0 enigma Maquiavel - BAIXARDOC
Transcript of 0 enigma Maquiavel - BAIXARDOC
0 enigma
coleÇào
HistóriaEssencial da
Filosofia
, '
,r,.inr n ,,.'..-ur" i:=+-@-@@iÇ
Maquiavel
po' Olavo cle Carvaihu
-zu
O enigma Maquiavel
Aula 51
por Olavo de Carvalho
coleçáo
HistóriaEssencial da
Filosofia
Colêçáô Históia lssén.iâl da lilúolià
Acôúpânhn êsta putli.açáô un DVD,qre não ,odo se. vendido separadáúetrte.
Imt esa úo Brasil, ôlrubrc 2003Clpyri8ht o 2003 b! Otâvd dé Caivalh.
,dson Manoel de oliveüa Filho
Mmiquê sche.tàk e Dagne zãlo
lrtudio i André cavalenle cimc.ez
Os diftitosâuldais dêsa ediçao pe*enccm à
É Realizaçoes lditorar LnÍana e Dr5nibuidoh Ltda.
vik Malianá CEP 04016-002
E-mil: e@êrealizacoes.com br§ív qealiaàoe;cos.b.
tu:e rcdo, rodo> o. d'eno, oe.rd ob'r P!ó'dãrodrcqraq-r'.prcoiíiotrrtdcd.\á.po.or 0d. \e a to elero -E o' Tq ar, â, lo o.o0 a,sa,á(dlr or qus qrd nÉro.
O enigma Maquiavel
Aula 31
por Olavo de Carvalho
coleção
HistóriaEssencial ila
Filosofia
Coleçâo Hisiória Essenciâl da Filosolia
O enigma Maquiavel - Aula 51por Olavo de Carvalho
Cc,no nós estâmos na penúliima aula, eu pensei se nós não podi_
ânos aproveitar para tapar uns buracos que ficaram pârâ trás. Tem
algumas paries que foram onitidas e que nalutalmente podem suscitar
âlguma cüriosidade. Essâs omissÔes foram causadâs pelo p6prio cri_
!ério colocado no início que é a definiçâo dâ íilosofia como ulidade do
conhecimento nâ unidade da consciênciâ e vice_versa. Querdizef tudo
aquilo que saísse desse eixo, tudo aquilo que fosse construído a parlir
de úma outra peÍspectiva diferente ficaria então colocado como ele-
mento externo à filosolia, o qual pode exercer influênciâ no curso dô§
acontecimentos filosóIicos, mas que náo é propriamente filosofia Êu
acho que um dos gJandes motivos de conlusào na áreâfilosófica é esse
desejo âbsurdo de incluir tudo, quer dizer, se você coneça a châmar
de lilosofia tudo o que qualquer sujeito disse sobre um assunto nomi-
nalnente filosólico, daí evidentemenie o quadro perde a sua unidade e
no fim rccê não consegue tirat conclusáo nenhuma. E isso iem sido a
orienlâçáo depraticâmente todos os histoÍiadores desde o século XIX.
Eu acho que náo dá para fazer isto, se o conceito de filosofia que você
vai usar é abrangente, é para caber tudo ali dentro, entáo até a idéia de
falar de uma história se torna utópico.
Históda subentende-se uma nêrrativa e numa narativa uma coisa
tem que ter algo a ver com a outrâ, se você náo iem um fio condutor,
você náo sabe onde que as coisas têm qüe ver uma com a outra e por
que têm. Entáo. ficâ iudo desconjuntado e só resiâ você voitâr ao tipo
do que no começo eu chamei ldel as históriâs enciclopédicas qüe sáo
aquelas qlle colocamtudo 1á dentro sem ter uma ordem intetna, entáo,
você ieÍiaâli mâis ou menos un1 livro dehistória dafilosofia, a unidade
do assunto seria dada pelo tàio de quc todos aqueles autores e iemas
estao deniÍo do mesmo livrc, quer dizer, você ten1 Llma unidade €dito-
riâl por assim dizcr. Assim como numa laculdêde d€ lilosofia você tem
uma uridade arquitetônica. quer direÍ, os assuntos sâo considerados
filosólicos porque clcs são trârâdos dentro daquele edifício, entáo. é
uma unidade administrâiiva, por assim dizeri âli vocô tcriâ uma unida
de editoriàI. quer dizer, os assuntos filosóficos porque eles estáo dentro
desie livro de história da iilosofiê. Mas isso ai rorna o conjunto dificil-
mcnte inteligível pelo estlrdante. entâo, a minha proposta nesse curso
loi limitar a nalrâtiva da hlstória dâ filosofia àqnilo que se enquadrasse
no que Sócrâres esiava fazcndo. Tomamos Sócrales cono o pai da filo-
sofia e narrânos en1 seguidê iudo aquilo que tem quc vcr diretanente
con1 o esforço socÍático. Sócrâies é uma figura multilateral, entáo, par-
tindo mesno dessa figura. Lrsando Sócrates conlo o pad6o de aferi-
çào da unidade do conjunto, você ainda teria a possibilidade de outras
narrativas, totalmente difercntes daqucla quc €u fiz aqui Uma delas
seria aquelâ que partissc dâ constaiaçáo leitâ por Leo Sirauss de quc
a filosofia na Grécia começa csscncialmente como filosol'ia polítioa:
quer dizer que a discussáo política ó o começo dê discussáo [ilosóíica]
entáo. é evidente quc dcpois, pârtindo de 1enâ$ que sáo iniciâlmcntc
poliiicos, o próprio Sócrâles cda alguns desen\.olvimentos quc sáo tão
vigorosos que eles se tornam autônomos; mâs de qualquer maneira a
discussáo política continua sendo a base.ru o pretexio
Se Iossc para abârcar â liiosLrfia politica dentro da nossa nârrat;va
elâ teria qlre ser duplicâda. Por quô? Porque a polílica não é â âtivi-
dade própria dos filósofos. ela é apenas um lena do quâl os filósolos
paúcrn parâ cri o seu nundo própÍio, mas â política pcrtcnce â to
dos. à conunidade inieira, então, todo rnundo vâi lá e mcle a não no
assunro, quer dizcr, não é preciso ser l\lósofo para você pensar âlguma
coisa a respeito. À dificuldade de monlaÍ essa rlarrativa pdrtindo da
origem políiicâ dadisc!ssáo filosófica seia essa, vocôteriâ que colocar
lá dentrc muita coisa que náo é filosófica absolutâmente. mas que é in
dispcnsável pêra a compreensao da naruativâ. IJoi por isso que nós pu_
lanlos, por exemplo, alguns autores enormement€ importântes como o
próprio Maquiavel. Nós mcncionamos aqui Mâquiavel de pâssagem E
o Maquiavel éum autor Druito prcpício parâvocêver â inteútrência de
!m elêmento nâo só extra{ilosófico. mas anti-lilosólico na história dâ
lilo$lia. Nós nao podemos esquecet que todo o empreendimento de
Maquiavel éleito contra todaa tBdiçáo l'ilosóIica. Entâo, como é que o
consideraríâmos um lilósofo? Náo, ele é un suieito de fora que paÍin_
do de outros interesses e de outros objetivos foi lá e deu meia dúzia de
palpii€s que exerceram um efeito histórico ao longo do temp.r'
Entáo. d€cidi dedicar esta aula de hoje âo bonl e velho Maquia-
vel como unl exemplo. isso náo tem tinalidade exâustivê, é só dar um
excmplo de como cl€mentos que vÔm de fora da filosofia, vên1até con_
tra ela. podem cxercer unâ influôncia grande no curso do pensamcnto
filosótico posterior Maquiavel é unr dos gmndes enigmas da história
dâs idóiâs, porqüe é um sujeiro cujâ inragen ao longo dos tempos foi
mudando radicalmente e o número de interpretações conirâditóriâs
de l!Íaquiavel lbi 1ão grande que Benedetio Croce chegou a dizer que
aquilo era um enigma que jamais s€ria resolvido. A primeira dessas
imagens foi resultado do impacto que ieve o livro'O Príncipe", nâo
na Itália mcsmo onde tudo aquilo que estava no livro foi accito nâis
ou menos como uma coisâ no nal, tinha todos âqueles conselhos hor_
ríveis que elc dá aos gov€rnantes, já eram praticados de longâ data
na Itália, entào, ninguém estranhou, mas quando aquilo chegou na
Inglatcna, por exemplo, teve unr cardcal chamado Reginald Pírle que
imediâtamente ficou escandâlizado com o negócio e escreveu que Ma_
quiavel era d€ lato um espÍrito satânico, maligno, e loi mais ou menos
com cssa imagem dc espírito n]aligno, inugeü de mau conselheiÍo,
que cle cntrou pam a história populamente, por assim dizer Quer
dizcr ató hoje você tem a palavra " aquiavélico", ató hoje quer dizer
um sujeito que esiá iranrando alguma por trás, [que] cstá tentando te
rn.rn'nrlor para rc cr Panar cn \Jrr.BiIr prupr:r
Porérn. quando chega no século xlx, quândo sc l'olmam âs ci
(nL:r. .o. ái|,ôJefl a., \nbrcrudô com Drvid Ln.:l<l D-' .l,ein e
lMarl U,'€ber, imcdiatamcnte existe Lrnl reâproveiiâ enio de Maquia-
vel. Pârtindo da observação de qüe âqüe1es consclhos que ele dava
aos governantes não tinhanr sido propriamente inventados por eie,
mâs já eram um hábito corrcntc ali no meio italiano, entáo surge
uma scgunda versào de MaqLriavel conro sendo nâo um mau consc-
lheiro, mas simplesmente o frndador da ciência política nloderna,
considerâda como uma ciôncia de lãtos. Ésta imâgem de Maquiâvel
cicntista cxiste ainda, tâlvez no llrêsil ainda sejô a do inantc. Isso
será contrastado com a iffâgcm popular c o prol'essor lhes dirá: "Não,
existe esta miiologia popular de quc Maquiavei é un1 sujeito malvâdo,
ctc., ctc., mas isso é coisa ale ignorântes. na verdade ele foi o primci-
ro cientista político moderno porquc clc dcscrcvia objetivamentc os
fatos, o funcionâmcnto da máquinâ do Estado e a necânica do poder
scm fazer juízos de vâ]or." Quer dizer, Maquiavel ieria sido uÍra es-
pécie de Ma\ Webet a?atú Ía Letl] e .
E logo d€pois já no comcço do sóculo )LX na própria ltália surge
a filosofia dc Bcncd€tto Croce que ioi um autor que ianbém nós náo
estudamos aqui. A Iilosofia de Benedetto Croce, sobretudo nâ lilosolia
dâ culiura, vê â cultura como dividida nun1 cerlo nÍrmero de depadâ'
mcnros cuja estrutura e cujo conteúdo náo é irocável co os depârta-
nentos vizinhos porque rellete as categoriâs fun(lamcntâis do espírito
humano E essâs divisó€s são basicamcntc quâiro. cnr primeiro lugar
vocô tcm o nundo do conhecinenlo deieülinado pelês categorias do
verdadeiro e do lalso. en1áo. seriâ o mundo dâ lógica, das ciôncias e da
8
lilosofia. por outro lado. você teria o mundo da aúe qüe é deiermimdo
pclo conceito do belo, o quâl náo tem nada a ver com o verdadeiro e o
tãlso, n1as qu€ tem as suâs erdgéncias próprias, quer dizer, o belo, tâl
conro o entende Benederto Croce. náo bem o belo da estética aniiga,
mas é sinpiesmenre a representâqáo, a erprcssáo corrcta das inlpres'
sôes que nós temos do mundo vivido. Quer dizea quando você pegâ a
inpressáo ial corno lbi rea|nente captada pelo a ista e â traduz numa
lorma, você teria o qüê? o conhecimento do singular, ao passo que na
divisáo científico-filosófica você teria o conhccinento Luliverual. Qll€rdizeÍ, todo o conhecinenlo que se pautapelas calegorjâs do veKladciro
e do fâlsobuscâ uma universâlidade abstrâta- e a aÍte, ao contrário. vêi
buscar a apreensão do singular enquanto tal. Nas outras duas di\]lsóes
você teria, por um lâdo, o que ele chama [del ética, baseada evidcn-
iemente no conceii.r do bem c do nlal. tanbém considerado na sua
universaliclade e, cm oposiçào â ela. você teria o útil e o prejudicial que
é o mundo que cle chama [de] a econômica. Então, você iem as quatrc
cl;sciplinas lundameniaisi a lógica, â cstéticâ, a ética. e a econômica.
Esta teor;â do Croce teve um impacto mujio grandc no mundo dâ
hisrória dâ cuLtura, entreos histoÍiadores da cultura: e isto logo produz
urnâ reintcrpretâção de Maquiavel. Imediatamenie tenta_se colocdr
Maquiavel evidentenrente na categoriâ da econômica, porque ele está
lalândo daquilo que ó útil paraa coÍrunidadc hurnana irdependente de
ser etjcamentc bom ou mau. Porém outras invesligaÇóes eÍrpreendidâs
sobrctudo por um hisÍoriâdor chamado Luigi Rllsso destacam que a
neuiralidade do Maquiâvel perante o signilicâdo moral da situaçáo qüc
e1e descrcvc náo é exatamenie o do cicntista. mas o do attista que cstá
descrcvendo uma eslrutura, unla náquina, encantado corn â mecânica
dela. e descrevendo o Estado. entâo, como se fossc uma obra de alte.
Então, Nlaquiavel naro eslariâ tanto lalando na clave dâ econômi'
ca. isto é. do útil e do lesivo, mas na esleta âdisticai quer dizer, a
concepçâo de Êstado de Maquiavcl náo seria uma descriçáo cicntíficâ
dâ realidade. mâs seria uma obra de a$e. Na verdâdc isso inverie a
interpretaçâo, porque em vez de ele estâr dcscrcvendo o Estado como
clc realmente funcionê e tentando iirar dali leis universais que valhanr
pafa todos os Estados, ao conirário, ele está inventando unlâ estrutura
cujo significado morâl não lhe inieressa porque ele eslá inter€ssâdo
apenas na forma considerâda cm si mesrna. EntAo, M aqu iavel seriâ unr
lbmralista artistico Ai criâ uma situaçáo difícil porque €ssâs inlerpre-
taçôcs sào ântâgônicas, sáo separadas por cento e oiteniagraus. Poróm
un pouco mais adiante surgc a primeira interpretação que me pârec€
viável de Maquiavel, que lbi empreerdida por Antonio Gransci, An
tonio Gramsci hírvia lido muito um autor chamado CeoÍge Sorel. E
George Sorel nota que o mundo da políticê é movido por objetivos que
as pessoas pretendcm âlcançar ro flrturo; esses obictivos. no inslanle
cm que você está lutando por eles. clcs nâo existem efetivamente. En-
tào, tudo o que âcontec€ nâ políticâ tem que vir do mundo das idóias
para à reâlidâde, cntâo, cle ten1 que existit anies como uma utopiai c,u
ântes como um ideal; e ele inventa, entáo, o conceito de nrito. Quer
dizer, o corceito soreliano do mito náo é o conceito que tôm os histo-
riadores da mitologia, quer dizer, náo 1em nada a vcr com os esiudos
de mitologia clássica, o mito para George Sorcl é uma image agenle,
quer dizeri uúa coisa que náo cxiste, mas que un1a vez divulgada pela
populaçáo funciona como um hornônio. qüeÍdizer, coloca a sociedade
em Írovimcnto para tenlar realizar aquilo. Entào. a imagem dotada
de um poder magnéiico. E Antonio Cramsci que não cra nadâ burro,
é na verdade o prirnciro sujeito que petcebe, quc cntra na pistâ ceria
da inieryreiaçáo de Maquiavel; podemos dizcr que Gransci eniendeu
Maquiavel realmente;lsso é oque cu acho, mâs iern gente que podc dc-
Iender as outrâs intcrpretaqõ€s. Enláo, O Pú1cipc .lc Maquiavel é un1a
entidâdc inexistente, quer dizer. náo cxistia aqnele gove anle. é um
l0
goveÍnâni€ onipotente, capaz de se elevar do meio da nlultidão e âtra-
vés dc una sucessáo mirâbolantc de golpes e trapaçâs âdquirir o poder
absoluio sobre a unidâde politica, iosse um principado ou qualquer
ouiro regime; o príncipe, entáo. seria um miio. Isso se deve ao fâto de
quc a Itália na épocade Mâquiavel n,to tinhaunidade política, ela eíava dividida eÍn cinco principâdos iidepend€ntes mais ou menos hostls
entre sii e quc cm lunÇáo desta divisáo o paÍs iinhâ sidlr facilmente in_
\.adido p€la França, como mais tarde a França seÍá facilmcntc invadida
pela Àlernanha. Então. os lianceses entraram lá. lizerâm um alraso e
os italianos csiavam se sentindo muito hunilhados e "O Principe" de
Maquiavel se a ulna respostâ a csia situa(áo humilhanie. Elc dclineia
este nito do prfucipc onipotenie e o lânça ao público comlr mito sore-
liano, qtler dizcr, una imagem magnéticâ que deveria produzir a mobi-
lizâção das nassâs naquele scntido, mesmo que o que fosse rcalizado
no lim náo coincidisse exatâmente com o mito originário. a coisa iedâ
iunclonado dc algum modo
Ai nós já temos essa sucessáo de lnterprelaçires, quer dizc! o Ma'
quiavel mau conselheiro. o Maquiâvel imoralista, o Maquiâvel cien-
llsta, o N{aquiavel aúista, e o Maquiavcl mitógrafo. Esses quatro clc_
rncntos esiâo presentes cle lato cm llaquiàvel, poÍé logo cnl scguidà
surge Llma ouira, uma quinta interpretaçáo, e cu cstou abreviando,
houve muitas outras nlr meio disso, c o fato de que cada uma delas
tenha âlguma verêcidade em si iá nostrâ que Maquiavel não é um
temâ. mas um problema Eu escoihi essas dentre ccntenâs que exis
terr, logo cm seguida surge unrâ quinta. justâmente com o tilósolo Leo
Strâuss. Leo Strauss é um slrjcito que em pleno século xx descobriu
que depois de Plâtão e Aristóteles não havia acontccido prâticênenie
oada, e qu€, então, dedicou a suâ vida a rcstaurar o sentialo da filoso_
fia clássica, sobreiudo a filosofia política clássica. Ele era professor de
filosoliâ política na Uni\.ersidêde de Chicago, e excrceu un1â inlluência
1l
enoflne, inclusive nâ po1ítica prática, afirma-sc que meia dúzia âí de
asscssorcs de George Bush sâo straussianos de ca(eirinha e é possível
Mas Stra!ss, enião, escreve 11m livro châmâdo "Pensamentos so-
brc Níaquiavcl". no quâl ele diz "Exâminando tlrdo, pensàndo beú,quem estâ\rà cerlír é a primeiÍa il11agem de Maquiavel'. QueÍ dizer,
Maquiavel era um canalha 1llesrro, só quê eic coloca outrcs clcmcn-
tos âli quc flrndamenrarn aquela primeira inpressáu muillr m.tis pro
lundamenie do qlre até os prirneiros porta-vozes delâ pod€riânr ter
imaginado Leo Strâuss descobre que na escrita filosófica a partir dc
xffa c€rta data surgc uma cspócie dc artc dc camuÍlagen, quer dizer
as pessoas nào podia dizer as coisirs com todas as letms, então.
inventavam uma úaneira indiÍeta de dizer. Ele descobrc, cntâo, indí-
cios dessâ novâ ârte de cscrcvcr cm Maquiavcl, cn] Thomas Hobbes,
em Espinosa, etc.. etc. Existe um estlrdo dele brilhanie sobrc Espi-
nosa, mas você vê que rro caso do Espinosâ náo adiantou rnuito clc
tentaÍ disfarçâr porque €le acabou scndo cxcomnngado da sinâgogâ
mcsrnoi enláo, por mais que dislãrçasse os caras p€rcebcrâm quc cle
estàvâ com ireta e o boiaranr paÍâ foÍa.
No câso de Maquiâvel, poÉnr, nós temos o scguintc problema: Por
quc Maquiavcl tinha que disfarçar âlguma coisa? Você vé que na Itália,
na época. vlrcê estavâ enr plena época de neopagânisnro triunfantc.quer dizer, a moda era o neopagânismo; e o Vaiicano a cssa altura era
apcnâs uma das cntidadcs políticas que estâvam em concorrêncià conl
as ouiras e a auioridade da lgreja, no caso, estava reduzida ao nrínimo,
entáo. Maqoiavel da pârte da Igrciâ dificilmentc correria algum ris-
co rnuito sério dc represália. Nós podemos perguntar: Entáo, por que
ele tinha que us.rr desta arte da escritâ "strâussiâna' que diz tudo de
mâneirâ indireta? Partindo do Strauss aparece, cntâo, uma sexta in-
tcrprctação qlre eu subscrcvo, sobretudo uma historiadorâ ânericana
chamada Vickie Sullivân. Ela diz que o temâ de Maquiavel é essencial-
nlente a conquista da liberdade política, nras a liberdade evidentenen
ie é a lib€rdade contra um liranoi só qüe o tirâno no câso é o Deus biblico. E ela descobre, entáo. que o grande tema do Mêquiavel é: como
nós vanros nos livrar de Deus? Para entender isso prccisa ver que Ma
quiavel escrcveu duas obras imporiantes, unia é "O Príncipe"t e outra.
"os Discursos sobre a Primeira Década de Tilo Lívio". Décadas sào
as divisóes do livro do historiador rcmano Tito Lívio. E ele pretendia
fazer um comentário inleiro a Tito Livio, mas náo deu tempo, entáo.
clc fez só sobre a prineira divisão. Que é unlâ obra muito mais sólida,
muito mais extensa do que "O Príncipe", e ainda tenl uma segundê
diferença, "O Príncipe" é dedicado ao assunto châmâdo principado,
quer dizer como é que se monta um principâdo. E "Os Discursos' sáo
dedicados à República. como se monta umâ República Pelo simples
fâio de tcl escrito um livro sobre o principado e outro sobre a Repúbli-
ca, se vê que Maqüiavel náo é iavorável neln a um desses rcgimcs nem
a outro, ele de certo modo gosta de ambos e vê méritos em ambos, ele
diz que o principado é mais fácil de você monta\ e a república é nais
fácil de você manter ao longo do telnpo; as repúblicas se dcfcndem a
longo prazo melhor do que os principados pelo lãto dc que elas têm um
naior coeficicnte de nobilização popnlar. c clc também na épocacomo
funcionário público foi um adepto da lbrnaçáo da milícia nacional, â
idéia do povo em armas. Ele achava que isso funcionava rnuito nais
do que você ficar contrêiando ffercenários. que é uma coisa de cujo
fracasso já se iem nolicia desde â Antigüidade, quer dizer, cxistiu a fa'
mosa guerrâ de Roma contra Caúago que é o obicto do livro "I-{isiória
de Políbio" onde vocé vê que CâItago sc deu lnal justamente por ier
confiado en1 trlrpas nercenárias que no filn se voltaram contraelamcs-
ma. E Maquiavcl, entáo, baseado nessê €xemplo c muitos oulros. ele
diz quc uma repÍrblicà se deÍênde melhor por causâ dâ lnilíciâ popular
que era justamente a rese que ele estavâ tentando implantar nâ Itáliâ,e que inrplantou efetivamente.
Mas existe aí também um ourro detaihe que o primeiro a chanara atenção foi Leo Strauss. Leo Strauss lia esses autores maliciosos,
êle liâ conr a nalicia redobrada, entào. ele notou que "O Príncipe"
era dcdicado ao Lorenzo de Medici, que era o príncipe governânte no
momento, e quc 'Os Discursos sobre a Primeira Década dc Tito Lívio"que tratam dâ repírblica sAo dedicados a dois líderes polí1icos qlre nào
iinham cargo no rnom€nto, não eram governantcs, rnas que eram do;s
côndidâtos possíveis ao poder no caso de aii llorençâ, quc ó a cidade
de Maqliavel, se translbrmassc ctn repúblicâ. EntAo. é como se ele
estivesse se prcparâdo paÍa as duas oportu dadcs, qucr dizer, rlse fi,car o principâdo, nós lisonjeamos o pÍíncipe, e se l'Lrr república, nós lálisonjeâmos os goverrântes rcpublicanos"
gntão. por quc aconiece isto? Maquiavel tinha sido umfuncionádo
da Íepública, em Florença, durante, eu creio, quatorze anos. Seria uma
espécie de terceiro escâlão, muito eficicnte, muito dedicado e respon,
sável inclusive pela fonnâçao da milícia popular que substituiu âs 1ro
pas nercenáriês ali. Enaquela ópoca a Itália inteira era muito léÍil cm
conspiraçóes, golpes de Estâdo, etc., e numa destas câl â rcpúblicâ que
tinha sido implantada antes mediânte a de[ubada da familia goveÍ-
nante, os Medici, e numa dessas rei,irâvoltas a república cai e voltam
os Mcdici, e Maquiavel i cialmente achava que ele iâ seÍ conservado
no posto cm vista dâ sla eficiência, como tinha sido um funcionáriomuiio bom: "náo vaDros tirá-io daquil" Mas dois dias depois ele estava
náo somcnte demitido, mas foi preso, lbi torlurado; náo foi pÍeso muj
to lempo, vinte e um dias, mas apanhou prá c:râmba na cadcia € ainda
foi confinado null1 território, quer dizer, "náo pode sair daquil", tevc
que pagar uma multa e não podia nem entrar no palácio do governo
onde ele tinha irabâlhado táo lealmenie.
t+
Essâ já é ümâ coisa estrânha Se Maquiavcl realmente analisasse
â política cono ela é, slr cle fosse realnente o realista cientíiico que
dizem que é, ele teda percebido que a situaÇáo dele náo eslavâ nuitofavorável. Entáo, ele parte pârâ um exílio de dcz ou doze ânos. náo
me lenbro exatâmente, durante o quâl jusiamente ele escreve os dois
livtos, "O Principe" e "Os Discursos"; "discursos" ou "comentários".
no Brasil foi publicado como "Conentários sobre a Primcira Década
de Tito Livio", que é um título absolutamenie medonho plrlque nào
há coflentários solr/?, náo se lãzem comcntários soúre algumâ coisa,
a preposiçâo eslá errada. se [âz conentário a algunÉ coisa, náo soá,".
Mas é â única traduçâo que existe. é ümâ tÍaduçáo da UnB.
O título original é "Discurso sobre a Primeirâ Dócada d€ Tlio Lí'vio '. náo sei por que náo traduziram literâlnente. Então, náo podc ser
conentário soi7/e porquc esse rico-" já é junto, comenlário é aquilo que
você pensou junlo: entáo, se eu estou pensando junto com você. eu
nâo cstou p€nsando sobre você.
Então, entre "O Príncipc" e "Os Discursos", você vê que â idéia
de Maqlriavel evolLri muito. quer dizcr, primeiro €le concebe o modelo
do Novo Estado italiano ideal que unilicaria a Ilália e cuja realizaçáo
requeriâ. entáo, um governante capaz de se sobrepor a todês as lorças
antagônicas, utilizá lâs todas e conquistâr o poder absoluto. quer di
zer a unificação do país teria que ser feita por um sujeito qlre govcr-
nasse âli con mâo de l'erro. E cle concebe esie modelo no "Príncipe'unillcando de algum modo numa teoria uma séric de práticas políticas
que erâIn, dc algum modo. üsuais, apenas nâo havia um sujeito que as
juniasse todas en1 si, quer dizer, cada um faziâ a sua sacanagem, mas
ele junia iodas e Iaz um sistema das sacanagens.
Durante o seu período de firncionário público, ele lbi enviado
numa missáo para lev uma mensagem a César Borgiê. CésaÍ Borgia
era üm general que trabalhâva para o Vaticano e quc fcz lá umâ série