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Ronald Dworkin

Levando os direitos a sério1

Capítulo 4

Casos difíceis

2. A tese dos direitos

A. Princípios e políticas

As teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito. Isso é o ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática. As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes. Portanto, os juízes devem às vezes criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita. Ao fazê-lo, porém, devem agir como se fossem delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema.

1 Martins Fontes, 2002.

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Isso é muitíssimo conhecido, mas nessa história conhecida acha-se oculto um novo nível de subordinação que nem sempre é percebido. Quando os juízes criam leis, a expectativa habitual é a de que eles ajam não apenas como delegados do poder legislativo, mas como um poder legislativo segundo. Eles criam leis, em resposta a fatos e argumentos, da mesma natureza daquelas que levariam a instituição superior a criar, caso estivesse agindo por iniciativa própria. Este é um nível mais profundo de subordinação, pois coloca qualquer entendimento do que os juízes fazem nos casos difíceis na dependência de uma compreensão anterior do que os legisladores fazem o tempo todo. Essa subordinação mais profunda é, portanto, simultaneamente conceitual e política.

Na verdade, porém, os juízes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas. Este pressuposto não leva em consideração a importância de uma distinção fundamental na teoria política que agora introduzirei de modo sumário. Refiro-me à distinção entre argumentos de princípio, por um lado, e argumentos de política (policy), por outro2.

Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou

2 Discuti a distinção entre princípios e políticas no capítulo 2. A formulação mais elaborada neste capítulo é um desenvolvimento do que se encontra naquele: entre outras virtudes, impede o colapso dessa distinção em decorrência dos pressupostos (artificiais) apresentados no capítulo anterior.

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protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito, é um argumento de princípio. Estes dois tipos de argumento não esgotam a argumentação política. Às vezes, por exemplo, uma decisão política, como a de permitir isenções extras de imposto de renda para os cegos, pode ser defendida como um ato de generosidade ou virtude pública, e não com base em sua natureza de política ou de princípio. Ainda assim, os princípios e as políticas são os fundamentos essenciais da justificação política.

A justificação de um programa legislativo de alguma complexidade vai normalmente exigir os dois tipos de argumento.

Mesmo um programa que seja basicamente uma questão de política, como um programa de subsídios para indústrias importantes, pode exigir elementos de princípios para justificar sua formulação específica. Pode ser, por exemplo, que o programa ofereça subsídios iguais para fabricantes com capacidades diferentes, com base no suposto de que os mais fracos entre os fabricantes de aeronaves têm direito de não se ver privados de sua capacidade de produção pela intervenção governamental, ainda que a indústria possa ser mais eficiente sem eles. Por outro lado, um programa que dependa basicamente

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de princípios, como um programa contra a discriminação, pode refletir a ideia de que os direitos não são absolutos, e não vigoram quando suas consequências para a política pública forem muito graves.

O programa pode determinar, por exemplo, que as regras relativas a práticas de emprego justas não vigorem sempre que se revelarem especialmente desagregadoras ou perigosas. No caso dos subsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por uma política.

Não foge absolutamente à competência do poder legislativo aderir a argumentos de política e adotar programas gerados por tais argumentos. Se os tribunais forem legisladores segundos, eles também devem ser competentes para fazer o mesmo.

Sem dúvida, as decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de uma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípio, mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política. Suponhamos que um fabricante de aviões mova uma ação para receber o subsídio que a lei prevê. Ele invoca seu direito ao subsídio; sua argumentação é um argumento de princípio. Ele não argumenta que a defesa nacional seria melhorada com o subsídio que lhe fosse concedido; poderia, inclusive, admitir que a lei estava politicamente errada quando foi adotada, ou que, por razões políticas, deveria ter sido revogada já há muito tempo. Seu direito a um subsídio não mais

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depende de um argumento de política, pois a lei o transformou em uma questão de princípio.

Contudo, se o caso em questão for um caso difícil, em que nenhuma regra estabelecida dita uma decisão em qualquer direção, pode parecer que uma decisão apropriada possa ser gerada seja por princípios, seja por políticas. Tomemos, por exemplo, o problema do caso recente da Spartan Steel3. Os empregados do réu haviam rompido um cabo elétrico pertencente a uma companhia de energia elétrica que fornecia energia ao autor da ação, e a fábrica deste foi fechada enquanto o cabo estava sendo consertado. O tribunal tinha de decidir se permitiria ou não que o demandante fosse indenizado por perda econômica decorrente de danos à propriedade alheia cometidos por negligência.

O tribunal poderia ter chegado a sua decisão perguntando se uma empresa na posição do demandante tinha direito a uma indenização – o que é uma questão de princípio – ou se seria economicamente sensato repartir a responsabilidade pelos acidentes na forma sugerida pelo demandante – o que é uma questão de política.

Se os juízes fossem legisladores segundos, o tribunal deveria estar preparado para seguir a última alternativa, tanto quanto a primeira, e decidir em favor do demandante se fosse essa a recomendação do argumento. É isso, imagino, o que significa a ideia corrente de que um tribunal deve ser livre para decidir um caso novo como o da Spartan Steel em bases políticas; e foi assim, de fato, que lorde

3 Spartan Steel & Alloys Ltd. vs. Martin & Co., [1973] 1 Q.B. 27.

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Denning descreveu sua opinião neste caso específico4. Eu não suponho que ele pretendia estabelecer uma distinção entre um argumento de política e um argumento de princípio no mesmo sentido técnico que eu estabeleço, mas, ainda assim, ele não pretendia descartar um argumento de política nesse sentido técnico.

Não obstante, defendo a tese de que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis como o da Spartan Steel, são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas. É evidente que essa tese precisa de muita elaboração, mas podemos observar que certos argumentos da teoria política e da teoria do direito a apoiam, inclusive em sua forma abstrata. Estes argumentos não são decisivos, mas têm força suficiente para sugerir a importância da tese e justificar a atenção que será necessária para dar-lhes uma formulação mais cuidadosa.

B. Princípios e democracia

A conhecida história de que a decisão judicial deve ser subordinada à legislação é sustentada por duas objeções à originalidade judicial. De acordo com a primeira, uma comunidade deve ser governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e responsáveis perante ela. Tendo em vista que, em sua maior parte, os juízes não são eleitos, e como na prática eles não são responsáveis perante o eleitorado, como ocorre com os legisladores, o

4 Ibid., 36.

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pressuposto acima parece comprometer essa proposição quando os juízes criam leis. A segunda objeção argumenta que, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso que tem diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.

Esses dois argumentos se combinam para sustentar o ideal tradicional de que a decisão judicial deve ser o menos original possível. Contudo, eles oferecem objeções ainda mais poderosas às decisões judiciais geradas por políticas do que às geradas por princípios. A primeira objeção, segundo a qual o direito deveria ser criado por autoridades eleitas e responsáveis, parece irrepreensível quando pensamos no direito como política; isto é, como um compromisso entre objetivos e finalidades individuais em busca do bem-estar da comunidade como um todo. Não fica nem um pouco claro que as comparações interpessoais de utilidade ou preferência, através das quais tais compromissos poderiam ser realizados objetivamente, façam sentido mesmo em teoria; de qualquer maneira, porém, a prática não nos sugere nenhum cálculo apropriado.

Portanto, as decisões sobre políticas devem ser operadas através de algum processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração. Pode ser que o sistema político da democracia representativa funcione com indiferença nesse aspecto, mas funciona melhor que um sistema que permite que juízes não eleitos, que não estão submetidos a lobistas, grupos de pressão ou a cobranças do eleitorado por correspondência,

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estabeleçam compromissos entre os interesses concorrentes em suas salas de audiências.

A segunda objeção também é persuasiva quando utilizada contra uma decisão gerada por uma política. Todos nós concordamos que é errado sacrificar os direitos de um homem inocente em nome de algum novo dever, criado depois do fato; portanto, parece errado tomar os bens de um indivíduo e dá-los a outro, apenas para melhorar a eficiência econômica global.

Mas essa é a forma do argumento de política que seria necessário utilizar para justificar uma decisão no caso da Spartan Steel. Se o demandante não tivesse direito à indenização e o réu não tivesse dever algum de oferecê-la, o tribunal somente teria uma justificativa para transferir a propriedade do réu para o demandante caso tivesse em vista os interesses de uma política econômica criteriosa.

Mas suponhamos, por outro lado, que um juiz justifica com êxito uma decisão em um caso difícil, como o da Spartan Steel, não em bases de política, mas sim em termos de princípios.

Imaginemos que ele seja capaz de mostrar que o demandante tem o direito de ser compensado por seus danos. Os dois argumentos há pouco descritos não chegam a constituir uma objeção à decisão. O primeiro é menos relevante quando um tribunal julga um princípio, pois um argumento de princípio nem sempre se fundamenta em pressupostos sobre a natureza e a intensidade dos diferentes interesses e necessidades distribuídos por toda a comunidade. Ao contrário, um argumento de princípio estipula alguma vantagem apresentada por quem reivindica o direito que o argumento descreve, uma vantagem

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cuja natureza torna irrelevantes as sutis discriminações de qualquer argumento de política que a ela se pudesse opor. Assim, um juiz que não é pressionado pelas demandas da maioria política, que gostaria de ver seus interesses protegidos pelo direito, encontra-se, portanto, em uma melhor posição para avaliar o argumento.

A segunda objeção à originalidade judicial não tem força alguma contra um argumento de princípio. Se o demandante tem um direito contra o réu, então este tem um dever correspondente, e é este dever, e não algum novo dever criado pelo tribunal, que justifica a sentença contrária a ele. Mesmo que o dever não lhe tenha sido imposto por uma legislação explícita anterior, não há, exceto por um ponto, mais injustiça em se exigir o cumprimento desse dever do que haveria se esse dever tivesse sido imposto por legislação. O ponto está, certamente, no fato de que se o dever tivesse sido criado por lei, o réu teria tomado conhecimento desse dever de maneira muito mais explícita, e seria razoável esperar que organizasse seus negócios de forma a precaver-se contra as consequências do cumprimento do dever.

Mas um argumento de princípio nos leva a considerar, sob uma nova luz, a reivindicação do réu de que é injusto surpreendê-lo com a decisão. Se o demandante tem de fato o direito a uma decisão judicial em seu favor, ele tem a prerrogativa de poder contar com tal direito. Se for óbvio e incontroverso que ele tem o direito, o réu não poderá alegar ter sido injustamente surpreendido pela decisão, simplesmente porque o direito não foi criado por meio da publicação em uma lei. Por outro lado, se a reivindicação do demandante for duvidosa, o tribunal

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deverá, até certo ponto, surpreender qualquer uma das partes com sua decisão. Se o tribunal decidir que, pesadas as razões de ambas as partes, o argumento do demandante é o mais forte, também terá decidido que, comparadas com a da parte contrária, as expectativas do demandante eram mais justificadas.

O tribunal pode, sem dúvida, equivocar-se ao extrair essa conclusão; mas essa possibilidade não é uma consequência da originalidade de seu argumento, pois não há nenhuma razão para supormos que um tribunal tolhido pela exigência de que suas decisões não sejam originais venha a cometer menos erros de princípio do que um tribunal que não seja submetido a semelhante embaraço.

6. Objeções políticas

A tese dos direitos tem dois aspectos. Seu aspecto descritivo explica a estrutura atual da instituição da decisão judicial, enquanto o aspecto normativo oferece uma justificação política para essa estrutura. A história de Hércules mostra como a prática judicial que nos é familiar pode ter se desenvolvido a partir de uma aceitação geral da tese. Isso esclarece de imediato a tese, ao mostrar suas implicações com algum detalhe, e oferece uma argumentação poderosa, ainda que não convencional, em favor de seu aspecto descritivo. Mas essa história também fornece um novo argumento político em favor de seu aspecto normativo. Hércules começou suas conjecturas com a intenção não apenas de reproduzir o que os outros juízes fazem, mas de fazer cumprir os direitos institucionais verdadeiros daqueles que procuraram o seu tribunal. Se ele for

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capaz de tomar decisões que satisfaçam nosso senso de justiça, isso irá configurar um argumento em favor do valor político de sua tese.

Agora se pode dizer, porém, a título de refutação, que algumas características da história de Hércules entram em choque com o aspecto normativo da tese. Na parte introdutória desse capítulo, mencionei uma conhecida objeção à originalidade do juiz: trata-se do argumento democrático segundo o qual os legisladores eleitos têm qualificações superiores para tomar decisões políticas. Afirmei que este argumento é fraco no caso das decisões de princípio, mas a história de Hércules pode fazer surgir novas dúvidas a este respeito. A história deixa claro que muitas das decisões de Hércules sobre os direitos jurídicos dependem de juízos de teoria política que poderiam ser emitidos diferentemente por diferentes juízes, ou pelo público em geral. A essa objeção pouco importa que a decisão seja de princípio, e não de política. Importa apenas que seja uma decisão sobre matéria de convicção política, a propósito da qual os indivíduos razoáveis não cheguem a um consenso. Se Hércules decide casos com base em tais juízos, então decide com base em suas próprias convicções e preferências, o que parece injusto, contrário à democracia e ofensivo ao princípio geral de direito.

É essa a forma geral da objeção que examinarei nesta última seção. Primeiro, porém, é preciso esclarecê-la com respeito a um importante aspecto. A objeção acusa Hércules de basear-se em suas próprias convicções em assuntos de moralidade política. A acusação é ambígua, pois existem duas maneiras pelas quais uma autoridade poderia tomar

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por base suas próprias opiniões ao tomar tal decisão. Em se tratando de um juiz, uma delas é ofensiva, mas a outra é inevitável.

Às vezes um funcionário apresenta, como razão de sua decisão, o fato de que alguma pessoa ou algum grupo sustenta uma crença ou uma opinião específica. Um legislador pode apresentar, como razão para votar em favor de uma lei contra o aborto, o fato de que seus eleitores acreditam que o aborto é um erro. Essa é uma forma de apelo à autoridade: o funcionário que o faz não justifica, ele mesmo, a substância da crença à qual apela, nem considera a solidez da crença como parte de seu argumento. Podemos imaginar um juiz que apelasse, exatamente dessa maneira, recorrendo ao fato de que ele próprio tem uma preferência política particular. Em termos filosóficos, ele pode ser um cético em questões de moralidade política.

Pode dizer que, em questões desse tipo, a opinião de um homem não vale mais do que a de um outro, porque nenhum delas tem uma base objetiva, mas que, como ele próprio é favorável ao aborto, irá considerar inconstitucionais as leis antiaborto.

Este juiz se baseia no fato puro e simples de que ele sustenta um ponto de vista político particular que configura, em si, uma justificação de sua decisão. Mas um juiz pode basear-se em sua própria crença em um sentido diferente: considerando a verdade ou a solidez da crença. Suponhamos, por exemplo, que ele acredite que, enquanto questão de direito, a cláusula constitucional norte-americana do processo legal justo invalida qualquer restrição a uma liberdade fundamental, e que as leis antiaborto restringem uma liberdade fundamental. Pode basear-

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se na solidez dessas convicções e não no fato de que, ao contrário de outros, ele próprio as defende. Um juiz não precisa basear-se, desse modo, na solidez de nenhuma crença específica.

Suponhamos que a maioria de seus colegas, ou os editores de uma importante publicação jurídica, ou ainda a maioria dos membros de uma comunidade que se manifesta em algum referendo sustenta um ponto de vista contrário sobre o aborto.

Ele pode decidir que é seu dever submeter-se àquilo que, na opinião dessas pessoas, é exigido pela Constituição, a despeito de ele próprio não reconhecer solidez alguma na opinião delas. Nesse caso, porém, ele se fundamenta na solidez de sua própria convicção, de acordo com a qual, em tais assuntos, seu dever institucional consiste em submeter-se ao juízo emitido por outros. Na verdade, em um determinado momento ele deve basear-se na substância de seu próprio juízo para poder emitir algum juízo.

Hércules não se baseia em suas próprias convicções na forma descrita pela primeira dessas duas maneiras. Não leva em conta que o fato de ele próprio adotar uma concepção particular de liberdade religiosa, por exemplo, configura um argumento em favor de uma decisão que fortalece essa concepção.

Portanto, se a objeção que estamos considerando for pertinente, ela deve dizer respeito à segunda maneira de basear-se em suas próprias convicções. Neste caso, porém, a objeção não pode ser uma objeção geral ao fato de ele confiar em qualquer uma de suas convicções, uma vez que ele deve, inevitavelmente, tornar algumas delas por

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base. Trata-se, na verdade, de uma objeção ao fato de ele confiar na solidez de algumas de suas convicções; esta objeção sustenta que ele deve acatar certos juízos emitidos por outros ainda que, em sua opinião, tais juízos estejam errados.

É difícil, contudo, ver quais de seus juízos a objeção supõe que ele deva submeter aos outros. Não teríamos este tipo de problema se Hércules tivesse aceito, em vez de recusar, uma teoria corrente da decisão judicial. Como já afirmei, a teoria do direito clássica pressupõe que os juízes decidam os casos em duas etapas: encontrem o limite daquilo que o direito explícito exige e, em seguida, exerça um poder discricionário independente para legislar sobre problemas que o direito não alcance.

Ronald Dworkin

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Levando os direitos a sério

- Perspectiva deontológica. Recusa o positivismo jurídico e, especialmente, a dissociação entre direito e moral. Há uma conexão necessária entre direito e moralidade. - Formula uma teoria interpretativa do direito: a lei é o que se segue de uma interpretação da história institucional do sistema legal. - Críticas ao positivismo jurídico: não pode haver teoria geral da existência e do conteúdo do direito. Não é possível identificar o direito sem recorrer aos valores morais. Não é possível caracterizar o direito somente por seu aspecto estrutural. Uma teoria do direito é uma teoria de como os casos devem ser decididos e não começa com uma normatização ideal abstrata a respeito de como os governos podem usar a força contra os cidadãos.- O direito não se resume às normas, mas diz respeito também aos valores morais. As normas se aplicam ou não a cada caso (tudo ou nada), enquanto os valores morais têm a dimensão extra do peso. - Dworkin rejeita a noção de norma fundamental, que substitui pela interpretação da lei, feita por um juiz imaginário, Hércules. - É tarefa do juiz decidir pelo melhor em cada caso, e o melhor é um juízo de valor. - Os juízes nunca devem agir como legisladores, exceto quando há lacunas ou erros na lei. - O juiz não legisla, mas deve encontrar leis já existentes para resolver casos difíceis. - Deve se manter nos limites dos princípios constitucionais, ao assim fazer.

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- Nada nem ninguém deve estar acima desses princípios. O juiz deve encontrar a doutrina que melhor explica e justifica a lei existente. - No caso de haver lacunas, deve usar essa doutrina para decidir. Explicar e justificar são dimensões morais. - O interesse de Dworkin não está no sistema legal em si, mas na atividade do juiz de interpretar a lei. - A estrutura formal do direito não deve limitar o poder de decisão do juiz. - Há uma ausência relativa de restrição à atuação do juiz. - O direito consiste em normas adotadas explicitamente e princípios morais que se escondem sob estas regras. - O juiz deve reconhecer/interpretar quais princípios morais estão sob as normas aceitas.

Há duas dimensões de interpretação: Interpretação Formal: que princípio se ajusta melhor ao caso em questão? A consistência lógica? O ajuste entre princípios e decisões anteriores? Dimensão substantiva: que princípio é moralmente superior, no caso específico, isto é, qual se aproxima mais da verdade moral? Por exemplo, o julgamento do caso Bakke, em que o direito ao tratamento igual se sobrepõe às cotas/reparação histórica, ou o contrário?

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