01 Adamastor de Helio Polvora

11
BC 77216 Estranhos e assustedos 11111111114111111 UESC RC ESTRANHOS E ASSTJSTADOS 0 conto brasileiro desenvolveu-se extraor- din.ariamente depols do movimento modernists,. A heran.ca, deixada, por Mario de Andrade e Al- cantara Machado, corn forte acrescimo de Joao Alphonsus, nao ficou perdida. verdade que o modernismo significou, no seu inicio, alem do poderoso impulso A. poesia, uma nova formulae .o do romance brasileiro - no conteUclo e no estilo, nas direct5es e nas dimensties. Depois o conto se instalou como primeiro veiculo dos novas escritores; houve epoca, no Brasil, e nao faz muito tempo, em que ou se estreava na poesia ou se estreava no conto. Veto posteriorrnente uma rase de relativo declinio (ou de aparente desinteresse). Hoje o conto ressurge no Brasil corn alguns nomes de primeira. plena, e entre Ales A mister que se coloque Hello P6Ivora. Ha neste seu segundo volume de contos urn expressive amadurecimento criador. A lingua- gem. definiu-se, o conto é urn conto, e nao uma histOria narrada entre, franjas indecisas. 0 es- critor encontrou o seu caminho, domino., o seu instrumento, nao ha hesitacoes nem dubiedades. Sao temas e amores fortes. 0 livro de Hello POlvora apresenta ao leitor duas faces distintas mas simultaneas. De urn lado, Ale cents, uma historia, corn todos os seus aspectos humanos. Os personagens de ESTRA- NHOS E ASSUSTADOS, embora se movam num mundo prOprio - as vezes cruel, quase sempre rude, nao raro alern dos fronteiras da realidade cornum, - movern-se num mundo que A o de todos nets. Podem ser identificados nas suas pai- nas suas andancas, na sua inquietagao humana. Ainda mais: Hello. POlvora, mantem seu compromisso corn a terra, ha, uma profunda vo- cacao brasileira em sua obra. Nao se assusta, corn o regional, nao contorna o homem do povo - antes o envolve no seu carinho criador. Mas tambem sua linguagem, apanhando to- dos os recurses do meio, é a linguagem da cria- cao literaria por excelen.cia, o conto A trabalha- do como um objeto de arte, tern Ale a consci- encia artesanal de todos os detalhes. Hello P61- vora estrutura seus con.tos e o faz dentro de uma adequagito lticida de forma e fundo. 0 cunt() brasileiro indubitavelmente se en- riquece corn este livro. ESTRANHOS E ASSUS- TADOS abre pars., o leitor uma nova area de fascinio e da a Hello POlvora urn lugar de frente em nossa ficcao. FAUSTO CUNHA PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Transcript of 01 Adamastor de Helio Polvora

Page 1: 01 Adamastor de Helio Polvora

BC77216

Estranhos e assustedos

11111111114111111UESC

RC

ESTRANHOS E ASSTJSTADOS

0 conto brasileiro desenvolveu-se extraor-

din.ariamente depols do movimento modernists,.

A heran.ca, deixada, por Mario de Andrade e Al-

cantara Machado, corn forte acrescimo de JoaoAlphonsus, nao ficou perdida. verdade que o

modernismo significou, no seu inicio, alem dopoderoso impulso A. poesia, uma nova formulae .o

do romance brasileiro - no conteUclo e no estilo,

nas direct5es e nas dimensties. Depois o conto

se instalou como primeiro veiculo dos novas

escritores; houve epoca, no Brasil, e nao faz

muito tempo, em que ou se estreava na poesia

ou se estreava no conto. Veto posteriorrnenteuma rase de relativo declinio (ou de aparente

desinteresse). Hoje o conto ressurge no Brasil

corn alguns nomes de primeira. plena, e entre

Ales A mister que se coloque Hello P6Ivora.

Ha neste seu segundo volume de contos urn

expressive amadurecimentocriador. A lingua-

gem. definiu-se, o conto é urn conto, e nao uma

histOria narrada entre, franjas indecisas. 0 es-

critor encontrou o seu caminho, domino., o seu

instrumento, nao ha hesitacoes nem dubiedades.

Sao temas e amores fortes.0 livro de Hello POlvora apresenta ao leitor

duas faces distintas mas simultaneas. De urn

lado, Ale cents, uma historia, corn todos os seus

aspectos humanos. Os personagens de ESTRA-

NHOS E ASSUSTADOS, embora se movam nummundo prOprio - as vezes cruel, quase sempre

rude, nao raro alern dos fronteiras da realidade

cornum, - movern-se num mundo que A o de

todos nets. Podem ser identificados nas suas pai-nas suas andancas, na sua inquietagao

humana. Ainda mais: Hello. POlvora, mantem seu

compromisso corn a terra, ha, uma profunda vo-

cacao brasileira em sua obra. Nao se assusta, corn

o regional, nao contorna o homem do povo -antes o envolve no seu carinho criador.

Mas tambem sua linguagem, apanhando to-dos os recurses do meio, é a linguagem da cria-

cao literaria por excelen.cia, o conto A trabalha-

do como um objeto de arte, tern Ale a consci-

encia artesanal de todos os detalhes. Hello P61-

vora estrutura seus con.tos e o faz dentro de

uma adequagito lticida de forma e fundo.

0 cunt() brasileiro indubitavelmente se en-riquece corn este livro. ESTRANHOS E ASSUS-

TADOS abre pars., o leitor uma nova area de

fascinio e da a Hello POlvora urn lugar de

frente em nossa ficcao.FAUSTO CUNHA

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 2: 01 Adamastor de Helio Polvora

HELIO POLVORA

datversidade Estaduai ezi altivva map

UESC!osooviA ILHEus/ITABuNA

an £& 640 ILH51.1.5 FaloAti

ESTRANHOS E ASSUSTADOS

15.

DO AUTOR

Os Gatos da AuroraContos, Edit 6ra Civilizagdo Brasileira S.A., 1958

A Mulher na JanelaCrOnicas, A Estante, 1961

contos

E S 0BIBLIOTECA

01111.1111111E1

IAESC

13.74, r):11

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 3: 01 Adamastor de Helio Polvora

Primeira edicao: marco de 1966.

Copyright 0 bylituo POLVORA

Diregao editorial deFAUSTO CUNHA

Capa deEUNICE DUARTE

Contratados todos Os direitos de publicagdo total ou parcial,em lingua portuguesa, pela Editora Lidador Ltda, Rua do Ou-vidor, 86 - 49 andar, Rio de Janeiro, Brasil.

INDICE

11

ADAMASTOR

25

NO PEITO 0 MOTOR

390 SUPLICIO DO PAPA-MEL

53NINGUEM ESTA INTEIRO

67COMPOSIcA0 SOBRE A ILHA

79OS VISITANTES

930 HOMEM E 0 GATO

107A CONTORCIONISTA

121NO MAR

135HISTORIA EM QUE ENTRA COELHO

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 4: 01 Adamastor de Helio Polvora

I, strange and afraidIn a world I never made

A. E. HOUSMAN AdamastorD°MINGO A tarde recebo a visita do meu vizinho. E

um homem pequeno de pele murcha, rosto re-dondo; veste sempre uma camisa bulgariana e

costuma fechar o colarinho apertado sabre a came dopescogo. Nao arregaga as mangas da camisa: os punhosapertam-se e ocultam-lhe metade_das_maors. Dtobra abainha das calgas perto do joelho, descobrindo a camebranca das canelas, onde veias azuis incham e pare-cem cordOes.

Quando ougo o arranhar de alpercatas no cascalho,penso: é ele. Imobilizo o vaivem da rede e sento-me qua-se tc,cando o chao. Ele limpa as alpercatas no cimentoda porta, entra e senta-se no tamborete. As vezes naome cumprimenta - e eu tambem nao digo nada. Fica-mos parados. 2le entrelaga os dedoseergue um joelho;balanga-o de urn lado para outro e une os labios tofortemente que os pelos do queixo e do bigode crescemjuntas e selvagens.

Isso acontece ilItimamente. Ele chega, toma assen-to, balanga o joelho e nada diz. Se os nossos olhares en-contrarn-se, abre a boca e estira o labia inferior em mi-hha alcrecao. Compreendo o comentario. Pouco a poucoa claridade da tarde desfalece e ha necessidade de seabrir uma janela. de nos Quan-do ja, 6 preciso acendeiA-Ca-naeia, elee ergue, pee ochapeu furado - e eis-me a ouvir de volta o arranhar

ci13

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 5: 01 Adamastor de Helio Polvora

das alpercatas no cascalho. Bern sei que a vida de Ada-mastor esta, cada vez pior.Antes nao era propriamente assim. Ele chegava,tirava o chapeu e falava do tempo. Pronuncia as pala-vras em voz alta, separando bem as silabas. E surdo.N-ao precisa de resposta: estuda no meu rosto as rea-goes - e responde. Quando é absolutamente necessarioque eu the diga alguma coisa, levanto-me da rede e gritono seu ouvido. Mas essas ocasides sao raras. Nunca theperguntei par que ficou surdo, ou se nasceu surdo. Elechegava, falava do tempo - e eu sabia que o vizinhoestava alegre. Dava noticias de Adamastor.

- Parou de beber.Ia-se embora e eu me punha a pensar nos dois emsua casinha. O filho rachando lenha no terreiro ou indoa fonte apanhar uma lata de agua, e o atigando o_fogo. Era ele quem cozinhava. A panela de feijao ferviasabre a trempe e o pedago de came escorria gordura nasbrasas. 0 filho chegava corn a agua ou corn a lenha,talvez acendesse a candeia na sala de jantar, talvezmesmo abrisse a gaveta e tirasse pratos e talheres. 0pai trazia a comida e serviam-se. Comiam em silencio,_os dedos da mao direita esmagando o alimento e for-mando bolos pequenos que os dentes e a saliva trans-formavam em papa. Talvez fosse o pai quem lavasse ospratos. E apps o jantar, a noite cerrada envolvendo acasa, o deslizar de ratos no form e o ruido de cavalosque se cocavam no pasto enterrando os dentes na camedo lombo, eles iriam a janela, é possivel que se debru-gassem para olhar as luzes de casas espalhadas na ver-tente.

0 sono talvez viesse logo. Se nao viesse, o pai abri-ria o dicionario para ver o significado de algumas pala-vras dificeis e a melhor maneira de entoar silabas so-14

noras. Adamastor a janela acendia urn cigarro atras dooutro, atirando os tacos esbraseados corn urn piparote eseguindo na escuridao o roteiro luminoso. 0 pai agoramexendo-se na cama e Adamastor sem sono a surpreen-der a madrugada nos degraus da escada, sentado nos de-graus, vendo corn algum desgosto que o mago de cigar-ros estava no fim. Talvez o pai nao dormisse e gritasseuma vez de dentro do quarto:- Filho, venha dormir.Se assim fizesse, nao haveria resposta. E é provavelque o filho, alertado pelo convite, cerrasse a porta de-vagar, enterrasse a mao no bolso e partisse. 0 pai ou-viria entao o distanciar de seus passos pesados e saberiaque ele is no rumo das luzes ve de ha muito se haviamapaga do na vertente. Se alguem tivesse ocasiao e mal-dade para curvar-se sabre a concha do ouvido morto egritar-lhe o que o filho fazia, ele nao teria comentarios,a surpresa jamais the endureceria as linhas do rosto.Porque ele adivinhava. Na cama,,os, olhos pousados noLugar da parede onde Adamastor o retrato de-Irma mu]her recortado da capa de uma revista, acorn-panhava o filho a deslocar-se dentro da noite par entrevultos de reses adormecidas no capim, atraido pela fos-forescencia dos olhos dos quadrupedes. Adamastor ron-dava os currais ate sentir o estomago embrulhar-se corno odor de came viva e excremento. E corn urn estalarde dedos calaria a voz dos caes que, de guarda as casaslevantariam a cabega e, farejando o cheiro conhecido,nem se dariam ao esforgo de se erguerem para urn reco-nhecimento mais intimo. Adamastor a vontade para ro-dear as casas, ern silencio a fim de nao despertar o ala-rido das ayes nos poleiros, War o ouvido a portas e ja-nelas e sentir bater dentro daquelas Paredes os caracoles

apaziguados. Adamastor apenas urn vulto erguendo osbragos e riscando o verniz de portas e janelas corn as

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 6: 01 Adamastor de Helio Polvora

c

unhas pontiagudas. kantes que asono a colhesse e dolefizesse uma pedra entre pedras, a ida a venda da beirada estrada para alguns tragos. E finalmente o seu re-__tornara casa apagada, silencioso retornar para nao des-pertar o pai que desperto talvez estivesse. Entao Adamas-tor seria sobre o duro varal da cama uma pedra que detanto rolar encontrara o ansiado repouso.

Agora ja, nao bebia, o pai me dissera, e eu vi du-rante semanas sinais de contentamento na maneiracomo o surdo, ao dar comigo, desunia queixo e labios eme estendia o belga. Andavam juntos e juntos encon-traram nOvo trabalho. Ouvia-os passar de rnanha car-regando as ferramentas e batendo as alpercatas no solo.De urn certo ponto do vale chegava o estampido dos seusferros: o bater do machado, a enx6 comendo madeira, apua alimentando-se de serragem. Construiam uma es-tufa para secar cacau. Cheguei-me um dia e vi-os obsti-nados a lavrar_ o cedro. Tratavam a madeira bruta corna firria de machadeiros na mat a, mas quando a eleshas....tavam,,sabiam aplicar suavemente os ferros, aplainar os-

veins e nivelar as juntas. Trabalhavam concentrados noque faziam, e depois de horas p surdo levantava a vista,auscultava a posigao do sol e arriava a instrumento. 0filho fincava corn urn golpe o machado no cepo. Desem-brulhavam a comida, caiam de cocoras e fartavam-se.Sabado de manha muito cello, eu os via da panela pas-sarem na estrada, a pe, lado a lado, mochilas as costas.--Iam para a cidade comprar mantimentos.

Seis mesas se haviam escoado -e durante esse tem--pa o vizinho continuava a me visitar aos domingos, e aoescutar sabre as pedras mindas o arranhar das alper-catas de couro cru, eu parava o movimento da rede, imo-bilizava os punhos rendados nas argolas de Ferro. Sen-tava-me, ele ocupava o tamborete, segurava a perna pelo

16

A

joelho e fazia-a rodar. 'Falava do tempo, do trabalho e deAdamastor.- Esta mais quiet° agora.Via aprovagao no meu rosto e prosseguia:- Sim, esta criando juizo.Partia ao escurecer. Eu pensava em Adamastor vol-tando da fonte ou do terreiro corn uma lata de agua na

cabega ou um feixe de lenha ao ombro. Arriava a carga,limpava o suor, escaldava a carne para tirar o sal e es-tendia:a sObre as brasas. E o pal podia dormir sem in-terrogar a estampa da mulher colada a parede, sabendobem que ela sorria e o seu corpo desnudo era urn apelomorn° dentro da escuridao. Dormiria sossegado emborasoubesse que o filho sentava-se nos degraus da escadapara fitar o brilho erradio nas olhos dos cavalos.- Adamastor quer it embora - disse-me ele, umasemana depois.Leu minha pergunta na maneira como franzi atesta e carreguei o olho esquerdo para baixo.- Para Camaca. Urn senhor ofereceu-lhe vantagemnum armazem de secos e molhados.Os moradores da vertente e as posseiros do vale ondea estrada fazia incandescer ao sol o leito de seixos,-Seri

taram-se as portas para ver Adamastor partir. E ele pas-, ,

sou alto e duro, fixando um panto indefinido a frente,

e dos cavalos que enchiam a noite de sa,ngue, suor e so-:

se despedia para sempre dos cUrrais, das reses, das casas

dera, atadas pelos cadargos. Foi-se corn o jeito de quemcarregando nas maos as botinas novas que o pai the

lidao. Partiu corn o ar de quem concentrara o orguihona fuga longamente premeditada. Deixara o pai sozi-nho e desarmado para lutar contra o sorriso da mulherque abria na parede do quarto uma ferida branca e quedeveria sorrir todas as vezes que ele levava a panela ao

17

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 7: 01 Adamastor de Helio Polvora

t t

7fogo, sentava-se a mesa para amassar corn os dedos oscarogos de feijao ou abrir o dicionario e catar palavrascomplicadas. Adamastor nao voltou nem mesmo quandothe mandaram diner que o pal, lavrando um tronco devinhatico na mata, enterrara o fio do machado no IAe cortara uma das veias inchadas e azuis. E nao de-monstrara maior emogdo a nao ser por uma fugidia pa-lidez que the banhara o rosto, ao the dizerem que o paiperdera muito sangue e conseguira chegar por urn mi-lagre de forga e obstinagdo a casa mais proxima, ondethe apertaram urn pano solire a veia e estancaram oliquido quase negro e grosso que borbulhava no seucorpo pequeno e enrugado, querendo sair pela feridaaberta a fim de empapar a terra e pacificar-se.

Via-se a cicatriz no pe que ele fazia girar a voltado tamborete. Unia os beigos como se fosse soltar umassovio mas nao emitia som algum. Por fim, fixando oolhar nos punhos da rode que se esticavam nas argolas,comentou:

Adamastor esta ganhando bem.Ninguem tivera a coragem de estremecer-lhe o ou-

vido morto corn a verdade. Ninguem the dissera sue ofilho sentia-se ferver dentro da noite. Por tras do bal-ed°, o possarile rosto de cavalo frio percorrendo outrosrostos, era como se convidasse os fregueses a beber logoo ultimo trago e voltar as casas onde mulheres_ aborre-ciam-se na cama. Talvez os odiasse. Mal o ultimo retar-datario emborcava o copo e saia, ele apanhava algumascedulas na gaveta, descia a porta do armazem e trotavaate o largo. Malandros alvoroeavam -sea sua chegada.0 caminhao recolhia mulheres pintadas nas pontas deruas e acendia os farOis no rumo de algum lugarejo pro-ximo onde houvesse um cabare que permitisse as perdi-das, depois da meia-noite e corn as portas fechadas, dan-

18,

a r. f?cet -sem' e"e

garem sem o vestido e a anagua, entre nuvens de fuma-ga dos cigarros.

- Adamastor voltou.0 surdo desta vez me olhava nos olhos. Eu ja sabia.

Trabalhadores do eito levantaram a vista para ve-lo pas-sar corn a mulher branca e dois meninos. Encostaram-se

t,) ao cabo das enxadas e prepararam cigarros de palhasem pressa alguma, ate que ele comegasse a subir a ver-tente. E contaram que ele trazia o rosto de cavalo esti-cado e impassivel, corn o jeito orgulhoso de quern deci-dira voltar - e soubera voltar. N-do desviava a cabegapara os lados; mirava a frente, como se no seu enten-der o mundo fosse apenas uma estrada, uma linha retatragada para que ele a percorresse corn os pes descalgose as botinas na Mao, ate que a morte surgisse e o fizessetombar corn o baque pesado de um cavalo - ou de umcedro.

- Trouxe mulher. Diz que se casou corn ela. Cha-ma-se Olga, era viiiva e tern dois filhos.

O surdo gritou isso da porta, sem se voltar, e ime-diatamente as alpercatas esmagaram o cascalho. Levan-tei-me e acendi a candeia. Talvez ele nao gostasse de veroutra mulher na casa alem daquela que oferecia o corpona parede. Tomando o dicionario, ja nao molharia apolpa do dedo na boca para consultar as paginas ama-relecidas; ou as panelas agora limpas e guardadas emcirna do fogao, e o vozerio dos meninos que repuxavamas camisas bulgarianas, o afastassem sem sono por entreroses estiradas na relva.

possivel que suas ferramentas pendessem da pa-rode sem serventia -o trado, a enx6 e o machado crian-(10 ferrugem no afiado gume. Faltavam tabuas nas can-colas, as areas nao esticavam bem o arame farpado,o cupim roia o cedro das estufas e o putumuju dos as-

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 8: 01 Adamastor de Helio Polvora

soalhos das barcagas de cacau, mas para ele no hamnada, cancelas, casas ou cercas, que precisasse de remen-do. Mesmo assim passava pela minha porta todos os sd-bados, muito cedo. Devia ter dinheiro guardado. Volta-va a tarde da feira na cidade, e ao inves da mochila queantes trazia penduradkao ombrp, caminhava fentamen-te sob o peso do saco dernaniagem que denunciava o con-tomb do litro de querosene, o sec° espetar da jabs en-durecida, a corcova (ainda quente) da farinha.

O verao torrava o capim dos pastos e entristecia oscacaueiros. Nos ribeiroes secos as caborges-moviam-sedentro da lama, cavando agua, e poderiarn ser encur-ralados facilmente corn as maos. A poeira acamava-senos caminhos e bastava para que ela erguesseum boja de nuvem. Dentro de uma dessas nuvens cor-ria a surdo. Ouvi as alpercatas de couro cru estraleja-rern nas pedras mmdas. Ele chegou a porta e sacudiu-secoma um cao para escorragar o pa. 0 veu dissipou-se,pude ver-lhe o rosto (vermelho e inchado), pude sentir--lhe o coragao (estourava contra o peito). Estirou o bra-.go e fendeu o ar ern varias diregoes; a poeira desceu so-bre a erva tisnada.

Entrou e sentou-se. Nao rodou o joelho corn as maospara imprimir a, perna aquae conhecido movimento devaivern. Agarrou a beira do tamborete corn tanta Vargaque o sangue fugiu e as maos ficaram brancas. Quandoas pancadas do coragao ja nao eram audiveis, buscouo meu rosto, prendeu-o corn o olhar.

- Adamastor quis me matar.Gritei-lhe no ouvido:-0 que?- Adamastor quis me matar.Voltei a rede e esperei.- Me me enganou. ,

-y

it

cazn?

t 7tele-ca,

Agora nao se dirigia ao peito e fazia descobertas.

04;6/

mim. Pendia a cabega sabre

-0 juizo parecia assentado. Nao bebia muito edeitava-se mais cedo. Pensei: esta mudado, o meu filho.Quando me pediu dinheiro para it a Camaca, dei-lhecinco cantos de reis.

A

Parou, estendeu a vista alem da janela escancarada,ritou:

- tndole perversa!A voz enfraqueceu-se, os pelos do queixo acomoda-

ram-se na camisa bulgariana. Agora eu me esforgavaura acompanhar -ihe o monologo.

Entrou. ern casa hoje e eu senti de longe o cheiroda bebida. `torn° velho, onde esta o dinheiro?" Disse--lhe que nao tinha. E1e pegou o cacao e berrou: "Vousangrar este comb velho!" Cant

O surdo nao falou mais naquela tarde. A cabega re-donda descansava sempre entre os redondos botoesbrancos que fechavam a camisa. Se erguesse os olhosveria de quem era o rumor dos passos que eu escutavana estrada, desde que a mite comega,ra a verter breu ea submergir a palida brancura do oriente. Os moradoresdo vale e da vertente conheciam de sobejo aquele jeitode pisar forte corn todo o peso do corpo, um jeito dequern Pisa no que the pertence; eu nao precisava me]evantar da rede para reconhecer o homem que fazia re-tumbar a terra corn o casco endurecido dos calcanha-res. De oda estava, a janela mostrava-me apenas urnodago de ceu penujento, mas eu sabia que Adamastormarchava pelo meio do caminho, segurando as botinas( projetando para a frente a cara grosseiramente escul-pida em madeira. E mais atras a mulher corn um me-nino escanchado nos quartos e outro seguro pela mao.

c,Grifei-lhe no ouvido:

';Itetts)

1114 t I no .e..4 CaSac /(c./t-N . .

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 9: 01 Adamastor de Helio Polvora

Pro cdttY

e4sr. (44i 0 a- Rle partiu.0 surdo encarou-me.- Passau por aqui agorinha mesmo.Procurou com os pes as alpercatas emborcadas no

chao, calgou-as e partiu tambem com aquele seu cami-nhar que fazia o tronco balangar-se coma urn tronco dearvore estremecido pelo gume do machado. 0 vulto miü-dogaigou a ladeira, indiferente aos zebus enlouquecidospelo calor, os zebus que escavavam o chao poeirento. Eeu adivinhava. Via-o radar a chave na fechadura, e antesmesmo de estalar o fasforo para acender a candeia, eleentrar no quarto, puxar a gaveta arrombada e certifi-

,

car-se que o dinheiro viajava no bolso de Adamastor. Ecair em uma cadeira e arriar a cabega no peito paranao ver em frente o sorriso sempre igual da mulher des-nuda.

Dessa vez the contaram. Alguem com suficientedose de maldade armou-se de paciencia para suportar omau halito que as dentes padres do surdo espalhavam- e_pingar-lhe no ouvido duro como uma escultura, no-vas noticias de Adamastor. Quando ele veio me ver nooutro dia, fingi surpresa corn o que me revelava.

- Esta vendendo requeijao na feira.Disse apenas isso. Nao contou que a filho gastara

o dinheiro roubado do aluguel de uma casa no suburbiae que comprava requeijao fiado a um fabricante do ser-tao, retalhava-o numa barraca da feira e corn o lucropagava o debit° e mantinha-se, habilitando-se a novofornecimento. E assim ia vivendo e assim ia alimentan-do a mulher que era &le e as filhos gerados por outro.

Talvez tudo desse certo se ele nao pensasse em mul-tiplicar na ponta dos dedos grossos o que the rendia orequeijao retalhado aos sabados. A noticia chegou ao

22

A

'is

3 t No outro sa.bado de tarde ouvi o bater da cancela eo couro de alpercatas moendo pedras. 0 surdo trazia a43mochila cheirosa de comida corn as algas trespassadasao ombro - cheiro de carne seca e de farinha torrada

41 NIque atigava caes famelicos. Entrou, pendurou a mochilanum prego e sentou-se no tamborete. Desta vez meteu asmaos nos balsas da calga e balangou-se. Os labios uni-ram-se. Balangava-se. Cheguei-me ao seu ouvido e tenteifazer vibrar no fundo do caracol penugento algumacorda ainda nao de todo adormecida.".

vale e subiu a vertente. Diziam que as dados, sacudidosha mao' de Adamastor encalombada de arremessar ou-trora o cabo lustroso do machado, nao rolavam corn aprecisdo desejada. "Rolem, desgragados; rolem e me tra-gam um seis." Impulsionados pelas calosidades dasmaos, as dados esparramavam na mesa as quinas desbo-tadas pelo manuseio; imobilizavam-se mostrando pontosnegros que diminufam o dinheiro para pagar o requei-jao. E de tanto rolarern insubmissos acabaram cortandoo fiado que o fabricante sertanejo fornecia. E urn certosabado Adamastor nao abriu na feira a lona da barraca.

U-E entao?- Adamastor matou-se.Abri as bragos no meio da sala. Ele tirou da mochila

urn jornal cuidadosamente dobrado e disse:- Esta tudo ai.Adamastor bebera o ultimo trago, mais amargo,

n um quiosque da praga, e ao avangar pela rua em linharota a caminho do subdrbio, mulher branca e dosmeninos, levava logo_nas entranhas. Quando naorest ava tripas para comer, o fogo devorou-lhe o coragdo( 61e tombou pesadamente corn o mesmo baque surdo(las aivores que o seu machadO derrubara. Os dentesmorderam o pa, a boca babou no chao intumescido.

.e.,,,,t4-drt ta,teette-011

-04144 te-f-e. C Lt (L1.17-0 rri-* IA

Arr i) VCr , 062- vo vcrt4 -6h e.

br

0

23

)yttceijPDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 10: 01 Adamastor de Helio Polvora

Estendi o jornal mas o surdo nao o viu. Ja recolheraa mochila e ja iia-rtia; a baba escorria" entre os dentesdos cdes farejadores. Da porta vi o vulto escalar a ver-tente, passar entre chifres de touros enlouquecidos pelocalor que subia da terra e escorria pelas partes molesde suas virilhas. A casa no meio da encosta era urn pon-to negro, oblongo; acachapada, escura, parecia um atair-cle. 0 surdo destampou-a e encerrou-se corn a comida, odicionario e a mulher que abria na parede as dobras docorpo. Fiquei de longe esperando que a casa baixasse aofundo da terra.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Page 11: 01 Adamastor de Helio Polvora

roNairdNESTE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSONA GRAFICA DA CIA. EDITORA FON-FONE SELETA, A RUA PEDRO ALVES, 60 -RIO DE JANEIRO. ESTADO DA GUANABARA

PARA AEDITORA LIDADOR LTDA. RIO DE JANEIRO

BRASIL, EM 1966.

OUTRAS EDIcOES DA LIDADOR- a qualidade em livro

A FORMA SECRETA, ensaios criticos e es-tilisticos de AUGUSTO MEYER.

A LUTA LITERARIA, estudos criticos e po-lemicos sobre a literature brasileira contempo-ranee, de FAUSTO CUNHA.

RA1ZES DA CRIACAO LITERARIA, o livrofundamental de EDMUND WILSON para o co-nhecimento dos grandes criadores da literaturemoderna, como James Joyce e Ernest Hemingway.

LITERATURA E SOCIEDADE, outra obra ba-sica da nova critica, de LIONEL TRILLING, con-tendo os famosos estudos sObre a significagao daobra de Freud e as relagOes entre criacao emoral.

0 EU ROMANTICO, livro de ensaios tambamde LIONEL TRILLING, em que sao estudados,entre outros, Tolstoi, Flaubert, Dickens e Orwell,dentro de uma visa° hegeliana do mundo.

DIALOGO COM A ARTE MODERNA, o maisinteressante e atualizado livro para a compre-ensao da problematica dos artistes modernos,na voz dos malores pintores e escultores do me-mento. Organizado por Katherine Kuh. Mica°fartamente ilustrada.

EDITORA LIDADOR LTDA.

Rua do Ouvidor, 86 - 4.° andarRIO DE JANEIRO, GB

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor