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8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado, RS Área Temática: SEGURANÇA PÚBLICA E SEGURANÇA NACIONAL Determinantes do fluxo da justiça criminal : crimes de homicídio na cidade de Goiânia em 2007 e 2008
Michele Cunha Franco (UFG) - Autor
Determinantes do fluxo da justiça criminal : crimes de homicídio na cidade de Goiânia em 2007 e 2008
Michele Cunha Franco (UFG) - Autor1
O funcionamento do sistema jurídico punitivo do Estado afeta o exercício da cidadania. A análise dos eventos que se iniciam na abordagem policial, passando pela investigação de crimes e a punição ou absolvição de indiciados, pode trazer elementos relevantes para a reflexão acerca de como o Estado trata a relação entre a violência estrutural e a criminalidade. Este trabalho objetiva avaliar os eventos ocorridos no âmbito do sistema punitivo relativos aos crimes de homicídios dolosos praticados em Goiânia nos anos de 2007 e 2008. Para tanto, serão analisados o fluxo de funcionamento da justiça criminal a fim de identificar fatores que interfiram nas decisões tomadas no sentido de arquivar processos, absolver ou condenar, que se traduzem no afunilamento entre a instauração de um inquérito e o julgamento de um crime. Palavras Chave: Justiça Criminal. Homicídios dolosos. Goiânia.
Introdução
Argumentar a favor de um poder capaz de se impor à natureza humana
(HOBBES), ou de garantir a fruição da propriedade (LOCKE) foi uma
preocupação dos contratualistas, que justificavam a necessidade de adesão ao
Estado em virtude de sua capacidade de impor o cumprimento de regras e
normas capazes de dissuadir os homens da propensão a agirem de acordo
com seus interesses em detrimento dos interesses dos demais. Em Weber, a
política é associada à dominação, no sentido de que o poder político só é
exercido caso haja ao menos a probabilidade de que ordens sejam
efetivamente cumpridas. A dominação exercida pelo Estado é do tipo racional
legal,se efetiva pela crença na legalidade da ordem e na titularidade de quem a
impõe, e configura o monopólio da força legítima.
A ideia do Estado moderno, já em seu nascedouro, não se dissocia da
centralização de regras e da coercitividade e exclusividade na aplicação
dessas regras. A centralização e monopolização do uso da violência são
1 Doutoranda do programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais
da UFG; bolsista da CAPES. Email [email protected]
constituintes da sociogênese do Estado, conforme analisado por Elias (1994,
p.17), que vê no processo civilizador a consolidação de mudanças na conduta
e sentimentos humanos rumo à estabilização, uniformização e generalização
do autocontrole que mantém uma estreita relação com a monopolização da
força física pelo Estado (1994-b,p.193 a197). Para Bobbio (2000,p.426) o
elemento central da diferenciação do Estado moderno europeu de outras
formas de organização do poder, é justamente “a progressiva centralização do
poder, segundo uma instância sempre mais ampla, que termina por
compreender o âmbito completo das relações políticas”. Poder que é exercido
e regulado pelo ordenamento normativo, instrumento de coação a serviço das
forças políticas que detêm o poder em determinada sociedade
Não se pretende aqui, na referência a esses autores, esgotar a
definição de Estado nem tampouco reduzi-la ao monopólio legítimo da força,
mas assinalar que o monopólio do poder coercitivo é, em teoria, um elemento
constitutivo do Estado e que, consequentemente, é relevante a análise acerca
do alcance e da efetividade do exercício desse poder, conforme proposto no
presente trabalho.
Pode-se afirmar que o direito penal e processual penal são os ramos do
direito que mais veementemente expressam a monopolização da violência por
parte do Estado. É por meio de ambos que o Estado tipifica uma conduta e
estabelece os meios e processos que possibilitarão a coerção ao transgressor.
Sendo assim, a análise da atuação e do funcionamento do sistema jurídico
punitivo, no sentido de apontar sua eficiência ou, ao contrario, a falta dela,
pode apontar se o Estado tem sido exitoso no desempenho de uma função que
se confunde com a sua justificação e legitimação, qual seja, a garantia da paz
interna, da segurança e do respeito aos direitos fundamentais.
Até o final do séc. XVIII, o braço penal do Estado se manifestava por
meio de suplícios públicos, e pela espetacularização da punição (FOUCAULT
2009). A imposição de dor ao condenado era tida como um ritual político e
como manifestação da verdade jurídica, conseguida por intermédio de um
processo arbitrário com confissões arrancadas à base da tortura. Esse modelo
punitivo entra em crise e dá espaço a uma reforma penal : o corpo supliciado
desaparece para dar lugar ao corpo disciplinado. Não é mais a “intensidade
visível” proporcionada pela publicização e espetacularização do suplício que
constituirá a coerção do Estado, mas a “certeza de ser punido é que deve
desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro”(op.cit.14). A pena
se burocratiza e sua execução se torna um setor autônomo que não se reduz à
ideia de punição, mas incorpora a correção, a reeducação e a cura (op.cit.14 e
15).
A crença na poder dissuasório da pena é assumida pela criminologia
clássica, sobretudo pelos partidários da teoria da escolha racional, para quem o
criminoso é um ator racional que age no sentido de maximizar o prazer e
minimizar a dor (WALKLATE,2005 p.80). A premissa é a de que, ao considerar
as vantagens auferíveis por meio do crime, o autor deveria computar uma
contrapartida, ou seja, a possibilidade de ser capturado e penalizado. Hoje não
mais se analisa o crime apenas sob o ponto de vista da racionalidade do autor,
pois, como fenômeno multicausal, a sua compreensão requer que sejam
consideradas as interações entre o autor, a vítima, o ambiente e a comunidade
e as estratégias adotadas no sentido de coibir a criminalidade não se
restringem, portanto, à potencialidade punitiva.
A produção de estudos voltados à análise do desempenho do sistema
jurídico punitivo brasileiro tem crescido, sobretudo nas últimas duas décadas.
Tem-se por referência, como pioneiro na área, o artigo de autoria de Edmundo
Campos Coelho, escrito, segundo Ribeiro e Silva (2010) na década de 1970 e
publicado em 1986, em que o autor analisa a administração da justiça criminal
do rio de Janeiro para o período compreendido entre 1942 e 1967. Mas foi a
partir da década de 1980 que eles se ampliaram, e hoje se consolidam, com
estudos realizados em vários estados do país, elencados pelas autoras como
se pode ver: Rio de Janeiro(Soares et all 1996;Misse e Vargas, 2007;Cano
2006; Cano e Duarte, 2009; Ribeiro 2009); São Paulo (Adorno, 1994; Castro,
1996;Vargas, 2004; Ribeiro, 2010); Minas Gerais (Sapori,2007); Pernambuco
(Ministério Público, 2007); Pará (Tavares et. All, 2004); Santa Catarina (Rifiotis,
2006).
O interesse sobre o tema se justifica em virtude de que o desempenho
do sistema jurídico punitivo brasileiro chama a atenção tanto da opinião
pública, dada a sensação generalizada de que grassa no Brasil a impunidade
dos autores de crimes, quanto dos próprios gestores e operadores do sistema,
que percebem haver uma disparidade entre os crimes cometidos e os
elucidados e punidos. Prova disso é a pesquisa realizada pelo IPEA em maio
de 2011, no intuito de captar a percepção social pela justiça, que concluiu que
os brasileiros, de forma generalizada, ou seja, independentemente das
variáveis sociodemográficas, avaliam como no máximo regular o desempenho
das instituições que compõem o sistema, Polícia, Ministério Público, Judiciário
e a advocacia. Recai sobre a Polícia Civil a mais baixa avaliação, tendo em
vista o baixo nível de elucidação de crimes2. Outra evidência quanto a essa
preocupação, foi a instauração de uma força tarefa nacional3 com o objetivo de
dar celeridade na elucidação de inquéritos policiais relativos a homicídios
dolosos, instaurados até o ano de 2007, com o intuito de levá-los a julgamento.
Muito embora seja questionável que a efetividade do sistema jurídico
punitivo seja condição suficiente para solucionar os problemas relativos à
criminalidade violenta, não se questiona que poderia, ao menos,desarticular
organizações criminosas, tornar a adesão ao crime menos atrativa e gerar um
sentimento na sociedade de que o Estado tem cumprido a sua função relativa
ao monopólio da força legítima. Além das questões diretamente ligadas à
criminalidade violenta, a pesquisas relativas ao funcionamento dos órgãos
vinculados à produção jurídica do Estado, trazem elementos relevantes
tocantes ao acesso à justiça que, se igual ou desigual, irá afetar diretamente o
exercício da cidadania. O perfil dos presos no Brasil, majoritariamente
provenientes das camadas mais pobres da sociedade, aponta para uma
seletividade do sistema punitivo que prioriza a persecução penal em relação às
“classes perigosas”.
A dificuldade em se ter acesso aos dados necessários a esse tipo de
pesquisa, influencia fortemente na metodologia adotada por pesquisadores. É o
que se observa da revisão feita por Ribeiro e Silva (2010), que chamam a
atenção para o fato de que o Brasil não possui um sistema federal de
armazenamento e tratamento de dados estatísticos, conforme existente nos
Estados Unidos e no Canadá, o que impõe um caráter regional aos estudos e
2 Disponível em : http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110531_sips_justica.pdf
3 Iniciativa conjunta entre o Ministério da Justiça, Poder Judiciário, Ministério Público Federal e
Estaduais, Defensoria Pública,Conselho Nacional de Justiça Ordem dos Advogados do Brasil e Conselho Nacional do Ministério Publico, estabeleceu a Meta 2 da ENASP – Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública – que consistiu em uma mobilização nacional no sentido de elucidar crimes de homicídio tentados e consumados cujos inquéritos tivessem sido instaurado até dezembro de 2007.
ainda dificulta a comparação entre os mesmos. Entretanto, inobstante essas
dificuldades, pode-se afirmar que os estudos apontam que gargalo persistente
do sistema jurídico punitivo é a baixa elucidação dos crimes pela polícia civil.
Tendo em vista que todo o sistema depende de uma satisfatória produção da
polícia, ou seja, é necessário minimamente que se apontem, ao menos, fortes
indícios de suspeição da autoria do crime para que a persecução penal seja
instaurada no âmbito do poder judiciário, é fácil deduzir que a ineficiência da
ponta inicial acarretará necessariamente uma baixa produtividade na ponta
final do sistema.
As principais matrizes metodológicas adotadas por pesquisadores do
sistema de justiça criminal são as três seguintes (Vargas et allia, 2006; Rifiotis,
2006;Cano e Duarte, 2009; Ribeiro 2009): a) longitudinal ortodoxa; b)
transversal e, c) a longitudinal retrospectiva. A mais complexa, e também
completa, é a longitudinal ortodoxa, que consiste em se eleger um tipo penal e
acompanhar os eventos que se sucedem desde os boletins de ocorrência,
passando pela instauração do inquérito policial; pelo Ministério Público, que
pode ou solicitar novas diligências, ou sugerir o arquivamento ou ainda oferecer
a denúncia e iniciar, então, a fase processual propriamente dita; pelo Poder
Judiciário e, por fim, pela execução penal, no caso de condenação. Por
acompanhar todos os inquéritos instaurados em determinado período, desde o
início até a conclusão, ou a não conclusão, esse tipo de análise se mostra
muito rico, pois, além de apontar os gargalos do sistema, fase a fase, ou seja,
os pontos problemáticos que induzem à morosidade ou ineficiência, pode
também captar nuances que evidenciem um desigual acesso à justiça pelos
partícipes dos processos, quer na características sociobiográficas das vítimas,
quer na dos réus, assim como as circunstâncias do crime. A baixa qualidade e
disponibilidade dos dados dificultam a adoção desta abordagem, menos
frequente nas pesquisas brasileiras. O intuito inicial da presente pesquisa era
justamente o de adotar essa metodologia, justamente por ser a que melhor
subsidia uma análise mais rigorosa acerca dos problemas a serem enfrentados
visando à melhoria do sistema jurídico punitivo, assim como à compreensão do
delito estudado, aqui especificamente, o homicídio doloso, e, por último à
percepção das desigualdades que se operam entre cidadãos no acesso à
prestação jurisdicional do Estado.4
A segunda abordagem, transversal, consiste em se apurar as
proporções entre as ocorrências dos eventos, ou seja, elege-se um tipo de
crime e um período, e faz-se o acompanhamento acerca da quantidade de
ocorrência desse crime, depois, inquéritos instaurados, denúncias oferecidas,
julgamentos prolatados para, a partir desses dados, se calcular as
discrepâncias entre crimes ocorridos e julgados. Em relação à longitudinal
ortodoxa, essa metodologia tem a vantagem de ser mais simples, viável, mas a
desvantagem de apontar uma evidencia de antemão sabida, ou seja, a de um
funil cuja base representa a ocorrência de crimes e o topo o julgamento dos
mesmos sem, contudo, diagnosticar com maior precisão a dinâmica que leva a
esses gargalos, nem tampouco apresentar as características dos crimes
relativas às circunstâncias, motivações e ao perfil dos réus e das vítimas, o que
inviabiliza a percepção sobre o acesso desigual à justiça e suas prováveis
causas. Outra desvantagem é a de que não se acompanha o mesmo caso por
todo o sistema, mas os eventos ocorridos em determinado período. Assim, não
se pode afirmar que um caso específico, cometido em circunstancias tais e
tendo por partícipes sujeitos determinados, tenha recebido esse ou aquele
desfecho, o que é possível perceber é se está em curso um processo em que o
sistema se sobrecarrega, dada a distancia numérica entre crimes cometidos
que se avolumam e os crimes julgados que deixam o sistema.
A terceira, longitudinal retrospectiva, consiste em se partir da fase final
do processo, ou seja, a partir da análise das sentenças proferidas em um
determinado período e relativamente a um tipo de crime, localizam-se os
processos a que as mesmas se referem e faz-se um retrospecto, no sentido de
monitorá-los e calcular o tempo médio gasto em cada fase anterior (Cano e
Duarte,2009,p14). O inconveniente dessa escolha é justamente o problema
crônico do sistema, que é a baixa resolução de casos e, por conseguinte, o
baixo número de julgamentos. Capta-se, portanto, uma baixa quantidade de
casos e, ainda, pode-se inferir que os casos julgados são, por diversas razões,
4 Essas dificuldades serão relatadas a seguir, quando da justificativa quanto à metodologia
adotada.
diferentes dos não julgados, sob vários aspectos, o que torna a amostra além
de numericamente baixa, pouco representativa do conjunto.
VARGAS; BLAVATSKY e RIBEIRO (2006) propõem como metodologia
de análise do tempo da justiça criminal a técnica de estatística de análise de
sobrevivência, em um modelo denominado modelo de Cox, ou modelo de
riscos proporcionais que, segundo as autoras, tem a vantagem de não
desprezar os eventos censurados, ou seja, os casos em que por algum motivo,
o fluxo tenha sido interrompido, como, por exemplo, no arquivamento de
inquéritos sem solução, e ainda, a de viabilizar que se testem as interações
entre co- variáveis como : perfil sociobiográfico dos envolvidos, a relação entre
eles; a arma usada no crime e as questões processuais que possam afetar a
celeridade, como, por exemplo, o fato de estar o réu preso ou solto durante a
instrução (p.72). Como se verá a seguir, os problemas enfrentados pela
presente pesquisa na coleta de dados inviabilizaram a adoção da análise
inicialmente pretendida, a longitudinal ortodoxa, assim como a percepção das
características sociobiograficas dos envolvidos e das circunstancias em que o
crime ocorreu.
A fragmentação dos dados produzidos pelo sistema jurídico punitivo no
estado de Goiás e suas implicações na análise de sua produção
O intuito inicial desta pesquisa era a adoção de uma análise longitudinal
ortodoxa relativa à produção do sistema jurídico punitivo desde a instauração
de inquéritos policiais até os julgamentos em primeira instancia dos crimes de
homicídio doloso ocorridos na cidade de Goiânia nos anos de 2007 e 2008.
Entretanto, dificuldades se impuseram desde o início da coleta de dados. Em
maio de 2011, foi protocolada na Secretaria de Segurança Pública do Estado
uma solicitação de acesso aos dados relativos aos crimes de homicídio doloso
em Goiânia, assim como aos inquéritos propriamente ditos. A petição tramitou
por cerca de dois meses até a concessão da autorização. Nesse ínterim, varias
visitas foram feitas à Secretaria de Segurança Pública visando a captar o fluxo
do sistema de informações, pois a compreensão do mesmo era necessária à
etapa que se iniciaria com a coleta dos dados. As informações colhidas já
levavam a antever que percalços surgiriam, mas ainda não era possível
aquilatar em que nível eles interfeririam na metodologia a ser adotada. Trata –
se de um problema recorrente relatado por pesquisadores da área que, a
despeito dos esforços aplicados e de inquestionável expertise, viram-se, em
alguns casos, impelidos a reorientar o escopo de suas pesquisas
(ADORNO,1994; CANO2006; RIFIOTIS 2006; RIBEIRO2009) .A recorrência
desta dificuldade é bem ilustrada por Lima (2011), o que faz compensar a
extensa citação:
Não obstante o marco legal existente no Brasil prever que as instituições responsáveis pela ação estatal de pacificação social e mediação de conflitos devam trabalhar dentro de um modelo sistêmico, em que cada uma dessas instituições desempenha papel e procedimentos específicos e interdependentes, a experiência demonstra que o jogo de poder típico das organizações burocráticas de um estado patrimonialista, nos termos de Raimundo Faoro
(2001)5, impede que este sistema opere integralmente enquanto tal.
Polícias, Ministério público, Poder Judiciário e Estabelecimentos Caarcerários operam lógicas autônomas e fragmentadoras da ação
do Estado (p.82)6
Percebeu-se uma fragmentação inexplicável desse fluxo de informações.
Sabe-se que à Secretaria de Segurança Pública se subordinam o Comando da
Policia Militar, do Corpo de Bombeiros e da Polícia Civil. Cada um desses
comandos tem um sistema próprio de informação, que não alimenta e nem
sequer se comunica com os sistemas dos demais. A Policia Militar tem suas
próprias informações, estatísticas e banco de dados, que são repassadas e
submetidas ao seu comando, mas não ao comando da polícia civil. Assim
como a Polícia Civil tem seu próprio setor de estatísticas e inteligência, que não
é repassado à Polícia Militar.7 Cada uma dessas instituições tem seu canal de
comunicação com a sociedade. A Polícia Militar coordena o serviço de
emergência que é acionado pelo número de telefone 190 e a civil, o disque
denúncias, que se aciona pelo número 197.
Quando o serviço 190 é acionado, em caso de homicídio, a viatura deve
chegar ao local, preservar a cena do crime e acionar a equipe da polícia civil,
composta por investigadores e delegado. Essa equipe acionará o serviço de
5 Faoro, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª Ed. São
Paulo: Editora Globo, 2001 6 Um exemplo claro aconteceu no decorrer dessa pesquisa, quando o escrevente do cartório da
14ª Vara Criminal, afirmou que iria pensar se disponibilizaria os livros de sentença para a pesquisa e, diante do argumento de que os livros eram públicos, o objeto da pesquisa relevante e a pesquisadora advogada devidamente inscrita na OAB ele respondeu: “os livros são meus e eu os disponibilizo se quiser! Não precisamos de pesquisa, pois já temos a corregedoria” 7 Tendo em vista que as funções desempenhadas pelo Corpo de Bombeiros não têm interesse
direto à essa pesquisa, a produção de informação da instituição não foi analisada.
perícias, vinculado ao Instituto Médico legal, e também subordinado à polícia
civil. Cada equipe produzirá a sua própria narrativa. Essa narrativa inicial, da
polícia civil ,quando houver, e da polícia militar quando não houver uma
narrativa inicial da polícia civil, alimentará um banco de dados da Secretaria de
Segurança Pública que, em tabela do programa Excel, trará, mas nem sempre,
as seguintes informações: nome e data de nascimento da vítima; local de
ocorrência do crime; artigo do código penal que tipifica a conduta;procedência
da narrativa, se delegacia da Polícia Civil ou Comando da Policia Militar.
Entretanto, não se faz referência à data e nem à hora em que ocorreu o fato,
nem ao número de registro da ocorrência, ou, quando for o caso, o número do
inquérito. Não há objetividade nem uniformidade nas narrativas, que às vezes
são longas e deixam de citar o instrumento do crime e outras informações
relevantes.
Embora desde 2000 exista em Goiânia a Delegacia de Investigação de
Homicídios (DIH), o crime na sua forma tentada pode ser apurado pelo Distrito
Policial da área em que ocorreu, assim como o crime de lesão corporal que
tenha resultado em morte e se tornado crime de homicídio na fase processual.
Além disso, antes de 2011, era de competência da Delegacia de Proteção à
Mulher o crime em que mulher maior de idade fosse vítima; da Delegacia de
Proteção à Criança e Adolescente crimes cometidos contra menores de idade
de qualquer sexo e, por último, da Delegacia de Apuração de Atos Infracionais,
homicídios cometidos por menores de idade. Portanto, a regra de que o
inquérito ao menos se inicie na DIH não é absoluta. Além dos problemas
relativos aos registros e rastreamento de casos, a Delegacia não arquiva o
relatório de conclusão do inquérito, ele segue no processo. Para rastrear os
inquéritos em que houve apuração da autoria, pesquisou-se os livros de
Inquéritos remetidos ao Judiciário entre 2007 e 2011, nos casos em que havia
nomeação do indiciado.
O Ministério Público não arquiva suas denúncias, o que é um elemento
dificultador dessa pesquisa, tendo em vista que a análise de fluxo inicialmente
pretendida, longitudinal ortodoxa, requer que se percorram todas as fases
subsequentes à instauração do inquérito policial. As denúncias proferidas pelo
Órgão, ou os pedidos de arquivamento, ficam no processo e não há arquivo
nem mesmo digital das mesmas. Por este motivo, a pesquisa pulou a fase do
Ministério Público para coletar dados nos livros de sentenças, para assim,
eliminar os processos julgados dentre aqueles que deveriam ser localizados.
Pesquisou-se, então, todos os livros de sentenças prolatadas entre 2007
e junho de 2012 pelas duas Varas Criminais, 13ª e 14ª, em que funcionam os
juízos que instauram o júri popular a quem compete julgar os crimes dolosos
contra a vida ocorridos na cidade de Goiânia. Ainda não foram pesquisados os
livros do Juizado de Infância e adolescência, que julga os casos em que o autor
seja menor de idade8.Acreditava-se que a sentença condenatória ou
absolutória traria muitas informações sobre a vítima e o réu, ao qualificá-los,
assim como sobre as circunstâncias e motivações do crime. Mas a expectativa
foi frustrada, pois os textos das sentenças geralmente se referem aos réus e
vítimas “já qualificados no processo” e às circunstâncias “já descritas no
processo”
Outro problema que já era previsto decorreu de um risco assumido. Os
estudos de fluxo apontam que, em média, o tempo necessário a que um
processo relativo a homicídio doloso chegue à fase de julgamento pelo Tribunal
do Júri é de dois a quatro anos (BATITUCCI E CRUZ,2006;VARGAS et
all,2005) e, ao se optar pela análise de crimes ocorridos em período
relativamente recente, ou seja, 2007 e 2008 admitiu-se, por conseguinte, o
risco de não se alcançar uma amostra significativa de casos julgados. A
escolha do período de ocorrência dos crimes se deu em virtude de que as
taxas de homicídio por 100mil/ha na cidade de Goiânia cresceram
significativamente em 2008 e os inquéritos instaurados em 2007 e não
julgados, foram analisados por uma “força tarefa”
Outro fator que nos fez optar por esses dois anos, é que a Polícia Civil
Goiana considera o ano de 2008 como aquele em que o Crack foi fortemente
disseminado na capital, seguindo um movimento iniciado no interior, por volta
de 2005 e se consolidando a partir desse ano na cidade de Goiânia. Delegados
da Delegacia de Homicídios, em reiteradas entrevistas à imprensa local,
atribuem à disseminação do crack a elevação dos homicídios na região
metropolitana de Goiânia. A cidade de Goiânia foi escolhida, tanto pelo fato de
ser a sede da Universidade onde a pesquisa se desenvolve, quanto por estar
8 Acredita-se que existam 13 ocorrências no período, a contar pelo número de inquéritos enviados à DEPAI. Esses livros ainda serão pesquisados.
entre as cidades brasileiras em que não se observou decréscimo significativo
das taxas de homicídios, ao contrario de grandes capitais, como Rio de Janeiro
e São Paulo. A cidade de Goiânia·,no ranking constante do Mapa da Violência
elaborado por WAISELFISZ (2011), ocupa hoje a 15ª posição, com taxas
superiores a Porto Alegre, Belo Horizonte,Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Souza, (2011, p.171) afirma que as taxas de homicídio por 100 mil ha na
cidade de Goiânia eram de 22,7 em 19969, saltaram para 35,7 em 2006 e,
conforme dados do Mapa da Violência10 2011, as taxas de mortes violentas11
em Goiânia, foram de 22,6/100mil ha em 1998, em 1999 saltaram para 30,1
com pequenas oscilações nos dois anos subsequentes para, em 2002, chegar
a 38,1, mantendo-se com pequenas alterações até 2007, quando em 2008
saltou para 44,3. Entretanto, se tomadas as taxas do IBGE para a população
jovem masculina, com idade entre 15 e 19 anos, será de 18 para 1998; 33,8
para 1999; 42,9 para 2002 e impressionantes 60,5 para 2008.
As limitações impostas pela ausência de dados que decorrem: a) da
fragmentação do sistema de informações, que inviabiliza a criação de um filtro
que possibilite o acompanhamento de inquéritos/processos; b) da ausência de
dados processuais, sobretudo na fase de trâmite junto ao Ministério Público; c)
da inexistência de informações acerca das características sociobiográficas dos
envolvidos no crime e das circunstâncias em que estes ocorreram, restringiram
o alcance da pesquisa, que se limitou a aferir algumas características relativas
ao tramite processual e aspectos dos processos julgados, conforme se verá a
seguir.
9 Fonte das ocorrências de Homicídios: Setor de Estatística e Informações – Setor de Planejamento
Estratégico – Diretoria-Geral da Polícia Civil – Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás;
Fonte da população por ano: Superintendência de Estatística, Pesquisa e Informação – Secretaria de
Planejamento do Estado de Goiás. 10 Tabela 3.2.2. Taxas de Homicídio (em 100 Mil) na População Total por Capital e Região. Brasil,
1998/2008. 11 O Instituto Sangari, responsável pelo Mapa, utiliza a tipologia do sistema SIM/DATASUS para
Homicídios, que corresponde ao somatório das categorias X85 a Y09, recebendo o título genérico de
Agressões. Tem como característica a presença de uma agressão intencional de terceiros, que utiliza
qualquer meio para provocar danos, lesões ou a morte da vítima e exclui operações de guerra e
intervenções legais (traumatismos inflingidos pela polícia ou outros agentes da lei, incluindo militares em
serviço, durante a prisão ou tentativa de prisão de transgressores da lei, ao reprimir tumultos, ao manter a
ordem, e outra ação legal.)
Dados Coletados. Apresentação.
Os dados foram coletados na Secretaria de Segurança Pública do
Estado de Goiás; na Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios de
Goiânia; e nos Cartórios das 13ª e 14ª Vara Criminal, que promovem o
julgamento pelo Tribunal de Juri de todos os crimes dolosos contra a vida
ocorridos em Goiânia e pronunciados pelas 1ª e 2ª Varas dessa Comarca.
Junto à Assessoria de Planejamento da Secretaria de Segurança
Pública, obteve-se o acesso ao banco de dados, em planilha Excel, onde estão
registradas todas as ocorrências relatadas às Delegacias de Polícia Civil, e aos
Centros Integrados de Operações de Segurança, CIOPs. Do ano de 2007,
constam 12.511 ocorrências de crimes de toda natureza e do ano de 2008, são
17.867 registros. Destes, essa pesquisa filtrou as ocorrências tipificadas como
homicídios dolosos, ou seja, art.121 c/c art 18 do Código Penal, com o intuito
de excluir os homicídios culposos de trânsito, cujo tramite difere dos processos
relativos aos homicídios dolosos, objeto dessa pesquisa. Essas duas bases de
dados, todas as ocorrências e os homicídios filtrados, foram utilizadas para
confrontar com as informações colhidas junto à Delegacia de Homicídio de
Goiânia.
Na Delegacia de Homicídios de Goiânia, foram pesquisados seis livros12,
os quais são lavrados pelo Cartório Central da delegacia e registram todos os
trâmites relativos aos Inquéritos lá instaurados, assim como dos recebidos de
outras delegacias.São os livros: 1) registro de inquérito;2) inquéritos recebidos
de outras delegacias; 3) inquéritos remetidos a outras delegacias; 4) inquéritos
remetidos ao Poder Judiciário; 5) inquéritos devolvidos pelo Poder Judiciário e,
6) inquéritos devolvidos ao Poder Judiciário. O livro mais relevante à pesquisa
é o de registro de inquéritos, e ele prevê espaço para as seguintes
informações: número e data do inquérito;data do fato;se instaurado por portaria
ou prisão em flagrante;instrumento do crime;tipificação pelo Código Penal;
delegado responsável;nome da vítima; do indiciado e bairro em que ocorreu.13
12 È importante que se registre que na Delegacia de Homicídios, obtive todos os dados que solicitei,
acesso irrestrito aos inquéritos e que a responsável pelo Cartório Central foi de uma presteza
inquestionável, assim como a Delegada titular e demais delegados, servidores e agentes. Fui convidada a
participar de ocorrências e pude observar o “modus operandi” da equipe investigativa. 13 Nem sempre todas essas informações estão disponíveis.
Por meio dos livros de registro de inquéritos, essa pesquisa coletou e
tabulou os registros de 360 inquéritos policiais instaurados em 2007 pela
Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios e 499 no ano de 2008 que,
somados, resultam em 859 registros. Dentre esses, existem inquéritos relativos
a suicídio, aborto, e também alguns que no decorrer da investigação foram
classificados como morte natural ou latrocínio e ainda outros crimes, como
sequestro, porte ilegal de arma e uso de documento falso. Os crimes de
latrocínio são enviados à Delegacia Estadual de Investigações Criminais –
DEIC, se não envolverem roubo de veículos automotores, e à Delegacia
Estadual de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos Automotores –
DERFRVA, se o objeto do latrocínio for veículo e ainda houve casos em que
foram remetidos ao distrito responsável pela área em que ocorreu.
Foram enviados para a Delegacia de Apuração de Atos Infracionais
(menor autor) 13 inquéritos; para a Delegacia de Proteção à Criança e ao
Adolescente (menor vítima) 20 inquéritos relativos a homicídios e 1 a suicídio;
16 inquéritos a outras delegacias por tratarem de crime de latrocínio, 1 de
homicídio de trânsito, 4 de homicídios culposos e 2 de sequestro.Quando essa
pesquisa se iniciou, todos os inquéritos ainda em trâmite no âmbito da Policia
Civil, já haviam retornado à Delegacia de Investigação de Homicídios.
Dentre os 360 e 499 inquéritos de 2007 e 2008, respectivamente,
apenas 286 em 2007 e 419 em 2008, versavam sobre o crime de homicídio
doloso, objeto dessa pesquisa, conforme se vê da tabela abaixo.
Tabela 1 – Inquéritos Autuados na DIH Goiânia por tipo de crime e/ou fato atípico Nos anos de 2007 e 2008
ANO 2007 2008
SUICIDIO – SEXO MASC14
45 46
SUICIDIO – SEXO FEM 12 19
SUICIDIO – SEXO N.I. 2 2
MORTE A ESCLARECER 5 6
ABORTO 1 1
HOMICIDIO CULPOSO 0 1
LATROCÍNIO 2 0
AFOGAMENTO 2 1
OUTRO MUNICÍPIO 0 1
FALS.IDEOLÓGICA 0 1
MORTE PROVAVELMENTE 2 1
14 2 Inquéritos autuados como suicídio se tornaram homicídios no decorrer das investigações
NATURAL/ACIDENTAL
SEQUESTRO 1 0
NATIMORTO 1 0
PORTE ILEGAL DE ARMA 1 1
TOTAL IPs 74 80
TOTAL GERAL IPs 360 499
IPs HOMICÍDIOS 286 419
A Delegacia de Homicídios apurou no período pesquisado, além dos
inquéritos que autuou originariamente, outros remetidos de outras delegacias
ou distritos policiais. Cinquenta Inquéritos vieram de delegacias do interior, e
não interessam a essa pesquisa, 8 de distritos policiais da capital, 18 da
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente , 1 da Corregedoria da
Policia Militar, 1 da Secretaria de Segurança Pública e 3 do Cartório de
Registro de Pessoas Desaparecidas, que funciona na própria delegacia.
No Poder Judiciário foram pesquisados todos os livros de sentenças
proferidas no período que vai de 2007 a junho de 2012, pelas Varas Criminais
competentes para processar e julgar, por meio do Tribunal do Juri, os crimes
dolosos contra a vida. Não se pesquisou, entretanto oas decisões do Juizado
de Infância e Adolescência pois, por se tratar de processos que correm em
segredo de justiça, o acesso ainda não foi autorizado. Mas acredita-se que a
perda não é relevante, pois consta na DIH o registro de 13 processos em que
há menores como autor o coautor, mas em alguns desses há maior como
partícipe.
Não há coincidência entre os dados relativos a homicídios em Goiânia
no período de 2007 e 2008. Uma explicação possível é a de que tentativas de
homicídios ou até mesmo lesões corporais tenham se tornado homicídios nas
estatísticas do SIM/DATASUS sem que tenham sido computadas como tal nas
estatísticas da Delegacia de Homicídios e, em relação aos números da
Secretaria de Segurança Pública, que são maiores, podem estar englobadas
as tentativas ou lesões perpetradas em outros municípios cujos óbitos tenham
ocorrido em hospitais da capital. Soares (2011) chama a atenção para essa
possibilidade. Em relação ao Mapa da Violência, não há razão plausível para a
divergência em relação ao SIM/DATASUS, pois ambos usam a mesma
categoria (X85-Y09-Agressões).
Tabela 2 – Nº de Homicídios ocorridos em Goiânia em 2007 e 2008 de acordo com a base de
dados
BASE DE DADOS ANO/NÚMERO DE HOMICIDIOS
SIM DATASUS15
2007- 34416
2008- 451
DIH 2007 – 315
2008 - 443
SSP-GO TODAS
OCORRENCIAS de art.121
c/c18 CP
2007- 345
2008 – 556
MAPA DA VIOLÊNCIA 2012 2007- 429
2008 - 560
O interesse inicial deste trabalho era compreender, por meio da
combinação entre metodologias quantitativas e qualitativas, os fatores ligados
aos agentes vinculados pelo evento crime - vítima e réu - que pudessem
interferir na produção e seleção do sistema punitivo. Em outras palavras, captar
se as características sociodemográficas do autor e da vítima, assim como as
características do crime, intervêm no desfecho do processo. Assim, poder-se-ia
aquilatar, por exemplo, se o fato de o réu ter recursos para pagar o defensor
pode interferir tanto no mérito do julgamento quanto no tempo de conclusão do
processo; ou se a vítima pertencer a essa ou àquela camada social pode
também ser um fator interveniente na celeridade da elucidação, no desfecho,
na dosagem da pena, na absolvição ou até mesmo no arquivamento do
Inquérito sem a solução. Acreditava-se ser possível captar quais nuances
interferem na duração de cada processo em cada fase percorrida, desde o
inquérito policial até a sentença final para, por meio dessas informações,
perceber qual a interação entre os atores de cada fase, a Polícia Civil, o
15 SIM/DATASUS – Intenção Indeterminada(mortes provocadas por lesões em que se ignora se
foram acidental ou intencionalmente infligidas) – 2007- 48; 2008 – 41 (faz-se referência a esta categoria, pois nela podem estar inseridos, por exemplo, crimes praticados por policiais militares; conforme SOARES, Glaucio Ary Dillon. Não Matarás. Desenvolvimento, Desigualdade e Homicídios. Rio de Janeiro : Ed. FGV,2011. eJESUS T de, Mota E. Fatores associados à subnotificação de causas violentas de óbito. Cad Saúde Colet 2010 Jul.-Set; 18(3): 361-70
16
Disponivel em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10go.def
Ministério Público, os incumbidos pela defesa, paga ou gratuita, e o Poder
Judiciário.
Entretanto, a qualidade dos dados coletados até o momento apenas
permitem analises relativas aos dados dos inquéritos registrados na DIH e,
dentre eles, dos enviados ao Poder Judiciário com indiciamento do suposto
autor do crime e, por último, dados constantes das sentenças prolatadas pelo
Poder Judiciário entre 2007 e junho de 2012, relativas aos crimes ocorridos no
período em analise. Deve-se ressalvar, entretanto, que o registro em livro de
Inquéritos remetidos ao Poder Judiciário com o nome do suposto autor não
indica necessariamente que os mesmos tenham se concluídos, pois podem ter
sido remetidos visando à solicitação de medida restritiva de liberdade, de
dilação de prazo para conclusão do inquérito ou para comunicação de prisão
em flagrante.
Foram tabulados 757 questionários com os dados do livro de registro da
DIH sendo que 326 se referem ao ano de 2007 e 431 ao ano de 2008. A essas
informações iniciais, foram acrescidas as constantes do livros de remessa de
inquéritos ao Poder Judiciário,entre 2007 e 2011. Por fim, a esses 75717
registros, foram acrescidos 12 eventos cujos dados foram colhidos das
sentenças das 13ª e 14ª Varas Criminais de Goiânia e que não haviam sido
registrados na DIH, perfazendo um total de 769 questionários. As
características gerais são as seguintes:
Dentre os 757 Inquéritos iniciados na DIH, 29%, ou seja, 219 foram
enviados ao Poder Judiciário: 212 com indicação do indiciado, sendo um
apontado como culposo e não doloso; em 8 casos, com a afirmação de que o
fato seria atípico tal como morte natural, acidental. Os inquéritos relativos a
suicídios foram excluídos, tendo-se incluído apenas dois em que se constatou
no decorrer da investigação tratar-se de homicidio.18 O prazo contado em
meses, a partir da data do crime,para o primeiro envio destes inquéritos ao
Poder Judiciário, variou entre 1 e 45 meses, e, embora se tenha tentado
perceber se o trâmite de inquérito de réu preso em flagrante seria mais célere,
só há três casos em que a prisão em flagrante foi informada nos registros.
17 Há inquéritos com mais de uma vítima. 18
Reitera-se que o fato de ter sido o Inquérito enviado ao Poder Judiciário não significa que tenha sido concluída a fase da investigação policial. O envio pode ter sido para assegurar ou comunicar prisão do suspeito ou, ainda, para a solicitação da dilação do prazo.
Em relação ao ano de autuação dos Inquéritos enviados ao Poder
Judiciário, predominam os datados de 2008 e, ressalva-se que os instaurados
em 2007 foram analisados pela força tarefa, citada anteriormente.
Dentre os 74 processos julgados, o período decorrido entre o crime e a
sentença dada pelo Tribunal do Juri, ou pelo Juiz monocrático no caso em que
houve desclassificação, variou entre 6 e sessenta meses, entretanto, os dados
não permitem que se faça uma análise mais sofisticada que a frequencial, no
sentido de compreender motivos que interfiram nesse prazo.
Quanto ao sexo dos indiciados e das vítimas, únicas informações a
respeito dos mesmos que estavam disponíveis nos dados coletados, têm-se o
seguinte:
SEXO INDICIADO
Frquencia % %Valida % Cumulativa
F 12 1,6 5,7 5,7
M 196 25,5 92,5 98,1
AMBOS 4 ,5 1,9 100,0
Total 212 27,6 100,0
O elevado nº de não informação sobre o sexo do indiciado se coaduna com a porcentagem de crimes sem indiciamento
Sem Inform. 557 72,4
Total 769 100,0
SEXO DA VÍTIMA
Frequência % % Válida % Cumulativa
FEM 72 9,4 10,1 10,1
MASC 643 83,6 89,9 100,0
Total 715 93,0 100,0
sem Inf.
54 7,0
Obs* Há vitimas “ignoradas” cujos sexos não foram mencionados, assim como 2 fetos que figuram como vítimas. Não é incomum que a tipificação do crime se altere durante as investigações e o processo
Total 769 100,0
Em relação às sentenças, tem-se que, entre 2007 e junho de 2012,
foram julgados 74 processos relativos a crimes de homicídio, o que significa
uma porcentagem de 9,6% em relação ao universo pesquisado, que é de 769
casos. Predominam os casos de homicídios cometidos em sua forma
qualificada, seguidos por homicídios simples, conforme se vê.
CRIME SENTENÇA
Frequency Percent Valid Percent
Cumulative
Percent
Validos 121 CAPUT 26 3,4 35,1 35,1
121 §1 ATENUANTE 3 ,4 4,1 39,2
121 §2 QUALIFICADORA 42 5,5 56,8 95,9
121 C/C23 EXCLUDENTE 2 ,3 2,7 98,6
DESCLASSIFICAÇÃO 1 ,1 1,4 100,0
Total 74 9,6 100,0
Sem Informação 695 90,4
Total 769 100,0
O regime predominante para o cumprimento da pena é o fechado, as
condenações superam as absolvições e as penas aplicadas variaram entre
zero e 348 meses, ou seja, 29 anos, que foram aplicados a um crime hediondo
praticado contra duas vítimas.
ABSOLVIÇÃO19
Frequência % % Válida % Cumulativa
Validos SIM 16 2,1 21,6 21,6
NÃO 57 7,4 77,0 98,6
FIM PROCESSO MORTE
DO AGENTE 1 ,1 1,4 100,0
Total 74 9,6 100,0
Não informado 695 90,4
Total 769 100,0
.
19 Dentre as absolvições, houve uma imprópria, em virtude de doença mental do agressor.
Conclusão
Frustradas as expectativas iniciais da pesquisa20, percebeu-se que, mais
relevante que as dificuldades relativas ao acesso a dados é a própria produção
dos mesmos que dificulta a geração de conhecimento a respeito do fenômeno.
Não há regras nem sistematização na coleta e arquivamento dos dados, que se
dão quase de maneira idiossincrática, dependendo mais do servidor
responsável que de um processo assumido como eficiente. Não se pode dizer
que haja padronização nem interna aos órgãos responsáveis pelas etapas do
fluxo, o que é agravado pela fragmentação das informações relativas aos
dados produzidos já de forma problemática. Um Inquérito policial recebe um
número na delegacia e, ao ser distribuído no Poder Judiciário, outro número
que suprime o numero anterior. Se houver recurso ao Tribunal, ainda que no
período anterior à sentença, o processo receberá um novo número e uma nova
capa, de cor diferente. A resolução 121 do Conselho Nacional de Justiça, CNJ,
restringe as consultas eletrônicas relativas a processos criminais em que o réu
20 Além da cordialidade dos servidores e delegados da DIH, contei com a o apoio dos servidores dos
cartórios das 13ª e 14ª Varas criminais e ainda dos Juizes e Promotores que respondem pelas mesmas, a
quem agradeço.
tenha sido absolvido ou tenha sido extinta a punibilidade e ainda, determina
que se cadastre somente as iniciais da vítima. Sabe-se que, dada a baixa
elucidação de crimes pela policia judiciária, o nome da vítima poderia ser um
poderoso filtro na localização de processos.
Do pouco que os dados permitem, pode-se verificar a recorrência de
características verificadas no sistema jurídico punitivo brasileiro de um modo
geral, por meio de pesquisas já realizadas. Uma baixa elucidação de crimes,
que para os anos pesquisados estima-se girar em torno de 29% e 30,5% e
mais baixa ainda a porcentagem de julgamento a esses crimes, que gira em
torno de 9,6%. Em relação aos crimes propriamente ditos, têm-se homens
entre as principais vítimas e autores, menores figurando mais como vítimas que
como autores ou coautores, e com incidência nas zonas mais empobrecidas da
cidade. Entre os Inquéritos registrados na DIH, constam 29 que apontam
membros da policia militar como autores e, dentre esses, nenhum foi levado a
julgamento pela justiça comum.
As limitações impostas à analise dos dados, decorrentes da qualidade
dos mesmos, leva à reflexão de que os problemas existentes na produção e no
fluxo de informações no campo da segurança pública e sistema jurídico
punitivo podem e devem por si só ser objeto de investigação acadêmica, uma
vez que se impõem como obstáculos às analises que deles dependem e que é
do aprimoramento dessa produção que depende a robustez de pesquisas
sobre o sistema. Ademais, a falta de transparência dos dados inviabiliza o
acompanhamento das políticas de segurança publica o que é grave em um
país em que tanto em ciclos de autoritarismo, quanto em períodos de
democracia, ocorrem abusos contra os direitos humanos e as garantias e
liberdades individuais. Abusos esses provenientes, justamente, de políticas de
segurança publica equivocadas e de assimetrias de poder que reverberam no
campo da justiça, por meio do acesso desigual à mesma, e da seletividade do
sistema punitivo, conforme se pretendia aferir nessa pesquisa.
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SIGLAS
CIOPs -Centros Integrados de Operações de Segurança CPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito DEAM - Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher DEIC - Delegacia Estadual de Investigações Criminais DIH – Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios DEPAI - Delegacia de Apuração de Atos Infracionais DERFRVA -Delegacia Estadual de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos Automotores DPCA - Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente ENASP – Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IML –Instituto Médico Legal OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OMS – Organização Mundial da Saúde PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PRONASCI- Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública SIM / DATASUS – Sistema de Informação de Mortalidade / Banco de Dados do Sistema Único de Saúde SSP-GO – Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás