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PODEROSA Miguel Carqueija Prefácio de Hortencia de Alencar Posfácio de Shirley Murphy

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PODEROSA

Miguel Carqueija

Prefácio de Hortencia de Alencar

Posfácio de Shirley Murphy

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PREFÁCIO

Os enredos de Miguel Carqueija, são deveras estimulantes..Sua linguagem simples e lúdica nos envolve; a curiosidade nos arrasta para o discorrer da história,  incitando-nos a prosseguir, mais e mais, no desejo de conhecer seu desfecho.Com a novela “PODEROSA”, Miguel Carqueija, mais uma vez, vem brindar seus leitores com um texto coerente, ajustado ao contesto e inegavelmente surpreendente.Elaine, a protagonista, numa noite de calor sufocante, sofre com a presença incômoda de muitos pernilongos, picando-a insistentemente; deseja e manifesta ardentemente ver-se livre dos mosquitos insuportáveis.Na manha seguinte ao despertar, ouvindo dos outros parentes as queixas da péssima noite passada sob o ataque insidioso dos insetos, descobre que a partir de certo momento estivera livre deles, e de seus implacáveis “violinos”, sendo que, no seu corpo, sequer se notam marcas de suas picadas.Elaine  admira-se  sendo a única pessoa da casa a gozar de um bom sono, livre das incômodas muriçocas. Outras coisas surpreendentes, então, sucessivamente acontecem... Elaine e Ava, amigas inseparáveis, trocam entre si segredos e preocupações; Elaine confessa à amiga os inexplicáveis acontecimentos, inclusive seu encontro com uma estranha mulher que troca com ela um diálogo premonitório e assustador.Sempre acompanhada de Ava, uma fiel escudeira, Elaine passa a viver peripécias, transforma seus conceitos, sofre ameaças...Miguel Carqueija em”PODEROSA”, vem mostrar, mais uma vez, ser um mestre no suspense, conduzindo seus leitores, pelos caminhos da ficção, a uma cruzada de emoções. Ao criar seus personagens, Miguel Carqueija os dota com delicadeza e fidelidade, levando-os, finalmente, ao questionamento do porvir...Para mim, a leitura da novela “PODEROSA”, foi um inegável prazer; depois da aventura de percorrer o imaginário de Miguel Carqueija, levo-me  a  repetir o enunciado de Giscar Otrebling:

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“Ler é desnudar cada palavra, cada frase, cada parágrafo, cada texto... para descer às  profundezas da linguagem e fruir o belo.

                                                                                   

Hortencia de Alencar

Mineira, de Belo Horizonte, aprecia  a manifestação do belo tanto na natureza como nas artes.Escritora de contos e poemas.

  

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INTRODUÇÃO

O MISTÉRIO DOS PERNILONGOS

Era uma sufocante noite de verão e eu, imersa numa cama que mais parecia um forno, sentia-me dolorosamente agoniada, vestida com uma camisola curtinha e, não obstante, morta de calor. Aflita eu me revirava sobre o lençol suado, sem saber o que fazer para obter um alívio. Os meus pais não eram gente de recursos e com certeza não poderiam adquirir aparelhos de ar condicionado para cada quarto habitado, em consequência não compravam nenhum. Eu tentava me arranjar com um mero circulador, e não aguentava colocar sequer um lençol levíssimo sobre o meu pobre corpo. Mas, ai! Assim também não conseguia dormir, porque volta e meia o violino de um mosquito vinha azucrinar os meus ouvidos. Eu procurava cobrir pelo menos os pés, visto que os mesmos, alvos favoritos dos pernilongos, já coçavam horrivelmente, com aquelas empoladuras tão incômodas. Eu, coitada, de vez em quando levantava, acendia a luz e procurava alguma daquelas muriçocas que pousasse desprevenida numa parede; mas naquela noite as pragas estavam todas muito espertas. E a noite ia passando e eu não dormia.

“Meu bom Deus”, pensei amargurada, “isso não é vida. Eu tenho só treze anos. Se eu viver até os oitenta e três, serão mais setenta anos de picadas?”

Apaguei a luz e tornei a deitar, desesperada. Malgrado o calor insuportável puxei o lençol até as orelhas, sabendo que não o aguentaria por muito tempo; e desejei de todo o coração, murmurando:

— Por que vocês, mosquitos, não vão embora por hoje? É só sairem pela grade da janela. Afinal vocês já me picaram bastante por essa noite. Já chega, não é?

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Suspirei e fechei os olhos, buscando dormir com ou sem espetadelas dos osquitos. Logo depois atirei longe a coberta, pois o calor me abafava. Aguardei conformada o som do violino.

Mas ele não veio.

O incômodo das picaduras logo cessou, e nenhum inseto voltou a me aborrecer. Pelo resto daquela noite eu dormi como um anjinho.

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CAPÍTULO 1

PERPLEXIDADE

Na manhã seguinte as pessoas da casa queixavam-se dos mosquitos, menos eu, cujos empolados já haviam sumido.

No fundo eu me achava espantada com aquilo tudo mas não podia refletir em paz, numa casa onde existiam mais seis pessoas e dois animais de estimação.

Eu era uma garota introspectiva por natureza. Naquele dis, por alguma razão obscura, esse elemento de meu caráter encontrava-se mais acentuado. Eu passava creme de amendoim numa torrada enquanto a mamãe, que se encontrava em férias, notando qualquer diferença observou:

— Está aborrecida com alguma coisa, Elaine?

Não era bem isso. Elaine Montenegro não estava aborrecida, estava incomodada com a sensação de que qualquer coisa se achava errada no universo até então bem ordenado. Eu suspirei e respondi vagamente que não, e nesse momento senti que o Polvilho, por baixo da mesa, farejava os meus dedos dos pés, e eu era a retardatária na copa. Ele esperava alguma coisa de mim e eu lhe passei uma torrada redonda que ele abocanhou, retirando-se satisfeito. Olhei-o enquanto se afastava e minha mãe ria, no íntimo eu gostara daquela interrupção. Qualquer coisa me dizia que eu precisava entrar em mim, refletir no que tinha acontecido.

Além disso uma enxaqueca começava a me latejar na vista direita. Pensei em tomar uma neosaldina.

Eu também me encontrava em férias. Levantei-me, toquei o lado de mamãe e observei:

— Vou te ajudar na louça e depois vou ficar um pouco no quarto.

— O Raul vem hoje aqui?

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— Só bem mais tarde... — e sorri, pensando nele.

Meu primeiro namorado...

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Eu nunca fui dada a controlar as pessoas pelos seus fones de bolso, ou ser assim controlada. Não sabia onde Raul estava e nem me interessava; ele vinha me visitar mais tarde.

Uma vez em meu quarto eu pretendia pensar um pouco, mas por outro lado isso já me parecia uma rematada tolice. Pensar em que? Nos mosquitos? Resolvi ligar a televisão, embora sem muita esperança de que houvesse qualquer coisa que prestasse.

Fui girando os canais com o controle remoto. Como já esperava, nada de interessante. Uma partida de futebol, um programa de culinária, uma mesa-redonda sobre algum assunto obscuro, um desfile de modas, um casal que se beijava...

O que?

Aquele casal... aquele garoto...

Raul!

Mas que história era aquela?

Até onde eu sabia o Raul não trabalhava em novelas de televisão. Poderia ser um sosia? Como para me desmentir a garota murmurou “Raul... Raulzinho querido...” entre um beijo chupado e outro.

Perplexa, estupefata, lembrei-me de reparar no canal... e era o 29, absolutamente vazio até ontem. Nesse ponto bateram devagarinho na porta e eu dei graças aos céus pelo meu hábito de preservar a privacidade,

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passando a chave. Lenora miou docemente, eu troquei de canal e desliguei o aparelho, e corri para abrir.

— Oi, vovô.

— Quer vir jogar damas comigo, Elaine?

— Ih, vovô, agora não, por favor. Estou de veneta, quero ficar um pouco sozinha.

— Ué, mas por que isso?

— Vovô, eu sou uma garota. Nós adolescentes somos difíceis de compreender, lembra? Jogue com a Augusta dessa vez.

— Está bem, vou ver se ela quer...

Ele se foi, eu me tranquei de novo e fiz um “ufa!” aliviado. Lenora aproveitara a deixa para sair do quarto e eu me vi realmente sozinha. Tratei de religar a tv e sintonizar o misterioso canal 29.

A cena já havia evoluído. Os dois pombinhos seguiam de mãos dadas por uma rua que parecia ser de Coapcabana e, minha Nossa Senhora, tudo era muito realista! Os ruídos, as imagens...

Liguei para a Ava. Detestava acessar celulares, mas aquilo era caso urgente.

— Oi, Elaine!

— Oi, Ava! Olha só, eu vou te fazer uma pergunta e você vai pensar que eu fiquei maluca!

— E qual é a novidade? — perguntou ela, maldosamente.

— Mas não comente com ninguém, por favor!

— Fale, mulher! Você está me deixando curiosa!

— Existe o canal 29?

— De tv aberta? É claro que não! Tem o 34 que é a Rede Vida, tem o...

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— Esquece. O 29 não existe então?

— Acho que nunca existiu.

— Está bem. Obrigada, Ava!

— Espere! Por que é que você quer saber disso? Estão inaugurando um novo canal?

— Acho que não. Depois a gente conversa, beijos!

Desliguei e retornei ao canal fantasmagórico bem a tempo de flagrar o seguinte e espantoso diálogo:

— E a sua namoradinha, Raul? A Elaine?

— Aquela chata? É uma santinha... uma boba... já quase não aguento com ela.

— Mas você vai estar com ela hoje, não é?

— Pois é... mas a mãe dela cozinha bem, sabe? Mas a Elaine é só para distrair. Não é como você...

Caramba... e aquela sirigaita devia ter quase o dobro da idade do Raul!

Desliguei a tv, sem suportar ver mais, deitei-me de bruços e chorei amargamente.

Ah, então é assim? Verá que não se brinca com os sentimentos de uma garota!

Mas, independente dos meus planos de trucidamento do namorado infiel, eu precisava encarar uma questão muito, mas muito estranha. Afinal, o que estava acontecendo comigo? Como é que eu podia espionar uma pessoa através da televisão e por um canal que não existia? Ou então, como é que eu podia dar ordens a insetos?

Então eu era dotada de poderes paranormais?

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CAPÍTULO 2

ELAINE INVESTIGA OS SEUS PODERES

Eu tenho poderes? Mas então de onde é que eles vêm?

Por que eu?

A televisão, pensei. Eu posso sintonizar um canal vazio e espionar outras pessoas? Outras, inclusive, afora o Raul?

Que tal a Ava?

Não é possível, foi o que pensei; eu estou mesmo ficando maluca. Mas o fato é que fui pé ante pé até o televisor, dispensando até o controle remoto, liguei-o e esperei; deixara-o no absurdo canal 29.

E lá estava a minha amiga Ava, em seu quarto, fazendo uma ginástica ao som de um “jazz”.

Agora eu não tinha mais dúvidas: existiam realmente poderes misteriosos dentro de mim! Mas qual era a origem deles? O alcance? E o que é que eu iria fazer com eles? O pânico me assaltou, deixando-me assustada. Ninguém podia saber disso! É muito perigoso ter aptidões sobre-humanas. Com certeza poderia até ser assassinada, se alguém achasse que eu era uma ameaça. A sociedade não gosta de mistérios, de superioridades ou de coisas que pareçam sobrenaturais. Pois não tinham destruído os aparelhos de física do Padre Roberto Landell de Moura?

Procurei testar os meus poderes recém-adquiridos. Concentrei meu pensamento no papai, mas a tela continuou mostrando a Ava. Então peguei no controle, sentei no chão, desliguei e, um minuto depois, liguei de novo.

Ava já não estava, e vi o meu pai ditigindo o nosso carro.

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Troquei de canal e retornei, pensando agora na mamãe. Inútil; papai continuava no “reality show”.

Então era isso. Para mudar a pessoa focalizada era preciso encerrar o circuito, recomeçar.

Naquela hora eu bem teria gostado de tratar somente do que me parecesse coisa séria. Infelizmente não poderia me furtar à seguinte questão: o que fazer com o Raul? Como eu poderia me livrar dele sem revelar a minha paranormalidade? Porque eu não queria mais aquele namorado, é óbvio.

Papai e mamãe diziam que eu era muito nova para namorar. Eu começava a achar que tinham razão. Falei para mim mesma, em pensamento, que de agora em diante deveria esperar pelo verdadeiro amor — aquele que fosse para sempre.

A melhor coisa a fazer, pensei então, será dar-lhe o bolo. Ele não vai me encontrar em casa e nem vai me localizar, porque eu desligarei o celular. Ah, como detesto ficar à mercê dos outros! Mamãe e papai não querem que eu desligue o celular, mas eu não nasci com celular!

Assim, na hora em que eu deveria estar em casa para receber o meu querido namoradinho, eu “azulei” sem dar satisfação a ninguém. Não queria que me localizassem, assim não fiz nenhuma visita. Saí pelas ruas, sem destino.

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CAPÍTULO 3

OS OLHOS DE ELAINE

Enquanto caminhava fui me aproximando da Praça Saens Pena. Ao passar em frente à Caixa Econômica um curioso pensamento atravessou o meu espírito:

“Que outros poderes eu tenho?”

Comecei a ficar com medo de mim, o que me pareceu uma forma de paranóia. Eu descobrira aquelas aptidões fantásticas por mero acaso. Como poderia identificar as restantes, se de fato existissem?

Estavam as coisas nesse pé, e eu observava os livros de um sebo de rua, quando a minha vista caiu sobre uma mulher alta, de roupa escura, que se detivera ao meu lado e ocupava-se examinando algumas lombadas.

Ela olhou de subito para mim. Era uma mulher bonita, alta e magra, morena, de cabelos lisos compridos e escorridos, pretos como alcatrão; os olhos eram verdes, felinos, o nariz romano. O olhar era agudo, penetrante...

A mulher voltou-se para a estante, tirou um livro de capa feia e velha e voltou-o para mim:

— Você gosta desse tipo de leitura?

Era um desses “verdadeiros tratados de São Cipriano”. O Padre Emílio já explicara no catecismo que São Cipriano teria sido um bruxo que se convertera. Os textos de bruxaria atribuídos a ele, se fossem autênticos, datariam de antes da conversão; mas provavelmente não eram autênticos.

Assustada com a pergunta insólita, fiz que não com a cabeça.

— Você é medrosa — respondeu ela. — É preciso ter a coragem de encarar, se deseja se iniciar.

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— Mas... mas eu...

— Quem sabe um dia você tenta?

Ela disse isso e se afastou, deixando-me embasbacada. Olhei para o livreiro, que parecia admirado; encabulada, afastei-me também, em sentido oposto ao daquela mulher misteriosa.

O que estava acontecendo comigo? Eu possuiria alguma aura sobrenatural, que uma bruxa poderia reconhecer só de ohar para mim? Carregava algum estigma?

Comecei a ter medo de permanecer na rua, como se estivesse sendo vigiada. Precisava fazer alguma coisa, por aquela região poderia ser vista por muitos conhecidos. Precisava me enfiar em algum lugar. Que tal um cinema? Mas eu detestava ir ao cinema. E o ingresso era muito caro. Internet? Nem pensar. Não me atraía. O que fazer, aonde ir?

Talvez, pensei, estivesse carregando um peso muito grande para uma só pessoa. Deveria desabafar com alguém?

Havia uma amiga a quem eu estav acostumada a fazer confidências: a Ava Spelta. Tinha a minha idade, cabelos e olhos muito escuros e uma boa vontade à toda prova. Dirigi-me à casa dela, e nas proximidades liguei de um orelhão. Ela estava em casa, a mãe havia saído, não era dia da empregada... maravilha.

Alguns minutos depois eu estava no quarto da minha amiga, sentada no carpete e, como uma japonesa, ela me ofereceu um chá de morango com biscoitos e torradas.

Contei-lhe tudo o que estava acontecendo comigo e mais, que começava a ficar apavorada. Ela me escutou atentamente e quase sem interromper, e eu sabia que não iria zombar de mim. Mas quando terminei ela falou algo que eu realmente não esperava:

— Elaine, eu sabia que existe algo diferente em você. Há anos que notei.

— Você notou? Mas o que pode ter sido?

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— Seus olhos. Eles brilham. Nunca falaram isso com você?

— Não, nunca me falaram. É sério?

— Você mesma nunca notou?

— Não, tenho certeza que nunca percebi isso. Mas você está certa do que diz?

— Tenho certeza absoluta. Já li que há pessoas luminosas, literalmente falando, e outras que emitem sombras. Não é fácil perceber tal coisa, mas em você eu sempre notei a luminosidade do seu olhar, que as outras pessoas não possuem. Eu, pelo menos, nunca vi mais ninguém assim.

Eu estava ambasbacada. Sentada perto á janela, Ava tocou-me carinhosamente o ombro:

— Por isso sempre fui a sua fã número 1. Eu sei que Deus te predestinou para alguma coisa importante. Só espero que você não venha a sofrer... muito. Porqie você vai sofrer. Mas pode contar comigo para o que der e vier.

— Puxa... oh, meu Deus!

Nós duas nos abraçamos.

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CAPÍTULO 4

O RETORNO

Ava telefonou para a minha casa e perguntou por mim. Atendeu o vovô — eu escutava na viva voz! — e com seu timbre meio rouco queixou-se:

— Ela não está! Ela desapareceu, e nem jogou damas comigo!

— Como, seu Ambrósio? Ela desapareceu?

— Ninguém sabe dela! O celular não atende e estamos todos preocupados!

— É mesmo? Mas não há de ser nada...

— Deus queira que não! Até aquele namorado dela apareceu aqui, tinha marcado com ela...

— É mesmo? O senhor diz o Raul?

— Eu não gosto desse moleque! Ele saiu daqui furioso, achando que nós sabíamos dela! É um tipinho muito antipático!

— Eu também acho, seu Ambrósio! Mas ele já foi embora?

— Já, tem mais de uma hora. E já foi tarde!

Dei um suspiro de alívio e peguei o fone.

— Oi, vovô, sou eu.

— Elaine! Você está aí?

— Estou sim. Desculpe o mau jeito, já vou pra casa.

— Você ouviu o que eu falei?

— Você está coberto de razão em tudo o que falou sobre o meu ex-namorado.

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— Ah, então foi por isso que você sumiu?

— Ora, vovô, não foi tanto tempo assim!

— Toma cuidado com ele! Não esquece o caso da Eloá!

Pensei naquele caso escabroso. Imaginei um ex-namorado possessivo e psicopata me sequestrando sob mira de arma e sustentando um cerco com a polícia, terminando por me matar. Mas eu não podia acreditar numa coisa dessas comigo. Eu reagiria.

Desliguei e voltei-me para Ava:

— Eu vou, querida. Vou voltar para casa.

— Vou contigo. Quem sabe o tipo está rondando por lá...

— Eu não acredito, ele não é tão ruim assim. Mas venha, gosto da sua companhia.

Ela trocou rapidinha de roupa, botou uma calça jardineira e um boné colegial, pegou a bolsa e saiu comigo. E eu ia pensando o que iria fazer da minha vida, dali por diante.

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Não foi nada agradável ser recebida por um Madson e um Valdo machistas e metidos a besta, que passando a frente de mamãe vieram me dar carão: “Onde é que a fedelha esteve?” “Já está pondo as manguinhas de fora? Como se atreve a sumir desse jeito?” Eu fiquei tão revoltada que nada falei por alguns instantes, o suficiente para que a Ava interviesse com indignação:

— Ora, calem a boca vocês dois! Vocês não passam de irmãos mais velhos! Não se atrevam a maltratar a minha amiga!

Eles ficaram meio sem ação e a mamãe então interferiu:

— Chega, vocês dois! Não estão vendo que temos visita?

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— Mas, mamãe — disse o mais velho, o Valdo — você vai deixar que a Elaine se comporte assim?

— Eu vou resolver esse assunto sem vocês dois! Me deixem a sós com as meninas!

Eles se escafederam e mamãe, olhando-me muito seriamente, observou:

— Espero que você peça desculpas.

— Desculpe tê-la preocupado, mamãe — concedi. — Mas eu tive as minhas razões.

— Dona Laura — interveio Ava timidamente — ela fez bem em sumir. Ela não quer mais ver o Raul. Ela não quer saber dele.

— Graças a Deus! — exclamou a mamãe, com as mãos postas. Eu fico muito feliz com isso!

— Por que a senhora não comunica isso a ele? Para poupar à pobrezinha o constrangimento...

— Você quer mesmo que eu faça isso, Elaine?

— Por favor – implorei. — E eu quero trocar de celular.

Polvilho, meu fox paulistinha, abanou a cauda alegremente.

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CAPÍTULO 5

PODERES CRESCENTES

Passei a ir com mais frequência à casa de Ava, cada vez mais a minha melhor amiga. Quando podíamos ficar sozinhas testávamos o meu poder de acompanhar as pessoas pela televisão. Eu também conseguia acompanhar animais, como o Polvilho. Ava estava fascinada, embora aqueles exercícios de “voyeurismo” que fazíamos me deixassem meio mal com a minha consciência.

Uma noite, porém, com a mãe já recolhida (e ela morava só com a mãe e os bichos de estimação) a minha amiga decidiu que eu deveria seguir mais adiante.

— Você não sabe explicar os seus poderes, não é, Elaine? Portanto você não conhece a extensão deles. Por que não fazemos uns testes?

— Mas, Ava, o que eu posso fazer? Não me imagino gritando uma palavra mágica, que nem a Hikaru, e lançando raios com a palma da mão. Aliás, nem quero fazer uma coisa tão assustadora!

— Elaine, veja bem — disse ela, afagando a Manteiga, sua gatinha branca — os contos de fadas que falam em palavras mágicas têm a sua lógica. Um poder só pode ser exercido conscientemente pela vontade e a vontade tem de ser expressa pela palavra, nem que seja uma palavra interior.

— Bem, Ava. O que você sugere então?

— Que tal se eu pegar uns barbantes e te amarrar de pés e mãos?

— Ué! Para que você vai fazer isso?

— Mas é evidente, burra! Você vai ver se consegue desatar os nós com seu poder mental!

— Eu não vou conseguir fazer isso...

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— Nâo afirme sem tentar. Se você pode pedir aos pernilongos para não picá-la e ser atendida, eu acho muito mais fácil conseguir que os nós se desfaçam!

— Está bem. Pode tentar. Vai amarrar as minhas mãos para a frente ou para trás?

— Para trás. Serviço completo, entende?

Minutos depois eu estava recostada nos travesseiros, sobre a cama de Ava, com os pulsos e os tornozelos amarrados. Ava sentou-se numa poltrona e afastou o olhar de mim.

Eu fechei os olhos, tentando relaxar; e apesar de um certo ceticismo pus-me a falar com a mente:

“Por favor, barbantes, desfaçam os seus nós. Quero poder me levantar e andar.”

Não custou muito e senti os laços afrouxarem. Movi então os pulsos e os pés – e estava livre. Saí da cama e chamei:

— Pronto, Ava!

Ela veio ao meu encontro e me abraçou:

— Eu sabia que você ia conseguir, amiga! E esse é um ótimo poder! Nesse tempo de sequestro... se te amarrarem você se solta... se te trancarem, quem sabe você abre as fechaduras?

— Estou começando a ficar assustada comigo mesma.

— Bobagem, Elaine. Esses poderes devem é tranquilizá-la, dar-lhe segurança, auto-confiança.

— Bem... se você diz...

— Nós temos, é claro, de investigar mais. Seria ótimo se eu pudesse acorrentá-la ou algemá-la!

— Cruz! Você já está parecendo uma adepta de sadomasoquismo...

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— Não tem nada a ver uma coisa com outra, tonta. É só uma investigação! Se você consegue se livrar de cordas e barbantes, deve ser capaz também de abrir algemas e correntes! Mas eu não posso fazer esse teste agora, não disponho de algemas e correntes!

— Para falar a verdade, Ava, se você dispusesse de tais coisas eu ficaria preocupada,

Ava riu com gosto. Era uma boa menina e uma amiga muito sincera.

O teste seguinte foi com a fechadura do quarto dela; depois experimentamos o trinco da varanda. Os resultados foram então mais impressionantes, visto que a lingueta e o trinco se moveram.

Eu não podia ser presa. Possuía o dom da telecinese.

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CAPÍTULO 6

A CONVERSA

Quando tudo isso ficou bem claro Ava teve ua conversa muito séria comigo. A essa altura ela e eu estávamos tão amigas que revezávamos visitas longas, de passar a noite; e certa noite de sábado, uma semana antes do Carnaval, estávamos juntas em meu quarto. Para isso fôra preciso providenciar outra cama, não havia muito espaço mas o fato é que Ava queria o silêncio da noite para trocar confidências comigo.

— Meus irmãos andam desconfiados de qualquer coisa... — comecei, mas algo como uma campainha interna soou dentro de mim. Levei a mão à boca, e ante o “Mas o que...” iniciado por Ana eu fiz um “shiu!” e sem nem saber porque dirigi-me até a mesa de cabeceira, afastei-a e localizei o microfone sem fio ali fixado por adesivo crepe.

— Meu Deus, o que é isso? — indagou Ava.

Eu retirei a bateria do aparelho e sentei-me na cama, perplexa e amedrontada.

— Minha própria família — lamentei.

— Sua família é grande. Quem poderá ter feito isso?

— Pode ser coisa de Valdo e Madson. Mas, Ava, eu ocultei tão bem os meus poderes! Eles não podem ter desconfiado de nada!

— Mas é claro que não, minha amiga. Eles estão é maldando o nosso relacionamento!

Fez-se luz no meu espírito.

— Então é isso. Nos tempos atuais as pessoas levam tudo para o lado do sexo. Para eles é suspeito que você e eu durmamos no mesmo quarto.

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— Bom, deixa eles pensarem o que quiserem — e Ava tocou gentilmente o meu ombro. — O que importa é o que eu preciso lhe falar sobre os seus poderes!

Ela se recostou em sua cama, aconchegando-se nas almofadas, enquanto eu fazia o mesmo na minha para ouvi-la; e Polvilho, na minha cama, se enroscava em meus pés. Naquele estranho momento Ava pareceu falar como uma profetisa:

— Elaine, querida Elaine, até aqui nós temos apenas investigado os seus poderes e ainda não sabemos até onde é que eles vão. E, no entanto, não podemos ficar só nisso!

— Então, Ava, vamos ter que chegar aonde?

— Nós precisamos descobrir porque você tem esses poderes!

— Você está de brincadeira comigo. Eu não tenho a mínima idéia de como solucionar essa questão!

– Nem eu. Então nós vamos ter que ser intuitivas. Como as mulheres costumam ser, mais que os homens. Você nunca ouviu dizer que a mulher é mais mística que o homem?

— Eu não, mas posso acreditar nisso.

— Pois bem. Eu só enxergo uma explicação para as suas habilidades: você é uma iluminada, uma escolhida.

— Eu, Ava? Mas escolhida por quem e para que?

— Você veio ao mundo com uma missão. É claro que você é uma enviada de Deus para combater o mal.

– Você está sonhando. Eu talvez seja apenas uma mutante.

— Que nada! Você deve ter assistido os X-men... mas eu é que não acredito nisso! Os seus poderes não são orgânicos, são sobrenaturais!

— Você acha mesmo, Ava? Então o que é que eu tenho que fazer?

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— Nada. Espere os acontecimentos. Em breve acontecerá alguma coisa e você terá de utilizar conscientemente o seu poder. Você verá.

A conversa foi interrompida por batidas na porta; Polvilho pulou da cama latindo. Eu fui ver: era o meu avô, trazendo bolinhos de bacalhau recém aprontados. Como já estávamos recolhidas, tomei aquilo por simples bisbilhotice.

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CAPÍTULO 7

EXCURSÃO

“Brevemente as aulas recomeçarão”, eu pensava, feliz diante da expectativa de reencontrar colegas a quem amava. Muitos estavam viajando, mas na minha casa nem se falava nisso. Foi preciso Ava chegar para convencer os meus pais que a deixassem me levar numa excursão ao Parque Nacional de Teresópolis, através da subsede de Guapimirim.

— Eu nunca viajo! Pensem bem, vocês nunca me levam a parte alguma — implorei. — Deixem que eu vá.

Era só para passar os dias de carnaval. A mãe de Ava, Estela, estava disposta a me levar. Era uma pessoa de recursos, ao contrário dos adultos da minha família, prontos e endividados de forma permanente. O fato de jamais viajarem tornava-os pouco propensos a imaginar sequer que os filhos viajassem. Foi o vovô Ambrósio afinal quem resolveu a situação, intercedendo pela neta:

— Deixem que a menina vá, ora bolas! Vocês já conhecem a Dona Estela, ela é gente fina. A garota precisa sair um pouco desses ares poluídos do Rio...

Vovôs às vezes ainda possuem grande ascendência sobre as famílias. Papai e mamãe cederam. Os “queridos maninhos” não cederam, odiaram a idéia, mas não detinham voz ativa. A irmã ficou indiferente, na aparência. E assim eu fui, eufórica e entusiasmada.

No ônibus, embora sentadas lado a lado, não podíamos trocar confidências comprometedoras. Havia muita gente perto, inclusive Estela, em frente a Ava. Esta ia me contando as maravilhas do parque e eu prestava grande atenção às suas palavras:

— Você deve aprender como se ergue uma barraca, entre outras coisas. E como tem um mínimo de conforto... lá perto tem uma vendinha, a gente pode comprar ovos e fritá-los...

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“Você pode andar descalça, mas não no mato: há cascavéis. Aliás é bom evitar atravessar o mato. E quando tomar banho no tanque, fique atenta... se o tempo muda os guardas avisam para as pessoas se colocarem em segurança. É o risco da cabeça d’água.

— Cabeça d’água? Que coisa é essa?

— É uma avalanche de água, que vem da montanha e pode arrastar as pessoas, matar. Ela acontece no rio tranquilo: é um fenômeno meio repentino, como o tsunami que pode atingir praias em geral tranquilas.

– É o poder da natureza, Ava... de Deus, enfim.

— Pois é. Mas Deus há de nos livrar da cabeça d’água. Não precisa se assustar, tem uma boa vigilância disso.

— Vamos tirar muitas fotos, não é?

— Nem fale. Vamos nos esbaldar.

.....................................................................................................................

Para mim a mudança de ares era maravilhosa. No parque respirava-se melhor e não havia poluição sonora. Viam-se muitos casais, crianças. O verde e cores exóticas, como a açafrão, predominavam. Havia passarinhos em linda liberdade, esquilos, terra e mato, flores e árvores... sair daquela selva de pedra do Rio de Janeiro era uma bênção. Eu me lembrava, penalizada, de uma pobre garça branca que costumava ser avistada na poluição do Rio Maracanã. Há tempo eu não a via. “A pobrezinha deve ter morrido intoxicada. Por que ela não se mudou para cá?”, pensei então.

Naquela tarde eu e Ava demos um passeio por aqueles caminhos, conversando animadamente.

— Quem sabe — disse de repente Ava, mudando completamente o assunto de que tratávamos — você descobre mais algum poder com a mudança de ambiente?

— O que? Ah, eu até já havia esquecido os meus poderes...

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— Mas não se preocupe muito com isso, relaxe.

Por alguma razão a conversa esfriou. Eu subia o caminho agora silenciosa, cabisbaixa, olhando os dedos dos próprios pés. E por alguma outra razão, porém, ergui o olhar, bem a tempo de avistar a mulher que vinha em sentido contrário, a mulher vestida de preto, que já havia encontrado antes.

Nós nos cruzamos e trocamos olhares rápidos. A mim pareceu que a outra queria me falar; mas a presença de Ava provavelmente a inibira.

Ava percebeu qualquer coisa.

– O que foi, Elaine?

— Essa mulher... eu já a vi antes.

— Deveras? De que maneira?

Narrei-lhe o estranho encontro de semanas atrás.

— Devemos tomar cuidado — observou Ava judiciosamente.

— Mas o que você acha que pode haver?

— Sei lá. Lembre-se de “Heroes”. Pode ser um Sylar da vida... (*)

— Você mesma me falou que eu não sou uma mutante, portanto não pode existir um Sylar atrás de mim.

— Eu falei por falar. Mas se existem bruxas, tome cuidado com elas. Lembre-se de que esses cultos druídicos e outros da Europa antiga são puro paganismo.

— Não me apavore, querida. Eu li uns contos de H.P. Lovecraft e fiquei pensando nessas histórias de maldição, de seres tenebrosos de dimensões ocultas...

— Bom. Vamos ficar de olho, por enquanto.

De repente eu estaquei. Passavam carros lentamente, mas não eram eles que chamavam a minha atenção de adolescente.

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Mas eu estava numa espécie de súbito transe. Os meus olhos estavam parados. Alarmada, Ava segurou-me o braço e depois sacudiu-me:

— O que houve com você? Fale comigo, por favor!

— Eu acho... que devemos entrar na mata.

— Mas por que?

— Tem alguém precisando de ajuda.

— Você deve saber.

— Mas as nossas pernas estão sem proteção...

— Elaine, peça às cobras para não nos picarem. Não deu certo com os mosquitos?

— Está bem, vamos.

E lá fomos nós, sem ligar que umas poucas pessoas que passavam estranhassem aquela atitude. Nã éramos mateiras inveteradas e entrar no mato daquele jeito éra-nos desagradável, todavia resolvi invocar meus poderes já com crescente confiança e pedi aos animais daninhos que não nos molestassem.

— Tem alguma idéia do que é que nós procuramos? — indagou Ava.

— Nenhuma, só sei que vamos encontrar.

Assim fui afastando galhos e ramos e por fim achamo-nos numa área mais aberta. Ava segurou meu braço direito:

— Ouviu alguma coisa?

— Um gemido.

— É lá adiante, vamos!

Numa nesga de terra, meio encostado a uma bananeira, achava-se um rapaz hirsuto, de bermudas e mochila de couro, com um corte na

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fronte e uns óculos de fundo de garrafa caídos no capim, a pouca distãncia. Ele se movia hesitantemente, como se começasse a despertar.

— O que aconteceu com você? — perguntou Ava, abaixando-se.

Em vez de responder, ele puxou para a frente sua bagagem já aberta e remexeu em papéis e objetos.

— Ela levou... — murmurou, desanimado.

— Quem levou o que? — indaguei.

— Vocês quem são?

— Estávamos só passando...

— Por aqui?

— Seu ferimento está feio. Você vai ter que levar pontos e depressa, antes que isso infeccione — lembrou Ava. — Vem, nós te ajudamos. Você consegue se levantar?

— Eu acho que sim, me ajudem.

Nós o seguramos pelas axilas e o pusemos de pé.

— Quem foi que te feriu? — Ava estava intrigada.

— É melhor vocês não procurarem saber, esse assunto é perigoso.

Foi então que eu falei uma coisa que até a mim surpreendeu:

— Eu estou pensando se você não foi agredido por uma mulher alta, magra, na verdade muito alta e muito magra, de olhos verdes, de cabelos muito pretos e compridos...

O rapaz estremeceu.

— Como é que você sabe disso?

— Ela é uma bruxa, não é?

— Mas como vocês conhecem a Frida?

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— Ah! — creio que fiz uma cara de esperta. — Então esse é o nome dela!

— Como? Vocês não sabiam?

— Sabemos que ela fez isso com você — disse Ava. — Como você se chama?

— Alfredo — respondeu ele, a contragosto.

— E para onde te levamos? Onde é o seu acampamento?

— Eu não estou acampado, tenho um carro.

— Mamãe já foi auxiliar de enfermagem. Vamos para o nosso acampamento, ela fará os curativos.

— Mas caluda! – lembrei. — Não é bom envolvermos a sua mãe nisso. Afinal, parece que o nosso amigo não quer divulgar muito o que lhe aconteceu...

— Não, pelo amor de Deus — protestou ele fracamente. — Isso não pode ser divulgado...

Ava estacou.

— Temos de anotar os seus telefones, endereço, internet, tudo.

— Mas para que isso? Quem são vocês afinal?

— Não discuta, tonto. Se não quer que os adultos saibam que a Frida te bateu e te roubou, vai ter que confiar na gente; e tenho dito.

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CAPÍTULO 8

NA NOITE ESCURA

— Para um adulto, ele é muito apavorado — comentou Ava, intrigada. — O que será que está escondendo?

— A sua mãe também ficou intrigada. Mas isso, Ava, é a própria síndrome da vítima.

— O que é que você quer dizer com isso, Elaine?

— Simplesmente, que uma vítima não gosta de dar queixa ou de pedir ajufa. É dar parte de fraca, entende? A revelar uma coisa humilhante, prefere silenciar. E não é só isso, tem também a culpa de você ser vítima.

— Hein? Essa eu não entendi.

— É um tipo de lógica que funciona mais ou menos assim: “Não posso denunciar que me bateram, ou que me ameaçaram de morte, porque vão querer saber o que eu fiz para me baterem ou me ameaçarem de morte.” Está entendendo? É muito comprometedor se alguém te bater, é sinal de que você fez alguma coisa errada, aí você não fala nada.

— Não necessariamente — protestou Ava. — Então se eu for agredida, vou achar que a culpa é minha mesma? A mim parece maluquice.

— Entenda dessa maneira: poucas pessoas são inocentes. Esse nosso amigo, por exemplo: se ele não fez nada de mais, por que não conta á gente? Quando duas pessoas brigam, não quer dizer que uma seja má e a outra boa; as duas podem ser más.

— É, pode ser...

Observei, fascinada, o vôo de uma gigantesca borboleta de cor predominantemente azul-turqueza e prossegui:

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— Talvez não devêssemos nos meter nisso. Afinal, ele não quer a nossa ajuda.

— Mas você suspeita dessa muher, não é?

— Há alguma coisa tenebrosa nela, disso eu tenho certeza.

— Você tem alguma idéia do que nós vamos fazer?

Nisso fomos chamadas pela mãe de Ava.

— Talvez só possamos agir na cidade — observei. — Aqui dá muito na vista.

........................................................................................................................

Fomos dormir sem ter tornado a ver aquelas pessoas. Eu e Ava ficamos na mesma barraca — oh, eu tive que aprender como é que se monta uma tenda, Ava e Estela eram craques nisso! Campismo... eis algo que eu precisava conhecer melhor.

Ava veio deitar comigo, após darmos boa-noite e beijarmos Estela — aliás, uma mãe muito simpática.

— Tem certeza que você não quer ficar com sua mãe? — perguntei, no fundo preferindo que ela ficasse comigo.

— Não se preocupe, Eliane. Mamãe é cobra criada. Não quero te deixar sozinha, afinal você é neófita nisso.

— É... tem razão...

— E aí? Está gostando?

— Estou adorando. Nem sei como te agradecer.

— Mas o que é isso, nós somos ou não somos amigas? Aliás, somos como irmãs.

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—Eu também penso assim, Ava. Minha maninha...

— Mudando de assunto... e a tal bruxa, o que é que nós vamos fazer?

— Tenho a impressão de que hoje nós não podemos fazer mais nada.

— Se aquele medroso confiasse em nós... se nos tivesse dito o que é que a mulher roubou...

— Ava, eu acho que posso descobrir. Basta segui-lo pela televisão.

— Quando nós voltarmos, você diz? É uma idéia...

— Posso tentar com ela e com ele. Pena que vamos ficar três dias aqui ainda...

— Não há nada que você possa fazer, mesmo aqui?

— Infelizmente não dá nem para passar mensagens, já que por aqui não existe internet.

— E se telefonássemos...

— Ava, nem pensar. Isso aqui é uma tenda. Sua mãe pode perceber...

Tomei porém uma decisão, quando minha amiga resolveu dormir. Saí da tenda, pensando em dar um giro pela vizinhança. Começava a me achar em local inseguro. Afinal que proteção havia numa barraca? E se aquela mulher resolvesse tentar alguma coisa contra mim, achando que eu podia ser um estorvo em seu caminho? Certo, eu estava viajando um pouco, mas de repente já não me sentia à vontade e desejava voltar para casa.

Resolvi caminhar um pouco pela noite, calçada de pantufas. Queria testar os meus poderes, ver se eles poderiam me ajudar naquela hora.

Mas eu não me sentia uma vidente. Não me vinha nenhuma iluminação, nenhuma revelação sobre os perigos que pudessem nos ameaçar.

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Subito ouvi passos de saltos femininos e senti medo.

Lá surgiu ela, de uma curva do caminho. Bem mais alta do que eu e com a sua majestade assustadora.

— O que deseja? — perguntei, mal escondendo o meu terror.

Ela respondeu gelidamente:

— Menina, uma coisa é não querer se iniciar; eu poderia deixá-la em paz. Outra coisa, bem diferente, é intrometer-se nos meus negócios. Isto não será saudável para você.

– Eu me meti... nos seus negócios?

— Está perigosamente perto disso. Você e sua amiguinha tiveram muita conversa com aquele sujeito.

— Ele estava ferido e tivemos de socorrê-lo.

— Somente isso?

— Nem sabemos o que você tomou dele — atirei com audácia, para ver se pescava alguma coisa. — Ele não quis nos dizer!

— Isso não é da conta de vocês. Se insistirem, poderão morrer.

— Deixe a minha amiga fora disso — falei, indignada. — Ela não tem poder nenhum, só eu.

— Então não a arraste para aventuras temerárias. Por que não aceita o meu convite? Estará mais segura como minha aliada do que como minha inimiga.

— Não servirei ao demônio, se é isso que você espera de mim.

— Acha mesmo que é isso?

Não respondi. Ela tinha toda a pinta de satanista; fiquei então na minha, esperando poder descobrir mais coisas. Ela então olhou-me entre irada e sarcástica e tomou uma decisão:

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— Está bem. Vou embora. Não costumo dar três avisos, portanto espero não encontrá-la de novo.

— Como eu poderia imaginar... que a encontraria aqui no parque?

— As coisas não acontecem por simples coincidência — e assim dizendo ela virou as costas e sumiu-se na escuridão.

E eu fiquei por alguns instantes ali estática, até ter a certeza da sua ausência.

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CAPÍTULO 9

FATÍDICO REENCONTRO

Quando retornei à barraca percebi que Ava dormia como um anjinho, e foi com muita pena que resolvi acordá-la.

— Que foi, Elaine? O sono estava tão gostoso!

— Ava, nós vamos embora.

— Hein?

— Amanhã você vai convencer a sua mãe e nós voltamos ao Rio. O rapaz já foi, lembra? Ele está correndo perigo e eu vou descobrir do que se trata. Mas não aqui, porque nós não estamos com televisão.

— Elaine... isso é perigoso! E nós vamos perder esses dias de repouso? Mamãe não vai gostar nada!

Então eu contei a ela da ameaça proferida por Frida.

— Será que ela ficou apenas para dar esse aviso?

— Talvez ela já não esteja atrás do Alfredo, pois tomou alguma coisa dele.

— Elaine... ela desconfiará mais se nós formos agora.

— Não necessariamente, vai pensar que ficamos assustadas.

— Por favor, Elaine. Aguarde. Lembre-se de que isso é um segredo nosso. Nem mamãe pode saber.

— Mas Frida sabe.

— Mas ela é uma bruxa e não pode espalhar nada sobre você. Ela também se esconde. Você veio como convidada e se forçar mamãe a voltar vai causar má impressão. É de bom senso ficar até o fim do carnaval.

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Tive de reconhecer que Ava estava sendo sensata e franca. Só me restava rezar para que Alfredo estivesse em segurança.

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Na noite de Quarta-Feira de Cinzas eu liguei minha televisão já bem tarde e baixinho, no canal 29. Esperava encontrar o Alfredo, mas por alguma razão ele não apareceu. Aliás, a tela estava em branco. Desliguei e liguei de novo, pensando em Ava. E lá estava ela, já deitada na cama, sua gata lá também enroscada. Envergonhei-me de estar fazendo isso e tentei de novo o Alfredo. Como nada apareceu, entendi que havia alguma barreira ou faltava algum quesito para que o meu poder se manifestasse.

No final das contas eu não sabia direito quem ele era. Talvez o nome fosse falso. Mas eu tinha telefone e endereço dele; deveria procurá-lo?

Ava estava esperando o resultado daquela minha tentativa. Depois, tentaríamos juntas.

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No dia seguinte, após as aulas, eu e ela “passeávamos” e tentávamos ligar para Alfredo. O seu celular, porém, só caía na caixa de recados — e tanto eu como Ava tínhamos ojeriza em gravar mensagens.

Vocês podem achar que Ava era um louquinha em me acompanhar. Na verdade eu nem precisava lhe pedir: pusera na cabeça que se tornara em escudeira de uma heroína, e isso a entusiasmava.

— O que você acha — falou ela — vamos na casa dele?

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— Vamos ter que tomar ônibus, acho que as nossas mães podem estranhar a demora...

— Elas têm nossos celulares. Qualquer coisa a gente avisa que vai demorar...

Bem, nós andávamos por uma rua transversal quando as coisas começaram a acontecer. Não víramos o carro escuro de janelas enegrecidas que vinha nos acompanhando. Súbito ele parou um pouquinho adiante à nossa direita e dois homens saltaram com grande pressa, pelas portas esquerdas.

Um deles era o Raul e ambos portavam armas.

Ava se agarrou em mim.

— Você... — murmurei.

— Até que enfim, safadinha. Entrem logo, as duas — e ele indicou o banco de trás, com a pistola.

— Não se atreva... — disse Ava, que o conhecia ligeiramente.

— Entrem as duas!

Os dois falavam ao mesmo tempo. Eu e Ava fomos empurradas para o banco de trás, Raul sentou à minha esquerda e seu amigo deu a partida rapidamente, sem que pudéssemos pedir socorro. Havia poucas pessoas na rua. O sequestro teria sido visto? E quem acaso tivesse visto, chamaria a polícia?

Raul tinha 17 anos. O outro, porém, parecia adulto. Deus, dias atrás eu me imaginava sendo sequestrada por um ex-namorado ciumento, e agora acontecia, e Ava ia de roldão comigo!

— Raul, o que você quer? Já desfiz com você!

Ele me deu uma bofetada

— Você não falou comigo, sua traidora! Você deve estar com outro!

— Ela não está — interveio Ava. — Ela só não quer ficar com você!

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— Ah, ela não está com outro? Quem sabe está com outra então? Logo saberemos isso!

— Seu louco — falei. — A polícia vai pegar vocês! É dia claro...

— Quer apostar que ninguém viu? — falou o outro, sarcástico.

— Quem é o seu amigo? — indaguei ao Raul.

— Isso não interessa.

— E o que você quer?

— Que você seja minha. Não aceito ser chutado. Uma mulher não faz isso comigo. Posso até te chutar, mas depois de nós transarmos.

— Raul, eu sou virgem.

— Eu não acredito nisso mas, se for, vai logo deixar de ser.

— Não se atreva — disse Ava, novamente.

O veículo seguia em alta velocidade. Olhei para o sujeito da frente: tinha traços do Raul e poderia ser um irmão mais velho.

Ava me beliscou. Percebi o que ela queria dizer: “Elaine, é hora de usar os seus poderes!”

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CAPÍTULO 10

INTERFERÊNCIA

Eu já havia pensado nisso, mas uma sensação de incredulidade me dominava. Aquilo poderia realmente estar acontecendo comigo? E será que aqueles dois sujeitos não mediam as consequências dos seus atos?

Mas eu estava cansada de tomar conhecimento, pelos noticiários, de coisas desse gênero — mesmo de coisas anteriores à minha existência, como o caso de Doca Street. Apesar de toda a emancipação feminina, a violência do homem contra a mulher — baseada na idéia machista de que o homem é o dono da mulher e pode fazer o que quiser com ela — parece estar aumentando a olhos vistos.

Então eu tentei ponderar:

— Raul, vocês vão ser presos!

Ele riu debochando e respondeu:

—Pode ser. Mas antes disso eu posso te matar...

— E para onde está nos levando?

— Para um lugar escolhido... e cala a boca!

— Raul, tem um carro seguindo a gente!

Nessa altura devíamos estar pelo Maracanã e seguindo em direção a Vila Isabel, mas Ava e eu de tão aflitas nem prestávamos atenção no trajeto. A intervenção inesperada do motorista deixou Raul meio aturdido e, em altos brados, ele declarou que devia ser engano pois, afinal, “ninguém iria seguir a gente!”

Ninguém mesmo? Com as mãos de Ava apertando nervosamente o meu braço direito, olhei para o espelho retrovisor. Vi um carro azul, Mustang ou coisa parecida, e subitamente, sem aviso, o meu poder se

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manifestou na forma de uma espantosa visão a distância. “Frida”, pensei. Eu a via como uma inimiga, mas naquela hora significou uma esperança.

— Acho que está nos seguindo sim, Raul.

— Não diz besteira, Cosme!

Além de vários palavrões que acrescentou, com isso o Raul entregou seu parceiro. Mas por que o meu ex-namorado tremia nas bases ante a simples idéia de um obstáculo? Ele era tão inseguro assim? Mas quando o Cosme resolveu acelerar — e eu detesto seguir em veículos a grande velocidade — resolvi que era hora, sim, de agir.

“Pare de funcionar”, ordenei ao carro.

Não fui atendida de pronto. Entretanto, concentrei minha vontade e meu pensamento no motor e logo o carro parou, com enorme surpresa de nossos raptores. Raul ainda se virou para nós, apontando a arma, mas eu já ordenara que ela também enguiçasse. E que a porta ao lado de Raul abrisse.

— Me ajude, Ava!

Sem me erguer usei o meu corpo para empurrar o Raul, que pareceu ficar sem ação de tanto espanto; entendendo a minha intenção Ava também empurrou e juntas nós jogamos o Raul para fora, fazendo-o estatelar-se no chão. Cosme se voltou e tentou nos agarrar, mas Ava meteu o dedo no seu olho, à moda dos Três Patetas, e nós duas saímos incólumes, enquanto o carro de Frida parava logo atrás. Não sei se podíamos ter escolhido uma rua mais deserta.

— Entrem no meu carro! — ordenou Frida, seca. Agora ela estava de calças compridas e blusão de couro, tudo negro e bem assustadora. Raul ergueu-se confuso e ela o empurrou com violência sobre o Cosme que acabara de sair e não tivera tempo de se firmar nos pés; atrapalhando-se um no outro, caíram ambos no chão.

— O que você quer? — berrou Raul, esganiçado.

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— Seus imbecis, sei tudo sobre vocês. Deixem as meninas em paz ou terão problemas e dos mais sérios.

Eles tentaram usar as armas, que falharam. Frida sorriu, zombeteira:

— Não conseguirão nada. E vocês duas, entrem!

Puxei Ava pela mão e nós duas entramos no banco de trás. Frida retornou e, como tivesse deixado o veículo engrenado, avançou num instante, partindo um dos espelhos do outro carro.

— Gente, você fez isso de propósito! — exclamou Ava, sacudindo os cabelos. Ava, que os pais assim chamaram em homenagem a Ava Gardner e era tão bela quanto a atriz do passado. Mas, além de bonita, minha amiga também era inteligente, mais que eu a meu ver. Concordei silenciosamente com o que ela dizia e Frida confirmou:

— Só consegui improvisar isso, mas queria ter dado mais prejuízo aos cretinos. Não tenho paciência com essa gente.

— Queremos lhe agradecer — respondi. — E falo com sinceridade.

— Evite se meter com esse tipo de gente daqui para a frente.

— Precisamos registrar queixa na polícia — lembrou Ava.

— Negativo. Não contem comigo, pelo menos. Isso só iria jogar lenha na fogueira. Eu assustei esses dois e acho que não voltarão a incomodá-las.

— Você acha?

— Procurem entender o seguinte: você, Elaine, tem poderes, mas isso não quer dizer que possa encarar facilmente situações de perigo. Se eu não tivesse aparecido...

— Elaine já tinha controlado a situação! — protestou Ava, talvez com imprudência. — Ela fez parar o carro e inutilizou as armas. Aqueles sujeitos estão armados!

– Está bem. Mas e os amigos e parentes dela? Estão todos vulneráveis, inclusive você.

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— Eu entendi, Frida — falei por minha vez. — Acho que você nos livrou de boa.

Nem quis indagar como é que ela sabia de tanta coisa. Ava lembrou-se de questionar:

— E para onde é que você está nos levando?

— Por enquanto para lugar nenhum. Podíamos ir numa lanchonete comer qualquer coisa, eu convido. Têm tempo para isso?

— Somos controladas pelo celular —observou Ava judiciosamente. — Mas eu psso dar um jeito nisso.

Ava ligou para a mãe e disse que ela e eu tínhamos encontrado uma terceira amiga que não víamos há tempos e íamos fazer um lanchezinho com ela.

— Não se demorem muito — ouvi a voz de Estela. — Afinal preciso que você me ajude numas coisas.

— Me faz um favorzinho, mamãe? Liga do convenc ional para a casa da Elaine. O celulare dela descarregou e também é mais barato.

— Posso ligar, mas a Elaine tem que ser mais aberta com a família.

— Faz isso só essa vez, ok? Beijos.

Depois que cessou a ligação Frida observou sarcástica:

— Até parece que vocês duas são espertas... ainda falta muito.

— Não nos subestime — respondeu Ava.

Na lanchonete pedi só um chá e um quiche, não me sentia com disposição para comer e estava intrigadíssima.

— O que você realmente quer conosco? — indaguei.

— Você me intriga. Você não deveria ter poderes sem uma iniciação...

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— Não quero me iniciar em coisa nenhuma. Eu não sou uma ocultista, pode entender?

— Então seria interessante saber por que você tem...

— Frida — cortei — o que você tomou do Alfredo?

— Ora, ora. Ainda está preocupada com ele? Foi apenas um livro, e eu tenho muito mais direito que ele...

— Só um livro? Mas que espécie de livro?

— Um dos livros místicos de iniciação, pelos quais se pode obter o domínio do mundo.

— E por que nos conta isso? — quis saber Ava. — Revelar a nós algo tão...

— Porque vocês não podem fazer nada com esse conhecimento. Afinal, as livrarias estão cheias dessas obras e ninguém as leva a sério. Simplesmente, essa informação não lhes dá nenhuma vantagem sobre mim.

— Você é diabólica — concluiu Ava.

— Eu não tenho interesse especial em ser inimiga de vocês duas. Não queiram isso. Ah, chegou quem faltava!

A companhamos o olhar dela e ficamos estarrecidas.

Era Alfredo, ainda com a cabeça enfaixada.

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CAPÍTULO 11

TENSÃO

Ele veio, sentou-se na única cadeira vaga, isto é, ao lado da Frida, e antes mesmo que Ava e eu, aturdidas, balbuciássemos um cuprimento, ele rosnou, visivelmente se contendo para não falar alto:

— Então vocês estão mesmo mancomunadas com essa bruxa.

— Seu mal-agradecido — murmurei, eu própria me contendo. — Depois que o ajudamos! E você próprio não está aqui?

— Apresento-lhes o meu primo — disse Frida, sorrindo cinicamente. — Esse problema é de família, meninas.

— Foi ela que nos procurou — observou Ava.

— E vocês se encontram? — acrescentei.

— Isso é uma reunião de negócios. Vocês não têm nada com isso — respondeu o rapaz, mas notei que ele estava com dúvidas a nosso respeito. Provavelmente já não tinha certeza de que fôssemos umas traidoras. Em todo o caso, não pediu desculpas.

— Acabei de livrar essas duas de um sufoco — explicou Frida, sorvendo um “capuccino”. E referiu sumariamente o que tinha acontecido.

— Eu sinto muito — ele parecia meio embaraçado. — Quando vi as duas com ela, pensei as piores coisas.

— Bem — falei, de mau humor. — Afinal de contas, se vocês são primos, por que não se entendem? Vão brigar por causa de um livro?

– Acontece, mocinha, que esse livro é a Chave dos Arcanos e estava comigo. Esse mocinho roubou-o e eu o recuperei. E é um livro que não pode cair em mãos erradas.

— Mas do que fala esse livro?

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— Das forças que controlam o universo.

— Quem controla o universo é Deus — opus.

— É claro. Uma jovenzinha crente como você diria mesmo isso. Acredite nessa divindade de amor, viva nessa ilusão.

Troquei olhares com a minha amiga.

— Ava, temos de ir embora.

— Eu também acho. Não sou sensitiva como você, mas estou sentindo a presença de coisas ímpias e blasfemas.

— Somos pagãos — disse Alfredo. — E saiba que os cultos pagãos estão crescendo no mundo.

Nós nos erguemos e, querendo quebrar um pouco a tensão, falei:

— Adeus. Não vão se matar, OK?

— Tome nota de uma coisa, Elaine. Os seus poderes têm de ser dirigidos e controlados. Quando quiser me procure, que eu a orientarei.

“Assim deve ter falado a serpente para Adão e Eva”, pensei; nisso Alfredo, que devia estar remoendo o que dizer, interveio:

— E não acreditem nela. Nosso avô queria que eu tivesse o exemplar. Quem tem direito sou eu.

— Sugiro que tirem uma xerox — concluí, e puxei Ava. Saímos rapidamente do lugar, e creio que chamamos um pouco de atenção.

— Que dia louco, Elaine! Tomara que ninguém nas mesas perto tenha ouvido nada...

— Sim. E Deus queira que essa dupla nos esqueça.

— Também penso assim.

— Mas não sei, Ava... sinto que ainda ouvirei falar deles. Nós duas ouviremos.

— E esse livro?

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— Livros de ocultismo existem aos milhões. Deixa pra lá. Nem ela nem ele irão dominar o mundo.

Ava segurou o meu braço com delicadeza:

— Seja o que for que aconteça, estarei com você.

— Eu não queria envolvê-la nisso, Ava...

— Bobagem. Você não procurou essas coisas e não tem culpa de nada. Além disso eu sou sua amiga. E não esqueça desse Raul.

— Espero que o meu próximo namorado seja gentil, leal e nada machista...

— Deus há de mostrá-lo para você, querida amiga.

Assim voltamos para nossas casas e tratamos de guardar segredo sobre as coisas estranhas que nos haviam acontecido naquele dia tão estranho.

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EPÍLOGO

ISTO FOI SÓ O COMEÇO

Quando pudemos conversar mais longamente numa cafeteria — adolescentes têm problemas com a privacidade! — eu já me sentia bem mais tranquila.

— Raul não está mais no Rio de Janeiro. De algum modo a Frida o amedrontou bastante.

— E como você sabe disso?

— Pela televisão — assim dizendo, sorri. — Ele e o outro foram para a Bahia, onde têm parentes.

Ava sorriu, cortando o quiche de queijo:

— Para alguma coisa ela serviu, então.

— É. Mas o Raul pode ter sido o menor dos problemas. Não esqueça que Frida é uma bruxa na acepção da palavra. Das duas uma: ou ela some das nossas vidas, ou se reaparecer vai ser para nos criar problemas.

— Você não pode vigiar os seus passos, como fez com o Raul?

Abanei a cabeça.

— Não a sintonizo. Ela deve ser imune a esse tipo de detecção.

— Quer dizer, uma adversária e tanto. Excitante!

Sorri diante da maluquinha da minha amiga. Eu não achava aquilo nada excitante! Apavorante, sim. Que espécie de poderes havia naquela mulher? E que planos ela tinha?

— Você podia tentar sintonizar o Alfredo no canal 29 — observou Ava, judiciosamente. — Ele não deve ter os mesmos poderes da Frida.

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— A ele eu consegui pegar, mas esporadicamente. Só descobri que é um tipo muito esquisito, que passa horas examinando livros enormes e empoeirados de tão velhos. Olha, ele é um “filme” tão chato que eu desisti de assistir. Ele nem fala sozinho, nem nada.

— E os livros... poderosos?

— Bem, esse “Chave dos Arcanos” eu achei pouca menção na internet e nada que esclareça. Seria tibetano ou indu, de milênios atrás. Falaria em reinos subterrâneos, em ciclos cósmicos, toda aquela parafernália.

— E o que é que eles querem com esse livro?

Peguei um brigadeiro e examinei com gosto o seu relevo, antes de abocanhá-lo.

— Bem Ava, esse pessoal acredita em obter o poder através dos livros de ocultismo — algum tipo de poder. Se for só uma ilusão, que fiquem com ela e nós não devemos nos meter. Afinal, somos católicas e não queremos envolvimento com essas coisas.

— Mas se eles estiverem fazendo coisas perigosas para a sociedade?

— Bem, os meus poderes tendem a aumentar, sabia? Eu sinto isso. Vamos dar tempo ao tempo e rezar para que Frida e Alfredo não surjam mais no caminho.

— Já pensou, minha amiga, quanta coisa você tem a fazer na vida, com esses poderes? E eu quero participar, pois você precisará de uma ajudante.

— Sim, eu sei — respondi com um sorriso. — Mas no momento é mais importante completarmos os nossos estudos, não acha? Quando houver necessidade usarei meus poderes.

No íntimo, porém, eu sabia que nunca mais a minha vida seria a mesma.

E que algum dia, no futuro, reencontraria Frida.

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FIM

POSFÁCIO

Uma menina poderosa!

Foi uma bela aventura conhecer a mais nova heroína do autor Miguel Carqueija, uma jovem, muito jovem mesmo, e paranormal que de repente vê sua vida comum transformar-se.

Elaine era uma menina ligeiramente oprimida, principalmente pelo machismo dos irmãos, envolvida com um namoradinho traste, do qual teve trabalho para se livrar.

Delicada e gentil, a jovem pede, em certa noite de muito calor, para que os mosquitos partam e a deixem dormir e que de forma improvável acontece.

Embora ao longo do livro ela desenvolva outros tipos de poderes, que parecem simplesmente serem ilimitados, esse é o que mais chama atenção, o poder de pedir, da gentileza que é capaz de coisas impossíveis e extraordinárias.

Tudo isso nos leva a pensar quantas coisas poderíamos conseguir se voltássemos aos velhos hábitos de gentileza e educação. Que poder fantástico poderíamos descobrir em nós? Talvez transformaríamos o mundo!

Elaine fez uma bela dupla com sua amiga Ava, a amizade das duas é um dos pontos altos da história, muito sincera e fraternal, levando a jovem xará da Ava Gardner a enfrentar muitos perigos, mesmo sem ter nenhum poder além do amor belíssimo que dedica à sua amiga.

Mas uma grande surpresa que vimos aqui, é ter a chance de ler uma história contemporânea, nem no futuro, nem em um mundo imaginário, o que nos faz sentir ainda mais próximos dos personagens. No Rio de Janeiro atual o enredo se desenrola de forma fluída, leve e bastante interessante.

Em meio à história, um elemento muito interessante aparece, os primos bruxos. O mistério que os envolve é uma pulguinha que o autor deixa em nossas orelhas e também porque o destino deles cruzou com o de Elaine, fica a expectativa de grandes batalhas futuras ou grandes alianças.

O que será que nos reserva o próximo livro?

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Shirley Murphy

(Shirley Murphy é uma escritora fluminense, que há mais de um ano publica suas obras de romance e romance sobrenatural no site wattpad. Autora dos Livros Sancti-A Batalha de Uma Nova Era, Amei Minha Melhor Amiga e Uma Carta Para o Paraíso.)