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170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 87 Marx, Weber e a modernidade: capítulos de um (des)encontro histórico Michael Löwy. La cage d’acier: Max Weber et le mar- xisme wébérien. Paris, Stock, 2013. 198 páginas. Fabio Mascaro Querido A um só tempo marxista militante e weberiano erudito, Michael Löwy se engajou nas últimas dé- cadas em uma tentativa de integrar à teoria social fundada por Marx aspectos importantes do diag- nóstico crítico de Max Weber sobre a modernidade. A partir de uma leitura inovadora e heterodoxa da obra do sociólogo de Heidelberg, Löwy retoma – em La cage d’acier: Max Weber et le marxisme wébé- rien – uma corrente subterrânea do marxismo oci- dental, o “marxismo weberiano” (assim designado por Merleau-Ponty), cuja crítica da racionalidade instrumental e das “águas glaciais do cálculo egoísta” (Marx) é hoje, na sua opinião, ainda mais atual, em face da configuração contemporânea do sistema ca- pitalista. Como se pode ver no primeiro dos seis capí- tulos do livro, Michael Löwy não minimiza as di- ferenças (e tampouco os antagonismos) metodoló- gicas e, sobretudo, políticas entre Marx e Weber, diferenças amplamente ressaltadas pela literatura especializada. Enquanto Marx analisa “a origem do capitalismo moderno através do conceito de ‘acu- mulação primitiva do capital’” (p. 18, tradução do autor da resenha), destacando o papel central dos fatores extraeconômicos, tais como a expropriação violenta dos camponeses, o tráfico de escravos e a pilhagem brutal das colônias, Weber sustenta, em revanche, em A ética protestante e o espírito do capi- talismo ([1904-1905] 2004), a hipótese segundo a qual o desenvolvimento do capitalismo, desde o sé- culo XVII, é o resultado da ética do trabalho, do es- forço e da poupança ascética de alguns capitalistas, impulsionados pelo puritanismo calvinista – uma explicação, aliás, compatível com o discurso de au- tolegitimação dos proprietários de capital. Todavia, do ponto de vista metodológico, quanto à relação entre fato religioso (notadamente o protestantismo) e capitalismo, as divergências en- tre os dois pensadores são mais nuançadas do que frequentemente se revela nas análises dos especia- listas do século XX. À luz de uma leitura dialeti- camente refinada de Marx, Michael Löwy defende a ideia de que, para o autor alemão, a religião não é um simples “reflexo” das condições materiais, ao passo que Weber, por seu turno, reconhece a in- fluência das condições econômicas e sociais sobre a ascese protestante. No limite, para Löwy – à di- ferença das interpretações marxistas simplistas de Weber –, a despeito de “certas passagens que se apresentam explicitamente [...] como uma refu- tação ao materialismo histórico, opondo-lhe uma relação causal ‘espiritualista’” (p. 26), a obra célebre (A ética protestante...) do sociólogo alemão não sus- tenta nem o primado do fator econômico (“mate- rial”), nem do fator religioso (“espiritual”). Trata-se, segundo Löwy, acima de tudo, de um estudo pro- fundo da relação recíproca “entre essas duas estru- turas culturais [...], que pouco se preocupa com a questão do primado” (p. 28). Michael Löwy apoia- -se, aqui, parcialmente, em História e consciência de classe ([1923] 2012), obra de juventude de Georg Lukács, para quem a apreciação dos fatos revelados no estudo de Weber independe da aprovação ou não de sua interpretação causal. É a partir dessa perspectiva que Michael Löwy logra destacar as afinidades e as “complementari- dades” entre os dois pensadores alemães, em torno de uma análise comum do capitalismo que integra o papel das classes sociais e do Estado na formação de um sistema no qual os indivíduos encontram- -se dominados por abstrações e relações pessoais e “coisificadas”. Assim, em vez de reafirmar uma vez mais o “abismo” epistemológico (para não dizer “ontológico”) entre os dois autores, Löwy os inte- gra através de suas críticas ao capitalismo moderno, privilegiando, na interpretação de Weber, “seu pes- simismo cultural, seu diagnóstico implacável da ci- vilização capitalista burocrática – ‘dura como aço’ – e sua obscura premonição do futuro que ela nos prepara” (p. 9). No segundo capítulo, Michael Löwy demons- tra como este “pessimismo cultural” possibilitou ao sociólogo alemão o desenvolvimento de uma percepção (resignada, é bem verdade) das contradi- ções, dos paradoxos e dos limites da racionalidade moderna e do seu caráter formal/instrumental, e,

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  • 170 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N 87

    Marx, Weber e a modernidade: captulos de um (des)encontro histrico

    Michael Lwy. La cage dacier: Max Weber et le mar-xisme wbrien. Paris, Stock, 2013. 198 pginas.

    Fabio Mascaro Querido

    A um s tempo marxista militante e weberiano erudito, Michael Lwy se engajou nas ltimas d-cadas em uma tentativa de integrar teoria social fundada por Marx aspectos importantes do diag-nstico crtico de Max Weber sobre a modernidade. A partir de uma leitura inovadora e heterodoxa da obra do socilogo de Heidelberg, Lwy retoma em La cage dacier: Max Weber et le marxisme wb-rien uma corrente subterrnea do marxismo oci-dental, o marxismo weberiano (assim designado por Merleau-Ponty), cuja crtica da racionalidade instrumental e das guas glaciais do clculo egosta (Marx) hoje, na sua opinio, ainda mais atual, em face da configurao contempornea do sistema ca-pitalista.

    Como se pode ver no primeiro dos seis cap-tulos do livro, Michael Lwy no minimiza as di-ferenas (e tampouco os antagonismos) metodol-gicas e, sobretudo, polticas entre Marx e Weber, diferenas amplamente ressaltadas pela literatura especializada. Enquanto Marx analisa a origem do capitalismo moderno atravs do conceito de acu-mulao primitiva do capital (p. 18, traduo do autor da resenha), destacando o papel central dos fatores extraeconmicos, tais como a expropriao violenta dos camponeses, o trfico de escravos e a pilhagem brutal das colnias, Weber sustenta, em revanche, em A tica protestante e o esprito do capi-talismo ([1904-1905] 2004), a hiptese segundo a qual o desenvolvimento do capitalismo, desde o s-culo XVII, o resultado da tica do trabalho, do es-foro e da poupana asctica de alguns capitalistas, impulsionados pelo puritanismo calvinista uma explicao, alis, compatvel com o discurso de au-tolegitimao dos proprietrios de capital.

    Todavia, do ponto de vista metodolgico, quanto relao entre fato religioso (notadamente o protestantismo) e capitalismo, as divergncias en-tre os dois pensadores so mais nuanadas do que

    frequentemente se revela nas anlises dos especia-listas do sculo XX. luz de uma leitura dialeti-camente refinada de Marx, Michael Lwy defende a ideia de que, para o autor alemo, a religio no um simples reflexo das condies materiais, ao passo que Weber, por seu turno, reconhece a in-fluncia das condies econmicas e sociais sobre a ascese protestante. No limite, para Lwy di-ferena das interpretaes marxistas simplistas de Weber , a despeito de certas passagens que se apresentam explicitamente [...] como uma refu-tao ao materialismo histrico, opondo-lhe uma relao causal espiritualista (p. 26), a obra clebre (A tica protestante...) do socilogo alemo no sus-tenta nem o primado do fator econmico (mate-rial), nem do fator religioso (espiritual). Trata-se, segundo Lwy, acima de tudo, de um estudo pro-fundo da relao recproca entre essas duas estru-turas culturais [...], que pouco se preocupa com a questo do primado (p. 28). Michael Lwy apoia--se, aqui, parcialmente, em Histria e conscincia de classe ([1923] 2012), obra de juventude de Georg Lukcs, para quem a apreciao dos fatos revelados no estudo de Weber independe da aprovao ou no de sua interpretao causal.

    a partir dessa perspectiva que Michael Lwy logra destacar as afinidades e as complementari-dades entre os dois pensadores alemes, em torno de uma anlise comum do capitalismo que integra o papel das classes sociais e do Estado na formao de um sistema no qual os indivduos encontram--se dominados por abstraes e relaes pessoais e coisificadas. Assim, em vez de reafirmar uma vez mais o abismo epistemolgico (para no dizer ontolgico) entre os dois autores, Lwy os inte-gra atravs de suas crticas ao capitalismo moderno, privilegiando, na interpretao de Weber, seu pes-simismo cultural, seu diagnstico implacvel da ci-vilizao capitalista burocrtica dura como ao e sua obscura premonio do futuro que ela nos prepara (p. 9).

    No segundo captulo, Michael Lwy demons-tra como este pessimismo cultural possibilitou ao socilogo alemo o desenvolvimento de uma percepo (resignada, bem verdade) das contradi-es, dos paradoxos e dos limites da racionalidade moderna e do seu carter formal/instrumental, e,

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    to importante quanto, da sua tendncia a produ-zir efeitos que conduzem reverso das aspiraes emancipadoras da modernidade. Esse diagnstico crtico da civilizao moderna aparece de forma notvel nas ltimas pginas dA tica protestante..., nas quais Max Weber abandonando momenta-neamente sua reivindicao da cincia livre de julgamentos de valor efetua uma espcie de di-gresso crtica (nas palavras de Lwy) sobre o tema da petrificao mecanizada caracterstica do capi-talismo consolidado. Para o socilogo franco-bra-sileiro, nessas pginas notveis, felizmente Weber no conseguiu neutralizar suas opinies e crenas; bem ao contrrio, ele deu livre curso uma viso radicalmente crtica e bastante pessimista do pre-sente e do futuro da civilizao moderna, de tal modo que elas contrastam fortemente com o resto do texto, por seu carter pessoal e axiologicamente engajado (p. 58).

    nessas mesmas pginas citadas por Lwy que Weber elabora a conhecida alegoria da gaiola de ao (segundo a inexata traduo popularizada por Talcott Parsons), ou do habitculo duro como ao (conforme prefere Lwy). Trata-se, para Lwy, no tanto de uma previso das provveis consequn- cias futuras do processo de burocratizao, e sim de uma alegoria da civilizao capitalista industrial no presente, uma alegoria no sentido benjaminiano, na qual tal como se pode ver no livro Origem do drama barroco alemo a facies hippocratica da histria [...] se apresenta para o espectador como uma paisagem primitiva petrificada (Benjamin, [1925] 2011, p. 180). Em outras palavras: a gaiola de ao weberiana constitui uma espcie de ilumi-nao profana, conforme a expresso do mesmo Benjamin em seu ensaio sobre os surrealistas (O surrealismo O ltimo instantneo da inteligncia europeia, [1929] 1994), atravs da qual Max We-ber denuncia sua maneira o capitalismo como um destino trgico, sem porta de sada, em que toda a humanidade encontra-se aprisionada. Para esse liberal atpico que foi Weber, essa gaiola significa, como afirma Lwy, a perda de um valor que lhe era caro: a liberdade individual (p.72).

    O conceito de afinidades eletivas analisa-do por Michael Lwy no terceiro captulo revela, em Weber, uma tentativa de superar a abordagem

    tradicional da causalidade, e, assim, de contornar o debate sobre o primado do material ou do espi-ritual (p. 80). por isso que tal conceito (trans-plantado por Goethe da alquimia para o terreno social da espiritualidade humana) ocupa um papel central em A tica protestante..., malgrado o fato de ele ser mencionado apenas trs vezes. Na tica de Lwy, no surpreende que o termo no tenha sido bem compreendido pela recepo anglo-saxnica e neopositivista de Weber: na traduo de Talcott Parsons (1930), por exemplo, a noo de afinida-de eletiva substituda por certas correlaes, o que, para o socilogo franco-brasileiro, muito di-ferente da ideia weberiana original de uma relao interna complexa e significativa entre duas configu-raes socioculturais.

    Esse conceito ainda pouco estudado pelos especialistas em Weber permite compreender, na perspectiva defendida por Michael Lwy, um certo tipo de conjuno entre fenmenos aparente-mente dspares (p. 96), cuja dinamizao depende sempre de condies histricas e sociais concretas. Por essas razes, o conceito de afinidades eletivas constitui, para Lwy, um ponto de partida para uma nova abordagem no campo da sociologia da cultura, ainda pouco explorada. O prprio Lwy, alis, se utiliza amplamente dessa noo em seu li-vro, publicado na Frana em 1988, Redeno e uto-pia (1989), estudo sobre a cultura judaica na Euro-pa central, no qual ele busca mostrar as afinidades eletivas entre messianismo libertrio e romantismo anticapitalista, tal como elas aparecem na obra de diversos intelectuais judeus do incio do sculo XX. Assim, o conceito de afinidade eletiva possibilita ao prprio Lwy esboar uma concepo original da causalidade, em oposio ao materialismo determi-nista dos epgonos marxistas.

    No quarto captulo, explorando as hipteses we-berianas, Lwy se prope de forma inovadora, se no ambiciosa a reconstituir o captulo ausen-te [da] sociologia das religies [de Weber], que se poderia intitular A tica catlica e o esprito do capitalismo (p. 99). Atravs de algumas sugestes de Weber a este respeito, Michael Lwy desenvolve um subtexto, quer dizer, um contra-argumento apenas insinuado pelo socilogo alemo em A tica protestante... e em alguns outros textos menores, a

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    saber: ao contrrio do protestantismo, a tica cat-lica a despeito do papel da Igreja enquanto ins-tituio e dos seus compromissos com a socieda-de burguesa consolidada pouco favorvel ao esprito do capitalismo. Existiria, assim, segun-do Lwy, entre o universo reificado, impessoal e a-tico do capitalismo e a tica catlica uma espcie de antipatia cultural, ou seja, uma afi-nidade negativa. Isso explicaria a emergncia, no sculo XX, de uma tradio anticapitalista cat-lica, sobretudo na Amrica Latina, cuja expres-so mais clebre foi a teologia da libertao que no constitui, porm, como o prprio Lwy ten-tou demonstrar em seu livro de 1996 intitulado A guerra dos deuses (2000), um simples prolonga-mento do anticapitalismo tradicional da Igreja ou de sua verso francesa, mas sim a criao de uma nova cultura religiosa, exprimindo as condies especficas da regio: capitalismo dependente, pobreza massiva, violncia institucionalizada [e] religiosidade popular (p. 122).

    Na terceira e talvez mais interessante par-te do livro, que contm os dois ltimos captulos (quinto e sexto), Michael Lwy revela como o de-senvolvimento inelutvel do capitalismo industrial na Alemanha das primeiras dcadas do sculo XX provocou entre os intelectuais o surgimento de uma atmosfera de desconfiana quase generalizada em relao modernidade. nesse contexto es-tudado em detalhe pelo socilogo franco-brasileiro na sua segunda tese de doutorado sobre a evoluo poltica do jovem Lukcs que emerge o pessimis-mo weberiano, e a partir do qual se desenvolver, mais tarde, na Repblica de Weimar, uma conste-lao intelectual, essencialmente composta de auto-res judeus de cultura alem, que produzir um con-junto de leituras anticapitalistas assim como, em larga medida, antiprotestantes ou anticalvinistas do autor de A tica protestante (p. 127). o caso, por exemplo, de pensadores como Ernst Bloch, Walter Benjamin e Erich Fromm. Para Lwy, no quinto captulo, as interpretaes de Weber realiza-das por esses autores constituem, antes de tudo, um dtournement, uma vez que eles utilizam os ar-gumentos ambivalentes de Weber para efetuar uma crtica, de inspirao socialista/romntica, contra a religio capitalista (p. 127).

    Praticamente no mesmo momento histrico, tal como Lwy demonstra no sexto e ltimo cap-tulo do livro, com a obra mais importante do jovem Lukcs, a j citada Histria e conscincia de classe, surgiria efetivamente o que ele denomina reto-mando o termo inventado por Merleau-Ponty marxismo weberiano, que ganharia um novo f-lego com os primeiros representantes da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e, de um certo modo, Marcuse). Mais do que em Bloch, Benjamin ou Fromm, certos temas e categorias da obra do so-cilogo de Heidelberg ocupam um lugar estratgi-co no mbito do marxismo-weberiano de Lukcs, Adorno e/ou Horkheimer. Em Lukcs, sobretudo no captulo sobre a reificao de Histria e conscincia de classe que, na opinio de Lwy, constitui uma sntese original da teoria do fetichismo da mer-cadoria de Marx e da teoria da racionalizao de Weber , encontra-se a primeira tentativa, a partir de um marxismo antieconomicista e antipositi-vista, de tomar Max Weber a srio e de se inspirar em suas ideias de modo significativo (p. 152). Nas reflexes de Adorno e Horkheimer, por sua vez, o diagnstico pessimista esboado em Dialtica do esclarecimento ([1944] 1985) amplamente inspi-rado em Weber, ainda que o nome do socilogo alemo no aparea diretamente, e que o ponto de vista dos filsofos de Frankfurt fundado na busca de um racionalismo concreto, substancial, capaz de opor ao primado da racionalidade instrumen-tal seja mais radical que aquele revelado pelo neokantismo resignado de Weber (p. 163).

    Dessa perspectiva, a obra de Jrgen Habermas principal herdeiro da primeira Escola de Frank-furt representa, na tica de Michael Lwy, uma sada do marxismo-weberiano. Notadamente em sua obra magna, A teoria da ao comunicativa, de 1981 (na edio brasileira, Teoria do agir comuni-cativo, 2012), ele se afasta consideravelmente dessa tradio, propondo atravs do conceito de racionalidade comunicativa uma reconciliao com as normas da modernidade realmente exis-tente (p. 180). Assim, dissociando-se do pessi-mismo weberiano, bem como da crtica marxista do capitalismo, Habermas aspira, segundo Lwy, a uma reativao da utopia burguesa da razo e do projeto inacabado da modernidade, em oposio

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    constatao brutal de Weber sobre a contradio inelutvel dos valores e sua anlise dos resultados alienantes da racionalidade instrumental (p. 188).

    Ora, como se pode ver, mais do que reafirmar a importncia e a vitalidade do pensamento desses autores, Michael Lwy constitui, ele mesmo, um representante contemporneo de tal tradio in-telectual, resgatando sua crtica da modernidade de um ponto de vista marxista-libertrio, por assim dizer, uma vez que ele acentua para alm dos marxistas-weberianos do passado a centra-lidade da luta pela liberdade contra a subordinao da humanidade ao crculo vicioso do fetichismo da mercadoria, da racionalidade instrumental e do despotismo do Estado burocrtico (as cadeias de papel de Kafka). Devido a essa perspectiva, que emerge de modo mais ntido aps sua redescober-ta de Walter Benjamin a partir do fim dos anos de 1970, Michael Lwy retoma a crtica marxista--weberiana como uma crtica da civilizao capita-lista moderna em seu conjunto, em um contexto marcado pela crise do modelo civilizatrio estabe-lecido. Para Lwy, mais do que nunca, e mais do que na poca de Marx ou de Weber, ns estamos submetidos ao poder total de foras impessoais o mercado, a finana, a dvida, o desemprego , que se impem aos indivduos como um destino impla-cvel (p. 192).

    Da, igualmente, o carter romntico-revo-lucionrio da interpretao de Michael Lwy (cf. seu livro Revolta e melancolia: o romantismo na contramo da modernidade, escrito em 1992 em conjunto com Robert Sayre Lwy e Sayre, 1995) dessa crtica marxista-weberiana-libertria da modernidade. Em Lwy, tal perspectiva apre-senta-se como uma crtica do mundo moderno desencantado e, to importante quanto, das no-es de progresso e de dominao da natureza razo pela qual ela pode servir, na sua opinio, de ponto de partida para a construo de um ponto de vista eco-socialista contemporneo. Esse pessimismo revolucionrio como diria Walter Benjamin em seu ensaio sobre os surrea-listas constitui a pedra angular das proposies de Michael Lwy em torno da renovao contem-pornea do marxismo, em oposio ao otimismo racionalista e hegeliano das verses esquerda

    das ideologias do progresso. Tal pessimismo cons-titui, em Lwy, o primeiro passo para a constru-o de uma utopia concreta (Ernst Bloch) futu-ra, capaz de visualizar um mundo para alm das runas do sculo XX. No por acaso, o socilogo franco-brasileiro se ope fortemente s interpre-taes marxistas ortodoxas da obra weberiana como aquela do Lukcs da dcada de 1950, para quem Weber seria um dos mltiplos representantes do processo de destruio da razo caracterstica da cultura alemo pr-nazista.

    bem verdade que, em muitos momentos, Michael Lwy no af de se contrapor a esse tipo de interpretao exagera no sentido contrrio, com uma leitura excessivamente seletiva de Weber (e de outros autores), fazendo com que o socilogo alemo parea mais aquilo que ele, Lwy, gostaria que fosse do que o que ele efetivamente foi. To-davia, talvez seja o risco a correr quando se trata de uma interpretao cuja motivao subjacente a tentativa de renovao substancial da anlise mar-xista-weberiana do capitalismo contemporneo. A originalidade da reflexo de Lwy e do livro aqui resenhado resulta exatamente da sua disposio a correr esse risco, sem medo da heresia. Sobre os escombros das ortodoxias e das polarizaes ideol-gicas do sculo XX, Lwy entrev a possibilidade de uma releitura criativa (embora polmica) da obra dos dois pensadores alemes, amenizando suas di-ferenas a fim de destacar aquilo que os aproxima, na direo da reconfigurao de uma teoria social crtica para o sculo XXI.

    BIBLIOGRAFIA

    ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. ([1944] 1985), Dialtica do esclarecimento. Tra-duo de Guido de Almeida. So Paulo, zahar.

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    HABERMAS, J. (2012), Teoria do agir comuni-cativo. Traduo de Paulo Astor Soethe e Fl-vio Beno Siebeneichler. So Paulo, Martins Fontes, 2 vols.

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    LUKCS, G. ([1923] 2012), Histria e conscin-cia de classe: estudos sobre a dialtica marxista. Traduo de Rodnei Nascimento. So Paulo, Martins Fontes.

    WEBER, M. ([1904-1905] 2004), A tica pro-testante e o esprito do capitalismo. Traduo de Jos Marcos Mariani Macedo. So Paulo, Companhia das Letras.

    FABIO MASCARO QUERIDO doutorando em sociologia pela

    Universidade Estadual de Campinas, com parte do doutoramento em realizao na cole de Hauts tudes en Sciences

    Sociales, Paris, Frana. bolsista da Fapesp. E-mail: [email protected].

    DOI: http//dx.doi.org/10.17666/3087170-174/2015