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"Na  mitologia  há   aventuras   imorais,   incestos   e   assassinatos   su5icientes  para  satisfazer  o  mais  intrépido  dos  discípulos  de  Freud."Heróis,  deuses  e  ninfas  são  alguns  dos  personagens  que  povoam  as  histórias  da  mitologia  grega.  Desse  vasto  conjunto  de  relatos  e  lendas  que  versam  sobre  a   condição   humana   –   recheados   de   aventuras,   ritos   e   costumes   –   beberam  5ilósofos,  escritores  e  pensadores  das  mais  diversas  áreas.  A  multiplicidade  de  seus  narradores  –  entre  eles,  Homero  e  Ésquilo  –  fez  com  que  essas  histórias  fossem   recontadas   sob  diversos   pontos   de   vista,  mas   a   passagem  do   tempo  preservou  a  sabedoria  e  os  ensinamentos  dos  seus  primórdios.  Pierre  Grimal,  autor   do   consagrado  Dicionário   da  mitologia   grega   e   romana,   produziu   um  clássico  para  o  estudo  e  a  imersão  nesse  rico  universo  simbólico.

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INTRODUÇÃO

OMITONOPENSAMENTODOSGREGOSANTIGOS

Dá-se o nome de mitologia grega ao conjunto derelatos fantásticos e lendas cujos textos emonumentos representativos nos mostram queestavamemvoganospaísesdelínguagregaentreos séculos IX ou VIII antes de nossa era, época aquesereportamospoemashoméricos,eofimdopaganismo1, três ou quatro séculos depois deJesus Cristo. É umamatéria enorme, de definiçãobastante complicada, de origens e característicasmuitodiversasequedesempenhouedesempenhaaindaumpapelconsiderávelnahistóriaespiritualdomundo.Todos os povos, em um determinadomomento desua evolução, criaram lendas, ou seja, relatosfabulosos aos quais durante certo tempo deramcrédito – aomenos em algum grau. Nomais dasvezes, as lendas, por fazerem intervir forças ouseres tidos como superiores aos humanos,pertencem ao domínio da religião. Elas seapresentam,pois,comoumsistemamaisoumenoscoerente de explicaçãodomundo, e cadaumdos

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gestos do herói cujas proezas são relatadas écriador e gerador de consequências que ressoampelo universo inteiro. A esse tipo pertencem osgrandes poemas épico-religiosos da literaturaindiana.Emoutrospaíseséumelementoépicoquepredomina. É claro que os deuses não estãoausentes do relato, no qual sua ação é sensível,masagênesedomundonãochegaaserpostaemquestão. O herói se contenta em dar grandesgolpes de espada, inventar ardis memoráveis,realizar viagens a países fantásticos,mas,mesmoultrapassando a escala humana, continuaessencialmente humano. A esse tipo pertencemsobretudo os ciclos lendários dos celtas, que osromanos gauleses, por exemplo, nos fizeramconhecer. Em outros lugares ainda, os relatos domitoacabaramperdendoquasetodooseucaráterfabuloso, passando a se dissimular sob asaparências da história. Os romanos,particularmente, parecem ter integrado dessamaneira, em suas crônicas mais antigas,verdadeiras gestas lendárias: o heroísmo deHorácio Cocles defendendo a ponte do Tibrecontraosinvasoresnãoé,segundosediz,senãoaúltima metamorfose de um demônio caolho cujaestátua,colocadanamargemdorio, teriaperdidoo significado inicial e finalmente servido para

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fabricar por completo um episódio da luta (empartehistórica)entreromanoseetruscos.O mito, na Grécia, adquire todas essas naturezas.Colore-sedehistóriae servede títulodenobrezaparaascidadesouparaasfamílias.Desenvolve-secomo epopeia e apoia ou explica as crenças e osritosdareligião.Nenhumadasfunçõesquealendaocupaemoutroslugareslheéestranha.Maseleémuito mais. A palavra grega que serve paradesigná-lo (µυθοζ) aplica-se a todas as históriascontadas,tantoaotemadeumatragédiaouintrigadeumacomédiaquantoaotemadeumafábuladeEsopo. O mito opõe-se ao logos, como a fantasiaopõe-se à razão e a palavra que relata à quedemonstra.Logosemythossãoasduasmetadesdalinguagem,duasfunçõesigualmentefundamentaisda vida do espírito. O logos, sendo um raciocínio,pretendeconvencer;eleprovocaemquemouveanecessidade de fazer um julgamento. O logos éverdadeirose for corretoe conformeà “lógica”;éfalso se dissimular algum embuste secreto (um“sofisma”).Maso “mito”não temoutro fimsenãoelemesmo. Quer se acredite nele ou não, ao bel-prazer, por um ato de fé, quer seja considerado“belo” ou verossímil, ou simplesmente porque sedesejaacreditarnele.Omitosevê,assim,atraindoàsuavoltatodaaparte irracionaldopensamento

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humano: ele é, pela própria natureza, aparentadodaarte,emtodasassuascriações.Estaé talvezacaracterística mais interessante do mito grego: aconstatação de que ele se integrou a todas asatividadesdoespírito.Nãoexistenenhumdomíniodo helenismo, tanto na plástica quanto naliteratura, que não tenha constantementerecorridoaele.Paraumgrego,omitonãoconhecefronteiras. Ele se insinua em toda parte. É tãoessencialaseupensamentoquantooarouosolosãoàsuaprópriavida.As primeiras epopeias hoje conhecidas em línguagrega, a Ilíada e a Odisseia, já são “mitos” nosentido amplo. Caracterizam-se pela misturaconstante do humano e do super-humano. Osheróis da Ilíada têm por ancestrais, ou por pais,umaouváriasdivindadeseaomesmo temposãoconsiderados ancestrais de famílias nobreshistóricas.AquileséfilhodeTétis,deusadomar,eseudestinoédeterminadopororáculosexistentespor toda a eternidade. Helena, pivô da guerra deTroia,éfilhadeZeus,efoiavontadedeAfrodite,adeusadoamor,quea levouadeixaromaridoeafilha quando o troiano Páris foi buscá-la emEsparta. Nos dois campos combatem deuses edeusas: Apolo, protetor de Páris, ofendido porcausa de um de seus sacerdotes, cuja filha Crises

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fora raptada pelos aqueus2, semeia a peste nosseusexércitos.Posídon,AtenaeAres intervêmnaluta. E as proezas de Aquiles são o testemunho,semdúvida,nãosódovalorpessoaldoherói,mastambém da proteção divina que não lhe falta emnenhummomento.Dá-se o mesmo com a Odisseia. A descendênciadivinadeUlissesésemdúvidamenosatestada–atradiçãoquefazdeleobastardodeAutólico, filhodeHermes,nãoéaúnicaconhecida–,masadeusaAtena se constitui sua protetora e é ela que,finalmente, o salvada ira edo rancordodeusdomar, Posídon. A epopeia grega pretendeessencialmente engrandecer os debates doshomens e, através do mito, ampliá-los àsdimensões do universo. Seus relatos, tomados àletra, manifestam uma fé religiosa: Zeus e asdivindades do Olimpo intervêm nas questõeshumanas de modo concreto; é preciso honrá-loscom sacrifícios, acalmar seus ressentimentos,ganharsuasboasgraçaspor todososmeios.Mas,desde logo, a interpretação tende a ultrapassar aestreitamaterialidade.QuandoZeuspesaemumabalançaos “destinos” (asmoiras) deAquiles e dePátrocloseenfrentandonumcombatesingularsobos muros de Troia, é bem difícil admitir que osgregosdaépocaclássicatenhamacreditadodefato

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nagigantescabalança,daqualumde seuspratostocava o céu e o outro mergulhava nas trevasinfernais, mesmo que Ésquilo, em uma tragédiaperdida,tenhaacreditadoserpossívelrepresentarnomundomaterialessejuízodealmas.Omitonãoé urgente em seus termos. Ele desenha umaimagem, um símbolo, de uma realidade que, deoutro modo, seria inefável. É bastante provávelqueaosprópriosolhosdopoetaoepisódio tenhasido tão-somente um meio de expressão, umaforma de revelação que ajudava a conceber omistériodomundo,masquenãodeviasertomadoaopédaletra.Da mesma maneira, os santuários erigidos àsdivindades mostravam, sobre seus frontões, umepisódio característico da lenda do deus ou dadeusaaquempertenciaotemplo.SobreofrontãolestedoParthenon,tem-seonascimentomilagrosodeAtena; no oeste, a disputa de Posídon eAtenareivindicando, ambos, a posse de Ática. Essasimagensencarnam,demaneira total,emelhordoque fariaqualqueranáliseapoiadaempalavras,osentimento que os atenienses tinham de suacidadeede simesmos:Atena jorrandoda cabeçadomestretodo-poderoso,nascidasemmãe,assimcomoopovoático“saiudosol”(autóctone,dizia-seentão),massaídacontudodaPrudência(Métis),a

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quem,nopassado,seupaiseunira.DemétereCore– a Terra e a Vegetação – aguardam comserenidadeoanúnciodonascimentomilagroso.Elogo em seguida, sobre a terra banhada depresentes domar, impregnada do sal e do ventomarinhodePosídon,adeusafarábrotaraoliveira,a mais lenta, a mais sábia, a mais luminosa detodas as árvores. Mesmo que não se acreditassemaisemsuaverdade literal, omitodeAtenanãodeixavadeensejarmeditaçõesinfinitasnemdeserumainspiraçãocujaforça,passadostantosséculos,aindanãoseesgotou.Do pensamento, o mito passou a viver uma vidaprópria,nomeiodo caminhoentrea razãoe a féouo jogo.Tornou-se a fontede todaameditaçãodos gregos e, depois deles, de seus longínquosherdeiros; no mito, os poetas trágicos forambuscar seus temas, e os poetas líricos, suasimagens. Prometeu, Édipo, Orestes foramprimeiramente heróis de lenda. As imagens deAquiles ou de Ulisses e a loucura de Ajax foramincansavelmentereproduzidasemvasos:cântarosde vinho, tigelas e recipientes de toda espéciemisturavam omito à vida cotidiana e tornava-osfamiliares. Em casa ou no teatro, suasrepresentaçõessãocompanhiasque impregnamopensamento, ocupam a imaginação, dominam as

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concepções morais. Até os filósofos, quando oraciocíniochegaaolimite,recorremaelecomoummodo de conhecimento suscetível de alcançar oinconhecível. Assim, Platão, em Fédon, em Fedra,em O banquete e em A república, entre outros,prolonga seu pensamento com mitos que eleinventa. Sem dúvida não é exagero afirmar queessageneralizaçãodomito,essaliberaçãodeseuspoderes,foiumdosaportesfundamentais–talvezo aporte mais essencial – do Helenismo aopensamento humano. Graças a ele, o sagradoperdeu seus terrores; uma região inteira da almaseabriuà reflexão;graçasaele, apoesiapôdesefazersabedoria.

1.Paganismo:religiãopagã,emqueseadorammuitosdeuses.(N.T.)2.Aqueus:naturaisouhabitantesdeAcaia,colonizadoresdaGréciaantiga.(N.T.)

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CAPÍTULOI

MITOSEMITOLOGIA

Otrabalhodosescritoresedossábiosantigosqueutilizaramosdadoslendáriosouquesimplesmenteosrecolheramnãoconseguirianosocultarasurpreendentediversidadedessaslendasnemmesmoaincoerênciaquelhes é própria. Homero, Hesíodo, Píndaro e Ésquilo dão, é verdade, aimpressãode se referir aumsistemamíticobemdefinido cujosdeuseseheróis apresentam características fixas irrevogáveis e parecem possuirumalendadeepisódiosconhecidos.Maséumaimpressãoenganadora;elaresultasobretudodofatodeessespoetas(Hesíodo,naqualidadedeautordaTeogonia, épostoàparte)procederemquaseunicamenteporalusãoenãoexporemdemaneiradidáticaasgenealogiasdivinasouosrelatosaosquais eles se referem. No entanto, mesmo nessas condições, basta umaanálise mais atenta para revelar diferenças ou contradições entre osautores, e por vezes em ummesmo autor. A unidade não é introduzidasenão de maneira fictícia e secundária. Os mitos não nascem como umconjunto organizado, à maneira de um sistema filosófico, teológico oucientífico. Eles brotamao acaso, tal qual asplantas, cabendo aomitólogoorganizá-losemfamílias,espéciesevariedades.

Sobreumpontoaparentemente tãoessencialquantoonascimentodeZeus, o maior dos deuses, existem as mais diversas tradições. A maisconhecida situa o lugar de nascimento no alto do monte Ida, em Creta;porém,namesmailha,omonteDictereivindicavaamesmahonrae,aosuldo Peloponeso, existia ainda, perto de Micenas, uma fonte chamadaClepsidra,aoladodaqualterianascidoacriançadivina.

TodosessessantuáriosetodasessasdiferenteslendassósetornaramcontraditóriasnodiaemquesetentouidentificaroZeuscretense,demôniodoIdaoudoDicte,eoZeusmiceniano3domonteItome.Acontradiçãonãoexiste senão no âmbito de uma “mitologia” pan-helênica.Mas é evidentequeaconstituiçãodetalmitologianãoédenenhummodoprimitiva,sendojáoresultadodeumareflexãosobreomito.

Às vezes as dificuldades encontradas são mais delicadas de resolver,poissedevemaofatodealendatersedesenvolvidoemtemposeestágiossociaisouhistóricosdiferentes.AsgenealogiasdosAtrides4nos falamde

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senhores de Micenas, de senhores de Tirinto e de senhores de Argos, emuitas vezes é difícil distinguir entre esses reinos. Tudo se esclarece sepensarmos que o grande desenvolvimento de Tirinto e Micenas não écontemporâneoaodeArgos.UmalendalocaldeMicenasquefazreferênciaaum“rei”dopaístorna-seincompreensívelnumtempoemqueasuseranianãoestámaisemMicenas,masemArgos.Demodoespontâneo,ocontadorfaz a transposição necessária, mas certos elementos tipicamente locaispermanecem e engendram a confusão. É ainda o que acontece com todaumasériede lendastessálias,quetêmduplicatasnoPeloponeso.Corônis,amadadeApoloemãedodeusdamedicinaAsclépio,étidanormalmentecomofilhadoTessálioFlégias.MasconstaaomesmotempoqueFlégiaseranarealidadeumhabitantedeEpidaure,noPeloponeso,oqueexplicaqueocultodeAsclépio tenha florescidoemEpidaure.Essasvariantes refletem,narealidade,umtempoemqueomesmopovoocupavaumdomínioqueseestendiadaTessália5atéEpidaure–ou, casoseprefira,queemigraradaTessália paraoPeloponeso, sendoque asduashipótesesdão igualmenteconta dos fatos – antes de submergir sob ondas de invasores que lhetiraramosentimentodeunidade.Essaunidadeancestralsósobreviveunacomunidadedas lendas enanomenclaturados lugares.A semelhançadoFlégiasepidáurioedoFlégiastessáliocorrespondeàsemelhançadasduasLárissa,acidadetessáliaeacidadeladeArgos.

Vê-se que omito não é uma realidade independente,mas que evoluicomascondiçõeshistóricaseétnicas,àsvezesconservando testemunhosimprevistos de situações que de outra forma seriam esquecidas. Dessemodo,omitoserevelaummeiodeinvestigaçãopreciosoe,mesmoquenãoseacreditemaistãoingenuamentecomoháumséculooudoisquealendaseja sempre uma deformação da história, hoje sabemos interrogá-la e dealgumamaneira fazê-la confessar o que guardou do tempo e domeio deonde surgiu. Os mitólogos modernos são mais sensíveis do que seuspredecessoreslongínquosaosmeiosdeexpressãorarosereveladores.Elesdesconfiam de mitos que se tornaram excessivamente perfeitos: suacoerênciatraiasalteraçõeseotrabalhosecundáriodequeforamobjeto.

Otrabalhosobreosmitoscomeçoumuitocedo,eoquecaptamosnostextos,nomaisdasvezes,nãoésenãooresultadodeumalongaevolução.As“fontes”clássicasdamitologiaincluem-segeralmentenessecaso.JánoséculoVIantesdenossaera,omilésio6HecateuescreveuquatrolivrosdeGenealogias, dos quais só chegaram até nós alguns fragmentos,mas cujadoutrina passou para as obras de seus sucessores. Ela domina as

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especulações dos primeiros historiadores, como Acusilaos de Argos ePherecyde de Atenas, que coletaram lendas consideradas o “primeirocapítulo” da história nacional. É sem dúvida a Pherecyde que se deve aprimeiraelaboraçãodosmitos relativosàsorigensáticasea constituiçãode uma lista “canônica” dos reis do país, na qual se unem intimamentevelhos demônios da terra (como Erictônio e seu duplo Erecteu) epersonagensprovavelmentehistóricos.Maselenãoselimitouàstradiçõesdeseupaís,enósovemospreocupadoemconciliarentresias lendasdeArgos, que já eram, e com razão, tidas como fundamentais para oconhecimento da “Idade Média” grega. Pherecyde, a esse respeito, foi oprecursordeumoutroescritor cuja importância se revelouconsiderável,HellanicosdeMitilene.Eletambémsedebruçousobreascrônicasargianas,esuaCronologiadassacerdotisasdeHera(agrandedeusadeArgos)reuniutradições sagradas muito preciosas, cuja maior parte infelizmente seperdeu. AHellanicos cabe a honra de ter sido o primeiro a denominar acidadedeRoma,queeleconsideravaumacidadegrega,fundadadepoisdagrande dispersão que se seguiu ao “retorno” dos vencedores de Troia. Atendência fundamental de todos esses trabalhos e coletâneas, entre oséculoVIeofinaldoséculoVantesdanossaera,éodesejodefixaruma“cronologia” dos acontecimentos, tanto históricos quanto lendários. Adistinção entre as duas ordens de fatos (distinção em certo sentidointeiramente moderna, além de frequentemente muito imprecisa, pois alenda pode ser apenas uma interpretação da história, não existindonenhum critério que permita estabelecer uma separação absoluta) aindanão foi entrevista. E a classificação dos acontecimentos continua sendosobretudo temporal.Trata-sededeterminarconcomitânciasemrelaçãoapontos fixos supostamente conhecidas, como, por exemplo, a tomada deTroiaoua fundaçãodos JogosOlímpicos.Ocritérioemgeraladotadoéofornecido pelas “gerações”, fazendo-se um esforço para incluir osacontecimentos e os personagens.Naturalmente, surgemdificuldades. Asaventuras de Hércules, em especial, que se desenrolam em um universoque se imaginava vazio – a lenda, em sua formamais antiga, desconhecequalquer encontrodeHércules7 comoutro herói importante –, levantamproblemasde concordância particularmentedelicados, pois a tradiçãodánome aos filhos de Hércules e os mostra envolvidos em grandesempreendimentos coletivos aomesmo tempo, por exemplo, queos filhosdeTeseu.ComoépossívelqueTeseueograndeheróiargiano8nãotenhamse encontrado? À engenhosidade grega jamais faltaram recursos, e a

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explicaçãoéqueaatividadedeTeseusedesenvolveuduranteocativeirodeHérculesnaLídia,juntodeÔnfale,eque,inversamente,durantetodaaúltima parte da vida de Hércules, Teseu se encontrava nos Infernos,prisioneiro de Plutão. Assim, há episódios indispensáveis dentro das“biografias” lendárias. Esses episódios não são naturalmente primitivos;eles foram introduzidos para realizar as concordâncias cronológicasnecessárias. Às vezes precisam gerações inteiras que têm que serintercaladas para evitar sobrevidas e longevidades impossíveis. Aavançadíssima idade de Nestor, um dos combatentes aqueus, diante deTroiaexplica-seunicamentepelofatodeNestorfigurarcomocomparsanociclodeHércules.CriançanotempoemqueoheróicombatiaNeleueseusfilhos,emPilos9deMicenas,deveestaraindavivonaocasiãodaexpediçãoaqueia:porissolheatribuemumavidaqueduratrêsgeraçõesdehomens,oque,aomesmotempo,fazdeleumanciãoencanecido,sábio,escutadonoconselho,sugerindoà imaginaçãouma imagemquese tornoutradicional.Sobesseaspecto,acronologiafoicriativa,einesperadamenteassiste-seaonascimentodeumepisódio.

ComocomeçodaIdadeClássica,osgrandesarcabouçosdas lendasseestabilizam,easincoerênciasquesubsistemvãopermanecer.Considera-sea história dos tempos lendários definitivamente incorporada, e apreocupação agora é conhecê-la. A partir do século III a.C., surgem“coleções” cujos resumos por vezes chegaram até nós sob o nomeabusivamenteempregadodeseuprimeiroautor.Porexemplo,Eratostenede Cirena escreveu, na segundametade do século III a.C., um livro sobreTransformações em astros (Catasterismoi), no qual reuniu todos osexemplosconhecidosdehistóriasnasquaisoheróiouaheroínaeram,nofinal de suas vidas terrestres, colocados entre as constelações. Essetrabalho será continuado durante toda a Antiguidade, e assim teremos“manuais”deaventurasamorosas(odePartêniodeNiceia,contemporâneodeVirgílio,chegouaténós),coletâneasdeMetamorfoses:ogregoNicandro,queescreveunoséculoIIa.C.,servirádemodelodiretoparaolongopoemaque Ovídio publicará com esse título no tempo de Augusto. Mas osmitógrafos serão por vezesmais ambiciosos, e alguns se esforçarão paraabraçar a totalidadedas tradições lendárias.Amais importante tentativadessanaturezaéaobraconhecidasobonomedeBiblioteca,deApolodoro.Apolodoro foi um gramático e “filólogo” ateniense do século II antes denossaeraqueconsagrouavidaaexegesesdosantigospoetas.ABibliotecaquepossuímoscomoseunomenãoéobradele,mas,provavelmente,um

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resumo que remonta ao século I de nossa era. Nela se encontra umamitologiaorganizada,partindodacriaçãodascoisasedosdeusesedepoisdescendo, por geração, até os últimos períodos da lenda, ou seja, aostemposqueseseguiramàtomadadeTroia.Amitologianãoémaisdoqueum “cadáver embalsamado”, pura matéria de erudição cortada de suasfontesvivas.

Contudo, ao lado das grandes coletâneas canônicas, cujo objetivo, emessência, é introduzir uma unidade ilusória e mortal, nós encontramosoutras fontes, trabalhos concebidosdentrodeumespírito absolutamenteoposto e muito mais conforme com as preocupações modernas. O maispreciosoparanóséaDescriçãodaGrécia, dePausanias, que conservoualembrança de um número considerável de lendas locais, excluídas dasgrandessínteses,masqueconstituemvariantesrarasemantidasvivasnofolclore. Infelizmente,aobradePausaniasdaformacomochegouaténósnão cobre a totalidade dos países gregos e, em relação a certas regiões,nossa ignorância subsiste. Conseguimos superá-la namedida do possívelgraças a indicações esparsas reunidas pelos comentadores de poetas econtidas nas scholies, que são as notas filológicas acrescentadas poreditoresantigosàsobrasclássicas.Essetrabalhodeerudiçãopaciente foiexercidosobretudoapropósitodospoemashoméricosecontinuoudepoisdo fim do paganismo. Os sábios bizantinos Johannes e Isaac Tzetes noslegaramumaminadefatosqueremontamàsvezesàaltaAntiguidade.

Tal é, em seu conjunto, a mitologia grega: matéria de origens muitodiversas, fragmentos frequentementemal articuladosde sínteses fictíciasqueolentotrabalhodossábios,dosescritoresedospoetasacrescentouesubtraiu ao sabor de seus caprichos, mas nos quais às vezes ainda sedistinguem os dados primitivos da imaginação e da devoção popular. Oeruditoeoespontâneo,ovivoeoartificialestãointimamentemisturados.Que se honre a ciência moderna por ter empreendido uma análise quemesmo longe de concluída já permite que se compreenda melhor overdadeirosignificadoeoalcancedeummododepensamentoessencialaoespíritohumano.

Seagoraconsiderarmosamitologia“clássica”nãomaisnasuaformaçãoesuaevolução,mascomoumconjunto fixadosobuma forma“canônica”,vamos constatar que nem todos os mitos que ela propõe têm o mesmoalcance ou a mesma forma. Uns são relatos a respeito da formação domundo e do “nascimento” dos deuses. É a eles, e somente a eles, queconviria reservar o termo mito no seu sentido mais estrito. Nós osdesignaremosaqui sobonomede “mitos teogônicos”ou “cosmogônicos”,

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dependendodocaso.EssesrelatosforamreunidossobretudoporHesíodo,mas eles são bem anteriores e representam aportes tanto puramentegregos quanto provenientes de religiões orientais, até mesmo pré-helênicas. Seria errôneo, contudo, considerá-los como dados primitivos.São,emsuamaioria,concepçõesmuitoevoluídasqueseformaramdentrodosmeiossacerdotaisepoucoapoucoforamenriquecidascomelementosfilosóficos sob a forma de símbolos mal dissimulados. Esses mitos nãodeixaram de viver mesmo em plena época clássica e além dela.Continuaramservindodesuporteàscrençasreligiosase,comoserávisto,asreligiõesdesalvaçãoosintegrarãoaosseusmistérios.

Aoladodosmitospropriamenteditos,háos“ciclos”divinoseheroicos.Essesciclosconstituemsériesdeepisódiosouhistóriascujaúnicaunidadeé fornecida pela identidade do personagem que corresponde ao herói.Diferentementedos“mitos”,essesrelatosnãopossuemnenhumsignificadocósmico.QuandoHérculessustentaocéusobreosombros,estáprovandocomissoapenassuaforçafísica.Tantoocéuquantoouniversonãoestão“marcados”parasempre.Poucoimportaqueoheróidessesrelatossejaumdeus (Hermes, Afrodite, o próprio Zeus) ou um mortal semidivinizado.Assim,nemtoda lendarelativaaumadivindadeéprovidadeumalcanceteológico. Hermes rouba bois e puxa-os pela cauda para evitar que aspegadas revelem o esconderijo onde os coloca. Trata-se de um temafolclóricobemconhecidoquenãoapresentanenhumsignificadoreligiosoparticular.

Ocaráteressencialdocicloéseufracionamento.Ociclodefinitivamentenãonasce formado;eleéoresultadodeuma longaevolução,ao longodaqual episódios independentes em sua origem se justapõemdesordenadamenteese integramemumtodo.Éocaso,porexemplo,dasaventuras de Hércules, que durante muito tempo não tiveram nenhumaligaçãorecíproca.Cadaumdosgrandes“trabalhos”está ligadoaumlocalouaumsantuário;sequerécertoqueoheróitenhasido,originalmente,opróprio Hércules. É provável que este tenha confiscado em seu proveitoepisódiospreexistentes.OleãomortoporAlcátoo,aserviçodoreiMegara,lembraestranhamenteodeCiteron,doqualHérculeslivrouoreiTéspio.Oprocedimento é evidente para as extensões ocidentais mais recentes dociclo herculano: os viajantes gregos, depois romanos, reconheceramHérculesnospaísesitalianos,gauleseseaténolimiardaGermânia.Assim,ojogodasassimilaçõescomdivindadesindígenasterminouintegrandoaociclo elementos que, na origem, eram-lhe estranhos. E o próprio gregoHércules tem,dessemodo,característicasquepertencemaossemitas(ou

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semitizados)Gilgamesh10eMelquart11e a outros ainda cuja lembrançahojeseperdeu.

O terceiro tipo de relato lendário é às vezes designado pelo nomede“novela”.Comooprecedente,situa-seemlocaisdeterminados;assimcomoele, não tem valor cósmico ou simbólico, mas, enquanto o ciclo éconcentradoemtornodeumasófigura,aunidadeda“novela”épuramenteliterária e se definepela intriga.Assim, a guerradeTroia não é nemumciclodeHelenanemumciclodeAquiles,tampoucoumciclodosPriâmidas.Ela é a história de uma longa aventura, com episódios complexos epersonagensdiversos.Opoemahomérico conhecidopelonomede Ilíadanãodesenvolvedelasenãoumapequenaparte,aqueécentradaemtornodairadeAquiles;orestosóémencionadoporalusão:osdezanosdecerco,apilhagemdascidadesasiáticas,aexpediçãoquefalhounaprimeiravez,odesembarque infeliz na Mísia12, a nova expedição, os ventos que serecusarama soprareanecessidadede conciliaçãopelo sacrifíciodeumavirgem, e, depois da morte de Heitor, de Aquiles, de Páris, a tomada dacidade a luta dos presságios e dos adivinhos. Tudo isso ultrapassainfinitamenteoâmbitodaobra literária.Nãoésequercertoquecadaumdesses episódios tenha sido objeto de rapsódias distintas. A “guerra deTroia”éumtema livre,aoqualseacrescentamtodososprolongamentos,todososprosseguimentosqueaplenafantasiadeseja.Está-senomeiodocaminhoentrealendaeacriaçãoliterária.Contudo,subsisteumadiferençaessencial entre a novela lendária e a ficção de um romancista ou de umpoeta: houve um momento em que a aventura de Helena foi tida comoverdadeira.Osheróisderomancenuncareceberamumculto.MasHelena,nós sabemos, é uma divindade “caída”, divindade lunar ligada,provavelmente, à religião das populações pré-helênicas do Peloponeso.Existiramum“túmulodeHelena”,um“túmulodeMenelau”,um“túmulodeAquiles”,onde,umdia,Alexandreteriaoferecidosacrifícios.Aosolhosdosgregos,tudoissoéhistóriaverdadeira,mesmoqueaimaginaçãodospoetastenhaacrescentadoornamentosliterários.Osheróisdasnovelaslendáriaspodemseprestaratodasasfantasias;entretanto,elesjamaisseidentificamcomelas,pormaisgenial,pormaiorquesejaaobraqueasutilize.

Enfim,mesmoindoaindamaislongenaanálise,oqueencontramosnãosãomaisconjuntoslendários,massimplesrelatos“elementares”,históriasetiológicas13,ouseja,destinadasaexplicaralgumdetalhe surpreendentedoreal:umaanomaliaemumritualreligioso,umcostume,aformasingulardeumrochedo,aconsonânciadeumnomepróprio.Assim,noexemplode

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Chipre,haviaumaestátuademulhercurvadaparaa frente– testemunhade um rito esquecido, representação de alguma magia voltada àfecundidade.Dizia-se,paraexplicaraatitudeinsólitadaestátua,queeraocorpometamorfoseadoempedradeumamoçacuriosasurpreendidapelosdeusesnoatodeolharpelajanela;esobreessetemadesenvolveu-seumahistória de amor. Tal é a lenda de Anaxárete, cuja crueldade causara amortedohomemqueaamavaequenãoexperimentououtrosentimentosenãoodesejodeverpassarpela janelao cortejo fúnebrede suavítima.Coraçãodepedra,Anaxáretesetornouestátuaeseucorpofoiposto,assimimortalizado,dentrodotemplodeAfrodite.

Muitosrelatosanálogosdizemrespeitoanomesdelugaresebaseiam-seemjogosetimológicos.Àimaginaçãopopularnuncafaltouinventividadepara explicá-los. As variações nos nomes dos rios – fenômeno bemconhecido dos geógrafos, cada curso d’água apresentando diversasdenominações, segundo as populações instaladas sobre as margens –fornecem, em especial, matéria inesgotável. E dá-se o mesmo com odesenho das constelações ou com o curso de um planeta, onde sediscernematraçõesouódiosquetêmorigememumaaventuraacontecidanopassadocomserestransformadosdesdeentãoemestrelas.

Amatériamítica pode, pois, ser classificada em um certo número decategorias,oquetornaaanálisemuitomaisconfortável.Contudo,nãonosdeixemosenganarcomsemelhantesclassificaçõesdefronteirasincertas.Omito cosmogônico pode se degradar em ciclo ou em novela; a lendaetiológica integra-se em um ou outro caso com extrema facilidade. Umamesmalendapode,segundoafantasiaouasexigênciasespirituaisdecadaum,adquirirocaráterdeumromanceoudeumarevelaçãomística.Essaplasticidadedomitoéinerenteàsuanatureza:elanãoéumacaracterísticaadquiridatardiamente,masumapropriedadefundamentaldoµυθοζ,ativadesdeoperíodomaisdistantedahistóriadaslendas.

Como para todos os seres vivos, as dissecações anatômicas noslembram que a realidade derradeira da mitologia reside não em seusmembros esparsos,mas emum organismo de pulsações emetamorfosesincessantes.

3.Micenianos:daantigacidadegregadeMicenaseregiõessobsuainfluência.(N.T.)4.Atrides:descendentesdeAtreu,filhodeHipodâmiaereideMicenas.(N.T.)

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5.Tessália:regiãodaGrécia,nabordadomarEgeu.(N.T.)6.Milésio:deMileto,nolitoralasiáticodomarEgeu.(N.T.)7.HérculeséonomelatinodadopelosantigosromanosaoheróigregoHéracles.(N.E.)8.Argiano:deArgos(filhodeZeuseNíobe,obteveempartilhaarealezasobreoPeloponeso,queelechamoudeArgos).(N.T.)9.Pilos:antigacidade-estado,situadanoPeloponeso.(N.T.)10.Gilgamesh:reisumériodacidade-estadodeUrukqueteriavividonoséculoXXVIIIa.C.(N.T.)11.Melquart:deusfenício,duranteadominaçãogregaseutemploprincipalpassouaserdevotadoaHércules.(N.T.)12.Mísia:antigopaísdaÁsiaMenor,atualTurquia,ondeosgregosfundaramsuascolônias.(N.T.)13.Etiologia:estudodascausaedasorigens.(N.T.)

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CAPÍTULOII

OSGRANDESMITOSTEOGÔNICOS

Todosospovos,emummomentodesuahistória,sentiramnecessidadede explicar o mundo. Os gregos, em busca como tantos outros de umprincípio motor no cerne do Ser, acreditaram descobri-lo no Amor. Nocomeço,haviaaNoite(Nyx)e,aoladodela,oÉrebo,queéseuirmão.Sãoosdois rostos das Trevas do Mundo: Noite – do alto – e escuridão – dosInfernos.EssasduasentidadescoexistemnoseiodoCaos,queéoVazio–nãoovazio inexistenteenegativodos físicosedos sábios,masumvazioqueéinteiramentepotênciae“matriz”domundo,vazioporinorganização,enãoporprivação,vazioporqueéindescritível,enãoporquenãoénada.Poucoapouco,NyxeÉrebo se separamnoVazio.Érebodescee libera aNoite, que dá a si mesma uma forma côncava, tornando-se uma esferaimensacujasduasmetadesseseparamàmaneiradeumovoqueseabre:éonascimentodeEros(oAmor),enquantoumametadedaconchasetornaaabóbadadoCéueaoutra,odisco,maisachatado,daTerra.OCéueaTerra(Urano eGeia) possuemuma realidadematerial. OAmor é uma força denatureza espiritual, e é ele que assegura a coesão do universo nascente.UranoseinclinanadireçãodeGeia,eauniãodosdoisdáinícioàsgeraçõesdivinas.

Existemoutrasversõesdessalenda.ÀsvezessediziaqueaTerratinhasaído diretamente do Vazio e que ela engendrara a si mesma, ajudadasomenteporEros, o segundoanascernoMundo, a abóbadadoCéu. Poroutro lado, o Caos engendrara a Noite, que, por sua vez, ensejara onascimentodoÉter,queéa luzbrilhante,ofogomaispuro,edoDia,queiluminaosMortais.Mas,sejaqualforavariante,ésempreErosoanimadoreoelementomotordoUniversoemseuprincípio.

A união de Urano e Geia se revela fecunda. Dela saem, em primeirolugar, seis casais formadosporTitãs e porTitânidas.Os seis Titãs foramOceano,Ceos,Crio,Hiperião,JápetoeCrono,easseisTitânidas,Teia,Reia,Têmis,Mnemosina,FebeeTétis.Sãoseresdivinos,masaomesmotempoforçaselementares, sendoquealgunsconservaramatéo finalseucaráterquaseexclusivamentenaturalista.Oceanoéomaiscélebredetodos.Eleéapersonificação da água que cerca o Mundo, sobre a qual flutua o disco

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terrestre. Não é uma entidade “geográfica”, é uma força cósmica; foiconcebidoemumtempoemquesepensavaqueaterrahabitadaeraumailha imensa, pousada no centro de um rio que a circundava. Uma águaprimordial em que se tinha a impressão de estar no Ocidente, no paísvermelhodasFilhasdaNoite,situadoalémdoquedepoisseráchamadodeColunasdeHércules; tambémestavanopaísdosetíopes,nomarEritreu,que tanto podia ser nossoMar Vermelho como o golfo Pérsico. Tambémestava nos lados do Norte, nos confins do Erídano, sinuosa linha d’águaque,nonortedospaísesconhecidosdaEuropa,iadoOrienteaoOcidente,eondeasgeraçõesposterioresquiseramreconhecerocursodoDanúbio,doPó, do Reno e talvez do Ródano. Mas, antes dessas determinaçõesgeográficasincertas,oOceanoexistia.Águaprimordial,eleéopaidosrios,quesãoalimentadosporelegraçasacanaissubterrâneosouderivadosdeledemaneiramisteriosa,comooNilo,cujosegredoestáescondidonofundodasareiasdaEtiópia.PrimeiroanascerdosTitãs,Oceanoé“casado”comTétis,amaisjovemdasTitânidas,quepersonificaopoderfemininodoMar.Que ninguém se surpreenda ao ver um duplo símbolo do Mar: todafecundidadeédupla.Sóumapotênciafêmeapodeamadurecerepretenderserasementedomacho.Tétismoralonge,nadireçãooeste;àsvezeselasedesentendecomOceano,maschegaotempodareconciliaçãoeaordemdomundoésalva,adespeitodoscaprichosinerentesànaturezadasmulheres.

Ao lado da Água primordial, eis o Fogo astral: Hiperião (cujo nomesignifica:Aquelequevaiacima)une-seaTeia,aDivina,elhedátrêsfilhos,Hélio,oSol,eduasfilhas,Selene,aLua,eÉos,queéaAurora.EmseguidaHiperião e Teia desaparecem da lenda depois de, de alguma maneira,estabeleceremaligaçãoentreasgeraçõesdivinas.JáCriovaibuscarmulherforadasTitânidas,eoencontraremosnaposteridadedePonto.SeuirmãoCeosune-seaFebe,aBrilhante,eseráopaideLeto,quedesempenhouumpapelmuitoimportantenageraçãodosOlímpicos.Jápeto,rompendocomatradição que designava uma Titânida para casamento, casou-se comClímene, uma das filhas de Oceano e Tétis, e seus quatro filhos, Atlas,Menécio,PrometeueEpimeteu,serãoosintermediáriosentreosdeuseseoshomens.ÉaJápetoqueremontaindiretamenteacriaçãodosMortais.

Dentre as Titânidas, duas sobretudo, Têmis e Mnemosina, merecematenção.AprimeiraéopoderporexcelênciadaOrdemdoMundo:Têmiséa Lei, o equilíbrio eterno. Sua irmãMnemosina é o poder do Espírito, aMemóriaquegaranteavitóriadoespíritosobreamatériainstantâneaeéabase de toda a inteligência. Elas não se uniram aos Titãs, mas foram dealguma maneira reservadas para Zeus e a geração dos Olímpicos. Isso

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porqueosTitãssãoforçasbrutais,elementares,nasquaisoespiritualaindanão foi incorporado, a não ser em estado rudimentar. É singular esignificativoqueasduaspotênciasnasquaisseprefiguraoespíritosejamdenatureza feminina– talvezporqueo espírito recusea violência e adiequalquer ação imediata; talvez por ele ser de lenta maturação; talvezsimplesmente porque se observe nessas crenças o reflexo de um estadosocial – bem conhecido em outros lugares – no qual as mulheres sãodepositáriasdossegredosedaciênciacomunsàtribo.

De todososTitãs, omais importanteparaodesenrolardomundo foiCrono,omaisjovem,aquelequeengendrouosOlímpicos.

AuniãodeUranoeGeianãolimitouseusfrutosaosTitãseàsTitânidas.Depois deles vieram os Ciclopes: Argeu, Estérope e Bronteu, querepresentam evidentemente (como provam seus nomes) o clarão dorelâmpago, a névoa da tempestade e o estampido do trovão. DepoisnasceramosMonstrosdosCemBraços(osHecatônqueros),gigantescoseviolentos,quesechamavamCoto,BriareueGies.Uranoodiavatodosessesfilhos, não lhes permitindo ver a luz e obrigando-os a permanecerenterrados nas profundezas da Terra. Geia quis libertá-los e tentouconspirarcomelescontraUrano.Nenhumconcordou,excetoomaisjovemdosTitãs,Crono,queodiavaopai.EntãoGeialheconfiouumafoicedeaçomuito afiada e, numa noite, quando Urano se aproximou de Geia e aenvolveu completamente em um abraço, Crono, com um golpe da foice,cortou os testículos do pai e atirou-os ao longe. O sangue da ferida caiusobreaTerrae,maisumavez,fecundou-a.Foiassimquenasceramnovosmonstros, as Erínias, os Gigantes e as Melíades, que são as Ninfas dosfreixos.

Crono, portanto, ficou sozinho a reinar sobre um universo cujosprimeiros delineamentos se tornavam visíveis. Mas ele era violento ecarregava a maldição de seu crime. Longe de libertar seus irmãosmonstruosos,apressou-se,depoisde tirá-losdoseiodamãe,amergulhá-losdenovonastrevasinfernais,nofundodoTártaro.OqueindispôsGeiacontraele.Ecomoelavaticinaraqueumdiaeleseriadestronadoporumdeseus filhos,ele tratavadedevorarcada filhoque lhedavaa titânidaReia,queelefizerasuamulher.Foiassimqueeleengendroue,sucessivamente,fezdesaparecer três filhas:Héstia,DemétereHera, edois filhos,HadesePosídon. Mas quando o mais jovem dos filhos, o pequeno Zeus, estavaprestes a nascer, Reia quis lhe evitar a sorte dos irmãos e fugiu. Com acumplicidadedeGeia, foibuscarasiloemCreta,onde foi libertada.EntãoReiapegouumapedra,embrulhou-aempanos,dando-lheoaspectodeuma

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criançarecém-nascida,eaofereceuaCrono.Enganadopelaaparência,eledevorou a coisa que pensou se tratar do filho, e assim Zeus foi salvo. OoráculodeGeiairiamaistardeseconsumar.

Reia protegeu a infância do pequeno deus mantendo-o escondidodentrodeumacavernadeCreta,ondeoconfiouàsNinfaseaosCuretes.OsCureteseramdemôniosturbulentosquetinhaminventadoousodearmasde bronze e que passavam o tempo dançando e entrechocando lanças eescudos.Reiaachavaqueabarulheiraqueelesproduziamseriacapazdeabafarosvagidosdobebê,impedindoCronodedescobriroembustedequetinhasidovítima.AcriançadivinabebeuoleitedacabraAmalteiaecomeuomelqueasabelhasde Idadestilaramespecialmenteparaele.Quandoacabranutridoramorreu,Zeusguardousuapeleecomelafabricouparasiuma couraça, a égide (ou a “pele de cabra”), que ele agita no céu detempestade.

Umavezadulto,Zeus sonhaemdestronar seupai.Consegue, comumestratagema, fazer Crono engolir uma droga que o obriga a devolver osfilhosquedevorou.Zeus,depoisdereencontrarosirmãos,declaraguerraaCrono.OsTitãs tomamopartidodo irmão.Aguerraduradezanos,atéodiaemqueGeiarevelaaZeusqueeleobteráavitóriasechamarparaoseuladoosmonstrosqueCronoencerrounoTártaro.Éassimque,comaajudados Ciclopes, dos Hecatônqueros e dos Gigantes, os filhos de Cronoconseguem destronar o pai. Crono e os Titãs, acorrentados, foramsubstituir no Tártaro os outros filhos de Urano. Assim se deu aTitanomaquia, ou Guerra dos Titãs, que expulsou do poder a geraçãoprimordialeláinstalouosprimeirosOlímpicos.

Vê-sequeoessencialdas lendas teogônicasconsisteemumasériede“substituições”,umageraçãosucedendopelaviolênciaaqueaprecedeunopoder sobreomundo.E constata-seque,porduasvezes, é omais jovemdos deuses, o que nasce por último em cada geração, que conquista apreeminência:Crono,ocaçuladosTitãs;Zeus,ocaçulados“Cronidas”.Emgeral se admite ver aí o traço de um estado social no qual a sucessãopertenceaomais jovemdos filhos;masnenhumacidadehelênica forneceexemploatestadonoplanodahistória,eémuitoprovávelqueoesquemasucessório sobre o qual foram construídos esses mitos provenha de umpaís não-helênico. O caráter claramente astral do mito de Urano e amutilaçãofecundanteinfligidaporCronoaopaisugerem,aomenosnessesepisódios,origensasiáticas;mitosanálogos,conhecidosatravésdostextoshititas14deHattusa,naAnatóliaCentral, sãoencontradosdaCilíciaatéa

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Síria,esesabequeelosestreitossempreuniramessasregiõesdabaciadoEgeu. Parece, pois, que os mitos propriamente “gregos” não começamsenãocomoadventodeZeus,mas–consequênciatalvezmaisimportante–conclui-se também que essa dupla sucessão de gerações divinas nãorepresenta necessariamente, como às vezes se acredita, a lembrança dasubstituiçãode crençaspreexistentesporuma religião vencedora. TalvezpossaserverdadenocasodeZeusvitoriososobreCrono;masnãopoderiasê-lono casodeCrono “assassino”deUrano.AmutilaçãodeUranoéumritual de fecundidade, através do qual Crono “libera” as fontes da vidacósmica,efoiemtornodesserito,realousimbolizadopelaimagem,quesedesenvolveu o mito. É diferente no caso da ascensão ao poder dosOlímpicos.

As divindades substituídas por Zeus e seus irmãos parecem, em umacerta medida, representar um sistema religioso anterior à descida naGrécia dos conquistadores “arianos”. Essas divindades não foramsuprimidas; elas continuaram a viver nas lendas emesmo, aomenos emalguns lugares,a receberumculto.Mas tornam-sepotênciassecundárias,decaídas, cujo caráter monstruoso repugna o pensamento grego. Muitossugerem associações com omar. É bem provável que os Hecatônqueros,por exemplo, os Gigantes de Cem Braços, sejam apenas a transposiçãomítica dos polvos que aparecem tão frequentemente na mais antigacerâmica do Egeu. Mas não é só isso. Já chamamos a atenção para aimportânciadeOceanoentreosfilhosdeUranoeGeia.Umasériedelendasparalelas,maisoumenosbemarticuladascomagenealogia“canônica”,nosfazconhecerumoutrofilhodaTerra,nascidosemintervençãodenenhumapotênciamasculina,chamadodePonto,oFluxomarinho.Geiaseuneaeleelhe dá grande posteridade, que inclui justamente um grande número dedemônios secundários nos quais parece legítimo reconhecer divindadesanterioresàchegadadosprimeiroshelenos.SãotodaspróximasdasforçasedosfenômenosdaNatureza,oqueemgeralnãoéocasoemrelaçãoaosOlímpicos.Todas,ouquasetodas,sãoseresmonstruosos,deformadupla,queaparecemcomopersonagensnosmitosmaisrecentes.

O primogênito de Ponto e Geia foi o “Velho doMar”, Nereu. Unido aDoris,umadasfilhasdeOceano,engendrouasNereidas,“filhasdasondas”.Nereu é velho; é sábio e conhece todos os segredos e todas as profecias.Mas lhe repugna falar delas e, para escapar dos indiscretos, usavoluntariamenteopoderquetemdesemetamorfosear.AfiguradeNereulembraadeProteu,queaOdisseiajánosapresentou,queéumdemôniodomar situadonas águas egípcias.Naépocagrega clássica,Proteué apenas

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um servidor de Posídon encarregado de cuidar dos rebanhos de focaspertencentesaograndedeus.

O segundo filho de Ponto é Taumas, que se casou com Electra, umaoutra filha de Oceano, e lhe deu filhas: Iris, a mensageira dos deuses,personificaçãodoarco-íris,easHarpias,chamadasEloeOcítoe(aBorrascae a Voa-ligeiro), às quais se acrescenta às vezes uma terceira, Celeno (aEscuridão).SãoosgêniosdaTempestade,impetuososcomoachuvarápidaqueseabatesobreomarearrancatudonasuapassagem.AsHarpiassãoessencialmenteFurtadoras.Mulheresaladas,possuemgarrasafiadas,esuamoradasitua-senocoraçãodoMarJônico,nasilhasEstrófades.

OterceirofilhodePontoéFórcis,quemoranaregiãodeCefalênia,nacostaocidentaldaGrécia.AeleremontamasGreias,quesãoasVelhasdoMar,chamadasEnio,PefredoeDino.ElasviviamnoExtremo-Ocidente,nopaís onde o sol nunca brilhava. Eram irmãs das três Górgonas, Esteno,Euríale e Medusa, sendo que apenas a última era mortal. As Górgonastinhamumaspectopavoroso.Suascabeçaseramenvolvidasporserpentes,armadasdegrossaspresas,parecidascomasdejavalis;suasmãoseramdebronze; asas de ouro lhes permitiam voar. Seus olhos faiscavam, e delessaíaumolhartãopenetrantequequemovissesetransformavaempedra.Objetodehorror,elastinhamsidorelegadasaoslimitesdomundo,nomeiodanoite,eninguémerasuficientementeousadoparaabordá-las.Sozinho,Posídon se unira aMedusa e a engravidara. Os filhos dessa união foramPégaso,oCavaloAlado,eCrisaor,oSerdaEspadadeOuroque,porsuavez,foipaideGerião,ogigantedetrêscorposquemataráHércules,edaVípera,Equidna. Equidnamais tarde iria se unir aomais horrível dosmonstros,Tífon, que durante um tempo ameaçou suplantar o próprio Zeus; ela lhedeufilhos:oCãomonstruosoOrtro,oCãodosInfernos,Cérbero,aHidradeLernaeaQuimera,quefoi inimigadeBelerofonte.DeOrtroedeEquidnanasceram a Esfinge de Tebas e o Leão deNemeia. E assim a imaginaçãogrega dava uma descendência aos seres de pesadelo sobre os quaisHérculesiriatriunfar.

OúltimofilhodePontofoiumamulher,Euríbia.ElasecasoucomoTitãCrioesuaposteridadefoiastral.Seufilhomaisvelho,Astreu,secasoucoma Aurora (Éos), que lhe deu como filhos os Ventos, a Estrela da Manhã(Eósforos) e finalmente todos os Astros. Seu segundo filho foi o gigantePalas, marido da Esfinge. Ele só engendrou potências simbólicas: Ciúme,Vitória,PotênciaeViolência.MasoterceirofilhodeCrioeEuríbia,unidoaAstéria, filhadeCéoseFebe, tornou-sepaidadeusa infernal,Hécate,quetinhatrêsformas.

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A geração pré-olímpica – ou seja, todas as divindades que não seconectam diretamente a Crono,mas são oriundas dos Titãs e das outrasuniões de Geia – compreende, portanto, todos os monstros que a lendaconhece e que vão desempenhar um papel nos ciclos divinos e heroicos,bem como nas “novelas”. Mas compreende sobretudo divindadespuramente“naturalistas”:oSol,aLua,aAurora,osAstros,osVentoseosgênios de fenômenos naturais, como a Tempestade e a Borrasca. É, comefeito, a essa geração primordial que pertencem os Ciclopes, filhos deUrano,queéprecisodistinguircuidadosamentedosCiclopesconstrutores,quesãoumapopulaçãomíticavindadaLíciaparasepôraserviçodosreisde Argos e a quem se atribuíam as construções aparentemente sobre-humanas,feitasdeblocosenormes,aindavisíveisemMicenaseTirinto.OsCiclopes “uranianos”, por sua vez, são apenas três: Bronteu, Estérope eArgeu,emencionamossuarelaçãoevidentecomaBorrasca.ComoZeuseratambémumdeusdocéu,colocou-osmaistardeaseuserviço,eelesserãoencarregadosde“forjar”osrelâmpagos.Umatradiçãochegaaproporqueforam eles que deram ao recém-chegado as armas que não possuía atéentão. Aos poucos, os Ciclopes serão considerados fabricantes de armasdivinas:oarcodeApolo,acouraçadeAtenaetc.,queelesconfeccionamsobadireçãodeHefesto,odeus-ferreirodageraçãonova.Maséprovávelquese tratede imaginações tardias,nãodatandosenãodaépocaalexandrina.Por enquanto, sua atividade se desenvolve sob os vulcões sicilianos; é ofogodesuasforjasqueilumina,ànoite,ocumedoStrombolioudoEtna,eorugidode seus foles e omartelarde suasbigornas retumbampor toda aregião. No entanto, lendas mais antigas explicam de outra maneira osfenômenos vulcânicos. Elas atribuem as manifestações aos Gigantesmergulhados sob a terra, depoisde sua revolta contraZeus eno final daGigantomaquia15.

A vitória de Zeus não deixa Geia satisfeita, assim como não ficarasatisfeita depois da vitória de Crono. Ela estava descontente com otratamentoinfligidopelovencedoraosTitãs,queeramseusfilhos,equerialibertá-los de sua prisão. Para isso recorreu aos Gigantes, que tinhamnascidodelaprópriaedosanguedeUrano.OsGigantes,porsuavez,nãoeramimortaisesópodiamsermortospelosgolpesdeumdeusjuntocomosdeummortal.Eleseramseresenormes,tinhamumaforçainvencívelegrandeaudácia.Possuíamcabeleira ebarbahirsutas, e suaspernas eramserpentes. Indica-se como seu local de nascimento a quase ilha trácia dePalene.Malsaíramdaterra,começaramasacudirárvoresincendiadasea

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apedrejar o céu a golpes de rochedo. Foi então que intervieram osOlímpicos. Zeus se armou com o raio, Atena apanhou a égide e a lança,Dionísio brandiu o tirso, um longo bastão adornado com uma pinha eenfeitadocomheraeguirlandas.Emsuma, cadadivindade interveio comsuaarmafavorita.Ecomoeranecessárioqueummortalajudasseosdeusesnaluta,recorreu-seaHércules.AintervençãodeHérculesfoisingular.Elaétotalmentecontráriaàcronologia,umavezqueonascimentodeHérculesébemposterioràcriaçãodoshomenseaodilúviodeDeucalião,quemarcouofinaldaprimeirageraçãomortal.Elatraisemdúvidaocaráterartificialerecente da Gigantomaquia, a menos que se queira considerar que esseHérculessejaaindaapenasoprotótipodoheróidequea lendaposterioriráseapoderar.Sejacomofor,estavacomeçandoalutaentreosdeuseseosGigantes.Hérculesintervémsobretudocomsuasflechas,queatingemosGigantesnomomentoemqueumdeusosabate.OsGigantessedispersame omundo inteiro fica coalhado de escombros e projéteis. Foi assimqueEncéladofoiesmagadopelaSicília,sobaqualencerrou-oadeusaAtena.AilhadeNisiros,lançadaporPosídon,esmagouPolibotes.Ofolclorenãotevenenhumadificuldadeematribuiraesseepisódiodalendaumaquantidadededetalhestopográficos;umpoucocomonoMonteSaint-MichelenoutroslugaresseevocaGargantuaapropósitodaformadeumamontanhaouumailhota.

Zeus, antes de conquistar o poder sem contestação, ainda tinha quepassarporumaprova,a lutacontraTífon(ouTifeu).Segundoasversões,TífoneraumfilhodeHera,engendradopeladeusasemaparticipaçãodenenhumsermasculino,ouentãoeraumoutrofilhodaTerra,queelativeracom Tártaro. Tífon era maior do que os Gigantes e sua cabeça batiafrequentementenasestrelas.Emvezdededos,elepossuíanasmãoscemcabeçasdedragão.Dacinturaatéospés,seucorpoeraenvoltoemvíboras.Eraaladoeseusolhos lançavamchamas.Quandoosdeusesviramaquelemonstro atacar o Céu, fugirampara o Egito e se esconderamno deserto,onde adquiriram formas animais. Apolo se tornou ummilhafre, Hermes,umíbis,Ares,umpeixe,Dionísio,umbode,Hefesto,umboietc.Explica-se,assim, o culto rendido pelos egípcios a divindades simbolizadas poranimais.Contudo,ZeuseAtenacontinuavamsozinhosdiantedeTífon.ZeuseTífonempreenderamumcombatecorpoacorponosconfinsdoEgitoedaArábiaPétrea;Tífonvenceue se apoderoudaharpè (a “foice”)daqualodeusestavaarmado.ElecortouostendõesdosbraçosedaspernasdeZeus,carregou seu corpo agora inerte sobre os ombros e o encerrou em umacavernadaCilícia;alémdisso,escondeuos“nervos”deZeusdentrodeuma

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peledeursoeaconfiouaumdragão.MasHermeseodeusPãconseguiramdescobrirostendõesecolocá-losnolugar,semqueTífonsoubesse.EassimZeusrecuperouovigoreocombatefoiretomado.Eleduroumuitotempo,eseusepisódiossedesenrolaramnomundointeiroatéomomentoemqueZeusesmagouoadversáriosoboEtna,naSicília,eoreduziuàimpotência.

Tífon foioúltimoadversáriodeZeus.Os feitosdosdoisAlóades,doisgigantes filhos de Posídon que empilharam montanha sobre montanhapara escalar o Olimpo e desafiaram com seu amor Artemis e Hera, nãoconstituíram um perigo real para o equilíbrio do mundo. Bastou a Zeuslançaralgunsraiosparaprecipitá-losnos Infernos.Deagoraemdiante,aautoridadedoSenhordosDeusespermanecerá incontestada.A idadedosmonstros foi concluída. Os que o mundo conhecerá depois serão osdescendentesumtantodegeneradosdosseresprimordiais,filhosdaTerra.Só serão temíveis para os humanos, e é a Hércules que Zeus confiará atarefadeabatê-los.

Restava,nouniverso,explicarapresençadosHomens.Suacriaçãonãoé atribuída à linhagem de Crono, mas à descendência de um outro Titã,Jápeto, e de sua mulher, a Oceânida Clímene. Jápeto teve quatro filhos,Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu. Os dois primeiros são gigantesbrutais e “sem moderação”. Atlas engendrou demônios astrais e a eleremontam as duas constelações das Híades e das Plêiades16. Depois daGigantomaquia da qual participou contra os deuses, foi-lhe imposto umcastigosevero:recebeuamissãodesustentarsobreosombrosaabóbadado Céu, no local onde ela se inclina na direção do Oceano, nos confinsocidentais do mundo. Perseu, retornando depois de matar a GórgonaMedusa,transformou-oempedraaolhemostrarorostodomonstro.Atlastornou-se amontanha que limita a terra habitada ao sul das Colunas deHérculesemarcaocomeçodograndeOceano.

Dos quatro filhos de Jápeto, diz-se às vezes que foi Prometeu quemcriou os Mortais, dando-lhes forma com terra argilosa. Na verdade, essatradição não é universalmente admitida. Na Teogonia de Hesíodo,Prometeu ainda é considerado apenas o benfeitor dos homens que, poreles, dispôs-se a enganarZeusdiversasvezes.Aprimeiravez foiduranteumsacrifíciosolene.Eledividiuumboiemduaspartes:deumlado,sobapele, a carneeasentranhascobertaspeloventredoanimal;dooutro,osossos, dissimulados sob uma bela camada de gordura branca, depois dapeletodaretirada.EmseguidapediuqueZeusescolhessesuaparte;orestocaberiaaoshomens.Zeusescolheuagordurabranca,masquandopercebeu

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que ela escondia apenas ossos, foi tomado por um grande furor contraPrometeu e também contra os Mortais. Para puni-los, recusou-se a lhesenviarofogo.EntãoPrometeusubiuaocéueroubousementesdefogo“darodado sol”,paradepois trazê-lasparaa terradisfarçadasdentrodeumcaule oco. Desta vez a vingança de Zeus foi exemplar. Prometeu foiacorrentadosobreoCáucasocomcorrentesdeaço,eumaáguia,nascidadeEquidna,aVíboramonstruosa,devorou-lheofígado,quetornavaanascer.OsuplíciodurouatéodiaemqueHércules,comumaflecha,abateuaáguiaesoltouogigantedeseusgrilhões.MascomoZeusjurarapeloEstigequePrometeupermaneceriaeternamentepresoàmontanha,decidiu-sequeojuramentoseriamantidoseogigante,libertado,usasseumaneldeaçonoqualestaria incrustadoumpedaçodorochedo.ApuniçãodosMortais foimaisseveraainda,poiselapermaneceusemremédio.ZeuspediuaHefestoeàdeusaAtenaquecriassemumseraindadesconhecido,quecadaumdosdeuses ornaria com uma qualidade. Esse ser foi a Mulher que, por terrecebido tantos dons, foi chamada de Pandora (aquela que tem todos osdons).Elapossuíaabeleza,agraça,ahabilidademanual,apersuasão,masHermes tambémcolocouemseucoraçãoamentiraeaperfídia.Conta-sequeZeusadeudepresente aEpimeteu, o irmãodePrometeu, equeele,esquecendooconselhodoirmãodenãorecebernenhumpresentedeZeus,foiseduzidoporsuabelezaeaaceitou.Mashaviaemalgumlugardaterrauma jarra dentro da qual estavam colocados todos osmales.Uma tampaimpedia seu conteúdo de escapar. Mal chegada à Terra, Pandora,consumida pela curiosidade, destampou a jarra. E então todos os malesescaparam e se espalharam entre os Mortais. Mas Pandora, assustada,tornou a tampar a jarra e somente a Esperança, que se encontrava nofundo,continuouprisioneira.

Umaoutraversãopropõequea jarra,dadaporZeusaPandora comopresentedenúpcias, conteria todososbens,masa imprudenteosdeixouescapar e retornar para amoradados deuses. Tantonumquanto noutrocaso,aEsperançaéapobreconsolaçãoconcedidaaoshumanos.

MesmoastradiçõesquenãoreconhecememPrometeuoméritodetercriado os homens ligam sua raça à raça dosMortais. Prometeu tinha umfilho, Deucalião, que se casou com Pirra, filha de Epimeteu e Pandora.Existiamentãosobreaterraoutroshumanos–cujaorigempermanecesemexplicação –, os “homens da idade do bronze”, corrompidos e perversos.Zeusresolveudestruí-los,desencadeandoumgrandedilúvio.Apenasdois“justos”deveriamserpoupados,DeucaliãoePirra.Seguindoosconselhosde Prometeu, eles construíram uma “arca” para flutuar sobre as águas.

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Apósnovedias enovenoites, osdois abordaramsobreasmontanhasdaTessália.Depoisqueodilúvio foi embora, eles saíramdaarca e se viramsozinhos sobre a terra deserta. Zeus enviouHermes para lhes oferecer asatisfação de um desejo que eles podiam escolher. Deucalião queria tercompanheiros.EntãoZeuslheordenouqueatirasseporcimadoombro“osossosdesuamãe”.Pirratambémdeveriafazeromesmo.Pirraseassustoucom tamanha impiedade. Mas Deucalião compreendeu que se tratava de“ossosdaTerra”,queéaMãeuniversal.Eleobedeceu,edecadaumadaspedras que lançava nasciam homens; das que Pirra jogava nasciammulheres. Deucalião e Pirra tiveram, por outro lado e de modo maisnormal, outros filhos, que foram os ancestrais dos diferentes povos daGrécia;omaisvelho foichamadodeHeleno,queengendrouDoro,XutoeÉolo.DoroeÉolosãoosepônimosdasraçasdóricaeeólica.Xuto,porsuavez,teveentreseusfilhosAqueueÍon,epônimosdosaqueusedosjônios.Jáseesboçavamasgrandesdivisõesdopovogrego,eestamosnafronteiraentreacosmogoniaeahistória.

Percebe-sequeas lendasrelativasàcriaçãonão formamumconjuntocoerente.Nãosomentecomportamnumerosasvariantes,comotambémemnenhummomentosedáumatocriadorúnico,comoseopensamentogregorecusassequalquerexplicaçãototal,preferindopermanecermaissensívelàdiversidade domundo. Para ele, um deus ou um demiurgo jamaispensaglobalmente o universo. Mesmo as potências sobrenaturais estãocondicionadas a um devir de que elas não são inteiramente donas.Nenhuma de suas decisões é irrevogável. Acima de suas vontades planaumaForçadasCoisas,queporvezesé chamadadeDestinoequenãodáimportância a intenções e juramentos. Só mais tarde, no tempo dosfilósofos, équeopensamento se elevará até anoçãode criação refletida,conforme a um plano racional; mas então se terá deixado o domínio domito.

Constata-setambém,emrelaçãoàquestãomaisespecíficadacriaçãodohomem, que tal noção apresenta uma certa vagueza. Existem lendas queexplicamacriaçãodedeterminadohomem,dedeterminadaraça,mastodaselassupõemapreexistênciadeoutroshomensedeoutrasraçasdasquaisnãosefala.Comoseopensamentogregonãocogitasseemadmitir,sequernoplanomítico,aequivalênciadetodososhomensenãosaísse,assim,deseu particularismo. Há uma criação “tessália” resumida no mito deDeucalião e Pirra.Mas há tambémuma criação argiana, que conhece um“primeirohomem”, de nomeForoneu, filho do rio Ínaco e da ninfaMélia(cujo nome lembra o do freixo). De Foroneu sai uma linhagem à qual

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pertenceArgos,epônimodopaísargiano;hátambémumPelasgo,epônimodopovodosPelasgos,umAqueu,distintodo filhodeXuto,umMessênio,epônimodaMicenas,eumFtia,aquemsesupunhaqueopaísdeFtiótida,naTessália,devesseseunome.Maisdoqueumacosmogonia,astradiçõeslocaisnosoferecemgenealogiasmúltiplas,nasquaisvemosaraçahumanasairpoucoapouco,aoacaso,daraçadasninfas,dosriosedosdríades,quesãoosespíritosfemininosligadosàvidadasárvores.Nãohá,entredeusesemortais,averdadeirasoluçãodecontinuidadequeumacriaçãoexnihilosupõe. Pode-se sustentar até certo ponto que, aos olhos dos gregos, ohumanoéo“divinodegradado”–oqueexplicaqueomitopossa,comtantafrequência, apresentar o processo inverso e nos mostrar os homensadquirindoporsuasprópriasforçasashonrasdadivindade.

Assim, a lenda de Prometeu, que talvez represente a melhoraproximaçãodeummitocriacionista,acentua,demaneiracuriosa,queoshomensnasceramàmargemdavontadedeZeus.Nãoquehajaentreeleeos mortais verdadeiro antagonismo, mas o deus não é, na origem efundamentalmente,“paidoshomens”.Éummestrequeencontraohumanoem seu império e se acostuma a ele na medida do possível. Zeus temnecessidadedehomens;comparadosaosOlímpicos,representamumramocolateral,primoscaídosemdesgraça,decerto,masquegozam,nopalcodouniverso, de uma espécie de igualdade inata diante das divindades,maispoderosas emais bem dotadas. Todos se inclinam igualmente perante oDestino. Diante de uma mesma concepção do mundo, imagina-se umacidade onde os homens seriam escravos e os deuses, homens livres:diferençaacidentaldecondiçãoedepoder,massemelhançadenatureza.

14.Hititas:povodaAntiguidadequehabitouaÁsiaMenoremcercade1900a.C.(N.T.)15.Gigantomaquia:combatemitológicodosgigantescontraosdeuses.(N.T.)16. As Plêiades eram as sete filhas do titã Atlas e da ninfa Pleione que foram transformadas emconstelaçãoporZeusparaescapardasperseguiçõesdocaçadorÓrion.(N.E.)

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CAPÍTULOIII

OCICLODOSOLÍMPICOS

ArevoluçãocelesteprovocadaporZeusinstalounopoderageraçãodosCronidas,filhosdeCrono,eonovomestreficousendoomaisjovemdentreeles. Os três primeiros da linhagem foram três filhas: Héstia, Deméter eHera; depois vieram três filhos: Hades, Posídon e Zeus. Assim, a geraçãodosCronidas,simetricamentedistribuídacomotinhasidoadosTitãs,filhosdeUrano,nãoalcançou,emnúmero,senãoametade.Masdesdeoprincípiocada um possuía seus atributos e seu domínio fixado pelo Destino. Talaspecto é incontestado em relação às três deusas. Héstia presidia o fogodoméstico; imóvel no Olimpo como o fogo doméstico na morada doshomens, ela obtevedeZeusumavirgindade eterna. Sua irmãmaismoça,Deméter,presidiaa terra cultivada.Elanão se confundecomGeia, aMãeprimordial, que engloba em seu seio tanto as montanhas e os desertosquanto regiõesmais acolhedoras. Deméter, também umamãe fecunda, éligadasobretudoaosmitosdotrigo,eéassimquenósaveremos;seucultoocorre nas planícies férteis onde brotam os grãos do trigo. Já Hera é adivindadedocasamento.ÉaesposadeZeus; todososanossecomemoraestauniãodivina.Aestátuadadeusaéparamentadacomo trajedeumajovemnoivaeconduzidaemprocissãoatravésdascidadesatéosantuárioonde se preparou o leito nupcial. Assim, viam-se renovados o poderfecundantedocasale,comaintermediaçãodadeusa,odaNaturezainteira.

AsatribuiçõesdostrêsfilhosdeCrono,Hades,PosídoneZeus,segundosediz,não lhespertencerampor todaaeternidadee teriamresultadodeumsorteio.ApóssuavitóriasobreosTitãs,ostrêsirmãosteriamdivididoentresios trêsdomíniosdomundo.Zeusobteveo céu,Posídonomar, eHadesoimpériosubterrâneoeoreinodosMortos.Mas,aindanodecorrerda lutacontraosTitãs,cadaumdeles já tinharecebidodosCiclopesumaarma relacionada com suas funções futuras: Zeus, o raio; Hades, umcapacetemágicoquetornavainvisívelquemousasse(símbolodaMorte);Posídon um tridente parecido com o dos pescadores de atum, que lheserviaparabalançaraterraeasondas.Dentrodociclo,comosevê,unem-seumrelatodeambiçãohistóricaeumaespéciededescriçãoimanentequenão têm pejo de estar em contradição aparente com a descrição

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cronológica dos fatos, como é o caso, por exemplo, da intervenção deHércules na Gigantomaquia, anterior, no entanto, à data geralmenteadmitidaparaonascimentodoherói.

Aos seis primeiros Olímpicos filhos de Crono acrescentam-se outrasdivindades, que formam com eles o “conselho” dos grandes Deuses. Amaiorparte são filhos e filhasdeZeus, oque fazpor vezes caber a ele onomede “Pai dosDeuses”. A tradição tardia, desenvolvida sobretudo emRoma sob a influência etrusca, conhece doze Grandes Deuses (iguais,consequentemente,emnúmeroaosdozeTitãs),masa listaéestabelecidacomdificuldadeecomtodacertezavariouaolongodaseras.Asdivindadesoriundas de Zeus que formam, na época clássica, a “segunda geração” deOlímpicossãoasseguintes:Afrodite,Apolo,Ártemis,Hefesto,Atena,Ares,Hermes e Dionísio. O que dá, com os seis Cronidas, um total de catorzedivindades.Dentreelas,DionísioéignoradoporHomero;eleé,segundosediz, embora erradamente, um recém-chegado ao Olimpo, ainda que seunome já apareça desde os tempos micenenses, uma vez que consta nasinscriçõesdoquesechamade“linearB”.OsilênciodeHomeroexplica-seporoutrasrazões.Sejacomofor,parasechegaraototaldedoze,éprecisoexcluirHadesePosídon,poisseusdomíniosnãosãonoalto.Masháoutrasdivindades que permanecem fora da lista canônica. Deixa-se de ladonaturalmente Perséfone, filha de Deméter e Zeus, mas esposa de Hades,mantidapeloesposonosInfernos;deixa-se tambémaesposadePosídon,Anfitrite,filhadeNereueDoris;e,commaisrazãoainda,umaquantidadede outros filhos divinos de Zeus: Hebe, que simboliza a juventude dosdeuses; Ilícia, demônio que preside os partos; as Horas, que são aspotências que presidem as Estações; as Musas, relacionadas a todas asatividadesdesinteressadasdoespírito;easCárites(asGraças),quecuidamtodos os anos da renovação da vegetação e personificam a alegria domundo – todas essas divindades somente cercam os Grandes Deuses,figurandoemseucortejosemusufruirdeseusprivilégios.

AsatribuiçõesdosnovosOlímpicosnãosãomenosdefinidasdoqueasde seus antecessores.Apolopresidea vidência, a cura e apropagaçãodedoenças e amúsica– ele regeo corodasMusas e tocauma liradeouro.Adivinha-se, por trás dessas diversas funções, o poder encantatório dos“cantos” mágicos, e talvez esteja aí o princípio de sua personalidademúltipla. Com frequência se faz dele um deus solar, e, decerto, tal ideiaencontraalgumajustificativaemumououtrodeseusatributos,emumououtro epíteto de seu ritual. Mas a natureza solar não lhe é essencial.Provavelmente,atravésdesuamãeLeto,elese ligadiretamenteaosTitãs

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“astrais”, a Ceos e a Febe,mas, como vimos, o Sol (Hélio) é umdemôniodistintodentrodamitologia.Ele temsuas lendasprópriaseatéo fim lheserá aplicado o epíteto de “Titã”, visto que é considerado um filho deHiperião.UmadenominaçãodessasnuncapoderiaconviraApolo,porsereleessencialmenteumOlímpicoepossuirumanaturezamuitíssimomaiscomplexa.

No momento em que Leto o pôs no mundo, na ilha de Delos, cisnessagradosderamvoandosetevoltasemtornoda ilhaporqueseestavanosétimodiadomês.Depoisoscisnesolevaramparaopaísdeles,àbeiradoOceanoejuntodosHiperbóreos,queviviamsobumcéusemprelimpo.Elepermaneceráaliduranteumanorecebendohomenagensdoshabitantese,porvoltadametadedoverão,voltaráàGréciaemmeioafestasecantorias.A cada ano se celebra, emDelfos, a chegadadodeus. Foi emDelfos, comefeito,queApoloseestabeleceuaoretornar.PrimeirotevequematarcomsuasflechasumdragãodenominadoPíton,que,namontanha,protegiaumvelho oráculo de Têmis e praticava mil depredações na região. Comolembrança de sua vítima, ele instituiu jogos que chamou de “Píticos”.Apoderando-se do oráculo de Têmis, declarou-o sua propriedade econsagrouumtronodetrêspésnosantuário–erasobreelequesesentavaasacerdotisaencarregadadetransmitirsuasrespostasaoshomens.

Apolo,queéomaisbelodosdeuses,alto,famosopeloscachosdeseuscabelos negros com reflexos azulados, conheceu numerosos amores,maspoucosforamcorrespondidos.AninfaDafne,filhadodeusdorioPeneu,naTessália,nãocorrespondeuaosseusdesejos:elafugiuparaamontanhae,comoeleaperseguisse,suplicouaopaiqueametamorfoseasse.Peneufezdelaumloureiro,aárvoredeApoloporexcelência.UmoutroinfortúniodeApoloéahistóriadeseusamorescomCoronis,queelefezmãedeAsclépio,mas que, enquanto ainda o carregava no ventre, enganou o amante e seentregou a um mortal, de nome Isquis. Apolo matou Coronis com umaflechadaearrancouopequenoAsclépiodasentranhasdamãenomomentoemqueeraacesaafogueirafúnebre.

ComCassandra,filhadePríamo,Apolonãofoimaisfeliz.Paraseduzi-la,ofereceu-se para ensinar-lhe a adivinhação. Cassandra aceitou, mas tãologoseviuinstruídanãoquiscederaodesejodeApolo.Este,pordespeito,cuspiu-lhe na boca, privando-a com isso não da ciência, mas do dom dapersuasão.EapesardapobreCassandrafazerasmaisverídicasprofecias,ninguémlhedavacrédito.

Apolonãolimitouseusamoresàsmulheres.Seusamadosmaiscélebresforam Jacinto e Ciparisso, cujas mortes, ou melhor, metamorfoses (o

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primeiro se tornou um jacinto, o segundo, um cipreste) o afligiramprofundamente. É bem provável que, por trás dessas duas lendas, sedissimulem lembranças de cultos anteriores à vinda dos helenos,provavelmente“egeanos”,incorporadosporApolo.

Conta-se, finalmente, que por duas vezes Apolo se submeteu a umaprova e teveque se colocar a serviçodosmortais.Aprimeira vez foi emseguidaaumaconspiraçãoqueformaracomPosídon,HeraeAtena,afimde atar Zeus em suas correntes de ferro e suspendê-lo no céu. Aconspiração fracassou;comopunição,ApoloePosídon foramobrigadosatrabalhar para o rei de Troia, Laomedonte, e a construir asmuralhas dacidade. Concluído o trabalho, as duas divindades reclamaram ao rei osalário combinado, mas Laomedonte recusou e ameaçou cortar-lhes asorelhas e vendê-los como escravos. A segunda prova imposta ao deusconsistiuemserviraoreiAdmeto,deFeres,naTessália.ZeuslheimpôsaprovaporqueApolomataracomsuasflechasosCiclopesquetinhamdadoaZeuso raiodoqualele seserviraparamatarAsclépio,o filhodeApoloculpadodeterressuscitadocadáveres.EassimApolofoi,duranteumano,oguardador de bois de Admeto. Durante todo o tempo em que cuidou dorebanho, os animais prosperaram de maneira milagrosa; os bezerrosnasciamemduplas,e,demaneirageral,foiumperíododeabundânciaparaAdmeto.HáquemdigaqueAdmetoteriasidoobjetodeamordodeus.

Artemis, sua irmã,éa réplica femininadeApolo.Comoele, temcomoarmaumarcocomoqualenviaàsmulheres–especialmenteasqueestãoprestes a parir – as flechas da morte súbita. Artemis permaneceueternamentevirgem;elapassaotemponacaça,percorrendoasmontanhasacompanhadade seus cachorros.Assim comoApolopossuía atributosdedeussolar,Artemisfora,desdeaAntiguidade,identificadaàLua.Contudo,nãoduplicoupuraesimplesmenteafiguradeSelene.Elanãoselimitouasimbolizaroastro;elafoitambéma“damadasferas”,apotênciamisteriosaque presidia a fecundidade animal nas florestas, e, sendo assim,encontravam-se nela traços que, sem nenhuma dúvida, pertenceram àgrande deusa cretense. É significativo – mas explicável por essa origemcomplexa – que a virgem Artemis fosse invocada no momento dosnascimentos,equeasjovensmãesachassemqueelapodiatantosocorrê-lasnassituaçõesperigosascomotambémlhesserfunesta.Contava-sequeessepoderdeArtemisserevelaradesdeseupróprionascimento.Suamãe,Leto,queforaamadaporZeus,estavaprestesadaràluzosgêmeosdivinosquecarregavaquandoHera,esposa legítimadeZeuse tomadaporcruéisciúmesdamoça,proibiutodososdeusesdaterradelhedarasilodurante

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as dores. Leto errou sem esperança, pois todos os países a recusavam.Finalmente Delos, uma ilha também errante, estéril, tão pobre que nãotinhanadaatemerdeninguém,consentiuemacolhê-la.Eapobremulherpôsosfilhosnomundodebaixodeumapalmeira,aúnicaárvoredetodaailha. Artemis foi a primeira a nascer. E na mesma hora ocupou-se emcompletaropartodaprópriamãe,ajudando-aadaràluzApolo,osegundodosgêmeos.

Hefesto comandao fogo. Ele não é o fogo,mas omestre das artes daforjaedotrabalhodosmetais.EmgeralétidocomofilhodeZeus,masdiz-seàsvezesqueHeraocolocounomundosozinha,semajudadenenhumprincípio masculino, por despeito pelo nascimento de Atena, saída dacabeçadeZeus.Hefestoéumdemôniomanco.AIlíadanosinformaarazão.Como Hera brigava com Zeus por causa de Hércules, Hefesto tomou opartido da mãe. Então Zeus o segurou por um pé e lançou-o do alto doOlimpo.Hefestocaiuduranteodiainteiro;ànoite,alcançouaTerranailhade Lemnos, onde jazeu,mal respirando. Como era imortal, não chegou amorrer,masficoualeijadoparasempre.AlendanosmostraHefestocomoumartesãodivino,sempreprontoparaexecutarqualquertrabalhoajudadopelos Ciclopes ferreiros, como joias ou armas encomendadas por outrosdeuses.Noentanto,oepisódiomaiscélebredeseucicloésuadesventuraconjugalcomAfrodite.

Hefesto,fisicamenteprejudicado,eraconhecidoporseligaramulheresde grande beleza. Atribuem a ele como esposa ora Cáris, a Graça porexcelência,oraAglaia,amaisjovemdasCárites.Porém,ZeusterminoulhedandoemcasamentoAfrodite,amaisbeladasdeusas.SóqueAfroditenãotardouaseencantarporAres,apontodeoSol,quetudovia,surpreenderum dia os dois amantes embevecidos um com o outro. Ele foi contar aaventura aomarido; este nada disse,mas preparou uma rede invisível eestendeu-aemtornodacamadamulher.Nomomentooportuno,aredesefechou, imobilizando os dois culpados e proibindo-lhes qualquermovimento. Então Hefesto convocou todos os deuses para o espetáculo.Assimque foi solta, Afrodite fugiu de vergonha, e todos os deuses foramtomadosporumrisoinextinguível.

Afrodite,acompanheirainfiel,étidacomofilhadeZeuseDioneia,umadas divindades da geração primordial. Uma outra tradição, bastantedifundida, a faz nascer de Urano. Ela teria sido engendrada quando osanguedodeus,depoisdesuamutilação,caiunomar.Afroditeseriaentãoamulher“nascidadasondas”,epítetoque lheaplicamfrequentementeospoetas.Malsaídadaespumadomar,foilevadaporZéfiroprimeiroaCítera

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edepoisparaacostadeChipre,queeramseusterritóriospreferidoseondeelapossuía, na épocahistórica, santuários especialmente célebres.Ela foiacolhida pelas Horas (as Estações), que a vestiram, enfeitaram econduziramatéosImortais.

Afrodite reúne em sua lendas elementos bastante diversos. Semnenhumadúvida,ela surge,noprincípio, comoumapotência temívelquesubmete o universo inteiro a suas leis. Ela é o demônio da fecundidadefeminina e, por uma analogia evidente, o da fecundidade na Natureza. Omaiscélebredeseusmitos,seusamorescomAdonis,é,aesserespeito,omais revelador, indicando-nos aomesmo tempo a origem de alguns doscultosassimiladospeladeusa.

Conta-se comefeitoqueo reidaSíria,Teia, tinhauma filha,MirraouEsmirna,equeAfrodite,porraiva,provocounajovemodesejodoincestocomopai. Esmirna conseguiu enganarTeia e se uniu a ele durantedozenoites, mas na décima segunda noite Teia descobriu o crime da moça eperseguiu-a para matá-la. Esmirna invocou os deuses, e eles atransformaram em um arbusto, a árvore damirra. Dois meses depois, acasca se abriu, e dela saiu uma criança que recebeu o nome de Adonis.Afrodite, sensibilizada pela beleza da criança, recolheu-a e confiou-a aPerséfone para que ela a criasse em segredo, na escuridão dos Infernos.Entretanto, a Rainha dos Mortos encantou-se igualmente com o beloAdonisenãoquisdevolvê-loaAfrodite.AdiscussãofoiarbitradaporZeus,e decidiu-se queAdonis viveria um terço do ano comAfrodite, um terçocomPerséfoneeumterçocomquemelequisesse.Contudo,AdonispassoudoisterçosdoanojuntoaAfrodite,eapenasumterçonoreinodosMortos.Eassimfoidurantealgumtempo,atéqueAres,porciúme,incitoucontraorapazumjavalimonstruosoqueoferiudemortecomumadesuaspresas.DosanguedeAdonisferidonasceramanêmonas.Afrodite,comolembrançade seu amante, instituiu uma festa fúnebre que, todos os anos, naprimavera, era celebradapelasmulheres sírias. Elasplantavamgrãos emvasos e os regavam com água quente para fazê-los crescer com maisrapidez.Asplantaçõeseramchamadasde “jardinsdeAdonis”.Asplantasassimforçadasnãotardavamamorrer,easmulheresemitiamlamentaçõessobreasinadojovemamadoporAfrodite.Aomesmotempo,orioAdonis,que corre emBiblos, adquiria uma tonalidade vermelha como se tivessesido colorido pelo sangue do herói. As origens semíticas dessa lenda sãoevidentes: o nome de Adonis é aparentado da raiz semítica que significaSenhor,eolugarondeelasesituademonstrasuficientementequeAfroditedeve algumas de suas características, asmais essenciais, à grande deusa

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síria.Poucoapouco,asligaçõesdeAfroditecomavegetaçãoeseucaráterde

potência primordial caíram no esquecimento e as lendas de seu ciclopassaramasernãomaisdoqueorelatodesuasaventurasamorosas.ElaamouAnquisessobreoIda,fazendo-ocrerqueelaeraumamortal,filhadoreidaFrígia17, transportadapara lá porHermes e abandonadanamata.Ela lhedeuum filho,Eneias, e o fez jurar jamais revelaro segredodesseamor. Da união culpada de Afrodite e Ares nasceram dois filhos, Eros eÂnteros (Amor e Amor Recíproco), que os artistas da época alexandrinaprocuraram representar com formas infantis, modelos diretos de nossos“querubins”.Apinturapompeanapopularizouessegênerodecena:oAmorpunido,oAmorferido,nosquaisErosaparececomoumacriançatravessa,rabugenta ou desolada junto a uma Afrodite maternal. O Eros dascosmogoniasfoicompletamenteesquecido;suamãeeelenãosãomaisasgrandesfigurasprimordiaisdeantigamente,massimmerosornamentos.

Contudo, a lenda guarda a lembrança de uma Afrodite temível. Suasmaldições eram célebres. Foi ela quem inspirou em Éos (a Aurora) umamor invencível por Oríon, a fim de puni-la por ter cedido a Ares. Elacastigou o desdém que lhe demonstraram as mulheres de Lemnosatormentando-as com um cheiro insuportável, fazendo com que seusmaridos as abandonassem por cativas trácias. Afrodite puniu ainda asfilhasdeCíniras,emPafo,inspirando-lhesodesejodeseprostituirparaosestrangeiros.Todavia, foi sobretudonomomentodaguerradeTroiaqueseupoder explodiu.Umdia, aDiscórdia lançounomeiodosDeusesumamaçãdestinadaàmaisbeladasdeusas.Trêsdelasreivindicaramoprêmio.Zeus ordenou a Hermes que conduzisse todas as três, Afrodite, Hera eAtena,aoMonteIda,deTrôade,paraquefossemjulgadaspelobeloPáris,filho de Príamo. Diante dele, elas instituíram um debate e prometerampresentes. Hera prometeu ao juiz a realeza universal; Atena o tornariainvencível na guerra. Afrodite se contentou em lhe oferecer a mão deHelena,amaisbeladetodasasmortais.PárisdecidiuafavordeAfrodite,eesta foi a causa da guerra entre os gregos e os troianos. Durante oscombates,adeusainterveioafavordostroianos;salvouPárisnocampodebatalha,protegeuEneias,atacadoporDiomedes,e,nesseencontro,chegouasofrerumferimento.

AdeusaAtena fazcomAfroditeumcontrasteabsoluto.Nosprimeirostempos de seu reinado, Zeus desposara a oceânida Métis (cujo nomesignificaPrudência, mas também Perfídia) e a engravidara. Geia e Urano

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revelaram-lheentãoque,mesmoqueMétistivesseumafilha,eladariaemseguida à luz um menino que iria se tornar o senhor do mundo. Assimdesejavam os Destinos. Zeus, sem hesitar, e para garantir seu poderio,engoliuMétis.Quandochegouahoradoparto,eleordenouaHefestoquelheabrisseacabeçacomumamachadada.Doseucrâniosaltouumafilhainteiramente armada. Era a deusa Atena. O local do nascimento foi asmargensdolagoTritônio,naLíbia.

Atenaéumadeusaguerreiraeseuciclorelatasuasnumerosasproezas.Eladesempenhouumpapel importantena lutacontraosGigantes;matouPalas,esfolou-oedesuapelefezparasiumacouraça.Seusatributoseramo escudo, a lança e a égide; sobre o escudo ela carregava a cabeça deMedusaquePerseu lhedera eque transformavaempedraquemolhasseparaela.Mas,porumcuriosocontraste,Atenaétambémumadeusadapaz.Elaéhabilidosa;protegeos fiadores,os tecelões,asbordadeiras;e, se foielaqueinventouaquadrigadeguerra,dotoutambémaÁticadeoliveiras;foiela tambémqueensinouoshomensaextrairoóleodesuasbagas.Demaneira geral, ela intervém nas lendas como o Espírito e a Razão queconcedem a plena eficácia aos esforços de coragem. É ela que armaHércules que o apoia nos momentos difíceis. É ela que, finalmente,assegura-lheaimortalidade.NaOdisseia,elaintervémtodootempoafavordeUlisses,inspirando-lheasdecisõesmaisprudentesemaissábias.

Atenapermanecevirgem.Entretanto,umatradiçãoáticacontaqueelateve um filho nas seguintes condições: num dia em que fora fazer umavisitaà forjadeHefestopara lheencomendararmas,odeus,abandonadopor Afrodite, apaixonou-se por Atena. Ele se declarou, mas ela não quisnemmesmo escutá-lo e fugiu. Hefesto a perseguiu e, mesmomancando,conseguiualcançá-la;tomou-anosbraçose,emseudesejo,molhouapernadadeusa,queserecusavaaceder.Enojada,Atenaenxugou-secomumflocodelã,queemseguidajogounochão.AsementedodeusfecundouaterraedalisaiuumacriançaquesechamouEristônio(umnomequecontémodalãeodaterra)equeadeusaconsiderouseufilho.Decidiucriá-losemqueas outras divindades soubessem e torná-lo imortal. Foi Eristônio que elafechoudentrodeumcofreguardadoporPandroso,umadas filhasdoreiCécopre. Aglauro, irmã de Pandroso, apesar da proibição de Atena, nãoconseguiuconter-seeabriuocofre.Elaviuacriançadormindodentrodelecom uma serpente enrolada no corpo. Assustadas e amaldiçoadas porAtena,asmeninascuriosasdemaisseprecipitaramdoaltodosrochedosdaAcrópoledeAtenas.Temposdepois,EristônioobteveopodersobreÁtica,efoidelequesurgiualinhagemdosreisdeAtenas.Portanto,Atenaaparece

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sobretudocomoumadivindadedacidadedosatenienses,eésemdúvidanessafunçãode“poliada”18queéprecisobuscarosentidodesuaunidadeedaunidadedeseuciclolendário.Nelaresideaprópriaalmadacidadequeahonra, comoprovamasvelhas crenças relativasàspropriedadesmágicasdeumaestátuadeAtenachamadaPalladioneque,sobumaououtraforma,mantiveram-se através de toda a Antiguidade. Contava-se que, em suainfância,adeusa foraeducadaemCirenaica,àsmargensdo lagoTritônio,ondenascera,equeZeushavialhedadocomocompanhiadebrincadeirasafilhadodeusTritão,epônimoegêniodolago.Essamenina,quesechamavaPalas, foimorta acidentalmente por Atena. Como reconhecimento de suaculpa, Atena confeccionou uma estátua semelhante à criança, instalou-ajunto a Zeus e lhe rendeu honras como a uma divindade. Essa estátua,chamadaPalladion,ficoualgumtemponoOlimpo,masterminoucaindonochão,sobreacolinadeTrôade,chamadade“colinadeAte” (ouColinadoErro).FoinaépocaemqueIlo,ancestraldostroianos,fundavaacidadedeTroia. A estátua entrou sozinha no templo de Atena, ainda inacabado, eocupouolugarderitual.Consideradaumaestátuamilagrosa,foiobjetodeumcultoespecialeacreditou-sequeacidadepermaneceriainvencívelpelotempo em que aquele ídolo fosse mantido lá. Mais tarde, após muitasaventuras, o Palladion, ou uma imagem que se acreditava ser a dele,terminou sendo conservado em Roma, dentro da capela sagrada dasVestais.Elátambémseadmitiaqueasalvaçãodacidadeestarialigadaàdaestátua.

Hermes,irmãocaçuladeAtena,éfilhodeZeusedeMaia,queéamaisjovem das Plêiades. Ele nasceu na Arcádia, dentro de uma caverna domonteCileno.Aonascer,foienvolvidoemtirasdepano,comoentãoeraocostume fazer comos recém-nascidos, e colocadodentrodeuma joeiraàguisadeberço.Masacriança,detantoseremexer,encontrouumjeitodesesoltar e, sozinha, foi até a Tessália, onde seu irmão Apolo cuidava dorebanho de Admeto. Hermes, aproveitando-se da desatenção do irmão,roubou-lhedozevacas,cembezerraseumtouroedepois,amarrandoumgalho na cauda dos animais para apagar suas pegadas à medida quecaminhassem, levou todo aquele rebanho até Pilos de Micenas. Láchegando, sacrificou duas das bezerras e dividiu-as emdoze partes, umapara cada uma das doze divindades. Em seguida, depois de esconder obutim,voltouasedeitarnasuagrutanatal.Aoentrar,deparou-secomumatartaruga; apanhou-a, esvaziou-a e estendeu sobre a cavidade cordasfabricadascomosintestinosdasvítimasqueacabaradesacrificar.E,desse

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modo,alirafoiinventada.Nesse entretempo, Apolo procurava por toda parte seu cabedal. Ao

descobrirtudograçasàsuaartedivinatória,correuparaomonteCilenoereclamou a Maia. Maia, como resposta, apenas lhe mostrou a criançacuidadosamente envolvida em seus panos. Então Apolo recorreu a Zeus,que ordenou a Hermes que devolvesse os animais roubados.Mas Apolo,queavistaraaliradentrodagrutadoCileno,fezumacordocomHermese,emtrocadoinstrumento,entregou-lheorebanho.

Pouco tempo depois, Hermes inventou a siringe (a flauta de Pã) enovamente vendeu sua invenção a Apolo por um cajado de ouro. Alémdisso,o irmão lheensinouaartedivinatória.Essesmitosda infância têmporobjetivoexplicarascaracterísticasrituaisdodeus:ocajadodeouroéavarinhamágicacomaqualadormeceosolhosdosmortais.Avarinha lheserviu quando, para obedecer a Zeus, matou o vigilante Argos-dos-Cem-Olhos, guardaprepostodeHera, encarregadoda vigilânciadabezerra Io.Mensageiro dos deuses, Hermes é dotado de sandálias aladas que otransportam pelos ares. Sua função mais específica é acompanhar aosInfernosas almasdosmortos. Sua imagemera colocada, coma formadeum pilar grosseiramente talhado, nas encruzilhadas das estradas e dasruas.Éocompanheirodosviajantes,protegeospastores;eosmonumentosorepresentamàsvezescarregandoumcordeironascostas,numaatitudede“bompastor”.Hermesésobretudocélebreporsuasartimanhas.Foideleque o filho Autólico (o ancestral de Ulisses) herdou o dom de roubar.Viajante e habilidoso em se apropriar dos bens dos outros, Hermes nãopodiadeixardeserconsideradoodeusdocomércio.

AreséfilhodeZeusedeHera.Éodeusdaguerra,quesecomprazcomo sangue e a carnificina. Usa armadura e capacete e está armado comescudo, lança e espada. Em torno dele estão quatro demônios que lheservem de escudeiros: Deimos e Fobos (o Temor e o Terror), Éris (aDiscórdia)eEnio,umdemôniofemininodaguerra.AslendasdeAresnãosão muito numerosas. Rendiam-lhe um culto particular em Tebas, ondeantigamenteelepossuíauma fonteguardadaporumdragão,queeraseufilho. Quando Cadmo, vindo da Síria para a Grécia, quis tirar água dessafonteparacelebrarumsacrifício,odragãotentouimpedi-lo.Cadmomatou-o,mascomoexpiaçãotevequeservirArescomoescravoduranteseteanos.Quandoexpirouaobrigação,osdeuses celebraramocasamentodoheróicomHarmônia, filhadeAres.Aessauniãoseatribuíaaorigemdafamíliarealtebeia.

Com frequência, ao representar Ares, os gregos sentiram prazer em

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mostrá-lo vencido: sua força brutal era contida ou enganada pelo valormais inteligente de Hércules ou pela sabedoria viril de Atena. Foi assimque,diantedeTroia,ahabilidadedadeusafoitantaqueeleacabouferidopor Diomedes. Quando Hércules atacou Cicno, filho de Ares, este quisintervireenfrentouoherói,masfoiferidonacoxaetevequeseretirardocombate.

HaviaemAtenasumlugarquelevavaseunome,oAreópago,oucolinadeAres.Nosopécorriaumafonte.UmdiaAresavistounolocalofilhodePosídon, Halirrócio, tentando violar Alcipe, a filha que ele tivera comAglauro.Paradefenderafilha,eleseprecipitoueomatou.Posídonentãoocitou diante do tribunal composto de Olímpicos que funcionava sobre aprópria colina.Ares foi inocentado.Noentanto, como lembrança,onomede Areópago foi dado à colina, onde, em seguida, passou a se reunir otribunalencarregadodejulgaroscrimesdeordemreligiosa.

Deméter, irmãdeZeus, filhadeCronos edeReia, é donadeumadasmaisbelaseemocionanteslendasdamitologiahelênica.Dizia-sequeZeusse unira a ela e lhe dera uma filha chamada Perséfone, que crescia felizentreasNinfas,nacompanhiadasoutrasfilhasdeZeus.Elacolhia,umdia,floresnaplaníciedeEnna,naSicília–ouentãopertodeEleusis,naÁtica,ouentãonaplaníciedeCnossos,emCreta,quesãolugaresondesecultivaotrigo–nomomentoemqueajovemsecurvavaparacolherumnarciso,aterra se entreabriu e dela saiu umdeus sobre uma quadriga puxada pordragões. EraHades, o irmãodeZeus, que se apaixonaraporPerséfone e,com a cumplicidade do irmão, decidira raptá-la. Perséfone foi arrastadapara os Infernos, mas, ao desaparecer, soltou um grande grito. Deméterescutou o grito da filha e, com o coração cheio de angústia, começou aprocurá-la. Foi impossível encontrar Perséfone. Por nove dias e novenoites, suamãe, sem se alimentar, sembeber nem se banhar, errou pelomundocomumarchoteemcadamão.Nodécimodia,elaencontrouadeusaHécate,quetambémouviraogrito;chegaraatéaavistaroraptor,masnãopudera reconhecê-lo, pois ele tinha a cabeça envolta em sombras.Finalmente,oSol,quevêtudo,comunicouaverdadeàmãedesolada.Cheiade raiva, a deusadecidiunão voltarmaisparao céu enão cumprirmaissuasfunçõesdivinasatéquelhedevolvessemafilha.Adotouoaspectodeuma velha e foi para Eleusis. Lá, diante do palácio do rei Celeu,encontravam-se todas as velhasdopaís, quea convidaramapermanecerentre elas e participar de sua refeição. Mas ela, na sua dor, nada quisaceitar. Uma das velhas, chamada Baubo, insistiu, mas, como Deméterteimava em recusar qualquer reconforto, Baubo suspendeu as roupas e

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mostrouasnádegasàdeusa.Demétercomeçouarireterminouaceitandoacomida. Em seguida, colocou-se a serviço da mulher de Celeu, a rainhaMetanira,queaadmitiucomoamadeleite.Confiaram-lheofilhodorei,quesechamava,deacordocomasversões,DemófonouTriptólemo.Demétertentoutornaracriança imortale,para isso,mergulhava-otodasasnoitesdentrodeumbanhodebrasasatéodiaemqueMetaniraa surpreendeunaqueleestranhocomportamento.Temendopelofilho,Metanirasoltouumgrito.Deméterlargouacriança,quefoiconsumidapelofogo;entãorevelousuaidentidade.AtribuiuaTriptólemo,osegundofilhodeCeleu,amissãodepercorreromundoensinandoaoshomensaculturadotrigo.ETriptólemopartiu em cima de uma quadriga puxada por dragões alados, de onde iasemeandogrãosdetrigo.

Como o exílio voluntário de Deméter tornava a terra estéril eperturbavaaordemdomundo,Zeusdecidiudevolver-lheafilha.Foi,pois,encontrarHadeselheordenarquePerséfonefosserestituída.Noentanto,issonãoeramaispossível.Comefeito,amoçaromperaojejume,nojardimdo rei dos Infernos, comera um grão de romã. Estava, desse modo,definitivamente ligada ao mundo infernal. Foi preciso se chegar a umacordo.DeméterretomariaseulugarsobreoOlimpo,ePerséfonedividiriaseutempoentreelaeosInfernos.Éassimque,acadaprimavera,Perséfoneescapadomundo subterrâneo e sobe emdireção à luz comosprimeirosbrotos que saem dos sulcos da terra, para se refugiar novamente nassombrasnaépocadasemeadura.Porém,durantetodootempoemqueficaseparadadeDeméter,osoloéestéril,eéaestaçãotristedoinverno.

Essa lenda adquiriu diversas formas locais e se intrincou com umainfinidade de episódios. Veremos como terminou servindo de “suporte”paraosmistériosquesecelebravamemEleusis,ondeserepresentavaparaosiniciadosumaversãoesotéricacarregadadesimbolismo.

Deméteréligadaàculturadotrigo.Dionísioéodeusquepersonificaospoderesdavinhaedovinho.EleéfilhodeZeusedeSêmele,queéfilhadeCadmo,oherói fundadordeTebas.Umdeseusepítetosmísticosé“oquenasceuduas vezes”, e a explicação advémda história de seunascimento.Sêmele, que fora amada por Zeus, foi objeto de ciúme por parte de suasirmãs, que fingiram acreditar que ela tinha se entregado a um amantecomum.Apontodadúvidaterseinstaladonocoraçãodamoça,fazendo-aquerer teraprovadadivindadedeseuamante.Pediuqueeleseexibisseparaelaemtodaasuaglória,talcomoeleserevelavaaHera.Zeusresistiu,mas acabou cedendo, e quando surgiu, cercado pelo raio e pelosrelâmpagos, Sêmele morreu de susto. Zeus apressou-se em arrancar a

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criançaqueelatrazianocorpo,queaindaestavanosextomêsdegestação.Costurou-a na própria coxa e, ao tirá-la dali, quando chegou o final dagestação,opequenoDionísioestavaperfeitamenteformadoeeracapazdeviver.

Zeus, contudo, sentia-se um tanto incomodado por ter de criá-lo,temendo o ciúme de Hera. Ele confiou a criança em segredo a uma dasirmãsdeSêmele, Ino,queeracasadacomAtamas,o reideOrcomene,naBeócia19.Recomendou-lhesquevestissemacriançacomroupasfemininas,paraconfundirasbuscasdeHera.Entretanto,elanãosedeixouenganareprovocou a loucura em Atamas e Ino, que acabaram se matando. EntãoZeus levou a criança para bem longe da Grécia, no país de Nisa, que osgregossituavamcommuitaimprecisão,oranaÁsiaoranaEtiópia.Defato,é bem provável que esse nome tenha sido inventado para dar umaetimologiaaonomedodeus.Dionísioéo“ZeusdeNisa”.

Nessepaíslongínquoefabuloso,acriançafoieducadapelasNinfas,soba forma de um cabrito (“cabrito” também era umdos epítetos rituais deDionísio).Umavezadulto,Dionísiodescobriuavideiraeovinho.MasHeratambém fez com que fosse acometido de loucura, e ele começou umacorrida desordenada pelomundo. Percorreu o Egito e a Síria e chegou àFrígia, onde a deusa Cibele (considerada uma forma de Reia, a Mãe dosDeuses) o purificou, livrou-o da loucura e o iniciou em seus própriosmistérios.Éentãoquecomeçanavidadeleoperíododesuasconquistas.Faz-sedoravanteacompanhardeumcortejodedemôniostantofemininosquanto masculinos, que são as Bacantes e os Bacantes. Juntam-seigualmenteovelhoSileno,montadosobreseuburro,eosSátiros,metadehomens,metadebodes,representantesdosespíritosorgíacosdaterraedovinho.Dionísiovaimontadoemumapanteraeseguranamãoumtirso.ElefoioconquistadorquepartindodaFrígiaabordounaTrácia.Licurgo,oreidopaís,recebeu-omuitomalequisfazê-loprisioneiro.Dionísioprocurouasilo junto à deusa marinha Tétis. Licurgo, para se vingar, capturou asBacantes, mas elas foram libertadas por uma força misteriosa, e eleenlouqueceu. Segurando um machado, imaginava-se cortando cepas devideira, quando, na realidade, feria a própria perna emutilava o própriofilho.Aoretornardesuaperturbaçãomental,deu-secontadequeseupaísse tornara estéril. O oráculo consultado revelou que a ira de Dionísio sóseriaaplacadacomamortedoculpado,eLicurgofoiesquartejadoporseussúditos.

Saindo da Trácia, Dionísio ganhou a Índia, submetendo tudo, durante

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sua passagem, com seus encantamentos. Os pintores e os escultores daAntiguidadefrequentementerepresentaramamarchatriunfaldodeusemdireção ao Oriente, marcha que não deixa de lembrar as expedições deAlexandre.

VoltandovitoriosoàGrécia,DionísioseapresentounaBeócia,queeraapátriadesuamãe.MasoreideTebas,Penteu, incomodou-secomaquelecultonovoquemergulhavaasmulheresemcrisesassustadoras,duranteasquaiselaspercorriamocamposoltandogritoscomoseestivessemforadejuízo.Eleproibiua celebraçãodas “orgias”.Porém, comoacontecera comLicurgo na Trácia, Penteu foi cruelmente punido por essa impiedade.Enquantoele espionavadoaltodoCiteronasmaquinaçõesdasBacantes,suaprópriamãe,Agave,juntocomasoutrasmulheres,agarrou-oeofezempedaços,aoconfundi-locomumleão.Poucoapouco,ocultodeDionísiosepropagava,easresistênciaseramquebradasdamesmamaneira.EmArgos,o deus provocou perturbação mental nas filhas do rei Preto e as fezpercorrerdurantemuitotempoocampo,acreditando-setransformadasemnovilhas. Elas chegaram até a devorar os próprios filhos. Uma vezsubmetido o continente,Dionísio embarcoupara as ilhas. Piratas que elecontratarapara levá-loaNaxosquiseramvendê-locomoescravonaÁsia,mas os remos se tornaram serpentes, o navio se encheu de hera e seouviram por toda parte flautas e tambores invisíveis. Os piratas,desesperados,atiraram-senasondaseforamtransformadosemgolfinhos.

Restavaaodeusumúltimodomínioapercorrerantesdevoltarparaocéu.EledecidiudesceraosInfernosebuscarsuamãeSêmele,paraassociá-laàsuaglória.Efinalmente,comela,eleconquistouaimortalidade.

Vê-se que existe, ao contrário do que se constatou em relação aosoutrosdeusesdageraçãoolímpica,uma lendacoerenteeumaespéciede“biografia”deDionísiodonascimentoàapoteose.OquenãosignificaqueDionísio seja, como se acreditoupormuito tempo, um recém-chegado aopanteão helênico. Tal explicação é hoje, como dissemos, insustentável. Éevidente, em compensação, que a lenda tem outras origens além dasprecedentes e que se impôs aos helenos quando já estava inteiramenteformada.Todasas lendasda infânciasedesenvolveramapartirdoritual;osepisódiosdaconquistadomundosãootestemunhodalembrançaaindaviva da invasão do culto através da Trácia e das resistências que suadifusãosuscitou.Adivinha-setodaumareligiãoportrásdesse“evangelho”,e isso basta para dar ao deus uma fisionomia bem diferente da queapresentamasoutrasdivindadesgregas.

NomeiodosOlímpicos,Zeussurgecomoo“moderador”eomestre.Seu

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poder é por vezes ameaçado por complôs ou rebeliões fomentadas porseresmonstruosos,sombriastestemunhasdeumaidaderemota,masquenunca o abalam demaneira duradoura. Existe um ciclomítico em tornodele. Já mencionamos as circunstâncias que cercaram seu nascimento: acriança escondida pelamãe dentro de uma caverna de Creta confiada àsNinfasdeIda,queaalimentaramcomleiteemel,enquantoemtornodeladançavam os Curetes, que eram jovens guerreiros armados, verdadeirosdemôniosdadançaguerreira,agitandoaslançasebatendonobronzedosescudos coma lâminadas espadas.Obarulho assustadorqueproduziamdevia, assim, cobriros chorosda criança.Também falamosdasetapasdaconquistadopoder,queconstituemdemaneiravisívelumaoutracamadadentrodomito.Masosepisódiosmaispopularesdomitosãosemnenhumadúvidaasuniõesdodeus.

AsesposasdeZeus,legítimasouilegítimas,sãoincontáveis.Aprimeiraem data foi Métis. Em seguida veio Têmis, que é a Lei personificada, oumelhor, a Constância do Mundo. Primeiro ela deu ao rei três filhas, asEstações (ou as Horas, como as denomina impropriamente a tradição),chamadas Irene (aPaz),Eunomia (aDisciplina)eDiké (a Justiça);depoisoutras três,que foramasMoiras(osDestinos):Átropos,LaquesiseCloto,as três “Fiandeiras”, que tecem nos Infernos o destino de todos oshumanos.AuniãocomTêmiséevidentementeummitofilosófico,depuraintençãosimbólica.ElemostracomoZeus,otodo-poderoso,éaencarnaçãodaOrdemeternaecomooDestino,aoqualeleobedece,emnadalimitasuaonipotência,umavezqueoDestinoé,emúltimaanálise,umaemanaçãodoprópriodeus.

ZeusseuneaindaàtitânidaDione,que,emcertasversões,étidacomoamãedeAfrodite;depoisaMnemosina(Memória),quelhedáfilhas,asnoveMusas.ComaoceânidaEurínomeeleteveastrêsGraças,Aglae,EufrosinaeTália,que,originalmente,sãoespíritosdavegetaçãoedaprimavera.

O casamento com Hera, irmã de Zeus, é apenas uma de suas uniõesdivinas. Mas foi “definitivo”, tradicional e semelhante a todos oscasamentoshumanos,easoutrasuniõesdeZeus–dessavezcommortais–aparecerão como infidelidades feitas a Hera. Mencionamos a união comDemétereonascimentodePerséfone.EssauniãoentreZeuseumaoutradesuasirmãsnãopareceterprovocadoociúmedeHera:lendaintegradaaociclodasduasdeusaseleusianas,continuaestranhaaocicloprópriodeZeus,simbolizandosimplesmenteaaçãofecundantedachuvacelestesobreaterra.

Mas em relação aos amores com mortais, tudo se passa de outra

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maneira, dado que eles não são suscetíveis a uma interpretação tãoelementar. Essas lendas têmgeralmentepor objeto o estabelecimentodeumagenealogiaeapresentam,emsuasorigens,umvalorpuramentelocal.Apretensãocoríntia,segundoaqualoepônimoCorintoera“filhodeZeus”,tornara-se objeto de escárnio no resto da Grécia. Mas cada uma dasgrandes“raças”helênicasseconectaaodeus.ÉverdadesobretudoparaascidadesdoPeloponeso:naArgólida,oancestraldosatreídes,Tântalo,eratido como filho de Zeus e de Pluto. Os arcadianos tinham, da mesmamaneira, como ancestral, Arcas, filho de Zeus e da ninfa Calisto. OslacedemôniosseatribuíamadescendênciadeZeusedaninfaTaígeta.NaArgólida,alémdomais,aaliançadeZeusforarenovadapordiversasvezes:o herói Argos era filho de Zeus e daNíobe argiana, assim como Pelasgo,ancestral do povo “pré-aqueu” dos Pelasgos. Em seguida, após a uniãoentreZeuseDânae,onascimentodePerseuestabeleceranaArgólidaumanova descendência do deus. Em Tebas, Cadmo se ligava a ele através deÉpafoeIo.OscretensesevocavamEuropaeostrêsfilhosqueelativeradodeus,Minos,SarpédoneRadamanto.NaFtiótidaenailhadeEgina,araçade Peleu e a de Télamon se originamde Éaco, filho de Zeus com a ninfaEgina.Os próprios troianos tinham como ancestralDárdano, nascido dosamoresdeZeusedaplêiadeElectra.Essasgenealogiasseaplicam,comosevê, às raçasmais antigas da Grécia, ou então às famílias reais, das quaisexpressamostítulosdenobrezaejustificamaspretensões.Édignodenotaque os epônimos das grandes divisões étnicas dos helenos, Aqueu, Ion,Doro e Éolo, não tenham Zeus como ancestral, e sim Deucalião e Pirra.Dentre os povos gregos, os últimos a chegar, os dórios, tinham, contudo,uma lenda particular: na época emque eles ainda estavam instalados aonorte da Grécia continental, seu rei Egímio recebera ajuda de Hérculescontra os lápitas, seus vizinhos. Como pagamento, ele dera ao herói umterçodeseureino,masestelhepediuapenasquereservassearecompensaparaseusdescendentes.FoiassimqueofilhodeHércules,Hilo,tornou-seoepônimodeumadas três tribosdórias, e asduasoutras receberam seusnomesapartirdeDimasePânfilo,osdoisfilhosdeEgímio.Comoresultado,nomínimoumterçodosdóriosse ligamatravésdeHiloaHérculeseaosheráclidase,portanto,aZeus,paideHércules.

Muitas das uniões de Zeus com as mortais ocorreram sob formasanimais:comEuropa,odeusadquiriuoaspectodeumtouro;comLeda,odeumcisne;ouentãosuasamantesconhecerammetamorfosesanálogas:aninfaCalistosetornouumaursa,eIo,umabezerra.Éprovávelque,nessasaventuras,tenhamsidopostossobonomedeZeusmitosmaisantigos,nos

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quais a divindade se apresentava sob uma forma animal ou, em geral,fetichista:assimseexplicaria igualmentea“chuvadeouro”que fecundouDânae na sua prisão e que era tida como uma “encarnação” do deus. Osgregos supunham, mais simplesmente, que Zeus adotara essas formasimprováveisparaenganaravigilânciadeHera,ouentãoqueelapuniraasamantesdomarido inflingindo-lhesmetamorfosesdegradantes.QuantoaDânae,osgregosnãoignoravamquenenhumafechadura,nenhumatrancaresistiriaaopoderabsolutodoouro.

Sejacomofor,ociclodeZeusétalvezoquereúneomaiornúmerodeelementos de origens diversas e revela as camadas mais profundas dareligião helênica: o Zeus cretense não é seguramente idêntico, em seuprincípio,aoZeusarcadianoouaoZeusfrígio.Osmitosligadosacadaumadessaspersonalidadessejustapuseramenuncaalcançaramacoerênciadeumateologia.

17.Frígia:antigopaísdaÁsiaMenor.(N.T.)18.“Poliada”éumadjetivoprovenientedaraizgregapolis,“cidade”.(N.T.)19.Beócia:regiãodaantigaGréciaaoNorteeNoroestedaÁtica.(N.T.)

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CAPÍTULOIV

OSGRANDESCICLOSHEROICOS

Em contraste com a incoerência dos ciclos lendários relativos aosdeuses,osciclosheroicosseapresentamcomorelatosdeaventurascujosepisódios são reunidos commais cuidado emostramuma elaboração decaracterísticaevidentemente literária,emboraospoemasouasrapsódiasépicasqueosusaramcomotemaemgeralnãotenhamchegadoaténós.Asepopeiashoméricasconstituemapenasumaexceção,poistaispoemasnãopassam de uma “escolha” feita em uma data relativamente tardia entretradiçõesdeorigensdiversas.Noentanto,nãopossuímossenãofragmentosinsignificantesdosCantos cipriotas ou daPequena Ilíada de Leschès, quetratavamdos episódios secundários da aventura troiana. Existiu tambémtodaumasériedeRegressos,hojeperdidos,dosquaisaOdisseiaéapenasomaisfamoso.Naexposiçãodosprincipaisciclosheroicos,vamosencontrar,como consequência, uma “matéria mítica” mais liberada de suas origensreligiosas;poroutrolado,aslendas“etiológicas”eoselementosfolclóricosestão ali representados, embora frequentemente mascarados pordesenvolvimentos puramente romanescos ou de tendência moral esimbólica.

Mencionaremos aqui apenas seis grande ciclos – os que inspiraramomaiornúmerodeobras literáriasese tornaram,porcausadisso,osmaiscélebres.Sãoeles:aexpediçãodosArgonautas,ociclo tebano,ociclodosAtrides,odeHércules,odeTeseue,porfim,asaventurasdeUlisses.Essesgruposdelendascobremumaáreageográficaqueseestendepraticamentepor todo o mundo helênico, desde a extremidade setentrional do MarNegroatéaCirenaica,comalendadosArgonautas;edesdeasmargensdoAdriáticoatéaTrôade,aSíriaeCreta,comasdeUlisses,deCadmoedosAtrides.Observou-se, também,que todosesses ciclosheroicos se ligamàidadedacivilizaçãomicênicaequesuaslocalizaçõescorrespondemasítiosonde os arqueólogos efetivamente encontraram testemunhos queremontamaessaépoca.Portanto,éprovável, senãoabsolutamentecerto,que esses ciclos sejam em grande medida o reflexo de acontecimentoshistóricosequenosapresentemàsuamaneiraoquadrodeumacivilizaçãoque de fato existiu. Os elementos romanescos e prodigiosos que eles

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contêm não devem esconder tal aspecto, e, se por trás das proezas deHermescriançaoudeAfroditeconvémprocurarparticularidadesderituaisouatributosreligiosos,portrásdasproezasdeAquiles,deAgamenonedeJasão se entrevê frequentemente a lembrança confusa demigrações e deconflitosqueahistóriaignoraouentãoesqueceu.

OciclodosArgonautasseorganizouemtornodapessoadeJasão,queéum herói tipicamente tessálio, da descendência de Éolo. Seu pai, Éson,reinavaemIolco,nosopédomontePélion.MasÉsonforadestronadoporseumeio-irmão Pélias, filho de Posídon, e teve que se refugiar no exílio.Jasão – como a maior parte dos heróis lendários – fora educado pelocentauro Quíron, que lhe ensinara, entre outras ciências, a medicina.Quando atingiu a idade adulta, Jasão deixou seumestre e se apresentousem se fazer reconhecer na corte de Iolco. Chegou lá vestidoestranhamente.Cobertocomumapeledepantera,seguravaumalançaemcadamão,eseupéesquerdoestavadescalço,deacordocomumvelhoritoguerreiro dos etolianos20. Foi assim que ele se apresentou na praça deIolcos,nomomentoemqueseu tioestavanomeiodeumacelebraçãodesacrifício. Vendo-o, Pélias se lembrou de um oráculo que o haviaaconselhadoatomarcuidadocomum“homemquecalçasseumsósapato”.Mandou que o viajante se aproximasse e lhe perguntou que castigo eleimporiaaumsúditoqueconspirassecontraseurei.Jasãorespondeuqueomandaria conquistar o velocino de ouro. Pélias lhe disse então que ele,Jasão,eraosúditoculpadoqueacabaradecondenarasimesmo.AJasãosórestavaobedecereorganizarsuaexpedição.

O precioso velocino, cuja conquista parecia tão temível, era de umcarneirodivino,alado,queHermesderanopassadodepresenteaNéfele,aprimeira mulher do rei Atama – o mesmo que Zeus escolhera como paiadotivodeDionísio, emOrcomene.Quando Ino,a segundamulherdorei,conseguiu através de maquinações que os dois filhos de Néfele, Frixo eHele, fossem sacrificados para desviar do país uma suposta esterilidade,Néfeledeuaeleso carneirodivino,queos levoupelosares.Hele caiunocaminho e se afogou quando atravessava o estreito que ganhou o nome,desde então, deHelesponto (mar deHele),mas seu irmão, Frixo, chegousãoesalvoaCólquida(naregiãodoCáucaso);chegandolá,FrixosacrificouocarneiroaZeuseconsagrouovelodoanimal(queeradeouro)emumbosquesagradodeAres.OreideCólquida,Eetes,umcoríntioquepartirano passado para buscar fortuna sobre as margens do Ponto Euxino,guardava aquele despojo a sete chaves. Tal era a meta da expedição

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impostaaJasão.Para levar a termo sua empreitada, Jasão começou pedindo ajuda a

Argos, o filho de Frixo. E, a conselho de Atena, Argos se comprometeu aconstruir um navio. O navio, a Nave Argo, possuía propriedadesmaravilhosas.ApeçadeproaerafeitadeumpedaçodocarvalhoproféticodeDodona;aprópriadeusaohaviatalhadoedotadodapalavra,demodoque o navio podia profetizar. Enquanto era construído, Jasão reuniu umgrandenúmerode companheiros.A fantasiadosmitógrafos edospoetascompôs listas intermináveis de companheiros de Jasão – que serãochamadosdeArgonautas,ou“navegadoresdoArgo”.Nelasseencontramosnomesdosprincipaisheróisda idadeimediatamenteanterioràguerradeTroia: os pais dos combatentes aqueus, companheiros de Agamenon eoutros,equefazempartedociclotebano,comooadivinhoAnfiarau.Umatradição, talvez relativamente tardia, inclui Hércules, ou mesmo o filhodele,Hilo.MasosArgonautasmaiscélebreseosquedesempenharamumpapel efetivo na aventura são o cantor trácio Orfeu, os filhos de Bóreas,CálaiseZeto,osdoisfilhosdeTíndaro,CastorePólux,eseusprimos,IdaseLinceu,filhosdeAfareu.OadivinhooficialdaexpediçãoeraIdmon,filhodoargianoAbas.

A viagem começou sob auspícios favoráveis. Os presságios indicavamque todos iriamvoltar vivos, salvo Idmon.Aprimeira escala foi a ilhadeLemnos,onde,nessaépoca,sóhaviamulheres.Estas,emconsequênciadamaldiçãodeAfrodite, tinhammatado todososhomense se encontravamemgrandedificuldadeparaperpetuararaça.E,assim,osArgonautasforambem acolhidos e lhes deram filhos. Depois eles se dirigiram para oHelesponto.Oreidosdólios,Cizico,recebeu-oscomhospitalidadenopaísde Cizica. Mas, na noite seguinte, quando abriram as velas, ventoscontrários levaram os Argonautas, sem que soubessem, de volta para oreinodeseuanfitrião.Contudo,osdóliosnãoosreconhecerame,tomando-osporpiratas,osatacaram-nos.Comobarulho,oreiCizicoacorreue,naconfusão, foimortopor Jasão.Quandoodia se levantou,osdoispartidosreconheceramseuerro.Durantetrêsdias,osArgonautasfizeramfuneraismagníficos para o rei, proferiram lamentações e participaram de jogosfúnebresemsuahonra.

A etapa seguinte conduziu-os à costa da Mísia. Enquanto oscompanheiros preparavam a refeição, Hércules, que partira seu remo aoremar commuita força, foi para a floresta cortar uma árvore e fabricaroutro.OjovemHilas,queserviadepajemaHércules,foibuscaráguadocenafloresta.Nabeiradeumafonte,elesedeparoucomasNinfasdançando.

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Elasoacharamtãobonito,queoatraíramparaafonte,ondeeleseafogou.HérculesescutouogritodeHilasnomomentoemquedesapareciadentrodas águas e, coma ajudadeoutroArgonauta, denomePolifemo, decidiuprocuraroamigo.Erraramanoiteinteiradentrodamata;e,quandoodianasceueonaviopartiu,elesnãoestavamabordo.Foi,pois,semHérculesnemPolifemoqueosArgonautastiveramquecontinuarsuaviagem,poisosDestinosnãotinhampermitidoqueosdoiscompanheirosparticipassemdaconquistadovelocino.Polifemo fundoua cidadedeCiosnavizinhança, eHérculescontinuousozinhosuasproezas.

NopaísdeBebrices,ondeosArgonautasdesembarcaramemseguida,PóluxfoidesafiadoàlutapeloreiÂmicoeovenceu.Nodiaseguinte,oArgofoicolhidopela tempestadeeprecisou fazerescalanacostadaTrácia,noreinodeFineu.Fineueraumadivinhocego,esobreeleosdeuseshaviamlançadoumamaldiçãosingular:cadavezqueerapostanafrentedeleumamesacheiadecomida,asHarpias,quesãoseresrapaces,precipitavam-sesobreosalimentoseosatacavame,oqueelasnãopodiamlevar,sujavamcomseusexcrementos.OsArgonautaspediramaFineuquefalassesobreodesfechodaexpedição,maselenãoquisdarumarespostaantesqueelesolivrassemdasHarpias.CálaiseZeto,queeramalados,precipitaram-seemperseguiçãoaosmonstrose,encontrando-osnasilhasEstrófades,fizeram-nos jurar pelo Styx não importunarmais o rei. Feneu desvendou a seuslibertadores o que deviam saber sobre o futuro e os alertou sobre asRochas Azuis (asCiâneas), que podiam esmagar o navio por serem duasrochas errantes que se chocavam uma contra a outra quando osnavegadorespassavamentreelas.

Retomandoaviagem,osArgonautasencontraramdefatoosrecifesdequelhesfalaraFeneu;porconheceremadecisãodosdeuses,elessoltaramumapombaquevooudiretoentreasCiâneas.Osrecifessefecharam,massó conseguiram segurar a última pena da cauda. Encorajados, osArgonautas tentaram passar. Os rochedos se fecharam mais uma vez;porém, somente a última tábuadapopa foi ligeiramente atingida.Depoisdessaépoca,asCiâneaspermaneceramimóveis,poisqueriaodestinoqueseumovimentoacabassetãologoumnaviotivesseconseguidotranspô-lassem avaria. Assim se deu a entrada dos Argonautas no Ponto Euxino.Depoisdealgumasescalas,ei-losnoterritóriodeEetes,naCólquida.Jasãoexpôsaoreiomotivodesuavinda.Eetesnãoserecusouadarovelocino,mas, antes de entregá-lo, estabeleceu como condição que o herói, semnenhuma ajuda, impusesse o jugo a dois touros de cascos de bronzequesopravam fogo pelas ventas. Esses touros monstruosos, presentes de

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Hefesto, eram de uma ferocidade extrema. O rei esperava que o rapazfracassasse.Mesmoassim,acrescentouumasegundaprova:Jasãodeveria,comosdoistouros,ararumcampoesemearosdentesdodragãodeAres.

Jasãoseperguntavacomofariaparavenceraquelesmonstrosquandoafilha do rei, Medeia, que desenvolvera por ele uma grande paixão, veiosocorrê-lo.Ela lhedeuumbálsamomágicocomoqualeledeviaseuntarpara evitar as queimaduras e se tornar invulnerável. Revelou-lhe emseguidaoqueiriaacontecerumavezsemeadososdentesdodragão.Assimprevenido,Jasãoconseguiudominarosdoistouros,ararocampoesemearosdentes.Dosdentes,comoanunciaraMedeia,saiuumacolheitahumana,guerreiros inteiramentearmados.Escondidodosolhosdeles, Jasãoatirouumapedranomeiodatropa,oquefezcomqueosguerreirosseacusassemreciprocamenteesematassementresi.

Eetes,entretanto,nãocumpriuapromessa.EstavaprestesaincendiaroArgos quando Jasão, com a ajuda deMedeia, agarrou o velocino e fugiu.Levouamoçacomele,eela,porsuavez,levoutambémoirmãomaismoço,Apsirto.Eetes,furiosoportersidoenganado,começouapersegui-los.Paraatrasá-lo,MedeiamatouopequenoApsirto e espalhou seusmembrosnomar. Eetes demorou recolhendo-os e quando terminou era tarde demaispara que pudesse alcançar os fugitivos. Entretanto, despachou muitosguerreiros para buscá-los, advertindo-os de que, se voltassem sem eles,iriammorreremseulugar.

Os Argonautas, mudando de rota, começaram a subir o Danúbio econtinuaramatéoAdriático.Deacordocomopensamentodaépoca,orioserianaverdadeumcanalentreosdoismares,damesmamaneiraqueoPóuniriasemdescontinuidadeoAdriáticoaoRódanoeaopaísdosCeltas.FoipelaembocaduradoRódanoqueosArgonautaspenetraramnovamentenoMediterrâneo.AvozdoArgorevelara-lhesqueZeusficaradescontentecomoassassinatodeApsirto equeeles teriamqueobter apurificação comamagaCirce,quevinhaaserairmãdeEedese,portanto,tiadacriançaedeMedeia.Obedecendo,fizeramescalanopaísdeCirce(pertodeGaeta,sobrea costa italiana). Circe purificou-os, e o navio tornou a partir. Aoatravessaremomar das Sereias, Orfeu cantou umamelodia tão bela queninguémtevevontadedeouviravozdasencantadoras.AocruzaroestreitodeMessina,oArgoviu-sedianteda ilhadosFeácios.Láencontraramumgrupode colquidianos21mandados no seu encalço,mas Alcinoo, rei dosfeácios, se recusou a entregá-los, e os Argonautas voltaram aomar. Umatempestade arrastou-os até a orla das Sirtes, na costa da Líbia. Para se

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abrigarem,tiveramquetransportaronavionascostasatéolagoTritônio,eTritão,odeusdolago,mostrou-lhesumasaídapelaqualalcançariamomarlivre.DeláquiseramatracaremCreta,masogiganteTalo,cujocorpoeradebronze,proibiu-lhes o acesso à ilha. EntãoMedeia, com seus encantamentos, fezcomqueTalorasgasseotornozelosobreosrochedos–eraoúnicolugarnoqual ele era vulnerável – e morresse. Os Argonautas acamparam namargem depois de erguer um santuário para Atena Minoana. Por fim,algunsdiasdemaroslevaramàGréciae,depoisdeumaescalaemEgina,elesdesembarcaramem Iolco,depossedovelocinodeouro.Contudo, asaventurasdeJasãoeMedeiaaindanãotinhamterminado.MedeiadecidiusevingardePélias.Elaseaproximoudesuasfilhasepersuadiu-asdequesabia comorejuvenesceropaidelas.Para isso, fezumvelhocarneiroempedaços e mandou que o cozinhassem em um caldeirão cheio de ervasmágicas;tiroudedentroumcordeirinhonovo.EntãoasfilhasdePéliasnãohesitarammais:deceparamopaieocozinharam.MasPéliasnãovoltou.

Jasão e Medeia, depois desse crime, foram banidos de Iolcos e seretiraramemCorinto,ondeviveramalgumtempoatéodiaemqueoreidopaís,Creonte,quisdaraprópriafilhaemcasamentoaJasão.Medeiafingiudesaparecer,masentregouàrivalumvestidoimpregnadodevenenosqueficouembrasaepôs fogoem todoopalácio.Medeia,paracompletar suavingança,matou os filhos que tivera com Jasão e fugiu emumaquadrigavoadora. No final de sua vida, depois de uma estadia em Atenas junto aEgeu,paideTeseu,nósaveremosoutravezemCólquida,ondedevolveaEedesoreinoquetinhasidousurpadopeloirmãoPerses.

Ociclo tebano temmenosunidadeenãoseapresentasoba formadeumrelatocorrido,masdeepisódiosbastantedesordenados.Oprimeirosesitua na Síria, com o rapto de Europa. Europa era filha do rei de Tiro,Agenor.Umdiaemqueelabrincavanapraiacomasamigas,umtourosaiudasondaseveio sedeitara seuspés.Europa,de inícioassustada, tomoucoragem,acariciouoanimalesesentousobreseudorso.Imediatamenteotouro se levantou e se atirou com ela dentro do mar. E assim os doischegaramaGórtina,emCreta,ondeotouromudoudeforma:eraZeusque,enamoradoporEuropa,imaginaraoestratagemapararaptá-la.Europadeutrêsfilhosaoamante:Minos,SarpédoneRadamante.Nesseínterim,Agenormandara seus filhos à procura da irmã, proibindo-os de se apresentardiantedeleantesdeencontrá-la.UmdosfilhosdeAgenoreraCadmo,quede tanto vaguear e se desesperar para trazer Europa de volta, resolveuconsultarooráculodeDelfos.APítia lherecomendouqueabandonassea

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buscaestérilequefundasseumacidade.Paradeterminarolocaldacidade,ele deveria seguir uma vaca “que tivesse o sinal da lua” até que eladesabasse,esgotada.EnquantoatravessavaaFócida,viuumavacamarcadanodorsocomumcrescentebranco.OanimaloatraiuatéaBeócia,aolocalondemais tarde se ergueria Tebas. Ali havia uma fonte que se chamavafonte de Ares. Era guardada por um dragão, que Cadmo namesma horatevequematar.EntãoAtenalheapareceueoaconselhouasemearnaterraos dentes do monstro. Da terra brotaram guerreiros em armas quecomeçaram a se matar uns aos outros. Somente cinco sobreviveram efundaramaraçadosSpartoi(osHomenssemeados).Comopenitênciapelamorte do dragão, Cadmo teve que trabalhar durante sete anos comoescravodeAres.Terminadaaprovação,casou-secomgrandepompacomuma filha de Ares e Afrodite, a divina Harmonia, a ele destinada comoesposapelopróprioZeus.

Pertodofinaldesuasvidas,CadmoeHarmoniadeixaramTebasparaosfilhos e partiram para Ilíria, onde Cadmo reinou sobre o povo dosenqueleus.Emseguida foram transformadosemserpentes, e foi sobessaformaquechegaramaosCamposElíseos.

AdinastiadeCadmofoicontinuadaporseunetoLábdacoedepoispelofilhodeste,denomeLaio.DuranteamenoridadedeLaio,oreinodeTebascaiunasmãosdeusurpadores,eLaiotevequeseexilaremÉlida,juntoaoreiPélops.FoiemÉlidaqueeleseapaixonoupelo filhodorei,o jovemebeloCrisipo, inventandoosamoresantinaturais.Pélopsoamaldiçooueoexpulsou.Osusurpadoresforammortosnamesmaocasião,eLaiovoltouaTebas e recuperou seu reino. Porém, carregava consigo a maldição dePélops. O oráculo lhe revelara que ele estava para sempre proibido deengendrarumfilho.Seo fizesse,acriançaque teria iriamatá-loeseriaacausa das mais pavorosas desgraças para toda a família. Laio não deuouvidos e engendrou Édipo.Mas, não querendo negligenciar o presságioameaçador, ordenou que a criança fosse largada namontanha. Furou ostornozelosdela e juntou-os comumacorreia; foido inchaço causadoporesseferimentoqueresultouonomedacriança.Édiposignifica,comefeito,“pésinchados”.Noentanto,Édiponãomorreu,comodesejavaseupai.Foirecolhidoporpastoresdo reideCorinto (oudeSicione),Pólibo, e criadoem sua corte, acreditando firmemente que Pólibo e a mulher, Peribeia,eramseusverdadeirospais.AcrençadurouatéodiaemqueumCoríntioque discutia com o rapaz revelou-lhe que ele era apenas uma criançaachada.ÉdipodecidiuiraDelfosinterrogarooráculoesaberaverdade.Efoiduranteaviagemqueserealizouaantigapredição,pois,nocruzamento

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de Potniai, ele encontrou o rei Laio em um local onde o caminho seestreitava. O arauto de Laio intimou-o a deixar o caminho livre e, comoÉdipo não se apressasse a obedecer, abateu um de seus cavalos. Édipo,furioso,matouoarautoeseusenhor.

Ignorando inteiramente a extensão de seu crime, prosseguiu nocaminhoparaTebas.Láchegando,viu-senapresençadaEsfinge,monstrometade leão metade mulher que propunha enigmas aos passantes edevoravaquemnãoconseguisserespondê-los.Édiporesolveuosenigmase, despeitada, a Esfinge se atirou sobre os rochedos e se matou. Comoreconhecimento,ostebanosadotaramoestrangeirocomoreielhederamemcasamentoamulherdeLaio,Jocasta.Masumapesteseabateusobreacidade.Ooráculo, aoserconsultado, revelouqueela sócessariaumavezpunidooassassinatodeLaio.Poucoapouco,averdadesurgiu.Édipo,emdesespero, cegou-se. Jocasta se enforcou. Contudo, a maldição ainda nãoesgotaraseusefeitos,eageraçãoseguinteassistiuaumaassustadorasériedecatástrofes.

Édipo, depois de se privar da visão, partira em exílio voluntárioacompanhado somente de Antígona, sua filhamaismoça. Retirara-se emColona, na Ática, sob a proteção de Teseu, deixando em Tebas seus doisfilhos,EtéoclesePolínice,quedecidiramreinaralternativamente.Etéoclestomouopoderemprimeirolugar.Políniceafastou-see,aovoltar,nofinaldeumano,Eteóclesrecusou-sealhecederolugar.EntãoPolínice,expulsode sua pátria e de sua classe, fugiu para Argos, para junto de Adrasto, etratoudereunirumexércitopararecuperarseusdireitos.FoiaorigemdaGuerradosSeteChefescontraTebas.

Do exército de Polínice faziam parte, além de Adrasto, Tideu, deCálidon, que também estava no exílio, Capaneu e Hipomedonte, doisargianos, Partenopeu, um arcadiano filho de Melânio e da caçadoraAtalanta,e,porúltimo,oadivinhoAnfiarau,quetambémpertenciaàfamíliarealdeArgólida.Anfiarau sabiaperfeitamente, atravésde suaarte,queaexpediçãoresultariaemumdesastre,masfoiobrigadoaparticipardelaporsua mulher Erifila, a cujas decisões ele jurara obedecer, e que foracorrompida por Polínice, que lhe oferecera o colar divino usado porHarmonianaocasiãodesuasbodascomCadmo.

A caminho, os sete chefes fundaram os jogos Nemeeus; depois seapresentaramdiantedeTebas.Cadaumrecebeuamissãodeatacarumadas sete portas da cidade. No assalto, seus exércitos inteiros foramaniquilados.SomenteAdrastoconseguiusesalvar,graçasàrapidezdeseucavalo Aréion. Polínice caiu, assim como Etéocles. Um irmão matara o

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outro.Creonte,irmãodeJocasta,continuavaaserodonodasituação.Ordenou

queserendessemhomenagensfúnebresaostebanos,sobretudoaEtéocles,masqueselargassemnolocaloscorposdosinimigos.AntígonaserecusouadeixarsemsepulturaocorpodeseuirmãoPolínice.Elatomouainiciativade espalhar um pouco de poeira sobre o cadáver, gesto ritual suficienteparacumpriraobrigaçãoreligiosa.Poresseatodepiedade,foicondenadaàmorteporCreonteeencerradavivadentrodatumbados labdácidas22.ElaseenforcounaprisãoeHêmon,seunoivo, filhodeCreonte,matou-sesobreseucadáver.

Contudo, as provações de Tebas não tinham terminado. Os filhos dossete chefes retomaram a dissensão de seus pais, instigados por Adrasto.Organizou-se a expedição dos Epígonos23, conduzida por um exércitomenor,mas commelhores presságios. Tebas foi tomada, seus habitantesevacuaram a cidade e durante algum tempo ela desapareceu da lista dascidades gregas. Verificou-se que o Catálogo de Navios, na Ilíada, nãomenciona Tebas, mas somente a baixa Tebas, um estabelecimentoevidentementeposterioràruínadacidadela.Eatradiçãodizia,comefeito,queaguerradosEpígonosocorrerapoucotempoantesdaexpediçãodosAtridescontraTroia.

OciclodosAtridestambéméligadoaPélops,eamaldiçãodesteúltimoéaindaaorigemdascatástrofesquemarcamseudesenvolvimento.

Atreu é filho de Pélops e de Hipodâmia. Através deles, descende deTântalo e, indiretamente, de Zeus. Tem vários irmãos,mas por ummaisnovo,quesechamaTiestes,Atreunutreumódioincontrolável.Ódioqueéprecisamenteoresultadodamaldiçãopaterna.AtreueTiestes, instigadospor Hipodâmia, tinham matado o mais jovem de seus irmãos, Crisipo –aquelequeLaioamara–e, comopunição, foramamaldiçoadosebanidospelopai.FugindodePisa,refugiaram-seemMicenas,juntoaEstênelo,quelhesentregaumapartedaArgólida,acidadedeMideia.Maistarde,quandomorre Euristeu, filho de Estênelo, os habitantes de Micenas decidemescolherparareiumdosdoisfilhosdePélops.Diantedeles,AtreueTiestesse empenham em enumerar os respectivos direitos à realeza. Atreuencontraranopassado,emumrebanho,umcordeirocujoveloeradeouro.Comomaiorcuidado,trancaraovelodentrodeumaarca.QuandoTiestespropôs que se escolhesse para rei aquele que, dos dois, conseguisseproduzirumvelodeouro,Atreu, semdesconfiança, aceitou; ele ignoravaquesuamulher,Aérope,queeraamantedeTiestes,roubaraoveloparadá-

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lo de presente ao amante. Tiestes, então, exibira o velo e fora eleito.Contudo, um novo prodígio – o sol que se pôs no leste – revelou que avontade dos deuses destinava o poder a Atreu, que, no final, suplanta oirmão.Dessediaemdiante,estabelece-seentreelesumalutasecreta.Atreumata três filhosqueTiestes tevecomumaNáiadeemandaservi-losnumbanquete aopai.DepoisqueTiestes come, ele lhemostra as cabeçasdosfilhoserevelaanaturezadarefeiçãoqueTiestesacabadefazer.Depoisobane. Tiestes refugia-se em Sicione e só pensa em vingança. Seguindo oconselho de um oráculo, une-se à própria filha, Pélope, sem lhe revelarquemaseduzira,ecomela temumfilhoquesechamaEgisto.Depois fazcomquePélopesecasecomotio.AtreucriaopequenoEgistosemqueelesaibaqualdosdoiséseupaie,depoisqueEgistocresce,éaelequeconfiaamissão dematar Tiestes.Mas Egisto descobre a tempo o segredo de seunascimento e evita o parricídio. Retornando a Micenas, mata Atreu eentregaoreinoaTiestes.

Atreudeixoudoisfilhos,AgamenoneMenelau,osAtridesdaepopeiaedos trágicos. Com essa geração, o ciclo começa a descrever a aventuratroiana,masotemadominante,oódioentreosdois filhosdePélops,nãofoi extinto e ainda vai provocarmuitas catástrofes. Agamenon começa aperseguiradescendênciadeTiestes.Umdosfilhosdeste,chamadoTântalo,como seu bisavô, casara-se comClitemnestra, umadas filhas deTíndaro.AgamenonmataTântalo,bemcomoofilhorecém-nascidoqueClitemnestraderaaomarido,eemseguidasecasacomela.Essaunião,estreandosobtãodeploráveisauspícios,nãopodiaresultarsenãoemtragédia,e,finalmente,seráEgistoocausadordamortedeAgamenon.

Menelau, irmão de Agamenon, quis logo depois se casar comHelena,irmãdeClitemnestra.Segundooshomens,HelenaerafilhadeTíndaro,quereinava em Esparta, e de Leda, mas todos sabiam que na realidade elanascera de umovo – posto ou apenas chocado por Leda – e que seu paiverdadeiroeraZeus,queseuniraàmãedelasobaformadeumcisne.FilhadeZeus,Helenaeranaturalmentebelíssima,etodosospríncipesdaGréciapretendiam sua mão. Por sugestão de Ulisses, Tíndaro pediu a todos ospretendentesquesecomprometessemporjuramentoaapoiaraqueleque,entre eles, Helena escolhesse. Então Helena escolheu Menelau, que eramuitomaisricodoquetodososoutros.

Durantealgumtempo,Helenaviveu tranquilamenteemEspartaedeuao marido uma filha, que se chamou Hermíone. Porém, por essa época,surgiu uma contestação no Olimpo entre as deusas. Éris (a Discórdia)lançaraumamaçãdeourodentrodaassembleiadosdeusesdizendoque

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ela deveria ser concedida “à mais bela” das três deusas, Atena, Hera eAfrodite.NinguémnoOlimpoquistomaradecisãodeescolherumadelas.Zeus encarregouHermesde levá-las até o IdadeTrôade, ondePáris, umpastor, filhodoreiPríamo, tomavacontadeseus rebanhos.Umadecadavez,astrêsdeusasdefenderamaprópriacausadiantedele,todaselaslhefazendopromessas.HeraprometeuentregaraeleoimpériodaÁsiainteiro;Atenaofereceuasabedoriaeavitórianoscombates.Afroditecontentou-seemprometeroamordeHelenadeEsparta.Párisdecidiuqueelaeraamaisbela.FoiassimqueoFrígiochegouàcortedeMenelau,ondefoirecebidocomgrandeshonras;e,comoMenelauprecisavairaCretaparaosfuneraisde seu avô Catreu, confiou o hóspede àmulher. Helena, pela vontade deAfrodite,deixou-seseduzire,reunindotodosostesourosquepôde,partiuparaTrôadeabandonandoapequenaHermíone.

Menelau, ao voltar, alertou o irmão, e os dois decidiram lembrar aospríncipesgregosojuramentoquetinhamprestado.Oschefessereuniram,cadaumcomumcontingente,parairaTroiareclamarHelena,eAgamenonfoi eleito “rei dos reis”. Uma primeira expedição fracassou. Os gregosignoravamocaminhodeTroiaedesembarcaramnaMísia.Oshabitantes,conduzidosporseureiTélefo,osdispersaram,ecadaumvoltouparasuacidade. Mas, oito anosmais tarde, Agamenon conseguiu reunir um novoexército,queseconcentrouemAulis.Noentanto,omarcontinuavafechadoaosnavios, eosventos favoráveisnão sopravam. Interrogado,oadivinhoCalcas respondeu que o motivo era a ira de Artemis, seja porqueAgamenon, num dia em que matara uma corça durante uma caçadaconsiderouqueadeusanão teria feitomelhordoqueele, sejaporquenopassadoAtreunãosacrificouàdeusaocordeirodeouroqueeleacharanomeiodorebanho.Deumaformaoudeoutra,adeusapediaumsacrifício.ElaexigiaqueseimolassediantedeseualtarumadasfilhasdeAgamenon,Ifigênia.Agamenonconsentiu;osacrifíciofoirealizado,emboraumaversãosuavizada da lenda relate que a deusa, no últimomomento, substituiu amenina por uma corça, levando a jovem para um de seus santuários deTáurida,ondeafezsuasacerdotisa.

AfrotapôdeenfimlevantarâncoraealcançarTrôade.Aguerraduroudez anos. Nos nove primeiros anos, ela apenas se arrastou. Um oráculointerpretado por Calcas não anunciara que ela iria durar dez anos? Nodécimo ano, Agamenon e um chefe tessálio, Aquiles, filho de Peleu e dadeusa marinha Tétis, entregaram-se a diversas operações de piratariacontraascidadesdavizinhança.Entreoutraspresas,elestrouxeramduascativas,BriseidaeCriseida.AprimeirafoiatribuídaaAquiles;asegunda,a

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Agamenon.Acontecequeopaidestaúltima,Crises,erasacerdotedeApolo.Elesuplicouaseudeusquefizessecomqueamoçafossedevolvida.Apolo,emboranaturalmente favorávelaosaqueus,enviouapesteaocampodossitiantes.ECalcasrevelouqueaprisioneirateriaqueserrestituídaaCrises.Agamenonconsentiu,masexigiuBriseida.Aquilesfoitomadoporviolentacólera. Só obedeceu por obrigação ao rei dos reis, mas decidiu nãocombatermais. Os sucessos obtidos pelos troianos não foram suficientesparamudar sua resolução, tampouco as embaixadas enviadas por outroschefes.Issodurouatéomomentoemqueostroianosestavamemviasdeincendiar e destruir os navios de seus inimigos. Assustado como perigo,Pátroclo,amigoíntimodeAquiles,obtevedeleapermissãoparatomarseulugarnocampodebatalha.Aquileschegouatéalheemprestarasprópriasarmas.AcreditandoestarvendoAquilesempessoa,ostroianosrefluíram,masdepoisvoltaramàcarga,ePátroclofoimorto.EntãoAquilesseimbuiudodesejode vingança. Sozinho, semarmas, saiude seu reduto, e apenassuapresençafezretrocederoassaltante.OcorpodePátroclofoirecolhido,e seu amigo lhe proporcionou funerais solenes. Nesse entretempo, Tétistrouxe novas armas divinas para o filho, e o combate recomeçou. Poucotempodepois,Aquiles,queexpulsaraostroianoseosobrigaraavoltarparaoabrigodesuasmuralhas,viu-sesozinhodiantedeHeitor,omaisvalentedos filhos de Príamo e o verdadeiro esteio da força troiana. Zeus, noOlimpo, pôs na balança a sorte dos dois homens. A deHeitor era amaispesadaefezcomqueopratoalcançasseoHades.AlançadeAquilesatingiuo troiano, quemorreu profetizando a seu inimigo que ele não tardaria asegui-lonosInfernos.Aquilesnãodeuimportância,prendeuocadávernaquadriga eo arrastoupor três vezes em tornoda cidade.Dali emdiante,Troiaestavaperdida.Aquiles foimortoporuma flechadePáris (dirigidoporApolo),mas seu filho,Neoptólemo, foi chamadopara substituí-lo. Aomesmo tempo,mandamvir Filoctetes, que foi quemdeteve as flechas deHércules,semasquaisosadivinhosdeclaravamqueacidadenãopoderiaser tomada. Depois os gregos descobriram os ossos de Pélops, talismãsnecessários à vitória, e, finalmente, Ulisses, disfarçado de trânsfuga,introduziu-senacidadesitiadaeroubouoPaládio.Cumpridastodasessascondições, imaginou-se um último estratagema. Os gregos fingiram seretirar; embarcaram ostensivamente,mas deixaramna praia um enormecavalodemadeira.Depois foramseemboscaratrásda ilhadeTenedos,àvistadeTrôade.Tinham,aomesmotempo,deixadoláumdosseus,Sínon,quevoluntariamentesedeixouprenderpelostroianosesefezpassarporuma vítima de Ulisses. Ele revelou que o cavalo de madeira era uma

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oferenda dos gregos à deusa Atena e que tinha sido construído daqueletamanho para impedir que os troianos conseguissem fazê-lo entrar nacidade,pois,eleacrescentara,seocavalotranspusesseasmuralhas,Troiaficaria inexpugnável. A maior parte dos troianos acreditou, apesar dosavisosdeLaocoonte,umsacerdotedeApolo.Porém,duranteumsacrifíciocelebrado por Laocoonte, duas serpentes saíram domar e o devoraram,assim como a seus dois filhos. Depois disso, os troianos não maishesitaram:demoliramamuralhaefizeramocavaloentrarnacidade.Sínon,outalvezaprópriaHelena, fezcomumatochaosinalcombinado.A frotaretornouparaTrôade,eosgregosatacaramdetodasaspartes,enquantoossoldados, escondidos no interior do cavalo, saíam de dentro dele etomavamasportas.

Depois da vitória, deu-se o retorno do exército. A maior parte doscontingentes voltou em grupos, mas seus navios naufragaram no caboCafareu, na Eubeia. Somente alguns chefes escaparam. Os que chegaramsãosesalvosasuaspátriasencontraram-nasemdesordem.Suasmulheresnão tinham suportado a ausência deles. Foi o caso de Clitemnestra. Pormuitotempoelaforafielaomaridoapesardesuasmágoas,masterminouescutandoavozdeEgistoe,quandoAgamenonvoltou,tomouadecisãodematá-lo. Teve certeza de sua resolução quando soube que ele estavaacompanhadodecativastroianas,sobretudodeCassandra,umadasfilhasde Príamo. Durante um banquete, com a ajuda de Egisto, mandouassassiná-lo.AdescendênciadeTiestespareciavencerdefinitivamenteadeAtreu.Contudo,ageraçãoseguinteirialevaraomáximotodososhorrores:Orestes,filhodeAgamenon,escaparadomassacrequeseseguiuàmortedopai. Quando atingiu a idade adulta, recebeu de Apolo a ordem de vingarAgamenon.AcompanhadodoamigoPílades, foi aArgos ematouEgisto eClitemnestra. Assassino da própria mãe, foi perseguido pelas Erínias ecomeçouaerrarportodaaGrécia.Finalmente,emAtenas,submeteu-seaojulgamentodotribunaldoAreópago.Ocasoeradifícil:osvotosdosjuízessedividiram,masadeusaAtena,quepresidia, juntouoseuaodosqueseinclinavampelaclemência,eOrestesfoiabsolvido.Mesmoassim,tevequeseafastar.AlendaomostraemTáurida,juntodairmã.Osdois,depoisdeumreconhecimentodramático,decidemvoltaràGréciaelevamcomelesaestátuamilagrosadeArtemis,daqualIfigêniaerasacerdotisa.Orestesteveuma longa vida como rei de Argos, e os romanos pretendiam que suascinzasrepousavamaopédoCapitólio,sobo templodeSaturno.O troncofamiliardeAtreuvenceradefinitivamenteodeTiestes.

OmaiscélebredosRetornoséodeUlisses;elefoilongamenterelatado

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na Odisseia, mas, de novo, o poema homérico negligenciou um certonúmero de tradições e episódios que ficamos conhecendo por outrasfontes.

Porseupai,Laerte,UlissesdescendedeÉolo,econtacomHermesemsua linhagemmaterna.Uma tradição isoladadizque,antesdocasamentocomLaerte,suamãeteriaseentregadoaSísifo,omaispérfidoeastuciosodosmortais.Ulisses nasceu em Ítaca, que é umapequena ilha vizinhadeCorfu,ondeterminousucedendoaopaiquandoovelho,cansado,retirou-separa o interior e renunciou às funções reais. Ulisses foi um dospretendentesdeHelena,maslogodesapareceueacabouobtendoamãodePenélope, uma Perseida, prima-irmã de Clitemnestra e Helena. Dessecasamento nasceu um filho chamado Telêmaco. Na ocasião do rapto deHelena,Ulisses, ligadopelo juramento,nãopôde se furtar àobrigaçãodeparticipar da expedição contra Troia. Foi quando passou a ser oencarregadodetodasasmissõesdelicadasdoexércitoaqueu:embaixadas,operaçõesde“informação”,espionagem,estratagemasdeguerra,chegandoatéatraiçãopuraesimples.Tantoque,nofinaldaguerra,quandosequisatribuirasarmasdeAquilesaogregoquetivessecausadomaisestragosaoinimigo, prisioneiros troianos consultados a respeito votaramunanimementeemUlisses.Foi eleque carregouoPaládioaopenetrarnacidade.Atribui-seaeletambémainvençãodocavalodeTroiaedetodaamaquinação que culminou no assalto final. Ulisses comandou odestacamento preso dentro do cavalo, pois ele não temia se exporpessoalmente ao perigo e foi um temível campeão no campo de batalha.MassuaglóriaverdadeiracomeçoucomseuretornoaÍtaca.

Separado do resto da frota pela tempestade, Ulisses, com seus dozenavios,abordounaTrácia,nopaísdosCícones.Duranteumreidedignodepiratas, seus homens e ele devastaram a cidade, poupando apenas osacerdotedeApolo,Maron,quelheentregoucomorecompensadozejarrasde um vinho doce e forte. Um contra-ataque dos Cícones obrigou ospilhadores a voltar para o mar. Um vento do norte levou-os à vista deCítara, e pouco tempo depois eles abordaramno país dos Comedores deLoto:algunshomensdatripulaçãoexperimentaramoloto,umfrutomágicoque lhes tirou todavontadedepartirdenovo.Ulisses teveque levá-losàforça. Em seguida os navios chegaram ao país dos Ciclopes, identificadodesde sempre com a Sicília. Acompanhado de doze homens, Ulissesdesembarcoue entrouemumacaverna.Teveo cuidadode levar consigouma jarra do vinho deMaron. Dentro da caverna, havia potes cheios deleite e queijos; mas, quando o proprietário voltou acompanhado de um

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rebanhodecarneiros,osgregosseviramnapresençadeumgigantedeumolho só, redondo, nomeio da testa. O Ciclope, que se chamava Polifemo,primeiro fechou a saída da gruta e depois se preparou para devorar osestrangeiros.Ulisseslheofereceuvinho.Polifemo,quenuncatinhabebidovinho, achou-o delicioso e bebeu-o em excesso.Dormiu pesadamente emcimadaspelesdeanimal.EntãoUlissesafiouumaestaca,endureceu-anofogo e a enfiou no único olho do Ciclope. Depois, pelamanhã, quando acaverna se abriu, fugiu com seus companheiros, disfarçando-se sob oventredoscarneiros.

LivredoCiclope,UlisseschegouàterradeÉolo,oDonodosVentos.Éolooacolheucomhospitalidadeelhedeuumodrequemantinhapresostodososventos,deixandoforaapenasabrisafavorávelqueoconduziriaaÍtaca.Osmarinheiros já conseguiam avistar os fogos acesos pelos pastores noalto das colinas de sua pátria quando Ulisses adormeceu. Seus homens,imaginandoque o odre continha tesouros, abriram-no, e todos os ventosescaparam.Afrotafoiempurradanadireçãoopostaefoiparardenovo,nodia seguinte, na terra de Éolo. Este se recusou a acolher Ulisses umasegunda vez. Os deuses tinham provado muito claramente que nãodesejavamseuretornoàpátria,eÉolonãopodiafazernadaporele.Cheiode tristeza, Ulisses retomou os caminhos do mar. Abordou na terra doslestrigões, um povo de antropófagos, situada nas proximidades deFormigas, sobre a costa da Campania, onde passou por enormesdificuldades. Todos os navios se quebraram, menos o que o levava. EletornouapercorreracostaitalianaefoidarnailhadeAea(provavelmenteo promontório do Monte Circeo, ao sul do Latium), no país da feiticeiraCirce.Afeiticeiratinhaocostumedemetamorfoseartodososestrangeirosqueseapresentavamemsuacasa.AumprimeirogrupodecompanheirosdeUlissescoubeessaterrívelsorte,eUlissesseperguntavacomolivrá-losquandoHermes apareceu para ele e lhe entregou um ramo da planta (omoli)queoprotegeriados sortilégios.Assimarmado, eleobrigouCirce adevolvera formaanterioraseuscompanheirosepassoucomelaumanointeiro. Ao partir, deixou-lhe um filho, Telégono (o que foi engendradolonge).

Circe aconselhou o amigo a ir ao país dos Cimérios para consultar aalmadoadivinhoTirésias.Tirésias,evocadodomeiodosmortos,informoua Ulisses que ele voltaria à sua pátria sozinho em cima de um barcoestrangeiro.Temposdepois,eleiriatornarapartir,comumremoàscostas,àprocuradeumpovoqueignoravaanavegação.IriaoferecerumsacrifícioaPosídonefinalmentemorreriacomidadeavançada,felizelongedomar.

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Assim advertido, Ulisses voltou aomar. Passou ao longo dos recifes dasSereias,ordenandoqueoamarrassemaosmastrospararesistiràatraçãode seus cantos. Entre Caribde e Cila perdeu ainda alguns companheirosdevoradospelosmonstros,masafinalconseguiuchegaràilhadeTrinácia,onde pastavam os bois do Sol. Esses animais eram sagrados, sendoproibidopôramãoneles.Masacalmariaseestabeleceusobreomareosvíveres escassearam por completo. Os marinheiros resistiram algumtempo,masno finalnãoconseguirammaissecontrolare,duranteosonodochefe,devoraramumdosbois.Osacrilégioiriacausarsuadesgraça.Aoretomarem a viagem, uma tempestade se formou, e Zeus, com seu raio,destruiu o navio. Apenas Ulisses conseguiu escapar, agarrado a umdestroço. Sacudido durante nove dias em cima das ondas, chegousemimorto à ilha de Calipso (provavelmente sobre a costa marroquina,diante de Gibraltar). Foi recolhido pela Ninfa, que o amou e o mantevejuntodelapordezanos.No final,graçasàsprecesdeAtena,queprotegiaUlisses,ZeusenviouaCalipsoaordemdedeixá-loir.Ulissesconstruiuumajangadaepartiuparaooeste.EstavaquasechegandoemsuapátriaquandoPosídonlheimpôsumaúltimaprova.Umatempestadequebrouajangada,eUlissescommuitadificuldadeconseguiuchegar, inteiramentenu,à ilhadosFeácios(provavelmenteailhadeCorfu).Esgotado,adormeceuemumamataenodiaseguintefoiacordadopelosgritosdeumgrupodemoças.EraNausícaa,filhadoreiAlcínoo,esuasservas,quetinhamidolavarroupaebrincar na beira da água. Graças a elas, Ulisses chegou ao palácio do rei,onde foirecebidocomgrandecortesia.Alcínoo lhepropiciouummeiodevoltar para sua pátria. Um navio feácio o depositou, dormindo, em umapraiade Ítaca,deixando juntodelegrandespresentes.Quandodespertou,Ulissesdecidiunãoirimediatamenteparaopalácio.FoiprimeiroàcasadeEumeu,ochefedeseusporqueirose,fazendo-sereconhecer,elaborouumplano para retomar o poder. Na sua ausência, 108 jovens da vizinhançatinham se instalado em sua residência, onde organizavam festins edevoravamsuasprovisões, alémdepressionarPenélopeaescolherentreeles um novo marido. Penélope resistira até então. Pretextara anecessidadedetecerparaLaerteumamortalha,maseladesfaziadenoiteotrabalho feito durante o dia. A artimanha fora descoberta, e ospretendentesexigiamqueelaescolhesseumdeles.Ulisses,comaajudadeTelêmaco, apresentou-se no palácio com o aspecto de mendigo; foi embuscadearmase,depoisderecuperarseuarco,quesóelepodiabrandir,massacrou sem piedade todos os pretendentes enquanto eles sebanqueteavam.Nodiaseguinte,ospaisdasvítimas foramprotestar,mas,

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graçasàintervençãodeAtena,apazvoltoubemdepressaaÍtaca.Taléorelatohomérico.Masexistemoutrosepílogosparaaaventura,

acrescentados à predição de Tirésias. Mostram-nos Ulisses em Épiro, nopaísdostesprótios.Arainhadopaís,Calídice,ofereceu-lheseureinosobacondição de que ele ficasse com ela. Ulisses concordou,mas, quando elamorreu, ele partiu, voltando para Ítaca. Mostram-no também na Etólia,juntodeToas,filhodeAndrêmon,ouentãonaItália,ondeteriaparticipadocomEneiasdafundaçãodeRoma.ParecequemuitocedoUlissesteriasidoadotado pelas tradições populares italianas, especialmente entre osetruscos,quelhedavamonomedeNanos,oque,emsualíngua,significaoerrante.

Aoladodessesciclosépicos,econtrastandocomeles,asaventuraseasproezas de Hércules se apresentam como um complexo no qual sejustapõemelementosmuitodiversos,desdecontosfolclóricossemelhantesaosqueencontramosnos ciclosprecedentes (sobretudoodeUlisses)atémitosetiológicosdeorigemevidentementereligiosa.OsdóriosconsideramHérculesseupatrono,mas issonãosignificaquesua lendasejadória.Elaestá ligada, ao contrário, como os ciclos precedentes, à Grécia aqueia emicênica.Por suadescendência,Hérculeséumargiano,umavezque suamãe,Alcmena,eseupai “mortal”,Anfitrião,sãoambosperseidas.Maselenãonasceu emTirinto, embora sua família seja origináriadessa cidade esua lenda o associe a ela. Anfitrião, depois de matar acidentalmente osogro, Electrião, foi obrigado a fugir para Tebas. Lá, enquanto estavaocupadocomumaexpediçãocontraostelebenos,Zeustomouseu lugaredurante umanoite que durou três vezesmais do que umanoite comum,engendrouumfilho.Anfitrião,aovoltarpara juntodamulher,engendrououtro filho. As duas crianças nasceram juntas. Foram Hércules, filho deZeus,eÍficlo,filhodeAnfitrião.

Na sua alegria, Zeus afirmara imprudentemente, pouco depois donascimentodeHércules,queacriança“queianascerdaraçadosperseidasreinaria sobre Argos”. Na mesma hora, Hera, enciumada, fez com que onascimentodacriançafosseretardado,aomesmotempoemqueodeseuprimo, Euristeu, filho de Estênelo, fosse antecipado. E assim Euristeunasceudesetemeses,aopassoqueHérculesficoudezmesesnoventredamãe.Porém,obrigadopelaspalavrasdeZeus,Hérculestornara-se,naquelemomento,portodaavida,escravodeEuristeu.

Quando a criança completou oito meses, Hera tentou matá-la;introduziunoquartodeladuasserpentesenormes.Semhesitar,Hérculesergueu-se no berço e asfixiou os monstros. Foi criado de acordo com a

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tradiçãodaeducaçãohelênica.Deram-lhecomoprofessordemúsicaLino,para que lhe ensinasse os rudimentos. Mas Hércules era indócil edesajeitadoe,umdiaemqueLinotentoucorrigi-lo,apanhouseutamborete(outros dizem que foi a lira) e quebrou-o no crânio domestre. Anfitriãodecidiudeixar aquele filhoproblemáticono campo,onde foi encarregadode cuidardo rebanho.Aosdezoito anos,Hércules, que alcançara a alturaextraordinária de trêsmetros,matou o leão de Citeron. Foi sua primeirafaçanha.Ele fez isso apedidodo reiTéspio e, durante todoo tempoquedurouacaça,dormiuànoitenopaláciodorei.Téspio,quetinhacinquentafilhas,fezcomque,acadanoite,umamoçadiferentefosseparaacamadoherói.Hérculesseuniuatodase,porestartãocansadoporcausadacaçadodia,acreditouterseunidotodasasnoitescomamesma.Tevecomelascinquentafilhos,ostespíadas,osquaismaistardecolonizaramaSardenha.

Depoisdecaçadoo leãodeCiteron,Hércules livrouacidadedeTebasdeum tributo imposto pela gente deOrcômeno.Na batalha, Anfitrião foimortoaoladodofilho.ParaagradeceraHércules,oreideTebas,Creonte,deu-lhe em casamento sua filhamais velha,Mégara.Mégara tevemuitosfilhos, mas logo em seguida Hera inoculou em Hércules a loucura, e elematou os filhos. Ao voltar a si, horrorizou-se com o próprio crime erenunciou a Mégara e, por ordem da deusa, colocou-se desde então aserviçodeEuristeu.

Euristeu lhe impôs sucessivamente doze trabalhos. Primeiro teve quevencer o leão que, na Nemeia, fazia toda espécie de devastação e erainvulnerável. Hércules asfixiou-o com os braços e, depois que o animalmorreu,arrancou-lheapeleeseenvolveucomela.Acabeçalheserviudecapacete.Euristeu,vendoaquelesdespojos,ficoutãoassustadoqueproibiuHércules de voltar a entrar na cidade, obrigando-o no futuro a depositarseubutimdiantedasportas.

DepoishouveocombatecontraaHidradeLerna,umaserpentecujascabeças, múltiplas, tornavam a brotar à medida que eram cortadas.AjudadopelosobrinhoIolau,filhodeÍficlo,Hérculescortouascabeçasdomonstroequeimouascarnes,oqueasimpediudetornaracrescer.

Oterceirotrabalhoconsistiuemtrazervivoumjavaliquevivianoaltodo monte Erimanto. Hércules o caçou na neve, cansou-o e pôde assimcapturá-lo.Aoveroanimal,Euristeufoiseesconderdentrodeumajarradebronzenofundodopalácio,detãoassustadoqueficou.

Depois Euristeu desejou a corça sagrada do monte Cerineu. Era umanimaldegrande rapidez,de cornosdouradose,nopassado, consagradopelaninfaTaigeteaArtemis.Hérculesperseguiu-aumanosemalcançá-la.

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Porfim,eleaferiuligeiramentecomumaflechaepôdeagarrá-la.EmvoltadolagoEstínfalo,naArcádia,existiaumadensaflorestacheia

de aves que, no passado, tinham fugido de uma invasão de lobos e semultiplicadodemaneiraextraordinária.Comoelasseconstituíamemumflagelo para a região circundante, Euristeu ordenou que Hércules asdestruísse.Parafazê-lassairaomesmotempodasmoitas,oheróirecorreuacastanholasdebronze,queelemesmofabricara,ouentãoqueAtenaterialhe dado de presente. As aves ficaram com medo, deixaram seusesconderijoseforamabatidasaflechadas.

Em Élis vivia o rei Áugias, que possuía inúmeros rebanhos, mas eramuitonegligente,deixandooestercoseacumularnosestábulos.Hérculesfoi encarregado por Euristeu de limpar a propriedade de Áugias. Eleconseguiu,desviandoparaoestábuloaságuasdosriosAlfeuePeneu.

OstrabalhosseguintesnoslevamparaforadoPeloponesoealargamaáreadalenda.PrimeirofoiacapturadotourodeCreta.Otouro,oquehaviaraptado Europa e do qual Zeus adquirira a forma, tornara-se furioso ecausavaestragosem todaa ilha.Hérculescapturou-o,voltouàGréciaemcima de seu dorso, a nado, e entregou o animal a Euristeu. EuristeuofereceuaHeraaquelavítimadequalidade,maselanãoaceitou,eotouro,deixadoemliberdade,foiparaÁtica,ondeseriafinalmentecapturadoporTeseu.

Havia na Trácia um rei chamado Diomedes, que alimentava seusjumentoscomcarnehumana.Hérculesfoiàsuacorteeodeudecomeraosanimais.Foiseuoitavotrabalho.

A filha de Euristeu, Admetes, queria possuir o cinto da rainha dasAmazonas.AsAmazonaseramumapopulaçãodemulheresguerreirasqueviviamno interiordaÁsia.DescendiamdodeusAres.Hércules recebeuamissão de satisfazer o capricho de Admetes. Hipólita, a rainha dasAmazonas,consentiudeboavontadeemlhedaroprópriocinto,masumadisputa explodiu entre as Amazonas e o pessoal do séquito de Hércules.Começouabatalha.Hérculessesentiutraídoematouarainha.

Poucoapouco,Euristeuimpunhaaseuservidorprovascadavezmaislongínquas.Ordenou-lhe que fosse buscar os bois deGerião. Este último,filho de Crisaor e descendente da górgona Medusa, possuía grandesrebanhos guardados por seu pastor, Êurito, na ilha de Erítia, a IlhaVermelha,nopaísdopoente.AdificuldadeconsistiaemtransporoOceano.Hércules pediu ao Sol a grande taça sobre a qual, todas as noites, eleembarcavaparavoltaraoOriente.OSol consentiu,eHérculesalcançouopaís de Gerião. Massacrou Êurito e seu cão, Ortro, e voltou tocando o

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rebanho à sua frente. Acrescentou-se a esse retorno grande número deaventurasdestinadasaexplicarparticularidadeslocais:namesmaocasião,oheróiteriaerguido,deumladoedeoutrodoestreitodeGibraltar,duascolunas, as “Colunas de Hércules”; ao atravessar o país dos Lígures, foiatacado por salteadores. Para socorrê-lo, Zeus fez cair uma chuva depedras, que permanecem até hoje sobre as terras da planície de Crau.Hércules continuou a percorrer as costas do mar Tirreno. Viu-se numanoite à beira do Tibre, no local onde um dia se elevaria Roma. Ali, umsalteadordenomeCaco roubou-lhealgunsanimaiseosescondeudentrode uma gruta do monte Aventino. Hércules matou-o e fundou, comolembrança de sua vitória, o Grande Altar, onde seu culto foi por muitotempocelebrado.Nofinaldaviagem,oheróientregouosboisaEuristeu,queosofereceuemsacrifícioaHera.

Em seguida Hércules recebeu ordem de ir aos Infernos buscar o cãoCérbero,ummonstrodetrêscabeçasqueguardavaaentradadoreinodosMortos.Hércules,depoisdese iniciarnosMistériosdeElêusis,desceuaomundo subterrâneo pela Porta do Inferno que se abre no cabo Tênaro.Hércules tambémera guiadoporHermes, por ordemde Zeus.Durante opercurso, encontrou defuntos ilustres, em especial Meléagro, o herói deCálidon que, tendo acabado demorrer, recomendou-lhe a irmã Dejanira.Hércules prometeu desposá-la quando voltasse ao mundo dos vivos.Finalmente dominou Cérbero e voltou a Argos. Euristeu, ao ver o cãomonstruoso,tevemedoenãoquisaceitá-lo.Hérculestevequereconduzi-loaolocalondeopegara.

Odécimosegundo,eúltimo,trabalhoconsistiuemcolherospomosdeouroqueasHespérides guardavamemum jardim fabuloso ajudadas porumdragão.NaocasiãodocasamentodeHeracomZeus,aTerralhederaospomosdepresente,eadeusaosacharatãobonitosqueosplantaranoseujardim,juntoaomonteAtlas.

Hérculescomeçoupor indagarocaminho,e ficousabendoqueodeusmarinhoNereueraoúnicoquepodialhedarainformação.Nereu,contudo,nãosedeixava interrogardeboavontade,eHércules tevequedominá-lopara obter uma resposta. Dizem que Hércules atravessou o Egito, ondematou o rei Busíris, que sacrificava os estrangeiros; depois passou pelaArábia e, no “Mar Exterior”, embarcou outra vez na taça do Sol.Desembarcou no sopé do Cáucaso e aproveitou para libertar Prometeu,matandoaáguiaqueotorturava.Comoagradecimento,ogigantecontouoqueeledeveriafazerparacolherospomosdeouroparaAtlas.Finalmente,HérculesalcançouopaísdasHespérideseofereceuaAtlas,quecarregavao

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céusobreosombros(eraocastigoimpostoporZeusaoTitãdesdequeoexpulsara,comosirmãos,doOlimpo),substituí-loenquantoeleiacolherosfrutos.Atlasconcordou,mas,aoretornar,declarouqueHérculesestavatãobem naquela posição que ele não cogitava retomá-la. Hércules fingiuaceitar, pedindo apenas a Atlas que colocasse uma almofada sobre seusombros.Semdesconfiar,ogiganteobedeceu,mas,enquantoelesustentavaaabóbada,Hérculesfugiueodeixousozinho.Umavezdepossedospomosdeouro,Euristeunãosoubeoque fazercomelesedevolveu-osaoherói,queosentregouaAtena,quefoirecolocá-losnojardimfabuloso.

Alémdesses trabalhos,Hérculesaindarealizouumgrandenúmerodefaçanhas. Com alguns companheiros, apoderou-se uma primeira vez dacidadedeTroia,parapunirumperjúriodeseurei,Laomedonte.GuerreoucontraEsparta,contraPilosdeMicenase,naTessália,contraoslápitas,aoladodoreiEgímio.FoiaosInfernosumaoutravezparabuscarAlceste,quese sacrificara voluntariamenteparaprolongar a vidadomarido,Admeto.Lutou contra os Centauros, seres metade homem e metade cavalo, e osexterminou. Mas foram sobretudo seus últimos momentos que ficaramcélebres.HérculesdesposaraDejanira,comohaviaprometidoaMeléagro,eviveuporumtempoemCálidon.Porém,quisafatalidadequeelematasseacidentalmente umhabitante do país, por isso, teve quepartir em exílio.Viajoucomamulhereofilho,opequenoHilo.Ostrêschegaramàmargemdo rio Eveno, onde morava o centauro Nesso, que exercia a função deatravessador. Hércules foi o primeiro a ser transportado, mas, quandochegouavezdeDejanira,Nessotentouviolá-la.Hércules,comumaflecha,matouNessoeeste,nomomentodemorrer,confiouàmoçaqueseusangueera um elixir do amor. Crédula, Dejanira recolheu o sangue, esperandoutilizá-lonodiaemqueoamordeseumaridodiminuísse.Temposdepois,Hércules guerreou contra o rei de Ecália e obteve como parte do butim,depoisdavitória,afilhadoreiquesechamavaÍole.Dejaniraficousabendoe, quando o marido lhe pediu uma túnica nova para oferecer a Zeus osacrifício de ação de graças no alto do monte Eta, enviou para ele umaroupaembebidadosanguedeNesso.Osanguenãoeraumelixirdoamor,masumvenenoqueatacavaapeleecausavaumsofrimentoinsuportável.EntãoHérculesgalgouamontanhaeseatirounafogueira.AfogueiraaindaardiaquandoumtrovãoecooueHércules foi levadoparaocéu.Umavezentre os deuses, Hércules se reconciliou com Hera, depois de umacerimônianaqualsesimulouonascimentodoherói,comoseelesaíssedoseiodadeusa,suamãenaimortalidade.

A lenda atribui a Hércules sessenta filhos homens: são os heráclidas,

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que mais tarde retornaram a Argólida e invadiram o Peloponeso, láestabelecendoadominaçãodórica.

OciclodeTeseué,emcertamedida,umaréplicadociclodeHércules.Teseu é o herói de Atenas. Contemporâneo de Hércules, os ateniensesasseguramqueelessempreforamamigos.TeseupertenceàfamíliarealdeAtenas: pelo pai, Egeu, descende de Erecteu. Pelo lado da mãe, Etra, ébisnetodePélopseseligaaoramofamiliardeTântalo.FoiengendradoemTrezena,ondepassouseusprimeirosanos.Aoatingiraidadeadulta,pôs-sea caminho deAtenas, ao longo do istmo de Corinto. Era a época emqueHércules,paraexpiaralgumassassinato,viviacomoescravojuntoaÔnfale,arainhadaLídia,eosmonstrosrecomeçavamapovoaromundo.Oistmoera infestado de salteadores. Teseu massacrou-os um por um e, ao seapresentaremAtenas,EgeuestavaempoderdeMedeia,quelheprometeradarumfilho.De inícioEgeunãooreconheceu,deixando-sepersuadirporMedeia de que devia matar aquele estrangeiro. Ia envenená-lo, masfinalmente reconheceu-o pela espada que trazia. Medeia partiu para oexílio.

Conta-se também que ela tentara provocar sua morte mandando-ocombaterotourodeMaratona,quenãoeraoutrosenãootourotrazidodeCretaporHércules.Teseudominouo animal eoofereceuemsacrifício aApolo.Depoisdetersidooficialmentereconhecido,tevequelutarcontraosprimos, ospalântidas24, que cobiçavam o trono. Em seguida partiu paraCreta, a fim de libertar sua pátria do tributo imposto porMinos. Após amortedeseufilhoAndrogeu,mortonaÁtica,Minosexigiradosatenienses,acadanoveanos,aentregadesetemeninosesetemeninas.Otributoeradestinado aoMinotauro, ummonstrometade homemmetade touro que,segundosedizia,tinhasidoengendradohámuitotempoporumtourocomaprópriamulherdoreiMinos,Pasífae.OMinotauroestavapresodentrodeum “labirinto”, espécie de palácio de traçado complicado emuito escuro.Teseusubiunumaembarcaçãodevelasnegrasjuntocomasvítimas,tendoantesprometidoaopaique,casovoltassevencedor,içariavelasbrancas.

EmCreta,Teseufoiencerradonolabirinto,masantesforaavistadoporAriadne,umadasfilhasdeMinos,queseapaixonaraporeleelhederaumnovelo para que ele pudesse encontrar o caminho dentro do dédalo. Acondiçãocolocadapelamoçaeradequeelesecasassecomela.Depoisdematar o monstro, Teseu foi fiel à sua palavra e partiu levando Ariadne.Chegaram ao anoitecer na ilha de Naxo. Ariadne adormeceu sobre amargem.Aodespertar,Teseu tinha idoembora.Dizia-sequeDionísio lhe

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deraordemdepartirsemelaequeodeusempessoatinhavindolevaramoça,pelaqualestavaapaixonado.Teseu,entretanto,sofrendopelaperdade Ariadne, esqueceu de içar as velas brancas, e seu pai, do alto daAcrópole,viuchegarobarcocomasvelasnegras.Acreditandoqueofilhoestavamorto,atirou-sedoaltodafalésiaesematou.

Teseu, ao se tornar rei, reuniu em uma única cidade a população deÁtica,atéentãodispersapelasaldeias. Instituiuasgrandesfestas,cunhoumoedae,demaneirageral,organizouacidade.Manteveumaguerracontraas Amazonas que atacaram a Ática, apoiou os sete chefes na luta contraTebas,defendeuÉdipo,queostebanosqueriamlevaràforçaparaseupaísaconselhodeumoráculo;emsuma,elesemostroudefensorda justiçaedas leis divinas. Uma única aventura o mostra sob uma luz menosfavorável. Foi quando ele raptou Helena, então criança, e a manteveprisioneira na Ática, para aguardar que ela atingisse a idade de ser suamulher.Depois, como amigoPirítoo, partiuparaos Infernospara raptarPerséfone,comquemPirítooqueriasecasar.Chegandolá,Hadesreteveosdoisaudaciososfazendo-ossesentaremumacadeiramágicaquenãolhespermitia mais se levantar. No final, contudo, graças à interferência deHércules,HadesconsentiuemlibertarTeseu,masmantevePirítoo.

DevoltaaAtenas,Teseunãotardouaserexpulsoporumarevolução.Retirou-se em Ciros, onde morreu. Mais tarde, na época das guerrasMédicas,Címondescobriusuascinzaseergueu-lhesemAtenasumtúmulomagnífico.

20.Etolianos:nascidosouhabitantesdaEtólia(GréciaAntiga).(N.T.)21.Colquidianos:deColquide,noCáucaso,partedaatualGeórgia,nacostaorientaldoPontoEuxino,ondeosargonautasforamconquistaroTosãodeouro.(N.T.)22.Labdácidas:descendentesdeLábdaco,reilendáriodaantigaTebas.(N.T.)23.Epígonos:cadaumdosdescendentesdossetechefesgregosquemorreramduranteaprimeiraguerracontraTebas.(N.T.)24.Palântidas:oscinquentafilhosdePallas,nobresdaÁtica.(N.T.)

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CAPÍTULOV

AVIDADASLENDAS

Cada vez que se aborda o estudo de um mito grego, nota-se que ostextosqueodescrevemapresentamumnúmeroinfinitodevarianteseque,deacordocomasépocas,omitonãoédemodoalgumomesmo.Équeosmitos foram, desde a sua origem, objeto de um trabalho incessante. Elesviveram – e, por conseguinte, se transformaram – através de todo opensamento antigo, por vezes até nossos dias, e as gerações não lhespediram para expressar a mesma verdade a cada vez. De um modobastante genérico, podemos admitir (com todas as restrições que talgeneralização impõe) que os mitos helênicos atravessaram, a partir doperíodo em que se formaram, três grandes momentos: o que se podechamardeidadeépica,aidadetrágicaeaidadefilosóficaou“sofística”.Emnenhummomentonossentimostentadosaaceitaraideiadequeosmitostenhamtidouma“formaprimitiva”.Ummitogregosempreseráparanós,emalgumgrau,umaelaboraçãocomplexa,eareflexãoaseurespeito,portercomeçadomuitocedo,concorreuparamodificá-locontinuamente.

Umcicloépicocomoorelatodaguerraquepôsemconfrontoaqueusefrígios de Troia compreende um núcleo indubitavelmente histórico. Asescavações realizadas no sítio de Troia provam sem contestação que acivilização troiana é uma realidade e que existiram sobre a colina deHissarlikdiversascidadessucessivas,sendoquepelomenosumadelasfoidestruídapelaviolência.Masestedadoinicial,a lutadeumacidadefrígiacontra invasores vindos do Oeste, complicou-se rapidamente. De algumamaneiraelesefragmentouemumasériededetalhes,ecadaumdeulugaraamplificações e explicações sem fim. Por exemplo, os exércitos emconfronto foram enumerados, cada um de seus contingentes recolocadosem ummeio verdadeiro ou suposto, em função das tradições relativas acada uma das cidades das quais se supunha serem originários. Suapresença era justificada por um relato particular, genealogias eramremanejadasouinteiramenteforjadas.Emsuma,o“ciclo”,aoseconstituirpoucoapouco,tornava-seumaverdadeirasúmulanaqualseresumiaumestágio de civilização. Mas o trabalho não parou por aí. Era precisoencontrarumpretextoparaaprópriaguerra.Imaginou-seoraptodeuma

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mulher e escolheu-se Helena, que parece de fato ter sido originalmenteumadeusa,talvezpré-helênica–divindadedasárvores,divindadelunaroudivindade protetora dos marinheiros, não se sabe ao certo –, e que osinvasores aqueus “degradaram”paraheroína.Helena foi entãodotadadeuma genealogia, que a aproximava dos grandes barões micenianos. AhistóriadeseucasamentocomMenelau(ocultodeHelenaparecetersidoimportante sobretudonaLacônia) explica aomesmo tempoo fatode elanão ter permanecido na Argólida e o fato de que um acontecimento tãoinsignificantequantoseuraptopossaterlevantadocontraoculpadotodosos príncipes e todas as cidades. Foi assim que nasceu o episódio dojuramentopronunciadoantesdonoivadodajovematravésdoqualtodaanobrezaaqueiaseviuunida.

A compreensão do período anterior ao desenvolvimento da aventuraapresenta outros problemas. Por que a cidade sitiada resistiu por tantotempo? Por que, no final, os atacantes venceram a resistência? É que,responde-se,odestinoimpuseraàvitóriadosgregosumcertonúmerodecondições,queelessóforamdescobrindopoucoapouco.Entãocomeçouase desenhar progressivamente a figura de Heleno, filho de Príamo,instruídoporApoloempessoanaartedaadivinhação,equeterminouporrevelaraosaqueuscomoelesdeveriamse comportarpara triunfar sobresua própria pátria. Tamanha traição requeria explicações. Helenodecepcionara-secomosseus.DepoisdamortedePáris,desejaradesposarHelena,masela lhe tinhasidorecusadaparaserdadaaDeífobo. Irritado,Helenoretirou-senamontanha,ondefoicapturadoporumdestacamentoaqueu e não opôsmuita resistência aos questionamentos. Captamos, aospoucos, o trabalho criador de uma imaginação que propõe a si mesmadificuldadeseasresolverecorrendo,nomaisdasvezes,asoluçõesprontas,recolhidasnorepertóriodoscontosfolclóricos.

Esses elementos folclóricos serão encontrados em toda parte. Nãoapenasnosciclosheroicos,mastambémnosmitosrelativosadivindades:Hermes roubando os bois do irmão e puxando-os pela cauda paradissimularsuaspegadas–trata-sedeumahistóriapopularbemconhecida.OmesmoestratagemaéobservadonoepisódiodeCaco,noqualobandidorouba de Hércules uma parte dos bois de Gerião. São esses elementosfolclóricos intercambiáveis que contribuem para dar às lendas suafisionomia comum. Ariadne abandonada por Teseu àsmargens deNaxoslembra irresistivelmenteMedeia traída por Jasão emCorinto. Tanto numquanto noutro caso, o tema é idêntico. As duas heroínas salvaram, poramor, o jovem estrangeiro que se apresentava como inimigo. Elas o

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ajudaram, contra seus próprios pais, e não pediram como recompensasenãosetornaremsuascompanheiras.EaindaahistóriadeCometo,filhadoreiPtérela,que,poramoraAnfitrião,cortoudacabeçadopaiocabelodeouroqueasseguravasuainvulnerabilidade.EssefoitambémocrimedeCila, filhadoreideMégara,Niso,queseapaixonouporMinos.ETarpeia,que,emRoma,mostrouaobeloTácioocaminhosecretodacidadelaquedefendia seu pai. Todos pertencem ao repertório comum dos “contos dacarochinha”quealimentamosmitos.Háaindao temada serpenteoudomonstro guardando uma caverna ou um jardim onde está escondido umtesouro: pomos de ouro das Hespérides, velocino de ouro da Cólquida.Conhecemos em outros lugares vários exemplos desses tesouros – querepresentam,talvez,oouroescondidodoarco-íris,aolonge,paraosladosdoOriente.Hátambémashistóriasdecriançasabandonadasealimentadasporanimais:Têlefo,filhodeHércules,esuacorça;Asclépio,filhodeApoloeheróicurador,aleitadoporumacabra;Cicnoeseucisne;e tantosoutros,atéRômuloeRemo,cuidadospelalobanosopédoPalatino.

Os contos populares nutrem os mitos. Eles não os explicam porcompleto. Há sempre, na origem, um outro elemento sobre o qual seimplantam variações e interpretações. Dado histórico no caso do ciclotroiano.DadogeográficonoscasodosArgonautas,noqualboapartedeseupériplo resulta do desejo de explicar a existência de santuários deAtena(oudedeusasassimiladas)emtodaavoltadabaciadoMediterrâneo.Nósnosdamosconta,damesmamaneira,das“errâncias”deEneu,noEgeuenomardaSicília,pelossantuáriosdeAfrodite,cujafundaçãoéaeleatribuída.Umcertonúmerode“retornos”é,aparentemente,construídoemcimadehomonímias de lugares: cada um dos locais chamados Troia (havia umcertonúmeroaténaItália,doVênetoaoLácio)sugeriaoestabelecimentode colônias troianas ou de prisioneiros trazidos pelos chefes aqueus elevadospelastempestadesatéesseslongínquoslitorais.Umtemafolclórico–odosnaviosqueimadosporcativoscansadosdasintermináveisviagens–completavaa explicação, e é assimquenasceram,provavelmente,muitosdosmitosdefundação.Restaaointérpretemodernoexplicarahomonímia,que, com muita frequência, acaba sendo a única testemunha de umpovoamentomuito antigo ou de umamigração sobre os quais omito dáumainterpretaçãosimbólica.

Emoutroscasos,onúcleooriginaléumaparticularidadecultural.NãoéindiferenteobservarqueagrandedeusadeArgoseraHeraequeonomede Hércules é evidentemente derivado do nome dela. Hércules é, semnenhuma dúvida, um “servidor” de Hera, e, se é verdade que, no

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Peloponesomiceniano,tambémaHeraargianafoiuma“damadasferas”,ésignificativoconstatarqueasprimeiras–eaparentementeasmaisarcaicas–façanhasatribuídasaoheróidizemrespeitoaferasesesituamnointeriordoPeloponeso.Percebe-seumhieroslogos25argianoconfuso–umrelatosacerdotal ao qual foram pouco a pouco se agregando outros elementos,unsautenticamentehistóricos,outrossimplesmentepopulares.

Tal é o que se poderia chamar de “pré-história” dos mitos. Masconstatamosque,muitocedo,asfigurasmíticasadquiriramumarealidadesingularmente viva e se tornaram pessoas. Ao mesmo tempo, o mito,desenvolvidocomoepopeiaou“romance”,encarregava-sedeumareflexãosobreomundoeconstituíaumaformaprivilegiadadeexperiência.Aquiles,Agamenon eHelena são, ao que tudo indica, anteriores à ideia inicial dociclotroiano.Entretanto,sóexistiramdefatoumavezengajadosemsuasgrandesaventuras.UmdosméritosdeHomeroé,porexemplo,terdotadoAquilesdeumcaráterqueseimpôsparasempre.Aquileséessencialmenteum guerreiro. No começo de sua vida, ele teve que escolher entre umaexistência longaepacíficaeavidabreveporémgloriosadeumherói.Elenãohesitou,eseuserinteirofoideterminadoporessaescolhavoluntária.Sabe que vai morrer jovem, mas conhece o próprio valor. Sabe-sedestinado,vivendonaimortalidade.Seuorgulhoeseusensode“oquelheédevido” fazemcomque se rebelediantedo arbitrárioAgamenonepõemem perigo, ao se recusar a combater, todo o exército grego. Ele tem aviolência,mastambémasternurasdosjovens:oqueofazdecidiresquecera injúria é o desejo de vingar Pátroclo. Impiedoso, insulta o cadáver deHeitor, mas chora quando Príamo, na mais lamentável das embaixadas,vemredimiresteúltimo.DamesmaformacomofoicantadoporHomero,AquilessetornouumafontedeinspiraçãoaolongodetodaaAntiguidade:AlexandreeCésarterãoseuexemplodiantedosolhoseoferecerãolibaçõesnoseutúmulo.

Contudo, o poemas homéricos e, de modo mais geral, a epopeiapreocupam-se mais com o desenvolvimento da ação do que com apsicologia dos personagens. Esta última resulta da ação, assim como asatribuiçõeseapróprianaturezadecadadivindaderesultamdeepisódiosnosquaisasvemosenvolvidas.Emnenhummomentoareflexãose liberadomitoouda lendaparaolhá-losviver.Observamosqueopoetanão fazjulgamentomoral,anãosermuitoexcepcionalmente.Elenãotomapartidonaluta,eoúnicoheróipeloqualsuaantipatiaéperceptíveléAjax,filhodeOileu,denegridordedeuses,quemorrenocaboCafareucomablasfêmiana

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boca.Ulisseséaceitosemreticência.Seusardismaisnegros,suastraiçõesesuasmentirasnãoprovocamreprovação,nemseusfeitosguerreiros:todosesses aspectos de sua atividade são igualmente legítimos. Somente maistarde,comoadventodasofística–porvoltadofimdoséculoVIantesdenossaera–essesproblemascomeçarãoasercolocados,eentãoosheróislendáriosserãosubmetidosaumacríticamoral.AperguntaquesefaráéseUlisses tivera razão ao provocar, com a ajuda de calúnias e falsostestemunhos, a morte de Palamedes por ele lhe obrigar a participar daguerradeTroia.Osmitossetornarãoumaimensareservadeexemplos,eosofistaProdicosimaginaráentãoseufamosoapólogodeHércules,noqualmostraoheróisaindodaadolescênciaetendoqueescolherentreoVícioeaVirtude.Omito–emsuaformaderelatosépicos–torna-seinstrumentode educação moral por excelência. Nas escolas da Grécia clássica, ascrianças,desdeamaistenraidade,aprendemdecorospoemashoméricos,e o professor extrai deles máximas e preceitos de conduta. Para muitasgerações, Homero foi o “maître à penser” por excelência. Sabemos comoPlatão tentou romper com essa tradição e esses métodos e como eleconsiderou o “mito” e os poetas corruptores do pensamento. Os poetasserão expulsos da cidade ideal porque as “verdades” que eles trazemescapam ao controle da estrita razão e se voltam para paixões e para ocoração.MasPlatãonãoconsegue imporseupensamento,eatéo finaldaAntiguidadealeituradospoetaseainiciaçãonosmitoscontinuarãosendooprimeiroexercícioimpostoàscrianças.

Com o nascimento da tragédia, introduz-se um ponto de vista novo.Umatragédianãoémaisumrelato,masumaespéciedemeditaçãosobreum episódio isolado. Essa meditação foi de início essencialmente lírica:sabe-sedoestreitoparentescoqueune,naorigem,oditirambo,atragédiaetambém o lirismo coral. Mas, se a epopeia tende por inteiro à ação, olirismo,por sua vez, é estático. E é exatamente assimque se apresenta atragédia esquiliana por excelência, o Prometeu acorrentado. A trilogiainteiraéumareflexão–diríamosquaseuma“elevação”–sobreomistériode Zeus. À gesta hesiódica, quemostrava Zeus conquistador e Prometeuvencido, assim como tinham sido vencidos os Titãs e as outras forçasprimordiaisdomundo,Ésquiloopõeaideiadeumareconciliação.OtriunfodeZeusnãoserádefinitivoenquantoodeusnãoconseguirrepornolugarcorretoosqueforamsuplantadosporele.Semisso,eleéapenasoterceirodepoisdeUranoeCrono, e amesmaameaçapesa sobreele.Oproblemaque Ésquilo se dispôs a resolver é de ordem teológica. Consistia emdescobrirascondiçõesdapermanênciadeZeus.Esuatrilogiainteiraéum

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drama de “mediação”: Prometeu, do mesmo modo como tinha sido omediadorentreasforçasprimordiaiseoshomens–aoroubarparaelesofogodocéu–,torna-seomediadorentreessasmesmasforçaseageraçãodosOlímpicos, ao revelaraZeusooráculodeGeia, apredição segundoaqual o filho “que nasceria de Tétis” deveria um dia suplantar o pai,impedindoassimodeusdeconcluirumauniãoque,inexoravelmente,fariaandarosdestinos. Zeuspode então retirarCrono e osTitãsdaprisãodoTártaro; eleos instalanosCamposElíseos,oumesmonas ilhasdosbem-aventurados,ondeelesencontramumreinoemumuniversopacificado.Assombrias lutas cósmicasdasvelhas teogonias,nasquais triunfavaa forçabruta, pertencem a uma idade desaparecida. A reflexão humana“humaniza” os deuses. O mito se torna, com Ésquilo, e também comPíndaro,aexpressãopoderosadaesperançaedoideal.NãotemosquenosperguntarseÉsquiloacreditavanadivindadedeZeus,emsuaslutasouemsua própria existência. A pergunta não tem sentido. O mito fornece umuniversopoético,umdadoquesemodelaàvontade,àimagemdaprópriaverdade interior.Hesíodo,domesmociclodePrometeu, fezumahistóriadesesperada. Já Prometeu separou para sempre o homem da divindade.Trouxe para o universo uma espécie de “pecado original” e corrompeuprofundamente a condição humana. Para Ésquilo, ao contrário, ele é oredentor universal, e a trilogia que lhe é consagrada soa como umEvangelho.

Ostrágicos,aotrazeràcenaosepisódiosheroicos,defrontaram-secomproblemasanálogos.Deixando-selevarporseurelato,opoetaépiconãosepreocupa com as verossimilhanças. Aceita situações que, uma vezapresentadas na realidade e com todos os personagens, revelam-seinsustentáveis. O ciclo herculano forneceu à Ilíada a figura de Filoctetes.Esseherói,filhodoreiPeias,fezaHérculesofavordeacendersuafogueirafúnebre, no cume do Eta. Como recompensa, recebeu o arco e as flechasdivinas e foi ele, de algumamaneira, o “sucessor” e herdeiro místico deHércules.Contudo, somos informados,no segundo livroda Ilíada, de queFiloctetes estava entre os chefes reunidos em Aulis. Embarcara com osAtrides e seus companheiros, mas ao chegar à pequena ilha de Crise,vizinhadeLemnos,ondeoschefesaqueusdeveriamoferecerumsacrifício,foipicadoporumaserpente.Oferimentoficouenvenenado,causandoumsofrimentoquearrancavadeFiloctetesgritospavorososedesprendiaumterrívelfedor.Filoctetestornou-seumestorvoparatodooexércitoaqueue,aconselhodeUlisses,foiabandonado.Noentanto,acrescentaHomero,osAqueusseconscientizaram“bemdepressadequedeveriamselembrarde

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Filoctetes”. E com efeito, como vimos, as revelações do adivinho Helenoestabeleceramcomocondiçãoparaavitóriadosaqueusapossedasarmasde Hércules. Os poetas épicos que cantaram os últimos anos da guerra,Lesches e Arctinos, relatam somente que, então, Diomedes partira parabuscarFiloctetese,semgrandedificuldade,conseguiratrazê-lo,enquantoUlissesiaaCiroseretornavaaTrôadecomofilhodeAquiles,Neoptólemo,cuja presença não eramenos necessária do que as armas deHércules. Aepopeia não deixa entrever nenhuma dificuldade. Contudo, refletindo-sesobreela,háqueseconsiderar:comoFiloctetes,abandonadopelosaqueus,que,desprezandoqualquersentimentodehumanidade,o tinhamdeixadosemcuidadoemumailhapoucohabitada,renegadopeloscompanheirosdearmas, iriaacolherademandaque lheera feita,deajudá-losaobterumavitória da qual eles seriam os primeiros a obter os frutos? Ele não iriarecusar? Justo ele, o proscrito, tornava-se o árbitro de uma situação semsaídaparaosaqueus,eodramanasciaprecisamentedofatodeoDestinoter posto em suas mãos o destino do mesmo exército que o havia tãocovardemente abandonado. Do velho relato épico surge um conflitoimprevisto,odasalmasedasvontades.

Ostrágicoscompreenderam-notãobem–eostrês,Ésquilo,SófocleseEurípides, escreveram cada um uma tragédia de Filoctetes – em queescolheramUlissesparaapresentaraoheróiopleitodeAtrides.Eassimseencontravamfaceafaceosdoisinimigos:oresponsávelpeloabandonoeoquetinhasidoavítima.Cadaumdostrêspoetastratouotemasegundoseuprópriogênio.Ésquilo,comohabitualmente,semgrandepreocupaçãocomaverossimilhançadosdetalhes.Eurípides imaginaquenamesmaocasiãochegaaLemnosumaembaixadatroiana,esuaengenhosidadeadquirelivrecursoemumdebatequeopõeUlisseseostroianos,tendoFiloctetescomocentro da discussão e juiz. Já Sófocles põe a ação em um outro plano,introduzindo o personagem Neoptólemo. É na alma de um jovem, dignofilho de Aquiles e sensível como ele à piedade, imbuído de retidão e dehonra, que o drama adquire toda a sua amplidão. Patriotismo, razão deEstado, honestidade e compaixãoprevalecempouco apouco, e Filoctetesconservaria suas armas se Hércules não aparecesse e desse a seu antigocompanheiroaordemdeirparaTroiaecumprirosdestinos.Vê-secomoatragédia de Sófocles (a única que chegou inteira até nós) tambémhumanizou a lenda e, por conta disso, constitui um bom exemplo dainflexãoqueostrágicosimpuseramaosrelatoslendários.

Contudo, não está certo acreditar que o elemento tradicional sejaapenas um pretexto para a expressão de uma filosofia ou um simples

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sustentáculo a serviçodeumamoral.Osmitos trágicos,mesmoemcena,guardam de suas origens uma atmosfera de grandeza religiosa que écaracterísticadatragédia.Mesmoqueoheróitrágicotenhasehumanizado,convividocompaixõesesofrimentosdahumanidadecomum,elesemoveemummundoàpartenoqual tudoémaior,mais terrívele,emtodosossentidos, “exemplar”. Édipo não émais somente o representante de umageração maldita, simples elo na sucessão das catástrofes que se abatemsobreosdescendentesdeLaio;elesetornaafigurainesquecíveldavítimainocentesobosgolpesdoDestino.Édipoéodramadavontadeimpotentediante da Ordem do mundo que o esmaga. Mas é ao mesmo tempo oexemplo do que a privação interior é capaz de fazer: ao renunciarvoluntariamenteaopoder, ao amor dos seus e até à visão, ao deixar suapátria,eledescobre,nasolidão,apresençadeAntígona,enofundodesuanoite,apazcomosdeuses.Ele,omaldito,oflagelodeTebas,torna-se,emColona, um herói protetor e benéfico: virtude do sofrimento, doconsentimento à vontadedivina,mais fecundosdoque todas as revoltas.Para exprimir tudo isso, Sófocles precisou transformar os elementoslendários, afastar um ou outro episódio, essa ou aquela versãoincompatível com a experiência única que estava instituindo. Nas suasmãos,omitoadquiriuforma,e,comaargilaimprecisaquelheofereciamastradições,deuformaaumÉdipoimortal.

Esse trabalho “literário” (mas sobretudomoral e, nomelhor sentido,humanista) teve como resultado modificar profundamente as lendas.Personagens até então apagados são, de repente, tirados da sombra.Ifigênia, na epopeia simples, vítima imolada em Aulis, adquire com osclássicos uma importância nova. Atrai em torno dela um ciclo completo,cujos elementos serão novamente buscados em tradições folclóricas ouculturais. É assim que nós a vemos em Táurida, depois outra vez noPeloponeso, onde sua presença explica os ritos selvagens da Artemisespartana;eporfimnoLácio,naflorestadeNemi,ondeelaésacerdotisadaDiana das Florestas. A história dos mitos não se apresenta como umaevolução contínua, pois cadamito temuma origem, uma fase épica, umafasetrágicae,eventualmente,umafasefilosóficaousofística.Elarevela,aocontrário, a reação contínua de uma forma sobre a outra. A importânciaconsiderável adquirida pelo ciclo troiano é, sem a menor dúvida,responsável pela sobrevivência de tradições locais relativas a Helena, aOrestes, a Diomedes, a Eneu e aos outros. Isso é verdade sobretudo emrelaçãoàsformasqueaslendasadquiriramnaItália,especialmentenoSul,onde encontramos as marcas dos heróis troianos, embora nem sempre

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saibamos de quemaneira eles chegaram até ali. Talvez, em certos casos,suapresençasejao testemunhodeumamigraçãooudeumacolonizaçãomuitoantiga;commuitafrequênciatambémpodesetratardeumasimplesassimilação, tendo a tradição local se inserido no ciclo troiano, maisconhecidoemaispreponderante.

Foiassimqueosmitosprimitivamentehelênicosforamseestendendopoucoapoucoportodoodomíniomediterrâneoatéos limitesdomundoconhecido.Suaplasticidadepermitiuquese implantassememtodaparte.OsgregostêmumaexplicaçãomíticaparaosdeusesanimaisadoradosnoEgito. Foi no tempo em que Tífon perseguia Zeus, e todos os Olímpicos,tomadospeloterror(salvoAtena),refugiaram-senasareiasdodeserto,noAlto Egito. Para melhor se proteger, adotaram formas animais: Hermesvirouum cachorro;Apolo, um íbis; e assimpordiante.Omitode Isis foitambém, pouco a pouco, integrado no dos amores de Io e Zeus. Io,transformadaembezerra,refugiara-senasmargensdoNiloondepassaraaser adorada sobessa forma, edizia-seque seu filhoÉpafoderaorigemàlinhagemrealegípcia,comodeus-rioNilo,bemcomoàlinhagemdeDânao,oconquistadordoPeloponeso,eàdeCadmosedosreisdaSíria.Poucoapouco,massobretudoapósasconquistasdeAlexandree,maistarde,comaconstituição do Império Romano, o pensamento mítico e religioso domundo antigo foi se fundindo com as formas impostas pelo lendáriohelênico.Emnossasfonteslatinasegregas,porexemplo,sóconhecemososgrandestraçosdareligiãogaulesaougermânicasobodisfarcedamitologiaclássica. Mesmo em Roma, o esforço dos historiadores modernosfrequentementetemtidoporobjetodespojardivindadeselendasdesuasvestimentas helênicas para descobrir, por trás das criações artificiaisdevidasàinfluênciagrega,asentidadesprimitivas.

Quando,apartirdoséculoIIIantesdenossaera,opensamentogregopassou a ser cada vez mais dominado pela filosofia, os mitos nãoescaparamaessaevolução.Mostramoscomoareflexãosofísticaseserviradeles,doisséculosantes.Agora,elessãodenovointerrogados,masdeumaoutramaneira.Osestoicos,porexemplo,pedem-lhesumarevelaçãosobreanaturezadomundo.Paraeles,omitonãoésenãoumaformarecobertaesimbólica de verdades racionais. Zeus não é mais o conquistador, ovencedordosTitãs.EleéoprincípioabstratodaRazão,motoressencialefimúltimo, o Ser em si, e os episódiosmíticos de seu ciclo não sãomaisconsideradossenãocomomomentosdialéticosdodeviruniversal.E,comoa reflexão estoica tende cada vez mais a alcançar uma concepçãomonoteísta, Zeus adquire uma posição cada vez mais importante, em

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detrimentodasoutrasdivindades.Etimologiasfantasiosasvêmsocorrerosfilósofos.SeZeuséaLuz,Hera,seuparedro,éoAr,eafísicaestoicaexplicacomoauniãodaLuz (ou seja,do fogoplasmador)edoArégeradoradevida. Aos olhos dos estoicos, a mitologia aparece como uma imensa“listagemdecoisas”,cabendoaosfilósofosdecifrá-la.

Em relação a esse ponto, a filosofia foi ao encontro das doutrinasmísticas,umavezque tambémelas seesforçavamparaextrairdosmitosuma verdade secreta. Os monumentos funerários da época romana, porexemplo,costumamexibir,aoladodaefígiedomorto,imagensdeSereiasou deMusas, ou então a imagemde Endimião, o pastor por quem a Lua(Selene) se apaixonou e fez dormir com um sono eterno. Todas essasfigurações têmporobjetoexpressara féemumdestino futuro.AsMusassimbolizam a harmonia do mundo onde vivem os bem-aventurados. AsSereias,ocantodivino,amelodiaqueosencantará.Ovelhomitoodisseicofoiesquecido.Depássarosmaléficos,asSereiasse tornarammensageirasda esperança. Crenças astrológicas se sobrepuseram ao tema lendáriotradicional.Endimiãoestáaíparanos lembrarqueaLuaéamoradadasalmas libertadas da carne. Sua aventura é o símbolo da felicidade maisfantásticaquepodecaberaummortal,queédeslizarinsensivelmente,semossofrimentosdamorte,nadireçãodasatisfaçãoeterna.

Asexegesessimbólicasoumísticasnãoesgotam,entretanto,avidadosmitosnohelenismoemextinção.Espíritoscéticos,menossensíveisàbelezadessesrelatos, impressionavam-sesobretudocoma intrusãoperpétuadosobrenatural que eles testemunhavam. E se perguntavam – com umaaparênciadebomsenso–comosemelhantesloucuraspodiamternascido.Imaginavamentãoque as lendasnão eram senão a versãodeformadadeacontecimentos absolutamente corriqueiros. Dizem, explicavam eles, quePerseu raptou uma moça, Andrômeda, matando o monstro ao qual elaestavasubmetida.Mas,emvezdisso,nãoseriaahistóriadeumjovemquesalvouanoivanomomentoemquepiratasiamraptá-laàsmargensdeumrio?ObarcodospiratassechamavaOMonstro,ouABaleia,efoiessefatoque ensejou o nascimento da curiosa lenda. Ou dizem também queHérculesasfixiouahidradeLerna,quetinhacabeçasrenascentes.Porém,omais provável é que o herói tivesse sido encarregado de secar um brejopestilento(sabe-sequeexistiambrejosnasproximidadesdeLerna),equemúltiplaspequenasfontestornavamseutrabalhovão.Eassimpordiante.Palefato,umescritorobscuro,nosdeixouumtratadocompletosobreessasinterpretaçõesracionalistasdosmitos.Naturalmente,tudoissoépurojogodo espírito. Lendas jamais nasceram dessa forma, e é um singular

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empobrecimentoconsiderá-lascomoperversõestão infantisdoreal.Mas,mesmo assim, essa posição foi a adotada pelos racionalistas e pelos“filósofos”doséculoXVIII.AHistóriadosoráculos,deFontenelle,nãofica,naessência,muitolongedopostuladofundamentaldePalefato.

Vizinhadaprecedente,umaoutratendênciasurgiuapartirdofinaldoséculoIVantesdenossaera.UmfilósofochamadoEvêmeroescreveu,poressaépoca,umlongoromancequeseapresentavacomoumarevelaçãodaverdadeira natureza dos deuses e dos heróis. Segundo ele, tratava-se, narealidade,demortaisdivinizados,nomaisdasvezes,reisbenevolentesaosquais seus súditos, em reconhecimento, tinham concedido aquela honra.ComoparaPalefato,oobjetivoera“racionalizar”osmitos,desprovendo-osde seus aparatos fantásticos.Essadoutrina conheceuumgrande sucesso.Os epicuristas, por exemplo, que negavam a intervenção dos deuses nasquestõeshumanas,encontravamnelamatériaparainterpretaçõesmorais.Triptólemo foi o primeiro “semeador de trigo” e por essa razãomereceuglóriaeterna.Hefesto,oprimeiroferreiro.Assim,ouniversodalendaseviareduzidoàsproporçõeshumanas,eofantásticoeraexpulsodomundo.Talposiçãoera especialmente sedutorapor corresponder, emcertos casos, aumaevidenteverdade.ApróprialendareconheciaqueAgamenonreinaraemMicenas,eexistiaemArgólidaumcultoaAgamenon.EmEspartaexistiaumcultoemhonraaMenelaueumoutro,aHelena.Oevemerismopodia,pois,serageneralizaçãodeumfatorealeverificável.Nãoseperguntava,então, se o fato alegado não deveria ser “lido” de outramaneira, se nãoseria a preexistência do culto que ensejara o nascimento do herói, se oherói, na realidade, não seria o resultado de uma combinação entre um“demônio” e um personagem histórico. Bastava que as aparênciasestivessemafavordateseadefender.Porém,taltesetinhacomoresultadoreduziranadatodaareligião“pagã”.Ganhoinesperadoparaosescritorescristãos, que adotaram essa tese de boa vontade e se esforçaram paramostrarque,segundoaprópriaconfissãodospagãos,suasdivindadesnãopassavam de impostores e usurpadores. Assim, o grande esforço deracionalizaçãodosmitos,depoisdeesvaziá-losdetodasuasubstânciaviva,terminavaporlhesretirartodarazãodeser.Oevemerismo,comtodasassuasseduções,eraapróprianegaçãodopensamentomítico.

25.Hieroslogos:narraçãodosagrado,mito.(N.T.)

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CAPÍTULOVI

OSMITOSDIANTEDACIÊNCIAMODERNA

Mesmodesprovidosdeseuprestígiodeverdaderevelada,nemporissoosmitosdeixamdeformularumproblemaparaoespírito.Comoépossívelque relatos tão “desarrazoados” tenham não apenas encontradocredibilidade no meio dos homens como até mesmo sido imaginados?Vimos como inclusive os antigos procuraram uma “explicação” para osmitos.Asqueelespropuseramevidentementenãonossatisfazem.Tambémnão acreditamos, ao menos no plano do pensamento científico, que osdeuses pagãos sejam invenções “diabólicas” de espíritos malignos – osmesmosque,nodizerdos comentadoresdePlutarco, choravama “mortedo Grande Pã” quando, sob o reinado de Augusto, a Nova Lei sucedeu àantiga. Sustentar, como os filósofos do século XVIII, que a imaginaçãohumana seja capaz de todas as loucuras quando não for esclarecida pelaRazão é recusar o problema e desconhecer perigosamente a “função daloucura”, que é um fato e deve ser elamesma explicada. Foi somente noséculo XIX que amitologia antiga começou a ser tratada com seriedade,comoumobjetodeconhecimentoedeanálise.

Arenovaçãoveiosobumaformaque,hoje,nosfazsorrirumpouco,masnem por isso deixa de constituir uma revolução metodológica de ondesurgiramasteoriasmaismodernas.ÉaograndelinguistaF.MaxMüllerquea exegese dos mitos deve sua saída do limbo tradicional. Max Müller,formadonoestudodospoemassânscritos,pensouterencontradonamaisantiga literatura indiana, principalmente nosVedas, as formas primitivasdas crenças e dos mitos, e lhe pareceu que as divindades seriam, noprincípio, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homensprimitivos”, impressionados com os fenômenos da natureza, tinhamcomeçadopor lhesdarnomes, equeessesnomes, aospoucos, tinhamsetornado pessoas – supondo-se que o espírito “primitivo” tivesse umacapacidademuitoimperfeitaderepresentarasabstraçõesparasimesmo.Assim,avidadouniversoforasendoprogressivamentedramatizada.MaxMüllertentoudar,emdetalhe,exemplosdesseprocesso:comoaluzdosolé, em suma, a fonte de toda vida e de toda atividade, ele foi levado aconcederaosfenômenos“solares”umaimportânciacapital.Paraele,aluta

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deZeus(emcujonomeseencontraaraizsignificando“dia”)contraosTitãsnadamaisédoqueodramacotidianoeavitóriadaluzsobreassombras.As formasmonstruosas dos Gigantes simbolizam as brumas da noite, delimitesincertos.Tífonéatempestade.Atena,saídadeZeus,éaluzvirgemdodiaaonascer.Hefesto,oferreiroqueabreocrâniodeZeus,nãoéoutrosenãooSolLevante,semelhanteaodiscodeferroembrasasaídodaforjadivina. Hércules, por sua vez, se tornava um “mito solar”. Os DozeTrabalhossãoosdoze“signos”dozodíaco,asdozeetapasdacarreiraanualpercorridapeloastro.Assim,aospoucos,amitologia inteira, comaajudadeetimologiasomaisdasvezesincertas,vê-sereduzidaasernãomaisdoqueumaamplameditação“sobreachuvaeobomtempo”.

Éevidentequeas ideiasdeMaxMüllersãoexcessivamentesimples,eestáhojedemonstradoqueosmitos–e,maisainda,osciclos lendários–nãoprovêmdeuma“doençadalinguagem”.Percebeu-seatémesmoqueasinterpretações alegóricas que aplicamosmitos aos fenômenos astrais oumeteorológicos estão longe de ser primitivas. Elas resultam sempre deespeculações relativamente tardias. Jano, o deus romano, só foiconsideradocomoarepresentaçãodoanosobainfluênciadospitagoristasdeRoma –mas isso não se deu antes do século I antes de nossa era, aopasso que o próprio deus e suas lendas existiam há muito tempo. Nareligiãoegípcia,percebe-sequeomitodeOsírisedeIsis–mitosolarporexcelência–nãoé“primitivo”nasuaforçacanônica,masresumetodaumateologia longamente elaborada pela reflexão sacerdotal. Por todas essasrazões – e outras mais, sobretudo a incerteza das etimologias de MaxMüller, o retorno a uma noção mais justa do papel das línguas e dospoemas sânscritos dentro da história dos povos “indo-europeus” e umaanálisemaisexatadopensamentodoshomensedassociedadesnaqualafunção mítica não se extinguiu –, a teoria linguística dos mitos foipresentementeabandonada.

Elatem,contudo,odireitoaonossoreconhecimento.AMaxMüllercabea honra de ter levado o debate para fora da mitologia estritamente“clássica”,aorequerer,emborasobumaformadiscutível,umacomparaçãocomoutrosdomínios,e tambémahonrade tersublinhadoa importânciados“jogosdepalavras”edalinguagememgeralnaformaçãodessaslendas.

Com os trabalhos de J.W.B. Mannhardt e sobretudo de J.G. Frazer, aexegese mitológica conheceu uma fase nova. Desta vez, trata-se desurpreenderonascimentodosmitosnopresenteesobnossosolhos.Bastapara issonosdirigirmosàs sociedadesque,precisamente, conservaramafaculdade de criar lendas e que continuam criando-as todos os dias. O

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“método comparativo” nasceu. Ele repousa sobre o postulado de que asaçõesdoespíritohumanosãoidênticas,sejaqualforopovo,sejaqualforogrupo étnico. Ummito grego ou romano pode ser explicado à luz de ummitopolinésiooubanto.Umeoutrorespondemaexigênciasprofundasdopensamento humano: por exemplo, a crença inata na imortalidade e anegaçãodamortesãovistasporFrazercomoessenciaisaohomem.Parao“primitivo”, a morte é sempre um “acidente” evitável, resultante daintrusão de uma forçamaléfica. Em torno desse tema formaram-se ritosque têm por finalidade desenvolver as forças vitais e inibir as forçasantagônicas.Frazerescolheuparacentrodesuademonstraçãoumapráticalatina:existiaemNemi,pertodeRoma,umaflorestasagradaondereinavaadivindadedeDiana.OsacerdotedessesantuáriotinhaonomedeReidaFloresta,eocostumepermitia,aqualquerumquechegasseatélá,matarosacerdoteetomarolugardele.ParaFrazer,oReidaFlorestapersonificavaJúpiter,“divindadedocarvalhoedotrovão”,esealguémofizessemorrerdemorteviolenta,éporque temiaqueavelhiceouadoença,emsuma,adecadência física, diminuíssem-lhe o espírito vital e, por conseguinte,pusessem em perigo a vitalidade de toda a natureza. Um sacerdote“diminuído”–equeprovavasuadecadênciasucumbindoaoataquedeumhomemmaisjovememaisvigorosodoqueele–constituíaumperigoparatodos. Aos poucos, Frazer consegue mostrar que esse ou aquele relatolendário relativo a provas impostas aos reis, a sacrifícios humanos (porexemplo,oesquartejamentodoreiLicurgoporordemdeDionísio,ouentãoo castigo de Astidâmia, que foi cortada em pedaços e teve os membrosdispersosportodaacidadedeIolco),oumesmoadestinosantropofágicos,como na lenda de Tiestes e de Pélops, conservam de maneira precisa alembrança de práticas bastante reais. Todas as lendas de criançasabandonadas têm sua correspondente na América ou na África, onde o“primogênito” é marcado por uma verdadeira condenação. Se ele viver,comprometeráaexistênciadopaie,sobretudoseopaifororeidatribo,aexistência da aldeia inteira. Tal seria o primeiro núcleo de muitos dosrelatoslendários,umapráticacujosignificadoseperdeuesetransformou(e sabemos que, de fato, entre os povos “primitivos”, a única explicaçãodada aos costumes é que “os ancestrais agiam assim”), mas deixou umalembrança coletiva sob a forma de ummito. A história de Édipo é umailustraçãobastanteboa:nascidocontrariandoasordensdooráculo(Édipodevesermorto.Salvoporacaso, torna-seumaameaçanãoapenasparaopai,queeleterminamatando,masparaacidadedeTebas,sobreaqualeleatrai, por sua própria existência, toda espécie de calamidade). Frazer

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explica também, através do sacrifício das crianças primogênitas dasfamílias reais, a história de Frixo e Hele, apontada pelos poetas gregoscomo a origem do ciclo dos Argonautas: a fome que se abate sobre umaregiãodaTessáliaesópodechegaraofimcomosacrifíciodedoisfilhosdoreiAtamas.Asduas crianças,Frixoe sua irmãHele, conseguemse salvargraças ao carneiro de velocino de ouro. Porém, mais tarde, Atamas,acometido de loucura, mata Learco, um filho que teve de um outrocasamento, enquanto sua mulher mata o segundo filho deles, Melicerta,precipitando-secomelenasondas.E,naépocahistórica,ocostumeexigiaque,dentreosdescendentesdeAtamas,o filhomaisvelhodoreisevisseproibido,sobpenademorte,depenetrarno“pritaneu”26dacidade.Todosessesfatossãoconcordantes:alendadeAtamas,aameaçaquepesasobreos filhos mais velhos de seus mais longínquos sucessores, indicaevidentemente que, no cantão tessálio, existia um rito sacrificatório quepodeserobservadoemváriosoutrosdomínios.AGrécia,longedeserumaexceçãonahistóriadoespíritohumano,fazpartedesualeicostumeira.

Trata-se de um resultadomuito importante: osmitos gregos não são,em seu nascimento, produtos de um milagre qualquer. As pesquisasfolclóricas realizadas depois de Frazer, que estabeleceram como objetivodescobrirritoselendaspopularesnãoapenasentreospovos“primitivos”,mas também suas sobrevivências e suas formas evoluídas em regiõesaparentementemais “civilizadas”, trouxeram à luz alguns grandes temasem torno dos quais formaram-se normalmente as lendas: ritos de“passagem”deumaclassesocialaoutra,ritosdeiniciação,ritosfunerários,ritosdeevocaçãodachuva,ritosdemagiafecundanteetc.Comtalmétodo,obtém-seumcertonúmerodecategoriasou, casoseprefira,de fórmulasque definem esta ou aquela classe de lenda. Essa classificação constituievidentemente um progresso e, em certo sentido, uma verdadeira“explicação”. Contudo, o método comparativo assim concebido não éinteiramente satisfatório. Ele é em essência fundado a partir deaproximações estabelecidas entre domínios muito diferentes: comfrequência,chegaaexistirentreosautoresumaespéciedefrivolidadeembuscar analogias em sociedades tão afastadas umas das outras quantopossível. Todavia, é evidente que, muitas vezes, as semelhançasconstatadaspermaneceminteiramenteexterioresefortuitas,comoopilarde duas faces da ilha de Suriname, que, de fato, nada nos diz sobre anatureza e o ciclo do romano Jano. Tanto em um quanto no outro caso,trata-sedeumserdeduasfaces–oumelhor,darepresentaçãodeumser

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com duas faces opostas. Mas, como ir além? Além disso, os temasfolclóricosassimmencionados,porsuaprópriageneralidade,nãopassamde um esquema, de uma forma vaga e quase vazia, que deixa escapar oessencialdomitogrego.LembrarqueosenigmaspropostospelaEsfingeaÉdipo pertencem à categoria bem conhecida das provas impostas ao reiantesdeentregar-lheopoderconstituisemdúvidaumprogresso,masemnada nos ajuda a compreender o que, em si mesma, a aventurarepresentavaparaosgregos.Detantobuscarageneralidadenaexplicação,perde-se de vista o essencial, que é a característica individual e única decadalenda.

Éarazãopelaqualsurgiuháalgumasdécadasummétodonovoquedeua si mesmo o nome de “comparativo”, mas num sentido diferente dométododeMannhardteFrazer,aoqualsedestinacommaisboavontadeonome de “método sociológico”. O representante mais autorizado dessaescolaé,naFrança,G.Dumézil,cujostrabalhoslançaramluzsobremaisdeumpontodaslendasdamitologiaclássica.Paraessaescola,acomparaçãonãodeveserfeitasemdiscriminaçãoentrequaisquerdomínios,como,porexemplo, tirar conclusõesdeumacomparaçãoentreummito lapãoeummitohelênicoouromano.Eladeve,inicialmente,paratervalorprobatório,confinar-senointeriordodomínio“indo-europeu”,omesmoquedizerqueasaproximaçõesserãoprimeiramenteestabelecidasentrecivilizaçõesquepossuam relações de parentesco inegáveis, estabelecidas pelo estudolinguístico.Serápossível,comalgumasreservas,compararosVedascomaslendasgaulesasoudosgermanosporquetodosessespovosfalamlínguasaparentadas, derivadas do “indo-europeu” comum, em uma data muitoantiga; e as respectivasmitologias serãooprodutodeumaevoluçãoqueteveseupontodepartidaemumconjuntodecrençasepráticascomuns.Eéessabagagemcomumdecrençaseritosqueoestudiosodeveseesforçarparadescobrir,paraalémdasvarianteslocais.

As aplicações do método são geralmente convincentes, e seusresultadosbastanteinstrutivos.FoiassimqueG.Dumézilmostrou,emumadesuasprimeirasobras,quetodososdomínios“indo-europeus”possuíamvestígiosdeumatradiçãorelacionadaàpreparaçãoeaoconsumodeuma“poçãodeimortalidade”.Essastradiçõeseramorganizadasemverdadeirosciclos da ambrosia, como testemunham tanto os Vedas quanto, entre osiranianos,oAvestaou,entreosgregos,aTeogoniahesiódica.A“caixa”ou,maisprecisamente,a“jarra”dePandoraseriaaformahelênicadagrande“cubadeamassar”conhecidadasversõesgermânicasdociclo.Cadaregiãodesenvolveu emodificouosdadosprimitivosde acordo com seupróprio

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gênio, mas, por trás da análise, o que se vê são ritos e modos depensamentodafase“indo-europeiacomum”,observáveisemtodasassuasvariantes.

Levando atémais longe suas pesquisas, G. Dumézil mostrou tambémque determinadas crenças romanas relativas ao culto de Júpiter ou àsupostahistóriadeHorácio,ovencedordosCuriácios,ouentãoàdo“rei”Serviussópodiamserdefatoexplicadascomaintervençãodefatossociaisbem anteriores ao nascimento de uma cidade e de um povo romano. AlendadeHorácio,especialmente,nosmostrariaumafabulaçãoformadaemtornodeumritodeiniciaçãoedeprovasimpostasaojovemguerreiroquevaiseradmitidonaclassecondizentecomsuaidade.

Contudo,apesardossucessosinegáveis,essemétodopareceencontrardificuldadesquandosetratadeexplicarosmitoshelênicos.Nessecaso,asanalogias são mais longínquas, menos claras, como se fatores externosviessem perturbar a continuidade esperada. E, com efeito, parece que atradiçãoindo-europeiaéinsuficienteparadarcontadetodososelementoscontidos nos mitos gregos: foram muitas as influências exercidas, emtempos remotos, sobreabaciadomarEgeu, eo resultadoéuma síntesecomplexa cuja base – até mesmo ela – é possivelmente estrangeira aodomínio indo-europeu. Por diversas vezes fizemos alusão às origens“egeias”,oupré-helênicas,destaoudaquelacrença,desteoudaqueleherói.Ospaísessemitasforneceramseusaportes.NemmesmooEgitodeixoudeestarpresente.Atramaéextremamenteembaraçada:Hérculestemtraçosaqueus,mastambémosobtevedoheróiasiáticoGilgamesh,e, levadoaoslimites, o novo método comparativo também corre o risco de deixarescapar a individualidade do mito. Como todas as tentativas paradeterminar, em detalhes, a história de uma evolução histórica,reconstituições fundadas em fatos incertos, mal conhecidos ousimplesmentesupostosnãopodemproporsenãoumesquemaverossímil,porém,nomaisdasvezes,desprovidointeiramentedecerteza.

Por fim, a reflexão dos filósofos, ou mesmo dos psicólogoscontemporâneos,tambémfoiexercidasobreosmitos.Aosolhosdealgunsdos“psicanalistas”,omitosurgiucomoolocalporexcelênciaondedevemse refugiar sublimações e símbolos. A mitologia seria um verdadeiro“subconsciente” dos povos antigos, onde estariam representados suasaspirações, seus terrores e tudo aquilo que amoral consciente recusava,horrorizada. E, de fato, nos mitos há aventuras imorais, incestos eassassinatossuficientesparasatisfazeromais intrépidodosdiscípulosdeFreud.Poucoimportaqueessasaventurassesituememumtempoanterior

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ao estabelecimento das normas que atribuem a semelhantes ações umaproibição moral. Nem por isso se tornam menos reveladoras da almahumana,cujospesadelosesonhos,dessemodo,adquiremcorpo.

Concepçãoestimulante,essapsicanálisedosmitostemograndeméritodeconcederumavidaeumaespéciedeatualidadenovaàsantigaslendas.Quem não conhece o “complexo de Édipo”, ou o de Electra? Amorincestuosoouódiodamãe,ódiodopaiou,aocontrário,desejosecretodesuaternuraeatenções–talveztudoissoestejaincluídonosvelhostemaslendários,mas,comoemtodaconsciênciahumana,sobumaformasecretae sem que ninguém se dê conta. E então, nessa perspectiva, os mitosadquirem um valor privilegiado: eles exibem “posições” bem definidas,índoles de algum modo estilizadas. Há a experiência de Antígona, a deOrestes,nasquaisnãonoséproibidocolocarnossasprópriasexperiências.Atentativanãoénova:nãoéoquejáfoifeitoporÉsquiloaosebasearnalenda de Prometeu, seguramente ignorando que se tratava de um dosavatares do ciclo da ambrosia e modelando com esse material a figuraeternadoredentor?

26.Pritaneu:paláciodosprítanes(magistradosdealgumascidades)ondetambémsehospedavamvisitantesilustres.(N.T.)