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    Educao e Cultura

    a sociedade brasileira nos sculos XVI e XVII1

    Jos Maria de Paiva

    Com o presente estudo quero assinalar aspectos que me parecemfundamentais parqa a compreenso da formao da cultura brasileira. Deforma ampla, entendo por cultura a forma de viver de uma sociedade,forma que se expande por todas as atividades do homem. Queremosacreditar que em todas as manifestaes culturais perpassa uma e mesmaviso de mundo; melhor ainda, que todas essas manifestaes se compemcoerentemente para a produo do que chamamos de uma cultura. O quefunda uma cultura? O que a distingue de outras culturas? Quando podemos

    estabelecer que se d uma nova cultura?A cultura se percebe a posteriori. Observando as formas de uma

    sociedade viver, estabelecemos seus eixos fundamentais. No entanto, essasformas no tiveram origem mgica: elas respondem necessidade desobrevivncia num determinado contexto, incluindo a todas as variveis. Acultura surge da vida cotidiana. E, tambm por isto, a cultura nunca estpronta. Pelo contrrio, tende sempre a uma reorganizao.

    Este artigo se prope a levantar aspectos desta vida cotidiana emterras brasileiras, desde a chegada dos portugueses, abarcando os sculos

    16 e 17. Muito j se tem escrito sobre isto. Minha contribuio ser atentativa de compreender a gesta no contexto, aproximando-me o maispossvel da interpretao dos prprios atores sociais. Estes atores so,centralmente, os portugueses. A formao da cultura brasileira est ligadaumbilicalmente sociedade portuguesa quinhentista-seiscentista, posta aquiem nova terra, em contato com outras culturas, a(s) indgena(s) e a(s)africana(s), cada qual consolidada, sob condies que afetavam, numprocesso lento mas irrefrevel, seus costumes, suas crenas, seus valores,suas instituies, sua viso de vida, enfim as relaes sociais. Para osportugueses, uma nova forma de vida, selvagem ela prpria porque

    ameaadora. A colnia apresentava ameaas de toda sorte, que em Portugalno existiam. Eram as condies da colnia que criavam as ameaas: viverj no era igual; a produo da vida cotidiana era difcil em si: havia aquesto da alimentao, do transporte, da defesa, da distncia, da habitao,das doenas, dos recursos disponveis para as diversas atividades etc. E, porsobre tudo, pairava a mesma ordem social, a mesma organizao social, o

    1Publicado em Comunicaes(Unimep), ano 6, n. 2, 1999, p. 60-67

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    mesmo direito, os mesmos costumes e normas, as mesmas obrigaesvigentes em Portugal, o mesmo rei, a mesma Igreja.

    Este processo de interculturao, quero observ-lo a partir do lugarocupado pelos jesutas. Indico duas razes. Primeiramente, os jesutasexerciam oficialmente a misso de cristianizar os novos povos, isto , de

    traz-los para a cultura portuguesa, ou seja, de confirmar a culturaportuguesa em terras brasileiras. Em segundo lugar, os jesutas deixaramuma documentao muito vasta, que permite acompanhar os problemasvividos poca. Um terceiro argumento poderia ser a influncia que ospadres da Companhia exerciam, j no seu tempo, atravs dos colgios. Operodo assinalado, sculos 16 e 17, se justifica por comportarcaractersticas mais ou menos homogneas, que vo se desmanchando soba influncia do desenvolvimento capitalista mercantil e, mais adiante, dasidias iluministas da Europa.

    A expresso cultural maior portuguesa quinhentista/seiscentista areligio. A sociedade se regia pela viso do orbis christianus: umasociedade teocrtica, uma sociedade organizada pelo princpio da relaohierarquizada, tendo Deus como a referncia central e absoluta. Asociedade s tinha seu sentido nesta compreenso. O rei era, na sociedade,a referncia maior, porquanto Deus o constitura seu vigrio. A organizaodas relaes sociais vigente poca, ainda que pudesse ser outra, tinhacomo marca principal a sacralidade: tudo era forma de realizar a vontade deDeus; tudo estava voltado para o sagrado. Assim, rei, administradores,soldados, padres, comerciantes, funcionrios pblicos, artesos, todos, cadaqual em sua funo, realizavam a reino de Deus hic et nunc.Mais o rei,porque todos, em suas mais diversas profisses, recebiam dele aqualificao. Ele distribua as funes, que possibilitavam a ele, rei,desempenhar a misso dada por Deus. A diversidade, pois, de funessociais continha, implcita, a convergncia de todas para a realizao domesmo plano. Por isto, podia haver divergncias gritantes entre osocupantes das funes: o rei ou seu representante as harmonizava,interpretando, de facto, o que interessava realizao do reino2.Esta visoimplica a crena da verdade desta forma de organizao e, portanto, de suanecessidade e de sua imutabilidade. H superabundncia de confirmaes,nos escritos da poca, da vigncia desta ideologia.

    A cultura brasileira nasce, destarte, marcada pela presena viva daIgreja/religio. Podemos discutir os caminhos que essa presena percorreu

    2Algumas observaes sobre este tpico: a) era legtimo que os diversos atores sociais, em suas diversas funes, tivessem edefendessem posies at contrrias: a autoridade estabelecia o reto; b) nesta viso no h do que se espantar com oregime do Padroado: no era um favor do Papa: procedia de Deus! O Papa devia apenas declar-lo! c) No tem sentido,neste contexto, em falar de Igreja Catlica: era simplesmente a Igreja. Os documentos da poca rezavam: a nossasanta f. S com esta compreenso que se pode dimensionar bem a questo dos hereges.

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    ao longo do perodo que abordamos, mas o fato certo: o sagrado estavanas entranhas de cada gesto social, na forma certo vivida poca.

    Esta a caracterstica maior da ao pedaggica dos jesutas3,consubstanciada em seu cdigo pedaggico Ratio Studiorum. Por que nosreferimos ao pedaggica? Porque a ao pedaggica , por excelncia,

    o lugar onde os princpios se manifestam com clareza. A proposta deafirmao de uma sociedade, ns a temos em suapaideia.Se os jesutas seimpuseram como os educadores no reino de Portugal, contra outrastendncias, isto, no mnimo, significa estar sua pedagogia consoante com acultura portuguesa e com a viso de mundo da Corte.

    Os princpios fundamentais da pedagogia jesutica explicitam asacralidade que d forma cultura portuguesa. Dizem respeito busca doReino de Deus (Ad majorem Dei gloriam!), salvao da prpria alma e do prximo, edificao da Igreja. Para se entender isto, tem que seentender o teocrtico da sociedade, seno a ao de uma instituio aparececomo definidora de toda a cultura, quando dela expresso. Visa-se, comefeito, a construo de uma sociedade impregnada do Reino de Deus. Aconcepo de uma tal sociedade implica a autoridade hierarquizada comoprincpio estruturante, dispondo a ordem das partes. Da derivam-se osprincpios de centralizao, de uniformidade e de invarincia. O modeloproposto de uma sociedade perfeita, coerente, harmoniosa. O instrumento a disciplina rigorosa. A organizao curricular, a metodologia de ensino ede estudo, o processo de avaliao e a disciplina escolar encarnam aspropostas, possibilitando a realizao. Isto tudo se fazia por necessidade: seassim no se procedesse, seria a catstrofe, catstrofe em relao verdade, salvao, sobrevivncia. No se tratava, in radice, de perder terrenopara os protestantes: era o medo de desestruturao do seu mundo, o nicoe verdadeiro; seria o caos. A pedagogia estava em defesa da necessidade.

    Como isto se realizava no Brasil? Para imaginarmos melhor ocontexto, apresento dois tipos de informaes, as primeiras versando sobrea vida no colgio, as segundas sobre a populao.

    Ferno CARDIM (1585/1980: 143) diz que, presena doVisitador, os estudantes do Colgio da Bahia fazem discurso, em prosa eem verso, recitam e cantam com instrumentos. Os estudantes (tiveram)

    duas (oraes) em prosa e verso; recitaram-se alguns epigramas, houveboa msica de vozes, cravo e descantes. O mesmo fazem para ogovernador alguns dias depois.

    3O Ratio Studiorum, em sua forma definitiva, data de 1599. Para melhor conhecimento de sua histria, ver , de LeonelFranca, OMtodo Pedaggico dos Jesutas. So Paulo: Agir, 1952.

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    Serafim LEITE (1938 t. I: 96/97), baseado nas cartas jesuticas dosculo 16, relata, com orgulho, o xito do Colgio da Bahia, comparando-oaos de Portugal:

    Em 1578, conferiram-se as primeiras lureas de Mestre em

    Artes. Foi o ato, que revestiu pompa extraordinria, na Igreja doColgio, com a assistncia do Governador Geral e do Bispo.

    Em 1581, novos doutoramentos. Foi um espetculo europeu.

    ... Este ano elevaram-se dignidade de Mestre alguns externos. A

    cerimnia fez-se ainda com maior solenidade e com o aparato que

    se costuma nas Academias da Europa, como nunca se tinha feito

    aqui. No faltou nem o anel, nem o livro, nem o cavalo, nem o

    pagem do barrete, nem o capelo feito de estofo de seda (Anchieta)

    Olhando a sociedade ao redor, acompanho o censo de FernoCARDIM (1585/1980): ter a cidade (da Bahia) com seu termo passantede trs mil vizinhos portugueses, oito mil ndios cristos e trs ou quatromil escravos de Guin (p. 144); Pernambuco tem passante de dois milvizinhos entre vila e termo ... sero perto de dois mil escravos; os ndios daterra so j poucos (p.164); a Vila de Nossa Senhora da Vitria ter maisde cento e cinquenta vizinhos (p.168); So Vicente ter oitenta vizinhos... a vila de Santos, oitenta vizinhos... Itanham, cinquenta vizinhos...Piratininga, cento e vinte vizinhos ou mais (p.174). So Jorge de Ilhus,cinquenta vizinhos... Porto Seguro, quarenta vizinhos (p.147/8) Em cadaengenho da Bahia ( eram trinta e seis!) havia de ordinrio seis, oito e

    mais fogos de brancos e ao menos sessenta escravos... mas os mais delestm cento e duzentos escravos de Guin e da terra (p.158)

    Estes dados nos permitem vislumbrar como se assentava asociedade de que falamos. Acrescentem-se a isto as condies de viagem, oisolamento territorial, o sentimento de perigo flor da pele, a distncia daterra-me, a necessidade da grande produo, o trato com escravos emnmero muitas vezes maior, as guerras (contra ndios, franceses,piratas,etc.), a nova famlia. neste ambiente que se encontram oscolgios. a que se pratica a pedagogia jesutica. O que fazem portugusdo cotidiano tem que dar respostas a problemas de toda sorte, marcadospelo carter os pais? Os principais que esto nos engenhos efazendas4mandam seus filhos a estudar nos colgios. O que estudam eles? Asmesmas coisas que em Portugal. Parece que nada mudou. Parece que asociedade vive em Portugal, quando a situao toda estranha. O selvagemda ameaa permanente e universal. Neste contexto se compreendem as

    4 O Visitador Gouveia, em carta de 6 de setembro de 1584, assim se expressa quando fala de quemmanda os filhos aocolgio (apud S.LEITE, 1938 t.I: 82 )

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    atitudes radicais, sobretudo no que dizem respeito execuo das pessoas eaos castigos5.Basta acompanhar a vida dos bandeirantes. O Brasil era, todoele, uma bandeira. Como ensinar latim6 aos filhos dessa gente? Comoconvive o guerreiro - pois todo branco tem que ser guerreiro7 - com asletras e os letrados, com os cnones e a organizao social, com a armadura

    religiosa que enforma as situaes? Os colgios pareciam a salvaguarda daverdadeira cultura: todos o achavam natural; eram o lugar de formao daelite e, por isto mesmo, da conservao da sociedade. O regime de corteassim o exigia. Tudo girava ao redor desse regime. O que se produzia emPortugal se recebia no Brasil. A corte precisava dos letrados e dos colgiospara se manter tal qual era. Mas aqui no havia corte: s capites de terra esoldados. O contexto no era de manuteno mas de luta de construo, deconquista. Portugal se mantinha como Portugal. Pensava-se fazer daqui umoutro Portugal. Havia, no entanto, uma disparidade de experincia de vidaentre l e c. Como se refletia isto no cotidiano? A pergunta mais prxima

    diz respeito interao entre colgio e vida fora do colgio nas condiesj assinaladas. Quais os problemas na interao? Que consequnciasculturais?

    Por ocasio da visita de Cristvo de Gouveia, de que falaCARDIM (1585/1980: 145), o colgio da Bahia tinha uma lio deteologia, uma de casos, um curso de artes, duas classes de humanidades,escola de ler e escrever. Isto em 1584. Serafim LEITE (1938, t.1: 74-79;t.2: 69-75) mais completo. Basta correr os olhos sobre o Ratio atqueInstitutio Studiorum,o diretrio de estudos da Companhia, para se ter umaidia do quase paradoxo entre o colgio e o mais da sociedade, ou seja, da

    problemtica cultural do quinhentos e seiscentos brasileiro. O colgioparecia viver um clima de outro mundo: l se liam as poesias de Virglio eOvdio, os discursos de Ccero, as proezas de Csar; l se praticavam asrepeties, esquadrinhadas tal qual num exerccio militar; as disputas, quaisduelo medieval8. Que homem se buscava? O fato que essa pedagogia,praticada aqui no Brasil, nos impe uma atitude de questionamento. Porcerto, era natural que se praticasse aqui, visto que era a pedagogia praticadano reino. Mas, aqui posta, como combinava com a nova realidade social?Para um observador externo o colgio parecia viver uma outra realidade: omundo de dentro, talvez o mundo de Portugal. O mundo de fora comeava,

    no entanto, a firmar posio. Como era o processo de adaptao?

    5Lus PALACIN (1987: 29), falando do homem do sculo 17, afirma: O homem do sculo 17 no tinha a sensibilidade dohomem moderno na percepo e na repulsa dos abusos da autoridade. Menos ainda no sculo anterior, j pelosfundamentos tericos, j pelas circunstncias de vida.

    6Com latimquero dizer, numa s palavra, a cultura letrada.7Para se imaginar o cotidiano de um portugus quinhentista ler, entre outros, de Ronaldo VAINFAS, A heresia dos ndios:

    catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp 84-94.8 claro que no podemos resumir assim a pedagogia jesutica. Este ensaio quer frisar o contraste entre essa pedagogia, no

    rigor de sua forma, e o contexto brasileiro.

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    Uma primeira resposta encontramos nos prprios jesutas. Diante danova situao eles procuram se adaptar. Querem adaptar, para os ndios, alegislao (casamento, batismo, confisso, liberdade). Querem adaptar,para os portugueses, a moral e a legislao da guerra justa e daescravizao. Mas se adaptam tambm naquilo que os ndios levam

    vantagem: modo de dormir, de viajar, de se alimentar9.

    Uma segunda resposta ns encontramos na atitude dosgovernadores e dos capites. Garantidos os direitos rgios, cada capito setorna soberano, tal a distncia da sede e tal a constncia de ameaa vida.Ao redor dos capites se constri a vida poltica e social da colnia. Isto vaigerar um modus vivendi que modela comportamentos, dita valores, criacostumes e instituies. O capito se torna provedor da vida, em todos oscampos: alimentao, defesa, trabalho, moral social, relaes ditas sociais10,organizao social, etc. A dependncia no que diz respeito vida geraatitudes de submisso, tendendo ao clientelismo com todas as trocas de

    favores que isto implica. O regional comea a se pr como resultado dasituao de vida.

    Uma terceira considerao. Os letrados, que saam dos colgios e semisturavam vida social, tinham diante de si dois modelos: o do colgio eo da sociedade posta. O modelo colegial lhe exigia um comportamentoclssico, formal, religioso: seu argumento era o do colgio. Para tanto foratreinado. A disciplina do colgio jesutico era austera. ... se exercitem osalunos, de modo que de nada se envergonhem tanto, como de se apartar do

    rigor da forma...11 Sua ao, porm, era a exigida pelas circunstncias.

    Combinar os dois discursos gerou uma prtica social ambgua eambivalente. Podia-se estar bem com Deus e, por isto mesmo, com asociedade, resguardando o argumento moral-religioso e, ao mesmo tempo,contrariar os princpios com uma requintada justificao. O que garantia aharmonia de um tal comportamento era a viso ideolgica de sociedadeteocrtica, o orbis christianus. medida, porm, que a prtica social vaidesconstruindo esta ideologia, preservando embora os mesmoscomportamentos, surge gritante a disparidade dos discursos, o discursojustificador, de um lado, e o discurso da prtica, de outro lado. Em setratando de um olhar sobre a formao da cultura brasileira, precisoobservar os comportamentos e suas consequncias sociais, ainda que

    ressalvando as intenes justificadas pela viso de mundo do momento. Emtermos de consequncias, importante verificar as atitudes poltica, moral,

    9Sobre este tema, ver a tese de Jos Carlos Sebe Bom Meihy, A presena do Brasil na Companhia de Jesus. So Paulo,USP/IFCH/Departamento de Histria, 1975. Tese de doutorado.

    10Um eloquente exemplo disto o apadrinhamento. Em outro lugar escrevi (PAIVA. 1982:68): Eles no tm apenas umafuno patronmica mas patronal: recebendo os a filhados na famlia (isto aconteceu com os primeiros nomeados [citeiento vrios exemplos]e continuou sendo costume que governador, ouvidor, provedor e outros oficiais apadrinhassemos novos cristos) e garantindo-lhes um status na nova sociedade.

    11Ratio Studiorum, art. 20.

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    de negcios os grandes campos de ao social - que foram secristalizando na cultura brasileira.

    A religio se pe, pois, na formao da cultura brasileira, como umdiscurso formal12, que consagra o status quo, poca todo ele de fatoreligioso, possibilitando incongruncias radicais nas mesmas pessoas13. Os

    que passam pelos colgios (a elite14) praticam a religio jesutica:preservam o discurso rigoroso que justifica a prtica necessria. Com isto,no estou fazendo ainda referncia ao modelo devocional da religiosidadebarroca ento vigente: estou insistindo na funo que a religiodesempenha na sociedade colonial, uma funo de justificao. Insisto: elajustifica nos termos mais radicais, ou seja, d status religioso para toda equalquer atividade humana; justifica a ordem social vigente, distinguindosenhores, plebe e escravos; justifica os prprios argumentos usados,sublimando os fatos. Esta justificao no se d por um ato papal ouepiscopal: ela da prpria natureza da sociedade. E se manifesta, assim, na

    linguagem, nos produtos simblicos, na organizao social, nos costumessociais, em tudo. Este lugar da religio se pe como legtimo na cultura dasociedade e enquanto tal que se perpetua, mesmo mudando-se ascondies sociais. Os letrados e, mais que eles, os governantes se tm e sotidos como privilegiados de Deus. E assim agem socialmente.

    Um quinto aspecto que, penso, deve ser abordado no esforo de secaracterizar a cultura brasileira o contraste entre a racionalidade - prpriada cultura portuguesa e, mais prpria ainda, do estilo jesutico - e a novaexpresso da terra. Dizendo racionalidade, digo da primazia da razo sobrequalquer outra expresso humana possvel. A racionalidade prima peladisposio das partes em contraposio percepo do todo, do unoindiviso. Ela tende ao individualismo, em termos sociais. Torna possvel oEstado mercantil15, em termos polticos. Sugere a escrita como instrumentoda contabilidade (ratio= clculo!) e da argumentao. E, na argumentao,o conceito16 acima do concreto. Pela escrita se tem sempre mo a ordem,a ordem social, a ordem sagrada, a ordem dos negcios. A racionalidade

    12Formal, isto , que d (a) forma. No se diz formal, no sentido de convencional (conquanto o possa parecer para ns hoje),dado que a sociedade teocrtica se expressava, toda, teocraticamente.

    13Ver a obra j citada (nota 4) de Lus PALACIN (1986: 81/82), onde, falando de Vieira, se refere a incongruncias entre

    argumentos e gestos. Este comportamento, podemos verific-lo, a cada passo, no processo de colonizao. por demaisconhecido o dito de Anchieta (Cartas Jesuticas, t. III, p.179): Parece-nos agora que esto as portas abertas nestaCapitania para a converso dos gentios, se Deus nosso Senhor quiser dar maneira, com que sejam postosdebaixo do jugo, porque para este gnero de gente no h melhor pregao do que espada e vara de ferro, naqual mais que em nenhuma outra, necessrio que se cumpra o compelle eos intrare.

    14 Regis de MORAIS (1995: 75), reportando-se a outro artigo seu, procura depurar os termos elite e elitizao dascaractersticas socioeconmicas ... devolvendo-lhes o original conceito tico de os mais dotados de conscincia de si edo seu tempo (elite) e deprocesso autntico de conscientizao intelectual e de cidadania (elitizao).

    15 Oliveira FRANA (1997: 39) diz que o mercantilismo uma doutrina de ordem. De policiamento das atividadeseconmicas atravs da interveno ostensiva do Estado. No quero afirmar que a racionalidade causa do Estadomercantil: ela sua expresso possvel.

    16As verdades crists eram postas em frmulas abstratas: crer, Deus/trino/puro esprito, comunho, salvao/grapecado,etc.

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    est presente na filosofia, na contabilidade, na lei, na teologia, no direito,em todas as esferas da vida social.

    Ela se faz chocante ao pisar em terras brasileiras e querer se imporaos ndios, aos negros e ao guerreiro. As cultura indgenas e africanas nose marcavam pela racionalidade mas pela simbiose com o circunstante. Sua

    expresso imediata era uma transformao do sujeito por inteiro: o corpofala!17 Assim, o ritual se destaca como a forma de linguagem. Por detrs doritual, a linguagem direta, a linguagem mtica, a linguagem da unidade. Osjesutas perceberam isto, tanto assim que tentavam, em suas pregaes,imitar aos pajs18 e usavam do teatro para catequizar os indgenas. Seucontedo e sua forma, porm, eram inacessveis e invalidavam oinstrumento. O guerreiro, ao contrrio, tentava assimilar a linguagem,assimilando os costumes (o que parecia aos jesutas a profanao da prpriacultura): alimentao, msica, vocabulrio, gestos, etc. formando mesmofamlia19.O crescimento demogrfico, tendo por base o ndio e, sobretudo,

    o negro, estende a influncia dessas culturas cultura portuguesa do Brasil,tocando-a no que lhe era cotidiano: a linguagem, o sentimento, asexpresses de familiaridade, e, por a, a viso de mundo, as crenas, a vida.

    Este trabalho se props sugerir perspectivas de pesquisa sobre aformao da cultura brasileira, a partir da educao institucionalizada, acargo da Companhia de Jesus. Insiste na composio colgio/condiesconcretas da colnia, indicando a necessidade de se analisar maisprofundamente as formas de convivncia assumidas delas decorrentes, quedeixaram marcas no desdobramento da cultura brasileira. Muito pouco setem feito nesta linha. A Histria da Educao Brasileira, no que dizrespeito a este perodo, tem se contentado com a narrativa no sentidotradicional. Creio ser necessrio retomar as origens, partindo decontribuies tericas que nos permitam uma compreenso melhor danossa forma de ser.

    Fontes

    CARDIM, F. Narrativa Epistolar de uma viagem e misso jesutica. In:CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1585). Belo

    Horizonte: Itatitaia/So Paulo: Edusp, 1980.

    17Fao aluso ao trabalho de P.Weil, num sentido porm mais radical: ns nos expressamos in totum como seres corpreos; mais do que usar o corpo como instrumento de comunicao. Cabe aqui fazer referncia gestualidade e oralidade,como expresses tpicas da cultura brasileira. Ver, nestes termos, de Amlio Pinheiro, Aqum da Identidade e daOposio Formas na Cultura Mestia. Piracicaba: Unimep, 1994.

    18Ver, entre muitas outras, Cartas dos Primeiros jesutas do Brasil, t. I, p. 319; t. III, p. 404.19 A linguagem da guerra e das execues, por no implicar racionalidade, era assimilada pelos indgenas, afeitos, eles

    tambm, guerra entre adversrios e sua execuo, conforme suas tradies. Creio termos aqui um aspecto apesquisar, nos termos da comunicabilidade intercultural.

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    CARTAS DOS PRIMEIROS JESUTAS DO BRASIL. So Paulo:Comisso do IV Centenrio, 1954. Org. de Serfim Leite. 3 t.

    RATIO ATQUE INSTITUTIO STUDIORUM. In: FRANCA, L. MtodoPedaggico dos Jesutas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.

    Referncias BibliogrficasFRANA, E.dO. Portugal na poca da Restaurao. So Paulo:

    Hucitec, 1997.

    LEITE, S. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa:Portuglia/Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1938. tomos I e II.

    MORAIS, R. A universidade desafiada. Campinas: Unicamp, 1995.

    PAIVA, J.M. Colonizao e Catequese. So Paulo: Cortez/AutoresAssociados, 1982

    PALACIN, L. Vieira e a viso trgica do barroco. So Paulo:Hucitec/Braslia: INL/Fundao Pr-Memria, 1986.

    PINHEIRO, A. Aqum da Identidade e da Oposio. Piracicaba:Unimep, 1994.