco fechado, as magras mãos sensí-
veis cruzadas no colo, a cabeça altiva e fina, com barbicha em
315
ponta e têmporas estreitas, erguida, as pálpebras baixadas, ele
sugava de leve o lábio superior com o redondo lábio inferior
,
e seguia as explanações do Sr. von Knobelsdorff com moderada
inclinação de cabeça, expressando ao mesmo tempo concordância
e recusa, uma concordância imparcial e objetiva, mantendo, po-
rém, sua dignidade pessoal inatingível.
O Sr. von Knobelsdorff entrou diretamente no assunto,
falando da freqüência do Príncípe Klaus Heinrich no Castelo
dos Delfins. Albrecht estava informado. Mesmo em sua solidão,
entrara um eco abafado dos acontecimentos que mantinham
atentos a cidade e o campo; ele também conhecia seu irmão
Klaus Heinrich, que na infância gostava de "farejar", e conver-
sar com lacaios, e que, quando batera a cabeça na grande mesa
de jogos, chorava alto com pena de sua testa . . . e no undo�
não precisava de muitas outras informações. Ceceando ligeira-
mente, fez com que o Sr. von Knobelsdorff o entendesse, e
acrescentou que, já que este até ali nada objetara, e até lhe
apresentara a filha do bilionário, podia-se deduzir que era
favorável aos atos do Príncipe. O Sr. von Knobelsdorff respon-
deu que o Governo feriria gravemente os desejos do povo caso
impedisse a realização das intenções do Príncipe.
- Mas então meu irmão tem intenções a esse respeito?
- Há muito tempo - respondeu o Ministro. - No co-
meço, ele agiu sem planejar, atendendo apenas ao seu coração.
Mas agora que uniu suas intenções às do povo, na realidade
concreta, seus desejos assumiram forma prática.
- Isso significa que o povo aprova os passos do Príncipe?
- Aprova e aclama, Alteza Real, e neles coloca suas arden-
tes esperanças!
O Sr. von Knobelsdorff desenrolou mais uma vez o sombrio
quadro do país, com miséria e grandes constrangimentos para
todos. Onde estariam ajuda e remédio? Lá, únicamente lá, no
Parque Municipal, naquele segundo centro da Residêncía, na
moradia do enfermo rei das finanças. Se o pudessem levar a
assumir nossa economia, ela teria a saúde assegurada. Seria�
316
possível levá-lo a isso? O destino agora trouxera uma harmonia
de sentimentos entre a única filha daquele homem poderoso
e o Príncipe Klaus Heinrich! Poderiam opor-se a uma circuns-
tância tão positiva e favorável? Por causa de uma tradição
antíga e desgastada, deviam proibir uma ligação que traria tantas
bênçãos ao país, ao povo? Pois era de se prever que isso suce-
deria, e nisso residia a justificativa e a validade extrema do faro.
Se tudo se concretizasse, Samuel Spoelmann estaria disposto a
financiar o Estado; portanto, aquela união - pois a palavra
já fora pronunciada - não era apenas legítima, mas necessária,
era a salvação, o bem do país a exigia. E muito além das fron-
teiras, por toda parte onde houvesse interesse na recomposição
de nossas finanças e se quisesse evitar o pânico na economia,
todos a pediam aos céus.
Nesse momento, o Grão-Duque interrompeu com uma per-
gunta em voz baixa, sem erguer os olhos, sorriso irônico:
- E a sucessão do trono?
- A lei - respondeu von Knobelsdorff, imperturbável
= oferece a Vossa Alteza a condição de relevar essas preocupa-
ções quanto à dinastia. Mesmo entre nós, o monarca pode elevar
a situação social de um súdito e também conferir-lhe títulos
de nobreza. E quando, em nossa história, existiu razão mais
forte para se usar dessa prerrogativa? Essa união traz em si
mesma a sua legitimidade. Foi amparada pelo povo, e seu reco-
nhecimento oficial, também no direito monárquico, seria para
o povo, apenas uma confirmação externa de sua vontade interior.
E o Sr. von Inobelsdorff falou da popularidade de Imma,�
das significativas manifestações quando convalescia de uma leve
doença, da dignidade de princesa que a fantasía popular conferia
a essa singular criatura; e as ruguinhas de seus olhos agitaram-
se quando lembrou a Albrecht a velha profecia, ainda viva no
povo, sobre o príncípe que daria mais a seu país com uma só
mão do que outros com duas. E afirmou, eloqüente, que a
união entre Klaus Heinrich e a filha de Spoelmann parecia, ao
317
povfl, uma realização daquele oráculo - portanto, algo justo'e
desejado por Deus.
O Sr. von Knobelsdorff falou muitas coisas sábias, francas
é boas. Mencionou a quádrupla místura de sangue nas veias de
Imma Spoelmann - além de sangue alemão, português e ínglês,
sabia-se que nela havia um pouco de verdadeiro sangue índio
- e sublinhou que, daquela mistura de raças, sempre tão revi-
vificadora ern estirpes muito antigas, esperava o melhor para a
dinastia. O desinibido ancião teve seus melhores momentos ao
falar das íncríveis e abençoadas mudanças que adviriam à Corte
com esse arrojado casamento do herdeiro do Trono. E foi então
que Albrecht sugou com mais altivez o lábio superior. O dinhei-
ro desvalorizava-se cada vez mais, as despesas cresciam segundo
a lei econômica, válida para Cortes e particulares, e era impos-
sível aumentar a arrecadação. Mas a fortuna dos governantes
não podia ficar atrás da de muitos súditos, e era inadmissível
para a monarquia que o saboeiro Unschlitt há muito tivesse
aquecimento central em sua casa e o Castelo Velho, não. Era
preciso conseguir ajuda, e feliz da família de reis a quem se
oferecesse ajuda tão extraordinária. Via-se por nossos jomais
que as pessoas já perdiam o pudor ao falarem das finanças da
Corte. Não se via mais aquela abnegação com que antigamente
famílias nobres faziam os maiores sacrifícios para que o público
não viesse a saber do estado de sua fortuna. Processos, inter-
dições e alienações eram freqüentes agora. A esse rebaixamento
mesquinho e burguês, não se deveria preferir uma ligação com
tão grande fortuna, união essa que livraria os monarcas defini-
tivamente das questiúnculas financeiras, colocando-os em situa-
ção de poderem apresentar-se ao povo com todos os sinais exter-
nos que este esperava?
Foi isso que von Knobelsdorff indagou, e ele mesmo res-
pondeu afirmativamente. Em suma, sua fala foi tão eloqüente,
irresistível e sábia que, ao sair do Castelo Velho levava consigo
um consentimento e uma autorização ceceados com altivez, sufi-
318
cientes para lhe permitirem decisões inusitadas, desde que a Srta.
Spoelmann fizesse a sua parte.
E assim as coisas seguiram seu memorável curso, até o final
feliz. Antes ainda do fim de dezembro, podia-se citar o nome
das pessoas que não tinham apenas ouvido contar, mas visto,
numa manhã escura e nevosa, o Marechal-da-Corte von Bühl zu
liühl, de casacão de peles, cartola sobre o topete castanho e
óculos dourados, desembarcar de sua carruagem nos Delfíns e
sumir no Castelo com seu andar buliçoso. No começo de janeiro,
havia quem jurasse que aquele cavalheiro que, também de manhã,
também de peles e cartola, saíra dos Delfins, passando pelo
sorridente mouro trajado em veludo, e se deixara cair na carrua-
gem com olhos febris era, sem dúvida, nosso Ministro das
Finanças, o Dr. Krippenreuther. Ao mesmo tempo, apareciam
no Mensageiro, jornal semi-oficial, sinais dos boatos que previam
um noivado na família do Grão-Duque . . . manifestações hesi-
tantes, mas cada vez mais claras, num cauteloso crescendo, que
por fim ligavam abertamente. os nomes de Klaus Heinrich e
Imma Spoelmann . . . Já não era novidade, aparecia preto no
branco, e tinha efeito de bebida forte.
Além disso, era fascinante observar que, diante das subse-
qüentes manifestações do povo, a imprensa liberal e esclarecida
colocava-se ao seu lado, isto é, valorizava a velha profecia, que
assumia excessiva conotação política, a tal ponto que nem era
mais preciso usar de inteligência e cultura e tentar explicá-la.
Adivinhação, quiromancia e bruxaria, esclarecia o Mensageiro,
ficavam no obscuro território da superstição quando se tratava
de um destino individual, eram coisa da penumbrosa Idade
Média. Era preciso rir das pessoas delirantes que - o que já
não se via nas grantes cidades - deixavam que vigaristaslhes
arrancassem moedas do bolso para conhecerem seu futuro através
das mãos, de cartas, da borra do café, ou ainda se curavam
pela homeopatia, pelas rezas, ou mesmo procuravam livrar o
gado doente dos demônios que o dominavam, como se o Após-
tolo não tivesse indagado: "Deus não cuida também dos bois?"
319
Mas; numa abrangênciá bem maior, em questões decisivas para
o destino de povos ou dinastias, pessoas de ciência ou cultura
não recusavam a idéia de que o tempo é apenas uma ilusão.
Como todos os fatos são predeterminados na eternidade, acon-
tecimentos ainda ocultos no seio do futuro bem podem iluminar
previamente o espírito humano e se revelar a ele. Para provar
isso, o zeloso jornal apresentou uma matéria, bondosamente
oferecida por um professor universitário dos nossos, falando
em casos históricos nos quais oráculos, horóscopos, sonambu-
lismo, clarividência, sonhos e visões, segunda personalidade e
intuição haviam desempenhado papel importante - um memo-
rando de valor, que muito repercutiu nos meios mais cultos.
Todos marchavam decididamente na maior harmonia:
imprensa, governo, Corte e público. Certamente, o Mensageiro
teria cuidado com a língua, caso suas informações filosóficas
ainda fossem prematuras ou politicamente indesejadas; numa
palavra, se as negociações nos Delfins já não estivessem bem
avançadas em direção a um desfecho favorável. Hoje, sabe-se
com bastante certeza como se desenrolaram tais negociaçôes, e
nossos procuradores tiveram posição difícil, até penosa: tanto
aquele a quem, como pessoa de confiança da Corte, coubera
a delicada missão de preparar o pedido do Príncipe Klaus Hein-
rich, como o principal administrador de nossas finanças, que,
apesar da saúde abalada, não se esquivou de defender pessoal-
mente, diante de Samuel Spoelmann, a causa do nosso país.
É preciso lembrar, antes de mais nada, a personalidade rabu-
genta e irritadiça do Sr. Spoelmann; em segundo lugar, aquele
poderoso homenzinho nem de longe se interessava tanto quanto
nós num final feliz (em relação a nós) para essas negociações.
Exceto pelo amor que Spoelmann dedicava à única filha, que
lhe abrira o coração e contava seu belo anseio de, amando,
tornar-se também útil, nossos emissários não tinham um só
trunfo diante dele, e o Dr. Krippenreuther não podia amparar
seus desejos naquilo que o Sr. von Bühl tinha a dar. O Sr.
Spoelmann só falava do Príncipe Klaus Heinrich como "aquele
320
rapaz", e mostrou tão pouco prazer ante a idéia de ..casar sua
filha com uma Alteza Real que o Dr. Krippenreuther e o Sr.
von Bühl, mais de uma vez, ficaram profundamente constran-
gidos.
- Se ao menos ele tivesse aprendido alguma coisa, se
tivesse uma ocupação decente - resmungava Spoelmann, abor-
recido. - Mas um moço que só sabe se expor para que lhe
gritem "viva" .
E mostrou-se realmente indignado da primeira vez em que
se falou de casamento morganático. Sua filha, explicou, once
and f or all, não servia para concubina nem para esse tipo de
casamento. Se alguém queria se casar com ela, que se casasse. . .
Nesse ponto, os interesses do povo e da dinastia concordavam
com os dele. Era preciso haver descendência com direitos legí-
timos de herança, e o Sr. von Bühl dispunha de todos os poderes
que o Sr. von Knobelsdorff extraíra do Grão-Duque. Quanto
à missão do Dr. Krippenreuther, seu final feliz não se deveu à
eloqüência dele, mas à ternura patérnal do Sr. Spoelmann -
a tolerância de um pai sofredor, de emoções contraditórias por
causa de sua vida de animal raro, em relação à filha única, e
herdeira. Ela mesma podia decidir em que tipo de papéis apli-
caria sua fortuna.
E assim' foram selados aqueles pactos que, no começo, fica-
ram envoltos em profundo silêncio, e só aos poucos, primeire
pelas evidências dos próprios fatos concretos, começaram a
transparecer, mas que reuniremos aqui resumidamente.
O noivado de Klaus Heinrich com Imma Spoelmann foí
aprovado e reconhecido por Samuel Spoelmann e pela Casa
Grmmburg. Simultaneamente ao anúncio do noivado no Diário�
0 f icüal, se anunciara também a elevação da noiva à condição
de Condessa, sob um nome fantasioso, de som romanesco e
aristocrático, parecido com aquele que Klaus Heínrich usara em
sua; viagem de estudos pelos belos países do Sul; e no dia de
seu casamento, a esposa do Príncipe Herdeiro, sucessor do trono,
seria revestida da dignídade de Princesa. As duas nomeações
321
i
i
foram liberadas dos impostos, que seriam de 4.800 marcos. S �
passageiramente, e para que o mundo se habituasse, o casamento
seria morganático, pois no dia em que se visse que ela fora
abençoada com sucessão, Albrecht II, em consideração às cír-
cunstâncias incomparáveis do caso, declararia a esposa morga-
nática de seu irmão igual em estirpe, e lhe concederia o grau
de Princesa da Casa Grão-Ducal, com o título de Alteza Real.
O novo membro da casa governante desistiria de qualquer apa-
nágio. Quanto ao cerimonial, para a festa do casamento mor-
ganático have_ria apenas uma sessão da Corte, mas para festejar
a declaração de igualdade se previa uma homenagem perfeita,
a mais alta, a sessão magna. Samuel Spoelmann, de sua parte,
concedeu ao Estado um empréstimo de 350 milhões de marcos
- sob condições tão patemais que o empréstimo quase tinha
ares de presente.
Foi o Grão-Duque Albrecht quem participou ao Príncipe
tais decisões. Mais uma vez, Klaus Heinrich se postava naquela
grande sala de trzbalho do irmão, sob as pinturas rachadas do
teto, como outrora, quando Albrechtlhe transmitira o dever de
representação, e em posição de sentido escutou as grandes notí-
cias. Para essa audiência, usava o casaco de uniforme de Major
dos fuzileiros da guarda, enquanto o Grão-Duque agora usava,
além do sobretudo preto, punhos de tricô que sua tía Katharina
fizera de lã vermelho-escura, para se proteger do vento encanado
que entrava pelas altas janelas do Castelo Velho. Quando Al-
brecht terminou, Klaus Heinrich deu um passo para o lado, para
juntar mais uma vez os calcanhares, como quem faz continência.
e disse:
- Caro Albrecht, peço que me permita colocar a seus pés
meus mais humildes agradecimentos, em meu nome e em nome
de todo o país. Pois, afinal, é você quem possibilita toda essa
felicidade, e o redobrado amor do povo recompensará essa sua
decisão generosa.
Ele apertou a magra e sensível mão do irmão, que este
lhe estendia junto do peito, sem soltar o braço do corpo. O
322
Grão-Duque erguera seu arredondado lábio inferior, curto, e
suas pálpebras estavam baixadas. E respondeu baixinho, ce-
ceando:
- Não me inclino a ter ilusões quanto ao amor do povo;
como você sabe, não consigo encarar sem sofrímento esse duvi-
doso casamento. E não importa muito se eu mereço esse amor.
ila hora da partida, irei à estação para acenar - isso é men(r)s�
meritório do que tolo, mas é meu ofício. Seu caso é realmente
outro. Você é um felizardo. Tudo acontece para a sua felici-
dade . . . desejo que seja feliz - disse, erguendo as pálpebras
de seus olhos tão solitários. E nesse momento viu-se que ele
amava Klaus Heinrich. - Desejo que você seja feliz, Klaus
Heinrich . . . mas não demais, e que não repouse confortavel-
mente demais sobre o amor de seu povo. De resto, eu já lhe
disse que tudo acontece para a sua felicidade. A moça que
escolheu é bastante estranha, muito pouco caseira, enfim, bem
diferente do nosso povo. Tem vários tipos de sangue . . . ouvi
dizer que em suas veias corre até sangue índio. Talvez seja
bom. Com uma companheira dessas, talvez você corra pouco
perigo de ficar acomodado.
- Nem a felicidade - disse Klaus Heinrich - nem o
amor do povo jamais conseguirão fazer com que eu deixe de
ser seu irmão.
Ele partiu. Tinha ainda um momento dífícil, um encontro
a sós com o Sr. Spoelmann, seu pedido pessoal para que lhe
fosse concedida a mão de Imma. Ele teria de engolir o que os
emissários haviam engolido, pois Samuel Spoelmann não mos-
trara a menor alegria e dissera, resmungando, várias verdades
estimulantes: Mas também isso foi superado, e chegou a manhã
em que o noivado foi anunciado no Diário O f icial. Então, a
última tensão se desfez num júbilo infinito; homens gordos
acenavam uns para os outros com lenços e trocavam abraços no
mercado; as bandeiras subiam pelos mastros . . .
Mas no mesmo dia çhegou ao Castelo Eremitage a notícia
de que Raoul berbein se suicidara.�
323
Foi uma história indigna, até vulgar, que não valeria a pena
repetir, se o fim não tivesse sido tão pavoroso. Não abordarei
aqui a questão da culpa. Junto à sepultura do Doutor, forma-
ram-se dois partidos. Abalados por seu ato desesperado, alguns
afirmavam que ele fora induzído á morte; os outros declaravam,
dando de ombros, que seu comportamento fora insuportável e
maluco, e seu castigo, necessário. Era evidente. De qualquer
modo, nada na verdade justificava sua trágica partida; sim, para
um homem com os dons de Raoul Überbein, era coisa totalmente�
indigna morrer assím . . . e segue a hístóría toda.
Na Páscoa do ano anterior, o catedrático do penúltimo ano
de nosso Liceu Humanístico, cardiopata, fora aposentado pre-
maturamente devido à sua enfermidade, e apesar da relativa
juventude do Dr. Überbein, apenas por reconhecimento ao seu
zelo profissional e ao seu notável e inegável sucesso na magis-
tério, ele recebera o cargo de catedrático substituto. Uma ação
acertada, viu-se depois; pois nunca as realizações da classe se
tinham assemelhado às daquele ano. O professor litencíado,
aliás um cóléga estimado, devido à sua doença, que por autro
lado se ligava a uma simpática mas duvidosa inclinação para a
cerveja, fora um cavalheiro esquisito, desleixado e apátíco, muito
tolerante e que apresentara anualmente aos exames finais um
material humano muíto mal preparado. Um novo espíríto entrara
na classe com o catedrâtico substituto - ninguém e5tranhava
ísso. Conhecíam seu íncrível zelo profissional, seu esforço incan-
sável e único, e previam que ele aproveitaria essa ocasião para
aparecer, sem dúvída com ambícíosas esperanças. Na classe, aca-
baram subitamente a preguiça e o tédio. As exígências de 'Über-
bein eram grandes, sua arte de entusiasmar até os mai.s desinte-
ressados era irresistível. Os jovens o veneravam. Sua atitude
superior mas paternal, de uma fanfarronice cordial, mantinha-os
ínteressados, sacudía-os, tornava-lhes questão de honra seguir
é'ssé professor para o que desse e viesse. Ele os fascinava, man-
tinhá-os presos a seu lado, levando-os todos os domingos a
passeios nos quais podiam fumar enquanto ele estimulava sua
324
imaginação com bazófias juvenis sobre a grandeza e .severidade
da vida. Na segunda-feira, reencontravam o companheiro do dia
anterior, para um trabalho alegre e fervoroso.
Assim se passaram três quartos do ano letivo. Então, antes
¡ do Natal, soubera-se que o professor licenciado, muito melhor
de saúde, reassumiria suas atividades após os feriados, como
titular da classe. Então, puderam perceber o que havia por
trás do esverdeado rosto do Dr. berbein e daquela sua postura�
superior e jovial. Ele resistira, protestara, reclamara alto e bom
som, em palavras não muito educadas, dizendo que em três
quartos do ano se ligara àquela classe, dividira com ela trabalho
e repouso, praticamente a conduzira ao seu objetivo. E agora,
no último quarto do ano letivo, seria despido de sua função,
devolvida ao funcionário que estivera todo o ano descansando.
A atitude dele era compreensível, concebível, totalmente natural.
Sem dúvida, esperara apresentar ao diretor e aos professores
I
que aplicavam os exames finais uma classe exemplar, cujo pro-
, gresso e boa formação mostrassem claramente a capacidade dele,
apressando sua carreira. Devia ser dolorosa a' idéia de que outro
professor colheria os frutos de sua dedicaçãó: Mas se seu mau
humor era desculpável, sua loucura não foi: e infelizmente acon-
teceu que ele, surdu às palavras de seu diretor, na verdade ficou
;.
,: inteiramente louco. Perdeu a cabeça, perdeu o equilrio, moveu�
céus e terra para que aquele preguiçoso, aquele cervejeiro, aquele
, sapateiro idiota, como designava sem qualquer consideração 0
' professor licenciado, não lhe roubasse a classe; e quando não
' conseguiu apoio no corpo docente, coisa de que aquele solitário
não se deveria espantar, o infeliz descontrolara-se a ponto de
amotinar os alunos a ele confiados. A quem queriam como pro-
fessor no último bimestre?, perguntou da cátedra - ele ou o
outro? E, fanatizados por sua trêmula excitação, tinham gritado
que o queriam. Pois, então, que assumissem sua causa, fícassem
do seu lado e avançassem unidos, díssera ele - e Deus sabia
o que pensava, em seu estado de superexcitação. E quando,
depois das férias, o catedrático que voltava entrou na sala de
325
aula, os alunos berraram o nome do Dr. überbein na cara dele
,
minutos a fio - estava feito o escândalo.
Mas não o aliméntaram inutilmente. Os revoltados prati-
camente não foram punidos, pois o Dr. Überbein assumira a
responsabilidade diante da investigação que se realizóu imedia-
tamente. Mas também, no que dizia respeito a ele próprio, o
Doutor, as autoridades estavam inclinadas a fechar um olho
Seu zelo, suas capacidades, eram apreciados, certos trabalhos
intelectuais que produzira, frutos de sua porfia noturna, tinham
tornado seu nome conhecido; postos mais altos o valorizavam
- postos, diga-se de passagem, com os quais ele nunca tivera
contato pessoal e que, portanto, não teria podido adular com
seu jeito paternal; igualmente, sua qualidade de educador do
Príncipe Klaus Heinrich pesou bastante. Em suma, não foi
despedido, como se esperara. O Conselo Escolar do Grão-Du-�
cado, ao qual se apresentara o caso, passou-lhe uma séria des-
compostura, e o Dr. Überbein, que logo depois do escandaloso
incidente deixara as aulas, foi temporariamente licenciado. Mas
pessoas bem-informadas asseguraram, mais tarde, que apenas
pretendiam transferir o professor para outro Liceu, que as auto-
ridades .superiores só queriam deixar passar algum tempo para
que o incidente fosse esquecido, e continuava aberto ao profes-
sor um futuro brilhante. Tudo teria podido acabar bem.
Mas, se as autoridades foram brandas, tanto Inais os colegas
hostilizaram o Dr. Überbein. A Associação Docente formou um
verdadeiro tribunal de honra para desagravar seu e:timado mem-�
bro, aquele catedrático cervejeiro, rejeitado pelos alunos. O do-
cumento que apresentaram a Überbein, recolhido a seu quarto
alugado, dizia que, uma vez que ele se recusava a devolver ao
colega a quem su6stítuíra a cátedra do oítavo ano, >or ter agido�
contra ele e instigado os alunos à desobedíêncía, tornara-se
culpado de ação contra um colega, o que fazia dele um deson-
rado, não só no campo profíssional, mas, de modo geral, na
vida civil. Essa era a sentença. O que se esperava era que o
Dr. Überbein, membro da Associação unicamente de nome, se
326
le,�
l
excluísse dela. Muitos pensavam que assim tudo estaria ter-
minado.
Mas, fosse porque aquele solitário não sabia do apreço
quelhe devotavam as autoridades maiores; fosse por considerar
sua situação mais desesperada do que era; fosse por não suportar
a inatividade e a perda prematura de sua amada classe; ou
porque a expressão "desonra"lhe tivesse envenenado o sangue,
ou porque sua personalidade não estivesse à altura daquele
abalo: cinco semanas após o Ano-Novo, seu senhorio o encon-
trou caído no ralo tapete do quarto, verde como sempre, com
uma bala no coração.
Assim morreu Raoul Überbein; foi nisso que tropeçou;
foi esse o motivo do seu fim. Agora estava claro! Era essa a
expressão dominante em todos os comentários sobre sua mise-
rável derrocada. Aquee homem inquieto e inquietante, que�
jamais fora um verdadeiro camarada dos outros, que desdenhara
altivamente qualquer intimidade, dirigindo sua vida fria e exclu-
sivamente para as realizações profissionais, dizendo que por ísso
mesmo tinha o direito de tratar todo o mundo paternalmente
- lá estava ele, deitado; o primeiro desgosto, o primeiro fra-
casso no campo profissional o derrubara lamentavelmente. Pou-
cos lastimaram isso, ninguém chorou por ele - exceto o rnelhor
amigo de Ílberbein, o médico-chefe do Hospital Dorothea, e
talvez uma mulher pálida com a qual de vez em quando jogara
cassino. Mas Klaus Heinrich :ontinuou dedicando a seu infeliz�
mestre uma lembrança honrosa, sim, afetuosa.
327
C
A ROSEIRA
E Spoelmann financiava o Estado. O acontecimento era gran-
dioso e de contornos claros; uma criança o teria compreendido
- na verdade, pais felizes explicavam tudo a seus filhos enquan-
to os embalavam nos joelhos.
Samuel Spoelmann acenou, os Srs. Phlebs e Slippers puse-
ram-se em ação e suas poderosas ordens vibraram sob as ondas
do mar até o continente do Hemisfério Ocidental. Ele tirou do
truste do açúcar um terço de sua participação, um quarto do
truste de petróleo, metade do truste do aço; mandou depositar
todo esse capital em vários bancos locais; e de um só golpe
assumiu do Sr. Krippenreuther novas obrigações do tesouro
a três e meio por cento, em troca de 3 milhões ao par. Spoel-
mann fez tudo isso.
Quem conhece a influência do estado de alma nos órgãos
das pessoas vai acreditar que o Dr. Krippenreuther floresceu,
e em breve nem se podia mais reconhecer. Andava ereto e
desinibido, seu caminhar era leve, a cor amarela sumiu-lhe do
rosto, agora branco e corado, os olhos faiscavam, e em poucos
meses seu estômago se curou tão bem que, segundo contou a
amigos, pôde voltar a comer, sem problemas, o repolho roxo e
salada de pepinos. Foi uma conseqüência feliz, mas unicamente
pessoal, da interferência de Spoelmann em nossas finanças, que
pouco pesava em comparação com os efeitos que essa interfe-
rência teve sobre nossa vida pública e econômica.
329
Parte do empréstimo foi dirigido ao pagamento de dívidas,
e torturantes débitos públicos foram saldados. Mas isso pratica-
mente nem teria sido necessário para obtermos ar e crédito de
todos os lados; pois, apesar de toda a discrição com que se
tratou oficialmente do fato, assim que se tornou conhecido que
Samuel Spoelmann era banqueiro do Estado, ainda que não
oficialmente, os céus se iluminaram sobre nós, e toda a nossa
aflição transformou-se em prazer e felicidade. Acabaram as ven-
das forçadas, baíxou a taxa de juros do país, nossas promíssórías
eram ambicionadas como investimento, e de um dia para o outro
nossos empréstimos de altos juros saíram de sua condição mise-
rável. A pressão que, por decêníos, fora o pesadelo de nossa
economia se desfez, o Dr. Krippenreuther falou na Assembléia,
de peito inflado, a favor de uma redução nos impostos, e isso
foi decidido por unanimidade, sob o júbilo de todos os homens
', de sentimentos sociais; o imposto da carne foi enterrado. Con-
', cedeu-se rapidamente um aumento para funcíonáríos, professo-
res, sacerdotes e todos os empregados do Governo. Não faltavam
mais meios para retomar as atividades das abandonadas minas
de prata, muitas centenas de trabalhadores ganhavam seu pão
outra vez e, inesperadamente, todos atingiram camadas de solo
muíto rendosas. Dínheíro exístía agora: dínheiro. Melhorou a
moral administrativa, as pessoas não mais praticavam o desma-
tamento, deixavam o adubo nas florestas, os donos de rebanhos
não precisavam mais vender seu leite integral, pois eles mesmos
o bebiam, e em vão os críticos procurariam no campo figuras
subnutrídas. As pessoas estavam gratas a seus governantes, que
traziam tão desmedidas bênçãos sobre o povo e o país. O Sr.
von Knobelsdorff não precisou de muitas palavras para conven-
cer o Parlamento a aumentar a dotação da Coroa. Retirou-se a
disposição de vender os Castelos Passatempo e Favoritá. Operá-
rios habílídosos entraram no Castelo Velho para ínstalar, em
todas as peças, o aquecimento central. Nossos encarregados de
negócios diante de Spoelmann, o Sr. von Bühl e o Dr. Krippen-
reuther, receberam a Grã-Cruz da Ordem de Albrecht, de bri-
330
lhantes; além disso, o Ministro das Finanças recebeu um título
e o Sr. von Knobelsdorff, um quadro representando os noivos
reais em tamanho natural - feito pela mão de artista do velho
Professor von Lindemann, com valiosa moldura.
Depois do noivado, o povo soltou sua fantasia a respeito
do dote que Imma Spoelmann receberia do pai. Todo o mundo
estava embriagado, dominado pelo impulso desenfreado de cal-
cular com cifras astronômicas. Mas o dote não superou uma
quantia terrena, embora muito grande: 100 milhões.
- Meu Deus! - exclamou Ditlinde zu Ried-Hohenried,
quando soube disso. - E meu bom Philipp com sua turfa . .
Muitos pensavam da mesma forma; mas a nervosa raiva que
talvez se agitasse em corações simples contra uma coisa tão
monstruosa foi abrandada pela fílha de Spoelmann, que não
esquecia as benemerências - no próprio dia do noivado oficial,
fez uma doação de 500 mil marcos, cujos lucros seriam anual-
mente distribuídos para obras beneficentes e comunitárias, nos
quatro distritos do país . . .
Num dos automóveis de cor verde-oliva de Spoelmann,
com estofamento cor de telha, Klaus Heinrich e Imma fizeram
visitas aos membros da família Grimmburg. Um jovem motorista
dirigia o magnífico veículo - o mesmo que, segundo Imma,
tinha certa semelhança com Klaus Heinrich; mas ele pouco se
distraía nesses passeios, pois era areciso controlar ao máximo
a força gigantesca do carro e rodar bem devagar - tanto se
comprimia o povo ao redor deles para homenageá-los. Sim, e
como os outros causadores de nossa felicidade, o Grão-Duque
Albrecht e Samuel Spoelmann, cada qual à sua maneira, se
escondessem do povo, este despejava todo o seu amor e gratidão
sobre as cabeças do nobre par de noivos; atrás das vidraças
pol.ídas do carro, voavam os gorros dos meninos, o júbilo de
homens e mulheres entrava por elas, intenso, e Klaus Heinrich,
mão no capacete, dizia:
- Imma, você também deve saudar do seu lado, senão
vão pensar que é muíto fria.
331
Pois, impaciente como era, ele a tratava com intimidade
desde aquele diálogo no baile da Corte, embora, ainda desabi-
tuada de ligações mais cálidas, ela o proibisse, assustada -- e
como lhe saía facilmente dos lábios aquele tratamento, que antes
sempre soara tão falso e impossível!
Foram visitar a Princesa Katharina, sendo recebidos com
dignidade. O irmão dela, o falecido Grão-Duque Johann Al-
brecht, disse a Princesa a seu sobrinho, não teria permitido
aquilo. Mas os tempos mudavam, e ela pedia a Deus que a noiva
se integrasse na Corte. Depois visitaram a Princesa zu Ried-
Hohenried, que os recebeu com amor. O orgulho grimmburguen-
se de Ditlinde tranqüilizava-se na certeza de que a filha do Levia-
tã seria Princesa e Alteza Real, mas jamais Princesa do Grão-Du-
cado, como ela. De resto, encantou-se com a idéia de Klaus
Heinrich ter "farejado" algo tão bonito e precioso, e, como
esposa do Philipp da turfa, entendia as vantagens daquele casa-
mento; e ofereceu à cunhada sincera amizade e fraternidade.
Também se dirigiram à mansão do Príncipe Lambert. Enquanto
a noiva Condessa tentava manter uma conversa com a delicada
mas inculta Baronesa von Rohdorf, o velho mulherengo cum-
primentava o sobrinho, com voz sepulcral, pela escolha despre-
conceituosa, e por ter zombado de toda a Corte e das Altezas.
- Não zombei deles, tio; nem pensei unicamente na minha
felicidade, de maneira mesquinha, mas tudo foi encarado do
ponto de vista geral e mais elevado - disse Klaus Heinrich,'
pouco amável.
Depois, foram ao Castelo Segenhaus, onde Dorothea, a
pobre Grã-Duquesa-Mãe, mantinha sua triste Corte. Ela chorou
ao beijar na testa a jovem noiva, e nem ela mesma sabia a
razão de seu pranto.
Enquanto isso, Samuel Spoelmann estava sentado nos Del-
fins, rodeado de planos e desenhos de móveis, padrões de forra-
ções de seda e desenhos de baixelas de ouro. Não conseguia
tempo para tocar órgão e esqueceu os cálculos renais. Quase
ficou com as faces coradas, de tão ocupado que estava. Embora
332
não desse muita coisa pelo "rapaz", e não admitisse esperanças�
de jamais o verem na Corte, sua filhinha devia ter um casamento
tão belo quanto permitissem as condições do pai. Os planos eram
relativos ao novo Castelo Eremitage, pois a moradia de solteiro
de Klaus Heinrich seria arrasada para dar lugar a um novo caste-
lo, amplo, iluminado e decorado, segundo o desejo de Klaus He-
inrich, numa mistura de estilo império e moderno, a um tempo
severo e confortável. Certa manhã, depois de beber a água do
Jardim das Fontes, o Sr. Spoelmann apareceu pessoalmente no
Eremitage, com seu paletó desbotado, para ver se um ou outro
móvel poderia ser usado na decoração do novo castelo.
- Meu jovem Príncipe, vamos ver o que o senhor tem aí!
- disse ele, resmungando, e Klaus Heinrich lhe mostrou tudo
que havia nas suas sóbrias salas, os magros sofás, as mesas de
pernas hirtas, os guéridons laqueados de branco nos cantos.
- Isso é tralha - disse o Sr. Spoelmann, desdenhoso -,
não se pode fazer nada com essas coisas. - Apenas três pol-
tronas do salãozinho amarelo, de mogno pesado com braços
encaracolados e estofo amarelo com as liras azuis, foram con-
sideradas com benevolência. - Essas aí, podemos colocar numa
ante-sala - disse ele, e Klaus Heinrich alegrou-se porque os
grimmburguenses colaborariam com três poltronas na nova deco-
ração. Pois, naturalmente, lhe seria um pouco penoso se o Sr.
6émánn véssé é cntrüúít cm ás,útámenté tü ó.�� � � � � � � � �
Mas também o parque selvagem e o jardim do F,remitage
seríam reconstituídos e, quanto ao jardim das flores, recebeu
um ornamento especial que Klaus Heinrich pedira ao Grão-
Duque como presente de casamento. Ao grande canteiro central,
diante da rampa de acesso, seria transplantada a roseira do
Castelo Velho, e lá, já não rodeada de muros mofados, mas com
ar, sol e adubo gordo, agora veriam que rosas ela produziria,
refutando as mentiras populares, se fosse suficientemente obsti-
nada e petulante.
E, passando março e abril, chegou maio, e com ele a grande
festa do casamento de Klaus Heinrich e Imma. Glorioso e doce,
333
com nuvenzinhas douradas no azul puro, chegou o dia, e, da
torre da Prefeitura, um canto coral saudou seu despertar. O
povo chegava com todos os trens, a pé e de carruagem, aquela
raça loura, atarracada, saudável e resistente, com olhos azuís
pensativos e zigomas um pouco salientes, com seus belos trajes
típicos, os homens de casaco vermelho, botas e chapéus de ve-
ludo preto de abas largas, as mulheres de coletes bordados e
amplas saias pelo tornozelo, na cabeça o imenso laço de fita
preta. Todos comprimiam-se, junto com a população urbana,
nas ruas entre o Jardim das Fontes e o Castelo Velho, transfor-
madas no trajeto do cortejo pelas tribunas enfeitadas de coroas
e guirlandas, e obeliscos de madeira pintados de branco, cheios
de folhagens. Desde cedo carregavam-se pelas ruas os estandartes
das associações industriais, ligas de atiradores e ligas esportivas.
Os bombeiros, capacetes faiscantes, estavam em ação. Viam-se os
representantes das ligas estudantis em toda a pompa, com suas
bandeiras, passando em landaus abertos. Viam-se grupos de
virgens vestidas de branco, segurando nas mãos bastões cobertos
de rosas. Os escritórios e oficinas faziam feriado. As escolas
estavam fechadas. Nas igrejas, rezavam-se missas festivas. E as
ediçôes matutinas do Mensageiro, bem como o Diário O f icial,
continham, além dos artigos de fundo, o anúncio de uma ampla
anistia, pela qual muitas pessoas condenadas à prisão recebiam
do Grão-Duque a graça da liberdade total, ou abreviação da
pena. Até o assassino Gudehu, que fora condenado à morte,
depois a trabalhos forçados pelo resto da vida, teve licença
para sair da prisão, mas em breve teria de voltar a ser posto
em segurança.
As 2h da tarde, realizou-se o almoço festivo dos cidadãos
na sala do Museu, com música e telegramas de felicitações.
Mas diante do portão divertia-se o povo, com pães e bolos,
feira, jogos de sorte e tiro ao pomlo, corrida de saco e com-�
petição de subida ao mastro para apanhar doces, esta última
reservada aos rapazes. Mas depois chegou a hora em que Imma
Spoelmann iria dos Delfins ao Castelo Velho, em cortejo solene.
334
As bandeiras tremulavam ao vento primaveril, as guirlan-
das, grossas como braços, tramadas com rosas, enroscavam-se
de um obelisco de madeira a outro, a multidão comprimia-se,
escura, nas tribunas, nos telhados, nas calçadas. Entre a ala de
políciais e bombeiros, ligas, associações, estudantes universitá-
rios e crianças de colégio, chegava o cortejo nupeial, lentamente,
na rua festiva coberta de areia, rodeado do júbilo do povo.
Dois cavaleiros com chapéus de galardão vinham na frente,
dirigidos por um cavalariço bigodudo. Depois, uma carruagem
puxada por quatro cavalos, na qual se recostava o emissário
grão-ducal, funcionário do Ministério do Interior, com missão de
apanhar a noiva, acompanhado de um Camareiro. Depois, outra
carruagem com quatro cavalos, onde se via a Condessa Lõwen-
joul, que olhava obliquamente para as duas damas de honra
com as quais viajava, e de cuja moral certamente desconfiava.
Depois, 10 postilhões a cavalo, em calças amarelas e fraques
azuis, que tocavam "Tecemos a coroa da virgem". Depois, 12
virgens em trajes brancos, espalhando pela rua rosinhas e rami-
nhos da tuia. E, por fim, seguida de 50 mestres-artesãos em
poderosos cavalos, a delicada carruagem nupeial, puxada por
seis animais. Muito orgulhoso, sentava-se na boléia forrada de
veludo branco o cocheiro de cara vermelha e chapéu de galardão
esticando as pernas cobertas por polainas e segurando, também
com braços esticados, as longas rédeas; cavalariços de botas
levavam pelo brídão os pares de tordilhos, e dois lacaios vestidos
de gala postavam-se na traseíra do veículo, que tilintava; sem
ver seus rostos, ninguém adivinharia que, no cotidiano, não
desconheciam a hipocrisia e o suborno. Atrás dos vidros e mol-
duras douradas, sentava-se Imma Spoelmann, com véu e grinal-
da, tendo ao lado, como dama de honra, uma antiga dama do
palácio. Seu vestído, de seda fulgurante, brilhava como neve ao
sol, e no regaço ela trazia o ramo branco que o Príncipe Klaus
Heinrich lhe enviara uma hora atrás. Seu rosto infantil e estran-
geiro estava pálido como as pérolas do mar e, sob o véu, caía-lhe
na testa uma mecha de cabelo liso, de um negro azulado, enquan-
335
to os olhos, tão grandes e negros, falavam, eloqüentes, com a
multidão. Mas que era aquilo que corria, latia, éspumava, ao
lado da porta da carruagem? Era Percival, o collie - possesso
como nunca! A multidão e a viagem o excitavam, deixavam-no
fora de si, dilaceravam-lhe o interior. Ele disparava, dançava,
sofria, retorcia-se, cego, riuma vertigem nervosa - e dos dois
lados, nas tribunas, na rua, nos telhados, o júbilo cresceu ainda
mais quando o povo o avistou . . .
Assim, Imma Spoelmann entrou no Castelo Velho, e o
reboar dos sinos misturou-se com os "vivas" do povo e os
doidos latidos de Percival. Atravessaram a passo a Praça Al-
brecht e o Portão de mesmo nome; no pátio do Castelo, a tropa
montada desfilava de um lado para o outro, assumindo posição
de revista, e na galeria de colunas, diante do portal arruinado,
o Grão-Duque Albrecht, como Coronel dos hussardos, junto .
com seu irmão e os demais príncipes, recebeu a noiva, ofereceu-
lhe o braço e levou-a pela escada de pedras gris até as salas de
recepção, em cujas portas havia guardas em uniforme de gala
e se reuniam as Cortes. As princesas da casa ficaram na Sala
dos Cavaleiros, e foi lá que o Sr. von Knobelsdorff, no círculo
da família dos Grão-Duques, realizou o casamento civil. Nunca,
comentou-se mais tarde, suas ruguinhas se haviam agitado tanto
quanto naqueles momentos em que unia perante a lei Klaus Hein-
rich e Imma Spoelmann. Mas, depois disso, Albrecht II deu
ordem de começar a cerimônia religíosa.
O Sr. von Bühl zu Bühl cumprira sua parte, fizera o
possível para organizar um cortejo impressionante - o cortejo
nupeial, que passaria sobre a Escada de Heinrich, o Opulento,
d:tois, por uma passagem coberta, entraria na Igreja. Curvado�
pelo peso dos anos, mas com topete castanho e agitando-se
juvenilmente, coberto de condecorações até as virilhas e batendo
à frente seu alto bastão, ele caminhava diante dos camareiros,
que, chapéus de plumas debaixo do braço e chaves atrás, na
cintura, seguiam em suas meias de seda. O jovem par aproxi-
mava-se: a noiva, singular num branco cintilante, e Klaus Hein-
336
rich, sucessor do Trono, em uniforme de granadeiro, a faixa
amarelo-limão atravessada sobre o peito e as costas. Quatro mo-
ças da nobreza carregavam, com ar aparvalhado, a cauda do
vestido de Imma, acompanhadas da Condessa Lówenjoul, que
olhava para os lados, desconfiada; e os Srs. von Schulenburg-
Tressen e von Braunbart-Schellendorf caminhavam atrás do
, noivo. O Monteiro-Mor da Corte, von Stieglitz, e a Excelência
manca que cuidara do espetáculo vinham à frente do jovem
monarca, a sugar o lábio superior, ao lado de sua tia Katharina,
seguido do Ministro do Interior von Knobelsdorff, dos Aju-
dantes, do casal de Príncipes zu Ried-Hohenried, e dos outros
membros da casa. Por fim, novamente camareiros.
Na igreja, enfeitada por folhagens e ramos, os convidados
esperavam o cortejo. Eram os diplomatas com suas damas, os
nobres da Corte e do país todo, o corpo de oficiais da Residên-
cia, os Ministros - entre os quais o de rosto mais iluminado
era o Sr. von Krippenreuther -, os cavaleiros da Grande Ordem
de Grimmburg, o Presidente da Câmara e toda sorte de digni-
tários. E como o marechalato da Corte tivesse enviado convites �
a todas as camada's sociais, também havia mercadores, campo-
neses e simples artesãos enlevados nos assentos. Mas na frente,
junto do altar, os parentes do noivo sentavam-se em semicírculo,
em poltronas de veludo vermelho. Terna e pura soava a canção
do coro da catedral, debaixo das abóbadas. Depois, ao rugido
do órgão, toda a comunidade cantou um hino de louvor. Quando
se calaram, restou apenas a voz agradável do Presidente do
Conselho da igreja, D. Wislizenus, que, com o cabelo prateado,
no talar de seda a estrela convexa, postava-se diante do nobre
par, pronunciando um sermão artístico. Trabalhava o tema, por
assim dizer, de maneira musical. E o tema de que tratava era
o salmo "Ele viverá e lhe darão ouro do reino da Arábia". E
todos os olhos ficaram molhados.
Depois, D. Wislizenus realizou o matrimônio e, no momen-
to em que. os noivos trocavam as alianças, soaram fanfarras, e
três vezes 12 tiros rolaram sobre cidade e campo, disparados
337
pelos militares sobre a muralha da cidadela. Logo depois,
também os bombeiros dispararam sua salva, com armas desti-
nadas a saudações; mas havia longos intervalos entre as detona-
ções, o que dava à população eterno motivo de riso.
Quando a bênção foi pronunciada, o cortejo arranjou-se
novamente para voltar ao Salão dos Cavaleiros, onde a casa
Grimmburg felicïtaria o jovem casal. Mas depois chegou o desfile
da Corte e, de braços dados, Klaus Heinrich e Imma 5poelmann
passaram pelas "Belas Salas", onde as Cortes estavam enfilei-
radas, e conversaram com damas e cavalheiros, sorrindo por
cima do assoalho lustroso; Imma, lábios em bico, meneava a
cabecinha ao falar com al.guém que fazia uma mesura, e dava
respostas adequadas. Após terminado o desfile, realizou-se um
jantar de cerimônia no Salão de Mármore, e um jantar dos
marechais na Sala dos 12 Meses, tudo no maior luxo, segundo
o costume da esposa de Klaus Heinrich. Também Percival, nova-
mente composto, foi admitido no jantar festivo, e recebeu um
assado. Depois do jantar, porém, os estudantes da Universidade
e o povo fizeram úma homenagem ao casal, com serenatas e
desfile de tochas, na Praça Albrecht. Lá fora, havia luzes bru-
xuleantes e uma zoeira incrível.
Lacaios escancararam as cortinas de uma das janelas da
Sala de Prata, abriram os batentes que davam quase até o chão,
e Klaus Heinrich e Imma chegaram à janela, sem se abrigar,
pois lá fora era uma noite morna de primavera. Ao lado deles,
em postura nobre e ar importante, sentava-se Percival, o collie,
e, como seus amos, olhava para baixo.
Todas as orquestras da Residência tocavam na praça ilumi-
nada, lotada de gente, e os rostos do povo, erguidos para a
janela, estavam rubros e enfumaçados pelas tochas dos estu-
dantes que passavám diante do Castelo. Irrompeu o júbilo
quando os recém-casados apareceram na janela. Eles saudaram,
agradecendo. Depois, ficaram ali parados por mais algum tempo,
olhando e sendo olhados. O povo olhava de baixo, vía-os move-
, rem os lábios num diálogo. Eles diziam:
338
i
;
- Ouça, Imma, como estão agradecidos por não térmos
esquecido sua necessidade e aflição. Tanta gente! Todos parados
aí, gritando. Muitos deles certamente são vigaristas, desses que
passam a vida logrando os outros; todos precisam urgentemente
elevar-se acima de sua existência cotidiana, tão vulgar. E se não i �
formos alheios à sua miséria e aflição, sentir-se-ão agradecidos.
- Mas nós somos tão ignorantes e solitários, meu Príncipe,
vivemos nos píncaros da humanidade, como dizia o Dr. Ü'ber-
' bein. Nada sabemos da vida!
. - Nada, pequena Imma? Mas o que foi que finalmente
a fez confiar em mim, e me levou a estudar de verdade sobre
o bem-estar do povo? Será que nada sabe da vida aquele que
' . sabe do amor? Esse deve ser nosso objetivo daqui por diante:
as duas coisas, nobreza e amor . . . uma severa felicidade.
I
k~�
339
l111),l(!'f'l;A I'ÚCiLIC:I f!É) ï'' a;(� � � �
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA
GABARITO ARTE & TEXTO S/C
LTDA. E IMPRESSA NA ARTES GRÁ-
FICAS GUARU S.A.,PARA A EDITORA
NCjVA FRONTEIRA S.A., EM JUNHO
DE MIL NOVECENTOS E OITENTA E
CINCO.
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Postal à EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. - Rua Maria
Angélica, I ó8 - Lagoa - CEP 22461 - Rio de Janeiro
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Este livro deve ser devolvido na
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FIM DO LIVRO